Você está na página 1de 7

180 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº.

55

É evidente que se pode ser anti-racista sem Representações sociais e


aceitar ou se integrar na polarização racial, mas
entre essa perspectiva e a posição de que a “de- sociedades: a contribuição
finição estreita de negritude […] pode constituir de Serge Moscovici
um obstáculo à criação de um movimento amplo
pelos direitos civis que atraia pessoas de classes e Serge MOSCOVICI. Representações sociais: inves-
credos diferentes” (p. 294) há uma longa distân- tigações em psicologia social. Rio de Janeiro, Vo-
cia. Primeiro, tenho dúvidas quanto à possibilida- zes, 2003. 404 páginas (trad. Pedrinho A. Guares-
de real de existir um “movimento amplo pelos di- chi, a partir do original em língua inglesa Social
reitos civis” com definições estreitas ou amplas representations: explorations in social psychology
acerca da negritude; segundo, a polarização, com [Gerard Duveen (ed.), Nova York, Polity
todos os seus efeitos, desenvolvida por uma mi- Press/Blackwell Publishers, 2000]).
noria atuante, antes que um obstáculo tem sido a
responsável pela mudança desencadeada na rea- Márcio S. B. S. de Oliveira
lidade política racial e social brasileira.
Do ponto de vista acadêmico, concordo com O romeno naturalizado francês Serge Mosco-
a perspectiva de Sansone a favor de “uma curio- vici é dono de uma obra considerável, tão impor-
sidade etnográfica” capaz, sem apriorismos, de tante para a psicologia (seu campo de formação e
identificar as características específicas da nossa atuação) como para a história e as ciências sociais.
configuração racial e cultural. Portanto, apoio in- Seus trabalhos e sua teoria das representações so-
teiramente sua proposta de um olhar brasileiro ciais (TRS) têm influenciado ao longo das últimas
sobre o Brasil, sem vergonha de aceitar a mesti- quatro décadas pesquisadores tanto na Europa
çagem e a hibridez de nossa cultura, que sempre como nas Américas, incluindo o Brasil.1 É curioso,
coexistiram com uma imensa injustiça social. Ne- assim, que entre sua vasta obra – doze livros indi-
gritude sem etnicidade merece ser lido seja pelo viduais e quatorze que ele organizou ou escreveu
vasto conteúdo histórico, antropológico e socioló- em conjunto com outros autores –, apenas dois te-
gico, respaldado nas investigações do autor, seja nham sido traduzidos para o português, ambos
pelas posições assumidas por ele. Com certeza, o com edições esgotadas.2 É com prazer, portanto,
leitor não ficará isento, pois, acima de tudo, trata- que apresento ao leitor a tradução de Social re-
se de um livro que incomoda. presentations: explorations in social psychology,
terceiro livro de Moscovici.
O leitor não encontrará neste livro uma tese
Jeferson BACELAR é professor do Departa- formalmente defendida. Ao contrário, o que se
mento de Antropologia da UFBA e pesquisa- tem são capítulos independentes. Contudo, a im-
dor do Centro de Estudos Afro-Orientais. pressão inicial de uma “coletânea” de um só au-
E-mail: bacelarj@ufba.br tor logo se esvai. Isto porque Moscovici, desde o
final dos anos de 1950 e início da década de 1960,
preocupa-se com os mesmos temas, retomados
em perspectiva ao longo dos seis capítulos que
compõem a obra. Trata-se de temas como o pro-
cesso social de produção de conhecimento, a de-
finição de sociedade e a discussão em torno das
representações sociais. No interior das ciências
sociais, sua obra pode ser inserida no campo da
sociologia do conhecimento; e acredito que esta
classificação, embora reducionista, não desagra-
daria ao autor. Reducionista porque Moscovici se
RESENHAS 181

interessou não apenas em compreender como o A reflexão de Moscovici, contudo, não parou
conhecimento é produzido, mas principalmente aí. Ele quis compreender como a produção de co-
em analisar seu impacto nas práticas sociais e nhecimentos plurais constitui e reforça a identida-
vice-versa. Em suas próprias palavras, interessou- de dos grupos, como influi em suas práticas e
se no “poder das idéias” de senso comum, isto é, como estas reconstituem seu pensamento. O autor
no “estudo de como, e por que as pessoas parti- insistiu sobre este assunto em dois outros livros.
