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EINlCOtsíXROS F-E IR IG 030S :

lAMtfiSlLISE: d=slMXROF-OL_c5GICiA

EHE MARRiATIMAS SOEsREI

ERUXAS E EtRUXARIAS MA

L -A G O A m A c o m c e i c í k :o

SONIA WEIDNER MALUF

NOyEMBRO/89

FLORIANÓPOLIS
ENCONTROS PERIGOSOS: ANALISE
ANTR0P0L06ICA DE NARRATIVAS SOBRE BRUXAS E
BRUXARIAS NA LAGOA DA CONCEIÇÃO

Sônia Weidner Malu-f

Dissertação apresentada ao Curso de


Pòs-Graduaçào em Antropologia
Social da Universidade Federal de
Santa Catarina, como requisito
parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Antropologia. Aprovada
pela Banca Examinadora composta
pelos seguintes Professores:

Curso de Pós-Graduação em Antropologia Social da


Universidade Federal de Santa Catarina

F1orianòpolis, 18 de dezembro de 1939.


RESUMO

"Encontros perigosos: análise antropológica de

narrativas sobre bruxas e bruxarias na Lagoa da Conceiçicfo" è

um estudo sobre a -forma como se apresenta a bruxaria para os

moradores nativos da Lagoa da ConceiçSo, uma comunidade

peri-fferica, de colonizaçííD açoriana, da ilha de Santa,

Catarina. Através da análise das narrativas de homens e

mulheres, procura-se compreender uma dimensSo do imaginário

nativo subjacente ás mani-festaçòes mais explicitas de sua

cultura e nào tornado visível pelos modelos e discursos


conscientemente manipulados. Falam de um mundo feminino em

que as mulheres aparecem como poderosas e ameaçadoras,

corporifiçadas na -figura da bruxa. Apesar de suas raizes na

bruxaria. européia medieval e moderna, a bruxaria

apresenta-se na Lagoa mais do que como fragmentos que

sobreviveram ao tempo ou simples explicaçèlo para as

di-ficuldades da vida cotidiana. Ela constitui-se em uma

verdadeira cosmologia em que os nativos -falam de seu mundo e

de si mesmos.
ABSTRACT

"Dangerous meetings; an anthropologycal analises o-f

narratives about witches and witchcra-ft in Lagoa da

Conceiçào" is a study about the shape as the witchcra-ft


appear to the native inhabitants of Lagoa da Conceiçcfo, a

peripherycal community, colonizated by "açorianos" in Santa

Catarina Island, south brazi1ians’s coast.

Through the analises of narratives related by men and

women, it’s possible to understand a dimension of the native

imaginary behind the manifestations more explicits of their

culture and not turned visible by models and speeches

consciouly manipulated. They talk about a female universe,

where women appear like a powerful 1 and as a threat, in the

figure of the witch. Even with their roots in the Mi die Age

and Modern european witchcraft, the narratives of witchcraft

in Lagoa da Conceiçcto are more than fragments of the past or

simple explanations to the troubles of the daily life. They

constitute a true cosmology that talk about the native

people and their universe.


- Ill -

Dedicado ao Rachid,
AGRADECIMENTOS

Esther-Jean Langdon, pela amizade e pela dedicaçèlo e


sensibilidade com que orientou esta pesquisa.

Pro-fessores do Mestrado em Antropologia Social da UFBC,


em especial IHta Boaventura e Anamaria Beck, pelas valiosas
sugestões na defesa do Projeto e durante a redaçèlo da
dissertação, e ao Rafael Bastos, pela interlocuçSo
constante.

Colegas do Mestrado em Antropologia, que acompanharam,


discutiram e contribuíram para esta pesquisa.

FundaçrSo Carlos Chagas, Capes e Conselho Nacional dos


Direitos da Mulher, pelas bolsas, financiamentos e apoio ao
trabaiho.

Albertina de Oliveira Costa e Heloísa Buarque de


Holanda pelas importantes criticas e sugestões durante o
seminário da Fundação Carlos Chagas e nos contatos
posteri ores.
Noemi Castilhos Brito e Cornèlia Eckert pelas valiosas
sugestòes para o capítulo "Organizaçcto Familiar e ConstruçSo
do Gênero".

As companheiras do Nõcleo de Estudos sobre a Mulher da


UFSC.

Aos amigos que acompanharam de perto as minhas


inquietações e alegrias durante a realizaçèio deste trabalho:
Peninha Rial, Caco Silveira, Bi a Weidenbach, Miriam Grossi,
Giki Girardello, Denise Dora, Alberto e Gi1i, Alê, Sônia
Miguel, Mara, Lalu e Val, Mauro Pommer, Else, Henrique
Finco, Aglair Bernardo, Zè Ge.tti , Lena Bastos, Gilberto,
Suzana, Suzana Funck, Eliane, Noel, Marluci, Claudinha,
Ornela, E á mSie, Raginho, Haikel, Sharbel , Odette e Abîlio,
Ivone e José, lone e Mario, Ricardo, Eduardo, Lai la, Zè e
Bira, Gisele, Renato, Roberto.

Ao Beto, pelo apoio e pela escuta sensivel e permanente


das minhas angústias, inquietações e descobertas.

E, sobretudo, aos meus informantes, moradores da Lagoa,


que me ajudaram a conhecer as bru>;as e seu mundo.
INDICE

INTRODUÇftO........................................... 1

Cap. 1 - ORGANIZAÇftO FAMILIAR


E PODER DOMÉSTICO...................... 18

1) A parentela e a vizinhança.................... .18

2) Os casamentos ............................... ..2<b

a> A -fuga................................... 27

b) Novos casamentos........ ................. 34


3> A família e a distribuiçèio do poder ........... 37

a) Trabalho e espaços diferenciados


e identidade de g ê n e r o ................... 38

b) A familia centrada na mulher ou


autoridade masculina X poder feminino......51

c> Os casamentos matrilocais ............. ....55

d> 0 doméstico e o familiar; fontes


de poder feminino

Cap. 2 - DAS NARRATIVAS SOBRE BRUXARIA................ 63

1) O discurso e as narrativas................. ...65

2) Os elementos comuns das narrativas............ 68

3) As diferenças nas narrativas conforme


narradores e protagonistas .......... 79

a) A mulher como narrador e/ou


protagonista ............................ .82

b) O homem como narrador e protagonista ...... 94


c> Nào hà denòncia nem acusaçclo ............ 100

4) As situações de ’performance da narrativa.... 103

5) Uma fronteira simbólica ...................... 106

Cap. 3 - SOBRE 0 MUNDO DAS BRUXAS: A BRUXARIA COMO


COSMOLOGIA .................................. 114

1) 0 mundo de cabeça para b a i x o ................. 114

2) Toda mulher è uma virtual bruxa .............. 121

3> Mulheres desviantes ....................... ...132


4) Uma cosmologia da bruxaria e outros poderes ...136

a) A bruxa morta ........................... 137

b) A bruxa viva ............................ 139

c> Outros poderes .......................... 141

Cap. 4 - A BENZEDEIRA COMO PERSONAGEM DAS NARRATIVAS...144

1> 0 bem contra o mal ............................145

2> 0 poder que vem da casa .......................149

3) A bênçèto enquanto "dom" ...................... 154

4) O poder estrangeiro...... ....................156

5) A benredeira enquanto bruxa ou -feiticeira.... 159

Cap. 5 - AS RAIZES MEDIEVAIS DA BRUXARIA EUROPEIA


MEDIEVAL E MODERNA ......................... 162

1) Os estudos sobre a bruxaria medieval e


moderna: algumas questòes polêmicas.......... 166

2) A trajetória da Inquisição ....................176

3) Uma comparação entre as narrati-vas da ilha


e as européias ................. ..............180
a) Metamor-f05B, vôos noturnos e unguentos . ..iSi

b) Crianças embruxadas e outros malefícios ..184

c) 0 diabo, pactos e s a b à s ................. 188

Cap. 6 - A BRUXA COMO DISCURSO SOBRE 0 P O D E R ......... 195

1) A bruxa em uma situaçào de conflito


entre mulheres............................... 195

2) A bruxa como expressão do medo dos h o m e n s .... 198

3) Palavra X olhar .............................. 204


4> Medo e conflito como expressão de uma
situação de poder ............................ 206

CONCLUSSES ............... .................... -..... 211

N O T A S ................................................ 21

BIBLIOGRAFIA ....................................... 217


INTRODUQSO
INTRODUÇBO

Do í b aparentes acasos me levaram ao encontro do tema

deste estudo - as histórias de bruxas e bruxarias contadas

pelos nativos da Lagoa da Conceição, na peri-feria de

Florianópolis, litoral da ilha de Santa Catarina. Um -foi o

contato, através de colegas e pro-fessores da Universidade,

com a obra de Franklin Cascaes, que registrou amplamente,

através de sua arte, a cultura das comunidades do litoral da

ilha. Em sua recriação artística da cultura local, as

mulheres e, entre elas, as bruxas, ocupam uma posiçào de

destaque (1>. 0 outro acaso que me levou âs bruxas -foi o

•fato de eu, tendo ido morar no Canto da Lagoa, uma das

comunidades da Lagoa da Conceição, entrar em contato com as

histórias de bruxas na voz dos próprios nativos. 0 que me

fascinou inicialmente foi o conhecimento generalizado dessas

histórias por praticamenté todos os moradores com quem

mantive contato e a riqueza de duas personagens antagônicas

presentes nas histórias - a bruxa e a benzedeira. Era em

torno dessas duas figuras femininas poderosas - a bruxa,

representando um poder nefasto e vista como a causa dos

males dos moradores e a benzedeira, portadora de um poder

benéfico e protetor, capaz de curar e desfazer as bruxarias,

que pretendia tecer o meu estudo quando comecei a realizar a


— O —

pesquisa de campo de forma mais sistemática, em maio de

1987. Nas primeiras entrevistas e observações, porèm, duas

interrogações se colocaram. De um lado, como trabalhar no

mesmo estudo com essas duas imagens femininas na medida em


que nem sempre elas aparecem como contrapostas uma é outra.

Quer dizer, não è em todas as histórias de bruxaria que

aparece a figura da benzedeira. E o campo de atuaçào das

benzedeiras da comunidade vai muito alfem da bruxaria. As

bruxarias fazem parte das estratégias terapêuticas dos

moradores para várias doenças, a maioria nào relacionadas

com a atuaçào das bruxas. Alèm disso, sò algumas mulheres

são benzedeiras, enquanto que todas podem ser, em algum


I
momento, bruxas, inclusive as benzedeiras. A segunda

interrogação que me apareceu, e que me parece um problema

recorrente nos estudos sobre bruxaria, xamanismo e afins,

foi a de como tratar essas histórias: como crenças; como

eventos - ou acontecimentos sociais? como fantasias? Com que

plano da realidade eu estou trabalhando? Evidente que isso

remetia a outra questão em relação a como eu iria me colocar

diante dessas histórias. E a uma questão ainda mais

abrangente na antropologia que è a de como viver a

alteridade, como aprender a ver o olhar do outro. Para mim o

estranhamento jà estava dado pelo próprio caráter do objeto,

mas como romper o estranhamento sem abdicar da minha posição

de pesquisadora, portadora de um olhar diferente, etc?

Estudos antropológicos recentes têm ido a fundo no projeto


de diluiç:ào do sujeito pesquisador ou de apagamento das

diferençias <2) . Particularmente interessante entre os

estudos sobre bruxaria è a trajetória seguida pela

antropóloga e psicanalista Jeanne Favret-Saada (1977), que


construiu sua etnografia sobre a feitiçaria entre os

camponeses no Bocage, França, sucumbindo á "tentaçào de

subjetivaçào". Ou seja, ela passou a viver o discurso da

feitiçaria de dentro, abdicando do distanciamento.

Foi no aprofundamento da pesquisa de campo e na forma

como ã bruKaria se configurou para mim que essas

interrogações começaram a se dissipar. A bruxaria tornou-se

presente pra mim através do discurso dos moradores e foi

através das narrativas de bruxaria que eu consegui apreender

de forma mais densa o significado das bruxas e dos episódios

que elas protagonizavam. Uma das apreensòes mais

significativas foi em relação ao fato de que è justament#-

enquanto narrativas que a bruxaria se apresenta como uma

realidade presente e comum aos moradores do Canto da Lagoa.

Não era apenas para mim que a bruxaria passava a existir na

forma de discurso, mas essa era também a forma com que ela

se configurava no interior da comunidade, a forma como ela

ganhava uma existência social.

O material etnográfico me mostrava ainda que, apesar de

existir, ao nivel do discurso, uma divisão da imagem

feminina depositada nas figuras-da bruxa e da benzedeira, é

e-m torno da bruxa que se constróem as narrativas, è sobre as


- 4 -

bruxas que elas -falam. A personagem da benzedeira existe nas

narrativas apenas para se contrapor á bruxa, e ai se esgota

o seu papel. Ou seja, bruxas e bruxarias seriam elas

próprias depositárias de uma part icul ar idade si gni-f icat iva


enquanto um discurso elaborado e realizado pelos nativos

para -falarem de si mesmos.

Essa idèia de conceber a existência social da bruxaria

enquanto narrativas, ou seja, na forma como ela também se

mostrava para mim, redefiniu algumas coisas e me colocou

questões novas. Uma dessas questões passava a ser o papel

dessa literatura oral enquanto uma narrativa do "real". Atè

que ponto aquilo que estava sendo expresso através das

narrativas estaria ou ncio ligado á forma, ao modo de vida


daquelas pessoas. Sobre o que, afinal, falavam aquelas

narrativas? Porque, na verdade, os modelos apresentados

pelos narradores atè aquele momento, e observados por mim

enquanto prèiticas sociais, eram modelos que levavam a uma

divisão bastante rígida dos espaços e dos papéis na

comunidade. Ou seja, mostravam uma cisclo bastante aguda nas

identidades de gênero, como serà observado no capitulo 1 -

Organização Familiar e Poder Doméstico. Grande parte dos

discursos, corroborados em parte pelas práticas, apontavam

para a autoridade masculina no interior da familia e na

comunidade. Estava estabelecido ai um paradoxo, porque as

histórias de bruxaria, que apresentavam essa figura da bruxa

como uma figura feminina poderosa no interior da comunidade.


— 5 —

contradiziam todo esse discurso anterior que considerava

como unicamente legitima a autoridade masculina.

A bruMa falava precisamente deste universo feminino que

os modelos conscientemente assumidos nào davam conta: um


universo incompreensível e perigoso. lias ela nào poderia

falar por si mesma, porque, mesmo reconhecendo esses

aspectos comuns da bruxa nas histórias contadas, percebe-se


que ela tem existência e significados diferentes nas voses

de homens e de mulheres. Era o que apontavam as histórias

recolhidas na pesquisa de campo. Para se entender esses

significados, foi preciso entender a forma como se

constituem essas diversas vozes, ou seja, a forma como se

constituem socialmente as identidades de gênero na

comunidade. Perceber a forma como essa figura feminina se

faz representar diferentemente no imaginário de homens e

mulheres, e contribui para a constituição social dessas

identidades (3) remetia necessariamente a um enfoque

relacionai das identidades. Esse enfoque jà està

evidentemente pressuposto no uso do conceito de gênero, mas

aqui se coloca, alèm disso, como uma exigência do próprio

caráter do objeto do estudo. As bruxas e as histórias de

bruxaria mudam conforme muda a identidade dos narradores e

dos ’heróis’ ou 'heroinas' da história.

Era essa pluralidade das discursos e significados que

proporeionavam uma riqueza singular â bruxa e as histórias

de bruxaria.
- 6 -

1) Sobre o método utilizado

A escolha por uma pesquisa essencialmente qualitativa e

de pro-fundidade -foi uma -forma de valorizar a subjetividade

como o lugar onde se expressa e constitui esse imaginário


coletivo sobre as bruxas e as figuras femininas.

A densidade do material etnográfico recolhido foi

facilitada pelo fato de eu ter morado na comunidade durante


todo o tempo em que realizei a pesquisa e durante toda a

redaçào da di ssertaçclo. Apòs uma pesquisa expl oratòr ia

inicial, a pesquisa de campo mais sistemática começou em

maio de 1987 e estendeu-se atè o final de 1988, quando eu jà

estava redigindo os capítulos. Mas em funçèlD desse contato

cotidiano com os nativos, n^o houve um momento preciso de

finalização da pesquisa de campo. Mesmo no momento de

finalização da redaçlio eu ainda recolhia novas histórias e

narrativas, que ás vezes chegavam atè mim quase ao acaso.

Por morar na comunidade, pude desenvolver uma

observação direta, sistemática e intensiva da vida cotidiana

dos nativos, dos conflitos, das mudanças na vida familiar,

dos momentos rituais, como as festas e os eventos

religiosos.

Al èm dessa observaç^So mais direta, foi um contato denso

com 05 informantes que me permitiu ir alfem dos discursos

aparentes e conscientemente manipulados, na medida em que

escolhi o caminho de, sempre que possível, entrevistar mais


- 7 -

de uma vez cada in-formante, e em situações di-ferentes. A


tendência inicial de responderem aquilo que eles achavam

que era a minha expectativa ia se rompendo A medida em que

se estabelecia uma relaçào de con-fiança. 0 retorno para uma


nova entrevista me permitiu ainda acompanhar os movimentos e

mudanças na vida das pessoas e na vida -familiar, o que se

mostrou fundamental para uma relativizaçào dos modelos que


apareciam como dominantes- Algumas mudanças jamais teriam

sido percebidas se eu nào tivesse voltado mais de uma vez

para entrevistar a mesma pessoa ou pessoas da mesma familia.


Alèm desses informantes com quem mantive um contato mais

si temático, e que proporcionaram um corpo mais sõlido para o

material etnográfico, também existiram aqueles, incontáveis,

com quem eu conversei apenas uma vez ou esporadicamente, e

cujas informações foram fundamentais, na medida em que

apontavam contradições ou confirmavam, enfim, enriqueciam o

material etnográfico que eu dispunha, alèm de sempre

acrescentarem informações novas.

Nas entrevistas, busquei combinar duas técnicas

fundamentalmente; a entrevista nào-diretiva e as histórias

de vida <4). Isso me permitiu conhecer mais profundamente as

pessoas e a vida familiar. 0 recolhimento das histórias de

vida, feito principalmente com os mais idosos, mostrou-se um

momento rico, na medida em que permitia localizar a presença

da bruxaria e das bruxas em suas próprias trajetórias. Isso

nSo seria possivel com um tipo de entrevista mais dirigida,


- a -

que tenderia a intimidar os informantes quanto a abordar

determinados temas. A bruxaria è um desses temas que, para

ser apreendido, exige que se penetre em um nivel mais

profundo da vida e do imaginário dos nativos.


As narrativas foram transcritas imediatamente apòs as

entrevistas, a partir das anotaçòes e do exercício da

membria recente. Foi a repetiçèlo exaustiva das histórias com


o mesmo drama central que me permitiu apreender uma forma

organizativa comum ás narrativas. Esse trabalho seria talvez

facilitado se eu tivesse gravado as narrativas. Mas optei

por nào gravar, na medida em que isso intimidaria os

informantes e colocaria um obstáculo ao acesso a planos

subjacentes de seu imaginário. Agora, que as narrativas


forma recolhidas e que jà se estabeleceu um certo grau de

confiança com os informantes, seria o momento de se iniciar

as gravações. Essa è uma possibilidade para a continuidade

deste estudo. Creio que para os objetivos aor quais eu me

propus aqui, que sào os de explorar nào a narrativa por ela

mesmo, mas de anàlisa-la para entender a cultura onde se


manifestam, a forma como as histórias foram recolhidas e

transcritas, foi satisfatória e forneceu um denso material

etnográfico, com uma profundidade que talvez as gravaçbes

nci.o permitissem.

Gostaria de observar ainda que, apesar de ter

encontrado inspiraçào no trabalho de Franklin Cascaes, nào me

detive em analisar as histórias que ele reconta, o que


- 9 -

demandaria um estudo especialmente voltado para isso. As

narrativas que eu analiso foram todas recolhidas na própria

pesquisa de campo que eu f i7.. Todos os nomes de pessoas

foram substituídos por nomes fictícios.

2) Breve etnografia do lugar

A pesquisa de campo foi realizada em uma das

localidades da periferia de Florianópolis, Ilha de Santa

Catarina, colonizada por açorianos em meados do sèc. XVIII,

a Lagoa da Conceiçào. Várias comúnidades <5) agrupam-se em

torno da lagoa: entre essas destacam-se o Canto da Lagoa, o

Canto dos Araçàs, a Costa da Lagoa, a Barra da Lagoa, local

onde a lagoa encontra-se com o mar, SMo Joào do Rio Vermelho

e a Freguesia, que se constitui no centro de pelo menos uma

parte dessas comunidades (ver mapa anexo). Apesar de ter

sido particularmente no Canto da Lagoa que a pesquisa de

campo foi feita de forma mais intensa e sistemática, nào

deixei de fazer entrevistas e observaçòes nas outras

comunidades. Essa foi uma necessidade imposta pela própria

rede de relações entre as comunidades, uma vez que, mesmo

com o forte sentimento de localidade que demarca cada uma

delas, as relaçbes com as outras sâo bastante intensas, seja

através do contato com os outros moradores, seja através da

rede de migrações de uma comunidade para outra <RIAL, 1988).


- 10 -

0 Canta da Lagoa, assim como a maioria das outras

comunidades, tem vivido nos tiltimos anos um processo

acelerado de mudança com o deslocamento da atividade

econômica central da pesca e da agricultura de subsistência

para o trabalho assalariado e com o contato intensivo com

uma "cultura urbana", a partir da pavimentaçcio das estradas

e da difusMo dos meios de comunicaçèlo, entre outros -fatores.


/
0 que se pode observar atè este momento, no entanto, è que

as características centrais que têm demarcado esta

comunidade desde sua formaçiào, ao invès de simplesmente


desaparecerem nesse contato maior com o "mundo urbano" sèlo

reelaboradas e têm os seus si gni-f icados rede-finidos é luz do

novo momento.

A prática de uma agricultura de subsistência, feita em

pequenas propriedades privadas e utilizando mào-de-obra

familiar, combinada com a atividade pesqueira artesanal, era

o traço central da sociedade que se instalou em torno da

lagoa, na forma de pequenas comunidades. Dispostas em

estreitas faixas de terra que iniciavam na lagoa e se

estendiam atè o topo dos morros, estas terras, cobertas de

mata densa, eram apenas em parte ocupadas com roças de

feijcío, milho e mandioca e com a criaçào de alguns animais

domésticos. A lagoa e o mar forneciam a outra parte da

subsistência de seus habitantes. Configurava-se uma divisào

sexual do trabalho em que, tendencialmente, os homens eram

os responsáveis pela produção e as mulheres pela organização


- 11 -

e repartiçrào do consumo, o que serà melhor desenvolvido no

capitulo 1.
A dinâmica da vida social dependia da solidariedade

vicinal - baseada num contato cotidiano e em relaçòes de


troca de terminados produtos, mèlo-de-obra, instrumentos de

trabalho e nas -festas religiosas.

Mas, em nenhum momento, essas comunidades -foram a rigor


isoladas ou praticaram exclusivamente estas atividades.

Apesar da predominância de uma economia de subsistência,

haviam atividades econômicas voltadas á exportação de alguns

produtos e de mào-de-obra (BECK, 1979) . Exportava-se ca-fè,

farinha, peixe seco e amendoim e, em determinadas épocas do

ano, 05 homens iam trabalhar como pescadores assai ariados,

principalmente em Rio Grande e em Santos.

Hoje o quadro é outro. Um primeiro e rápido olhar que

percorra essas localidades pode, atendo-se aos elementos

predominantes da paisagem, defini-las como uma sociedade

ainda essencialmente rural. Mas, por ser rápido e apenas um

primeiro olhar, è também enganoso, pois limita-se a captar o

que hà de mais aparente: a exuberância da mata, os campos,

as pequenas casas onde nâo faltam um fogào á lenha, animais

domésticos, uma horta e algumas roças estendidas pelos

morros. Se, de outro lado, penetrarmos na vida de seus

habitantes, buscando saber como vivem, o que pensam e

produzem e como eles pensam que vivem, serà possível

compreender de forma mais integral o caráter atual dessa


- 12 -

sociedade e o sentido das mudanças que ocorreram nos íiltimos

anos. Fazendo isso, pude constatar que, apesar de sua

■formaçclo rural , essa de-finiçclo nSo se adequa mais ao momento

atual vivido pelas comunidades.


Em primeiro lugar, as atividades agrícolas e pesqueiras

SclD hoje acessórias e secundárias em relaçcío a uma outra

atividade que è a principal -fonte de sustentação econômica


das -familias: o trabalho assalariado na cidade e a prestação

eventual de serviços para os citadinos que passaram a

habitar as terras vendidas e para o comércio turístico que


se implanta rapidamente na regido. Os homens passam a

trabalhar no -funcionalismo püblico, no comércio, na

construçào civil e prestando pequenos serviços. As mulheres

começam a se empregar como empregadas domésticas,

balconistas e como pro-f essoras nas escolas püblicas

estaduais e municipais. As atividades de agricultura, pesca

e o -fabrico da -farinha nos engenhos, apesar de permanecerem,

sèío hoje acessórias em relaçlo ao trabalho assalariado.

Assim, pode-se observar uma familia cujos membros sào

descendentes de várias geraçòes de nativos, o pai

atualmente trabalha na construção de casas para os citadinos

que vêm morar na Lagoa, a màe e as -filhas trabalham nas


casas como empregadas domésticas ou lavando roupas, os

filhos e o genro são frentistas do posto de gasolina,

localizado na Freguesia, e os filhos menores fazem pequenos

serviços nas casas das redondezas habitadas pelo "pessoal de


— 13 —

■fora", limpando o mato, cortando grama, -fazendo cercas. Eles

ainda t#m algumas vacas leiteiras e galinhas, das quais

obtèm leite e ovos, nào sò para o consumo -familiar, mas

tambfem para serem vendidos na vizinhança, alèm de cultivarem

uma horta e uma roça com vários produtos. Assim, duas -formas

distintas - o trabalho assalariado e a atividade autônoma de

criação e cultivo - contribuem para o sustento de uma mesma

fami lia.

A venda das terras e a consequente diminuição ou perda

total da propriedade è um dos fatores do deslocamento das

famílias, ou parte delas (no caso, os filhos que vào

casando), para outras localidades próximas, mas mais

urbanizadas, ou para fora da ilha. 0 outro è o atrativo


»
exercido pela cidade e as comodidades de viver perto do

comércio, escola e de outros serviços, com mais transporte.

Nesses novos locais, as casas estSo situadas em lotes

pequenos, o que impede a convivência das várias geraçóes de

uma familia no mesmo espaço. Existe ai um limite à

continuidade da familia extensa, predominante no meio rural

brasileiro, o que nSo significa o seu fim, nem que a

tendência á nuclearizaç^o dos laços familiares seja

inevi tàvel.
AlèfTi disso, com a implantaçSio de um transporte público

sistemático e a pavimentação das estradas - algo recente, de

mais ou menos dez anos - e com a rèpida difusão dos meios de

comunicação a partir da década de setenta, o contato com uma


- 14 -

cultura predominantemente urbana è muito mais intenso e jà

-faz parte do cotidiano dos moradores. Com isso, torna-se

possível o acesso a produtos industrializados (duráveis e

nèío-duràvei s) que antes nào -faziam parte do universo da


comunidade, o acesso a determinados serviços, como

atendimento médico e hospitalar, e aos produtos da indústria

cultural, através do ràdio e da televisào.


Rede-finidos em seu papel e si gni-ficado a partir do

imaginário e dos modos de vida locais, esses traços

culturais caracteristicos do meio urbano, passam a conviver

e a integrar a cultura das comunidades, que também se

transforma com o contato com esses novos elementos.

Configura-se uma sociedade em acelerado processo de

transformaçào que, podendo ser caracterizada como um

complexo sincrético, combina formas diferenciadas de

produçào e reprodução da vida social. Rural e urbano nào

podem ser pensados aqui como duas realidade paralelas ou

separadas, mas sMo integrantes de uma mesma sociedade global

que combina seus elementos distintos e muitas vezes

contraditòrios, redefinindo-os de acordo com a situação e o

momento vivido pela comunidade- Hc< uma mudança, mas esta nào

se dà necessariamente na direção do urbano ou, como coloca

Wirth (1938), no sentido da absorçào do que chama da um

"modo de vida urbano”. A incorporação de traços culturais

dominantes em uma cultura urbana não se dà sem uma

redefinição de seu significado, segundo o interesse, a


- 15 -

necessidade e o desejo de seus habitantes, tampouco 03

traços culturais dominantes até ent^o na comunidade tendem a

desaparecer, mas a transiormar-se. A dominação do urbano

sobre o rural deve ser assim reiativizada, na medida em que

hè uma apropriação e trans-formação dos elementos da cultura

urbana e uma trans-f ormação dos elementos da cultura rural

antes predominante.

3) Plano da dissertação

No primeiro capitulo - Organização Familiar e Poder

Doméstico - eu procuro descrever a -forma como se constituem

as identidades de gênero e se -fazem a distribuição dos

poderes dentro e -fora do espaço doméstico e -familiar. E

possivel perceber ai que, apesar das transformaçòes que

viveu nos últimos anos, a localidade ainda mantém muitos

elementos culturais próprios, reelaborados a partir das

mudanças. Percebe-se ainda a existência de es-feras próprias

e separadas de constituição das identidades de gênero, e o

dominio da presença feminina em espaços como o doméstico e

fami1iar.

0 capítulo seguinte - Das Narrativas de Bruxaria -

aborda o fenômeno da bruxaria a partir de uma de suas

formas, talvez a forma por excelência, de manifestação no

interior dà comunidade: enquanto discurso ë narrativa. Nesse

momento inicial procuro fazer uma análise dessas narrativas,


- 16 -

seus princípios organizati vos comuns e as di-ferenças

con-forme mudem as identidades de protagonistas e narradores.

As narrativas sào tratadas ainda como demarcadores

simbólicos das -fronteiras da comunidade.

No capitulo 3 - Sobre o Nundo das Bruxas - se -faz uma

descrição dos simbolos da bruxa e de seu mundo, a -forma como

atuam. Define-se a bruxa como uma mulher da comunidade que

se deixa levar por impulsas interiores inconscientes. Por

outro lado, qualquer mulher da comunidade possui esses

impulsos e sentimentos e pode se tranformar em bruxa. A

"cosmologia da bruxa" define, ainda, quem sèio as bruxas e

sob que formas elas aparecem.

0 capítulo 4 - A benzedeira como Personagem das

Narrativas - descreve a presença das benzedeiras nas

histórias de bruxaria. Apesar das benzedeiras serem pessoas

presentes na vida da comunidade e moradoras do local, a

benzedeira que, nas narrativas, enfrenta a bruxa è, em

geral, uma estrangeira, quer dizer, alguém de fora da

comunidade, procurada para desfazer o embruxamento.

O capítulo 5 - As raízes na Bruxaria Européia Medieval

e Moderna - buscam-se justamente as raizes dessas histórias,

nào a partir de uma análise histórica detalhada de sua

trajetória, que passa pelos Açores, mas a partir de uma

análise morfológica comparativa entre as narrativas ilhôas e

européias. As proximidades e as diferenças mostram que,


apesar de possuir uma raiz no imaginário europeu, essas
- 17 -

histórias •foram reelaboradas á luz das mudanças que viveram

as comunidades açorianas da ilha desde sua formação em

meados do sèculo XVIII.


No capítulo 6 - A Bruxa como Discurso sobre o Poder -

busco interpretar o quadro descrito nos capitulos

anteriores, encontrando na bruxa uma expressão do poder

feminino na comunidade. Um poder que se dilui em poderes


específicos ligados ao lugar particular ocupado pelas

mulheres no território doméstico e familiar.

Como serà observado na leitura dos capítulos que

seguem, alfem das referências teóricas e metodológicas que a

antropologia oferece para abordar um tema dessa natureza, o

enfoque escolhido me obrigou a beber em outras fontes, como

alguns estudos na àrea da "nova história", da psicanálise,

da semiótica literária e da análise de narrativa.


C A R I T U L_ o

ORGAN I z:ac :2So RAMILIAR

e: ro d e ir d o m é s t i c o
- 18 -

CAPITULO 1 - ORGANIZAÇBO FAMILIAR E PODER DOMESTICO

1) A parentela e a vizinhança

Os moradores do Canto da Lagoa contam que a comunidade

•foi -formada por apenas duas ou três -familias que se

instalaram inicialmente no lugar. E -forte a idèia de que os

nativos dali sào descendentes dessas -familias e de que todos

têm algum grau de parentesco entre si (6) 0 mesmo acontece

nas outras comunidades da Lagoa <7).A Freguesia è um caso


especial, pelo intenso a-fluxo de gente de fora jà hà muitas

décadas.

Essa Crença em um passado consanguíneo comum reforça o

fato de que mesmo hoje, quando se acentuam as tendências de

uma nuclearizaçào maior do grupo familiar, os contornos

entre a familia, a parentela e os grupos de vizinhança sejam

ainda difusos e muitas vezes se confundam.

Confirmando em parte o que apontam a maioria dos

estudos feitos no Brasil sobre bairros rurais (Fukui, 197V;

Heredia,1979, Pereira de Queiroz,1973,1976), também nas

comunidades da Lagoa as relações com a parentela e os

vizinhos sào importantes na organizaçcío e como apoio do

grupo familiar, caracteristica que era ainda mais forte

quando predominava uma atividade de subsistência e um


- 19 -

isolamento maior da localidade em relaçào ao mundo urbano.

Isso torna-se visivel nos depoimentos dos informantes de

meia-idade e dos mais velhos, nos quais o seguimento da vida

familiar esté muitas vezes ligado á ajuda de um vizinho,


padrinho ou parente distante. Através destes depoimentos è

possivel desenhar a vida da comunidade, tal como è percebida

pelos informantes; um quadro evidentemente marcado pelas

construçòes da memória, rico em uma nostalgia que se traduz

pelo recorrente "no tempo de antigamente, è que era

bom"...Essa relaçào com outras familias dava-se ao nível de

uma reciprocidade nas trocas, formando redes de

solidariedade que asseguravam a reprodução social da

comunidade.
Desta forma, atè alguns anos atràs, produtos do

trabalho familiar eram trocados por outros, produzidos por

outras famílias. Faziam-se mutirões para tarefas que sò


podiam ser realizadas coletivamente, e o trabalho do vizinho
)
ou do parente nesse caso era retribuído, mas nào pago

<8).Também a colheita do cafè contava com a ajuda dos

vizinhos, principalmente das mulheres, que trabalhavam em

troca de um pagamento por alqueire de grào colhido. Esse

pagamento podia ser uma parte do próprio cafè ou em dinheiro

<no caso das familias que dispunham de recursos monetários

para efetuar esse tipo de troca). Na pesca mais "caseira",

realizada de canoa nas àguas da Lagoa, participam grupos de


- 20 -

homens vizinhos e parentes que dividem o produto -final,

destinado quase sempre á subsistência.

Os "especialistas" prestam seus serviços em troca de

mantimentos e pousada. Assim -funciona o trabalho do -forneiro

(9), na època da -tarinhada, e o da benzedeira, que nunca

cobrava quando era chamada para cuidar de uma crianpa doente

ou, mais raro nos dias de hoje, atender um parto.


Esses laços com parentes consanguineos ou a-fins, e com

vizinhos, podem significar um apoio para as familias menos

favorecidas ou que dispòem de poucos meios de subsistência,

ou, como disse um informante, "ncio têm engenho". Nào ter

engenho era um dos simbolos de pobreza nessas comunidades.

Ajudar na colheita do caffe, embarcar na canoa de um vizinho


para "matar" o peixe na lagoa, agregar—se ao trabalho num

engenho, durante o período da farinhada, significava a

possibilidade de subsistência para essas famílias

desprovidas de recursos <terra, engenho e mais

recentemente, nào dispor de uma renda fixa - salário que

garanta a sobrevivência familiar). Nestas familias, era

comum antes que os filhos fossem dados a cuidar a outros,

passando a ser incluídos atè entre os herdeiros dos bens da

nova familia. 0 engenho de seu Jülio, por exemplo, foi

herdado de seu pai adotivo, e o seu Nèlio, dono de uma das

vendas do Canto da Lagoa, vindo de uma familia muito pobre e

tendo o pai morrido cedo, diz-se "criado pela mão dos

outros". E na falta da mííe, quando esta morria, mesmo nas


- 21 -

■fami 1ias'mai s abastadas os -filhos eram levados para o


cuidado de outras fami ias, atè que o pai arranjasse outra

mulher, ou entèlo eram de-finitivamente incluídos entre os

membros da nova familia. Essas trocas de crianças, motivadas


aparentemente por necessidade de sobrevivência, têm um

significado mais amplo. Por um lado, os filhos representam

uma preciosa força de trabalho que garante a realização das


atividades destinadas é sobrevivência familiar. Por outro

lado, essas trocas estèío inscritas em um "jogo de alianças"

que envolve várias familias e remete a estratégias

especificas de construção desta rede de solidariedade

intergrupal.

As festas religiosas, cerimônias que reuniam famílias

e vizinhos, os casamentos (mais raros), missas, velórios e

outras atividades coletivas, sâo outras formas de realização

dos laços sociais da comunidade.


iias, alèm das relaçòes de reciprocidade e solidariedade

intergrupal jà tào estudadas por vários autores (Fukui,

1979; Pereira de Queiroz, 1973 e 1976, etc.), a import-ância

dessas relações exteriores ao grupo familiar, e essa è uma

questclo que nos interessa aqui, revela-se também no trato

com as dificuldades da vida cotidiana. Se os vizinhos e

parentes sào, por um lado, formas de apoio á familia,

tornam-se em outros momentos ameaças e fontes geradoras de

malefici05. Esses malefícios podem vir através da bruxaria,

da prática da feitiçaria, e do mau-olhado, causadores de


- 22 -

doenças, mortes e outros infortúnios. Esses conflitos, que


em geral envolvem questòes de propriedade de terra, honra

familiar, ciúmes ou mesmo disputas de poder no interior da

familia, bastam para que se criem as condiçòes propicias


para que esses danos sejam lançados pelos outros. Um exemplo

dessa ligaçào entre conflito entre vizinhos e a ocorrência

de infortúnios è a história contada por D. Gracinha (82

anos).

“Nòs morava lá na Ponta das Alma quando


casamos, mas depois de uns treis anos o Josè
(marido) começô a adoecê, sempre no més de
março. Ele ficava com febre, assim pra morrê,
morre, nòio morre. Se pensava que era mal-feito
do vizinho pr^ ele, porque eles tinham brigado.
D vizinho botô fogo na terra dele e pegô fogo
na roça de cana do Josè, sò salvô umas pocas.
Ai o Josè queria que ele pagasse o prejuízo,
mas ele nào quis. Ele era homem culto, sabia
Ife; fez voto de que ia pagà, mas nào pagô. 0
Josè adoecia que ficava mal, e sempre tinha uma
criança doente também. Ai nòs viemos pra morè
aqui no Canto, perto do papai. Adespois que
nòsviemo, ele nào adoeceu mais."

Esse tipo de convivência social em que as relaçòes

exteriores ao grupo familiar sào fundamentais na vida

comunitária, predomina nos relatos dos informantes mais

idosos. A partir do final da década de 70, no entanto, os

contornos das familias começam a ficar mais demarcados e

visiveis. A diminuição das terras disponíveis, com a

partilha cada vez maior entre as novas geraçòes, o contato

mais intenso e cotidiano com a cidade e com outros bairros.


- 23 -

ampliando o universo das escolhas matrimoniais e

impulsionando o deslocamento das novas -familias para outros

lugares scío -fatores que pressionam no sentido de uma

dispersclo da -familia extensa e das redes locais de


solidariedade. Os serviços prestados sào agora remunerados.

Diminui a contribuição da roça e da horta para a

subsistência -familiar e o que -falta em casa è comprado na


venda, na feira ou na cidade, no "sacolSo" do governo. As

crianças, que antes quando necessário ficavam com os

vizinhos, agora vão para a escola. 0 aumento das


oportunidades de trabalho assalariado, na cidade ou na

própria Lagoa, possibilita a sobrevivência também das

familias sem meios próprios de subsistência.

Esse enfraquecimento da import-ância das relaçòes de

vizinhança e da parentela como apoio para o grupo familiar é

hoje uma tendência ainda nào realizada plenamente. Essa

tendência, em algumas situaçbes, é inclusive contraditória,

como pode se observar na preferência dos novos casais por

morar nas terras de uma das duas familias, quando ainda

existe espaço disponível para mais uma casa. Aparece também

na dependência do viúvo, quando nào casa novamente, em

relaçào ás outras mulheres da familia: filha, nora,

sobrinha, etc. Um exemplo è o caso do seu Manoel, 87 anos,

viüvo que vive só numa casa no Canto da Lagoa e que depende

da sobrinha que diariamente lhe traz o almoço e lava a sua

roupa. Alfem disso, mesmo o assaiariamento de uma parte da


- 24 -

populaçào local ainda està ligado ás relaçííes com os

vizinhos, niMo mais os vizinhos "nativos", mas aqueles que

vieram de outros lugares (principalmente de fora do estado -

uma clase mèdia -formada por profissionais liberais,


professores universitàrios, executivos, estudantes e

surfistas) e passaram a viver na Lagoa, alèm da vizinhança

esporádica e efêmera com os turistas. Nesse caso, a troca

efetuada tem um caráter claro de venda da força de trabalho.

Assim, è extremamente comum um morador vindo de fora contar

com a forçra de trabalho de vários empregados assalariados:


os que constróem a sua casa, os que limpam a casa, lavam a

roupa, o jardineiro, outro que toma conta da horta e dos

animais, etc.
Isso remete a uma questào metodológica central no estudo

sobre familia: os limites de se trabalhar com modelos

rigidos e estáticos que, na verdade, nào dào conta da

extrema mobilidade de que se investem as relaçóes familiares

em diferentes estruturas sociais (10). Ao invès de se

apresentarem em estado fixo no qual se dèío as relaçbes entre

pessoas que exercem papéis complementares, as relaçbes

familiares sclo dinâmicas, e as mudanças só podem ser

apreendidas através de um estudo qualitativo e de

profundidade. A situação que vivi com uma das informantes è

ilustrativa disso, Na primeira vez que fui entrevistar dona

Eudora, moravam no mesmo terreno ela e o filho, em uma das

casas, e a filha, o genro e os netos em outra casa. Parecia


- 25 -

uma tipica situação em que a màe viíjiva reòne em torno de si

05 -filhos, solteiros e casados, constituindo-se no centro de

um grupo -familiar mais amplo. A dl ti ma vez que -fui lâ, dona

Eudora tinha ido morar com um antigo namorado, desfazendo


assim aquilo que parece ser um modelo familiar recorrente na

organizaçrào das familias da Lagoa. Evidente que essa mudança

não teria sido percebida se eu não tivesse retornado para


uma nova entrevista. Isso foi facilitado ainda pelo fato de

eu morar na comunidade, o que propiciou um tempo maior para

as observaçòes e para perceber as mudanças.Esse tipo de


pesquisa baseada na observação intensiva permite que se

percebam as tendências antagônicas que atuam sobre a

dinâmica da vida familiar e a necessária reiativização dos

modelos de familia com os quais a antropologia tem

trabalhado.
- 26 -

2) Os casamentos

A uniào conjugal ocorre através da -fuga, também chamada

de rapto da noiva. E o momento em que os namorados, depois

de nào mais do que quatro ou cinco meses de namoro, resolvem

morar juntos. Essa -forma de enlace està diretamente ligada^

ao sentido que assume o casamento nessas comunidades. Casar,

principalmente para as geraçòes mais velhas, signi-fica dar

continuidade a um laço anterior, permanecer ligado á familia

de origem, é do homem ou á da mulher. Ao contrário do que


ocorre em zonas mais urbanizadas, a nova familia formada

através da fuga dos noivos incorpora-se ao grupo familiar

maior e passa a existir como mais um braço da familia

extensa. A formalização da nova uniào, principalmente no

religioso, era feita depois que o casal jà estava unido e jâ

havia nascido o primeiro filho, como a ünica forma de

garantir o batismo da criança na Igreja católica.

Recentemente, observa-se que aumenta o nümero de casais que

opta por ritualizar e formalizar o casamento na Igreja e no


I

civil e nào mais fugir. Sào em geral casamentos com pessoas

de fora da comunidade, de bairros mais próximos á cidade ou

quando o novo casal irà formar uma unidade é parte de suas

familias de origem, morando, por exemplo, em outro local.


a) A -fuga

05 in-formántes justificam a fuga pelo fato de que as

familias nào têm dinheiro para bancar uma festa de


casamento. Todas as economias, do homem e da mulher, são

destinadas ao enxoval (que se constitui no dote da mulher) e

é construção da casa. Antes quando a familia decidia fazer a

festa, era geralmente no caso do casamento de um filho (ou

filha) mais velho, o primeiro a casar. Era uma grande

festa, para a qual toda a comunidade era convidada,


matava-se um boi e nela se investia o que restava das

economias familiares. O5 próximos filhos que fossem casar

teriam que se contentar com a fuga, pois não haveria mais

dinheiro para novas festas. As raras festas de casamento

eram dádivas das duas familias à comunidade, retribuidas com

presentes e a integração do casal na rede de solidariedade

soei al (11).