lham o conhecimento e desse modo constituem Em Psychologie des minorités actives,4 mostrou
sua realidade comum, de como eles transformam como os processos de mudança social são influen-
idéias em práticas […]” (Moscovici, apud Duveen, ciados não apenas por grupos majoritários, mas
p. 8). Em síntese, preocupou-se em compreender também por grupos minoritários (ou minorias); já
como o tripé grupos/atos/idéias constitui e trans- em A máquina de fazer deuses (La machine à fai-
forma a sociedade. re de dieux,1988), chamou a atenção para o es-
O tema da relação entre grupos, atos e quecimento da dimensão psicológica por parte
idéias (ou imagens) está presente desde sua tese das teorias sociológicas tradicionais. Em ambos os
de doutorado publicada em 1961, com reedição livros, Moscovici trabalhou pelo reconhecimento
revisada em 1976, Psychanalyse, son image et son de processos de mudança social levemente autô-
publique. Resgatando o conceito de representa- nomos do sistema social e mais dependentes das
ções coletivas (RC), inicialmente proposto por ações de indivíduos e grupos (mesmo minoritá-
Émile Durkheim e, de alguma forma, esquecido rios) e de suas “situações sociais”.
por seus contemporâneos,3 o autor estudou, então, Representações sociais: investigações em psi-
as diversas maneiras pelas quais a psicanálise era cologia social retoma essas grandes questões.
percebida (representada), difundida e propagan- Constitui-se dos principais ensaios “extraídos de
deada ao público parisiense. Pela discussão profí- um corpo bem maior de trabalho”, e é finalizado
cua sobre a relação entre linguagem e representa- com uma longa entrevista de Moscovici a Ivana
ção, as conclusões deste trabalho fizeram escola. Marková, momento privilegiado em que se pode
Podemos sintetizá-las em três pontos fundamen- observar como o autor explica seus conceitos não
tais: 1) entre o que se acreditava cientificamente só em relação à época em que foram escritos,
ser a psicanálise e o que a sociedade francesa en- como também da perspectiva de quem estudou
tendia por ela existia um intermediário de peso, as diversas formas pelas quais sua obra foi recebida.
representações sociais; 2) essas representações não O conjunto desses ensaios/capítulos fornece
eram as mesmas para todos os membros da socie- uma clara idéia do caminho intelectual trilhado
dade, pois dependiam tanto do conhecimento de pelo autor e retoma o permanente diálogo manti-
senso comum (ou popular), como do contexto so- do com as ciências sociais. Não obstante poderem
ciocultural em que os indivíduos estavam inseri- ser lidos na ordem que se desejar, uma certa lógi-
dos; e 3) no caso de novas situações ou diante de ca os fundamenta. Comento-os sem respeitar sua
novos objetos, como, por exemplo, a psicanálise, ordem numérica, buscando reconstruir a identida-
o processo de representar apresentava uma se- de teórica que os anima.
qüência lógica: tornar familiares objetos desco- O capítulo 2 – “Sociedade e teoria em psico-
nhecidos (novos) por meio de um duplo mecanis- logia social” – é, para aqueles pouco afeitos ao jar-
mo então denominado amarração – “amarrar um gão da psicologia, bastante informativo. O autor
barco a um porto seguro”, conceito que logo evo- apresenta como a psicologia social de origem euro-
luiu para sua congênere “ancoragem” –, e objeti- péia se encontra numa situação de redescoberta de
vação, processo pelo qual indivíduos ou grupos seu campo, tendo em vista as contribuições dos
acoplam imagens reais, concretas e compreensí- norte-americanos nesta área,5 as quais, segundo o
veis, retiradas de seu cotidiano, aos novos esque- autor, não foram propriamente de ordem teórica ou
mas conceituais que se apresentam e com os metodológica, mas se deram em um plano mais es-
quais têm de lidar. pecífico e concreto da realidade daquele país. Ou
182 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 55

seja, eles inscreveram suas análises no contexto bre pensamento primitivo, senso comum e ciência.
social que as viu nascer, enquanto os europeus – Qualquer uma dessas práticas mentais (e sociais),
talvez mais empenhados na luta para afirmar seu afirma o autor, é sempre uma forma de representa-
próprio campo científico – se afastaram de seus ção. Não são realidades, mas representações dela.
problemas sociais cotidianos. Em conseqüência, Portanto, segundo Moscovici, é em função das re-
aos psicólogos europeus, diferentemente do que presentações (e não necessariamente das realida-
ocorreu em relação aos sociólogos, não foi cobra- des) que se movem indivíduos e coletividades. Sa-
da uma posição crítica ou de mudança em relação ber como se formam ou como operam essas
à sociedade, uma vez que passaram a ser conside- representações – onde se misturam a um só tempo
rados “administradores de resistências”. Moscovici pensamento primitivo, senso comum e ciência –
mostra os perigos sociais e os limites científicos tece a trama da discussão apresentada.
dessa postura e clama por uma maior interação da Retornando às reflexões presentes em As for-
psicologia – indicando inclusive os psicólogos que mas elementares da vida religiosa (Durkheim,
mais têm contribuído para isso – com todas as 1912), o autor mostra, primeiro, como o pensa-
ciências sociais, em especial a sociologia, para a mento científico é da mesma natureza (é o corolá-
qual as noções de mudança, conflito e poder são rio) dos outros dois pensamentos (primitivo e sen-
centrais. O autor repassa, enfim, estudos sociopsi- so comum). Segundo, mostra como todas essas
cológicos pouco conhecidos entre nós talvez por- práticas mentais têm origem na sociedade, ou seja,
que tenham sido autoclassificado como comporta- são categorias sociais de pensamento. Mas isto o
mentais e não como sociais. Mas isso era apenas próprio Durkheim já havia afirmado. A diferença
uma estratégia em relação aos fundos de pesquisa; operada é que o autor quer descobrir, também em
na verdade, esses estudos podem ser vistos como atos psíquicos (ou francamente individuais), ori-
de aplicação da psicologia sobre fenômenos de so- gens sociais. Para tanto, propõe uma continuidade
ciedade. Portanto, muito úteis às ciências sociais. entre representações individuais e coletivas, recor-
O capítulo 5 – “Caso Dreyfus, Proust e a psi- rendo a Levy-Bruhl e a Vygotsky (autores também
cologia social” – é um belo ensaio sobre a impor- retomados no capítulo 6). Moscovici começa por
tância da psicologia social como ferramenta de aná- afirmar que não obstante a tese durkheimiana so-
lise. O autor analisa aqui o “caso Dreyfus”6 – até bre a separação entre representações individuais e
hoje uma referência quando se pensa em socieda- coletivas estar correta, o problema encontra-se nos
de partida, dilacerada, mas à procura de um outro detalhes, nas singularidades, ou seja, no fato de
arranjo social. Proust também levanta essa discus- que as representações coletivas tratam de fenôme-
são em sua obra literária, o que torna muito perti- nos gerais e os “relacionam a práticas ou realida-
nente Dreyfus e Proust estarem juntos neste en- des que não o são” (p. 184). Esse dilema é retoma-
saio. O “caso Dreyfus”, ao revelar uma sociedade do no capítulo 6. Vejamos.