A fuga è preparada pelos dois. Ao homem cabe construir

a casa, á mulher, preparar o enxoval (fazer os lençóis e a

colcha, preparar os utensílios, as suas roupas, etc.). Com a

casa pronta, jà se tem o que basta para a união do casal.

Muitas vezes o enxoval e a casa começavam a ser feitos sem

que o namoro tenha iniciado. A mulher, a partir de certa

idade começava a preparar as roupas. Antes guardava uma

parte do dinheiro da venda da renda-de-biIro, confeccionada

por ela mesma, para comprar aos poucos os objetos que faziam
- 28 -

parte do enxoval, hoje esse dinheiro fe obtido atrvès de seu

trabalho assalariado. 0 mesmo acontece com os homens. Ganham

um pedaço de terra do pai, ou compram, antes com o dinheiro

de uma temporada de pesca, hoje com o salário obtido no


trabalho na construção civil ou na prestação de serviços

esporádicos e jà constroem a casa, mesmo sem ainda terem uma

namorada. Nas familias mais pobres, quando nào hã dinheiro

para a construção da casa, o casal fugido vai morar na casa

de uma das familias e fica ai atè o nascimento do primeiro

filho ou atè que tenham condiçòes de construir a casa. Era

comum, antes, nesses casos, logo depois da fuga, o marido

viajar para Rio Grande ou Santos para trabalhar na pesca,

enquanto a mulher ficava com os pais, ás vezes jà grávida,

esperando seu retorno, que podia demorar meses e atè um ano.

A duração do namoro era antes mais curta e as pessoas

em geral casavam com o primeiro namorado. Segundo o relato

de várias informantes, nunca se passava de quatro ou cinco

meses de namoro. Dona Leontina, por exemplo, namorava seu

João fazia dois meses quando fugiram há trinta anos. Essa

efemeridade do tempo de namoro remete a duas questtoes. A

primeira recoloca a idèia de que os casamentos antes eram

garantidos mais pelos laços estreitos com a familia extensa

do que por um reforço da familia nuclear. A necessidade de

reforçar o vinculo matrimonial è mí.is recente e se evidencia

nos namoros mais longos, na valorização do casar na Igreja e

no civil, etc. A segunda questão diz respeito ao fato de que


- 29 -

muitas mulheres, quando fogem, jà estào grávidas, sendo

quatro ou cinco meses o tempo limite para se esconder uma

gravidez da família.
Essa última questào està ligada com a idèia de honra

familiar e com a diferença de status da mulher conforme o

seu papel no interior da familia. 0 momento que vai do

inicio do namoro, ou do próprio preparo do enxoval, atè a

fuga, ë um momento de transi çèlo entre o status de filha e

irmci para o status de esposa e dona-de-casa. Nesse momento,

a autoridade dos homens da casa (pai e irmMos) sobre a

mulher começa a ser colocada em xeque, com a proximidade de

sua substituição por outra autoridade masculina (o futuro

marido). O conflito se configura em torno da tensào entre a

necessidade do pai de garantir a filha e, ao mesmo tempo,

casà—la. E como um jogo no qual a fuga (desfecho

prè-estabelecido jà esperado por todos) è o limite da

oposiçào do pai á saida da filha. As tensões aprofundadas

por essa situação liminar sào resolvidas com a fuga, momento

em que a mulher redefine seus papéis e garante um pai para

seus futuros filhos.

As mulheres casavam com a idade mèdia de 17 anos e em

geral com o primeiro namorado, o que acelerava a resolução

do conflito descrito acima em relaçào á presença de uma

autoridade masculina na vida da mulher. Os homens casavam um

pouco mais tarde, quando se sentiam em condiçües de

sustentar a familia e a casa. A tendência a casar com o


- 30 -

primeiro namorado pode ser movida por dois -fatores

relacionados á questòes de honra (Pitt-Rivers:1983). 0

primeiro è para garantir ao marido que a mulher lhe pertence


e evitar problemas futuros na garantia da honra familiar

quando a esposa (guardià desta honra) poderia ser acusada de

imoralidade por jà ter se "entregue" á outros homens. 0

segundo se remeteria á questào que nos interessa nesta

dissertação que é a rivalidade entre as mulheres. A

convivência, ao nivel da vizinhança, com uma pessoa que jà

teve uma intimidade com o marido que sò è permitida é esposa

remete sempre a uma situação de tensão. A figura da

ex-namorada torna-se uma ameaça para a mulher,

configurando-se em mais uma forma de conflito que pode

remeter á feitiçaria. Isso fica evidente em um dos relatos

envolvendo uma moradora da Lagoa que, tendo constantes

crises nervosas e surtos, acusava uma ex-namorada do marido

de ter praticado feitiçaria contra ela.

Não hè data marcada para a fuga, mas, de uma certa

forma, tanto a familia do noivo quanto a da noiva esperam

que ela aconteça a qual quer momento. Antes, dia de festa era

considerado uma boa oportunidade para fugir, quando o casal

voltava de madrugada e,.sem os pais verem, a noiva passava

em casa, pegava suas coisas e ia para a no'va casa com o

companheiro. De acordo com o depoimento de várias mulheres

que entrevistei, a proposta de fuga era feita em geral pelo


- 31 -

homem, e todas foram unânimes em dizer que "nem estavam

pensando nisso naquele dia". Para elas, o casamento tem mais

valor quando a iniciativa è do noivo e a mulher vai morar na

casa dele ou dos pais dele. O depoimento de uma informante fe

i1ustrati vo:

"Se è o homem que roba a mulher, eles Vc(o


morar na casa dele. Se è a mulher que roba o
homem, ai eles vào pra casa (dos pais) dela.
Mas è mais bonito quando ficam na casa do
homem, nè? (Rita, 34 anos, Canto da Lagoa)

A idèia da "mulher roubar o homem" destoa da prática

comum e socialmente aceita de que a iniciativa è sempre

masculina. Ncío recolhi nenhum caso concreto em que isso

tenha ocorrido, mas o fato da informante ter se referido a

essa possibilidade faz pensar que essa inversão è possível

se existe uma diferença marcante de status, em que a familia

da mulher tem, no dizer dos nativos, "mais condições” que a

familia dos homens.

Mesmo com a iniciativa do roubo sendo uma atribuiçcio

masculina, a tendência sempre foi, conforme foi possível

observar nos depoimentos dos mais idosos, no sentido da

nova família formada com a fuga morar nas terras da família

da mulher. Se isso n^o ocorria logo depois da fuga, acabava

acontecendo alguns meses mais tarde, quando o casal

mudava-se para as terras da mulher, motivado por conflitos

entre o marido e os outros homens de sua familia ou entre a


- 32 -

mulher e ob parentes de seu marido, principalmente as

mulheres. Ou quando nascia o primeiro filho, o que trazia a

necessidade de um auxilio por parte das mulheres ligadas á

familia de origem da mulher, principalmente sua màe.

A entrega da iniciativa da fuga aos homens tem, ao meu

ver, um duplo significado. De um lado, um significado

próximo ao "pedido da mào da noiva em casamento", feito ao


pai da noiva, e presente em outras culturas. 0 pedido de

casamento è ai um aval és qualidades da jovem futura esposa.

Mas o descomprometimento da mulher com a proposta de fuga

està ligado também á forma como essa prática è vista na

comunidade. Sempre se fugiu, mas de uma certa forma, a fuga

è envolvida num manto de "coisa proibida". Em geral quando

os informantes falam da fuga, o relato è acompanhado de

risinhos e omissòes. Apesar de ser um momento ritual

plenamente reconhecido na comunidade, a fuga è também uma

forma de transgressão da autoridade paterna, nào sendo nunca

pedida a autorização do pai dá mulher. Apesar de ser a

mulher quem escolhe entre as duas autoridades é o homem quem

assume a responsabilidade por esse ato transgressor. E ele

quem pode, nesse momento, enfrentar a autoridade do pai da

noiva e tomar o seu lugar, pois a mulher deve estar sempre

subordinada a uma autoridade masculina. Se isso níso ocorre,

a condiçáo especial de uma mulher nào submetida pode fazé-la

uma pessoa vista como desviante e anormal, e nesse sentido

perigosa para os outros membros da localidade. Aqui se


— -

recoloca a questão do conflito pai/filha e sua resolução

pelo casamento.

As trocas matrimoniais acontecem prioritariamente entre

moradores da própria comunidade ou com pessoas de bairros

próximos. A afirmação dos moradores de que "aqui todo mundo

veio das mesmas familias" pôde ser parcialmente confirmada

com a constatação de que uma parte significativa dos

casamentos que levantei foram realmente entre pessoas com

algum parentesco comum. Esse no entanto è um assunto qúe

merece um tratamento mais aprofundado em estudos

posteriores, através de uma análise detalhada das

genealogias de cada uma das comunidades, levando em conta

inclusive a pesquisa realizada pelos jovens nativos, a qual

me referi anteriormente. Como esse não è o objetivo deste

estudo, atenho-me a trabalhar com o que são tendências

domi nantes.

De qualquer forma, o material levantado já aponta para

um questionamento das análises que consideram Santa Catarina

como um dos estados de baixa consanguinidade no pais. E o

caso do estudo de Fukui (1979), utilizando pesquisa de

Freire-Maia sobre índice de Consanguinidade Conforme a

Região (12) .
- 34 -

Nd caso deste estudo, a tendência aos casamentos

endogâmiCOS ganha importância na medida em que isso aponta

para um maior embaraçramento da rede social: os vizinhos

também podem ser parentes, o marido è muitas vezes um primo,

e assim por diante. Nessa medida, nèio sò as trocas, mas

também as tensões e os con-flitos acontecem no interior desse

emaranhado com que se dclo as relações sociais e -familiares,

e onde o parentesco existe subjacente ás demais relações.

b) Novos casamentos: quando o tradicional é moderno

A fuga ainda è a forma predominante de casamento entre

os nativos na Lagoa. No entanto, como jà foi dito, têm


aumentado nos últimos anos os casamentos oficiais, no civil

e no religioso. Mas, além do aumento numérico, essa forma de

casamento começa a ter um novo significado na comunidade.

Ela passa a fazer parte das aspirações dos mais jovens a

partir de duas motivações centrais. A primeira èstá ligada

com 05 rumos que começa a tomar a organização familiar na

comunidade. Antes, as novas unidades familiares que iam se

formando se instalavam em um espaço comum com a família

extensa. Hoje, com a diminuiçào das terras disponíveis, com

o deslocamento das pessoas para trabalhar e morar na cidade

e com a extensSo da rede de trocas matrimoniais para outros

bairros bem mais distantes, o casamento vai significar, em


muitos casos, a -formaçào de um novo grupo -familiar á parte,

que algumas vezes irà se instalar longe das -familias de

origem.

Assim, entre os casais mais jovens, o casamento no

civil e no religioso è mais valorizado porque re-força a

-formaçrào de uma nova -familia, mais autônoma e di-ferenciada

em relaçào ao grupo -familiar extenso. Para isso, -fugir jà

não basta. A garantia da nova -familia nào estè mais na

existência de um espaço comum junto ao grupo -familiar maior,

mas nos laços morais e afetivos selados com a maior

ritualizaçào püblica do casamento, um namoro mais longo, a

possibilidade de independência econômica do casal.

A segunda motivação que me parece central è a

necessidade dos mais jovens, tendência acentuada nos òltimos

anos, de se apropriarem de tudo o que para eles significa o

moderno (13). 0 casamento ritualizado no civil e na Igreja

se reveste para os jovens nativos de um caráter moderno em

função de várias questòes. De um lado, a festa de casamento

è o momento em que as jovens ou futuras donas-de-casa

expòem, de várias maneiras, o seu dominio e conhecimento

sobre esse "mundo moderno": trocando informações sobre os

ültimos lançamentos de aparelhos domésticos, brinquedos, as

novidades no espaço urbano, expondo suas vestimentas mais

adequadas á moda, etc. De outro lado, o rol do enxoval è

agora mais extenso do que hà anos atràs. Ele inclui nào sò o


— 3é> —

que antes bastava para a formação da nova casa, mas os

f-iltimoB lançamentos em matéria de eletrodomésticos e todas

as comodidades para uma dona-de-casa moderna. Se uma parte

desses objetos è comprada pelos noivos antes do casamento, o

enxoval se completa com os presentes, que sõ existem se

houver festa. A apropriação de um ethos moderno torna-se,

assim, um dos projetos das novas familias <Rial, 1988).

Mesmo sendo uma aspiração dominante hoje entre os mais

jovens, esses novos casamentos ainda são minoritários em

relaçào ao que, na comunidade, è a forma tradicional de

casar - a fuga. Essa forma de enlace permanece no essencial

muito próxima ás fugas dos anos passados, apesar de

incorporar algumas caracteristicas dos "novos casamentos",

como os namoros mais longos, a ajuda da mulher na construção

da casa, etc.
- 37 -

3) A -familia e a distribuição do poder

A organizaçcCo -familiar esté centrada em torno de vàrias


unidades -familiares que -fazem parte da -familia extensa e que

constituem um grupo doméstico mais amplo. Assim, em torno de

um casai mais velho, alèm de se reunirem os -filhos

solteiros, convivem também os -fiIhosZ-f i1has casados e seus

filhos. Eventualmente agregam-se outros parentes, mais ou

menos próximos, como um avô/avó, um tio/tia, etc. Essa

estrutura familiar jà foi exausti-vãmente trabalhada por Rial


(1988), quando analisa a transformaçào do espaço doméstico

nos "segmentos residenciais familiares" - espaço que reúne

esse grupo doméstico mais amplo, formado por vàrias familias

nucleares. A autoridade è exercida por um homem,

identificado por todos como o "pai" - mesmo existindo outros

pais no pedaço. E em relaçèlo a esse "pai" que as outras

pessoas e o próprio grupo familiar è identificado. E ele

quem responde pela familia, quem toma as decisões mais

importantes, nào sem conflito com os outros homens que

habitam o mesmo terreno, principalmente os seus filhos

casados ou mais velhos. Mas se è a autoridade masculina que

è pública e legitimamente reconhecida dentro e fora do grupo

familiar, isso nào significa que a família esteja centrada

unicamente em torno dela, ou que todo o poder seja

identificado com a autoridade masculina. Os discursos de


- 38 -

ambos, homem e mulher, reconhecem que a autoridade e a

chefia legitima no interior da familia è a masculina. Mas

esse è um modelo público, uma das faces de uma situação que

è bastante mais complexa no que se refere ao exercicio da

autoridade e do poder.

0 material colhido em campo e as observaçòes feitas em

relaçào ás trajetórias familiares, apontam, pelo contrário,

para um outro sentido, em que são as mulheres o pòlo que

assegura a sobrevivência e a continuidade dos grupos

familiares. A ausência da mulher encaminha a dissolução da

familia.

Existe um desnivel entre aquilo que, no discurso de

homens e mulheres, se constitui num "modelo ideal" sobre os

papéis masculino e feminino no interior da familia, as suas

práticas e suas representaçbes. Presos a esse modelo comum,

apesar de algumas diferenças no seu discurso, homens e

mulheres sustentam que a autoridade legitima dentro de casa

è a masculina, garantida pela presença do "pai" como a

tiltima palavra nas decisões. Como já foi visto, existe uma

distância entre esse "modelo ideal" e as práticas e

representações que aparecem com uma investigação mais

esmerada.

a) Trabalho e espaços diferenciados e identidade de gênero


~ 39 -

Praticamente todas as atividades econômicas eram e sào

ainda realizadas de acordo com uma divisào sexual do

trabalho, que define os espaços masculinos e femininos.


A pesca é uma atividade essencialmente masculina, sendo

proibida a participação das mulheres nâfo sò nas tarefas que

a envolvem como nos espaços a ela relacionados: os ranchos


de barco, as embarcações, o mar.E um trabalho realizado

coletivamente pelos homens, que podem passar meses longe de

casa e das mulheres, convivendo a maior parte do tempo com


seus companheiros. Atividade e território exclusivo dos

homens, a pesca era e è ainda fundamental na constituição da

identidade masculina e principal espaço desociabi 1idadeentre

os homens. Através dela, os jovens sào iniciados na vida

adulta e realizavam a passagem para o mundo dos homens.

Antes viajar para Rio Grande (no Sul) ou Santos (em direção

ao Norte), cidades portuárias que ficam a cerca de mil

quilômetros da ilha, era uma forma de ingressar na

maturidade, saindo do alcance familiar, e uma rara


possibilidade de juntar algum dinheiro ("fazer o pè-de

meia", como eles dizem) para comprar um pedaço de terra,

construir uma casa e casar. Depois de uma viagem de vários

dias pelo litoral, na carroceria de um caminhão lotada com

dezenas de jovens, chegados em Rio Grande eles se empregavam

em uma das "parei as" de pesca. A "parei a" reunia um grupo de

cerca de trinta homens que trabalhavam juntos nas mesmas

embarcações e dormiam em um barraco comum, nas tarimbas,


- 40 -

camas de madeira pregadas na parede. 0 patrào da "pareia"

era o dono dos barcos, da rede e do barraco. Durante os

meses que permaneciam em Rio Grande, que ás vezes

estendiam-se a quase um ano, as únicas mulheres que os

homens conviviam eram a esposa do patrão e as prostitutas

que procuravam na cidade nas folgas. E muito comum, quando

falam desse periodo em suas vidas, comentarem


particularmente a ausência das mulheres.

"Se não tinham uma que lavasse, a gente


ficava com a mesma roupa no corpo, trabalhava e
dormia com ela, as véiz ainda molhada do mar e
da maresia." (Julinho, Rio Vermelho)

A comida era feita por um dos homens da "pareia" ou,

mais raramente, pela esposa do patrão, residente no lugar.

Também aqui se fazia sentir a falta das mulheres:

"Quando era a mulher do patrão que fazia a


comida, ai dava de comê. Mas quando era um de
nòs, ai tinha dias que nào dava." (seu Zeca,
Canto da Lagoa)

Essas viagens eram também momentos dos homens travarem

contato com culturas exteriores á sua cultura de origem,

coisa que sò iria repetir-se em sua vida alguns anos mais

tarde quando, jà casados, realizavam viagens de visita a

cidades "santas" como Aparecida do Norte em São Paulo.

(RIAL, 1988).
- 41 -

Hoje, quando a atividade pesqueira dos homens è -feita

no litoral da ilha, eles também passam um longo tempo

ausentes da casa. Na ilha, também -funciona o sistema das

parelhas, com a diferença que cada um mora em sua própria


casa e muitas vezes o dono do barco e do rancho do barco é

um, o da rede outro.

Todo o espaço e os equipamentos ligados á pesca Scfo


exclusivos dos homens. A confecção e o conserto das redes e

tarrafas também sào feitos por eles, assim como as canoas

escavadas em tronco de guapuruvu ("garapuvu", na linguagem


nativa) e as embarcaçòes mais simples.

As ünicas atividades pesqueiras realizadas também por

mulheres sào a pesca do camarào e do siri feitas na beira da

lagoa. Sào atividades imdividuais, que nào implicam em um

deslocamento para lugares mais afastados da casa. Mas mesmo

ai, a participação das mulheres acontece quando a pesca è

voltada para o consumo familiar. Quando esta tem um fim de

comerci al izaçclo, o que implica numa mobilizaçclo de mais

equipamentos e ás vezes na coletivizaçcio do trabalho, ou

quando è preciso "embarcar" (usar a embarcação), as mulheres

estão excluídas.

Cam a diminuição da atividade pesqueira nos áltimos

anos, o trabalho na construção civil na Lagoa tem sido- um

espaço importante de sociabilidade masculina, principalmente

porque agora, com a vinda de pessoas de fora e do turismo.


- 42 -

se constrói muito mais. 0 trabalho na construção civil è

feito a partir da formaçào de uma equipe de trabalho que se

reúne em torno de um homem mais experiente, que pode contar

coma ajuda de garotos ainda jovens que jà vào fazendo a sua

iniciação. Antes esse era um trabalho mais relacionado com a

solidariedade vicinal, em que os homens se reuniam para

ajudar um parente ou vizinho a levantar sua casa.

A venda também è outro espaço em que os homens se

encontram, durante a noite, para beber e trocar experiências

e conversar sobre assuntos ligados ao trabalho, viagens.

Também para os jovens è um momento de iniciação ao mundo

adulto, um primei to contato com o ’ethos’ masculino. Se,

durante o dia, são as mulheres que frequentam a venda e a

rua, á noite estes são territórios proibidos para elas. Mais

recentemente, o surf tem sido outra atividade de

sociabilidade e convivio entre os jovens nativos,

principalmente os jà mais integrados a uma cultura

"moderna". Estes deixam de partilhar dos espaços masculinos

tradicionais, como a venda, e passam a construir sua

identidade em torno do ’ethos’ surfista - as roupas, o uso

da motocicleta como meio de transporte, a linguagem, o

consumo de maconha, etc. Para eles, a relação com o mar


deixa de ser uma atividade produtiva ligada á pesca para

tornar-se uma atividade lúdica ligada ao surf. A maior parte

destes jovens surfistas nativos trabalha na construção civil

na própria Lagoa.
- 43 -

A roça è ambigua quanto a ser um espaço masculino ou

feminino. Os prbprios depoimentos dos homens e das mulheres

destoam em relaçào á participação das mulheres nessa

atividade. Para os homens, o trabalho na roça è

responsabilidade deles, a mulher sò participa como auxilio,

quando não hè filho homem para ajudar, realizando tarefas

acessórias. As mulheres, algumas sendo inclusive esposas dos


homens entrevistados, disseram, ao contrãrio dos homens, que

trabalham ha roça de igual para igual, realizando o mesmo

trabalho. Outras, que não trabalhavam na roça na època das

entrevistas, disseram que jà haviam trabalhado mas tiveram

que parar em funçào de doença ou gravidez. Essa contradição

nos discursos de um e de outro espelha uma situaçào em que o

modelo dominante destoa das necessidades práticas e da

situaçào realmente vivida pelos nativos, e que è elaborada

de formas distintas por homens e mulheres. Mesmo os modelos

apresentados sào ambíguos e expressam essa contradição. 0

material recolhido nas entrevistas me mostrou que, apesar de

ser responsabilidade masculina, a roça è uma atividade que

em muitos momentos, como nos periodos de ausência do homem,

è realizada e garantida pelas mulheres. 0 abandono dessa

atividade por parte das mulheres està bastante ligada ao


nascimento do primeiro filho, em que o afastamento

temporário da roça por alguns meses acaba se prolongando.

Com os filhos, as mulheres se vêem impedidas de se

ausentarem por periodos muito longos da casa.


- 44 -

0 engenho de -farinha apesar de ser uma atividade que

vem diminuindo nos Ciltimos anos, è um espaço em que homens,

mulheres e crianças participam, porèm em tare-fas

di-ferenci adas. Aquelas consideradas menos importantes e


menos "pesadas" (Paulilo, 1982), como raspar e lavar as

mandiocas, peneirar a -farinha, sào -feitas pelas mulheres e

crianças. Mas também as regras que delimitam as tarefas

masculinas e femininas no engenho podem ser quebradas. Uma

informante do Canto da Lagoa me falou, por exemplo, de uma

mulher que, no tempo em que sua familia ainda tinha engenho,

trabalhava como forneira. Esses casos excepcionais, no

entanto, nào invalidam o modelo apresentado pelos moradores

nas entrevistas. Os homens comandam o trabalho do engenho,

mas hà casos, como o de dona Catarina depois que seu marido

morreu, em que sào as mulheres que dirigem o trabalho. Ao

contrário da temporada de pesca, em que sào os homens que se

deslocam e se mobilizam em torno dessa atividade, no periodo

da farinhada toda a familia è atingida, passando a morar

dentro do próprio engenho e a regrar suas atividades diárias

de acordo com as tarefas necessárias para a fabricação da

farinha de mandioca.

As atividades exclusivamente femininas sào

circunscritas fundamentalmente á casa e ao quintal, ou seja,

ao, trabalho ligado ao espaço doméstico.

0 café, plantado nos arredores da casa, è uma das

poucas atividades agrícolas de responsabilidade feminina.


- 45 -

Esse era antes um trabalho -feito coletivamente entre várias

mulheres, muitas ainda solteiras, que se agregavam é tare-fa

em troca de um pagamento por alqueire colhido. Era um dos

momentos de troca e sociabilidade -feminina, pois, enquanto


trabalhavam, elas conversavam, trocavam informações,

cantavam e dançavam- A participação dos homens nessa

atividade era esporádica e se revestia sempre de um certo


perigo. 0 caso de uma moradora da Lagoa que nasceu depois

que sua màe engravidou do irmào do marido em uma dessas

colheitas de cafè è ilustrativo desse perigo que representa

a presença masculina nessa atividade.


A criaçào de galinhas e a horta também eram atividades

femininas. Hoje, são os homens que dedicam-se é horta, mas

as galinhas sSo de responsabilidade exclusiva das mulheres.

De qualquer forma, assim como o cafè, sào atividades

realizadas nos arredores da casa e no quintal,

constituindo—se numa extensào do espaço doméstico, dominio

da mulher, onde as atividades consideradas exclusivamente

femininas são realizadas.

Cozinhar, lavar e consertar as roupas, limpar a casa e

confeccionar a renda do bilro eram e são atè hoje atividades

essencialmente femininas, com as quais os homens não se

envolvem. A confecção da renda do bilro era uma atividade

demarcadora de uma "cultura feminina" na comunidade. Apesar

de ser realizada exclusivamente por mulheres e de se


- 46 -

circunscrever ao espaço da casa, a renda comercializada era

uma fonte de ganhos para a familia e para a mulher. A

destinação desses ganhos varia conforme a situação da mulher

que produz a renda. De acordo com a pesquisa coordenada por


Ana Maria Beck <1983), quando a renda era produzida pela

menina, era comercializada pela mãe e o dinheiro era destinado

ás necessidades da família. Já a mulher jovem e solteira

tinha mais autonomia em relaçào a destinação dos ganhos da

renda, utilizados principamente para a confecção do enxoval

e a preparação do casamento. Quando è a mulher casada que

produz a renda, uma parte do dinheiro da venda vai pro

"monte" (dinheiro acumulado pela família) e a outra è usada

para a aquisição de roupas, utensílios para a casa, etc. Atè

alguns anos atrás, o momento em que a menina começava a

fazer a renda (em geral, seis ou sete anos de idade)

demarcava o seu ingresso em uma nova etapa, que Beck (1983)

chama de "fim da infância". 0 seu tempo agora è pensado de

acordo com a necessidade de aprender o que as mais velhas

lhe ensinam e de produção da renda.

Apesar de ser uma tarefa individual, a con'fecçào da

renda reunia, na casa, mulheres de várias geraçtoes, que

passavam uma para outra o seu conhecimento. Era um dos


V

espaços de sociabilidade feminina. Com a crescente

urbanização (econômica e cultural) da comunidade, essa

relaçào com a renda modificou-se nos últimos anos. Apesar do


- 47 -

número de rendeiras na ilha ainda ser signi-ficativo <14),

existe uma resistência muito grande por parte das novas

geraçòes em aprender a -fazer renda. Alèm disso, hoje existe

uma valorização e um estimulo maior para que a criança

■frequente a escola e se prepare para ingressar no mercado de

trabalho. Esse è um modo de pensar recente. Atè pouco mais

de dez anos atràs, as crianças no máximo chegavam a ser

alfabetizadas e logo abandonavam a escola para, ajudando em

casa ou trabalhando fora, contribuir com a manutenção

familiar. De outro lado, a intensificação do turismo aponta

para um processo de profissionalização das rendeiras e um

aumento da produção. Nas famílias mais diretamente

envolvidas com a produção e a comercialização da renda, esta

passou a ser a principal fonte dos ganhos familiares. Uma

pesquisa recente desenvolvida junto ás rendeiras das

barracas da Lagoa da Conceição (Dalcastagne, 1988) aponta

nesse sentido. Em muitas dessas familias as mulheres

passaram a ser as principais mantenedoras da familia,

através da renda. Por outro lado, esta mesma pesquisa aponta

para a renda feita nessas proporções como um fator de

autonomia das mulheres, a partir de sua independência

econômica em relação aos maridos.

Apasar de haver uma significativa proporção de mulheres

com mais de 35 anos que ainda se dedica a essa atividade,

pode-se concluir que hà uma tendência geral de abandono da


- 48 -

renda como um traço de identidade -feminina e um aumento

da profissionalização de algumas mulheres em torno dessa

atividade.

As outras atividades realizadas pelas mulheres estão

ligadas á reprodução familiar. A lavação da roupa, em muitas

familias, ainda è feita coletivamente na fonte (córrego

perto da casa) reunindo mulheres de diversas familias. As

filhas e os filhos menores ajudam a carregar as trouxas de

roupa. Esse è um importante momento de troca de informaçbes

sobre a vida familiar e de conhecimentos ligados ás

atividades a ao universo feminino. Dessa atividade os homens

estão completamente excluídos e algumas informantes

justificam o fato das mulheres trabalharem sempre em grupo

na fonte pelo perigo que representa uma mulher sò num lugar

isolado e tão perto da mata. Hoje, com a urbanização do

sistema de distribuição da agua, (15) a maioria das mulheres

lava a roupa no tanque de sua própria casa, apesar de muitas

ainda preferirem o uso da fonte.

Nesse sistema, è possivel se usar as categorias de

Balandier (1976), de maior ou menor mobilidade para o

trabalha masculino e feminino. Enquanto predominava uma

economia de subsistência agropesqueira, o trabalho feminino

tinha menos mobilidade que o dos homens, na medida em que,

na sua maior parte, limitava-se aos espaços da casa e seus

arredores, enquanto os homens possuiam mais mobilidade,


- 49 -

de5locando-se para pontos distantes, como a mata, a roça, o

mar e inclusive para outras regiòes.

Pode-se dizer que o espaço da casa' e seus arredores sào

dominio -feminino, è ai que as mulheres passam a maior parte

de seu tempo e realizam as suas principais atividades. Esse

controle que as mulheres exercem sobre o território

doméstico signi-fica para elas uma -fonte de in-fluência e de

poder no interior da comunidade, na medida em que é dali que

extraem um saber e compartilham de uma vivência da qual os

homens estão excluídos.

Nos últimos anos, mulheres das geraçòes mais novas

começaram a encontrar no trabalho -fora de casa uma

possibilidade mais efetiva de contribuir para a renda

familiar. Algumas mulheres casadas com a idade até cerca de

45 anos lavam roupa para fora ou fazer faxinas nas casas do

"pessoal de fora", mas encontram frequentemente resistências

por parte dos maridos. Quando saem para trabalhar na casa de

outra pessoa sào em geral acompanhadas de um filho menor e

sempre voltam pra casa antes do marido chegar. Jà as jovens

solteiras, têm uma autonomia maior para escolherem seu

trabalho. Algumas trabalham como empregadas domésticas em

outros bairros ou na cidade, outras como balconistas e

atendentes em lojas no centro da cidade. Essa tendência

ainda incipiente ao assai ariamento das mais jovens também

acompanha uma modificação do quadro familiar: os filhos


- 50 -

entram m ais cedo na e s c o l a ; algumas m u lh e re s passam a se

d iv id ir en tre a re a liz a ç ã o do tra b a lh o d o m é s tic o e o

tra b a lh o fo ra de c a s a , o que t o r n a n e ce s s á ria uma d i v i s ã o de

algumas t a r e f a s com o homem; as m u lh e re s passam a t e r mais

in d e p e n d ê n c ia do m arido quando e s t e e stà presen te; d im in u i o

número médio de f i l h o s por casal e a s m u lh eres passam a ter

filh o s m ais tard e. E ste d ep oim en to de uma in form a n te è

ilu s tr a tiv o do novo modo de p e n s a r a re la ç ã o com os f i l h o s :

"O utro f i l h o a g o r a , não. Eu j è t i v e a C.


m uito cedo, com 20 ano s. Se eu fo ss e mais
v e l h a , a i e r a de p e n s a r de t e r o u t r o a g o r a , mas
eu a in d a te n h o 26, tem m u ita c o i s a p ra fa ze r
a i n d a . " ( E l i a n e , 26 a n o s, C a n to da Lagoa)
- 51 -

b) A f a m i l i a c e n t r a d a na mulher ou a u t o r i d a d e m a s c u lin a X
poder f e m i n in o

Como f o i v is to , os homens passavam d u r a n t e m uito tempo

lo n g e de casa quando tra b a lh a v a m na pesca. E d ific il

encontrar um homem com mais de 35 anos que não ten h a

tra b a lh a d o , p e lo menos algum tempo, nas p a r e l h a s de p esca de

R io Grande ou de S a n to s , em Sào P a u lo . Era a forma que

dispunham p a r a "fa se r o p è - d e - m e ia " , como e l e s mesmo disem.

C o n s e g u ir uma rend a que p o s s i b i l i t a s s e uma base econômica

m ais s ó l i d a para a f a m í l i a . M u it o s sò c o n se g u ira m c o n s tru ir

a p ró p ria casa com o d in h e iro da pesca em uma d e s sa s

tem poradas. Foi o c a s o de Vai t e r e B ra n c a . Logo que fu g ir a m ,

Vai t e r f o i p a r a R i o Grande e Dona B r a n c a , jà g rá v id a , fic o u

na c a s a dos p a is , esperando sua v o lta . Quando e l e v o lto u ,

trouxe d in h e ir o s u fic ie n te p a ra comprar um pequeno l o t e á

b e ira da la g o a (terrenos que n a q u e la època eram

d e s v a l o r i z a d o s e mais b a r a t o s ) e c o n s tru ir a sua c a s a . E ssa

mesma h i s t ó r i a se re p e tiu p a ra m u ito s o u t r o s moradores da

Lagoa e de o u t r a s comunidades da i l h a . Quando seu Ju lin h o ,

por exemplo, fo i p a ra R io Grande, Dona N a i r fic o u em casa,

com os f i l h o s pequenos, uma h o r t a , uma r o ç a e uma vaca de

onde t i r a v a a s o b re v iv ê n c ia , tomando c o n t a de tud o s o z in h a .

Foi também com o d i n h e i r o de v á r i a s tem poradas de pesca f o r a

que seu N i l s o n c o n s e g u iu montar a venda que fu n c io n a a tè

h o j e no C a n to da Lagoa.
Enquanto o m arido -ficava m uito tempo -fora, c o n v iv e n d o

quase que sò com o u t r o s homens, as m u lh e re s c o n s t r u ía m em


\

c a s a o seu mundo, atra vé s do t r a b a l h o e da r e l a ç ã o com as

c ria n ç a s e com as o u t r a s m u lh e re s . Os -filh o s aprendiam a

reconh ecer a a u to rid a d e da mãe, apesar de m u it a s v e z e s e la

-falar em nome do p a i . A m ulh er, mesmo a ce ita n d o o m arido

como che-fe le g ítim o da - f a m íli a , jà h a v ia e x p e r im e n ta d o a

p o s s ib ilid a d e de v i v e r e g a ra n tir a s o b re v iv ê n c ia da - f a m ília

sem e l e ,

E s s e a-fastamento dos homens da c o n v i v ê n c i a d o m é s tic a e

fa m ilia r não o c o rr ia apenas quando í a pescar em ou tros

lu g a re s fo ra da ilh a ou do e s t a d o . Mesmo quando j à estào

d e fin itiv a m e n te in s ta la d o s em casa, os homens c a sa d o s

permanecem a m aior p a r t e do tempo lo n g e , no mar ou na roça.

E, mais r e c e n te m e n t e , no t r a b a l h o a s s a la ria d o na c i d a d e , ou

mesmo na ve n d a, á n o ite , quando s e reúnem com os ou tros

homens. 0 espaço d o m é s tic o permanece sendo p r e e n c h id o

fundam entalm ente p e l a p re s e n ç a f e m i n i n a .

Essas a u s ê n cia s do homem têm a i n d a o u tras c o n s e q u ê n c ia s

sobre a a u to rid a d e m a s c u lin a . A p a rtir do momento em que

casa < fo g e ), o homem torn a-se o re sponsável p e la honra,


*

co n ju g a l, g a ra n tin d o a fid e lid a d e da m ulher a t r a v é s de sVia

a u to rid a d e e da v ig ilia perme^nente (l<b). Sua a u s ê n c ia

p r o lo n g a d a , da mesma forma como ocorre com o p a s t o r c ita d o

por P itt-R iv e rs (1983), c o l o c a em d ú v i d a sua honra c o n ju g a l

e, em c o n s e q u ê n c ia , sua a u t o r id a d e .
Um o u t r o fa to r que c o l o c a em q u e s tã o o a b s o lu t is m o da

a u to rid a d e m a s c u lin a em c a s a è o fa to de que a m a i o r i a das

fa m ilia s se d i s p e r s a na a u s ê n c i a da màe. E ju s ta m e n te a

m o b i li d a d e do grupo f a m i l i a r que p e r m it e que esse e o u tros

tra ço s da fa m ilia tornem -se v is iv e is . Quando a màfe se

a u s e n ta ou morre, o pai v# -s e o b rig a d o a d is tr ib u ir os

filh o s en tre paren tes p ró x im o s , compadres, v iz in h o s ,

d e fin itiv a m e n te ou a t è que c a s e novamente, ou s e j a , atè que

encontre o u t r a mulher que re o rg a n iz e a v id a fa m ilia r. Dona

G r a c in h a , 82 anos, con ta que, quando sua mãe morreu, fo i

le v a d a junto com as irm ã s p a r a a casa da m adrinha, na Co sta

da Lagoa. F i c o u com seu p a i sõ o irm ã o m ais v e lh o , que jà

tin h a id a d e s u fic ie n te para a ju d a r no t r a b a l h o da roça.

Quando o p a i c a s o u - s e novamente, fo i buscar as f i l h a s .

A mulher aparece as sim como um l a ç o e s s e n c ia l na


t
e x is tê n c ia da u n id a d e f a m i l i a r . Essa s itu a ç ã o a p a re c e de uma

forma mais ra d ic a i a in d a no s t a t u s d ife re n c ia d o assum ido

p e lo s v iú v o s e p e la s v iú v a s . O homem v i ú v o nào con seg u e

s o b re v iv e r sõ. E le p re c is a de umà mulher - filh a , nora.

s o b r in h a - que tome p a r a si os seus c u id a d o s , sob re tu do

para r e a l i z a r d e te rm in a d a s a t i v i d a d e s , como c o z in h a r e la v a r

roupas, que não são assu m id as p e l o s homens em quase nenhuma

c irc u n s tâ n c ia . E le torn a-se d ep en d en te dos s e rv iç o s e

c u id a d o s de uma m ulher,

Jà a mulher v iú v a a d q u ire um s t a t u s de poder e

a u to rid a d e . E la mantém o g ru p o f a m i l i a r em t o r n o de s i.

/
- 54 -

re u n in d o in c lu s iv e os - f i l h o s horriens casados. E uma das

situ a ç õ e s em que a mulher a d q u i r e uma a u t o r i d a d e le g itim a d a

p e lo grupo f a m i l i a r e p e lo s v iz in h o s . Dona C a t a r i n a , v it iv a ,

moradora da O uebrada, no C a n to da La g oa , è um exemplo v iv o

d is s o . E la d iz que, d e p o is que o m arid o morreu, è e ls quem

manda. A m a io ria d os f i l h o s c a s a d o s mora nas mesmas terras

que e l a e, nas q u e s tò e s e s s e n c i a i s , se submetem á sua

a u to rid a d e . E e la quem d e c id e s o b re a ro ça, a venda de

a n im a is , as r e f o r m a s na c a s a , e comanda o fu n c io n a m e n to do

engenho d u r a n t e a fa rin h a d a . Também a s d e c i s õ e s p o l í t i c a s è

e la quem toma. Recentem ente, quando a comunidade do Canto

d is c u tia s o b r e a p a v im e n ta ç ã o da e s t r a d a , um de seu s filh o s

fo i le v a r a p o s i ç à o do " p e s s o a l da Q u eb rad a ", re iv in d ic a n d o

j u n t o com a p a v im e n ta ç ã o a in s ta la ç ã o de lu z e le tric a na

Quebrada. A p o s iç ã o , na v e rd a d e , e r a de d. C a t a r i n a , assumida

p e lo s filh o s com a sua p r ó p r i a o p in ià o . Mas se a v iú v a è,

neste caso, chefe do grupo fa m ilia r m ais amplo, o chefe de

cada uma d as fa m ília s n u c le a r e s que h a b ita m a l i sào oe

homens. Transparece d is s o tu d o uma s i t u a ç ã o em que o p a i,

p a ra r e p r o d u z i r - s e enquanto ta l, ou s e j a , p a ra r e a l i z a r o

seu p ap el e a sua id e n tid a d e , p re c is a da p r e s e n ç a de uma

m u lh er. Jã a m u lh e r, na a u s ê n c ia do homem, tem o seu sta tu s

e a sua a u t o r i d a d e e le v a d o s , g a ra n tin d o a e x is tê n c ia do

grupo f a m i l i a r .
A opçào p r e - f e r e n c ia l do c a s a l por morar nas t e r r a s da

■familia dcs mulher è um o u t r o -fator que acaba c o lo c a n d o em

questã o a a u t o r i d a d e do m a r id o / p a i.

c> Os casam entos m a t r i l o c a i s

A m a io ria dos casam entos das g e r a ç ò e s mais 'velhas eram

m a trilo c a is , ou se ja , e x is tia uma p r e f e r ê n c i a p ara que o

novo c a s a l se in s ta la s s e nas t e r r a s da f a m i l i a da m ulh er,

mesmo quando a fa m ilia do homem tin h a espaçro d is p o n iv e l,

Essa te n d ê n c ia pç-rmanece a i n d a h o je , apesar da es-asse:-: de

terra s im p e lir a um c e r t o pragm atism o: o jovem c a s a l acaba

i n s t a l a n d o -s e onde a in d a hè esf^aço d is p o n ív e l no lu g a r ,

quando não vai morar em o u tro s b a irro s . Mas fo i

p rin c ip a lm e n te nas e n tre v is ta s com os in f o r m a n te s mais

v e lh o s que e s s a te n d ê n c ia á in s ta la ç ã o nas t e r r a s da f a m í l i a

da mulher m o s tro u -s e mais e v id e n te . Algumas v e zes o c a s a l,

lo g o apõs a fu ga, ia morar com a f a m i l i a do homem. Pouco

tempo d e p o i s , quando n a s c ia o p rim e iro filh o , ou quando o

marido v i a j a v a p a ra tra b a lh a r na p e s c a fo ra do estado,

mudavam-se p a ra a cassi ou as t e r r a s da f a m i l i a da m ulh er.

E s sa e s c o l h a està lig a d a a duas questões c e n t r a i s .

A p rim e ira questã o tem a -ver com a a u t o r i d a d e do p a i . 0

c o n flito da mulher com a a u to rid a d e m a s c u lin a em casa,

representada quando a mulher a in d a nào c a so u p e la s fig u ra s

do p a i e dos irm ã o s, tem uma re so lu ç ã o com o casamento

(fuga). Nesse momento, com a mudança do s t a t u s f e m in in o de

V
- 56 -

irm ã e - f i l h a p a ra esp osa e, p o s t e r ! orm ente, mãe, d e s lo c a -s e

a a u to rid a d e m a s c u lin a á qual està s u b m e tid a , do pai e dos

irm ãos p a ra o m arido. Pa ra o homem, essa t r a n s iç ã o nào è t à o

•facilmente r e s o l v i d a e nem t ã o tran sp aren te. Enquanto e le

e sti'^ er c o n v iv e n d o no mesmo te rr itó rio que o p a i, mesmo

quando j à ca so u e -formou a sua p r ó p r i a •fam ilia, e le

permanece s ub m etido á sua a u t o r i d a d e . Is s o s i g n i - f i c a que e l e

d e v e rá se submeter á p a la v ra -fin a l do p a i , nas d e c i s õ e s mais

im p ortan tes. Mas fu ndam entalm ente s ig n ific a que e le

co n tin u a rá tra b a lh a n d o com o p a i , na p e s c a , na ro ç a ou, nos

ú l t i m o s tempos, na c o n s t r u ç ã o c i ' v i l , sub m etido é sua c h e f i a .

Ou s e j a , mesmo c a sa d o , e le c o n tin u a t r a b a lh a n d o sob a

a u t o r id a d e de o u t r o homem. A forma que a lg u n s encontram p a ra

s u a v iz a r esse c o n flito è op tan d o por um tra b a lh o

a s s a la ria d o . D esta form a, na fa m ilia de seu O scar, por

exemplo, o filh o c a sa d o que mora no mesmo t e r r e n o tra b a lh a

como a s s a l a r i a d o no p o s t o de g a s o l i n a , enquanto o g e n ro , que

também mora no mesmo t e r r e n o , tra b a lh a j u n t o com seu O sca r

na c o n s t r u ç ã o c i v i l (RIAL, 1988).

A d ific u ld a d e de r e s o l v e r esse c o n f l i t o fa z com que,

m u itas v e z e s , a m oradia comum com a fa m ilia do n o iv o s e ja

enca ra da como a l g o tra n s itó rio . A h is tó ria do casamento de

R ita (Canto da Lagoa, 34 anos) ó e x e m p la r. E le s fu g ir a m

quando v o lta v a m de uma f e s t a na F r e g u e s i a e foram d ire to

p ara a c a sa dos p a i s do n o i v o , Nào f a z i a um ano que moravam

a li, quando nasceu o p r i m e i r o f i l h o , e e le s d e c id ir a m mudar


- 57 -

p ara as terras da - fa m ilia d e l a . A e x p lic a ç ã o de R ita ,

p a rtilh a d a por o u tro s e n tre v is ta d o s , è de que

"mulher morar na c a s a do s o g r o não dà


c e r t o , p orq ue tem m uita b r i g a e n t r e o m a rid o e
o p a i ".

tienos v is iv e l, mas também p r e s e n t e n e s s e caso, é a

te n s à o e n t r e a mulher e a s o g r a d e n t r o de c a s a , em t o r n o das

pequenas d e c i s õ e s no te rritó rio d o m é s t ic o , das m a n e ir a s

d ife re n te s de f a z e r a com id a , do c u id a d o das c r i a n ç a s , etc.