em busca de um “novo ideal”, torna-se, em Mos- “Consciência social e sua história” é um en-
covici, um excelente motivo não só para resgatar saio sobre Jean Piaget (1896-1980) e Liev Vygotsky
a original noção durkheimiana de “consciência co- (1896-1934), escrito em 1996, data do centenário
letiva” (ou “forças coletivas”), mas também para do nascimento desses autores. Moscovici situa na
testar os limites explicativos da noção de “padrão base da mentalidade humana o ambiente natural
geral de comportamento” que atua sobre o con- da sociedade e as representações (individuais e co-
junto da sociedade, independentemente das inser- letivas) em seu contexto histórico. Retoma, assim,
ções e das trajetórias sociais. A discussão em tor- a discussão iniciada no capítulo 3, acrescida agora
no desse conceito durkheimiano está presente por outras interrogações, como, por exemplo, se
também no capítulo 3, “A história e a atualidade há continuidades ou descontinuidades entre as di-
das representações sociais”. versas formas individuais e coletivas de ser e de re-
Neste capítulo, o leitor encontra uma discus- presentar? Para responder, Moscovici resgata tanto
são refinada (esboçada já no primeiro capítulo) so- a evolutiva noção de representações coletivas de
RESENHAS 183

Durkheim como as inconciliáveis formas mentais obra afirma que a distinção operada por Durkheim
do sociólogo francês Lucien Levy-Bruhl (1857- entre representações individuais (objeto da psicolo-
1939), traçando um paralelo com as obras de Pia- gia) e representações coletivas (objeto da socio-
get e Vygotsky. A análise é a um só tempo simples logia) está na origem de certa dificuldade em se
e profunda. Piaget teria seguido o caminho pro- definir a psicologia social como ciência e tam-
posto por Durkheim: há evolução nas formas de bém de certa incapacidade de os psicólogos con-
representação; já Vygotsky, em desconfortável re- siderarem a dimensão social presente nos atos in-
lação com o marxismo soviético de então, teria se- dividuais. Esta é a razão de Duveen considerar
guido Levy-Bruhl: uma mesma cultura pode gerar Durkheim um “ancestral ambíguo” (p. 13). Quan-
distintas representações, não havendo emprésti- do Moscovici propõe seu novo conceito, conti-
mos ou substituições entre elas, mas eventualmen- nua Duveen, ele quer não apenas se distanciar
te “saltos” ou “revoluções”. O autor contextualiza de seu mestre, mas também “explorar a variação
este debate sobre o caráter universal ou evolucio- e a diversidade das idéias coletivas nas socieda-
nista das representações nos anos de 1920 e em des modernas” (p. 15).
plena polêmica marxista-leninista em torno do A substituição do termo “coletivas” por “so-
“controle” da consciência social e do destino único ciais” marca, assim, a original diferença estabele-
das sociedades européias. As possibilidades histó- cida em relação a Durkheim. A pedra de toque do
ricas de então – tanto o marxismo como o nazis- argumento foi, de um lado, o estabelecimento das
mo, como bem demonstrou Karl Mannheim – fo- fraturas existentes nas “forças coletivas” e, de ou-
ram igualmente mortíferas, abreviando assim o tro, a maneira pela qual essas fraturas impactam
debate que se iniciava. diversamente o cotidiano de grupos e indivíduos.
Embora o capítulo 6 retome o dilema apresen- De fato, no início de sua obra, Moscovici parecia
tado no capítulo 3, fica-se sem saber quem teria ra- oscilar entre reconhecer ou não a autonomia das
zão, se Piaget ou Vygostky. Em outras palavras, idéias (ou do universo ideológico) e seu impacto
Moscovici não diz se as múltiplas representações sobre o comportamento coletivo. Parecia, pois, os-
coletivas ou individuais são ou não interdependen- cilar entre um pensamento primitivo que “confor-
tes. No capítulo 3, o autor sugere que outros “epis- ma realidades” e um pensamento científico que “é
temólogos com mais tempo que [ele] se interessem conformado pela realidade” (p. 29). Entre 1961 e
por essa particular relação” [entre os dois autores e 1976, o autor aponta uma solução para o proble-
suas teorias] (p. 193), fechando o elo que une es- ma, ao afirmar que representar é um processo de
tes capítulos. produção de conhecimento que funciona como
Como os capítulos não são seqüenciais, as que “rolando” por sobre estruturas sociais e cog-
reflexões elaboradas nos capítulos 3 e 6 partem de nitivas locais (e populares), sendo, portanto, so-
um conteúdo desenvolvido nos capítulos 1 e 4. ciovariável. Com esta atitude, ele parece romper
Nesses últimos, contudo, o autor apresenta uma definitivamente com a idéia durkeimiana de “for-
hipótese relativamente diferente daquela que sem- ças coletivas” ou de “ideais” que apenas cimentam
pre seguiu. Ele afirma que, embora sociais e histo- e conferem sentido às sociedades justamente
ricamente localizáveis, as representações indivi- quando delas se libertam para assumir uma “outra
duais e coletivas podem guardar um sentido geral natureza”, isto é, quando se reconhece que elas
que ultrapassa a sociedade que as viu nascer. Este “[...] têm por causas próximas outras representa-
sentido atende pelo nome conceitual de themata. ções coletivas e não esta ou aquela característica
Vejamos em detalhe. da estrutura social”.7 Ora, para Moscovici, as re-
Em “O fenômeno das representações sociais” presentações nunca seriam de “outra natureza”:
(capítulo 1), Moscovici apresenta as diferenças, ora elas seriam da natureza mesma dos grupos sociais
sutis ora bem evidentes, entre seu conceito e o de que as criam, e sua eficácia – tanto prática como
Durkheim a respeito das representações sociais. Du- simbólica – dependeria dessa inserção, e não po-
veen, editor do original inglês, na apresentação da deria jamais ter um sentido universal. Com este
184 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 55

argumento, Moscovici acabou por demonstrar “o que está colocado ou o que é”, o termo tal
que as representações não derivam de uma única como é empregado, é um desdobramento teórico-
sociedade, ultrapassando-a, como insistiu Dur- epistemológico do conceito de representações so-
kheim, mas das diversas sociedades que existem ciais. O autor inicia sua análise afirmando que as
no interior da sociedade maior, e, portanto, não representações sociais necessitam do “referencial
podem ultrapassá-la. de um pensamento preexistente” (p. 216). Em se-
Entretanto, como discuti em outro artigo,8 guida, levanta a questão sobre como se pode “pas-
há pouca diferença substantiva entre os termos sar do microssociológico ao macrossociológico”,
“coletivas” e “sociais”, pois ambos revelam a di- ou, ainda, sobre qual “teoria [poderia] garantir al-
mensão plural das associações humanas e a pre- guma concordância entre esses dois níveis” (p.
sença das idéias gerais (ou “forças coletivas”) no 221). Tem-se aí uma reflexão de fôlego. De fato, o
seio da sociedade, além de indicarem a necessi- principal problema de qualquer teoria em ciências
dade do estudo de seu impacto nos atos cotidia- humanas é justamente generalizar a partir de ob-
nos e mesmo nas mudanças históricas. Moscovi- servações locais. A discussão proposta pelo autor é
ci, no capítulo 7 (“Entrevista”), parece concordar tão ou mais importante quando se sabe que estu-
com isso: “Não espere que eu jamais seja capaz dos empíricos no campo da teoria das representa-
de explicar a diferença entre ‘coletivo’ e ‘social’” ções sociais apresentam certa incapacidade de pas-
(p. 348). Trocando um termo por outro, o autor sar da micro à macrosociedade. Depois de
afirma ter desejado apenas enfatizar a “idéia de mapeá-las, esses estudos deixam a desejar ao ten-
diferenciação, de redes de pessoas e suas intera- tar qualificar as representações. A prática sociológi-
ções” (Idem). O leitor pode ficar com uma idéia ca, por vezes, padece do mesmo mal. No entanto,
um pouco confusa – ou talvez se sinta aliviado – refugia-se sabiamente em suas referências clássicas
em relação à mudança (evolução?) na maneira (Marx, Simmel, Durkheim, Weber, Pareto, entre ou-
como o autor encara aqui “sua” maior inovação tros). Aqueles que, da filosofia à antropologia, tra-
conceitual. Mas se poderia perguntar se esses balham com a noção de imaginário encontram-se
termos são agora intercambiáveis. nessa mesma sintonia – relutam em aceitar um ex-
A título meramente especulativo, acredito cessivo relativismo cultural. Procuram, pois, senti-
que, não mais insistindo na diferença entre “cole- dos gerais.
tivas” e “sociais”, o autor quer mostrar que as A resposta de Moscovici, neste momento de
idéias, embora cotidianas e sociovariáveis, podem sua carreira e obra, não deixa de ser intrigante e
também ser universais porque se perdem na nuit instigante. Para alguém que construiu toda sua re-
des temps das sociedades – elas pré-existem à flexão em torno do tema da “diversidade das so-
vida; são um “ambiente” social e cultural, segun- ciedades”, como pensar em themata, ou seja,
do Moscovici. Em conseqüência, têm certa “auto- como pensar na existência de temas gerais que
nomia” e se descolam da estrutura social e mate- abracem e confiram sentidos a toda pluralidade
rial, o que faz o autor retornar à célebre fórmula social? Por meio de esquemas explicativos com
durkheimiana. É forçoso reconhecer, assim, uma conceitos e um “esquema” que em nada deixam
inflexão no pensamento de Moscovici presente dever ao melhor da lógica científica francesa, Mos-
em Representações sociais. Essa inflexão atende covici demonstra progressivamente como isso se
inclusive por um novo nome – themata –, e é uti- “materializa”, ou seja, como o themata opera e
lizada para descrever o conjunto desses “pensa-
qual seu impacto na dinâmica social. De maneira
mentos-ambientes” relativamente autônomos e
corajosa o autor afirma: “Na Sociologia e na Antro-
descolados da estrutura social.