Mas a te n d ê n c ia á m a trilo c a lid a d e nào pode ser

e x p lic a d a apenas a p a r t i r da i n c o m p a t i b i l i d a d e do homem com

o seu p a i . E la p re c is a ser en ca ra d a também do p on to de v i s t a

da mulher, ou s e j a , do p ap el que a mulher desempenha na

fa m ília , que ao meu ve r se c o n s t i t u i em uma c a u s a central

p ara a e s c o lh a m a trilo c a l. A a n á lis e do l u g a r e do p ap el

c e n tra liz a d o r e e stru tu ra n te ocupado p e la s m u lh e re s no

in te rio r da fa m ilia , jà fe ita acim a, dà uma dim ensão da

n e c e s s id a d e da fa m ilia de origem r e t e r as sua s m u lh e re s ,

mesmo d e p o is de c a s a d a s .

Mesmo com o f a t o do casal morar nas t e r r a s da mulher

sendo um ou tro fa to r que c o l o c a em questào a a u to rid a d e

m a s c u lin a , a casa é e n c a r a d a em geral como p r o p r i e d a d e do

homem, e le c o n s tru iu , e le d e c i d e s o b re as r e f o r m a s . Isso

c o n f ir m o u - s e p a ra mim a p a r t i r de d o i s c a s o s que e n v o lv ia m

c o n flito s en tre a mulher e o m arido ou a mulher e os filh o s .


- 58 -

e onde sempre a s o lu ç à o e n c o n t r a d a -foi a s a id a da m ulh er. No

p rim e iro caso , N o ë li, uma in f o r m a n t e do C a n to da Lagoa,

casetda e com t r è s filh o s e v iv e n d o na terra da f a m i l i a do

m a rid o , tin h a a trito s c o tid ia n o s com e s t e , que b e b ia m u ito .

V à ria s vezes e la ameaçou i r embora com os f i l h o s , a tè o d ia

em que r e s o l v e u fazer is s o , v o lta n d o para a c a sa dos p a is .

D e p o is , com os p e d i d o s e a s promessas do m a rid o , re to rn o u .

Mesmo sendo em m a i o r i a , no c a s o de uma s e p a r a ç ã o , a mulher e

05 f i l h o s foram o b r i g a d o s a s a ir de c a s a , e não o homem.

0 o u tro caso e n v o lv ia uma in f o r m a n t e id o s a , que morava

nas t e r r a s de sua p r ó p r i a fa m ilia , e seus d o is filh o s . Dona

Eudora morava com o f i l h o s o lte iro em uma c a s a e, no mesmo

terreno , morava a filh a com o m arido e os f i l h o s . Quando

ocorreu um a t r i t o com os f i l h o s , por c a u s a de um namorado de

Dona E u d o ra, e la s a iu de c a s a e f o i morar com o namorado.

Conforme as p a l a v r a s de sua f i l h a .

"a mãe f o i embora e sò l e v ô as co is a s


d e la : as p a n e l a , as g a l i n h a e as r o p a " .

As " c o i s a s da mãe", no c a s o , sào as que se re la c io n a m

com o u n i v e r s o f e m i n i n o d e n t r o da c a s a . A casa e o terreno,

mesmo sendo h e ra n ç a v in d a dos p a i s de D. E u d o ra , não fic a m

com e la , mas com os filh o s , re presen tan tes aqui da

a u to rid a d e m a s c u l in a .
- 59 -

d) 0 d o m é s tic o e o - f a m i li a r ; fo n tes de poder f e m in in o

E s sa a n á lis e s o b re a o r g a n i 2 açào f a m i 1i a r e o e sp aço

d o m é s t ic o apontam p ara a - e x i s t ê n c i a de form as p a rtic u la re s

de poder fe m in in o , em c o n tra d iç ã o com um modelo que

re c o n h e c e como l e g i t i m a apenas a a u to rid a d e m a s c u lin a . Na

medida em que se t r a t a de um poder in te rs tic ia l, su b ja ce n te

és form as le g itim a d a s s o c ia lm e n te , e le não a p a re c e no

d is c u rs o que os entjfevistados manipulam c o n s c ie n t e m e n t e , mas

nas c o n t r a d i ç ò e s e x p r e s s a s ne ss e d i s c u r s o , as r e f e r ê n c i a s ás

p a rtic u la rid a d e s de sua v id a c o tid ia n a e no n iv e l

im a g in á rio , e x p r e s s o em suas n a rra tiv a s sobre s it u a ç ò e s na

v id a fa m ilia r e s o c ia l (algumas e n v o lv e n d o a presença de

fig u ra s como a bruxa ou a f e i t i c e i r a ) .

E s s e poder fe m in in o en contra, na a n á lis e fe ita nas

p á g in a s a n t e r i o r e s , duas form as d i s t i n t a s de a f ir m a ç ã o . A

p rim e ira d e la s e s t á d e p o s it a d a no d o m é s t ic o , que a p a re c e

como um d o m in io f e m i n i n o e como p o r t a d o r de um s ig n ific a d o

ambiguo q uanto ao modo com que c o n trib u i p a ra c o n s t r u i r a

id e n tid a d e fe m in in a .

Num s e n t i d o , a p ro fu n d a id e n tific a ç ã o das m ulh eres com

as a t i v i d a d e s e as re presentações que giram em torn o do

d o m é s tic o d e t e r m in a que tan to o seu tra b a lh o como o

c o n j u n t o de suas p r á t i c a s e saberes e s te ja m mais a s so c ia d o s

a esse e sp a ço do que os homens, p o s s u in d o , d esta m aneira ,

menos m o b il id a d d e . 0 mundo f e m i n i n o a p a re c e como bastante


- 60 -

c irc u n s c rito á ca sa e seu s arredores. A tè a lg u n s anos a tràs

a m a io ria dos e s tu d o s sobre -fa m ilia e tra b a lh o -feminino

tr a b a lh a v a m essa a s s o c i a ç à o do f e m i n i n o com o d o m é s tic o como

uma f o n t e de s u b o r d in a ç ã o da m u lh er. No e n t a n t o , e s tu d o s

mais r e c e n t e s têm e n c o n t r a d o um s ig n ific a d o mais complexo

n e ss a a s so c ia ç ã o do que ser o d o m é s tic o um s i m p le s

d e p o s itá rio da c o n d iç S o de s u b o r d in a ç ã o f e m in in a .

No i n t e r i o r de uma s o c i e d a d e em que a n a tu r e n a è v is ta

como uma das mais im p o rta n te s ameaças, o d o m é s tic o , e

fu nd a m enta lm ente a casa, é, no meio onde predomina um

’ ethos' ru ra l, o espaço da c u l t u r a , ou s e ja , o e s p a ço

in t e ir a m e n te p ro d u zid o e t r a n s fo r m a d o p e l o s er humano e

impregnado de seus s ig n o s . Lug a r das p rin c ip a is

tra n sfo rm ações <dos p r o d u t o s em a l i m e n t o s , ro u p a s , m ó v e is ,

e tc .) è nesse e sp a ço que as m u lh eres passam a maior p a r t e do

tempo, vivem a sua s o c ia b ilid a d e , re a liz a m o seu tra b a lh o ,

eenquanto os homens saem p a ra tra b a lh a r na r o ç a , na mata, no

mar, ou p a rtem p a ra lu g a re s d is t a n t e s . E ne sse lu g a r que as

m u lh e re s adquirem e exercem um saber que os homens

desconhecem, mas temem e re sp e ita m . Sào as m ulheres que

dominam as t r a n s f o r m a ç õ e s m ais im p o r t a n t e s p a ra se f a z e r os

a lim e n to s e as ro u p a s , são e l a s .que conhecem as p la n ta s

c u ra tiv a s , que sabem os s e g re d o s do p a r t o e è a d ete rm in a d a s

m u lh eres (as b e n z e d e i r a s - que usam nos seus r i t u a i s ob je tos

lig a d o s ao e s p a ç o da casa) que os homens reco rrem p a ra se


- 61 -

p rotegerem ou en-frentarem s itu a ç iò e s que fogem ao seu

c o n t r o l e.

E ssa id e n t i- f ic a ç è lo do u n i v e r s o d o m é s tic o com o d o m in ió

da c u ltu ra e s ta b e le c e um con trapo n to ás c o rre la ç ò e s

e s ta b e le c id a s como r e c o r r ê n c i a s u n iv e rs a is p e lo s t e ó r ic o s de

uma a n t r o p o l o g i a do g ênero: a re la ç è lo do d o m é s t ic o com o

p r i v a d o e com a natureza, em o p o s iç ã o ao d o m in io p à b lic o ,

v is to como predom inantem ente m a s c u lin o e m ais lig a d o á

c u ltu ra (ROSALDO E LAMPHERE, 1979 e ORTNER e WHITEHEAD,

19B1).

A medida em que as m u lh e re s das g e r a ç ò e s mais novas

começam a t r a b a l h a r -fora, como a s s a i ar i ad a s, passam a ter

co n tato, ás v e z e s maior que o dos homens, com a c u l t u r a e o

modo de v i d a "modernos". M o d i f i c a —se a r e l a ç ã o com o e sp a ço

d o m é s tic o e e s t e d e ix a de s e r a fo n te e x c lu s iv a de s a b e r das

m u lh e re s . Torna-se n e ce s s á rio a n a lis a r o novo s ig n ific a d o

que a d q u i r e o d o m é s tic o n e s t a s o c ie d a d e e sua r e l a ç à o com um

p o s s iv e l d e s lo c a m e n to de um saber e um d o m in io f e m in in o

v o l t a d o p a ra a transform açào <da n a t u r e z a em c u l t u r a ) e a

p ro d u çã o , p a ra um saber e uma cosm ovisão v o lta d o s p a ra o

consumo. A a n á lis e de R i a l a p o n ta p ara a c o n s t i t u i ç S o de uma

v e rd a d e ira e sfe ra d o m é s t ic a como a lg o re ce n te nas

comunidades da Lagoa por e la e s tu d a d a s . E s s e d o m é s tic o se

c o n s titu iria a p a rtir, da c o n so lid a ç ã o de um espaço de

consumo dominado p e l a m u lh e r, cuja p rin c ip a l a tiv id a d e na

ocupação d e s s e e s p a ç o é . a decoração, ou s e j a , a impregnaçào


- 62 -

na c a sa de s i g n o s do "moderno", u n iv e rso mais dominado p e l a s

m ulheres do que p e l o s homens.

A o u tra -forma de a-firmaçcfo de um poder fe m in in o e stà

d e p o s it a d a na o r g a n i z a ç ã o -fa m ilia r. Como -foi v is to , as r e d e s

fa m ilia re s e as re la ç ò e s de p aren tesco têm um p ap el

d e s ta c a d o na r e p r o d u ç ã o da v i d a s o c ia l da comunidade e è

c e n t r a l m e n t e em t o r n o de uma ou mais f i g u r a s fe m in in a s que

os gru p os f a m i l i a r e s se mantêm u n id o s. A a u s ê n cia da màe

(quando os f i l h o s a in d a são pequenos) im p lic a na m a i o r i a dos

c a s o s ná d is s o lu ç ã o (permanente ou t e m p o r á r ia ) do g rupo

fa m ilia r, o mesmo não o c o r r e n d o no c a s o da a u s ê n cia do

homem. A in s ta la ç ã o d as novas f a m i l i a s p rio rita ria m e n te no

te rr itó rio da fa m ília da mulher està bastante

lig a d a á n e ce s s id a d e d estas r e te r e m suas m u lh e re s ,

g a ra n tin d o a s sim sua so b re v iv e n c i a fu tu ra no caso de

a u s ê n c ia da màe. Os l o n g o s p e río d o s de a u s ê n c ia do m a rid o

tornam mais e s t r e i t a s as r e l a ç õ e s da màe com os f i l h o s .

Tudo is s o fa z com que e s s a p o s iç ã o c e n t r a l ocupada

p e l a s m u lh e re s no in te rio r do grupo fa m ilia r se c o n fig u re

também em uma d as f o n t e s de poder fe m in in o .


CARxTULO e

DAS N A R R AX I AS SOBREI

AS BRUXAS
- 63 -

CAPITULO 2 - DAS NARRATIVAS SOBRE AS BRUXAS

"C>i2 que t i n h a m u ita c r i a n ç a que -ficava


embruxada. V in h a uma d e p o is de morré, que
d i z i a m que e r a f e i t i c e i r a antes, e chupava o
cèu da boca da c ria n ç a . 0 meu n e to , D a n ie l,
quando nasceu f o i embruxado, e l e fcú fic a n d o
m agrinho, m agrinho, a i a V e r ô n i c a le v o u e l e pra
b e n z è ."
(D. I d a l i n a , 72 anos, b e n z e d e ira , Canto da
Lagoa)

Procuro t r a b a lh a r as h i s t ó r i a s sobre b ru x a s e b ru x a ria

que os fiioradores n a t i v o s da Lagoa contam, níio como t e n t a t i v a

de re v iv e r um passado m itic d , nem como s o b re v iv ê n c ia

fo lc ló ric a de o u tra època, quando o s a ç o ria n o s a in d a nào

haviam form ado a comunidade, mas no modo como se r e a liz a m

h o je , en q u a n to d i s c u r s o . Foi esta a forma em que chegaram

a t è mim. Esse d is c u rs o assum iu, na voz dos e n tre v is ta d o s,

form as d i f e r e n c i a d a s , das q u a is b.b n a rra tiv a s de b ru x a ria

m ostra ram -se corrío o p la n o d is c u rs iv o m ais s i g n i f i c a t i v o .

A n te s de e n t r a r na d is cu ss ã o sobre o que sSo e s sa s

n a rra tiv a s e sobre cj que fa la m , c o n sid e ro im p o rta n te

e s c la re c e r os traços que d e lin e ia m os dados

e tn o g rá fic o s s in a lis a d o s a q u i, d e fin id o s p e lo c o n t e x t o em que

foram r e c o l h i d o s . As n a r r a t i v a s e o d i s c u r s o mais g e ra l dos

moradores sobre as b ru xa s -foram re c o lh id o s d urante a

pesquisai de campo, nas s i t u a ç õ e s de e n tre v is ta , em que os


64

in-formant.es eram^ d ire ta ou i n d i r e t a m e n t e , e s tim u la d o s p e la

p e s q u is a d o r a a -falar sobre as ■ b ru x a s . V a le d iz e r que nàfo

e s to u a p r e s e n ta n d o n a rra tiv a s - f e it a s no " in te rio r" da

c u ltu ra e captadas al - ou s e ja , nSo p rio riz e i observar

d ir e t a m e n t e s i tuaçiòes de ’ per-f ormance’ s tr ic tu se n s u , quando

a n a rra tiv a è - f e it a en tre os p ró p rio s in te g ra n te s da

comunidade, no in te rio r de um " ce n á rio ” a p ro p ria d o . A

lim ita ç ê ío do c o n t e x t o e tn o g rá fic o , no e n t a n t o , nèo im p e d iu

que se f i z e s s e m algumas g e n e r a l i z a ç õ e s quanto ao s i g n i f i c a d o

d e s sa s n a r r a t i v a s p a ra os moradores da lo c a lid a d e onde se

re a liz o u a p e s q u is a . As narrati--/as r e c o l h i d a s m o s tra ra m -s e

a lià s bastante p ro fíc u a s p a ra uma a n è lis e m ais g e ra l,

p e r m it i n d o in c lu s iv e que mesmo a lg u n s aspectos sobre as

situ a ç õ e s de p e rfo rm a n c e , que não foram d ire ta m e n te

observadas, fossem a b o rd ad o s, como os c o n t e x t o s que, de modo

d ife re n c ia d o p a ra homens e m u lh e re s , aparecem como

fa v o r à 'v e is p a ra que as n a r r a t i v a s sejam f e i t a i s .

Por o u tro la d o , o p ró p rio con texto das e n t r e v i s t a s , na

medida em que p r o p i c i o u m o tiv a ç õ e s e uma s i t u a ç ã o favorável

p ara que as n a rra tiv a s fossem fe ita s , nèíD d e ix o u de

c o n s titu ir uma s i t u a ç à o também de ’ perform ance% na qual

p e s q u is a d o r a e in f o r m a n t e s in g ressa v a m quanto se

d esencadeava um processo n a rra tiv o de uma s itu a ç à o de

b ru x a r i a.

Procura, n e s t e e no próxim o c a p i t u l o , fazer uma a n á l i s e

d*essas ' n a rra tiv a s , a p a rtir, de um la d o do processo


65

n a rra tiv o , ou s e ja , a -forma com que e la s se organizam

in t e rn a m e n t e e, de o u t r o , a p a rtir dos con teü d oE m a n if e s t o s

e s u b j a c e n t e s dèis h i s t ó r i a s con tadas.

1) 0 d is c u rs o e as n a r r a t i 'v a s

0 d is c u rs o s o b re as bru>ras n à o se a p r e s e n t a como sendo

de uma ü n i c a natureza. Oe assume form as d i f e r e n t e s , como os

q u a t r o dep oim en to s d e s c r i t o s a s e g u ir. Nos d o i s p rim e iro s

e>;emplo, -temos o d is c u rs o mais g e r a l sobre as b ru x a s ou

s o b re as n a rra tiv a s de brux ar i a j nos o u tro s , as n a rra tiv a s

p r o p r ia m e n t e d ita is , h is tó ria s co n ta n d o situ a ç lb e s

p a rtic u la re s de b r u x a r i a e en volv en d o p e s s o a s da comunidade.

1) "Antes t i n h a muita b ru xa que andava por


a i . D e p o is que o sol b a ix a v a , e la s vira va m
b ru x a e se e n c o n t r a v a m .. . Entravam d e n t r o das
casas onde tin h a c ria n ç a pequena, p e la
fe c h a d u r a da p orta, e atacavam as c ria n ç a ,
chupando o cfeu da boca. D e p o is iam embora e
deixavam a l i a c r i a n ç a em b ru x a d a ." (D. N e l i , 47
anos. Lagoa)

2) " H i s t ó r i a s o b re b ru x a , tem m u ita s . Os


mais v e l h o s è que sabem m ais. A minha màe
c o n ta v a m u it a s h is tó ria s que a c on teciam no
tempo d e l a . E la d iz ia que a b ru xa pode se
tr a n s fo r m è em mosca pra e n t r è p e l a fe c h a d u ra na
casí-i. Por i s s o e l a sempre d e ix a v a a chave assim
t o r c i d a na fe c h a d u r a , pra nào d e ix è a bruxa
entrèi. As h i s t ó r i a s que eu s e i , fo i e la que
c o n t ó . " (D. B ra n ca , 51 anos, C a n to da Lagoa)

3) "Um pescador e n c o n t ra v a t o d o s os d ia s
pelcK manhà uma flo r dentro da canoa.
D e s c o n f ia d o , uma n o i t e se escondeu d e n tro de,
embarcação, d e b a ix o do beinco, num lu g a r que
ninguém podici 'vè. E l e e s p e r ó ,atè que chegaram
í> ò

urnafi m ulheres que en tra ra m na canoa e s a iram a


navegcA- Uma d e la s d i z i a : ’ c a tin g a de sangue
r e a l ’ , e o u t r a r e s p o n d i a : ’ que nada, comadre, fe
t u que bebeu m u ito s a n g u e ’ . ’ Nào s e i, nào,
c a tin g a de sangue re a l’ . Ai e la s -foram
navegando atfe o u t r o l u g a r . Nèo sei q u a l, mas
vamo d i z ê as sim , que se e l a s tavam no C an to ,
-foram a t è a B a r r a . Là, enquanto e l a s sa íra m da
canoa e -foram das uma -v olta, o p escad o r s a i u e
c o lh e u uma - f lo r , i g u a l ás que e n c o n t ra v a sempre
na sua canoa, e escondeu--se novaimente, sem as
b ru x a s verem. No o u t r o d i a , e l e e n c o n tro u uma
das m ulh eres que ta-v-am na canoa, mostrou a -flor
e p e rg u ntou se e l a c o n h e c i a . E l a d i s s e que sim,
E l e enteio d i s s e ; • '’ c l a r o , è uma -flo r l á dst B a r r a
onde t u e s tiv e s 'te ontem á n o ite .’ A la e la
fa lo u , surpresa: ’ Entíío eras tu que tava
e s c o n d id o na canoa nos e s p ia n d o ’ . E ameaçou;
’ Nao f a l e nada s o b re i s s o , nem que nos v iu ,
senïSo a g e n te v o lta e te mata. ’ " <D. B ra nca ,
51, Canto)

4) "0 meu s o b r i n h o , f i l h o da minha irm à ,


também ( f o i em bruxado). E le f o i fic a n d o assim
(mostra o dedo i n d i c a d o r d o b ra d o )... E le era
assim e f i c o u pequeno a s s im . A minha irmS le v o u
e l e numa p reta, a E>ona E v i r g e s , l à no ou tro
la d o do B a d e jo , p r a s banda do R i o T a v a re s . E la
d i s s e que e r a bruxa que t i n h a embruxado e le .
Benzeu e d i s s e p r a minha irm ã que e ra pra banhá
nove v e z e s com e r v a s na àgua. Se e l e p a ss a s s e
do q u a r t o banho, i a v i v é . lias e la fic o u com
medo de banhà e l e , de t à o f r a q u i n h o que tava.
Chamou a Dona Ri t i n h a (b e n z e d e ir a ) que era mais
co ra ju d a . E la v e io , fe rv e u as e r v a s e botou
j u n t o com a ègua na gamei a. La-vou e jogou a
àgua do banho na ègua c o r r e n t e p ro mar, e d i s s e
as pala-vras que e l a s a b i a bem, enquanto jo g a va
a água f o r a . E r e p e t i u o banho e mais um, atè
que e l a deu o q u a r to e o menino vi--/eu, A minha
irmá f i c o u com medo de maá s banho, porque e^le
t a v a m uito f r a q u i n h o , mas a dona Ri t in h a ra lé :
’ se a comadre E v i r g e s d i s s e que se passa sse do
q u a r to banho e l e i a vi-vè, e n tá o e l e vai -•/ivé. E
d e p o i s , vamo d e ix à na máo de Deus e t e r f è ’ . Ai
e l a deu os nove b a n h o . ” (D. Eudora, 54 anos,
C an to da Lagoa)
67

Esses quatro d ep o im en to s re presen tam formas

d i - f e r e n t e s de se ta la r nas bruxas. Os d o is p rim e iro s S c io

d is c u rs o s nfeo-narra t i v o s , sendo o p rim e iro um d is c u rs o

g e n é r ic o s o b re as b r u x a s , no qued a in f o r m a n t e e x p lic a como

e la s agem, de que -forma se c o n s t i t u e m numa ameaça p a ra os

n a tiv o s la g o e n s e s . 0 segundo è um d is c u rs o s o b re as

n a rra tiv a s , um d is c u rs o i n t r o d u t õ r i o, onde a in-formante

tenta lo c a liz a r o con texto tem poral das h is tó ria s de

b ru x a ria e ju s ti-fic a r sua p o s i ç à o d i a n t e da h i s t ó r i a que va i

con tar. Os d o is ú ltim o s d epoim entos d is tin g u e m -s e dos

p r i m e i r o s por se c o n s t i t u í r e m em n arrati vas’ s o b re b ru x a s ,

ou s e ja , uma forma de d is c u rs o de caráter fig u ra tiv o

(GREIMAS e COURTES, s/d), onde são contsidas h is tó ria s ,

e n v o lv e n d o p ers o n a g en s e c o n s tru íd a s a p a rtir de um

encadeamento de a ç óes, com in íc io , meio e fim . Mas as

n a rra tiv a s tambfem se d i f e r e n c i a m dos d i s c u r s o s a n te rio re s

por possuírem um n ú c le o dramâitico em t o r n o do qual a c o n te c e

o re la to e se reúnem os p r o t a g o n i s t a s : as b ru x a s e o

pescador ou a b ru x a , a c ria n ç a embruxada, a irmà da

in form a n te (mSe da c ria n ç a ) e a b e n z e d e ira . 0 d is cu rs o

n S o - n a r r a t i vo, ou e x p o s itiv o , s o b re as b ru x a s p ro c u ra

e x p lic a r e a rtic u la r os elem entos c o n tid o s de forma

fragm entada e d isp e rsa no i n t e r i o r das narrati--/as. Alèm

d is s o , e le também s e r v e p a ra in d ic a r ou j u s t i f i c a r a p o s iç á o

do in f o r m a n t e em re la ç è o a estas. E le s in te tiz a de uma

m aneira mais o rg a n iza d a a cosm olo g ia s o b re as bruxas


68

c o n tid a nas n a rra tiv a s . Esse p la n o mais e x p o s itiv o ou

e x p lic a tiv o do d is c u rs o também pode esta r p resen te nas

n a rra tiv a s , mas o que as demarca è a e x i s t ê n c i a do drama. E

p rio rita ria m e n te em torno das n a rra tiv a s que se constrói

e ste t ra b a lh o , não apenas p orque e la s sào o p i 'ò p r i o ob je to

do d i s c u r s o sobre as b r u x a s , inas também piorque, como veremos

p o s te rio rm e n te , re ve la m s ig n ific a d o s su b ja ce n te s ao

im a g in á rio e ás s im b o liz a ç t o e s dos n a t i v o s sobre as b ru x a s

quB nào e stà o presen tes no seu d is cu rs o c o n s c ie n te m e n te

m anipulado.

2) Os e le m e n to s comuns das n a r r a t i v a s

As n a r r a t i v a s s o b re as b ru x a s podem s e r tomadas como

variaçròes de algumas poucas h is tó ria s que sào sempre

recontadas. Os n ü c le o s d r a m á t ic o s e a e stru tu ra geral que

s e r v e como b ase das n a r r a t i v a s se mantêm, mudam os lu g a re s,

os p ro ta g o n is ta s , o momento e a lg u n s d e ta lh e s ,

s ig n ific a tiv o s , mas que em geral nào chegam a a lte ra r a

e s -tru tu ra comum r e c o r r e n t e , a n^o s e r quanto ao d e s fe c h o ,

que pode mudar de uma h i s t ó r i a p a ra o u t r a . As h is tó ria s

c o n stru íd a s em torn o dr> me<=^mn rtraims sào extremeimente

s e m e lh a n te s e n t r e s i, dando a im pressão que sào to d a s a

mesma h i s t ó r i a . Como se os n a r r a d o r e s se a p r o p r ia s s e m de uns

poucos e v e n t o s que se repetem de um morador p a r a ou tro, com

algumas v a r i a ç õ e s .
Ó9

0 tema m ais comum nas n a r r a t i v a s è o da c ria n ç a

recfem-nasci da que è a ta c a d a por uma bru>:a e começa a

apresen tar s in to m a s de embruxamento: emagrece, p à ra de se

a lim e n ta r, c h o ra o tempo to d o , tem manchas ro>;as no cè?u da

boca. E sse mesmo drama p o s s u i inúmeras v a r ia ç to e s , sendo que

Cl m a io r i a dos e n tre v is ta d a s tin h a alguma h is tó ria de

embruxamento p a ra c o n t a r , e n v o lv e n d o p e s so a s c o n h e c id a s ou,

d ire ta ou i n d i r e t a m e n t e , e le p ró p rio . As v a r i a ç ò e s e x is t e m

em torno do a p a re c im e n to dos s in t o m a s , da tra je tó ria

te ra p ê u tic a p e rc o rrid a p e l a . màe de c ria n ç a , da b e n z e d e ira

p ro c u ra d a e o ritu a l r e a liz a d o p a ra o desembruxamento. E

algumas v a ria ç ò e s podem também ocorrer no s e n tid o de

in c o rp o ra r e le m e n to s de o u t r a s c u ltu ra s , num processo de

s in c re tis m o , como i l u s t r a a s e g u in te h is tó ria :

"O - f ilh o d€i L in d a adoeceu, e l e c h o r a v a o


d i a to d o e jà nèo c o n s e g u ia mais comê. Uma
b e n z e d e i r a d i s s e que e l e t a v a embruxado. Um d i a
v e io aqui em c a sa uma amiga, e la era
u m b a n d is ta , sa b e s? F o i a t è a cas.a da L i n d a e
f e s uns •■
’ t r a b a lh o s " p ra desembruxci: b o t ô uma
t e s o u r a a b e r t a e uma cu eca do p a i com uma pern a
v ir a d a embaixo do tra v e s s e iro . Como nada
a d i a n t o u , levaram a c r i a n ç a no médico, que v iu
qüe a c ria n ç a tin h a era um problem a no
estômago". (D- Branca., 54 anos, Canto da Lagoa)

Nessa h i s t ó r i a , alèm de a p a re c e r uma f i g u r a da umbanda,

no f i n a l da h i s t ó r i a q u e s tio n a -se a e x i s t ê n c i a da b ru x a ria ,

a p a rtir de um d is g n ó s tic o " c ie n tific o -“ da doença da

c r i anca.
70

Uma d i- fe r e n ç s -fundamental nas n a r r a t i v a s è quanto ao

seu d e sfech o . Em uma parte das h is tó ria s , a c ria n ç a

s o b r e v iv e ao embruxamento grcíças á açèo da b e n z e d e i r a e da

mae, ao passo que, em o u t r a s , a c ria n ç a acaba morrendo,

r e a f i rmando-se a ameaça e o p e r i g o que r e p r e s e n t a a bru;:e.

0 roubo da canoa do p e s c a d o r p e la s b ru x a s d u r a n t e a

n o ite è o u tro tema r e c o r r e n t e nas n a r r a t i v a s . Como na trama

a n te rio r, tambfem este mesmo drama pode ter, alèm de

v a ria çõ e s no d e s e n v o lv im e n t o da h is tó ria , d e s e n la c e s

d ife r e n te s . Os s i g n o s que in d ic a m a p re s e n ç a das b ru x a s sào

d ife re n te s da f l o r que a p a re c e na n a r r a t i v a d e s c rita antes.

Em a lg u n s re la to s , sào os restos de a r e i a que geram a

d e s c o n fia n ç a no pescador, em ou tros è uma p l a n t a que sò

nasce na í n d i a , etc. Em algumas h i s t ó r i a s , o pescador, ao

in v iís de esconder-se no in te rio r da embarcaçèío, fic a

e s p re ita n d o de d e n t r o do ra n c h o (galpMo onde sào g ua rdad a s

as embarcaçõ63s) da canoa e d e s c o n h e c e o que fazem as b ru x a s

quando navegam p a ra o u t r o s lu g a re s . Também o d e s f e c h o pode

tomar o u t r o s e n tid o . Se na h i s t ó r i a n a r ra d a a n te s a trama

te rm in a com uma ameaça da b ru x a fe ita ao p e s c a d o r, ao qual

sò r e s t a re s ig n a r-s e d ia n te do poder da b ru xa, em ou tros

re la to s , a descoberta das b ru x a s p e lo p escad o r e sua

i denti f i c a ç S o com mulheres c o n h e c id a s moradores do lu g a r ,

fa z com que o e n c a n to se queb re e e la s nào se transform eni

mais em b r u x a s . Ou s e j a , a firm a -s e , neste? c a s o , ao c o n t r á r i o

da h i s t ó r i a a n te rio r, a p o siçâ o de poder do p e s c ad o r.


■/1

Alèm d e s s a s , e x is te m ou tras tra m a s que dâo origem a

versòes p a r t i c u l a r e s , como a apariçè^o de uma ou mais bru xa s

p a ra ‘‘a s s u s t a r os p a s s a n t e s durante a n o ite " , como e le s

costumam d is e r. Em g e ra l, a bruxa a p a re c e em lo c a is

d is ta n te s do t e r r i t ó r i o d o m é s t ic o e mais lig a d o s aos e s p a ç o s

de t r a b a l h o m a s c u lin o , como a mata, a p ra ia , as p e d ra s , o

mar, e mesmo a e s t r a d a , que, apiesar de s e r um l o c a l ocupado

tambfem p e l a s m ulh eres d u r a n t e o d ia , é n o ite sò è p e r m it i d o

aos homens. Um exemplo de uma n a r r s s t iv a t e c i d a em torn o

d essa trama da apariçèío r e p ie n tin a das b ru x a s è d e s c r i t a a

s eg ui r .

"E le s tavam embarcados l è p ro s la d o da


B a rra, tentando c e r c è uni cardume. F o i quando
começaram a o u v i r umas r i s a d a e uns g r i t o s de
m ulher. No p r i n c i p i o , acharam que não e ra nada,
mas d e p o i s v ir a m umas garças nas p e d ra s e
perceberam que o ru id o v in h a d a l i . Foram se
aproximando e a i d e s c o b r ir a m . Eram as bru xas
que tavam 1à, a s s u s t a n d o os p e s c a d o r e buscando
a t r a p a l h è o t r a b a l h o d e l e s . " (D. Ondina, lo c a l
de m oradia d e s c o n h e c id o )

Esta, assim como as o u t r a s n a rra tiv a s ,

c o m p o rta -s e da mesma -forma que a q u e la s n a r r a t i v a s d e s c rita s

e a n a lis a d a s por V ic to r T u rn e r (1981) como "dramas s o c i a i s " .

D drama s i g n i- f ic a uma "quebra de norma", um momento de

" v ira d a nas r e l a ç ò e s e n t r e os componentes do campo s o c ia l"

(p. 14Ò). No mesmo s e n t i d o , i:ambém nits n a r r a t i v a s sob re as

b ru x a s o c o r r e uma i n v e r s S o das regras. A p r e s e n ç a da bruxa

in s ta u ra uma s itu a ç ã o de desordem na es-fera s o c ia l, ao


i (np 1 j c a r , c o nic;:> v e r e cno b p o s t. e r i o r nie n t e , n u.ma i n v e;r í;>à‘o n

organização sim b ólica dos dom inios - fe m i n i n o E e m asculinos. D

advent . 0 da d es o r d e m , a p a rtir de urna s i t u a ç ã o de e q u ilíb rio

anterior, fe o -Toco de t o d a s as n a r r £it i vasi. A des ord em sò fe

percebida enquanto tal porqut^ e x istia uma situ ação de

e q u ilib rio anterior, mas e s s e contexto de e qu ilrlb rio nào

està sempre p r e s e n t e de -forma e x p l i c i t a . Ele è indicado pelo

desenrolar dès t r a m a .

Alèm da e x i s t ê n c i a de um "drama" que serve como centro

das n a rra tiva s, construido em torno de uíTia situ açào de

d e s e q u i 1 ibrio.-, as n arra tivas possuem ainda em comium uma

estrutura que v a i alèm da mera . s u c e s s ã o de açòes no sen tido

de um i n i c i o ^ me io e tim. Para Todoro'v ( 1 9 81 ) , o que de-fine

uma n a r r a t i v a não è a mera r e l a ç ã o de sucessão entre unidade

(fato, estado ou açãio) e outra, mas e s s e n c i a l m e n t e a relaçào

ds trans-formação entre ela s. Este è, para e le , o p rin cípio

básico da n arra tiva, que e le encontra ao refazer a

traj€?tòria de P r o p p (1984) em sua an á lise das funçòes na

s e qu ' è n c i a de um conto de f a d a s tra d icio n a l. Foi em P ropp,

debruçado sobre os contos mara-vi 1h o s o s , que se originou uma

reflexão sobre a organização narrat.i'va dos dicursos,__„ Ao

d ecompor os contos em f e i x e s gerais que chamiou de funções,

cada uiTi i n d i c a n d o um e s t a d o ou ação d i f e r e n t e s , ele busca-va

r e g u l ar i dades, formas u ni ■'.'ersai s dess-a organização

n a rra tiva , o que seriam as "le is da construção do conto".

Todorov, baseado em Propp, re la tiv izo u o caráter dessas


Io-

•funçòes B r e s u m iu - a s em apenas c in c o , que, p ara e le ,

s in te tiz a m o esquema s e q u e n c ia l de uma das n a rra tiv a s

a n a lis a d a s por P ro p p , "Les O i e s - c y g n e s " ,

1. A s i t u a ç S o de e q u ilíb rio in ic ia l

2. A degradação da Bituaiç'âo

3. 0 e s t a d o de d e s e q u i l í b r i o

4. A p rocura e a descoberta

5. 0 re sta b e le cim e n to do e q u i l í b r i o in ic ia l

As p a r t e s d esse esquema podem mudar, da mesma forma

como o nárnero de u n id a d e s , mas e l e serve p a ra dem onstrar o

e n u n c ia d o cen tral de Todorov em re la ç à a a "o que f a z uma

narra tiv a " . Pa ra e le , o e lo e s s e n c ia l da n a r r a t i v a è a

mudançct, in s ta la d a p e lo " d e s e n v o lv im e n to de uma a ç S o " . Essa

mudança a c o n t e c e na passagem da s itu a ç S o 1 p a ra a s itu a ç ã o

2, da 2 p a ra a 3, e assim por d i a n t e . A s e q u ê n c ia pensada

por T u rn e r (p. 145), em sua d e f i n i ç ã o de drama s o c i a l nè'o

d e ix a de i r no mesmo s e n t i d o . Para e l e , o drama è composto

de q u a t r o fa se s: rompimento <’ b r e a c h ’ ), c ris e ( 'c r is is ') ,

reparação ( - 'r e d r e s s ’ ) e re in te g ra ç ã o ou r e c o n h e c im e n t o do

cism a (•’ r e i n t e g r a t i on or re c o g n itio n of s c h is m " ) . A re la ç è o

e n t r e uma f a s e e ou tra vai etl èm da mera s u c e s s ã o de fa to s,

mas i n c o r p o r a o p rin c ip io da t r a n s fo r m a ç ã o ou mudança de

e stad o p r o p o s t o por Todorov.

Esse p r i n c i p i o de o r g a n iz a ç ã o s in ta g m è tic a do d is cu rs o

d r a m á t ic o pode ser ob s e rv a d o também nas n a rra tiv a s de


74

b ru x a ria dos n a t i v o s la g o en se s. 0 encadeamento das açrões nào

sò obedece ao p rin c ip io da mudança, como pode se re v e s tir

dos d o i s tip o s de o r g a n iz a ç ã o da n a rra tiv a p ropostos por

T od orov: a sucessào p e la negaçào - em que um e s ta d o ou açào

è? s u b s t i t u í d o ptelo seu c o n t r á r i o (c ria n ça s a d ia -- c ria n ç a

doen te): e a sucessàcj d e - fin id a a p a rtir de uma r e l a ç à o de



’ modo’ ou e n tre -’ i n t e n ç ã o e r e a liz a ç ã o ’ - onde "a

im p ort'â n cia do a c o n te c im e n to è menor que a p e rc e p ç ã o que

temos d e le " (TODOROV, 1 9 8 1 :7 1 ). 0 que de-fine esse segundo

tip o È a abertura de uma " o p o r t u n id a d e paira uma p r o c u r a de

c o n h e c im e n to " . Quando, por exemplo, o pescadc:>r v# to d o s os

d ia s uma -flo r no fundo da cano a, e le ig n o ra as c a u s a s , mas,

d e s c o n fia d o , p r o c u r a des^vendà-1 ais. E o que f a s com e l e se

esconda na embarcação d u r a n te a n o ite . Todcjro^v dá á p r i m e i r a

forma de o rg a n iza ç ã o da n a rra tiv a , em que pre^valece a

re la ç ã o de negação, o nome de ’ m ito ló g ic a ’ , e ao s e g u n d o ,,

em que predom ina a busca do c o n h e c im e n to , cham.a de

’ ep i st^èmi c a ’ . Como •veremos a s e g u ir, alèm de possuíre m em

comum a presença de um drama que age como centro das

n a rra tiv a s , a sucessão dos a c o n t e c im e n t o s obedece t a n t o a

uma r e l a ç ã o de negação, quanto de ’ in te n ç ã o ’ (17). Ou se ja ,

usando os modos o r g a n i z a t i ’vos p r o p o s t o s por Todorov, tan to o

caráter m ito ló g ic o , quanto o e p is tê m ic o e stã o p resen tes na

d e fin iç ã o d as n a rra tiv a s , na medida em que essas duas

form as de s u c e s s ã o d efinem o d is c u rs o n a rra tiv o s o b re as

b ru x a s (18).
75

0 que in a u g u r a as n a r r a t i v a s é a presença de s i g n o s que

podem i n d i c a r uma s i t u a ç S o de d e s e q u ilíb rio nào to r n a d a

e x p lic ita no momento i n i c i a l . Assim , a h is tó ria da canoa

ro ub ad a começa com a descon-f i ança do p e s c ad o r gera d a p e la

p re s e n ç a de uma -flo r (ou de uma p la n ta , ou de r e s t o s de

a re ia ) no -fundo da embarcação. A da c r i a n ç a que f o i v itim a

de embruxamento i n i c i a com os s in t o m a s que in d ic a m que e la

està d o e n te : o em agrecim ento, a recu sa da amamentação, o

choro, as manchas r o x a s no cèu da b o c a . Da mesma -forma, a

a p a riç à a da b ru xa p ara os p e s c a d o r e s è a n u n c ia d a p e la s

ris a d a s e g rito s que e le s , in ic ia lm e n te , nâo conseguem

i d en t i -f i c a r .

Isso s ig n i-fic a que a in s ta la ç S o da desordem,

e s ta b e le ce n d o uma negaçào do con 'tex to a n te rio r de

e q u ilíb rio , jà in a u g u r a uma s i t u a ç l í o de d u v id a e de buscíi do

desvendamento da -trama. As duas fo rm as de sucessèlo dos

a c o n t e c im e n t o s (por negaçSo e p e la d ú v id a que remete á

procura ou. a in te n ç ã o que le v a á ação) en co n tra m -s e

sob repo stas nas n a r r a t i v a s , como se pode v e r p e lo quadro da

p á g in a s e g u in te .
/o

ORDEM

1. Os s in t o m a s de 1 . Uma -f 1or ou
DESORDEM / doença na c r i anç a . r e?stos de a r e i a
DESCONFIANCA Pl cl C Cl Pj (lí CÍ n

DESCONHECIMENTO 2. A màe quer 2. 0 p e s c a d o r quer


DAS CAUSAS / c u r a r a c r i ança d e s c o b r i r o que e s t à
INTENÇAG DE e de-fine uma a c o n te c e n d o . Esconde
SABER tra j etòri a se na canoa.
te ra p è u .ti c£i.

ío p o s i çào)

AÇfiO - 3. A mèe l e v a a 0 fjescador v é as


CONHECIMENTO c ria n ç a á m ulheres e n tr a n d o na
DAS CAUSAS b e n z e d e ir a e e s t a canoa e d e s c o b r e que
d e s c o b re que e l a sào as b r u x a s que
e s t à embruxada. roubam a canoa.

INTENÇÃO E 4» A b e n z e d e ir a 4„ 0 p e s c ad o r
REALIZAÇÃO DA benze e prescre-ve navega com as
ACSO PARA um t r a t a m e n t o . b ru x a s e apanha uma
A CURA f l o r como p ro v a que
as v i u .

RESTABELECIMENTO 5. 0 t r a t a m e n t o 5. 0 p e s c a d o r mostra
DA ORDEM •funciona. A c r i a n ç a a -flo r p a ra uma das
OU fe c u r a d a . m ulheres que eram
RECONHECIMENTO b ru x a s e è ameaçado
DA DERROTA de morte.
E sse quadro demonstra que, mesmo as n a r r a t i v a s cu jo s

"dramas" c e n tra is sào d i- f e r e n t e s e onde o c o n -flito com a

bruxa tem s ig n ific a d o s d is tin to s (como veremos a d ia n te )

possem uma -forma comum de o rg a n iza r suas açòes: em ambas a

s e q u ê n cia n a r r a t i v a a c o n t e c e de a c o rd o com um movimento de

mudanç-a que combina r e la ç ò e s , de op osiçèio (negaç'âo) e de

i ntenç:ào-r e a l i z açèíD ( p ro c u ra do c o n h e c im e n t o ) . A ordem e o

número de u n id a d e s do esquema n a r r a t i v o pode mudar, se

-formos a n a l i s a r o c ic lo de o u t r a s nar r a t i -vas, mas e s s a s duas

formas de s u c e s s à o dos a c o n te c im e n to s e starào p resen tes.

Nos d o i s casos d e s c r it o s acima, a o p o s iç à o a c o n t e c e de

modo v is iv e l e n tre ordem/desordem (a doença ou a

d e s o r g a n iz a ç ã o no e sp a ço de tra b a lh o masculino),^

d e s c o n h e c im e n to / c o n h e c im e n to das c a u s a s (do desordem). lias

hà o p o s i ç ò e s su b ja ce n te s, p r e s e n t e s no p la n o do c o n te ú d o ,

que podem r e v e l a r di-ferençias e n t r e as duas n a r r a t i v a s : bruxa

X b e n z e d e ir a — bruxa X pescador, ordem/desordem no

te rritó rio -feminino (doença) - ordem/desor dem no te rr itó rio

m a s c u lin o (roubo dos in s t r u m e n t o s de t r a b a l h o ) . A re ia ç à o de

in te n ç a õ -re a liz a ç à o se e n c o n t ra por exemplo quando os

s in to m a s levam á descon-f i a n ç e , quando o d e s c o n h e c im e n to das

c a u s a s g e ra uma n e c e s s id a d e de saber, quando a in t e n ÿ à o de

saber le v a à açào. Ou quando há, por parte da b e n z e d e i r a , a

intençrào de c u r a r e a re a liz a ç è o da c u r a , a t r a v é s das r e z a s ,

benzeduras, banhos de e r v a , etc.


78

Tambfem a p a r t i r de uma re le itu ra de Propp, Breim as e

Courtfes (s/d) destacam a im p o rtâ n c ia do reconhieci mento de

uma " e s t r u t u r a p o lê m ic a su b ja ce n te ao c o n to m a r a v ilh o s o "

(pg. 299), Os c o n t o s t e r ia m a s sim d o is percursos n a rra tiv o s

sob repo sto s; a v is iv e l h is tó ria do h e r ò i e a h is tó ria o c u lta

do v i l ã o , o percu rso do s u j e i t o e do a n t i - s u j e i t o , que rumam

sempre em d ire ç ó e s opostas. Essa "e stru tu ra p o lê m ic a " se?

r e a liz a nas n a r r a t i v a s i de b ru x a ria a n a lis a d a s atra vé s da

p re s e n ç a do d u a lis m o e n t r e a b ru x a e sua v í t i m a ou e n t r e a

b ru x a , encarnsiçào de um poder ne-fasto, e a b enzedeira,,

representante de um poder b e n é fic o . Uma re fle x ã o s o b re o

s ig n ific a d o da p re s e n ç a d es se co n fro n to torna-se re le v a n te

na medida em que se pense a n a r r a t i v a tamtafem como uma forma

de c o n t a r a r e a lid a d e , ou de f a l a r s o b re íilgum p la n o da v i d a

s o c ia l não m a n i f e s t o em o u tro s n ív e is do d is c u rs o . Esse

c o n flito , no e n t a n t o , se t o r n a r á mais c o m p re e n s ív e l quando

a n a lis a d o a p a rtir das d i f e r e n ç a s das n a r r a t i v a s conforme

mudem os s u j e i t o s atu a n te s. Veremos que, mudando o narrador

da h i s t ó r i a , nào sò os s u j e i t o s a t u a n t e s mudam, como também

as n a r r a t i v a s se revestem de s i g n i f i c a d o s d ife re n te s .
- 79 -

g) As d i f e r e n t a s nas n a r r a t i v a s con-forme
n a r r a d o r e s e p r o t agoni stcis

O b s e r v e i, nas n a r r a t i v a s que r e c o l h i d urante a p e s q u is a

de campo, que e x i s t e em g e r a l uma i d e n t i f i c a ç ã o en tre o

s u je ito narrador da h i s t ó r i a e o s u je ito p ro ta g o n is ta -

a q u e le que? se c o l o t a como a l v o de uma bruxa- As m ulh eres em

geral contam n a r r a t i v a s s o b r e embruxamento de; crií^ nças e,

mesmo ncio sendo e l a s a v itim a d ire ta da bruxa, são um dos

s u je ito s a tu an tes e seu e n v o lv im e n t o com e s s a s n a rra tiv a s è

maior que o dos homens.

P e la a n á lis e dos r e l a t o s , percebe-se ser recorrente a

noçào de que uma mulher nào é atacad a por un'ia bru xa

d ir e t a m e n t e , e la nèlo s o f r e as c o n s e q u ê n c ia s de uma açào de

b ru x a ria . Seu p ap el em uma s itu a ç à o de embru.xamente è de

p o d e r: ou e l a ib a b ru x a , ou è a m u lh e r, p róxim a da v itim a ,

que v a i encontrar m eios p a ra a g ir em r e i açcfo á b r u x a r i a e

id e n tific a r a b ru x a , ou fe a b e n z e d e ria , a è n ic a capaz de

en fre n ta r a b ru xa e proteger as v itim a s , 0 exemplo a b a ix o

c o n s titu i uma e x c e ç à o , na medida em que r e l a t a uma s itu a ç S io

em que uma m ulher se a s s u s t a com a a p a r i ç à o de uma b ru xa.

" A l i , onde t à a minha casa, t in h a uma


f i g u e i r a a n t e s . Eu um d i a , quando era mocinha,
vin h a v o lt a n d o do b a i l e , l è da F r e g u e s i a , de
n o ite . Quando c h eg u ei perto da fig u e ira ,
e n x e rg u e i uma c o i s a b r a n c a , a s s im , s u b in d o . Ai
f o i p ern a p ra que t e quero p r a d e n t r o de c a s a " ,
í R i t a , 34 anos, C an to da Lagoa)
- 80 -

E uma e x c e ç ã o que não nega a r e g r a , p o is , como se pode

ver, e la p a s s a v a na es>trada d u r a n t e a n o ite , uma s i t u a ç ã o e

um esfjaço t i p i c a m e n t e dos homens. A estrad a durante a n o ite

è um te rr itó rio p ro ib id o és m u lh e re s . Sò as b ru x a s e as

b e n z e d e ira s saem á n o i t e s o z in h a s .

Os homens e êis c ria n ç a s , de m a n e ira s d i- f e r e n t e s , são

v u ln e rã v e is é b ru x a .

As n a r r a t i v a s in d ic a m que são as c r i a n ç a s as p r i n c i p a i s

v i t i m a s e as que sofrem as c o n s e q u ê n c ia s mais g r a v e s , na

medida em que um embruxamento pode f a z e r uma c r i a n ç a adoecer

ou a t è m o r re r. A c ria n ç a è v is ta como mais f - à g i l e, nessa

medida, mais s u s c e t í v e l é b ru x a , atè a id a d e de s e i s ou s e t e

anos (19). A-.è e s s e momento, a c ria n ç a è c o n sid e ra d a quase

uma e x te n s ã o da mãe, não è uma p esso a c o m p le t a . Alèm d is s o ,

fe a mãe a r e s p o n s à ’v el p e lo bem e s t a r da c r i a n ç a e de quase

tu d o o que d i g a re s p e ito ao t e r r i t ó r i o d o m é s tic o e f a m i l i a r .

Uma c r i a n ç a d o e n te s i g n i f i c a uma desordem ne sse te rr itó rio

de re s p o n s a b ilid a d e fem in in a . Ou se ja , d iz e r que um

re c è m - n a s c i do f o i atacsido por uma bruxa è d iz e r, na v e rd a d e ,

que o a l v o do sitaque è a mãe. Na l ó g i c a das h is tó ria s

con tadas, a tin g ir a c ria n ç a è uma m aneira in d ir e ta de

a tin g ir a mãe.

Os n a r r a d o r e s m a s c u lin o s tendem a c o n t a r h is tó ria s em

que OB s u j e i t o s p r o t a g o n i s t á s são também homens. No c a s o , ao

c o n trá rio d as m u lh eres, e le s p ró p rio s são o a l v o d i r e t o das

bruxas, quando tém seus in s t r u m e n t o s de tra b a lh o roubados


- 81 -

ou quando encontram b ru x a s na mata ou na e s t r a d a d u r a n te a

n o ite , ou na praie-i, nas p e d r a s , quando estião "em barcados".

E s sa t e n d ê n c i a a uma i dent i-f i ca ç cio de g ên e ro en tre

narrador e pr o t a g o n i í^t a da n a r r a t i v a nèio impede, no e n t a n t o ,

que m ulheres contem h is tó ria s e n v o lv e n d o homens ou o

c o n trá rio . Os in f o r m a n t e s conheciam um número e uma

v a r ie d a d e de h i s t ó r i a s com as q u a i s possuíam e n v o lv im e n t o s

d ife re n te s , m u it a s das q u a is sem e s s a id e n tid a d e com o

s u je ito da tram a . lias mesmo ne ss e momento a d ife re n ç a de

narrador le v o u a uma d i s i : i n ç â o também no pilano da n s i r r a t i v a .

Wa h i s t ó r i a tra n s c rita a n t e r i o r mente s o b r e o roubo da canoa

p e la s bruxas, c o n ta d a por umai m u lh er, o nome do l o c a l onde o

pescad o r se escond e na canoa, ou o l u g a r onde vào as b ru x a s

n^o é d e f i n i d o de forma c la ra . E um d e ta lh e im p o r t a n t e è

o m i t i d o n e ss a h i s t ó r i a n a r r a d a por uma m ulher: o fa to das

b ru x a s se d e s p ire m a n t e s de e n tra re m na canoa, um fa to

central nas n a r r a t i v a s c o n ta d a s p e l o s homens em t o r n o d essa

mesma tram a. E s sa omissSo muda o p ró p rio s ig n ific a d o da

n a rra tiv a , o m i t in d o o c a r á t e r p ro m isc u o do e n c o n t r o e n t r e as

b ru x a s , p resen te quando o n a r r a d o r è um homem. Alèm d is s o ,

no f i n a l da h i s t ó r i a n a r ra d a p e l a m u lh e r, as bruxas acabam

r e a f ir m a n d o seu p o d e r, ameaçando o p e s c a d o r , ao p asso que,

quando è um homem que c o n ta a h is tó ria , è o pescador que s a i

v ito r io s o , ao q u eb ra r o e n ca n to das b ru x a s com seu o lh a r,

como veremos no f i n a l d este c a p í t u l o .


- 82 -

T a n to quanto o narrador, o íju je ito p ro ta g o n is ta fe

deterrninante? nas d i f e r e n ç a s que assumem as n a r r a t i v a s . Ob

esquemas comuns en tre as n a rra tiv a s , d e s c rito s

a n te rio rm e n te , e a " c o s m o lo g ia " comum da b r u x a r i a convivem

com d i f e r e n ç a s fu n d a m e n t a is que se apresentam a p a rtir de

duas a t i t u d e s d is tin ta s d ia n te da h i s t ó r i a e da f i g u r a da

b ru xa, Sèío a s a titu d e s m asculinsi e f e m in in a , permeadas por

s ig n ific a d o s d ife re n te s p a ra as b ru x a s e os eventos de

b ru x a ria ,

A p a rtir dessas duas a titu d e s f u n d a m e n t a is nas

n a rra tiv a s , d e s c rita s a s e g u ir, ou tra s c irc u n s tâ n c ia s tsimbèm

se c o n s t it u e m em f a t o r e s de d i f e r e n c i a ç à o : a s itu a ç ã o em que

a c o n te c e o r e l a t o , o e n v o lv im e n t o e a p o s iç à o do narrador

com a h is tó ria , e a re la ç ã o que se e s t a b e l e c i a en tre o

in form a n te e a e t n ó g r a f a no momento em que as n a rra tiv a s

eram f e i t a s ,

a) A mulher como n a r r a d o r e/ou p r o t a g o n i s t a

0 embruxamento de uma c r i a n ç a è o drama c e n t r a l que

e n v o lv e as m u lh e re s com a n a rra tiv a , se ja como narradoras,

se ja como s u je ito s p ro ta g o n is ta s , E a p a rtir de

d e te rm in a d o s s in to m a s de doença in fa n til, o que s ig n ific a

uma s i t u a ç à o de desordem no t e r r i t ó r i o d o m é s t ic o , que se

d esencadeiam as n a rra tiv a s p ro ta g o n iza d a s por o u tra s

m ulheres que nào a b ru x a .


- 83 -

Permanecem a lg u n s e le m e n to s comuns aos r e l a t o s , que

re fo r ç a m a id è ia de que, ap e s a r de ganhar se n tid o s

d ife re n te s con form e a s i t u a ç S o da n a r r a t i v a , a açíSo da bruxa

se e n c a ix a em uma c o s m o lo g ia recorren te em todos ás

n a rra tiv a s . Nos r e l a t o s em que a c r i a n ç a fe a v i t i m a , a bruxa

a p a re c e em sua forma v a m p ir e s c a , quer d iz e r, e la suga o

sangue da c r i a n ç a e esta vai emagrecendo, d e fin h a n d o , quase

a t è m o r re r. A açSo da bruxa a c e n t u a , a s s im , a fr a g ilid a d e da

c ria n ç a . O u t r o elem ento comum è que, em t o d o s os r e l a t o s , a

b ru xa a t a c a a c ria n ç a d e n t r o de c a s a .

" Tin h a m u ita c r i a n ç a que a d o e c ia , d iz ia m


que tava embruxada, F ic a v a magra assim ò
(mostra o p o le g a r) , A b ru xa en trava p e la
fe c h a d u r a na c a s a e chupava o sangue, aqui no
p e s c o ç o ou no cèu da boca. A i, a c ria n ç a
c h o r a v a to d o o d i a , a t è a m e i a - n o i t e , quando o
g a l o c a n ta v a e a bru xa i a embora. F i c a v a umas
mancha ro xa onde e l a ch u p a v a . Nenhum f i l h o meu
pegò, mas o f i l h o da minha irm á , e l e p e g ô ."
(D, L e o n t i n a , 48 ano s, C a n to da Lagoa)

A m u lh e r, por ocupar uma p o s i ç ã o de re s p o n s á v e l p e lo

te rr itó rio d o m é s t ic o , ou, p rin c ip a lm e n te , por ser a máe da

v itim a , è in v e s tid a de uma a u to rid a d e p a ra fa la r s o b re o

e v e n t o de b r u x a r i a , con hecer todos os d e t a l h e s miiis do que

q u a lq u e r ou tra pesso a , e s abe r quem è a b ru x a . Uma

e n tre v is ta com duas in f o r m a n t e s do C a n to da Lagoa situ a m

mais c o n c r e t amente i s s o .

Fui a tè a ca sa de Dona E u d ora e s p e c ia lm e n t e para

e n tre v is tà -1 a e re co lh e r sua h i s t & r i a de v id a . Sua filh a ,


- 84 -

A n ita , de 34 ano s, ca sa d a e com t r é s -filh o s , e stava por

p e r t o e Ãs v e z e s in g re ssa v a na c o n v e r s a com algum c o m e n t á r io

s o b re o que e r a -fa la d o . A uma c e r t a a ltu ra , p erguntei a D.

Eudora se e l a c o n h e c ia casos de b r u x a r i a ou alguma c ria n ç a

que tenha s id o embruxada. E la lo g o v o lto u a ca b eça em

d ire ç á o á -filh a e d is s e : " P e rg u n ta p ra e s s a a i, e la è que

sa b e ", A n e ta de D. Eudora h a v i a s id o embruxc-^da quando e ra

re cè m -n a s c i da. D. E ud ora c e r t a m e n t e co n h e c ia a h is tó ria ern

d e ta lh e s , a tè por jà ter o u v id o a -filh a c o n tá -la v á ria s

vezes, mas não c a b i a a e la o papel de n a r r à - - la . E ra a filh a ,

mãe da c ria n ç a e-mbruxada, quem t i n h a n a q u e le momento uma

a u t o r id a d e m aior para fa la r s o b re £1 h i s t ó r i a . M ais t a r d e , D.

Eudora me f a l o u sobre o u tro s casos de b r u x a r i a que c o n h e c i a ,

a lg u n s r i c o s em d e ta lh e s . Mencionou o c a so de uma c ria n ç a

que v i v i a na casa de sua eivò, e que fo ra a ta c a d a por uma *

"bruxa m o rta " , e o do f i l h o de sua irm ã, também embruxado

quando a i n d a e r a bebê. Mas s o b r e a sua n e ta embruxada, fo i a

filh a quem f a l o u .

"B - E e s t a aqui (aponta p ara a . menina


s e n t a d a a t r à s da a v ò ) , t e v e a ssim . E l a c h o r a v a ,
fic a v a assim com os braços e as p e rn a s
d u r i n h a s , a t i r a v a a cabeça p ra t r á s e chorava,
g r i t a v a . Eu l e v e i no médico e t o d o s d iz ia m que
e l a não t i n h a nada. Nenhum rem édio dos m édicos
a d i a n t a v a . P i o r , quanto mais rem édio e l a tomava,
p i o r f i c a v a . Ai eu l e v e i e l a numa b e n z e d e ir a ,
uma p r e t a 1è da A gronôm ica. E l a o lh ô e d is s e :

’ sim , agora que e l a j à e s t á morta tume tra ze s
a q u i ? I s s o è embruxamento’ . Quando è b ru x a , se
d e i x a passa* nove s e x t a - f e i r a , nào tem mais
j e i t o . Ai e l a benzeu e d i s s e que nào e ra p r a eu
me a s s u s t a r . D e p o is que e l a acabt) a re za, a
85 -

menina fictb assim que nem m o r tin h a , os b raços


g e la d o e as pern a mole, Mas lo g o aco rd ó e p a rô
de c h o r à . E l a r e p e t i u a b ensed ura nove ver.es.
Segunda, q u a r t a e s e x t a , d e p o i s segunda, q u a r t a
e sexta de novo, a t è c o m p le tà nove» Depiois
d i s s o , nlSo deu mais nada, e l a -ficô boa de novo.

E a b ru x a , quem e r a ?

B - E r a bru xa v i v a , e l a me d i s s e que era


bruxa v i v a . E eu s e i quem e r a , eu sem m u ito
bem.

Algum p a r e n t e ?

B -- Nào.

V is in h a ?

B - E. Uma v i z i n h a que eu uma vez d is s e


umas c o i s a que e l a nSo g o s t ô . A tè h o je eu p a sso
por e l a , -fic o o lh a n d o a ssim , mas nèío -falo nada.

E como fe que você sabe que -foi e la ?

B - Porque a b e n z e d e ir a -falou. E l a ncio


d is s e o nome, mas d i s s e que e r a bruxa v iv a ,
v iz in h a . Com i s s o , eu j à s a b i a quem e r a . "
*
Ouvi mui’t a s n a rra tiv a s d e s se tip o , que r e la t a m

s itu a ç õ e s de embruxamentos de c r i a n ç a s , e todos, mesmo os

que ncio sèo n a r r a d o s p e l a màe, mantêm o mesmo esquema g e r a l ,

de uma doença em c a s a desencad ea r um c o n j u n t o de açòes

v o l t a d a s no s e n t i d o de r e e s t a b e l e c e r a ordem a n t e r i o r .

Nas di'v‘e r s a s --/ariaçòes d e s se mesmo drama, os e s ta d o s e

as ações s e sucedem dentro de um esquema comum em suas

■formas g e r a i s ;

1.0) Sào d e s c r i t o s os s in to m a s da c r i a n ç a , que in d ic a m

uma s i t u a ç à o de m a l-e sta r ou doença: c h o r o , ■ movimentos


»
desordene^doB, d€^f i nhamento- Em o u tra s h is tó ria s aparecem
- 86 -

junto com outroB sintomas, como a suspensIlD da al i mentaç cio,

a p re s e n ç a de manchas roxas n o cèu da b oca , E ste ú ltim o um

dos sintomas mais c a r a c t e r isti c o s de embruxamento. São

signos de umax situaçào de desordem.

2 .0) A in-formante descreve a tra je tó ria te ra p ê u tic a ,

quer d iz e r, todas as te n ta tiv a s p a ra ten tar d ia g n o s tic a r o

mal: a p rocura do mè-dico, os re m é d io s que nào fu n c io n a m , a

in c o m p e tê n c ia de todos os e s p e c ia lis ta s em fa ze r o

d is g n ò s tic o correto, o esgotam ento de todas as

p o s s i b i 1 i dsides. Aparece, entcSo, a fig u ra da b e n z e d e i r a como

o Cd t i mo r e c u r s o . A in te n ç c io e o d e s e j o da cura levam a uma

açào que b u sca a cura, mas è, num p rim e iro momento,

fru stad a. A fru stra çã o de t o d o s os métodos te ra p ê u tic o s

a n te rio re s le v a a uma nova ação: a p rocura da b e n z e d e ira .

Aqui as c a u s a s a in d a sào d e s c o n h e c id a s .

3.0) A b e n z e d e ira id e n tific a as c a u s a s da doença como

lig a d a s á açèlo de uma b ru x a . As c a u s a s t o rn a m -s e , assim ,

co n h e c i das.

4.0) A d e fin iç ã o dos p ro c e d im e n to s n e c e s s á r i o s p a ra o

desembruxamento: as r e z a s e b e n z e d u ras , os banhos de ervas,

etc.

A id e n tific a ç ã o da bru xa com uma v i z i n h a , uma mulher

c o n h e c id a da mãe f o i fe ita em resposta a uma demanda da

p e s q u is a d o r a e não como parte i n t e g r a n t e da n a r r a t i v a . Mas

a c re d ito que, em s i t u a ç õ e s de ' p e r f ormance^" e n t r e os membros

da comunidade, a id e n tific a ç ã o a p a re c e como uma ação no


S7 -

in te rio r da p r ó p r i a n a rra tiv a . No depoim ento da in fo rm a n te,

em r e s p o s t a a pergunta, a b e n z e d e ira se l i m i t a a reco nh ecer

na doença a ação de uma bru xa, mas è a mulher (a màe da

v it im a ) que sabe quem è a bru xa. E como se e x i s t i s s e uma

"comuni caçcio p a ra le la " en tre e la e a b ru x a . Com a

id e n tific a ç ã o , o e n c a n to è quebrado e a c r i a n ç a se c u r a . E

o momento de re sta b e le c im e n to da ordem a n t e r i o r .

O u tra forma de i d e n t i f i c a r a bruxa ê f a z e r com que e la

se d e n u n c ie , atravfes de p ro c e d im e n t o s ritu a is re a liz a d o s

p e la b e n z e d e ira . Como na h is tó ria d e s c rita a s e g u ir, a

p a rtir das a n o ta ç ò e s do d i á r i o de campo.

"Enquanto observe^va as e s c u ltu ra s de


F r a n k l i n C a s c a e s s o b re as b ru x a s na c a n o a, na
F e ira do A rtesan ato re a liz a d a no Mercado
P ò b lic o de F lo ria n ó p o lis , um senh or de
m e i a - id a d e se aproxim ou, fe z um c o m e n tá r io
s o b r e as b ru x a s e começou a c o n t a r uma h i s t ó r i a
que a c o n te c e u com e l e quando a in d a e r a c r i a n ç a .
Sua f a m i l i a morava em Sào J o s è do E r e x im , no
i n t e r i o r do e s t a d o , mas sua máe t i n h a n a scid o
no C a n to da La g oa . Um d i a e le fic o u m uito
d oen te e apaireceram manchas r o x a s ao l a d o da
b o c a . Logo as v i z i n h a s a visa ram a mãe p ara
p r o c u r a r uma b e n z e d e i r a porque c e r t a m e n t e era
uma b ru x a que h a v i a a ta c a d o a c r i a n ç a . A máe e
os irm ão s v ir a m uma b o rb o le ta g ra n d e p reta
voando no q u a r t o , que t i n h a e n t r a d o p or uma
t e l h a quebrada. I d e n t i f i c a n d o - a como uma b ru xa,
t e n ta ra m em vão m a t á - la . Nas v iz in h a n ç a s ,
ou tra s c ria n ç a s apresentavam os mesmos
s in t o m a s . A mãe e n tà o , montou no c a v a lo e
le v o u -o ju n to a t ó uma b e n z e d e i r a , que morava
a .fastad o do l u g a r . A c r i a n ç a f o i b e n z i d a , mas a
b e n z e d e i r a mandou v o lta r mais vezes porque,
segundo e l a , t r a t a - s e de uma bru xa p o d e r o s a . E
a v i s o u que a p r i m e i r a mulher que a p a r e c e s s e na
c a sa s u j a de sangue era a bruxai. A màe, ao
v o l t a r p a ra casa, a v is o u as v iz in h a s . Logo
chegou uma v i z i n h a , uma fan ha que morava a li
88

perto, m ostrando o dedo to d o c h e io de


sangue, que e l a t i n h a -fe rid o quando c o r t a v a pào
pro m^irido. As v iz in h a s se r e u n ir a m e
descascaram o pau na bruxa- A tè que e l a começou
a g rita r d iz e n d o que n'ao s a b i a porque è que
t a v a apanhando. E l a nèio s a b i a que e ra b ru x a ,
mas d i s s e que quando anoi t ec i a t i nha que v o l t ar
sempre c o r r e n d o p ra c a s a , p orque dava uma c o i s a
assim d e n t r o d e l a . M e i a - n o i t e e l a t i n h a que tà
d e ita d a . E la sempre s e n t i a uma v o nta d e m uito
■forte de i r p ra ca sa e d e i t a r na cama, mas n?üo
s a b i a p o rq u e . Com a d e s c o b e r t a , e l a nèto v iro u
mais em b r u x a ’ ."

Nessa h i s t ó r i a , o narrador nào è a màe da v í t i m a , mas è

a p ró p ria v ítim a , um homem que -foi embruxado quando era

c ria n ç a . E>ois -fatos chamam a atençíSo. P rim e iro ,

e s t a b e l e c e n d o um.a d i f e r e n ç a em re la ç ã o és o u t r a s h is tó ria s

c o n ta d a s p»or m u lh e re s , è que a b ru xa , ao s e r id e n tific a d a , è

ca stig a d a fis ic a m e n te p e la s o u tras m u lh e re s . Foi o ú n ic o

re la to em que a b ru xa acaba rece be nd o um c a s t i g o quando è

descoberta (20).

Em g e r a l , nas h is tó ria s narradas p e la s m ulh eres, o

s e n t i d o da i d e n t i f i c a ç à o da bruxa nào fe o c a s tig o , mas o

re c o n h e c im e n t o de que a bruxa ó uma mulher ' p ró x im a .

Reconhecer a b ru xa è re in s ta la r o e q u ilíb rio , através da

quebra do e n c a n to e da c u r a da c r i a n ç a .

O segundo f a t o re v e la d o r, mas a gora no caso de uma

s im ila r id a d e com as o u t r a s n a rra tiv a s , é a e x is tê n c ia de um

c o n flito en tre a mèíe da c r i a n ç a e a virtu e il b ru x a . No caso

da p r i m e i r a n a r ra tiv a , c o n ta d a p e l a filh a de D. Eudora, esse

c o n flito aparece de forma e x p líc ita no p r ó p r i o d is cu rs o da

narradora. J à na segunda n a r r a t i v a , o c o n f l i t o sò è re v e la d o
- 89 -

por um a t o - f a l h o do n a r r a d o r . Sua mèle a v i s a ats v i z i n h a s que

a p rim e ira mulher que aparecesse suja de sangue s e ria a

bruxa, lias j u s ta m e n te uma das v i z i n h a s que não f o i a v is a d a è

a que p o s te rio rm e n te serà acusa d a por ser a b ru x a . Quer

d iz e r , i n c o n s c i e n t e m e n t e ou nèlo, a mèe da c r i a n ç a jè d e fin iu

a fírio ri" qual v iz in h a nMo s e ria a v is a d a da p r o f e c i a da

b e n z e d e ira , a q u e la v i z i n h a que o in f o r m a n t e id e n tific o u como

"a fa n h a " , ou s e j a , portadora de uma c e r t a a n o rm a lid a d e .

0 s ig n ific a d o e a m aneira como se encara a

i dEínti f i c a ç à o da b ru xa tem uma importância central na

d e fin iç à o do s e n t i d o da b r u x a r i a e da b ru xa nas comunidades

da Lagoa, na medida em que a b ru x a , em g e r a l , nào se torna

a lv o d i r e t o de a c u s a çà o p ü b lic a , no s e n t i d o de que e l a não

è’ id e n tific a d a pare< as pessoas de fo ra e mesmo sua

id e n tific a ç ã o en tre os moradores da comunidade è f e i t a mais

no p la n o da "fo fo ca " do que da d e n ü n c i a .


I

E a mSe da v i t i m a que^m pode s a b e r quem è a bruxa e nâo

a b e n z e d e ira . No p r i m e i r o caso, fo i a mMe quem nomeou a

b ru x a , no segundo, fo i também a mâíe quem e s c o lh e u a v iz in h a

p ara quem nSío c o n ta r ia s o b re a p ro fe c ia da b e n z e d e i r a . o

fa to de t e r id o na b e n z e d e ira le g itim a a id e n tific a ç ã o e

p o s s ib ilita a cura. Mas mesmo d e p o is de fe ita a

id e n tific a ç ã o , a bruxa permanece como umei zona o b s c u r a do

e p is ó d io . Apesar da r i q u e z a dos d e t a l h e s com que a n is tò ris t

è narrada, pouco è fa la d o sobre o c o n flito a n te rio r

e x is te n te e n tre a mâe da c r i a n ç a e a b ru x a , e e s t a em nenhum


- 90 -

momento da e n tre v is ta -foi nomeada, o que pode estar

re la c io n a d o ao -fato de s e r a p e s q u is a d o r a o i n t e r l o c u t o r de

quem n a r r a a h is tó ria , alguém de fora da r e d e de re la ç ò e s

dos m oradores. Na p r i m e i r a n a rra tiv a , c o n ta d a p e l a màe, a

s itu a p à o a n te rio r ao embru>;amento, que p o d e ria re v e la r as

suas c a u s a s , nào è r e v e l a d a a nào s er p e la colocaçèla vaga de

que, e l a t e v e um c o n - f l i t o com a v i-zin h a : "eu d i s s e umas c o i s a

que e l a nào g o s tô " » 0 que -foi d ito , ou qual o mò'vel central

do c o n -flito , nada d is s o é reve lado . Isso c ria uma

d ific u ld a d e p a ra que se d e s e n ro le a trama e se en ten d a os

co n -flito s que d e v e ria m ser o pano de -fundo de toda a

n a rra tiv a de embruxamento e i d e n t i f i c a ç ã o da bru'xa.

Na segundtí n a rra ti-v a , o c o n flito è re v e la d o p e lo

a to -fa lh o c o m e tid o p e lo n arrador; a màe convocou as

v iz in h a s , mas d e ix o u de f o r a a q u e la que s e r i a pos-ter^i o r mente

id e n tific a d a como a b ru x a .

Consi-idero, porèm, que o caminho pro p o sto por

Favre t-S aada (1977) q uanto a como pensar e s s e s o b s tá c u lo s

p a ra Ese a lca n ça r o que s e ria o " c o n flito su b ja ce n te " á

na rra -h iv a , è e lu c id a tiv o . A p e s q u is a d o r a f r a n c e s a c o n c lu iu ,

em seu es-tudo s o b re fe itiç a ria em uma re g ià o ru ral da

França, que e x i s t e uma autonom ia r e l a t i v a da f e i t i ç a r i a em

re la ç à o aos ou tros " d e t e r m in a n t e s s o c io ló g ic o s " . E certo

que a p r e s e n ç a de um c o n flito en tre m ulheres p a r e n t e s ou

v iz in h a s è um traço comum a todos esses r e l a t o s em que a

bru xa è i d e n t i f i c a d a , lias pode se p e rc e b e r que e s s e c o n f l i t o


“ 91 -

re al sõ a p a r e c e como um des-fecho -fin a l da n a r ré x tiv a . Quer

d iz e r, em p r i m e i r o lu g a r e c e n t r a lm e n t e d e fin e -s e a s itu a ç à o

como uma s i t u a ç à o de embru;;amento, id e n tific a -s e que e x is te

um£< taruxa a g in d o , E sò d e p o is que is s o è fe ito que o

e s p e c ia lis ta (a b e n z e d e ir a ) tem poder p a ra com bater a

b ru x a ria e re a liz a r a cura. Enquanto o d ia g n ó s tic o dei

embruxamento não è f e i t o , t o d o s os métodos c u r a t i v o s fa lh a m .

No c a so d as n a r r a t i v a s da la g o a , quando a benzed eire i d e fin e

que hè b r u x a r i a , e la c ria as c o n d i ç ò e s p a ra que a s itu a ç ã o

se ja c o n tro la d a , A id e n tific a ç ã o da bruxsi, fe its t p e la màe,

representa a fin a liz a ç ã o do p r o c e s s o : o c o n tro le da s i t u a ç ã o

encontra ai sua c o n c r e t i z ação. Nêfo sõ a b e n z e d e ira , imas

também a mãe se c o n s t i t u i com i s s o em uma f i g u r a poderosa.

A id e n tific a ç ã o da bruxa tem um c a r á t e r tra n s itó rio e sõ tem

e fe ito p a ra o caso p a rtic u la r que é narrado. E la nào

c o n fig u ra a fix a ç ã o de uma i d e n t i d a d e e nem a mulher p assa a

ser v is ta como uma b ru x a . A p ró p ria b ru x a ria è v is ta como

um a t o in v o lu n tá rio e in c o n s c ie n te por parte de quem a

p ra tic a , Uma p r e d i s p o s i ç ã o in te rio r que de alguma forma se

r e a liz a a través da b r u x a r i a . E is s o o que redim e a mulher

id e n tific a d a como b ru x a , E d ife r e n te do caso das m ulh eres

cuja id e n tid a d e è c o n stru íd a em t o r n o da f i g u r a da b ru x a .

São as m u lh e re s v i s t a s como d e s v i a n t e s , melhor d e s c rita s no

próxim o c a p í t u l o .

Mas a h i s t ó r i a nào t e r m in a a í. Quando a mulher re torn a

á ca sa e narra o e p is ó d io p a re as p e s s o a s mais p ró x im a s , ou
- 92 -

quando reüne as v i z i n h a s para en -fre n tar a bru>;a, e la nào -faz

ou tra c o is a que r e a f i r m a r o seu p o d e r , Como j à fo i c o lo ca d o ,

quando a v i t i m a è a c ria n ç a , e la è um v e i c u l o p a ra um ata q u e

que v i Sc< no e n tan to ou tro a lv o : a mãe da c ria n ç a . □

desembruMamento da c r i a n ç a è, d esta forma., assumido p e l a mà'e

como uma l u t a p e s so a l, como se e l a p ró p ria fo ss e a a tin g id a .

Nessa medida, o ato de contí^r o e p i s ó d i o , ou s e j a , a

n a rra tiv a , faz parte do p ró p rio e v e n to de b ru x a ria , na

medida em que é o momento de c o n f ir m a ç ã o do poder <da mife e

dci b e n z e d e ir a , se a c ria n ç a se s a lv a ? ou da b ru x a , se a

c ria n ç a m o rre ).

Mas mesmo e n t r e as n a r r a d o r a s (mulheres) aparecem

p o n to s de v i s i i a s d i f e r e n t e s em r e l a ç à o ao d e s e n v o lv im e n t o da

h is tó ria e é fig u ra da b r u x a . Como f o i v is to , quando è a mãe

da c r i a n ç a a narradora, a id e n tific a ç ã o da bruxa e a a t u a ç ã o

da b e n z e d e i r a , v a le d iz e r , a re a liz a ç ã o da c u r a , sào os

elem en to s c e n t r a i s da n a r r a t i v a . Esta assume a forma de um

combate, è um " d i s c u r s o de g u e r r a " (FAVRET-SAADA, 1977),

cu jo o b je to é c o n t a r sobre a d e r r o t a rfo i n i m i g o , quer d iz e r,

o desembruxamento da c r i a n ç a e a id e n tific a ç ã o da b ru x a .

S a lv a r a c ria n ç a è vencer a guerra, ou p e lo menos a b a t a l h a .

A n a rra tiv a ne sse caso ganha im p o r t â n c ia p e la sua

s in g u la r id a d e , por fa la r de um c o n f l i t o p a irticu la r em qué um

dos a t o r e s è o p ró p rio n a rra d o r. A p o s iç ã o de poder da mãe

r e a firm a -s e taimbèm no momento em que e la narra a h is tó ria


- 93 -

para a p e s q u is a d o r a , c o l occ“sndo--se ne ss e momento como uma

pessoa p o d e ro s a .

Guando è o u t r a p essoa quem c o n t a , o que e s t à em j o g o è

o p e rig o que? re p re s ie n ta a bruxa e ci ameaça de que e l a possa

provocar ou tras s itu a ç õ e s de embruxamento. A n a r ra tiv a

c e n t r a - s e na açào da b ru x a , nos d e t a l h e s do embruxamento e

nos s in to m a s que a c r i a n ç a apresen ta, v a le d iz e r, no ata q u e

da b ru xa . Na medida em que nào e x i s t e um e n v o lv im e n t o do

narrador com a h is tó ria co n tad a e que esta serve p a ra

e le rta r s o b r e uma ameaça p r e s e n t e na comunidade, o d is cu rs o

assume mais -fa c ilm e n te uma -forma menos s in g u la r de

n a rra tiv a , a p ro x im a n d o -s e de uma -forma d i s c u r s i v a mais g e r a l

s o b re as b r u x a s , como i l u s t r a o s e g u in te depoim ento:

" T in h a m u ita c r i a n ç a que a d o e c i a , d iz ia m


que tava embruxada. Ficave-i magra assim ò
Cmostra o p o le g a r). A bruxa en trava p e la
f e c h a d u r a na c a s a e chupava o sangue, aqui no
p e s c o ç o ou no cèu da b o c a . Aí a c r i a n ç a cho rava
todo o d ia , a tè a m e ia -n o ite , quando o g a lo
c a n t a v a e a bru xa i a embora. F i ca.-va umas mancha
r o x a onde e l a chupava. Nenhum f i l h o meu pegô,
mas o filh o da minha irmci, e le p e g ô ." (D.
L e o n t i n a , 48 anos, C a n to da Lagoa)

E sse d epoim ento f a l a da bruxa em g e r a l , dos s in to m a s de

embruxamento na c r i a n ç a , mas nào se c o n s t i t u i numa n a rra ti-v a

c o n stru íd a a p a rtir de a t o r e s p a r t i c u l a r e s ou de um drama

s in g u la r. E le è s im p le sm e n te d e s c riti-v o da a tu a ç à o das

bruxas.
b> 0 homem como n a r r a d o r e p ro ta g o n is ta

Ob homens, no ç^eu p ró p rio d is cu rs o , c o lo c a m - s e como

v itim a s da b ru xa de uma m aneira d ife re n te . E la pode a p a r e c e r

ptara um homem que anda na mata ou na e s t r a d a s o z in h o ái

n o ite , sob a forma de um v u lto ou de? uma lu z que s u rg e

r e p e n t in a m e n t e . 0 s e n t im e n t o que os homens expressam ao

re la ta r um caso sem elh a n te ao d e s c rito a b a ix o fe

p rin cip a lm e n te de medo.

"Quando o Luis. v i n h a s u b in d o a la d e ira ,


a l i onde mora a Moema, s a b e s ? E l e v i u uma c o i s a
b r a n c a , se mexendo em cima duma á r v o r e , p a r e c i a
um fan tasm a. E r a uma bruxa que tava a l i pra
a s s u s t a r deí p a s s a n t e . Eiepois, v i u e l a o u t r a vez
na e s t r a d a . Quando chegou em c a s a , a miSe a b riu
a p orta com a pomboca ( in s t r u m e n t o de
ilu m i n a ç à o a ò l e o ) na mâo, e e l e c a i u no chào.
Dizem que quem vè b ru xa nào pode ve r lu z d e p o is
que p assa m a l ." (Josè, 38 ano s. C a n to da
Lagoa)

Essa h i s t ó r i a , c o n ta d a por um in f o r m a n t e do C a n to da

Lagoa, tem v á rio s e le m e n to s s ig n ific a tiv o s , cuja a n á lis e

pod£-? r e v e l a r d s e n tid o que assume a fig u r a , da bru xa p a ra os

homens da Lagoa. A bruxa a p a r e c e p a ra o ca m in h a n te n o tu rn o

como um v u l t o in d e fin ív e l, sem c o n t o r n o s , sem r o s t o , .e v o l t a

a aparecer d e p o is em o u t r o p o n to da e s t r a d a , mostrando a sua

quase o n i p r e s e n ç a , o poder de p a s s a r de um l u g a r p ara ou tro

em pouco tempo, ou de e s t a r em d o i s lu g a re s ao mesmo teoipo,

E la tem a c a p a c id a d e de impor medo aos homens que passam, e


- 95 -

o s e n tid o de 5ua p r e s e n ç a a li è esse: " ta v a a li p ra a s s u s t a r

os p a s s a n t e " .

A ou tra -forína com que as b ru x a s se fazem p r e s e n t e s como

uma ameaça p a ra os homE?ns è a p ro p r i ando--se de seus

in s t r u m e n t o s e de seu e sp a ço de t r a b a l h o . E la s roubam as

ca no as dos p e s c a d o r e s , invadem os ra n c h o s de b a r c o , tomam c-is

tarra fas de p e s c a . A h is tó ria tra n s c rita a b a ix o è uma o u tra

v e rs ã o da h i s t ò r i e t do ro u b o da canoa p e l a s b r u x a s . Nêio s e r i et

ile g ítim o d iz e r que è quase um m ito a rq u e tip ic o da bruxa

p a ra os homens da la g o a . Mudam o lu g a r e osí p e rs o n a g e n s , mas

a h is tó ria fe a mesmei.

"Aqui p e r t o de onde você mora, a l i em


b a i x o na p r a i a , è que dizem que t i n h a b ru x a . Q
seu Manoel l à do Canto t i n h a uns ra n c h o onde
e l e g u a rda v a a canoa d e l e a l i na p r a i a . Uma vez
e le começou a n o ta r que a canoa sempre
amanhecia s u j a , com r e s t o de a r e i a e àgua no
f u n d o . Ai e l e pensô: ''tem alguém usando essa
canoa d u r a n t e a n o ite " . E le re so lv e u descobri
quem e r a e um d i a f i c ò e s c o n d id o atrá s do
ra n c h o d e p o i s que a n o it e c e u . A i, e le v iu trés
m u lh e re s cheg and o . E la s en tra ra m no ra n c h o ,
t i r a r a m t o d a a ro p a e f i c a r a m assim sò no c o r o ,
pegaram a canoa e foram la g o a a d e n t r o . No meio
da madrugada, antes do sol nascer, e la s
v o l t a r a m , devolve ra m a canoa, se v e s t i r a m de
novo e foram embora. Como o homem tava a li
es co n d id o e d e s c o b r i u quem eram a q u e la s três
m u lh e re s , e l a s perderam o e n c a n to e d eixaram de
v i r è em b r u x a . " ( D il s o n , 27 anos, Can to da
Lagoa)

Nesse r e l a t o , as b r u x a s invadem um esp a ço de tra b a lh o

m a s c u lin o e se a p ro p ria m de um in s t r u m e n t o e s s e n c ia l de

tra b a lh o p a ra os homens da la g o a : a canoa. Como em ou tros


- 96 -

re la to s c o n ta d o s por n a r r a d o r e s fnascul i n o s , sèlo v á r i a s as

b ru x a s que e s t á o em açáo na h i s t ó r i a

e seu encontro tem um caráter b astante o rig iá stic o : e la s

entram na canoa d e s p i d a s e o que fazem d u r a n te o tempo em

que estácj navegando è uma zona o b s c u r a da n a r r a t i v a , nada è

d ito s o b re is to .

O e n c o n t r o se queb ra, o que qdier d iz e r que o poder

in c o n s c ie n te d a q u e la s m u lh e re s t r a n s fo r m a r e m - s e em b ru x a s se

d e s fa z no momento em que o homem re c o n h e c e n e la s m ulheres

p ró x im a s, m oradoras do lu g a r. Os seres d e s c o n h e c id o s e

p o d e r o s o s perdem a sua fo rça quando o homem passa a ter

c o n tro le s o b re a s i t u a ç á o , perdendo o medo.

Ao c o n t r á r i o de quando sào as c r i a n ç a s as v i t i m a s , em

que a bru xa a tu a d e n t r o do esp a ço f e m i n i n o - a casa, no c a so

em que sMo os homens os a t i n g i d o s , as bru xas agem no

te rritó rio m a s c u l in o , fo ra da c a s a : a mata, a e strad a, a

p ra ia , E em esp a ço s c o n s i d e r a d o s p r o ib id o s ás m u lh e re s , como

o ra n c h o de embarcação ou a cano a. O comum e n t r e os d o is

tif s o s de n a rra tiv a , no e n t a n t o , è que as b ru x a s sempre

operam no i n t e r i o r do t e r r i t ó r i o da v i t i m a .

As m u lh eres que roubam a canoa sào bru xa s porqueí têm um

V comportamento i n v e r s o ao que se c o n s i d e r a naq uela c u l t u r a um

compjortamento f e m in in o -- e l a s in v e r t e m os padrões s o c ia is .