pologia, os temas ou análises temáticas expressam
O título do quarto capítulo – “O conceito de
uma regularidade de estilo, uma repetição seletiva
themata” – é, como dizem os franceses, tout un
de conteúdos que foram criados pela sociedade e
programme. Mas, o que vem a ser themata? Como
permanecem preservados pela sociedade.” Contu-
o radical latino thema, cuja tradução mais literal é
do, “[...] a noção de tema indica que a possibilida-
RESENHAS 185

de efetiva de sentido vai sempre além daquilo que unificadores? Sociedade global ou localidades a
foi concretizado pelos indivíduos, ou realizado pe- serem narradas? Talvez essas aparentes antíteses
las instituições” (p. 224). Uma “regularidade de es- (ou “antinomias”) estejam por detrás do conceito
tilo”, um sentido que ultrapassa indivíduos e insti- de themata. Este seria, assim, a resposta-sentido
tuições? Deve-se, portanto, olhar as regularidades que nos permite ver o detalhe e a generalidade
históricas como o fez Weber? Sim, afirma o autor. em cada investigação particular, sem perder de
Entretanto, no momento de explicar essa “regula- vista a dimensão social presente em ambos. Em
ridade de estilo” (o themata), há mais percurso resumo, temos, de um lado, a impossibilidade de
que chegada, mais vontade que materialidade. Isto renunciar à generalização e, de outro, a necessi-
porque, como salienta cautelosamente o autor, dade do paciente trabalho de descrição das parti-
“[...] seria perigoso tentar e apresentar como um cularidades. Que a reflexão de Moscovici seja um
resultado comprovado algo que, para o momento, convite para retomarmos o prazer sociológico de
é apenas um horizonte” (223). E Moscovici prati- olhar o todo sob o abrigo da milenar paciência da
camente aborta aí sua reflexão. construção do detalhe. É a isto, acredito, que esta
Não quero me arriscar a completar um racio- obra nos incita.
cínio que não é meu, nem há espaço para isso. No
entanto, parece-me que o conceito de themata re-
toma o central debate em torno da “autonomia do NOTAS
universo ideológico”. As idéias (individuais ou co-
letivas) teriam como pressuposto “outras idéias” 1 Desde 1998, foram organizadas, somente no Brasil,
sociais. Em linguagem sociológica, só fatos sociais três jornadas internacionais sobre representações
podem explicar fatos sociais. Assim, depois de tra- sociais, a última delas no Rio de Janeiro em 2003.
balhar arduamente na inserção social das idéias
2 A Representação social da psicanálise (Rio de Janei-
em grupos e práticas historicamente determinadas,
ro, Zahar, 1978 [1961/1976]) e A máquina de fazer
Moscovici volta seu interesse para o debate em
deuses (Rio de Janeiro, Imago, 1990).
torno da antigüidade e da permanência de certos
temas no cotidiano das relações sociais. Detém-se, 3 A esse respeito, ver Márcio de Oliveira, “Represen-
assim, na generalidade flutuante dos “temas ge- tação social e simbolismo: os novos rumos da ima-
rais”, pouco importando se eles se manifestam em ginação na sociologia brasileira”, Revista de Ciên-
indivíduos ou em coletividades. cias Humanas, 7/8: 173-193, Curitiba, Editora da
UFPR, 1999.
Em sua carreira, o autor inclinou-se ora em
direção à generalidade, ora em direção à singula- 4 Paris, PUF, 1979/1996.
ridade. Ora para a continuidade dos “temas ge- 5 A esse respeito, ver o excelente livro de Amalio
rais”, ora para a particularidade irredutível dos Blanco Abarca, Cinco tradiciones en la psicologia
atos individuais. Isso porque, para ele, há sempre social (Madri, Morata, 1994).