N e s te c£iso, o p e rig o que a b ru xa r e p r e s e n t a e s t a r i a lig a d o a

d o is medos que se i n t e r r e l a c i o n a m . De um la d o , o medo da

perd a da f o r ç a m a s c u lin a , na medida em que os in s t r u m e n t o s de


- 97 -

tra b a lh o dos homens podem s e r v is to s como uma e x te n s à o de

seu corpo, numa re la ç à o m eton im ica de apro;: i m^^çiÈlD por

s im ilitu d e . Alèm d i s s o , a b ru x a è uma ameaça ao s u c e s s o da

pesca, ou s e j a , ao s u c e s s o dos home;ns na r e a l i s a ç à o de seu

tra b a lh o , E por is s o que s e u s equipam entos como a cano a, as

tarra-fas, sèío b e n z id o s a n t e s de serem la n ç a d o s na àgua p e la

p rim e ira vez. De oui:ro la d o , a bru xa in s p ira o medo de perda

ou d ilu iç ã o da id e n tid a d e m a s c u lin a , A construção da

id e n tid a d e m a s c u lin a p assa p e lo tra b a lh o , que reüne os

homens, e x c lu in d o as m u lh e re s , e -fazendo-os p a r t i l h a r de um

con h e c im e n to e uma h a b i l i d a d e no uso d a q u e le s instrum entos

que sò e l e s possuem. No momento em que uma -fig u ra -feminina

-fora de c o n t r o l e - a bruxa -- e x e r c e esse p ap el , embarcando e

s a in d o p a ra navegar na c a n o a , por exemplo, põe em questào

tudo is s o e a p ró p ria id e n tid a d e m a s c u lin a ,

Ds o u tros m a l-e s ta re s narrados p e l o s moradores como

moti-vados por uma ação de b ru x a s têm um caráter mais

d e s c ritiv o , aparecem como c a p a c id a d e s e a titu d e s comuns és

bruxas; e la s a tingem p la n ta çõ e s , atacam os a n im a is , sugando

o sangue e dando nòs nas c r i n a s e rab os dos c a v a l o s . A bruxa

fe d e s c r i t a também n e s s e s r e l a t o s como uma mulher que " d e ix a

a ca sa" ( P itt- R iv e r s , 1985) para, assumindo um comportamento

m a s c u lin o , causar danos e m a l- e s t a r é populEsçlío d a q u e la s

com unidades, E in e g á v e l, a in d a , a relaçèlo e n tre a mulher

que " s a i á n o ite " com a s e x u a lid a d e desregrada, ou a

p r o m is c u id a d e que aparecem su b ja ce n te s, ao r e l a t o s o b re o
- 98 --

ro ub o da canoa ou á imagem da bruxa como uma mulher que

c a v a lg a durante a n o ite . M itò lo g o s , e s tu d io s o s dos s ím b o lo s

e p s ic a n a lis ta s c o n fig u r a m o ca v a lo e as c a v a lg a d a s n o tu r n a s

como a s so c ia d o s s im b o lic a m e n t e a m a n if e s t a ç ò e s do

in c o n s c ie n te e de uma " im p e t u o s id a d e s e x u a l" (CHEVALIEF. e

GHEERBRANT, 1989).

Como nas n a rra tiv a s c o n s tru íd a s em torno do

embruxc.mento de uma c r i a n ç a , n a q u e la s em que è um homem a

v itim a da b ru x a , o e n c a n to também è quebrado no momento em

que a bruxa è> i dent i f i cad£t e r e c o n h e c id a como uma mulher da

comunidade. Mas, neste caso, ë ao ser v is ta p e lo p e s c ad o r

que a bruxas "perde o en can to". Ao c o n t r á r i o da h is tó ria

c o n ta d a p e l a mãe da c ria n ç a embruxada, em que o e n c a n to è

quebrado quando a bruxa ë nomeada. Se as m u lh eres desfazem o

e n c a n to usando a p a l a v r a , v e rb a liz a n d o o nome do i n i m i g o , os

homens desfazem o e n ca n to a t r a v é s do seu o l h a r .

E s sa forma de i d e n t i f i c a ç ã o a c o n t e c e em g e r a l quando as

b ru x a s e s t ã o a g in d o sobre o te rritó rio m a s c u lin o e usando

s eus in s t r u m e n t o s de t r a b a l h o . Mas nunca nos r e l a t o s e la

a c o n te c e ao acaso. E p re c is o que o homem construa a

p o s s i b i 1i dadF3 de ve r as b r u x a s e o momento em que i s t o vai

acon tecer, a p a rtir de uma d e s c o n f i a n ç a a n te rio r de que sào

e la s as r e s p o n s á v e i s p e l o s danos. 0 c a so da canoa ro ub a d a ,

d e s c rito a n t e r io r m e n t e , ë o mais r e c o r r e n t e d esta forma de

re c o n h e c im e n t o das b r u x a s . A p a rtir de s i n a i s d e ix a d o s por

e la s em sua cano a, e le re s o lv e se esconder p a ra d e s c o b rir


- 99 -

quem sào as r e s p o n s á v e i s . E sò d e fjo is d i s s o que e l e vê as

b ru x a s e as id e n tific a com m ulheres c o n h e c i d a s . O seu o l h a r ,

ne ss e c a s o , tem um s ig n ific a d o d ife re n te de quando vê a

bru xa por acasso, na e strad a ou na mata. Quando e le ,

in e s p e r a d a m e n te , en contra a bruxa em seu caminho, e la è

assustadora e irre c o n h e c iv e l. No c a s o do ro ub o da canoa, no

entanto, seu o l h a r é de e n fre n ta m e n to e d e s a f i o e, atra vé s

d e le , o pescador a d q u ire o c o n tro le sobre a s itu a ç ã o . A

b ru xa nào sò è d e s c o b e r t a como o seu e n c a n to é quebrado, e la

nào v o l t a m ais a s e r b ru xa.

Em g e r a l , nos e s t u d o s s o b re b r u x a r i a , o poder do o lh a r

a p a r e c e como um a t r i b u t o da bruxa ou da f e i t i c e i r a e possui

um e f e i t o devastador, que a p a re c e parat os moradores d a L, a g o a

na forma do q u e b r a n to ou do m au-olhado. Mas, no c a so da

canoa ro u b a d a , è a v itim a quem pode d e s f a z e r a bru xa com o

poder de seu o l h a r . No e s tu d o de Favre t-S aa d a, o poder do

o lh a r è p a rtilh a d o t a n t o p e l o bruxo quanto p e l o embruxado.' 0

p e rig o maior fe d e i x a r que, num e n c o n t r o com um b ru x o , este

la n c e o ü ltim o o lh a r. Para se d e fe n d e r da b ru x a ria , è

p re c is o que o a tin g id o o lh e o b ru xo por ü l t im o ,

n e u tra liz a n d o o seu p o d e r.

E sempre um homem que é capaz de ve r a bruxa e

d esfazer o seu e n c a n to . 0 poder de seu o l h a r estè lig a d a ,

ne ss e s e n tid o , ao e x e rc ic io de um poder m a s c u lin o de

p enetração e d o m in io . Ao o lh a r de forma d e s a fia d o ra as


- 1 oo -■

bru xas, e le retoma a p o s s e s o b r e o seu t e r r i t ó r i o e impõe a

sua a u t o r i d a d e m a s c u lin a .

D e n c a n to da bruxa pode s e r quebrado também, alèm das

o u tra s form as j à d e s c rita s , p e lo canto do g a l o quando a in d a

e s tU o transform adeis em b r u x a , o que nào d e i x a de lem brar o

poder do o l h a r do p e s c a d o r , na medida em que o g a lo ë um

s im b o lo de m a s c u l in i d a d e e de poder v ir il.

Em t o d a s e s s e s d i f e r e n t e s modos de i d e n t i f i c a r a bruxcx,

e x is te um s e n tid o comum que è o de r e a s s u m ir o c o n tro le

s o b r e uma s itu a ç à o a p rin c ip io d e s c o n tro la d a . 0 poder da

b ru x a se desfa?; na medida em que e l a è re c o n h e c id a como uma

mulher como q u a lq u e r ou tra. ïsîso sõ nào a c o n t e c e no c a so da

mulher que è v is ta sempre como uma b r u x a . 0 seu e n ca n to

ja m a is se d e s fa z na medida em que a sua id e n tid a d e se

c o n stru iu p u b lic a m e n t e d e s t a m a neira .

c) Ncio há d e n ú n c ia nem acusaçèío

Em t o d o s os r e l a t o s em que b bruxa è r e c o n h e c id a , os

in form an tes negaram-se a d iz e r quem era a mulher

id e n tific a d a como a b ru x a . A d e n ú n c ia ou acusaçèío nào

aparecem como c e n tra is na id e n tific a ç ã o da b ru x a , 0

re c o n h e c im e n t o da bruxa fin a liz a a s itu a ç à o desordenada e

c a ó tic a que a s s u s t a os m oradores e rem ete a um d e s fe c h o

p o s itiv o p a ra o e p i s ó d i o de embruxamento.
- 101 -

Nesse a s p e c t o , a b ru x a ria presen te no i m a g i n á r i o dos

ilh ë u s tenri um s i g n i - f i c a d o d i- f e r e n t e da b r u x a r i a presen te em

o u tra s c u ltu ra s , rnesmo d a q u e la onde se encontram as suas

ra is e s . Como j à -foi c o lo ca d o a n t e r i orm ente, os e s tu d o s s o b re

as b ru x a s e u r o p é i a s têm tomado o d i s c u r s o in q u is ito r ia l como

a p rin c ip a l fo n te , o que l e v a a um t r a t a m e n t o da b ru x a ria

lim ita d o ás acuvsaçòes e persegui çòes. A d e fin iç à o dci bruxa

como uma " c a t e g o r i a de acusaçrào p o l í t i c a das m ulheres" se

d ilu i 3.0 ser tran sp orta d a parei o i m a g i n á r i o pjopular ilh è u .

E p o s s ív e l atè c a ra c te riz a r a i d e n t i f i c a ç So das b ru x a s com

a fig u ra f e m i n i n a como uma forma de acusação das m u lh e re s ,

na medida em que q u a lq u e r uma è tomada como uma b ru xa em

p o te n c ia l, mas com um s e n tid o d ife re n te do a p on tad o por

P it a n g u y <1935). A "acu saçào" aqui tem um caráter

e s s e n c i a lm e n t e s i m b ó l i c o de c u l p a b i l i z a r as m u lh e re s como

p o s s ív e is r e s p o n s á v e i s por inúm eros m a l - e s t a r e s no in te rio r

da comunidade. 0 r e c o n h e c im e n t o da b ru x a e a sua

i dentific a ç t ío com uma mulher próxima tem aqui um caráter

s im b ó lic o de reordenamento de um quadro de desordem e

d e s c o n tro le . E fa la r de uma s i t u a ç à o de c r i s e , momento em

que se tornam m a n if e s t a s imagens e s i g n i f i c a d o s o c u lto s ao

n iv e l do d is c u rs o verbal c o n sc ie n te , Nào hà, a ssim ,

d e n ú n c ia s nem acusaçào d ire ta como açbes c e n tra is na

n a rra tiv a e, quando a bruxa, fe i dent i f i c a d a , e la em g e r a l nào

è p e r s e g u id a e sò as pessoas mais p ró xim as podem tomar


- 10:^' -

c on h ecim en to s o b re quem fe ou quem sào as b r u x a s , em g ru p o s

de c o n v e r s a r e s t r i t o s , e n v o lv e n d o f a m i l i a r e s e v iz in h o s .

0 que nào s ig n ific a , por ou tro la d o , que, no p la n o

mais p riv a d o , nèío p ossa ocorrer a id e n tific a ç ã o e a

acusação , a s sim como o c a s tig o da b ru x a , como veremos em

re la to s tra n s c rito s mais tarde, D fa to dessas acusações

chegarem ra r a m e n te a t è mim pode s e r m otiva d o p e l o c u id a d o

p a ra nlío t o r n a r p ú b lic a a a cu sa çã o . Nomear a bruxci em g ru p o s

mais amplos ou p a ra pessoas d is t a n t e s s e ria uma forma de dar

abertam ente c o n tin u id a d e ao c o n f l i t o .


- 103 -

4) As s i t u a ç ò e B de ^per-f orm ance’ das n a r r a t i v a s

Apesar da p e s q u is a de campo nèí.o t e r p r o p o r e i onado a

observação d i r e t a de s i t u a ç ò e s de n a r r a t i v a s de b ru x a ria

•feitas e n tre os p ró p rio s n a tiv o s sem a mediaçèíD da

p esq u i s a d o r a , o m a te ria l e t n o g r à - fic o re c o lh id o p e r m it e

algumas p r o j e ç õ e s sobre o que s e ria m estas s itu a ç ü e s de

^per-for mane e-’ das n a r r a t i v a s no i n t e r i o r da comunidade. Uso

’ per-f orm ance’ como a re a liz a ç ã o da n a r ra tiv a nas suas

" c o n d iç ò e s re a is " , ou s e j a , no momento em que e s t à montado

um c o n t e x t o ou "cenèirio" a p ro p ria d o ou favorárvel para que as

h is tó ria s e ob re la to s sobre as b ru x a s sejam c o n ta d o s . E è

n e ss e momento que a b ru x a ria se c o n fig u ra enquanto um

a c o n t e c im e n t o s o c ia l d e n t r o da comunidade.

Da mesma forma como muda o s i g n i f i c a d o da b ru xa , o seu

con te x to, conform e os narradores e p ro ta g o n is ta s sejam

homens ou m u lh e re s , também as s i t u a ç b e s de ’ performance" se

apresentam como d i f e r e n t e s p a ra ambos. Entre as m ulh eres, o

momento fu nd am ental de ’ perform ance” , ou s e j a , em que as

n a rra tiv a s de b r u x a r i a Scío f e i t a s , a c o n t e c e fundamentalmente

em t o r n o da doença i n f a n t i l . No momento em que uma c ria n ç a

ap resen ta d e t e rm in a d o s s in to m a s , e s t à montada uma s itu a ç ã o

fa v o rá v e l para que ocorram n a r r a t i v a s de b r u x a r i a . As o u t r a s

m u lh e re s , v iz in h s is ou dax f a m i l i a , começam a i d e n t i f i c a r nos

s in to m a s da c r i a n ç a s im ila rid a d e s com o u t r a s h is tó ria s que


- Í04 -

e la s conhecem ou v iv e r a m d i re?tamente. A doença -funciona como

um mote p a ra que e la s comecem a con tar as n a r r a t i v a s de

b ru x a ria .

No c a s o dos homens, a situ a ç è ío de pe?r-formance es'tá mais

lig a d a aos c o n t e x t o s de c o n s t i t u i ç ã o de id e n tid a d e me-isculina

e aos momentos em que um e th o s m a s c u lin o è p a rtilh a d o

en tre e le s . No momento em que, por exemp-jlo, os homens se

reünem d e n t r o de uma embarcação, ou e s t ã o r e u n i d o s na p r a i a ,

esp era n do o cardume, nas f r i a s madrugadas do i n v e r n o ilh è u ,

e s t à montada uma situaç"âo fa-vorèvel pars? as n a r r a t i ' v a s de

b ru x a ria . A q u i, e la s es-t.ão l i g a d a s c e n tra lm e n te ao e sp a ço de

tra b a lh o m a s c u l in o , e se re fe re m a açòes h e ró ic a s dos homens

e p e s c a d o r e s da lagoa» Sào h i s t ó r i a s de b ru x a s que roubam

s ua s c a n o a s , aparecem nas p e d ra s , no mar, roubam seus

in s t r u m e n t o s de pesca. Uma ou tra s itu a ç ã o que parece se

m o s tra r fa v o rà 'v e l ao desencadeamento de n a r r a t i- v a s s o b re

b ru x a ria è? na venda durante a n o ite , um momento de

c o n v iv ê n c ia en tre os homens da comunidade, um momento de

demarcação da id e n tid a d e m a s c u lin a , e è um e s p a ç o sm que as

m ulh eres nèío entram . A -v'enda, enquanto um e sp a ço também

c o n s titu id o r da i d e n t i d a d e m a s c u lin a é um c e n á r i o f a'vorà'vel

p a ra a ’ p e r f orm ance’ das n a r r a t i- v a s , quer di-zer, p ara que os

a to s h e r ó i c o s de seus narradores e p ro ta g o n is ta s sejam

c o n ta d o s .
- 105 -

Como se pode v e r , ai b ru x a ria se r e a l i z a s o c i a lm e n t e

enquanto n a r r a t i v a a p a rtir do r e la it o da e p is ó d io , nos

c o n t e x t o s dce ’ per-f orm ance’ , em que se c o n f i g u r a uma s i t u a ç à o

favorèivel aos r e l a t o s . Ou s e j a , è a trcivès da linguagem que a

b ru x a ria ganha a sua e x i s t ê n c i a s o c ia l. Mas a ling ua g em , no

seu s e n t i d o se m iò tic o m ais a b r a n g e n te , em suas d ife re n te s

form as, ë também um fa to r e stru tu ra do r no in te rio r da

n a rra tiv a . 0 p rim e iro a p a r e c im e n to da brux£s se dà a p a rtir

de s i g n o s que in d ic a m a presença de uma desordem, ou s e j a , a

p resen ça de uma bru xa atu and o. No caso da c ria n ç a

embruxada, esses s ig n o s sào os s in to m a s de uma doença. No

c a so de um homem que fe a t a c a d o p e l a b ru x a , os s i g n o s sào os

restos de a r e i a ou a flo r no fundo da embarcaçào, o v u lto

que aparece? na mata, os g r i t o s e g a r g a lh a d a s v in d o s das

p e d ra s . A p a rtir d a i, a ling ua g em , sob form as d iv e rs a s ,

c o n tin u a fa z e n d o e s s a costura do e p i s ó d i o de b r u x a r i a , na

rnedida em que 1) a màe, ao p e r c e b e r os s in t o m a s , in fo rm a as

v iz in h a s ; 2) as v i z i n h a s u tiliz a m o mote da doença para

n arrar h is tó ria s de c r i a n ç a s embruxadas que a p resen taram os

mesmos s in to m a s e sugerem que a màe deve procurar uma

b e n zed eira , 3) a màe vai a tè a b e n z e d e ir a e c o n ta a

h is tó ria , fa la s o b re os s in to m a s , s o b re a tra je tó ria

te ra p ê u tic a a n te rio r; 4) a b e n z e d e ir a u tiliz a uma linguagem

ritu a l p a ra fa ze r o desembruxamento; 5) a màe nomeia a

b ru xa, mais uma vez e la està v e rb a liza n d o a s itu a ç à o ,

buscando c o n t r o l à - l a , 6) p o s t e r iorm en te, e la narra, p ara os


— 1Oh —

■ fa m ilia re s, v iz in h a s , e p a ra a p ró p ria p e s q u is a d o ra , a

h is tó ria e seu des-fecho, r e a f ir m a n d o seu p o d e r.

N'ëo é ile g ítim o d iz e r que mesmo o c o n t e x t o em que os

in form an tes narram as h is tó ria s sobre b ru x a s p a ra a

p e s q u is a d o ra se c o n fig u r a m numa forma de r e a l i z a ç à o s o c ia l

da b ru x a ria - Narrar a h is tó ria a alguém de fo ra da

comunidade fe c o n f ir m a r uma s itu a ç á o de poder e dar

le g itim id a d e ao p r ó p r i o d is c u rs o , nèo d e ix a n d o de s e r essa

uma s it u a ç c io também de "p e r f ormance" .

5) Uma f r o n t e i r a s im b ó lic a

E também enquanto n a rra tiv a que a b ru x a ria se

c o n fig u ra en qu a nto um fenômeno a in d a p r e s e n t e na v i d a s o c ia l

da com unidade. 0 uso i n v a r i á v e l do tempo v e r b a l no passado

in ic ia lm e n te c o l o c o u —me a d úv ida sobre a a tu a lid a d e d e s sa s

n a rra tiv a s , ou em que medida e l a s níio e x i s t i r i a m apenas como

memória de um o u t r o tempo, de um passado m í t i c o co n stru íd o a

p a rtir de fr a g m e n to s de imagens da p e s c a , do engenho, da

natureza como uma f o n t e de p e r i g o s e o b je to de dominip> alèm

da p r ó p r i a p r e s e n ç a da bruxa como uma amee^ça permanente.

Mas, át medida em que a p e s q u is a de campo se ap ro fu n d a v a , a

a n è lis e dos dados e tn o g rá fic o s me fa z ia d escarta r essa

h ip ó te s e . A b ru x a ria se mostrava como a lg o muito mais


-- 107 ~

presen te e atu al p a ra os n a t i v o s la g o e n s e s do que p o d e r ia

perceber uma o b s e rv a ç à o s u p e r f i c i a l .

Al è^rn de uma grande parte das n a r r a t i vas re m ete r a

e v e n to s o c o rr id o s hà sete ou o ito anos, tomando como

re fe rê n c ia o momento em que f o i r e a liz a d a a p e s q u is a de

campo, nSo foram r a r a s as que fa la v a m s o b re c a s o s re ce n te s

de b r u x a r i a , contempcjrâneos á p e s q u is a .

0 uso do tempo v e r b a l no passado r e v e l o u - s e como uma

forma r e t ó r i c a da n a r r a t i v a , a c o n fir m a ç ã o de uma p o s i ç ã o de

p o d e r, mesmo quando f a l a de um f a t o a tu a l. Para F a v r e t - S a a d a

(1977), em seu e s tu d o sobre fe itiç e -iria na r e g i à o de Mayenne,

uma comunidade camponesa a menos de 300 q u i ló m e t r o s de


*

P a ris , o ü n ico d is c u rs o no tempo p r e s e n t e p o s s i v e l s o b re

b ru x a ria é a q u e le fe ito para o d e s e n fe itiç a d o r. Mo c a s o das

n a rra tiv a s dos n a tiv o s ilh é u s , s e ria a b e n z e d e ir a . Mas a

narraçào das h is tó ria s no p resen te, no caso destas

n a rra tiv a s , nào se l i m i t a á benzedeira^ estend e-se, p e lo

que se pode d e d u z ir dos dados d is p o n ív e is , a q u a lq u e r

momento em que a in d a està aberta uma p o s s ib ilid a d e de

in t e r v e n ç c i o . Nas s i t u a ç ò e s de " p e rfo r m a n c e ’’ , por exemplo, em

que a mSe n a r r a p a ra o u t r a s m ulh eres sob re os s in t o m a s da

c ria n ç a embruxada. Nesse momento, porèm, a s itu a ç à o a in d a

nào se c o n fir m o u de forma e x p lic ita como de b r u x a r i a . E

apenas quanto in te rv é m uma b e n z e d e i r a que i s s o axcontece. Mas

a p a rtir do momento em que o e p i s ó d i o de b r u x a r i a en contra


- 100

seu d e s f e c h o , o tempo v e r b a l no p a ssa d o è o u n i c o p o s s iv e l,

na medida £?m que s i g n i f i c a a c o n firm a ^ à o de uma s itu a ç à o

a n te rio r de c o n f l i t o e afirmaçiào de p o d e r.

De qual quer m an eira , in d e p e n d e n te das crenç;£i5 ou da

b ru x a ria serem v is ta s como a c o n te c im e n to s a tu a is p e lo s

n a tiv o s , as n a r r a t i v a s em s i mesmas se constituc^m em fa to s

de sua v i d a p resen te. Is s o ccn firm o u -se p e lo con hecim ento

g e n e ra liz a d o de h i s t ó r i a s de b r u x a r i a p e lo s in f o r m a n t e s .

Das p e s so a s que e n t r e v i s t e i ou com quem m antive c o n t a t o

d u r a n te a p e s q u i s a , p r a t ic a m e n t e t o d a s detinham um d is cu rs o

s o b re as b ru x a s ou c o n h e c i e-im h i s t ó r i a s de b ru x a s envol vendo

paren tes ou pesso a s p ró x im a s. Os traços comuns dos

d is c u rs o s , n a rra tiv o s ou nâD-narn^at i vos <ex p osi t i v o s ) ,

permit-iram que se e x t r a í s s e d e l e s nào apenas uma forma comum

de o r g a n i z a ç ã o n a rra tiv a , como fo i e x p o s to nas p á g in a s

a n te rio re s , como uma v e r d a d e i r a ’ c o s m o l o g ia ’ da b r u x a r i a e

uma tip o lo g ia da bruxa que p e rp a s s a , como veremos no

c a p itu lo s e g u in te , os d i f e r e n t e s s ig n ific a d o s da bruxa para

o s moradores.

Mas alèm das d i f e r e n ç a s a p re s e n ta d a s nas n a r r a t i v a s de

homens e m ulh eres, e x is te m ou tras d ife re n ça s re v e la d a s p e la

mudança do s u j e i t o narrador que devem s e r c o n s i der adtis para

uma compreensào do s ig n ific a d o da bruxa no u n iv e r s o

im a g in á rio e s im b ó lic o dos n a tiv o s la g o e n s e s . Sào as

d ife re n ç a s en tre os d is c u rs o s dos mais j o v e n s e dos mais

v e lh o s .
- 109 --

No d i s c u r î i o das p e s s o a s mais j o v e n s (menos de 30 a no s) ,

as b r u xa s aparecem m ui t o mais como seres m itológicos e

imaginários do que como p r e s e n ç a s r e a i s . Alèm do discurso

sobre as bruxas, eles articulam um discurso sobre as

h istórias de b r u x a , costumando de-f i n i - I a s como " c o i s a s do

p ass a do ", e pr i nc i pal mentC’ como "histórias que os mais

v e l h o s contam". Quer dizer, eles nSo só remetem p ar a outros,

05 mais v e l h o s , a responsabilidade s ob re as n a r r a t i v a s , como

tèm n e c e s s i d a d e de c o n s t r u i r um d i s c u r s o introdutório ás

narrativas que j u s t i - f i q u e sua p o s i ç ã o d i a n t e delas. Como se

pode ver nos s e g u i n t e s depjoi mentos:

"Ah, os mais v e l h o s è que contam mui t a


h i s t ó r i a de b r u x a . Antes dizem que t i n h a b ru xa
que chupava o sangue das c r i a n ç a , -faízia trança
nas c r i n a dos c a v a l o , r obava as canoa e as
r e d e s dos p e s c a d o r . " ( D i l s o n , 27 anos, Ca n to da
Lagoa)

"Se a s enhora quer s ab e r h istó ria de


b r u xa , è melhor -falè com a mSe e com a vò, e l a s
sabem m u i t a s h i s t ó r i a s . . . Eu p os s o c o n t à , msis
acho mel hor f a l à com e l a s , e l a s è que conhecem.
Tém a t è um - f i l h o duma t i a minha, irmS da minha
màe, que dizem que -foi embruxado, nè. A bruxa
v i n h a v i r a d a em b o r b o l e t a e e n t r a v a na c a s a p r a
chupè o sangue das c r i a n ç a . ” ( N i c o , 2ó anos,
Ca n to da Lagoa)

" E l e s eram muito c r e n t e s a n t e s , nè? liinhax


vó c o n t a v a mui to d e s sa s h i s t ó r i a . A mèe è que
c o n t a p r a g e n t e . Agora j è se sabe que nào era
isso, nè? As criança -ficava d oe n te e eles
achavam que e r a b r u x a . " ( Z e l i , 24 anos, Ca nt o
da Lagoa)

"□ - f i l h o da ... (irmà da in-formante)


a doec eu, n^o q u e r i a mais comê, d i s s e r a m que e r a
b r u x a . . . F o i agora nào -faz nem um mês. P e r g un t a
a l i p r a mèíe que e l a c o n t a p r a t i . "
1 10 -

(A mesma i n f o r m a n t e , em uma F e s t a de Sào Joào


do Ca nto da Lagoa.)

Por outro IcBdo, as nõirrat i vas que os mais j o v e n s me

contavam e-íram me^is p o br e s em d et al h ei s e, nèto r a r a s vezes,

ind efin id as quanto a datas e pessoas. Elets f al a m de "um

pesccidor" cuja canoa foi levada pelas bruxas, de "uma

criança embruxada", sem uma definiçào precisa de quem eram

e s s a s pG?ssDci5.

E s s e modo diferenciado de f a l a r da bruxa r e f l e t e , por

um l a d o , urna a t i t u d e geral dos mais j o v e n s ern r e l a ç à o a

qualquer outra q ues tào que se r e f i r a á vida, ao c o t i d i a n o ou

è h istória dos moradores da lagoa: fam ilia, re lig ià o ,

q u e s t ò e s de propriedade de t e r r a s , trabalho ou qualquer

outro assunto que n^o t i v e s s e uma l i g a ç S o diretci e e strita

ao seu u n i v e r s o de preocupaçõess e r a r e m e t i d o p<ara os mais

idosos, como os d e t e n t o r e s de um s ab er efetivo sobre o que

quer que tiv esse relaçíSo com o lugar. Por outro lado,

aparece nos d epoi mentos uma e s p e c i f i c i d a d e no t r a t a m e n t o do

tema " br u xa s " pelos mais jovens, que è o temor de scTem

cla ssifica d o s como crédulos ou ingênuos. Quer dizer, a

rejeição dos v a l o r e s e das v i v ê n c i a s dos mais v e l h o s è um

dos c a n a i s por onde os j o v e n s c onstróem sua identidade que,

n e s t e momento, passa p e l a absorção de uma c u l t u r a urbana e

"moderna" exterior á comunidade. A trib u ir o conhecimento

sobre cren ç as e histórias de bru.jiaria aos mais v e l h o s è uma

forma de não se comprometer com e ss a cultura local


- 111 -

"tradicional" e, de alguma torma, marcar sua d i -f e r e n ç a com

Cila. De que^l quer modo, d ificilm en te eles refutam as b ru xa s

ou a bruxaria como algo inexistente. A legitim idade da

crença nèfo è c o l o c a d a em q u e s t à o . P a r ec e que os j o v e n s vivem

esse duplo jogo entre, conhecendo as n a r r a t i v a s de b r u x a r i a ,

se manterem i n t e g r a n t e s da comunidade e ao mesmo tempo se

a p r e s en t a r em como p e s s o a s d i f e r e n t e s , jà integradas ao meio

urbano-

As p e s s o a s com mais de 30 anos demonstram um

envolvim ento mais intenso com as h istória s que contam a

respeito d as bruxas ou de outras f orma s de atmeaças

"s o b r e n a t u r a i s " . As nèiirrati vas são tomadas como

acontecimentos re a is, quando não sào e l e s próprios os que

v i v er am uma s i t u a ç ã o de embruxamento ou v i r a m uma b ru xa . Ou

seja, quando não è o próprio narrador o su jeito da

narrativa, seu p r o t a g o n i s t a .

Alèm de c a s o s de bruxaria envolvendo os próprios

informantes, não f a l t a r a m depoi mentos em que e s t e s afirmaram

terem v i s t o uma ou mais b ru x as , alguns com descrições

bastante detalhadas, como o de dona Maria, benzedeira da

C o s t a da Lag oa ;

"Eu vi nha na canoa pela lagoa,


c o s t e a n d o a marge. Ai ouvi assim como uns
a s s o v i u e umas r i s a d a , O lh ei pro lado de
onde vinham e vi, num galho daquela
f i g u e r a grande que tem bem na bera,
d eb ru ça da assim sobre a àgua, as bruxa
sentada. Elas eram très Ó quatro.
112 -

b a l a n ç a n d o as perninha e dando risad a."


<D. R i t a , 81 anos, C o s t a da Lagoa)

E ss a apropriação de um d i s c u r s o sobre as b r u x a s por

parte de q u a l q u e r morador, mesmo os mais j o v e n s , revela, por

um laxdo, a importância e a atualidade desta q ue s tã o parei a

comunidade. Por outro lado, a p artilh a de um divscurso comum

aos o u t r o s mor ad or es, que c o l o c a em q ue s tã o os con-flitos

e as ameaças que pai ram s o b r e a comunidade, è um -forte -fator

de c o n s t r u ç ã o de uma identide\de p ar a e s t a cultura, tias nào

basta conhecer e poder fa la r sobre a bruxa p a r a demarcar

e ss a identidade, Não b a s t a t e r um d i s c u r s o sobre e l a . I ss o

mesmo um morador de f o r a pode t e r . 0 que demarca a d i f e r e n ç a

fe o envolvimento com o nivel narrativo do discurso, a

vivência, d ire ta ou a t r a v é s de uma p essoa p r ó xi ma , de uma

situaçào de b r u x a r i a . São as n a r r a t i - v a s , a p o s s i bi 1 i dade de

contar uma h i s t ó r i a em que e x i s t a es s e e n v o l v i m e n t o , mesmo

que i n d i r e t o , por parte do narrador, que fasem de alguém

integrante da comuni dade. Conforme demonstram os d ep oi me nt os

dos mais idosos, para as geraçòes mais velhas, essa

apropriação de um d i s c u r s o comum se f a z de uma forma ainda

mais r a d i c a l ; não b a s t a conhecer algum caso de embruxamento

ou poder fa la r sobre as bruxas, è preciso ter vivido

d i r e t a m e n t e uma s i t u a ç ã o d e s se t i p o .

As narrativas marcam, ne ss e sentido, a sua

c o n te m p o r a n e i d a d e com o presente, como articuladores


- 113 -

simbólicos d as -f r on t ei r a s , dos contornos da comuni dade. Ou

mesmo de d i f e r e n c i a ç ã o d e n t r o de um e s p aç o mai s u r b a n o , Uma

amiga c o n t o u —me o seguinte episódio, que ela viveu, e que

ilu stra isso: saindo do h o s p i t a l onde t r s i b a l h a , no c e n t r o da

cidade, uma s e nh o r a com um bebê r e c è m - n a s c i d o no c o l o pedia

esmola pa ra comprar le ite em pò pa ra o bebê. Como e s s a amiga

estava r e a l i z a n d o uma p e s q u i s a sobre a le it a m e n t o materno,

r e s o l v e u pareir e perguntar pa ra a q u e l a màe; p o r q u e e l a nào

amamentava a c r i a n ç a com seu p r ó p r i o le ite , A màe re sp ond eu

que uma bruxa h a v i a atacado a criança e, em f u n ç ã o d is s c í , o

le ite havia secado. Nesse c a s o , a narrativa sobre a bruxa

è nào sò um mecanismo de d i f e r e n c i a ç ã o da màe, provavelmente

v i n d a da p e rife ria da cidade, como uma estratégia pa ra

esmolar.

Nos ú l t i m o s a nos, os l i m i t e s geográficos e físico s que

separavêim as localidades do i n t e r i c í r da i l h a da c i d a d e foram

c o l o c a d o s em q u e s t à o p e l o a c e l e r a d o p r o c e s s o de urbanização

e i n c o r p o r a ç ã o de uma " c u l t u r a u r ba na ". Hoje, ser morador

do l u g a r nào define um pertencimento á comunidade.

Tornaram-s e necessários mecanismos internos de

diferenciação. Um d e l e s è e s s a demarcação no p l a n o sim bólico

sugerid a p e la s narrativas, que, ao c o n t r á r i o dos lim ites

geográficos anteriores, nào e x i s t e mais em r e l a ç ã o és o u t r a s

comunidades, mas em r e l a ç ã o a essa o u t r a cultura, presente

agora no i n t e r i o r déj comunidade.


C A R i X U L _ 0

s o b r e : o m u n d o d a s b r u x a s =

A BRUXARIA C O MO COSMOLOGIA
- 114 -

CAPITULO 3 - SOBRE 0 MUNDO DAS BRUXAS: A BRUXARIA


COMO COSMOLOGIA

Mesmo sendo apresentadas pelos narradores como

h istórias sobre acontecimentos r e a i s , as n a r r a t i v a s conduzem

a o u t r o mundo, mos tr ad o como d e s c o n h e c i d o e estranho.

As n a r r a t i v a s dos nativos das comunidades da lagoa

sobre a at uaç íí o d as b r u x a s lembram os m i t o s de o r ig em de

algumas sociedadeej indígenas, que -foram a base para as

teorias do m a t r i arcsido. N es s e s mitos, -falava-se de algum

memento da vida nessas sociedades em que as mu lh e re s

ocuparam o l u g a r central, dominando os i n s t r u m e n t o s de poder

e pirestigio, ex er c end o a autoridade, assumi ndo

comportamentos mais pró xi mos ao mundo ma scu li no .^ E s s a mesma

inverstíD e x i s t e nas h i s t ó r i a s s o b r e b r u xa s c o n t a d a s na i l h a .

Ela se e x p r e s s a em t o d o o s i m b o l i s m o que e n v o l v e a - fi g ur a da

b r u xa , nos s i g n o s que i n d i c a m a sua p r e s e n ç a , no modo como

ocupam os e s p aç os m a s c u l i n o s e -femininos, nas suas atitudes

n e s s e s e s p a ço s di-f e r e n c i ados.

1) O mundo de caibeça p ar a baixe

Apesar dos s i m b o l o s e d as -formas que assume-; a -fi gura da

bru xa serem d i - f e r e n t e s con-forme mudem os narradores e os

sujeitos das n a r r a t i v a s , eles indicam, de forma comum, uma


- 115 -

situÊtção de de?Gordem. E s s a desordem, ou anormalidade, è

indicada tambè-rn p e l o e s t r a n h am e nt o demonstrado p e l o n a r r a d o r

diante da h i s t ó r i a narrada»

A b ru xa fe a pontada p e l o s moradores como uma ameaça vaga

sempre p r e s e n t e na comunidade^/ A sua p r e s e n ç a è mu it a s v e ze s

indicada pela ocorrência de in fortú n ios, defsgr aç as,

m al-estares, como a doença ou morte de c r i a n ç a s , a morte de

animciis, o fracasso da c o l h e i t a ou da p e s c a , naufrS\gios„ Meis

não e x i s t e uma relação de causalidade entre uma c o i s a ou

outra; nem sempre a presença da b ru xa è indicada pela

ocorrência de infortün ios e nem sempre os infortún ios

i n d i c a m neces; sar i amente que hè. uma b ru x a a t u a nd o, A bruxa

nSo pode s e r reduzida assi m a uma forma de e xp li c aç ^í o das

d ificuldades da vida c o t id ia n a ou dos m al-estares. Estes

p oderi am s e r explicados de o u t r a s maneiras e m u i t a s ve z es o

Scío.

As n a r r a t i v a s iniciam invariavelm ente com uma d e s c r i ç ã o

dos s i g n o s que i n d i c a m a p r e s e n ç a da b r u x a , mas que bò s erào

decifrados num momento posterior, Quando aparecem, estas

pistas apenas f a l a m de uma* desordem, sem e x p l i c i t a r de que

natureza ela è. Elas; se parecem com as p istas de um c r i me

que i nauguram, num romance p o l i c i a l , um m i s t f e r i o e a busca

de sua r e s o l u ç ã o (JOSEF, 1986).

Quando è um homem o s u j e i t o - ou h e r ò i - da história,

estes simbolos r e p r es e nt a m uma desordem no te rritó rio

m asculino, principalm ente nos espetços e objetos ligados ao


- 116 -

seu trabalho. Sinais deixados no -fundo da embarcação,

apa ri çôeï s r e p e n t i n a s ou r u í d o s desconhecidos na mata, na

estrada ou nas p e d r a s , onde os p e s c a d o r e s trabalham.

Quando a protagonista è uma mul her, a màe de uma

criança embruxada;, os sin ais também i n d i c a m uma desordem,

d e s t a ve:: no i n t e r i o r do t e r * r i t ò r i o -feminino - a casa e o

es paço d o m é s t i c o e -famfliar. As p i s t a s agora sào os s i n t o m a s

de uiTia doença na c r i a n ç a - o choro, as manchas r o x a s , o

de-f i nhamento, a suspeníião da amamentação.

Essa inversão re-veste t o d a a c o n s t r u ç ã o da imagem da

b ru x a p a ra os n a t i v o s . A bruxa s u rg e p e l a t rans-formaçào oú

metamor-fose i n c o n s c i e n t e de uma mulher durante a noite. Ela

tanto pode manter sua -forma -feminina, como se trans-formar em

um a n i m a l , em g e r a l um i n s e t o voador ou uma ave. ^k-:•sse c a s o ,

a borboleta é a representação sim bólica mais comum da bruxa

e não sào raras; as narrati'vas em que a p a r e c e uma delas

vocindo em vo lta da criança embruxada. A t r ans-f ormação

sig n ifica a passagem p a ra um o u t r o esteído, d i' ve r so do que

seria o "normal". 0 próprio fa to d e ss a p'assagem o c o r r e r com

a chegada da n o i t e reforça essa idèia. A noite è o momento

em que as forças obscuras e descontroladas tornam-se

p e r i goscimente p r ó xi m a s. Existe uma analogia mui to f o r t e da

noite com o inconsciente e a morte, e o perigo, nesse

momento, esté c o l o c a d o nas z ona s e s c u r a s , a mata, a estrada

os e s p a ç o s exteriores á casci.
- 117 -

A c hegada da l u z e l f e t r i c a em a l g u n s lugares como o

Canto e a Costa da Lagoa è recente (pouco mais que dez

a no s) , e atè iseo acontecer essa relação da noite com o

perigo e o rnedo a p a r e c e em m u i t o s depoi rrientos, como e s t e de

um in-formante:

" Naquel e tempo e r a dura a v i d a - . . Aqui n.^o


havia e letricid ad e, era tudo escuro. Msis
e s t r a d a também n'Ao tin h a , era tudo pi cadèío.
Quando chí^gava a noite, tinha que andà dei'
lampiiào, e mesmo assim nào v i a nada. I s s o aqui
e r a t u d o ca-fezal , As v e z e s e n c o n t r a v a com um e

’ eh, quem vem l à ’ . As vezes r e c o n h e c ia pela
v o z , mas o u t r a s . . .
( N i l s o n , 57 anos, Canto da Lagoa)

Alèm do p e r i g o em s i representado pe la noite, a s a i da

no'hurna da b ru x a è uma imagem de uma mulher que abandona o

espaço d o m é s t i c o e -familiar e i n c o r p o r a um comportamento que

á p rin cip io parece o p o st o ás ex p e c t a t i •vas sociais. Uma

mulher que s a i á noite está quebrando as r e g r a s m or a is e è a

própria imagem da sexualidade -feminina descontrolada e

perigosa para os homens. E ss a salda noturna è, em g e ra l,

acompanhada do •vôo noturno, outro a t r i b u t o das b r u x a s que

a p a re c e nos r e l a t o ? e que c o l o c a a quest^.o da bruxa v o a d o r a ,

também p r e s e n t e nos estudos sobre as bruxas em ou/tras

sociedades, alèm da e u r o p é i a : a b ru xa -mor ceg o dos Azande, a

bruxa v o a d o r a descrita por Malinowski, e-tc. Nas descrições

dos mor ad or es, as b ru xa s passam uma pomada no c o r p o , que

alguns chamam de "üni co" (umá -forma nativa de dizer


-- 118 -

unguentcj) ou se- u t i l i s a m de o u t r a s s ut a s t â n c i a s , como a sopa

tomada p e l a s sete irmèis p a r a se trans-formarem em bruxas.

Depois d i s s o , elas sèlo c a p a z e s de voar atè os lugares onde

pretendem r e a l i : : a r as b r u x a r i a s (21).

A desordem ou a i n v e r s è o torna-se mais e x p l i c i t a ainda

quando b d e s c r i t o o comportamento das b r u x a s ,

Elas invadem os t e r r i t ó r i o s considerados masculinos e

assumem a i um comportamento de d o m i n i o , de p o d e r , mesmo nos

es pa ço s c o n s i d e r a d o s proib id os ás m u l h e r e s , como aqueles

vinculados á pesca. Fazem -festas nos b a r c o s e nos r a n c h o s de

embcircações, na p r a i a , na mata e na r o ç a . Apr op ri am~s e dos

instrumentos de t r a b a l h o dos homens, como as r e d e s de pes ca

e as embarc aç ões, invertendo o seu uso: os i n s t r u m e n t o s de

trabalho Scio usados p a ra as s eus e n c o n t r o s n o t u r n o s , Mes-sas

h istórias em que as bruxas tomam conta dos objetos

masculinos, elas aparecem g e r a l m e n t e em gru po, ao contr&rio

das nar ra-hi vas s o b r e embruxamento i n - f a n t i l , em que em geral

è apenas uma b ru xa que a t a c a . Aos seus e n c o n t r o s è dado um

caráter o rg iá stico e de t r a n s g r e s s ã o s e x u a l , como no c a s o em

que e l a s se despem p a ra entrar na c anoa, lembrando os sabiss

europ eu s,

Esses encontros n o t u r n o s das b r u x a s , que s à o relatados

principalm ente pelos homens, sc<o a próp:>ria con-f i guraçèlo de

uma " a n t i - s o e i edade" de m u l h er es . Alferri de se r e u n i r e m entre

si, o que p a ra os homens signi-fica uma ameaça á sua


- 119 -

autoridade, as bruxas invertem as regras morais da

sociedade: ocupam o te rritó rio dos homens, assumem uma

atitude vista como m a s c u l i n a . Na sua n a r r a t i v a sobre esses

encontros, os homens depjositam as s ua s -fantasias sobre um

mundo -feminino que è por eles desconhecido.

Quando atuam den'tro de c a s a , as bruxHis também i n s t a u r a m

uma desordem, me^s assumem um compor-tamento oposto ao

descrito a ci ma. Escondem-se nos cantos, atrâs dos m óv ei s e

em o u t r o s e s p aç os marginais. Penetram na casa de modo

ma rg in al e ileg ítim o , como a p a r e c e e?m v á r i o s re latos: pela

•fechadura, pelas - f r e s t a s nas paredes e nas t e l h a s , nunca

pelas portas ou pelas entradas usuais. A casa e o espaço

domfestico sSo t e r r i t ó r i o s -femininos, e o comportamento das

bru-xas ai è de margem, invertendo a situação em que, na

casa, são a s mu lh e re s que ocupam uma posição central e de

poder.

Aptarecem a i n d a nas n a r r a t i' v a s os " te rritó rio s das

bruxas", espaços tip ico s de aparecimento das b r u xa s

considerados zonas p r o i b i d a s , que t od o s temem. Atè poucos

anos a t r à s , ha-via vários lu g ares deste tip o , terrenos que

p e r t e n c i a m a ninguém, em g e r a l na beira da e s t r a d a . Zonas

lim inares, que p r o p o r c i o n a m fantasias de t o d o o t i p o sobre

os p e r i g o s que as h a b i t a m . As figueiras também são vistas

como l u g a r e s habitados por bruxas, e estão simbolicamente

ligados á fig ura da b r u x a .


120 -

Esses t r a ç o s que de-finem o mundo e a imagem das bruxas

presentes nas n a r r a t i v a s dos nativos l a g o e n s e s con-fluem ns

direção de uma v e r d a d e i r a c o s m o l o g i a da b r u x a r i a , que p o s s u i

como el emento d e f i n i d o r o fato da bru>:a s er vista sempre

como uma f i gur a f emi n i n a .

As n a r r a t i v a s ap res enta m as b r u x a s c o r p o r i f i c a d a s em

f o r (Tias v a r i a d a s , que v^o de uma indefinida l uz ou vulto

branco, anim ais voadores, atfe a de mul heres c o n h e c i d a s . Em

tod as essas formeis, a b ru xa sempre uma mul her, o que è

reafirmado pela idfeia de que q u a l q u e r mulher è uma bru xa em

potencial.

As mul heres saxem do espaço doméstico e passsim a a s su mi r uni

comportamento que a p rin cip io parece ser oposto ás

expectativas da coletividad e. Um exame mais detalhado do

significado social dessas presenças, no e n t a n t o , revela que

o discurso dos moradores da Lagoa s o b r e as b r u xa s nào è mais

que uma forma de f a l a r e m sobretudo s o b r e a sua p r ó p r i a vida,

as r e l a ç õ e s sociais, os papè-is d i f e r e n t e s e sua demarcaçào

naquela sociedade.
- 121 -

2) Toda mulher è uma v i r t u a l bru>:a

A i n c o r p o r a ç ã o de atitudes q u e? a pa rentement e nào Bíso

consid eradaB próprias das mul her es aproxi ma as bruxas do

modo de agir m asculino, tanto pela forma como ocupam os

es pa ço s d e n t r o e f o r a da casa, como p e l o seu comportamento

S£5xual , visto como agressivo e p r o mi sc u o. Isso nào

sig n ifica , no entanto, que a bruxa seja uma figura que

abandone a sua identidade femi ninei e ingresse em outro

mundo, o dos homens. As narrativas e todo o d i s c u r s o s ob re

as b r u x a s indicam que e x i s t e uma I n t i ma relaçi^o e n t r e os

traços que s i m b o l i c a m e n t e d ef in e m a bruxa e o fato dela ser

sempre uma m u l h e r . Em r a r o s momentos d u r a n t e a r e a l i z a ç à o da

pesquisa de campo ouvi falar em b r u x os homens. Estes, no

entanto, nào correspondiam és d efin içòes que a própria

comunidade dava para a bruxaria. Era, em g eral, um

curandeiro, c o n h ec e do r de ervas medicinais e com uma

habilidade especifica ou um velho que inspirava medo e

respeito nos o u t r o s moradores e eram, por isso, chamados de

bruxos. Havia, numa das comunidades da lagoa, um homem

conhecido por curar p i c a d a s de c o b r a usando um composto de

vàrias ervas que ele mesmo f a b r i c a v a . Por essa habilidade

p a rticu la r era chamado de b ru xo . tias, no caso das

n arrativas, nenhum dos e v e n t o s de b r u x a r i a relatados inclu i a

homens como bruxos, e jamais b r u x os foram c o l o c a d o s como


-- 122 ~

ameaças r e a i s ás p e s s o a s da comunidade. Nunca a p a r e c e , por

exemplo, nas n arrativas, bruxos que ataquem crianças ou

pescadores, ro ub and o s eus i n s t r u m e n t o s de trabalho. Esse

tip o de b r u x a p r e s e n t e nas n a r r a t i v a s è se^mpre uma mul her .

Mas os p r ó p r i o s i n-f or ma nt es , ao mesmo tempo em que

defi nem que toda b ru xa è sempre uma mul her , dizem que

qual quer mulher da comunidade pode s er uma b r u x a . Ou seja,

qual quer mulher possui, de forma l a t e n t e ou a d o r m e c i d a , as

c a r a c t e r i s t i cas que d e f i n em o comportamento de uma b r u xa .

Nas n a r r a t i v a s , as m u l h er e s nunca sabem que são as bruxas.

Sua aç^o fe vista . como inconsciente, involu n tá ria,

impulsionada por uma predisposição in te rio r á própria

mulher. Pede p a r e c e r p a r a d ox al mas, ao mesmo tempo em que

c la ssifica a atitud e de uma bru xa como e s t r a n h a á ma neir a

como as m u l h er e s s e comportam, essa sociedaide c o n s i d e r a que

essa a t i t u d e sò e x i s t e como e x p r e s s S o de c a r a c t e r i s t i cas

particulares do mundo f e m i n i n o . A taruxa s er iei uma expressão

radical e descontrolada dessas c a r a c t e r l s t i cas que, na v i s à o

dessa s o c i e d a d e , toda mulher traz dentro de s i . Essa aç<?fo

movida por forças inconscientes è comum a t o d a s as formas

de atu aç ão das b r u x a s , diferenciando-as da f e i t i c e i r a , que

a tua v o l u n t a r i a m e n t e , a partir de habilidades adquiridas

que podem s e r pra iticadas também p e l o s homens. Existe ainda

um o u t r o c a s o emi que a mulher sabe que è b r u x a , quando sua

identidade è- c o n s t r y í d a enquanto t a l .
Alèm dÍ5So, a bruxa è sempire uma p es so a da comunidade,,

mesmo nos relatos em que ní^o è id en tificad a com nenhuma

mulher em p a r t i c u l a r . Nestes, a bruxa a p a r e c e ou como uma

ameaça va ga, sem que se faça re-f erêrfci a a nenhum e v e n t o em

p articu lar ("antes tinha muit a bruxa por aqui"), ou como uma

bruxa nSo iden tificada mas que atua em um acontecimento

especifico de b r u x a r i a . Nestes d o i s casos, a proximidade da

bruxa, o fato de fazer parte do l u g a r , està ligada, de um

lado, è c o m p l e x i d a d e das r e l a ç & e s so ciais no i n t e r i o r destas

comunidades, onde as r e l a ç õ e s c o m u n i t á r i a s e? de vizinhança

est^o m u i t a s vezes entrelaçadas e se confundem com as

relações de parentesco. E ne s se sentido também que, á

medida em que a bruxa se t o r n a conhecida, a b ru xa ri ei fe

relacionada tambfem aos co n flito s e tensões no i n t e r i o r da

comuni dade. No emaranhado com que se realizam as relações

sociais, os vi zi nho s- e p a r e n t e s , ao mesmo tempo em que. síío

fontes de a p o i o e s o l i d a r i e d a d e , t o r n a m - s e o r ig e m de ameaças

e perigos. C o n flito s e n vo l v e n d o lim ite s de propriedade,

heranças, questões de honra fa m ilia r, ou s implesment e



’ inveja", r e d e f i n e m os peipèis dos o u t r o s moradores do lugar

em r e l a ç S o ao grupo f a m i l i a r .

De o u t r o lado, o fato da b ru x a ser 'vist-a como uma

p e s so a do lugar està ligado ás d i f e r e n ç a s de identidade

entre homens e mul heres e ao s i g n i f i c a d o social do feminino

e do masculino naquela cultura, que formam, em mui tos

momentos, mundos separados e d istin to s. Acredito


- 124 --

p a r t i c ul armente que o -fato da b r u x a r i a se o r i g i n a r de d e n t r o

da comunidade e s t à ligado ao -fato das b r u x a s serem vistas

como m u l h er es . P itt-R iv e rs rcí-fere-se á d i s t i n ç S o elaborada

por Mary Douglas entre a bruxaria do in te rio r e a do

exterior, e ás d i s t i nç bes entre bruxas -femininas e

masculinas, como t e n d o a ve r com a " d e - f i n i ç à o dos sexos".

Existe uma d i v i s ã o moral que d e l i n e i a essa distinção.

"Les hommes o p è r e n t en v e r t u de leur


r e l a t i o n au monde extérieur à la communauté
t a n d i s que l e s -femmes t i e n n e n t l e u r p o u v o i r du
mond e i n t è r i eur , c■
’ e s t - a - d i r e i nt er i sur à la
maison e t mtème i n t é r i e u r au corpjs. " (1985:125)

Como toi visto no c a p i t u l o 1 - Organização F am iliar e

Poder Domfestico, a construção da identidade -feminina è

re alizada em g r an de p a r t e em um mundo e um es paço próprio

das m u l h er es , do qual os homens e s t ã o excluidos. Além de uma

divisão s e x ua l do trabalho, que define tarefas

diferenciadas, è possivel se considerar ainda o que

P itt-R iv ers (1936) chamou de "divisão moral " do trabalho,

que é a forma como as q u a l i d a d e s morais são d istrib u íd a s

e n t r e os sexos. As m ul h er es estariam desta forma mais

ligadas a um mundo que vem do i n t e r i o r (dos c o r p o s , da c asa ,

da c omuni dade), e n qu ant o os homens e s t a r i a m mai s l i g a d o s ao

que vem do exterior (P itt-R ivers). Os homens também tém o

seu mundo próprio e um s ab e r que nèo è dominado pelas

m u l h er es , mas sua autoridade è reconhecid a e aceita como

legitim a por toda a comunidade. Jà as m u l h e r e s , alèm de


- 125 -

posBuirem um mundo e saberes próprios, se c o n s t i t u e m num

laço a-fetivo e moral essencial para a própria reprodução

social da comuni dade. O seu domi ni o è, no entanto,

desconhecido para os homens. Eles não controlam o que è

•feito na sua a u s ê n c i a . nem sabem o que è conversado ou

trocado quando as m u l h er e s se reúnem sem e l e s .

Com base ne s se mundo -feminino, do qual os homens

dependem, tis mul her es possuem um pjoder que, de. alguma forma

precisa ser elaborado p e la sociedade, Não sendo um poder

aceito enquanto a u t o r i d a d e legitim a, ele a p a r e c e sob outras

formas, a b ru xa è? uma d e l a s .

Vários £iutores têm trabalhado a p r e s e n ç a da bru xa

f e m i n i n a em s o c i e d a d e s d i f e r e n t e s . Mauss, a pes ar de e s c r e v e r

especi f i C c tm e n te sobre a ’ m ag i a ’ , dà uma importarrt e

contribuição p a r a os e s t u d o s p o s t e r i o r e s s o br e a r e l a ç ã o dêis

mul heres com poderes, especiais, P ar a e l e , as mu lh e re s são

c o n s i d e r a d a s mais a p t a s p a r a a magia mais p e l o s "sentimentos

sociais" dos quais sào objetos, do que pjor suas

caracte rísticas fisica s- Os "sentimentos sociais", ne ss e

caso, não são mais do que c o n s t r u ç ò e s c u l t u r a i s . Mauss, de

uma c e r t a forma, antecipava aquilo que ho je se c o n s t i t u i num

paradigma fundament al para os e s tu d o s dos gêneros na

Antropologia: o de que ’ fem inino’ e ’ m asculino’ são

construçòes s o c i a i s , cuja defin ição e c o n to r no v a r i am de uma

s o c i e d a d e ou de uma c u l t u r a para outra. Os p e r i o d o s crítico s


- 126 -

por que passam as mul heres lhes con-ferem, segundo Mauss, uma

posiçào e s p e c i a l, con etituindo-se, aos alhos dos outros

membros da sociedade;, momentos - f a v or á v ei s p ar a uma "açèlo

p ar a a m a gi a ” . Mas, mesmo -fora d e s s e s p e r í o d o s crítico s, as

mul heres s^o a l v o de c r e n ç a s , tratamentos d if e r e n c ia d o s e

prescriçôes, o que, para Mauss, d e n o ta que elas se

constituem em uma "classe in te rio r” ^ sociedade?.

< P i t t —R i v e r s e Mary Douglas^ por outras v ia s , -trabalharam

mais t a r d e com e s s a id èia de que as m ul h er es e s t S o mais

ligadas âs c o i s a s do i n t e r i o r , sem no e n t a n t o mencionarem o

t r a b a l h o de Mauss).

Analisando a p r e s e n ç a da d u a l i d a d e sexual nos u n i v e r s o s

m itológicos de v á r i a s culturas, Balandier <1976) conclui que

hè uma autonomia re lativa das relaçòes entre os se-xos em

r e l aç c fo ás outras i n s t i t u i ç fees dsi sociedade; de uma

sociedade para outra, elas se mantém d e s i g u a i s . Par a E í le , è

possivel id e n tifica r, em uma mesma c u l t u r a , duas sociedades

d istin tas; uma s o c i e d a d e masculina, que se a p r e s e n t a como a

sociedade toda e que c ol o cc i as mul heres a seu serviço,

considerando-as individualm ente, e uma s o c i e d a d e feminina,

fraca, de i n f l u ê n c i a lim itada, que s i t u a - s e na sua p e r i f e r i a

e se r e l a c i o n a "em r e d e " . As mul heres estariam á margem,

" a c a n t o n a d a s num u n i v e r s o social lim itado e com fronteiras

vigiadas". Ocupariam os lugares de f r o n t e i r a , que marcam a

passagem de um estado para outro, E por essa p osição de


-- 127 -

a mb igui dade, segundo B alandier, que as m u l h er e s nKo sMo

apenas a metade subordinada, mas são também a metade

perigosa. Elas são sempre v i s t a s pelos homens como o o u t r o e

■formam, na v i s ã o deles, uma a n t i —s o e i edade,,

Mary D o u g l a s (1976) também r e l a c i o n a a predisposição

das mul heres p a r a serem i dc?nt i-f i c ad as com b r u x a r i a com a sua

situação ambigua. Para ela, as p r á t i c a s de b r u x a r i a estào

relacionadas com a s i t u a ç à o ma r g i n a l ou ambígua das p e s s o a s ,

c o n s i d e r a d a s como e x c l u í d a s dos p ad rõ e s s o c i a i s , mesmo que

temporariamente. E o que ela chama como o perigo dos

" e s t a d o s de t r a n s i ç ã o " . A poluição, considerada como o que

estã é margem, num e s t a d o de 1i m i n a r i d a d e , de lim ite , è

c a r r e g a d a de poder e perigo exatamente por sua s i t u a ç à o de

a mb ig ui da de. P a r a Mary D o u gl a s , a bruxaria se e n c o n t r a na

"an ti-estru tu ra", e x p r e s s a uma i n a r t i c u l ação s o c i a l .

Esses dois mode los , que remetem p a r a uma v i s ã o das

mul heres como uma metade á p a r t e no i n t e r i o r da s o c i e d a d e e

marginais ás estruturas sociais, devem ser pensados de

a c or d o com a e s p e c i f i c i d a d e da c u l t u r a estudada. Em p r i m e i r o

lugar, assim como os homens, também as mul her es , nas

comunidades em questão, sào a gent es sociais que atuam de

•forma e s t r u t u r a t i a (ROSALDO £
-:■ LAMPHERE, 1979, p. 27). No c a so

das mulheres, existe uma estrutura interna, que è

desconhecida dos homens, um mundo que e l e s não dominam e

que, em -funçào disso, pode ser e n ca r a d o como uma


-- 128 -

ant i-EDC:i edade ou uma s it ua çè ío de i n a r t i c u l açlío so cial.

Tambfem o -fato de que e s s e “mundo -femi ni no", em certos

aspectosj -foge aos modelos d omi n an te s d a q u e l a sociedade è um

fator para que as mul heres se?j am v i s t a s como i n a r t i c u l adas

s oc ia lment e. , D e s t a forma, o que p r e d i s p ò e aqui as mul her es

p a r a uma identificação com a bruxaria, fazendo com que

qualquer mulher seja um.a virtu a l bruxa, nèío è tanto a suíx

ambig ui da de, mas o fato de constituírem es s e mundo

d e s c o n h e c i d o dos homens e que escapax aos modelos que a

sociedade c o n s t r u iu pa ra e l a s .

A l gu n s a u t o r e s , como Rosal do e Lamphere Í1979) e Wolf

<1979), tém t r a b a l h a d o mais a idèia de que a id en tificaçào

da bru xa com as mul heres é? uma forma que a sociedade

e n c o n t r a de conviver cora uma s i t u a ç à o de poder feminino,

considerada anômala. A a mbi gui dade e x i s t i r i a no f a t o de que,

ao de?ter p o d e r , a mulher a p ro x im a—se do mundo dos homens,

constituindo-se num ser ambiguo - nem homem, nem mulher - e

por isso mesmo mais c a r r e g a d o de p e r i g o e p o de r , A bruxa

seria também uma forma que a sociedcxde e n c o n t r a de c o n s t r u i r

p a ra si uma imagem das m u l h er es , na medida em que t o d a s Scío

p o t e n c i a lment e b r u x a s .

Mas, no c as o da b r u x a r i a européia do f i n a l da idade

média e in icio da moderna, a meiioria dos e s t u d o s têm se?

lim itado a analisar a bru xa a p a rtir do discurso

in q u is ito ria l e da p e r s e g u i c S o a que foram s u j e i t a s . .


129

Analisando a i dent, i f i c a t S o da f i g u r a da b r u x a com a

mulher no i m a g i n á r i o ca tó lico , Pitanguy a pon ta a bruxaria

como uma categoria p o lítica de a c u s a çã o das mulheres. A

fabricação da bruxa pelo discurso demonològico e

in q u isito ria l te ria ocorrido em um contexto de

" r e d i s t r i bui çíí.o do poder entre os s e x o s " :

"A f a b r i c a ç S o da bruxa pelo discurso


d e m o no l ò gi c o o c o r r e no marco de uma l u t a pelo
m on op ól io da l e g i t i m i d a d e de c o n h e c i m e n t o s por
p a r t e da I g r e j a (saber de i n t e r m e d i a ç ã o com o
s o b r e n a t u r a l ) e dei M e d i c i n a (saber de c u r a ) , e
a h i s t ó r i a da c a ç a ás b r u xa s v a i de par com a
demarcação h i s t ó r i c a das esferas de atua^ç^o
in stitu cio n al destes saberes." (Pitanguy,
1985).

Essa visão è correta do p on t o de vista de uma

interpretação do quadro p o l í t i c o da c o n s t r u ç ã o do conceito

de bruxa na Europei Moderna. Se o d i s c u r s o in q u isito ria l tem

sido tomado como a f o n t e central nos e s t u d o s s o b r e bruxaria

è porque è a fonte d is p o n ív e l. 0 que ficou registrado è

aquilo que a c u l t u r a letrada domi nante na època registrou.

Permanece a lacuna em re l aç ê fo ás representaçóes que as

populaçóes e g ru pos loca is possuíam de b r u x a r i a , nào só

durante a "caça' ás b r u x a s " , mas antesH- e depois. Talvez a

maior lacuna seja em r e l a ç ã o a como as p r ó p r i a s mul her es

pensaveim essei id entificação com a b ruxa, em uma outra


- 13õ -

situação que nào as c on -f is sò eB o b t i d í t s a t r a v é s da t o r t u r a «?

de presBÒes de t o d o s os t i p o s .

P itt-R ivers (1V85) considera a importância de

diferc^nci ar as teorias populares sohjre a bruxaria das

teorias dos trib u n ais. Para ele, a q ue s tà a do sexo das

b r u x a s nèío serè resolvida sem que se t enha em conta os

atributos morais ligados aos sexos. As mulheres teriam

atributos morais di-ferentes dos homens que, em algumas

situações especiais^ as tornam mais suscetíveis á

i den'hi-f i ca çào com a bruxaria. Ele estabelece ainda um

vinculo entre a dis tinçíiio que se -faz e n t r e os poderes e e s s a

divisèio moral. Assim, a -feitiçaria praticada p e l o s homens se

diferen cia da f e i t i ç a r i a praticada pelas mulheres também em

f u n ç ào d e s s e s atributos morais d i f e r e n c i a d o s , Enquanto os

homens t r a t a m de uma habilidade adquirida, um conheciment o

que è i n c l u s i v e registrado, escrito, as b r u x a s agem a p a r t i r

de encantamentos que vêm de dentro, e que j a ma i s sà o

escritos. Ele compara e s s a difere?nça é divisào f e it a por

Mary Dougl as <1970) entre a bruxaria que vem do i n t e r i o r e a

que 'vem do e x t e r i o r .

Penso que um o l h a r sobre as r e p j r e s e n t a ç b e s de bruxaria

na I l h a de S a nt a C a t a r i n a coloca algumas c e n t e l h a s na l a c u n a

existente nos e s t u d o s sobre a b r u x a r i a no d i s c u r s o o f i c i a l e

nas r e p r e s e n t a ç õ e s populares. De um lado, è possí-vel se

constatar aqui uma semelhança m ui t o f o r t e com os r e l a t o s de


- 131-

bruxaria da E ur o pa . De outro, o fato de serem eventos

n a r r a d o s no i n t e r i o r da comuni dade, um d i s c u r s o que fe p os se

de t oda a populaçêío e que remete fundament al ment e a f or ma s

de poder f e m i n i n o e nèío a mecanismos de r e p r e s s è o ou a um

a p a r a t o de p e r s e g u i ç ã o das m u l h e r e s , p o ssib ilita um outro

tip o de i n t e r p r e t a ç è i o p a r a a b r u x a r i a e as b ru x a s .

Apesar das s emel ha nça s com os r e l a t o s s o b r e as bruxas

europfeias, o que existe não è uma imagem de bruxa que se

crista lizou no discurso in q u is ito ria l e se congelou no

tempo. Be as representaçbes dos habitantes dessas

comunidades t#m uma raiz no i m a g i n á r i o cató lico da E ur o pa

li oderna, elas sò puderam permanecer vivas d u r a n t e mais de

dois sfeculos p or q ue r e e n c o n t r aram um apoio na p o s iç h .o

c o n c r e t a ocupada p e l a s mul her es nes-t'a s o c i e d a d e local e pela

manei ra como se c o n s t r ó i a identidade feminina. Aqui, a

crença e o temor de um s e r sobrenatural só faz sentido

enquant o re alização im aginária de um medo real que a

sociedade <os homens) nutre em r e l a ç à o ás mul heres .


- 132 -

3) Mulheres des-vi a n t e s

“Quandcj alguém tem sete -filhas, a


d e r r a d e i r a , quer d i z e r , a q u e l a que v a i s e r a
s e t e , tem que s e r b a t i z a d a p:.ela mais --/elha,
senèíD pode v i r à b ruxa. A - f i l h a do Z i q u i n h o , lá
do Cbrrego C-irande, a mais ve^-lha batizó a
menor, " <D, E ud o r a , Canto da Lagoa)

A bruxa, na maior p a r t e das v e z e s , è tid a como uma

ameaça vage e sua presença ou açSo è indicada pela

Dcorr-ènci a de in-fortúnios ou de algum t i p o de desordem.

Quando a mulher responsi àvel pelo mal-estar è i dent i-f i c a d a ,

ela em g e r a l deixa de s e r b ruxa, como dizem os moradores,

"quebra-se o encanto". Hà, no e n t a n t o , algumas s i t u a ç ò e s em

que d e t e r m i n a d a s mulheres sè^o v i s t a s pelos outros moradores

como b r u x a s e s e u s p a p é i s e sua i d e n t i d a d e na comunidade sào

construídos em t o r n o d e s s a -figura. Ter um o l h a r "ameaçador"

ou p o s s u i r um comportamento "estranho", ou s e r a sétima

-filha, sSo al gumas d as c a u s a s a p r e s e n t a d a s p e l o s in-formantes

p a r a uma mulher tornar-se uma b ru xa .

Pouc os casos desse tip o se a pre s en t ar am p a r a mim.

Recoloca-se aqui a q ue s t ã o da i dent i-f i c a ç l o da b ru x a nào ser

tornada p ú b lic a . Por outro lado, uma mulher semp-fre è chaíTiada

de b ru xa p e l o s outros, nunca p e l o s seus p r ó p r i o s parentes.

Fiquei surpresa quando, con-versando com um in-formante do

C an t o da L a g o a , ele me c o n to u que a avò de uma das minhas

prin cip ais i n-f ormantes e r a uma bruxa. Quando e r a -viva, toda
- 133 -

a comunidade id e n tifica va D. C e lita como b r u x a , mas nas

entrevistas com s eus fam iliare s ou mesmo com outros

informantes, ningufem s eq ue r mencionou a sua e x i s t ê n c i a ou

fG2 qualquer relaçào com o f a t o de s e r vista como b r u x a . Ela

e r a uma b ru x a p ar a os o u t r o s .

Segundo o informante, D. C e lita era chamaria de bru xa

porque " pe irec ia uma b r u x a " :

"Ela e r a v e l h a a ssi m, t o r t a , mui t o magra.


E r a m ui t o e s t r a n h a . Todo mundo t i n h a medo d e l a .
E e l a andava Á c a v a l o . Toda n o i t e e l a montava e
i a c a v a l g a r no campo. Dizem que quando v o l t a v a ,
p e l a manhèi., t i n h a t r a n ç a nas c r i n a dos cavalo.
E l a s f a z i a m a t r a n ç a p ra poder s e gur à a l i , "
( D i l s o n , 27 a nos, C a n t o da Lagoa)
M a i s uma vez a p a r e c e a i a c a v a l g a d a n o t u r n a como uma

imagem r e l a c i o n a d a com a b r u x a .

As ou tr sís mu lh e re s v i s t a s como b r u x a s das quais tomei

con he c ime nt o n2ío eram muito d i f e r e n t e s do c a so descrito

acima: uma mulher negra, que v i v i a sò com a f i l h a numa casa

c e r c a d a de mato, da qual t o d o s t inham medo, uma o u t r a que

morava s o z i n h a em uma c a s a isolada das outras. T odas com

c a r a c t e r i s t i cas que as tornam desviantes dos modelos e

p adròes s o c i a i s d omi na nt es n a q u e l a sociedade. Sào em geral

mul heres que n^>o e s t à o s u b m e t i d a s é autoridade masculina, ou

porque sâo viúvas, ou p o r q u e nunca casaram ou por que o

mari do f o i embora.

Como foi visto antes, a mulher idosa c u j o m a ri d o è

a u s en t e è particularm ente d ot a da de p od er . Ela assume o

p apel de c h e f e da f a m i l i a , torn a-se o centro em t o r n o do


-- 134 -

qual S£? mantém o grupo - f a m i l i a r , assume p a p é i s c o n s i der ados

m a s c u l i n o s . . Mesmo quando o m a ri d o a i n d a permanece ao l a d o da

es pos a na v e l h i c e , esta a d q u i r e um poder mai or em -funçèío da

própria dependência que o homem velho tem por ela. A

a p r o p r i a ç S o de t a l poder por uma mulher è, num determinado

sentido, pouco suportado pelo resto da comunidade,

principalm ente pelos homens. A conjunção de uma situaçào

desse tipio com o u t r o s atrib utos sim bólicos masculinos (a

mulher que anda á cavalo, mulher magra - ao c o n t r á r i o da

imagem da màe protetora e -fértil, etc) dispõem estas

mu lh e re s a serem e n c a r a d a s como bru::as. ^

Estudos sobre a perseguição das b r u x a s , tanto na Europa

qua nt o em alguns lugares do N o r d e s t e e Norte b rasileiro s

(E-iELTRAO, 19385 LEVACK, 198S, entre outros> revelaram que

as b r u x a s , i denti-f i c a d a s enquant o ta l, di-f i c i 1mente sào

"aldeàs típ ic a s ". Sào em geral mulheres nào-casadas e

reconhecidas pela comunidade como d e t e n t o r a s de um s aber a

mais (cozinheiras, p arteiras, curandeiras), Na p e s q u i s a que

re alizo u a p artir d as d e v a s s a s das v i si t aç õe ^ s da Inquisiçào.

do Pa rà , Ja ne B e l t r à o (1988) le vantou que a maior parte das

m u l h e re s a c us a das de bruxaria eram c u r a n d e i r a s , rezadeiras

ou p arteiras. 0 estudo de No-vinski (1986) s o br e as

visitações no Nordeste conclui que a maior parte das

a c u s a ç õ e s e dendincias está ligada a comportamentos sexuais

considerados desviantes e transgressores pel éj I g r e j a .


SèíD situaçòes em que as mu lh e re s , assumindo um

comportamento ambiguo, algumas v e z e s invertendo os papéis

masculino e femininos, e uma a t i t u d e que es ca pa aos p ad rò es

m or a is do sistema social, sào investidas de poder. Pelei

posiçào e p e lo s papéis que desempenham, pelo comportamento

que assumem, essas mulh€-?res d e s v i a n t e s estSo vinculadeis a

uma s i t u aç c io de desordem e descontrole so cial. De um lado,

elas StlD v i s t a s como g e r a d o r a s d es sa situaçSo desordenada -

e por isso perigosa. De o u t r o , a forma que a s o c i e d a d e tem

para e la b o r a r e aceitar a sua presença e o seu poder è

inserindo-as em uma situaçèo de desordem, ou seja,

demarcando um l u g a r defin ida para e l a s , meirginal á estrutura

social, ou c o l o c a n d o os s eus lim ite s de p e r t e n c i m e n t o a essa

estrutura.

Es sa a mb i g ü i d a d e pode s e r atribuída também a mul heres

de ori gem exterior á comunidade, que vieram de outros

bairros, e n^o s e integraram t o t a l m e n t e nas r e l a ç ò e s locais

<22). Essas mulheres ScSo t i d a s como portadoras de p od er es

especiais e sè.o em g e r a l m al-vistas p e l a comuni dade. Possuem

relações con flitu osas com v i z i n h a s e p a r e n t e s do m a r i d o . Em

uma ocasi cío em que uma jovem moradora adoeceu e foi

e n f r a q u e c e n d o a c ad a d i a , a mSe de seu namorado f o i apontada

como r e s p o n s á v e l e como t e n d o p r a t i c a d o fe itiça ria contra a

jovem, p a ra impedir o namoro com o f i l h o . Essa mulher veio

de o u t r o b a i r r o e tanto ela quanto o ma ri do possuem uma

relaçào a t r it a d a com a l g u n s moradores do l u g a r .


- 136 -

No c a s o em que d e t e r m i n a d a mulher fe i d e n t i f i c a d a pelos

outros como uma b r u x a , acredito que e x i s t a uma c i r c u l a r i d a d e

entre a atrib u ição e a incorporação de d e t e r m i n a d o s papéis

relacionados com e s s a identidade. Ao mesmo tempo em que è?

vista como b r u x a , por se a l i n h a r com algumas c a r a c t e r i s t i c a s

esp ecificas, ela acaba incorporando ou reforçando essas

ca ra cte rística s e um comportamento t i p i c o de bru xa <que è em

parte o que Mary D ou gl a s chama de " pe s so as zangadas"),

assumindo e l a mesma e ss a identidade.

4) Uma c o s m o i o g i a da b r u x a r i a e outros poderes

"Quando a c r i a n ç a chora m ui t o, é bru xa


v i v a j quando tem um r o x o no cèu da b o ca , que
chega a vi rã f e r i d a , aí è bruxa morta. Es sa
pode a t è matá a criançst e demora mais pra
tiré ." ( E l i s a b e t e , 36 ano s, Ca nto da Lagoa)

Das n a r r a t i v a s recolhidas, fe p o s s i v e l se f a z e r uma

distinção entre os d iferentes tip o s de b ru xa s e outras

formas de poder "s o b r e n a t u r a l ". E possivel se f a l a r numa

tip o log ia das bruxas que estabelece uma complexa

cla ssifica çã o nativa das d i f e r e n t e s formas que as bruxas

assumem, suas (nanei r a s de atuação, a diferença entre as

bruxas e outras ameaças que rondam os moradores, como a

fe itiça ria , o q ue b r a n t o e o mau - ol ha d o.


- 137 -

A b r u xa , de a c or do com as n a r r a t i v a s , pode s e r bruxa

viva ou morta. A bruxa morta fe o e s p i r i t o de uma mulher que

jè morreu e que r e a p a r e c e parat "-fazer o mal ".

PeríguntadoE s ob re que t i p )0 de mulher podia se

trans-formar em uma bruxa d e p o i s de mo r r e r , os i n-formantes

r e sp ond ia m inicialm ente que e r a qualquer mulher. Quer dizer,

t e n d ia m a generalizar a extensàc» da predisposição par^-i a

brux£tri<a p a r a t o d a s as mu lh er es . O mesmo se dava quando se

t rata- va das b r u x a s vi-vas. Mas, n e s s e c a s o >, as próprias

n a r r a t i - v a s e l u c i d a v a m m ui t a s v e z e s e s s a identidade da bruxa

como sendo uma mulher próxima, com um c o n - f l i t o anterior com

alguém da -fam ilia , pr i n c i p a l ment e a mèe, da criamça

embrux ada.

a) A bru xa morta

No c a s o das b r u x a s mor ta s, apontavam que eram em geral

m u l h e re s que j à haviam s i d o bruxas quando v i v a s , ou a s é t i m a

■filha de uma - f a m i l i a , que nào -foi batizada pela i rmà mais

velha p ar a p r o t e g ê - l a da p o ssib ilid a d e de v i r a r uma b r u xa .

Eles dizem que c r i a n ç a s a t a c a d a s por b r u x a s mortas c or rem um

risco sério de m o r re r , e sò uma benzedceira mui to p o d er o s a

tem c o n d i ç õ e s de combater um embruxamento desse t i p o .

Quando a brux^j morta é v i s t a , ela sò a p a r e c e na -forma

de um vulto ou uma l u z irrecon hecivel, que impòe medo e

sentimento de impotência aos mor ador es. As histó rias sào

mui to s e m e l h a n t e s a e s t a n a r r a d a por uma i n f o r m a n t e .


138

" A l i morava a n t e s a vò, màe da minha màe.


0 meu t i o í a m u i t o na c i d a d e , -ficavíi pjor l è e
ai a comadre d e l e v e i o acupà a caset. A l i , uma
n o i t e , n o i t e de v e r è o e r a c omp ri da , a vò tava
•fazendo s e r è o , b a t e n d o a l g o d à o p ra -f i è no o u t r o
d i a , e a comadre -fazi a r e n d a , A comadre dormiu
e a vò continuô a b a té o algodSo, a t è que a
c r i a n ç a começ-6 a c h o r a r no q u a r t o . E l a -foi a't.è
l è e pensó; ’ ma\s s e r á que a Ni c o t a nào ouviu
e l a c h o r è , dei-tadéx ai do la do?" Ai e l a en>;ergô,
em cima do t e l h a d o , bem em cima da c r i a n ç a , uma
l u z que dava v o l t a assim, enquanto a criança
chorava. Era uma bruxa, e a criança acabô
morrendo d e p o i s . Bruxa m o r t a . "
(D. E ud or a , C a n t o da Lagoa)

Mas a de-finiçàcj de se è uma bruxa vi-'/a o-a morta que

estè atacando, por exemplo, em uma s i t u a ç S o de embruxamento,

nunca fe anterior ao des-fecho da situaçèo. Se a criança

mor re, o que i n d i c a uma s i t u a ç à o de d e s c o n t r o l e e impotência

p or parte de sua mèe e dsi b e n z e d e i r a , dizem entào que -foi

uma bru xa morta.

Esse t i p o de b ru xa representa um p e r i g o maior por que

ScSo -formas mais d e s c o n t r o l adas e i n a r t i c u l adas de p o de r .

E las nunca sèo id en tifica d as, sào mu lh e re s desconhecidas

cuja açào è vista como mu i t o menos controlável e mais

perigosa. A bruxa morta nunca pode s e r identificada com

.ninguém, éla permanece sempre como uma figura estranha e

irre con h e cíve l. Comparando os c a s o s de b r u x a r i a que chegaram

a t è mim, constatei que, na mai or parte dos os c a so s em que a

criança embruxada morreu, a c aus a foi d irig id a para a açSo

de uma b ru xa mor ta. A morte sig n ifica a derrota, a

im potência d ia n t e da b r u x a r i a . E possivel se fazer e ss a


- 139 -

analogia entre a b ru x a morta e o -fato da b r u x a r i a <no c a so

da bru xa v i v a ) ser inco n scie n te . Tanto a morte quanto o

inconsciente sào z o n a s d e s c o n h e c i d a s , obscuras e, por isso

mesmo, vistas como p e r i g o s a s . Tanto a bruxaria da bru xa

morta quanto a da v i v a r e p r es e nt a m essa obscuridade e esse

p e r i go.

Se a criança sobrevive, t em- s e uma situação sob

controle. Ai a b ru x a é r e c o n h e c i d a como uma b ru xa v i v a e, em

alguns casos, i d en t i-f i cada como uma mulher conhecida.

b) A b ru xa v i v a

A b ru xa v i v a pode ap€trecer sob duas fo r ma s . Uma è a

mulher que, per seu comportamento visto como estranho e

desviante, in sp ira medo e è vista sempre como uma b r u xa ,

construindo sua i d e n t i d a d e d es sa forma. A outra ë a mulher

que se m e t a m o r f o s e i a t e mp o r a r i a m e n t e em bru xa p a r a praticar

determinados m a l e f í c i o s .

Na prim eira f orma , jà descrita anteriormente, a bruxa

è uma mulher que, por sua condição especial, vista como

marginal, estranha ou d e s v i a n t e , è? i d e n t i f i c a d a como uma

bruxa. Essa id e n tifica ção te?m um c a r á t e r mais d u r a d o u r o , a

imagem da b ru xa è fixada sobre a mul her , e esta acabe

incorporando essa identidade no seu comportamento. A

presença desse tip o de bruxa aparece no discurso dos

moradores com um sentido p a r t ic u la r , Ela não a p a r e c e como

protagonista de nenhuma açào de b r u x a r i a em e s p e c i a l , ao


- 140 -

c o n t r è t r i o das o u t r a s bruv.as, que sò e x i s t e m a p a rtir de a t o s

de b r u x a r i a bem demarcados. A mulher que è? sempre uma bru xa

existe na comunidade como uma ameaça, uma i n s p i r a d o r a de

terrores, uma demarcaçcio da a n t i - n o r m a . Constrói-se um medo

cole tivo em t o r n o dessa figura que^ pode- tomar qualquer homem

ou c r i a n ç a como sucss v i t i m a s , mas nunca r e a l i z a a ameaça. Ao

descrever seu comportamento e as formas como atua, os

moradores procuram a p o n t a r sin ais que comprovem que e l a è

r e a l m e n t e uma bruxa: "ela era velha a ssi m, torta, mui t o

magra, parecia mesmo uma b r u x a " , "tinha uma c a r a fe ia , todo

mundo t i n h a medo d e l a " .

Na segunda forma em que se i n v e s t e a b ru x a viva, ela

tem um c a r á t e r efé mero e t r a n s i t ó r i o . De um l a d o , podem ser

m ul h e r es que e v e n t u a l m e n t e ou em d e t e r m i n a d a s fepocas do ano

t r a n s f o r m a m - s e em b r u x a s e praticam bruxarias de diversos

tip o s em uma mesma r e g i à o . A transform açlo ocorre graças a

um e n c a n t o especial que pode ser desfeito se as b r u x a s sào

descobertas. Se uma p es so a que e s t à s o f r e n d o um a t a q u e de

bruxaria vé a b ru xa agindo e reconhece ne la alguma mulher da

comuni dade, o encanto se q uebr a, e a mulher nào se

transforma mais em b r u xa . De outro lado, a b ru x a pode ser

uma mulher bastante próxima, que sò se m e t a m o r f o s e i a p a ra

p raticar um m aleficio especifico. Quer dizer, elas sào

b r u x a s por que fortim r e l a c i o n a d a s a uma s i t u a ç à o de bruxaria

que accjnteceu com p e s s o a s próxi mas (vizinhos ou parentes),

com as quais t i n ha m j à um c o n f l i t o anterior. Em ambos os


- 141 -

c aEos descritos acima;, nào bò a bruxaria, mas também o

e n c a n t o da bruxa se desfasem quando esta è i dent i-f i cada e

reconhecida como uma mulher da comunidade. A id en tifica ção

remete a uma situaçào que pode ser controlada e, ne s se

s e nt. i d o , de s f e i t a .

c) O u t r o s p od e r e s

Alfem da b r u x a r i a , os moradores f al a m sobre outros

poderes causadores de m a l - e s t a r . Com o mesmo c artster de

p r o d u t o s de açòes inconscientes e involu ntárias, estào o

q u e b r a n t o e o mau- ol hado. 0 q u e b r a n t o fe uma e n e r g i a in te rio r

que a t i n g e principalm ente as c r i a n ç a s pequenas e pode ser

provocado t a n to por uma p es so a que t enha um a t r i t o com a\

màe da c r i a n ç a , quanto p e l a própria màe, por "excesso de

paixão“ . As c r i a n ç a s , consideradas mais v u l n e r á v e i s , s of r em

as c o n s e q u ê n c i a s de uma s i t u a ç à o em que sào os sentimentos

que agem de um modo d e s c o n t r o l a d o , sejam s e n t i m e n t o s de amor

ou de ò d i o . J á o mau-olhado è cetusado por um s e n t i m e n t o de

inveja ou ciümes e também é resultado de uma v o n t a de

nào-consciente. Ma is uma vez coloca-se a q ues tào do medo de

um d e s e j o ní so- ra ci onal como o s u b s t r a t o onde se desenvolvem

nas m ul h er es os sentimentos e impulsos incontrolados e

perigosos, c a u s a d o r e s de desordepTi e m a l - e s t a r . No c a s o a q u i ,

o medo náo se d irig e tanto ao inconsciente, mas a

s e n t i mentos p a r t i c u l a r e s .
- i42 -

A fe itiça ria , d iferente da bruxaria, è uma açcto

volunt&ria, re alizad a a p artir de uma h a b i l i d a d e e de um

conhec iment o a d q u i r i d o em g e r a l de o u t r a s pessoas. E nq ua nt o

a bruxa nào usa i n s t r u m e n t o s ou recursos exteriores, a

fe itiça ria se u t i l i z a de en ca n ta me n to s, usa o b j e t o s , profere

palavrets i n v e s t i d a s de poder "mágico". Uma i n f o r m a n t e tenta

descrever essei d i f e r e n ç a :

"Tem d o i s t i p o s . Tem a bru xa que è essa,


de Deus„ E tem a o u t r a que è? a f e i t i c e i r a . E ss a
e l a a p ren de por q ue r er saber. A ssi m, se a
s e nh or a é unia f e i t i c e i r a e eu quero s e r também,
a i eu vou p e d i r p r a s e nh o ra me e n s i n a r . "

A fe itiça ria , assim, ao c o n t r á r i o dos o u t r o s poderes,

depende e x c l u s i v a m e n t e de uma vo nt a de deliberada de c a u s a r o

mal. Os próprios mor ador es estabelecem a distinçèío, jâ

d escrita por vâxrios antropólogos que trabalham com e ss a

q u es t ão em o u t r a s culturas, e n t r e um poder involu ntário e um

poder v o l u n t á r i o (DOUGLAS, 1976; PI TT -R IVER S, 1993). Na

medida em que se trata de uma " h a b i l i d a d e adquirida", a

fe itiça ria pode s e r também p r a t i c a d a por homens, a s si m como

também pode s e r d irig id a contra mul her es .

Essas f or ma s comuns de d efin ir e caracterizar as

bruxas, inclu siv e numa c l a s s i f i c a ç ã o dos d i v e r s o s tip o s de

bruxís.s, seus c omportamentos diferentes, s eus simbolos,

formam o que se p o d e r i a chamar de uma c o s m o l o g i a da b ruxa,

b a s t a n t e complexa e a b r a n g e n t e das n a r r a t i v a s e das c r e n ç a s .

Conforme o esquema da p á g i n a seguinte.


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A BENZEIDE: I R A C OMO RERSONAGEIM

DAS NA R RA XI ' v ^A S
- 144 -

CAPITULO 4 - A BENZEDEIRA COMO PERSONAGEM DAS NARRATIVAS

A be?nzedeira a p a r e c e nas n a r r a t i v a s como uma e s p é c i e de

c on tr a--p od er á bru>;a, ültim o recurso ao qual as v i t i m a s de

bruxaria recorrem, principalm ente naquelas que -falam do

embruxamento de crianças. Mas, ao contrário da bruxa, a

benzedeira, al fem de uma pjersonagem das n a r r a t i v a s , è também

uma p es so a realm ente existente na comunidade, que

desempenha um p ap el social e e reconhecid a desta maneira.

As benzedeiras sèo as m ul her es que, det end o

detsrminados conhecimentos curativos, sobre ervas

m edicinais, sobre rezas e benzeduras, sobre o parto e o

cuidado dos bebês recém nascidos e tendo o poder e o

c o n h e c i m e n t o dos pro cedim entos ritu a is para e n -f re n ta r ou

( p r o t eg er dos fiiale-f i c i o s , como quebranto, mau- ol hado,

fe itiça ria e bruxaria, sà o vistas como "especialistas"

nestas questòes p e l o s outros moradores do l u g a r .

N2So é objeti'vo desta pesquisa analisar £i benzedeira

e n qu ant o uma p e s s o a que a t u a na comunidade no t r a t a m e n t o dos

males que atingem os moradores, D que interessa

p a r t i c u l a rms nt e aqui fe compreender o s i g ni -F i ca do de sua

presença e n qu a n t o personagem das narrativas dos na-ti-vos

ilhfeus sobre as b r u x a s . Essa análise nSo pode, no entanto.


- 145 -

ser feita sem a r e f e r ê n c i a á benz e?de?i r a enqucinto alguém que

desempenhei papièi s e estabelece laços socia is particu lares

com os o u t r o s mor ador es. Busco n e s t e c a p i t u l o , sem p e r d e r de

vista a p essoa r e a l , analisar fu nd ament al ment e a benzedeira

nas n a r r a t i v a s sobre bruxaria e em relação á bruxa. A

escolha deste e n fo q u e me obriga a deixar pa ra um estudo

posterior a anèlise e sp ecífica e mais detalhada das

b e n z e d e i r a s d e n t r o da v i d a social da comunidade.