indivíduo e sociedade. No que se refere, contudo,
6 Alfred Dreyfus (1859-1935), capitão do Estado-
à polêmica entre os termos “coletivas” e “sociais”,
Maior Geral do Exército francês foi acusado de ter
o autor afirma de maneira não menos cautelosa:
entregado à Alemanha documentos referentes à de-
“não se deve multiplicar conceitos sem necessida-
fesa francesa. Dreyfus foi julgado, condenado a pri-
de” (p. 348). Nesse sentido, pouco importaria se
são perpétua em 1894 e deportado para a Ilha do
as representações são coletivas ou sociais, pois Diabo (Guiana Francesa). Foi finalmente libertado
todo o problema residiria em saber, então, se elas em 1906, quando se provou sua inocência. Como
revelam ou não a presença de themata. Dreyfus era judeu e o julgamento inconsistente, o
Algumas interrogações podem agora fazer o caso provocou uma forte onda de anti-semitismo,
ofício de síntese desta resenha. Vejamos: Institui- dividindo a opinião pública francesa. Emile Zola e
ções coercitivas totais ou diversidade de associa- Emile Durkheim, entre outros, foram “partidários de
ções sociais? Dinâmicas sociovariáveis ou sistemas Dreyfus”.
186 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 55

7 Cf. E. Durkheim, Sociologia e filosofia (São Paulo, Tendências contemporâneas


Ícone, 1994, p. 50). Sobre o debate em torno da na-
tureza das representações coletivas e suas diferen- nos estudos da emigração
ças em relação às representações individuais, ver, brasileira para os Estados
ainda, os prefácios da primeira e da segunda edição
do livro As regras do método sociológico. São Paulo: Unidos e Canadá
Companhia Editora Nacional, 1977 [1895] e Steven
Lukes, “Bases para a interpretação de Durkheim”, Ana Cristina BRAGA MARTES e Soraya FLEIS-
em Conh, G (org.), Para ler os clássicos (Rio de Ja- CHER (orgs.). Fronteiras cruzadas: etnicidade,
neiro/São Paulo, Livros Técnicos e Científicos, 1977, gênero e redes sociais. São Paulo, Paz e Terra,
pp. 15-46). 2003. 300 páginas.
8 “Representações sociais: uma teoria para a sociolo-
gia?” III JIRS, Rio de Janeiro, 2 a 5/9/2003. Este tex- Clémence Jouët-Pastré
to, revisado e ampliado, será publicado no próximo
número da Revista de Estudos de Sociologia, da Ao reunir autores de diferentes disciplinas,
UFPE. afiliações teóricas e nacionalidades, Ana Cristina
Braga Martes e Soraya Fleischer fazem uma impor-
tante contribuição não só aos estudos da emigra-
MÁRCIO S. B. S. DE OLIVEIRA é doutor em
ção brasileira, mas também aos estudos dos fluxos
Sociologia, professor e coordenador do Pro-
migratórios internacionais.
grama de Pós-graduação em Sociologia do
Os capítulos do livro estão fortemente vincu-
Departamento de Ciências Sociais da UFPR.
lados, uma vez que examinam as mudanças nas
E-mail: marciodeoliveira@ufpr.br
correntes migratórias e a formação de novos per-
fis dos cidadãos brasileiros residentes nos Estados
Unidos e no Canadá sob as perspectivas da etni-
cidade, do gênero e das redes sociais. Como vá-
rias pesquisas já indicaram (Margolis, 1994; Sales,
1999; Martes, 2000), no início da emigração brasi-
leira em grande escala – meados dos anos 1980 –,
os emigrantes tendiam a vir para os Estados Uni-
dos a fim de permanecer no país por um curto
período de tempo, apenas o suficiente para fazer
algumas economias e voltar ao Brasil com a espe-
rança de ter uma vida melhor. Os autores de
Fronteiras cruzadas apresentam diversas evidên-
cias que apontam que a população brasileira nos
Estados Unidos e no Canadá está se transforman-
do, passando de transiente a estável.
No capítulo de abertura, Christopher Mitchell
usa o conceito de transnacionalismo para estudar
a população brasileira imigrante. Comparando-a
com a mexicana, a dominicana, a haitiana, a sal-
vadorenha e a guatemalteca, Mitchell conclui que
os brasileiros apresentam um índice bastante bai-
xo de transnacionalismo, ou seja, ainda não estão
bem desenvolvidos os laços interfronteiriços que
requerem redes sociais fortes nos países emissores
e receptores, bem como “o êxito de uma organi-

Você também pode gostar