1) o bem c o n t r a o mal

Como nos c o n t o s de f a d a , que mostram uma d ivisão

dualista da n a t u r e z a humana, c e n t r a d a na d i v i s ã o entre o bem

e o mal, as n a r r a t i v a s sobre bruxas apresentam uma divisão

da imagem f e m i n i n a , representada pelas figuras da b ru x a e da

benzedeira. Conforme Etruno E te t te lh ei m <198S), os c o n t o s de

fadas fo lcló rico s realizam uma s im p lificação de todas as

situações, fazendo com que o mal seja algo "tàc presente

q uanto a v i r t u d e " . Ne s se s c o n t o s , o bem e o mal recebem uma

forma e sào corp orificad o s em algumas f i g u r a s e nas suas

acões.

"0 mal nào è isento de atraçòes -


s i m b o l i z a d o p e l o pioderoso g i g a n t e ou d ra g ão , o
poder da b r u x a , a a s t u t a r a i n h a na ’ B ra nc a de
Ne?ve" - e com frequência se encontra
temporariamente vitorioso." (BETTELHEIM,
1983:15)
- 1.46 -

E em p e r s o n a g e n s que c o r por i -f i cam o bem e o rrial que

e s s e d u a l i s m o da n a t u r e z a humana fe r e t r a t a d o nos c o n t o s de

■fadâj feil ando de uma d u a l i d a d e que, para Bettelheim , existe

em c €ida p e s s o a .

No c a s o nas narrativas da La goa , essa dualidade se

p erso nifica nas f i g u r a s o p o s t a s da b ru x a e da b e n z e d e i r a . A

bruxa è o poder nefasto, a causa dos in fortú n ios e

m a l-estíires; a b e n z e d e i r a fe o poder benéfico, c€(paz de^ c u r a r

e proteger. Representa o oposto daquilo que ë a bruxax.

E nq uanto e s t a , como foi visto nos cap itulo s anteír i o r e s ,

possui cara cte rística s anti-soei a is , desordenadora das

normas e dos. modelos de comportamento, a benzedeira, ao

contrário, è definida socialmente pelos .laços de

solidariedade que estabelece com os outros membros da

comunidade. E nq uanto a bruxa age de forma inconsciente e

involuntária, a benzedeira a tu a a t r a v é s da f è e de um sa be r

que e l a manipula conscientemente, in clu sive as r e z a s . Sua

arma maior contra a bruxa è j u s t a m e n t e t r a z e r o c on h e c i m e n t o

sobre a situaçào que envolve a bruxaria e sobre a

id e n tificação da bruxa» Apesar de s e r a mulher mais p róxi ma

da v i t i m a íem geral a màe) quem dà o nomey é bruxa, è a

benzedeira quem proporciona as condições pa ra que essa

i d e n t i f i caçàc) s e j a feita . E ss a situaçíío è descrita nos

inõ-meros r e l a t o s em que a màe, t e n d o es got ad o todas as

tentativas para cu ra r a criança doente, l e v a - a na b e n z e d e i r a


- 147 -•

que d e s c o b r e que a c r i a n ç a foi vítim a de embruxamento e que

a bru xa fe uma mulher conhecida da fam ília da criança,

Imediatmente £í mãe j è sabe quem è a b r u x a . E xiste uma outra

ma nei r a de enfrentar a bruxa e desféjzer o embr ux amento,

•fazendo com que ela mesma se d e n u n c i e ou confesse como a

responsável, quebrando o e n c a n t o e d e s f a z e n d o a bruxaria. 0

caso d e s c r i t o abaixo foi n a r r a d o por um i n f o r m a n t e do Ca n to

da Lagoa, filh o da pròpjria benzedeira que desmascarou a

bruxa.

"Uma v e i z , t i n h a uma c r i a n ç a que tava


embruxada. A i, ela (a mãe do informante,
b e n z e d e i r a ) pegô a p rim e ira camisinha e b ot ou
no p i l ã o o e s p i n h o , nào s e i o nome, e amassou
bem, j u n t o com a camisa. Logo a mulher que
t i n h a f e i t o o embruxamento i a a p a r e c ê . Eu nèo
vou l h e contar qual era a mulher por que a
s e n h o r a conhece mui to bem. E logo a mulher
chegô, uma vizinha conhecida, Ela chegô se
lament ando e d i z e n d o ' ' f a i z a s si m não. A i , que
d o r . F a i z assim nã o’ . Ai o que a c o n t e c i a è que
a b ru xa se a u s e n t a v a , não a p a r e c i a mai s. Dizem
que e r a bruxa, nè?" (seu Zelinho, ó7 anos,
C a n t o da Lagoe-i)

Fazer a mulher aparecer e ee d e n u n c i a r como b ru x a è uma

forma de desfazer a bruxarie-i. E como se a bruxa fosse

pressionada a se confessar por um "castigo sim bólico", na

medida em que e l a chega ex p re ss a nd o sua d o r , A presença da

confissão da b ru xa como um. procedimento curativo da

benzedeira pode s i g n i f i c a r a i n c o r p o r a ç ã o de um e lemen to da

construção c a t ó l i c a s ob re a bruxaria, no qual a benzedeira

d e s emp enh ar ia o papel do próprio in q u isid or. Es sa


- 148 -

"con- fi ss ^ D " da bru xa nào implica, porèm, nem em denuncia

pública nem em acusaçclo. 0 próprio narrador da h istôriíi,

mesmo conhecendo a identidade da bruxa, se omite de

colo cá-la em seu r e l a t o - f e i t o p ar a a p es qui sa do ra » Existem

outras -formas de fazer a bruxa " co nf e s s a r - s e " . A h istbria

contada antes, sobre a b ru x a que apareceu com o dedo

cortado, sujo de sangue, denuncian-se para a máe da criança

e p a ra as v i z i n h a s , fe o u t r o exemplo»

Mas, antes de r e p r e s e n t a r e m p e s s o a s com p a p é i s sociais

d iferentes, estes dois poderes presentes nas narrativas

sobre b r u x a r i a representam forças opostas que podeím

e x istir em qualquer mulher da comunidade,Mesmo uma

benzedeira pode ser, segundo os entre-vi s t a d o s , ao mesmo

tempo uma b r u x a , seja numa s i t u a ç S o específica em que e l a se

transforme em b ru x a p a r a fazer mal a algufem, seja no ca so de

uma m ul her , com s a b e r e s c u r a t i v o s e de b e n z e d u r a s , mas que,

inspirando medo e r e s p e i t o na comunidade, è -s^ista como uma

bruxa, 0 bem e o mal síío, a s si m, duas faces de um mesmo

poder presente em qualquer mulher da comunidade. As

h istórias sobre as b r u x a s s áo o momento em que os nativos

f a l a m d e s s e poder e do combate que travam e s s a s duas forças.


- 149 -

2) O poder que; vem da c as a

Dutra diferença impiort a n t e è delineada por essas

narrativas. Corno foi visto, a bruxa, agindo de forma

inconsciente, ocupa semp>re um£.i posiçíí.o de d o mi n io dos

es pa ço s e dos instrumentos ligados ao t r a b a l h o masculino,

a pa re c en do ma rg i na lme n te no te rritó rio feminino. Ao

contrário da b e n z e d e i r a que domina p e r f e i t a m e n t e o espaço e

os o b j e t o s liga''dos ás a t i v i d a d e s das m ul h e r e s . T an to o s aber

como os i nstr'umentos que u t i l i z a , níSo sò p a ra e n f r e n t a r a

bruxa, mas p a r a e x e r c e r as s ua s a t i v i d a a e s , nas c u r a s , nos

partos e nas b e n z e d u r a s em ge-ral , estSío l i g a d o s stos espaços

e ás a t i v i d a d e s predominantemente f e m i n i n a s . Os o b j e t o s que’

usa p a ra as bF^nzedur^ís (tesouras, linh a e agulha, pilèio,

brasas, copo com àgua, etc.) fazem parte do universo do

trabalho feminino e do es paço em que as mul heres passam a

maior parte do tempo, sempre acompanhados de rezasi, onde

predominam as invocaçbes e os pedidos dirig id os á Nossa

Senhor a. Assim, a linh a e a a g u l ha sáp utilizad as na

benz edur a c o n t r a m au-jeito, na quaxl , junto com a reza, a

benzedeira simula que e s t à costurando sobre b. parte do c o r p o

que f o i machucada. C o n t r a dor de c a b e ça , também chamada de

"sol na cabeça", os objetos usados sSo um guardanapo,

disposto sobre a cabeça do d o e n t e , e um copo c h e i o d"água

que è colocado, com a boca virada p a ra baixo, sobre o

guar danapo. Para d e s c o b r i r se a pessoa que a p r o c u r o u está


- 151 --

Quando a b r u x a r i a j à +oi -feita, um dos o b j e t o s ligados

ao t r a b a l h o fem inino u tiliza d o è o p ilào, usado pelas

m ul h er es p a r a moer grèíos.

Também os instrumentos de t r a b a l h o m asculino e os

anim ais sáo p r o t e g i d o s pelas benzedeiras, a pes ar de e ss a s e r

uma p r & t i c a que vem se r e d u z i n d o nos ú l t i m o s anos- A r e d e ou

a embéircaçào eram b e n z i d o s a n t e s de serem l a n ç a d o s ás âíguas

pela prim eira vez. E r a uma forma nSo sò de g a r a n t i r sucesso

na p e s c a , como de p r o t e g e r contra in c id e n te s e bruxas. Da

mcísme forma existe o co E ítu m e, ainda comum, de benz er ob

anim ais antes de p arir, protegendo coni ira p r o bl e ma s no

parto. Cabe aqui a po n ta r uma diferença importante que,

en qu ant o tesoura e a g u l ha <" c o i s a s " femin inas) sáo

i n s t r u m e n t o s do bem, os i n s t r u m e n t o s de t r a b a l h a masculinos

sáo o b j e t o s do bem, ou s e j a , sào o b j e t o s dos i n s t r u m e n t o s de

b e nz e çá o.

E também nos e s p a ç o s mai s ligados ás atividades

fem ininas e nos momentos de s o e i abi 1 i d£^de e n t r e as mu lh er es ,

na r e a l i z a ç ã o das atividades domésticas e das t a r e f a s que

dependem e x c l u s i v a m e n t e das m u l h e r e s , como l a v a r a roupa

c ol eti-vãmente na f o n t e , fazer a re n da ou apanhar café, que

os c o n h e c i m e n t o s de r e z a s , curas, b e n z e du r as e s i m p a t i a s Sc"o

transm itidos ou t r o c a d o s entre elas.


- 152 -

A l g u n s de&ses c o n h e c i mentoB, como as '.simpatias e a l g u n s

procedimentos ritu a is, s ão compartilhados mesmo p t í l as

mul heres que nSo íiào benzedeiras. Outros sèo saberes

exclusivos de algumas b e n z e d e i r a s , se-ndo que o acesso a

conhec i mE?ntos d i - f e r e n t e s indica di-ferenças quanto ao poder e

á espec i al i z aç tíO de cada uma. Assim, cxisttem b e n z e d e i r a s que

sò benzem d oen ça s "mais - f á c e i s " , como problejmas de p e l e , dor

de ca beç a, ou mau—je^ito, outras, alèm disso, benzem p ar a

arca-caida (23), q u e b r a n t o ou mau-olhado. Outras ainda, alèm

de b e n z e d e i r a s , sào p a r t e i r a s e conselheiras p a ra questões

de c o n - f l i t o s , p r o bl e ma s afc-?tivos, etc. C on hec iment os sobre o

parto, partilhados exclu siv am ente pelas m u l h er es , sào

obtidos quando se acompanha a benzedeira corrio a j u d a n t e , um

mcsmento in iciá tico importante p ar a uma aprendiz de

benzedeira. Uma das mais c o n h e c i dsis b e n z e d e i r a s da lagoa

eprendeu a atejnder p a r t o com uma p a r t e i r a do C ó r r e g o Grande.

El.a p r o c u r o u a pa.rte'i ra por que queria aprender. Passou a ir

sempre j u n t o , ajudar, quando £?1 a er a chamada p a ra um parto,

A aprendiz ficava re sponsável por v o l t a r sempre na c as a e

dar banho na c r i a n ç a £itè c a i r o cordào» Mas sào poucaxs as

benzedeiras que:- tém o poder de d e s f a z e r bruxaria ou f e i t i ç o .

Quase nenhuma, a lià s, assume que tem e s s e p o de r . Essas sào

c o n s i der adíis as mais p o d e r o s a s . Mas, como veremos a seguir,

es s e pode?r nà'o è apenas a l g o intrínseco á be?nzedeira, mas

depjende também da piosiç^o que ela. ocupa em r e i aç cio á

comunidade. Em g e r a l , no c a s o de. embruxamento ou f e i t i ç a r i a .


- 153 --

OB moradores costumam recorrer a benzedeiras de outros

1u(3 ar es.

Nêfo sò a c a s a , nas s oc iedades , r u r a i s em g e r a l , è o

espaço considerado mais p róxi mo da cultura, como os

instrum entos utilizadoB no t r a b a l h o feminino siao " c o i s a s da

cultura", instrumentos u tiliza d o s na transformaçào das

"coisas" que estUo relacionadas é nature?za. A ma nipul aç ií o

d e s sa t r a ns f or maçào da natureza em cultura è? uma

característica do trabeilho -feminino na comunidade. A

atividade da b e n z e d e i r a , níío sò no tratamento de qualquer

doença, mas também numa s i t u a ç è o de b r u x a r i a , nSo d e i x a de

ter uma a n a l o g i a com o t r a b a l h o -feminino em g e r a l . No r i t u a l

de desembruxamente, a benzedeira, manipulando s eus

instrum entos de trabalho, como o pilèo, -faz a bruxas

regressar de seu e s t a d o de in co n sciê n cia , e nessa medida

mais próximo da natureza, que -faz com que t enha um

comportamento a n t i - s o c i a l , pass and o pa ra um o u t r o e s t a d o em

que e l a v o l t a a s er uma mul her, uma p e s s o a , com papièis e

laços sociais d e - f i n i d o s na comunidade.


- 154 -

•3) A bênção enquant o ‘‘dom"

Apesar de suas atividades pos sui re m e s s e laço sim bólico

com as atividades femininas ligadas é casa e ao e s p aç o

dornè-stico, uma b e n z e d e i r a , p ar a r e a l i z a r o pape-?! social a

que esE-ta d e s t i n a d a precisa ter um deisprendi mento em relaçSo

éi sua casa e á sua f a m í l i a . Uma v e r d a d e i r a benzedeira deve

estar sempre d i s p o n í v e l para atender alguém que b a t a a sua

porta ou pa ra responder quando & chamada, mesmo quando

precisa se d e s l o c a r para lugares distantes. Alèm d i s s o , è a

benz ed ei r a--par t E-i ra a responsável pela criança

recà-m-nasci da, è ela, por exemplo, que banha a c r i a n ç a atè

"cair o umbigo" (cica triza r o corte do c o r dS o u m b i l i c a l ) e

cuida da màe de c r i a n ç a durante a quarentena p ò s -p a rto . Se

nèío hà na c a s a o u t r a mulher adulta que p os s a tomar conta da

màe, uma benzedcíi r a chega a pernoitar na c a s a durante o

tempo que f o r necessário. Nes>se momento, sua f a m i l i a e sua

casa tornam-se, aos o l h o s das outrae; p e s s o a s de sua f a m i l i a ,

secundárias diante da t a r e f a social qufa e s t à realizando. A

vida de D. B ela, uma benzedeira jà falecid a no Canto da

L agoa, ilu stra isso. Eíla era o tip o de benzedeira

"poderosa", quer dizer, b e n z i a pa ra vários males, ate ndia

p a r t o s e podia tambfem b en z er e desfazer bruxaria. Apesar da

o p o s i ç à o em casa, ela jamais deixava de atender a um


i ^J
cr cr
-I I_
__

chamado. Esse desprendimento em relaçào á -familia à

demonstrado p e l o depoi mento de fieu - f i l h o :

"Ehi E l a t a v a sempre aqui e a l i pegando


c r i a n ç a . Nào p a r a v a nunca. Ia á pfe a t è a Lagoa,
no R i o Tavarc-?j^ onde chamavam ela ia. As
mul heres d i z i a m : " Ih, meu Deus, e quando a
dona Ri t i n h a morré, como è que -'/ai ser?-'’ „ Ela
morreUj e t-odo mundo c o n t i n u ó t en do - f i l h o . As
c r i a n ç a nào pararam de nascen-, nào. Aí elas
davam um j e i t o . Ar ra nj av a m uma c a m i on e t e p r a i r
a t è a. m a t e r n i d a d e , lias e n qu ant o t a v a v i v a , era
a màe que i a . Eu b r i g a v a com a màe, nèio queria
que e l a -fosse, 0 p a i , nSo, o pai nào brigava,
mas eu s im. As v e i z e r a madrugada, com - f r i o e
c huva, e l a pegava o g u a r d a - c h u v a e l a dim pè.
Vinham b uscà e l a , e l a í a : c a s a de r i c o , c as a de
p o b r e . Umci v e i z , er a n o i t e j à , um - fr i o , v e n t a v a
s u l . E l a t o i chamada numa c a s a . E n t r a v a o v e n t o
dum l a d o , s a í a do o u t r o , E l a passou a n o i t e l à ,
Quando t e r m i n ò , deram uma c u i a de -farinha p ra
e l í i , mais nada. Pra que e n t à o t a n t o trabalho?
As v e i z nào davam nada. Quem t i n h a dava, mas
ás v e i z tinham, e nào d a v a m . . . tias como ela
gosta'va de -fazé es s e t r a b a l h o . Jà -ficava tod a
c o n t e n t e , pegava as coisa e ia. Q u e r i a ver a
mSe c o n t e n t e e r a d i z ê que í a chegè criança."
(seu Z e l i n h o , Cèinto da Lagoa )

Esse- d ep oimento s o b r e D. Bela me -foi con-firmado por

t o d o s os e n t r e v i s t a d o s com quem conversei sobre e l a . 0 que

eles mais destaca-vam e r a a sua d i s p o n i b i l i d a d e pa ra a te n de r

sempre que -fosse chamisaa-

A benzedeira aparece como um m i s t o de médico e

sacerdote, uma d o a do r a. Os p r o d u t o s ou a l i m e n t o s que r ece be

em t r o c a , antes-; de serem o pagamento ao seu t r a b a l h o , sào

uma -forma de r e t r i b u i ç à o a uma d á d i v a , E! d es sa -forma que

aparecem s o c i a l m e n t e as s uas atividades. A bénçííc que a

benzedeira pode dar para a comunidade, através das curas,


- 156 -

das b e n z e d u r a s , da p r o t e ç à o , è- uma dctdiva, no s e n t i d o em que

sig n ifica a manutenção de um l a ç o s o c i a l .

Existe um fort-e s e n t i m e n t o de r e l i g i o s i d a d e em t o r n o da

b£?nz edei r a . Alèm de t o d a s as b enz ed ur as serem acompianhadas

por rezas e invocações de Nossa Senhora, as b e n z e d e i r a s mais

velhas e msiis respeita.das siMo cercadas p;>or uma aura de?

santidade. A vivência re lig io sa mais c o t i d i a n a na comunidade

b re alizad a pelas lidere s re lig io sa s, a maioria delas

m ul h e r e s . As c a t e q u i s t a s , as o r g a n i z a d o r a s da "capeiinha" e

das novenas, as lideres da Igreja, são em sua maior parte

m u l h er es , apesar dos c a r g o s f o r m a i s d e n t r o da h i e r a r q u i a da

Igreja local <como a D i r e t o r i a da I g r e j a ) serem oc upados por

homens. Nessa v i v ê n c i a mais c o t i d i a n a dsi r e l i g i o s i d a d e , a

benzedeira pode s e r vista tambfem como uma l i der re lig io sa

"natural" no i n t e r i o r da comunidade.

4) 0 poder estrangeiro

Como f o i visto na anèlise? dos d e poi men to s, a benzedeira

ganha sua e x i s t ê n c i a social através dos laços que e s t a b e l e c e

no i n t e r i o r da comunidade. NSo bastai que e l a queira s er

benzedeira ou que conheça as rezas, as curas e os

procedimentos r i t u a i s , ou, como d e f i n i u Mauss (1974 :54),

"nào è mègi co quem q ue r " . Entre as a t r i b u i ç b e s que d ef in e m

uma bc-?nzedei r a , està o fato de que ela precisa s er


- 157 -

reconh ecid a pelos outros enquanto t a l . No c a s o da bruxaria,

no e n t a n t o , as n a r r a t i v a s apontam p a r a outro sentido: na

maior parte dos c a s o s relatados, quem è procurada e tem

poder para des-fazer a bru>:aria b uma benzede>ira de -fora da

comunidade e, nèlo r a r a s vezes, negra„ E o que i l u s t r a este

depoi mento:

"0 meu neto foi ficando ruinzinho,


ruin-zinho, assim, Era uma bruxa que havia
atacado e l e , Al l evaram no b enz e do r, a dona
Z i t a , l à do Saco dos Limõe s, E l a benzeu e logo
ele foi mel h or an d o, " (D. C e lita , 72 anos,
b e n z e d e i r a , Ca nt o da Lagoa)

A força ou o poder da b e n z e d e i r a em d e s f a z e r a bruxaria

emana, nestes casos, de sua c o n d i ç à o de exterioridade e

diferença em r e i aç cio á comuriidade, m anifestas no f a t o de s e r

desconhecida, vivendo em o u t r o lugar, ou por ser ne gr a ,

representante de uma c u l t u r a estranha aos moradores, 0 fato

de v i v e r fora dos l i m i t e s da comunidade e? r e p r e s e n t a r outra

cultura, ou s e j a , de e s t a r fora da ordem e das normas de

convívio da comuni dade, evigendra. o poder necessário pa ra

en f r en t ar a bru>: a .

Se as b r u x a s estào "excluídas do padrèo social"

(DOUGLAS, 1976:118) porque invertem as normas e

desorganizam as identidades, a benzedeira capaz de

en frentà-la està excluída d esse mesmo padrào e, nessa

medida, exposta ao poder capaz de c o n f r o n t a r a. taruxa, porque

vive fora dos lim ite s do l u g a r . e da cultura, Ela è uma


- 158 -

estrangeira, c-:- è também e s s a c ondi ç'ëo de e s t r a n h e z a que a

investe de p o d e r . Esses atributos especiais dos quais sSo

p or t ad or es i os estrangeiros tém s i d o largamente estudados

pela antropologia. Podemos citíir o caso de Mauss e seu

’ E s b o ço de Unia Teoria Geral da Magia’ (1974:61), onde

constrói a id è ia da condiçèíD especial do estran g eiro

predispondo-o a Be?r visto, em m ui t a s sociedades, como

•feiticeiro ou d e t e n t o r de " p o d e re s m á g ic os ". Ele ilu stra com

o fato de m u i t o s povos enxergarem o u t r o í i como fe itice iro s,

como é o caso dos brèUcianes, vistos des'ta manei ra pelos

gregos, pelos èrabes e p e lo s jesu itas. Mais r e c e n t e m e n t e , a

pisi c a n al i s t a Ju lia Kristeva, no seu ’ Etrangers a

nous-mêmes’ (24) também se irrterroga sobre essa condição

especiíil da ’ e s t r angei r e i d a d e ’ atra.-vès do tempo e em

diferentes culturas.

Por outro la do, a p r e s e n ç a da b e n z e d e i r a n e gr a nas

narrativas coloca uma outra questèío que se refere á

tendência sin crètica das representaçóes re lig io sa s (25).

Mesmo em uma sociedade que manteve, durante um l on go

peírí odo, relaçócs apenas e s p o r á d i c a s com o u t r a s culturas,

existe uma atraçào e uma i ncorporaçiio dos e l eme n to s

e s t r a.ngei r 05 em suas r epresentaçÕKís coletivas. IMas

narrativas, que ciparentemente conservam uma p r o x i m i d a d e com

suas r a í z e s européias, a benzedeira negr a é i n c o r p o r a d a como

u m e 1e ítie n t o c e n t r a i d a s h i s t òr i a ír>.
~ 159 -•

Alèrn d i s B O , me p a r e c e que-í o -fato da b e n z e d e r i a ser uma

estrangeira ã comunidade è a i n d a uma -forma de e v i t a r a que

as benzedeiras da própria comunidade se envolvam em

situações de c o n - f l i t o e tensSo e n tr e vizinhos s e us ^ 0 que

nliD s i g n i - f i c a qi.ie, apesar de r a r o s , nào e x i s t a m casos em que

a benzEídeira p r o c u r a d a era da p r ó p r i a comuni dade„

5) A benzedeira enquant o bru xa ou - f e i t i c e i r a

Por -firn, pensEir a condiç^^o da b e n z e d e i r a , seja aquela

p resentcí nas na rra ': . iv as sobre bruxaria p a r t i c u l armente?, seja

quando os i n-f-ormantes -falam de seus atributos em g e r a l , me

levou a uma outra indagação. NSo s e r i a a b e n z ed e i re i , ela

mesma, uma bruxa ou -feiticeira? Em m u i t a s s oc iedadejs , o

curador, aquele que tem o poder de a-fastar a d o e n ça , a

desordem e os m a l - e s t a r e s , è também a q u e l e que pode trazer

tudo isso. Ele è respeitado e temi do ao mesmo tempo. Mesmo

ri5i E ur op a, durante o p erio d o em que -funcionou a Inquisição,

g r an de nf-imero das acusaçòes de -feitiçaria d irig iram -se

contra mul heres que p ra ti cav si m c u r a s , desfaziam mal e-f i c i os,

atendi am p a r t o s , etc. Conforme Szasz í 1984; 13--25) , entre

outros, a fe itice ira era t ambèm acusada por ser um

"terapeuta" popular e esses dois atributos confundiam-se. Um

exempjlo mais próxi mo è dcido p e l o e s t u d o de vlane Beltrão

(19B8), sobre st V isita çã o do S ant o O ficio ao Pará, que

conclui que as mul heres que r e a l i z a v a m prèiticas terapêuticas


-- 1 60 -

populares eraffs " p a s s í v e i s de delriçííD ou se viam o b r i g a d a s a

con-fessar s ua s p r á t i c a s , caindo nas malhas da I nq ui s i ç c i o "

<p. 10). Entre as ffiulheres que foram denunciadas ou

confessara(Ti-se ao S a nt o O f i c i o nesta V isitaçSo, aquelas que

"far^iam c u r a s " ou ensinav£<m ou aprendiam rezas e orapòcís

formavam um número e x p r e s s i v o .

Nos exemplos c i t a d o s por Beltrsoj estSo aqueles que

f a l a m de m ul h er es com p o d e r e s de d e s f a z e r fe itiço , a po n ta d as

como " f e i t i c e i r a que t r a z o c on t ra -- f e i t i ço" «

Mas nïio sèo apen^is as analogias históricas que me fazem

p e ns a r na benzedeira enquanto uma taruxa ou fe itice ira .

Existem atributos, descritos exaustivãmente pelos

informantes e jà mencionados n e s t e s e nos o u t r o s capitulos,

que me levam a f a z e r e ss a conexSo. Apesar de t e r o seu poder

a p artir de um s i m b o l i s m o relacionado com a c a s a e o espaço

doméstico, ou s e j a , atos d o m í n i o s f e m i n i n o s , a benzedeira faz

coisas que, a p rin cip io, nSo s e r i a m da "indole" das mul her es

da comunidade, Ela sai a qualquer hora quando è chamada,

mesmo à n o i t e , e è capaz de se a u s e n t a r da p r ó p r i a c as a

durantes v á r io s dias para cuidar de um doen te ou de uma

p a r t u r i e n t e ’. A l gu n s informantes que me falavam da Dona

Ri t i nha, benzedeira da qual jà fal (s i antes, contaram que e l a

era capaz de psgar um cavalo, no (iíbío da madrugada, para

poder c he g ar a algum l o c a l distante onde f o r a chamada. Ora,


*
as m ul h er es que saem á n o i t e , atbandonam a f a m i l i a e a cassi,
- lól -

e andam á cavalo, como jè -foi descrito nos cap itu lo s

anteriores, sào as b r u x a s .

Alfem d i s s o , a p/ropr-ia c o n di çào de poder que e x i s t e em

t o r n o da benzedeira, s eus eitributos, s eus conhecimentos

secretos, a i n v e s t e m de uma aur a que f a z com que e l a seja,

em m u i t o s momentos, uma estranha dentro de sua própria

sociedade, corno sào tambè-m as bruxas..

O medo d e p o s i t a d o na b ru xa f a l a de um poder presente de

forma v i r t u a l em q u a l q u e r mulher da comunidade. E o mesmo

poder que se inst.ala na b e n z e d e i r a , habilitando-a £< exercer

Buas a t r i bui ç ò e s , Numa c e r t a medidci, ela é o d u p l o da b ru xa

e deve a e l a uma p a r t e de sua e x i s t ê n c i a .


CARiXULO

AS R A iZES NA BRUXARIA E U R O R e IA

MEIDIE's^AL E: MODEIRNA
- 162 -

CAPITULO 5 - AS RAIZES NA BRUXARIA EUROPEIA


MEDIEVAL E MODERNA

Quando a i n d a - fazia a p e s q u i s a de campo, percebi que as

histórias de b r u x a r i e i que me eram c o n t a d a s pelos nativos da

Lagoa mostravam g r a n d e s s i m i l a r i d a d e s com os r e l a t o s sobre

b r u x a s da E ur o pa no -fi nal da Idade Mèdia e in icio da

Moderna. A pe sar de n^o s e r objetivo d e s t e e s t u d o nào p o d e r i a

deixar de comentar os p o n to s que me apontaram essa

sim ilaridade. Dada a extensào e a c o m p l e x i d a d e com què se

c ón -f ig ur a a b r u x a r i a na E ur o pa , n^o p r e t e n d o mapear ou dar

um t r a t a m e n t o de t o t a l i d a d e aos r e l a t o s utilizad o s nesta

compiaraçào, a m aioria deles r e tir a d o s de a l g u n s estudos que

considero mais r e l e v a n t e s para um conhecimento sobre a

bruxaria européia. Sào t r a b a l h o s dispersos, sobre regiòes

diferentes, mas acredito que s u f i c i e n t e s para indicar a

h i p ó t e s e de uma c onexào entre as n a r r a t i v a s dos nativos

i lhfeus e os r e l a t o s medievais.

Logo duas e s c o l h a s diferentes de abordagem da q ues tã o

se c o l o c a r a m como p o s s í v e i s caminhos que pod er ia m me i n d i c a r

de uma forma mai s s ó l i d a essa in flu ê n cia . 0 prim eiro deles

seria através da comparação de a l g u n s traços presentes tan to

nos r e l a t o s ilhéus quanto nós r e l a t o s conhecidos sobre a

bruxaria européia. Alguns desses t r a ç o s sà o a metamorfose

das m ul h er es em b r u x a s , - o uso de u n g u e n t o s no c o r p o , o vôo


- 163 -

noturno, os encontros entre as bruxas revestidos de um


carèíter orgièstico muito prò>:imo do sabá europeu <mas que

aqui, como veremos mais adiante, n^o se con-f iguraram em

verdadeiros sabàs), o embruxamento de crianças e a prática


de malefícios contra as populaçóes camponesas e, no caso

europeu, tambfem as urbanas. A identificaçíío da bruxa com

pessoas próximas, da própria comunidade era outro traço

comum.
0 segundo caminho pelo qual a influência do imaginário

europeu nos relatos ilhéus poderia ser constatada è pela


análise mais histórica da trajetória desta cultura através

da imigraçào e da colonização açoriana do lugar. Quando os

açorianos começaram a chegar na ilha, entre 1740 e 1750,

apesar de escassas, ainda queimavam na Europa as últimas

fogueiras da Inquisição. Nesse momento, a penetração das

novas idéias cientificas e filosóficas e a disseminação do

ceticismo no interior das classes dominantes provoca uma

dissoluçcio dos dogmas que sustentavam a perseguição ás

bruxas. Mas o fato de uma viscío racionalista no mundo

tornar-se hegemônica entre as elites nÈío significa que essa

mesma visão seja automaticamente incorporada pelas camadas

populares. No imaginário popular, principalmente aquele

ligado âs camadas camponesas, ainda ressonavam as crenças

que haviam acompanhado seu cotidiano durante os séculos

anteriores, modificadas pela incorporação de vários

elementos trazidos pela cultura cristã dominante. 0 segundo


- 164 -

caminho consi stiri a justamente em retraçar a trajetória desse

imaginèirio atè as comunidades que os açorianos formaram na

Ilha.

Ao me deparar com esses dois caminhos possíveis para


buscar compreender a in-fluência do imaginário europeu

medieval sobre as crenças em bruxaria na ilha, nèo posso

deixar de recolocar a dtivida de Ginsburg (1989) em relaçào a

como abordar a extrema semelhança entre as crenças no Friul

italiano dos séculos XVI e XVII que havia estudado e os

ritos dos xamcís siberianos. Reconhecendo os limites de uma

análise do ponto de vista histórico, ele opta pelo que chama

de análise tipològica ou mor-f ológica, a partir das

homologias reconhecidas entre aqueles mitos e crenças.

Para buscar compreender essas semelhanças entre as

narrativas sobre bruxas na ilha e os relatos europeus, a

opçèio pelo ponto de vista mais histórico demandaria um


es-forço que vai alèm dos objetivos deste estudo. Os limites

desse tipo de análise se apresentam, neste momento, de um

lado, na complexidade do que se poderia chamar de uma


"cultura açoriana", in-f 1uenciada por traços culturais que
/
nèlo se restringem á cultura européia e, mais

particularmente, á ibérica. De outro lado, na profundidade

das raizes dessas crenças e narrativas aqui analisados, que

têm suas raizes em crenças anteriores ao cristianismo.

A opçào por uma análise comparativa, próxima talvez

áquela que Ginzburg chamou de "tipològica", reconhece os


- 165 -

limites dos registros existentes sobre a bruxaria medieval,


mas admite que podem ser relidos também do ponto de vista

das culturas populares da época. Ao se identi-fi car a raiz

das histórias de bruxaria contadas na ilha na cultura


européia atè o inicio da Idade Moderna, nào signi-fica que se

esteja tomando essas crenças como sobrevivência do passado.

Elas est^o presentes como vi vências e-feti vas (MELLO e SOUZA,


1986), ou seja, elas correspondem ás formas de vida e ao

imaginário atual das populaçbes estudadas.

Nes'te capitulo, farei uma anèlise comparativa mais

detalhada entre a bruxaria européia e a bruxaria nas

comunidades que estudei, através das semelhanças e

diferenças entre as narrativas que recolhi e os relatos


medievais, aceitando os limites dos registros históricos

sobre as bruxas européias. A quase totalidade deles chegaram

atè nós através das fontes oficiais e foram construídos por

quem detinha a cultura letrada naquele momento. Selo as

confissbes, denúncias e depoimentos recolhidos pelos

tribunais durante os julgamentos. E inclusive em funçcSo

desses limites impostos pelas fontes que a maior parte dos

estudos que tratam da bruxaria nesse período acabam

enfocando exclusivamente a perseguição és bruxas e a atuação

da Inquisição. Apesar da inexistência de registros sobre a

visão das camadas populares sobre a bruxaria, alguns

autores, como Cario Ginzburg e, no Brasil, Laura de Mello e

Souza (1986), têm buscado fazer uma releitura das fontes


- lé)6 -

oficiais, reconstituindo, através das denáncias, dos


depoimentos dos acusados, e das trans-formaçòes ocorridas em

seu discurso durante os interrogatòrios, a presença da

bruxaria no cotidiano e na cultura das camadas populares


daquele periodo.

1) Os estudos sobre a bruxaria medieval e moderna:


algumas questòes polêmicas

A bruv.aria tem sido um dos temas mais estudados na

antropologia e na história hoje na Europa, ainda que no

Brasil seja mais recente o interesse nesse assunto.

A riqueza da produção acadêmica atual em torno do tema,

no entanto, nèio tem correspondência no passado. Embora o

primeiro tratado sobre bruxas date do sèculo XIV, sÃo

esporádicos os estudos de bruxaria atè o sèculo XX. Sò

recentemente começam a ser pesquisados os arquivos da

Inqusiçrào de -forma mais sistemática. Esses arquivos cobrem

vários séculos e a história da Inquisiçèfo estende-se do

século XII ao século XIX, embora o seu auge seja entre 1550

e 1650. Os autores que se debruçaram sobre a questào das

bruxas dividem-se quanto a alguns temas em torno dos quais

acirradas polemicas tem se desenvolvido. Entre eles, a

questão da legitimidade das -fontes "o-ficiais" (os arquivos

da Inquisição com os processos, as tratados e normas

eclesiásticas, etc.) ou, outro exemplo, o estatuto da bruxa

que, para alguns é uma realidade, para outros, uma criação


- 167 -

do imaginário popular e para outros ainda uma criaçâfo da


Igreja católica. Começo pela discussão sobre as -fontes.

Apesar de reconhecerem que, alèm dos processos e das

execuções, .a bruxaria também -fas ia parte do cotidiano das

populações europèiasv no -final da Idade Mèdia, a maioria dos

estudos sobre esse -fenômeno estào centrados fundamentalmente

na atuação da Inquisição e na perseguição das bruxas. Em


maior ou menor grau, a bruxaria européia è estudada por

muitos desses autores como uma fabricação da cultura cristã

dominante para justificar a repressão e as perseguições

politicas e religiosas. Talvez a visão mais radical, dentro

da Antropologia, da bruxa como um "bode expiatório" de uma

repressão que tinha objetivos bem mais amplos seja a tese de

Marvin Harris (1978), que explica a bruxaria como um "meio

de repressão" à onda de messianismo cristão crescente na

Europa. Para ele, o "sistema de bruxaria", construído pela

Inquisição, tinha como finalidade "transferir para a bruxa a

crise da sociedade agonizante". A bruxaria perde, de acordo

com essa concepção, qualquer especificidade e passa a ser

vista como um instrumento para objetivos politicos mais

gerais, de controle da Igreja sobre as insurreições no

interior do campo religioso. Mas Harris não è mais que um

exemplo extremo da visão que reduz a bruxaria a uma

fabricação e imposição das elites dominantes.

A maioria dos estudos, com raras exceções, apesar de

reconhecer a presença dessas crenças no interior das


- 168 -

culturas populares da època, concentram sua análise da


visito das elites e no esquema da perseguição. As explicaçbes

encontradas para o -fenômeno da bruxaria e da caça ás bruxas

acaba privilegiando esse enfoque; a necessidade de reprimir


as seitas e os cultos pagáos, a misoginia das elites,

prncipamente as religiosas, etc. Levack (1983;19), mesmo

apontando para o que chama de um "enfoque multicausal" da


bruxaria, criticando os que buscam uma explicaçào única, nào

escapa da armadilha de tentar encontrar, nas raizes da

bruxaria, as "funções" desempenhadas por essas crenças na


sociedade européia. Apesar de reconhecer que inquisidores e

juristas nào estavam lidando com uma ameaça totalmente

forjada, o centro de sua análise è o aparato judiciário e

legal da perseguição e os seus fundamentos intelectuais,

depositados na cultura das elites dominantes. 0 "conceito

cumulativo de bruxaria", para ele peça central para o

desenvolvimento da "capa ás bruxas", è construído a partir



das noções cultas de bruxaria, resultado da interaçào entre

o processo judicial e a tradição literária. Ou seja, para

ele, o conceito de bruxaria foi se construindo pela

acumulação de visões das elites sobre as crenças populares,

a partir, de um lado, dos discursos realizados durante os

processos e, de outro, pelas teorias dos teólogos católicos.

A dinâmica da formação desse conceito è regida pela

imposição de uma cultura das camadas dominantes aos

segmentos populares. Não existe uma preocupação no sentido


- 169 -

de tentar compreender em que medida as culturas populares


contribuíram para a construçlo desse conceito. A visâfo

popular da bruxaria aparece como -fragmentada e incapaz de se

constituir em um conjunto de crenças e idéias dotado de


signif icaçèfo.

0 predomínio desse tipo de en-foque da bruxaria a partir

do discurso inquisitorial e da perseguição deve-se antes de

tudo a uma imposiçSo das próprias -fontes disponíveis para o

estudo da brux,aria européia. Elas sào, em primeiro lugar, os .

registros escritos, dos quais a quase totalidade disponivel


SclD as denúncias, acusaçòes, depoimentos e con-fissões que

constam nos processos instaurados nos tribunais

eclesiásticos e seculares que julgaram a bruxaria. Em

segundo lugar, è a própria literatura da época sobre as

bruxas, que se constitui, na maior parte, de documentos

o-ficiais da Igreja e dos teólogos, e os tratados sobre


bruxaria escritos pelos teólogos.

Além dos limites impostos pelas -fontes, um outro -fator

que contribuiu para restringir as an&lises da bruxaria ao

enfoque das acusações e perseguiçòes foi a tendência da

historiografia tradicional de superdimensionar a capacidade

das elites dominantes de impor sua cultura ás classes

subalternas, vista como eternamente subordinada e incapaz de

construir crenças ou cosmologias particulares. Na medida em

que a dení-incia (feita em geral por alguma pessoa próxima,

como um -'/izinho ou conhecido) era o elemento deflagrador do


- 170 -

processo inquisitorial e, junto com os testemunhos e os

depoimentos, condição central para que este -funcionasse, -foi

preciso que houvesse uma adesão ao discurso inquisitorial.

Essa adesão não seria possivel se não estivesse fundamentada


em crenças anteriores, que -faziam parte do cotidiano das

populações envolvidas

0 discurso inquisitorial e das elites, apesar de ter


construído sua própria concepção de bruxaria, ligada muito

mais a fatores religiosos (heresias, diabolismos, etc) do

que a ameaças "concretas", como os malefícios ou


osmal-estares da vida cotidiana, apoiava-se nas crenças

populares para poder levar os processos atè o final. Essas

crenças, vertente popular que contribui para a construção de

um entendimento de bruxaria, são vistas por alguns

estudiosos como mais ligadas á visSo do 'maleficium’

(expressão latina para bruxaria) como a causa dos


infortünios e dificuldades da vida cotidiana. Mas as

denf-incias, que partiram de pessoas próximas, parentes e

principalmente vizinhos, estavam muitas vezes ligadas a

conflitos entre as pessoas envolvidas. Ao mesmo tempo em

que, nessas sociedades quase fechadas que dependiam da

5 olidariedade e da ajuda mòtua para se reproduzirem, os

vizinhos eram uma fonte de apoio, representavam também

ameaças e focos de tensão. Para Keith Thomas (1971), as

acusações de bruxaria refletiram "um conflito entre as

normas comunais de ajuda mCitua e a ètica individualista do


~ 171 -

’s b I-f-hel p ’" . Para ele, o declinio das acusaçòes de bru>iaria

està ligado ao desaparecimento das velhas normas comunais.

Trabalhos recentes na àrea de história social têm

procurado dàr outro en-foque ás pesquisas ligadas ás culturas


populares, -vol tando~se para o cotidiano e o imaginário das

classes subalternas. Especi-ficamente em relaçào ás crenças

em bruxaria e ao imaginário medieval, os estudos de Ginzburg


sáo -fundamentais para a construçáo desse novo en-foque. No

seu estudo sobre os ’benandanti’ (Ginzburg, 1988), ele

analisa um culto agrário que servia como um nàcleo de


crenças populares que, através dos processos e das pressões

dos inquisidores, vai se modi-ficando e assimilando traços de

uma compreensáo diabólica da bruxaria, tipica do discurso

dos inquisidores. Ao retraçar a trajetória de uma seita

popular e camponesa e de crenças populares autônomas que aos

poucos váo incorporando elementos do discurso inquisitorial,

ele retoma os estudos de Margareth Murray. Nos seus estudos,

iniciados na década de 20, Murray (26) de-fine as bruxas do

-final da Idade Mèdia e inicio da Moderna como integrantes de

um antigo culto da -ferti 1idade, anterior ao cristianismo.

Nesse seu estudo, Ginzburg retoma a idèia de que, no caso

dos "benandanti’, "a bruxaria diabólica se di-fundiu como

de-formaçào de um culto anterior". Através do estude do caso

particular deste culto agrário, Ginzburg aponta para a

complexa dinâmica que envolve a relaçào entre os diversos

niveis culturais. Nessa relaçcio, as classes populares ,


- 172 -

contribuem com um conjunto de crenças e cultos que se

constituem numa visSo de mundo original e própria, ao

contrário do que pressupõe uma "visào aristocrètica da

cultura", que considera que idéias ou crenças originais sào,


por de-finiçào, produtos das elites (Ginzburg, 1987). Em

contraposição à visào que reduz a contribuição das culturas

populares ao entendimento do ^mal e-fici um’ como e>:plicaçào

para as a-fliçòes da vida cotidiana, Ginzburg reconhece nas

culturas populares cosmologias originais e visòes de mundo

próprias. A tese apresentada em seu estudo sobre os



’benandanti ' é posteriormente desenvolvida quando ele

analisa o processo instaurado contra um moleiro -friul ano que

revela, nos seus discursos durante os interrogatórios, uma

vislio de mundo bastante complexa e original, misturando

elementos de sua própria cultura e idéias avançadas da

cultura erudita e de intelectuais de seu tempo. A partir da

critica, de um lado, ás concepções das classes populares

como uma "adequaçào passiva aos subprodutos culturais

distribuídos pelas classes dominantes" e, de outro, a uma

visíio que pensa a cultura apenas enquanto valores autônomos

das classes populares, ele escolhe outro caminho. Retoma o

trabalho de Bakhtin (1987) sobre Rabelais e a cultura

popular da Idade Mèdia e do Renascimento, que propõe esse

momento como part icul armente intenso na in-fluência reciproca

entre a "alta cultura" e a cultura popular, reciprocidade

que Bakhtin chamou de "circularidade entre os niveis


- 173 -

culturais". Ginzburg assume inteiramente essa visâfo ao

perceber "as raizes medievais de grande parte da alta

cultura européia , medieval e pòs-medieval".

Outro ponto que é objeto de polêmica entre os

historiadores diz respeito ao uso dos textos dos processos

i nqui si tor iai s como -fonte para se compreender a cultura e o

imaginário popular do -final da Idade Mèdia . As duas visões

mais extremas acabam ou negando totalmente esses registros

como uma -fonte legitima, apontando—os como um texto

totalmente construído pelos inquisi dores, ou usando-os

acriticamente, como se as denúncias e con-fissões

expressassem -fielmente a realidade daqueles que delas

partici pam.

Os estudos mais recentes têm procurado um caminho

intermedi àrio que è o de usar essas -fontes, mas assumindo

que Selo indiretas, que têm limites e relativizando-as á

situaçào em que -foram geradas - o desenrolar de um processo.

Apesar de reconhecer os limites das -fontes escritas,

particularmente os processos inquisitoriais, construídos por

indivíduos ligados á cultura dominante, Ginzburg considera


M
que è possivel trabalhar esses registros para alèm da vis'ào

de que s^o unicamente expressão da "cultura dominante" ou da

"cultura imposta ás classes populares". E justamente, nos

processos inqui si tor iai s, vistos como espaços de 'con-fronto

entre niveis culturais diversos, que ele vai, buscar as


- 174 -

raizes e o significado da feitiçaria popular e de crenças e

idéias originais ligadas é cultura popular. Ginzburg vé o

processo como um momento de confrontação entre culturas

diferentes e sua leitura dos registros passa por essa

compreensão. Em relaçcSo aos processos inqui si tor iai s

enquanto fontes, Duby (1989) considera que o papel do

historiador é saber medir a distância que as fontes se


colocam em relação á realidade. Na medida em que elas

informam mais sobre a ideologia dominante do que sobre a

realidade, elas colocam uma tela entre os nossos olhos e


aquilo que nossos olhos gostariam de ver. Mas esse fe um

limite intransponível. Nesse sentido, ao historiador cabe

"abandonar o sonho positivista de atingir a realidade das

coisas do passado". Uma vez feita essa ressalva, Duby

defende que são os depoimentos das aldeâs de MontaiIlon

diante do inquisidor as primeiras expressòes inegáveis de um

discurso feminino na França.


- 175 -

2) A trajetória da Inquisição

Buscar compreender as semelhanças entre as narrativas

recolhidas na ilha e os relatoss sobre a bruxaria européia

nèío signi-fica que se esteja tomando as represent açÒes

medievais e modernas sobre as bruxas como algo uni-forme e

homogêneo. Alèm das di-ferenças entre as culturas populares

de uma regi So para outra, do campo para as àreas urbanas, a

própria a t u a ç ã o da inquisiçèiD e das i n s t i t u i ç ò e s jurídica©

-foi di-ferente em cada lugar. Essa di-ferença nos interessa

particularmente na medida em que mesmo os pesquisadores que,

como Ginzburg, buscam estudar a bruxaria do ponto de vista

das culturas populares, encontraram nos processos a

principal -fonte de material para suas pesquisas.

Entre as di-ferenças, a que separa, de um lado, a

atuaçào da inquisiçi^o na Europa em geral e de outro as

inquisições espanhola e portuguesa è a mais acentuada pelos

estudiosos. E a partir do momento em que essas duas

inquisições Scto instaladas que o poder inquisitorial ganha

um estatuto mais de-f ini do, principalmente quanto ás suas

relações com o poder papal e com o poder real. Antes disso,

o que alguns autores chamam de "inquisição medieval" havia

funcionado de forma mais dispersa, atuando em alguns

bispados e perseguindo principalmente os grupos heréticos


- 176 -

criticos ao catolicismo que se prol i-feravam pela Europa. Mas

mesmo esta inquisição medieval nào se limita ái perseguiçíío

aos grupos herfeticos. Ela nào sò penetra rapidamente em

muitas regibes, como passa a vincular ás heresias práticas e

crenças ligadas á -feitiçaria e que -foram gradualmente se

demonisando. Do mesmo modo, a inquisiçào portuguesa e a

espanhola nèto restringiram sua atuação aos cristào-novos,


mas perseguiram também aqueles ligados a praticas e crenças

em -feitiçaria.

Alguns pesquisadores <NQVINSKI, 1983 e SARAIVA, 1985,

entre outros) t#m apontado duas características centrais que

di-ferenciam a Inquisição ibérica dos tribunais que

■funcionaram no resto da Europa. Em primeiro lugar, a sua

relação com o poder real, levando-a em muitos momentos a um

vinculo mai-or com a autoridade do Estctdo do que com a

autoridade papai. Durante o período medieval, quando o poder

politico era ainda disperso e pouco centralizado, a

inquisiçào jã atuava em colaboração com os poderes

seculares, mas de uma -forma ainda muito -flutuante. Na

Espanha e em Portugal uni-ficados, essa relação era muito

mais de-finida e a Inquisiçào serviu como um verdadeiro

instrumento de imposição dos interesses políticos e

econômicos do poder real. Nesses países, a Inquisição teve

um papel a tal ponto importante na consolidação do poder

estatal que chegou a ser em alguns momentos um poder


- 177 -

paralelo, tanto em relaçào ao Estado, quanto ao Papa.

Saraiva (1985) caracteriza-a como um "terceiro poder", um

Estado dentro do Estado, ou mesmo "acima do Estado", em

muitos momentos. A segunda caracteristica que para esses

autores marca a diferença da Inquisição ibérica da do resto

da Europa è o fato de ter se voltado prioritariamente, em

funçào de fatores econômicos, para a per segui çèio de judeus e


mouros e, no caso de Portugal, dos cristSos—novos.

Mas a preocupação com impedir o crescimento da

burguesia de cristSos-novos que se expandiu rapidamente e as

intenções de confiscar-lhes os bens nSo impediu que a

inquisição portuguesa ou a espanhola perseguisse também

outras "ameaças", como as práticas de curandeirismo,

feitiçaria, comportamentos transgressores dos costumes, etc.

Colocadas também no campo da heresia, principalmente na

medida em que vão sendo demonizadas pelos discursos dos

teólogos e demonòlogos ligados é Igreja, essas acusaçòes

confundiam-se muitas vezes com a perseguição aos

crist^os-novos, constituindo um mesmo universo de

"transgressòes".

Na sua presença no Brasil, através das visitações, das

devassas episcopais, das delações dos comissários e

"familiares" do Santo Oficio, sào inumeráveis as atividades

julgadas e consideradas crimes contra a fé ou contra os

costumes, que envolviam feitiçaria, bruxaria, participação


- 178 -

em cultos e rituais nSo-cristàos, uso de bolsas de mandinga,


adivinhações e sortilégios, possessào, alèm da perseguição

aos crist^os—novos e seus descendentes que se haviam

instalado aqui (27). O que se pode constatar a partir dos


estudos sobre a Inquisiçclo e o imaginário popular europeu

nesse per iodo è que, mesmo com essas di-ferenças, marcadas

por contextos regionais e nacionais especi-f icos, nào sò as


crenças em bruxaria sào um -fato recorrente na mentalidade

popular de toda a Europa, como tiveram uma trajetória comum

na -forma como foram reelaborados pela cultura cristã

dominante, que passa a construir um discurso unificado sobre

a bruxa.
- 179 -

3> Uma comparaçlío entre as narrativas da ilha


e as européias

NSo pretendo, nesta análise comparativa entre as

narrativas recolhidas na ilha e aquelas sobre a bruxaria

européia, tomar as representaçíies medievais e modernas sobre

as bruxas como algo uniforme e homogêneo. Como foi visto

anteriormente, as culturas populares apresentam-se

diferentes não apenas de uma regiSo para outra, ou do campo

para as àreas urbanas, mas também de um periodo para outros


durante os séculos que transcorreram entre a Europa Medieval

e a Moderna. A transformaçào ocorrida entre os ’benandanti',

descrita por Ginzburg, è um exemplo dessa diferença. A


questSo torna-se mais complexa ainda quando aceitamos que

também a viscio das elites sobre as bruxas nào se construiu

de forma homogênea em toda a Europa e nem isoladamente das

representaçrões populares. A própria atuaçSo da Inquisiçèlo e

das instituições jurídicas foi diferente em cada lugar. Por

outro lado, nào se pode deixar de reconhecer que, alèm de

uma intensa reciprocidade entre as culturas populares e afe

das elites, haviam proximidades culturais notáveis entre as

diferentes regiòes. Nào é ilegítimo dizer que, sob um

panorama politico e intelectual semelhante, a Europa

construiu, de forma desigual mas combinada, noções sobre as

bruxas que se tocam em muitos pontos. Essas noçòes dizem

respeito ás duas vertentes, a popular e aquela ligada ao


- IBO -

pensamento das elites dominantes. De um lado, os conceitos

de feitiçaria que vào sendo elaborados pelo discurso

eclesiástico carregam noçbes comuns, como a importância da

■figura do Diabo na explicação da -feitiçaria, ou a


identificação da ■feitiçaria com a heresia. Essa con-fusâío

entre idéias ou práticas heréticas e ■feitiçaria è recorrente

tanto no Norte ou no Centro da Europa, onde, no fim do


sèculo XV, os valdenses foram largamente perseguidos como

feiticeiros, quanto na Peninsula Ibérica, onde judeus e

cristSos—novos também eram vinculados é feitiçaria. Por

outro lado, a feitiçaria popular, largamente disseminada por

toda a Europa, também trazia noçòes comuns. Sem pretender

ingressar na polêmica sobre se esses pontos constituem ou

nSo uma noção íinica ou um "conceito de bruxaria", como

propòe Levack (1988), è em torno deles que busco estabelecer

as conexòes e as diferenças com a bruxaria da ilha.

Para fazer essa comparação, utilizei os relatos

descritos por alguns autores, principalmente aqueles cuja

leitura me apontou inicialmente a idéia de que as

semelhanças não existiam por mero "acaso".

Entre eles, os estudos de Ginzburg (1987 e 1988); a

recente sintese de Levack (1988) sobre a "caça ãs bruxas",

que tem o mérito de realizar um apanhado geral sobre o

assunto, com descrições de relatos de várias regiões da

Europa; as descrições contidas em clássicos como Mandrou

(1979) e Michelet (1970), além dos estudos sobre as bruxas e


- 181 -

a xnquiBiçrào no Brasil <MOV INSKI, 1980; MELLO E SOLIZA, 19BÓ,


BELTRAG, 1988, entre outros).

Para e-feito de uma sistematização mais cl ara analiso

cada um dos elementos que se mostraram recorrentes nas


narrativas na ilha e naqueles conhecidos sobre a bruxaria
europèi a.

a) metamorfose, vôos noturnos e unguentos

A transformaçào das mulheres em bruxas e a


identificação destas com determinados animais sào traços

recorrentes tanto na bruxaria da ilha quanto na européia.

Mas a metamorfose nào se constitui num elemento isolado na

construção da noção de bruxaria, ela estã ligada não sò ao

vC>o noturno das bruxas, ao uso de unguentos e outras

substâncias de efeito "mègico", como é "viagem espiritual da

bruxa", viva ou morta.

A metamorfose, sempre noturna nas histórias que

recolhi, significa a passagem para um outro estado, dominado

por impulsos inconscientes e ameaçadores das normas sociais.

As múltiplas formas que uma bruxa pode assumir lhe conferem

um poder que vai alèm dos seus limites. Ela pode aparecer na

sua forma humana ou na forma de alguns animais voadores,

como garças, moscas e principalmente borboletas, ou na forma

de uma luz ou de um vulto branco que surge na mata ou na

estrada durante a noite. Ou quando ainda aparece sem uma


- 182 -

•forma de-finida, seus sinais sempre indicam a sua presença:

os restos de areia ou plantas no •fundo da canoa roubada, a

criança doente, etc. Essa metamor-fose em •formas nào humanas

fe relacionada algumas vezes com uma bruxa que age em


espirito, principalmente a chamada "bruxa morta", de^finida

como o espirito de uma mulher que retorna na forma de bruxa.

Da mesma forma e junto com a metamorfose, o vôo das


bruxas e o uso de substâncias "mègicas" sào também

recorrentes aqui e na bruxaria européia. Levack considera

que a crença no vôo das bruxas na Europa se origina de duas

crenças populares distintas. Uma que, como ele diz, "remonta

aos tempos clássicos", de que as mulheres transformavam-se á

noite em corujas voadoras ou 'strigae'', devoradoras de

crianças (28).

A outra crença que origina a idéia do vôo das bruxas,

di2 respeito a mulheres que saiam é noite com Diana, deusa

romana da fertilidade, ligada com a lua e a noite. Ela

aparecia em outros lugares com o nome de outras deusas, como

holda, na Alemanha, que, assumiu também as duas faces de

Diana; terrificante quando conduzia nos seus vôos uma "horda

furiosa" dos que haviam morrido’prematuramente? protetora,

quando sala á noite pela terra, desempenhando funçòes

benéficas (Levack, 1988:42) (29). Essas crenças se

difundiram nas camadas populares de toda a Europa, através

das crenças na ’strigae’ e nas "damas da noite", mulheres

que podiam eventualmente voar ou visitar as casas com fins


- 183 -

benfe-ficos. A atitude da Igreja em relaçclo á capacidade das

bruxas voarem -foi definindo-se á medida em que se constituía

o que Levack chamou de "conceito cumulativo de bruxaria".

Apesar de inicialmente negar essas crenças, relegando-as a


uma ilus^D ou é imaginação das mulheres seduzidas pelo

Diabo, passa, a partir do sèculo XV, a admitir que as bruxas

podem realmente ser transportadas. 0 próprio 'lialleus


Maleficarum’, um dos mais conhecidos tratados teológicos

sobre a bruxaria, admitia que "elas sào transportadas tanto

corporal como fantasticamente (30). Essa incorporaçào da


realidade do vôo nos conceitos da Igreja sobre bruxaria està

ligada á crescente demonisaçcío da bruxaria pelo discurso

inquisitorial. No final do sèculo XV, teólogos admitem que

"as bruxas sào realmente transportadas de um lugar para

outro pelo Diabo, que, sob a forma de bode ou ou algum outro

animal fantástico, tanto as carrega corporülmente para o

sabà, como està presente nas obscenidades" (31).

Também ligada ao vòo està a noçcío de que as bruxas

passavam no corpo substâncias e unguentos que as auxiliavam

no vtbo e na metamorfose. Estudiosos da bruxaria medieval

procuraram explicar as descrições de bruxaria , vóos

noturnos e sabàs como produtos de alueinaçòes provocadas

pelo uso desses unguentos vistos como alucinógenos. Alguns

chegaram a tentar reproduzir as fórmulas descritas desses

unguentos, obtendo resultados diferentes e contraditórios,

como o foi o caso de Snel1 (1891) e Peuckert (1960), que,


- 184 -

usando em seu próprio corpo o que seria uma fórmula medieval

do unguento usado pelas bruxas, chegaram a conclusòes

distintas. Snel1, para quem as narrativas das bruxas eram

produto de doença mental, sentiu apenas uma dor de cabeça.

Peuckert, defendendo que os sabàs e as assembléias

noturnas eram reais, teve alucinações análogas, segundo ele,

ás descritas pelas bruxas nos Processos (Ginzburg, 1988:222)


(33) .

Também nas narrativas da ilha o uso de unguentos ou

outras substâncias com poderes "mágicos" sào relacionadas á


passagem ao estado de bruxa e á capacidade de voar.

"Dizem qv.ve elas têm o coro que nem nós e


passam o ’ünico" (unguento) no corpo pra avoà."
(D. Eudora, Canto da Lagoa)

"Havia numa casa sete feiticeiras, quer


dizer, eram sete filhas de um homem. Em noite
de luga cheia, elas iam atè um lugar onde
faziam uma sopa e bebiam pra virá bruxa." (D.
Branca, Canto da Lagoa)

A referência ao ’cínico’ (forma nativa de dizer

unguento) e á sopa das feiticeiras è vaga. Para os

informantes, è uma pomada ou óleo que elas passam no corpo.

b) Crianças embruxadas e outros maleficios

"Muita criança morreu por causa de bruxa.


0 seu Manico perdeu seis filhos" (José, 40
anos, Canto da Lagoa)
- 185 -

Apesar da metamorf ose em bruxa, sua identi-f icaçào com

determinados animais e o vôo noturno estarem presentes

também na de-finiçclo da bruxaria em outras sociedades, como

algumas culturas indígenas americanas, em que o xamà ë

identificado com animais da floresta, as similaridades entre

as descr içtoeH. da bruxaria ilhôa e a européia permitem que se

diga que existem entre elas raizes comuns. Esses liâmes vào

alèm das simples recorrências de traças isolados, mas se

configuram a partir de uma combinação de elementos que

compòem um quadro bastante similar. Metamorfose e poder de

voar combinam-se com outras características comuns,

descritas a seguir, que reafirmam a proximidade dessas

crenças. Descrições sobre bruxaria no Brasil colonial,

apanhadas durante as visitações e as devassas episcopais da

Inquisiçào aqui, reforçam a rese de que essa proximidade nào

è casual. Estas duas histórias transcritas por Mello e

Souza (1986) sào extremamente semelhantes a vários relatos

que recolhi durante minhas pesquisas na Lagoa:

"Num sábado é noite, D. Lúcia e a irmà


costuravam junto á candeia quando ’veio uma
borboleta muito grande com uns olhos muito
grandes, e tanto andou ao redor da candeia que
apagou e nào apareceu mais’. D. Lúcia teve medo
e contou o acontecido á mulher do Godinho;
’entào ela respondeu que ela mesma era a
borboleta’. D. Lúcia pensou que era zombaria,
mas logo soube que a tal mulher viera do reino
degradada por feitiçaria. F-’assou a esconder
suas crianças para que nào fossem embruxadas
pela estranha. " (1986: )
- 186 -

"Em meados do sèculo XVIII, Luzia da Silva


Soares -foi acusada de entrar pelo buraco de uma
janela para chupar o sangue de uma criança,
metamorfoseada em borboleta. Conseguiu a proeza
’como bruxa que era’." <pg. 247)

Estas duas histórias sào extremamente semelhantes a

algumas das histórias contadas pelos nativos da ilha,

transcritas nos capítulos anteriores e remetem a outra

presença comum que è o embruxamento das crianças.

0 medo da bruxa que ataca crianças recèm-nascidas ou

ainda pequenas era uma das crenças disseminadas nas culturas

populares de toda a Europa. No estereótipo geral dessas

crenças, a bruxa atacava a criança chupando o seu sangue atè

que esta morresse. Estudos sobre a bruxaria européia e no

Brasil colonial sào fartos em relatos como os transcritos

aci ma.

Ginzburg (1988), em seu estudo sobre os ’benandanti’,

reconstituiu algumas crenças populares nas bruxas a partir

dos depoimentos de membros da seita friulada, no processo

instalado pela Inquisiçào. Nessas crenças, fazem referência

á enfermidade e á morte de crianças como maleficios causados

pela açào de bruxas.

"0 filho do moleiro Pietro Rotaro fora


’enfeitiçado pelas bruxas, mas no
momento do malefício, chegaram os andarilhos e
retiraram-no das màos das bruxas’. Os
’benandanti’, com efeito, reconhecem
imediatamente as vítimas de um sortilégio,
’percebe-se logo’, diz Gasparutto, ’porque se
vê que <os feiticeiros> nào lhes deixam nenhuma
carne no corpo, <...> e ficam secos, secos.
- 187 -

secDB, sfo pele e osso’. E, se se acode a tempo,


pode-se tentar salvar o menino enfeitiçado;
basta pesci-lo três quintas-feiras
consecutivas." (Ginzburg, 1988:48)

Esse depoimento, de um processo inquisitorial do final


do sfeculo XV na regiào do Friul, na Itàlia, è

surpreendentemente semelhante em muitos pontos á cosmologia

dos ilhfeu sobre as bruxas, nào apenas na referência ás

crianças como vitimas de feitiços das bruxas e feiticeiras.

Atè mesmo a maneira como a criança enfeitiçada è descrita è

similar aos relatos nos quais os nativos em descreveram


crianças embruxadas.

"Tinha muita criança que adoecia. Se dizia


que tava embruxada. Ela ia ficando magrinha,
sequinha, assim õ (mostra o polegar). A bruxa
entrava pela fechadura na casa e chupava o
sangue, aqui no pescoço ou no cèu da boca. Ai a
criança chorava todo o dia." (D. Leontina,
Canto da Lagoa)

A imagem da criança que foi atacada por uma bruxa è a

mesma. Percebe-se o feitiço nos sintomas que se manifestam

na criança: a perda de peso, o choro permanente, ou ainda,

referência também comum nos relatos, a suspensào da

amamentaçào.

Essa idèia de tomar uma criança doente e r.aqultica como

vitima de embruxamento era corrente nas culturas populares

europèi as.

0 episódio descrito a seguir è tomado por Mello e Souza

como pertencendo a um dos "grupos de crenças estereotipadas


- 188 -

em relafào ás bruxas" na Europa, por encontrar similares nos

relatos europeus sobre bruxaria. E a história de uma

mulher, vista na comunidade como -feiticeira, que entra na

casa de uma mulher que havia dado á luz hà seis dias. Depois
de pro-ferir algumas palavras, a mulher vai embora.

"...o bebezinho, que era pagão e 'estivera


sempre são e lhe tomava bem a mama, começou a
chorar alto, e acudindo á criança a acharam
embruxada com a boca chupada em ambos os
cantos, tendo em cada canto da boca uma nòdoa
negra com sinal de dentada, e assim nas
virilhas, em cada uma outra chupadura e nòdoa
negra.’ Nunca mais tomou a mama, ’nem pòde
levar pela boca coisa alguma’5 batizaram-na em
casa, a criança chorando sempre, atè que nàfo
mais conseguiu abrir a boca, e morreu." <Mello
e Souza, i98é>:203)

A crença de que manchas roxas np cèu da boca ou nos

cantos da boca das crianças sào sinais de que ela -foi

chupada por uma bruxa e, se não -for socorrrida a tempo, pode

morrer, è também comum nas narrativas dos moradores da

Lagoa.
Alèm de atacarem as crianças, as bruxas são vistas como

causadoras de outros in-fortünicos, como arrasar uma

plantação, dar nòs nas crinas dos cavalos cavalgados por

elas durante a noite, etc <34).

c) 0 diabo, pactos e sabàs


- 189 -

Dentro da questào mais geral sobre o caráter popular ou

"culto" dessas crenças, uma das questòes que mobiliza a

atençào dos historiadores està ligada ás raizes de cada um

dos elementos que -fazem parte do conceito de bruxaria. Nào


pretendo reingressar na polêmica, jà descrita anteriormente,

entre os que delimitam as crenças populares em bruxaria

enquanto um conjunto -fragmentado de traços, voltados para os

problemas da vida cotidiana, e uma cosmologia de contornos

mais de-finidos, um discurso totalizante, voltado para

questões que vào alêm dos problemas do dia-a-dia. lias é

preciso reconhecer que essa è uma questào presente também na

inclusào da -figura do Diabo no pensamento sobre bruxaria.

A idèia de que existe uma interpenetraçào dos niveis

culturais, uma influência reciproca que faz com que, por

exemplo, as crenças pagàs incorporem traços cristàos, assim

como o cristianismo se deixe contaminar por elementos do


paganismo, nào è mais do que reconhecer uma tendência

sincrètica nessas crenças. Essa tendência aparece mais

fortemente a partir do momento em que hà um contato mais

estreito entre as vàrias vertentes religiosas - mesmo que

esse contato seja orientado pelo conflito. Essa idèia è

sustentada por Ginzburg, ao considerar os processos e

interrogatórios como momentos de confronto entre os

diferentes niveis da cultura, lias, no campo das visòes que

reconhecem a complexidade da trajetória dessas crenças, a

definiçào de quais traços sào próprios das culturas


- 190 -

populares e quais aqueles sugeridos a partir do contato com


a "alta cultura" da Idade Mèdia è uma questão bastante

complicada.

Mas, á parte essas di-ferenças, ná(o è ilegitimo dizer

que existe uma convergência entre os estudiosos mais

recentes da bruxaria medieval em considerar a presença do

Diabo, os pactos e a realização dos sabás como elementos

introduzidos pelo pensamento cristMo dominante. 0

historiador Trevor-Hoper (1967), desenvolve essa questèSo de

forma particular.

"Os povos primitivos da Europa - como de


outros continentes - tinham conhecimento de
encantamentos e feitiços, e a noçào de vôo
noturno ’com Diana ou Heròdias’ perdurou nos
primeiros séculos cristãos» mas a substância
essencial da nova demonologia - o pacto com
Satã, o sabbat das feiticeiras, o intercurso
carnal com demônios, etc - e a estrutura
hierárquica e sistemática do reino do Diabo
constituem produto autônomo do final da Idade
Mèdia."

Trevor-Hoper chega a aceitar que conceitos de pacto e

do sabà podem provir do folclore pagão dos povos germânicos,

mas acredita que foi obra do pensamento cristSio a

articulação desses elementos em uma "demonologia

sistemática", que proporcionou um estereótipo social á

perseguição. Essa idèia de que o pacto com o Diabo e os

sabàs não apenas foram elaboraçòes teóricas do final da

Idade Mèdia, como foram o núcleo em torno do qual se


- 191 -

constituiu a bruxaria enquanto um sistema articulado, è

partilhada por outros estudiosos.

Em sua sintese sobre a perseguição ás bruxas na Europa


Moderna, Levack aponta a presença do Diabo como a idèia

central para a formaçào do "conceito cumulativo de

bruxaria", que serviu como fundamento para a persegui çèfo.

Atè esse momento, as crenças populares centravam-se no medo

dos malefícios causados pelas bruxas. Levack considera que a

introduçclo da figura do Diabo enquanto fonte da "magia

maléfica" è obra do pensamento cristào, dando á bruxaria um

caráter ameaçador dos princípios da cristandade que nào

existia quando a bruxa era simplesmente associada ao

ma 1ef ic ium ’.

Para Levack, era o pacto que, nèfo sò definia legalmente

o crime de bruxaria, como servia como a ligaçáo entre a

"magia maléfica" e a "adoração do Diabo". O sabá,

identificado aos encontros noturnos das bruxas, é o momento

ritual do pacto, e suas descrições sào marcadas por uma

ênfase nos seus aspectos eróticos:

"...a relaçào ritual com o Diabo e a


prevalência de atividades promiscuas
heterossexuais e homossexuais entre as
bruxas..." <pg. 37)

Ao estudar a trajetória dos ’benandanti’, a partir dos

processos inquisitoriais, Ginzburg descreve o projeto de

demonizaçclo desse culto agrário. Paulatinamente, a partir


- 192 -

das pressòes dos inquisidores e da adesào ao seu discurso,

as "batalhas noturnas" que os ’benandanti' dizem empreender

contra os -feiticeiros vào sendo identi-fiçadas com o sabá.

tias para Ginzburg, a crença popular podia ser vista como

portadora de uma visào de mundo e uma cosmologia próprias

mesmo antes de se trans-formar pelo contato com o pensamento

dos inquisidores.
Essa idèia de que a -figura do diabo toma conta do

imaginário ocidental no inicio da Epoca tioderna e nêto na

Idade Mèdia, è partilhada por Mello e Souza (1986), quando

-fala do pensamento colonial. Jà da parte dos jesuítas entre

meados do sèculo XVI e inico do XVII havia uma grande

preocupação com a presença do Diabo. Mas se è possível

identi-fi car a existência aqui dos demônios e dos pactos com

o Diabo, sob vàrias -formas, o sabá e a alusào ás rei açóes

sexuais com o Diabo nào ocorre na feitiçaria colonial. A

historiadora tenta encontrar a resposta para essa ausência

no fato de que, para ela, o sabà è essencialmente uma

criação do discurso inquisitorial, nào sobrevivendo longe

dos processos e interrogatórios, ao contrário do que

pensavam historiadores como Murray e Michelet, que

acreditavam na realidade do sabà. Sendo uma construçào

erudita, e na medida em que " a colónia parece ter

funcionado como uma perpetuadora (MELLD e SOUZA, 1986) do

saber popular e diluidora do saber erudito, a idèia de sabà

nào se manteve na feitiçaria colonial.


- 193 -

Nos relatos ilhèuB, a -figura do Diabo està praticamente

ausente, ou entào ocupa uma posiçSo completamente secundária

e n^D definidora da bruxaria, como foi o caso da Europa. 0

Diabo deixa de ser importante para a sustentaçào desse

imaginário. Raros foram os entrevistados que chegaram a

mencionar o Diabo ou demûnio, e em gérai sem Ihe dar muita

i{nport'ância. Mas, ao contrèrio do Demônio, os encontros

noturnos entre as bruxas sào um elemento central na

definiçào da bruxaria pelos nativos da Lagoa, principalmente

nas narrativas feitas pelos homens. Como o sabà, que Mello e

Souza (19B6) define como revelador dos "recônditos do

inconsciente coletivo, nos quais a atividade sexual sem

limites se configurava simultaneamente como o grande tabu da

cultura e o supremo desejo, inatingível" (p.260), esses

encontros entre as bruxas aparecem com uma forte conotaçào

orgiàstica e transgressora. A diferença è que nestes

encontros ilhéus inexiste a figura do demônio, o que muda

completamente o significado deste ritual imaginário. Ele nào

pode ser definido como um verdadeiro sabà, que inclui nào sõ

a presença do demônio, como as relações sexuais rituais com

este e a materializaçào do pacto. Acredito que uma das

explicações dessa ausência do Diabo nos relatos ilhéus sobre

as bruxas vai no sentido da idèia de Mello e Souza citada

anteriormente: na medida em que a demonizaçào da bruxaria è

um produto intelectual do pensamento erudi'to, o que se

perpetua, a partir do imaginário colonial e atè hoje, sào as


- 194 -

crenças e pensamentos mais ligados ao universo popular. lie

parece que o -fato de nào ter existido aqui uma presença mais

explicita ou direta do controle inquisitorial, ao contrário

do Norte e Nordeste do pais, -fez com que esse imaginário

popular encontrasse um espaço maior para se desenvolver,

diluindo em parte os elementos introduzidos pelo pensamento

cristào. De -fato, nào hà noticias, em Santa Catarina e no

extremo sul do pais em geral da ocorrência das Visitaçbes

nem das Devassas Episcopais. As idéias dos teólogos e

inquisidores penetraram nessas regiòes através dos jesuítas

e de outros representantes da Igreja Católica. Mas, apesar

de encontrarem um apoio na -forte religiosidade das

populaçóes aqui instaladas, essa in-fluência era limitada, na

medida em que, sem uma presença tào -forte como -foi a da

Igreja ou a dos jesuitas em outras regiões do pais, as

formas populares de religiosidade encontraram mais espaço

para se desenvolverem.

Apesar de encontrar raízes no imaginário europeu de

séculos atràs, as narrativas sobre as bruxas dos nativos

ilhéus nào sào um somatório de- traços do passado que

sobreviveram ao tempo. Elas sào hoje uma forma de falar

sobre o mundo e a vida dos nativos, os conflitos e

contradições su^acentes e pouco visíveis.


CAR iTUL_0 <
£>

A BRUXA C OMO DISCURSO

SOBRE O RODER
- 195 -

CAPITULO 6 - A BRUXA COMO DISCURSO SOBRE 0 PODER

0 quadro descrito no5 doÍ5 capitulos anteriores sobre a

presença das bruxas no imaginário dos moradores da Lagoa,

revela si gni-f icados diversos para a aparição da bruxa nos


diferentes discursos e situações de narrativa. Conforme quem

fala e as circunstâncias em que fala (FAVRET-SAADA, 1977),

a presença da bruxa assume dois sentidos distintos que


envolvem os eventos de bruxaria e aparecem como o pano de

fundo comum a todas as histórias narradas. De um lado, a

bruxa representa uma ameaça á identidade e ao poder

feminino, relacionado aos espaços domésticos, e o sentido de

sua presença indica uma situação de conflito entre mulheres

que corre paralelo á trama de bruxaria. De outro lado, a

bruxa aparece como uma ameaça é identidade masculina e

desperta nos homens um sentimento de medo.

1) A bruxa em uma situação de conflito entre


muiheres

A história de embruxamento da filha de uma moradora do

Canto da Lagoa, transcrita anteriormente, revela um conjunto

de açòes que fazem lembrar uma verdadeira batalha. Atingida

indiretamente, através do embruxamento da filha, todos os

esforços da màe são no sentido de traçar uma estratégia


- 196 -

teraupêutica que acaba levando-a é benzedeira. Buscando

en-frentar as causas da doença da -filha, ela descobre e vence

a bruxa, identificando-a e mostrando-se assim mais forte que

ela. Toda a narrativa è tecida em torno de uma permanente

mediçào de forças, envolvendo mulheres com papéis diferentes

e diferentes maneiras de enfrentamento. A disputa se realiza

em dois niveis, ambos relacionados com o poder feminino.

Em um primeiro nivel, a màe da criança vive, com a

doença da filha, uma situaçào de descontrole no plano

doméstico e familiar. Ela busca desvendar essa situaçào

tentando entender os motivos da doença e a melhor forma de

tratà-la. 0 fato da doença da criança mobilizar a màe e nào

o pai està ligado ao próprio papel que ocupam as mulheres

dentro do espaço doméstico. O cuidado dos filhos è de

responsabilidade absoluta das mulheres e qualquer desordem

nesse aspecto atinge em primeiro lugar a autoridade

feminina. E precisamente outra mulher, representada pela

figura da bruxa, quem tem capacidade de colocar em questào

esse poder da màe sobre o bem-estar dos filhos (no caso

descrito) ou sobre qualquer outra questào que esteja ligada

ao espaço e ás funçòes domésticas. Essa -bruxa é identi-ficada

com uma outra mulher com a qual a màe da criança embruxada

jà tinha um conflito anterior. Mas o objeto central da

narrativa da màe em torno do embruxamento nào è o de falar

sobre o conflito com a vizinha. Questòes importantes que

envolvem essa relaçào tensa nào sào explicitadas, e algumas


- 197 -

sèlo inclusive omitidas quando a história ë contada: o nome

da bruxa, qual -foi a situaçào anterior de con-flito entre as

duas mulheres, qual o motivo do con-flito, etc. 0 discurso

da màe reproduz, em sua estrutura, uma situaçèlo de mediçèo

de forças entre mulheres. A màe usa a narrativa para afirmar

sua posiçào de poder. E interessante notar que, ao se

referir á bruxa, identificando-a com uma vizinha, a mulher


assume uma atitude de quem està indignado ou zangado, á

semelhança do comportamento assumido pelos Azande, que se

mostram, diante de uma situaçào identificada como bruxaria,


com raiva e nào temor. Como veremos, este è uma sentimento

oposto ao dos homens em relaçào és bruxas.

Como propòe Favret-Saada <1977), a bruxaria se

constuitui num "discurso de guerra", como extensào de um

duelo sobre uma escala e uma direçào mais largos. Mas aqui o

duelo ou a rivalidade anterior, no caso entre a màe e a

vizinha, aparecem apenas como desfecho da história e assumem

um plano secundário. Sua apariçào se dà enquanto resoluçào

da narrativa. A narrativa nào pode ser reduzida, desta

forma, à expressào de uma realidade social anterior, mas usa

essa realidade como resoluçào.

0 conflito entre a màe e a vizinha no interior da

narrativa nào è mais do que uma metáfora que expressa uma

rivalidade existente no plano inconsciente que se projeta em

uma situaçào real. A vizinha jamais ocupará o lugar da màe

no interior da casa, mas, no imaginário feminino, as outras


- 1 9 8 -

mulheres (e nào 05 homens) aparecem como as únicas capazes

de colocar em questào esse poder doméstico.

Nessa batalha entre a màe da criança e a bruxa, a

palavra ë a principal arma usada pela mulher. Verbalizando a


situaçào de embruxamento, narrando detalhadamente todas as

etapas do episódio e, pri nci pamente, ident i-ficado a bruxa,

ou seja, dando um nome a ela (nào necessariamente tornado


público), a mulher volta a ter o controle da situaçào.

O outro nivel em que se realiza a disputa entre

mulheres no interior da narrativa è entre a bruxa e a

benzedeira. Uma mediçào simbólica de -forças ó travada entre

as duas -faces do poder que està relacionado ás mulheres: um

poder maligno, nefasto, representado pela bruxa, e um poder


benè-fico e protetor, representado pela benzedeira. E o que

Evans-Pritchard <1978) chamou de batalha entre dois "poderes

espirituais".

2) A bruxa como expressão do medo dos homens

0 significado presente nos relatos dos homens sobre

episódios que envolvem a atuaçào de uma bruxa està sempre

relacionado a um sentimento de medo de uma ameaça exterior.

Mas nestes relatos ela aparece como uma ameaça diferente

daquela que representa para as mulheres. Para estas, a bruxa

è uma ameaça ao poder feminino relacionado aos espaços

domésticos e ao domínio familiar, que se materializa em


- 199 -

muitos momentos na -forma de um con-flito entre mulheres


próximas- Nesse caso, todo o sentido da disputa è o das

mulheres, a mèle da criança embruxada e a benzedeira,

assegurarem seu poder e seu dominio sobre as questòes


relacionadas ao território feminino. Para os homens, a bruxa

também se apresenta como uma figura feminina poderosa que

tem o poder de colocar em questào a identidade masculina,

mas o sentimento que ela lhes desperta é fundamentalmente' o

medo.

Como jà foi visto anteriormente, a bruxa representa

para os homens uma ameaça em dois planos complementares.

Num primeiro plano, a figura da bruxa ameaça a própria

identidade masculina, na medida em que desfaz os contornos

bera demarcados entre os universos masculino e feminino. Sào

mulheres que assumem um comportamento masculino, ocupam o

território dos homens e se apropriam de seus instrumentos de

trabalho, ou seja, penetram em àreas fundadoras da

identidade masculina. Mesmo invertendo o comportamento e

aproximando-se do mundo dos homens, a bruxa escapa á sua

compreensão, na medida em que representa uma ruptura com

aquelas definições socialmente construídas sobre o

significado do feminino e do masculino que integram os

discursos de homens e mulheres na comunidade. Em sua

ambiguidade se deposita o seu poder ameaçador.

As narrativas, contrapostas aos modelos que os

informantes apresentam, expressam uma divisào da imagem


- 2 0 0 -

•feminina. De um lado, a mulher <màe ou esposa) como uma

■figura protetora, alguém capas de garantir a vida. De outro,

a bruxa das narrativas, uma ameaça, detentora de poderes

incompreensíveis. Essa divisào da imago feminina aparece


também nos contos populares, sob a forma da màe e da

madrasta, da fada boa e da bruxa (BETTELHEIM, 1988 e MEZAN,

1986). A bruxa, associada á figura de uma mulher farte e


poderosa, coloca-se como uma ameaça á própria potência

sexual masculina. A imagem da bruxa, mesmo sendo relacionada

virtualmente a qualquer mulher, è identificada muitas vezes

com mulheres consideradas sexualmente perigosas para os

homens, na medida em que jà foram iniciadas sexualmente e jà

n^o se encontram mais sujeitas a uma autoridade masculina,

pai, marido ou irmèio: as mulheres mais velhas e viuvas, as

mulheres n^o-casadas, com uma independência em relaçlo á

familia. Sào vistas como uma fonte de medo e impotência para

os homens. Nesse sentido,. a mãle também representa uma

figura feminina ameaçadora, na medida em que è, para os

homens, um obstáculo á realizaçí(o de seu poder viril.

A bruxa significando uma ameaça á virilidade do homem

està presente também em outros relatos, nos quais as bruxas

realizam encontros dentro do território masculino. E muito

comum, nas histórias contadas pelos homens, as bruxas

aparecerem atuando em grupo, ao contrário dos relatos

femininos, em que ela aparece só, agindo individualmente.

Nos seus relatos, os homens revelam o caráter orgiàstico


- 2 0 1 -

destes encontros noturnos das bruxas. Como na clássica


tragédia das "Bacantes", de Eurlpedes (35), as mulheres saem

de suas casas, abandonam seus lares e, encontrando-se em

lugares ermos, na imaginação dos homens, celebram orgias

durante a noite. Da mesma -forma que qualquer mulher pode ser

uma bruxa, todas as mulheres de Tebas sào bacantes e, na

narrativa, vivem os seus encontros também de -forma

inconsciente, a tal ponto em que uma delas mata o próprio

-filho sem o saber conscientemente. Também as bruxas vivem a

dualidade presente nas bacantes: de um lado, elas vivem o


idilio, entregando-se, nas palavras de Penteu, "ao praser

dos machos". De outro, elas sMo capazes de matar os animais

no pasto, atacar as crianças, causar outras -formas de

mal-estar. Nessas narrativas, os homens revelam suas

•fantasias de horror e desejo em relaçào a esse mundo

-feminino desconhecido para eles.

De alguma -forma, nessas histórias, os homens projetam

aquilo que nlo està presente no seu discurso conscientemente

manipulado sobre as mulheres da comunidade, mas que existe

em seu imaginário e se mani-festa de módo nêlo intencional em

suas narrativas. Nestas eles identi-ficam a existência de um

universo feminino que desconhecem, do qual esteio excluídos e

que representa uma ameaça. As bruxas, agindo em grupo,

recolocam duplamente essa ameaça. De um lado, ocupam o seu

espaço e assumem al uma posição de domínio, apossando—se de


- 2 0 2 -

seus instrumentos de trabalho e colocando, desta -forma, em

risco a sua identidade masculina. De outro lado, nos seus

encontros orgiàsticos, elas assumem um comportamento

masculinizado e oposto èquele considerado como legitimo para


as mulheres. De seus encontros, regidos pelo principio do

prazer, os homens estào excluídos. E interessante notar

que, em suas narrativas, os homens apenas indicam vagamente


o caráter nào sò orgièstico, como homossexual, desses

encontros. No caso do roubo da canoa, a história se

interrompe no momento em que as mulheres tiram suas roupas e

entram nuas na embarcaçào que navegará na lagoa. A história

é retomada com a volta das bruxas e o seu desencan-tamento ao

serem identificadas pelo pescador. D que acontece enquanto

estào navegando permanece como uma zona obscura da

narrativa, apenas revelada pelas vagas indicações de que

estào nuas e sozinhas, - ou seja, sem homens por perto, mas

que bastam para revelar quais sào as fantasias do pescador

sobre a exclusào dos homens destes encontros. A distância

fisica e geográfica da Lagoa, representada no fato de que as

bruxas navagam sempre para outras regiòes (a Barra da Lagoa,

a "índia", etc.), alèm do lugar onde fica a comunidade,

significa que, antes de mais nada, elas se distanciam e vào

alèm dos códigos e regras soei as da comunidade.

A ausência de uma figura masculina marca uma diferença

em relaçào ao mito das bacantes. Na tragédia de Euripedes.


- 203 - •

Dionisio està presente, da mesma -forma como nos sabàs


medievais a presença do diabo è de-finidora nos encontros das

bruxas. Al iàs è reveladora a semelhança entre as -figuras do

diabo e de Dionisio: ambos atuam sobre impulsos femininos


inconscientes, tirando as mulheres da convivência masculina,

assim como, fisicamente, sièlo um misto de homem e animal

("meio homem, meio touro").

Quanto á inclusào da figura do diabo por parte do

discurso inquisitorial sobre a bruxa, jà descrita no

capitulo anterior, pode-se afirmar que a existência do

diabo desloca a força ameaçadora das mulheres para uma

figura masculina. Como bem coloca liEZAW (1986), o diabo è

fruto de um movimento de defesa, que tenta condensar o poder

feminino numa figura exterior e masculina.

Esses discursos de homens e mulheres sobre as bruxas

têm em comum o fato de falarem de mulheres e relacionarem

essas mulheres a situações particulares de poder.


3) Palavra X Olhar

Ob si gni-f icados diferentes que representam as bruxas

nas narrativas em que os homens e as mulheres sào narradores

ou protagonistas remetem a -formas também distintas de

en-frentar esse poder. Em todas as histórias narradas por

homens, nas quais eles sè.o a vitima, sua relaçclo com a

bruxa, ou as bruxas, acontece -fundamentalmente através do

olhar. Eles sempre vêem a bruxa agindo, quando encontram uma

no caminho ou quando elas tentam roubar sua canoa.

Por outro lado, è também no olhar que està a capacidade

dos homens de enfrentar esse poder. Na histbria do pescador

que teve sua canoa roubada, é somente quando ele as espera

durante a noite, lançando sobre elas o seu olhar sem que

elas o vejam, que o encontro é quebrado. Nesse momento, as

mulheres deixam de ser bruxas e o pescador recupera

definitivamente os seus instrumentos de trabalho.

Para as mulheres, ao contrário, a relaçSo com a bruxa è

mediada principalmente através da palavra. A presença da

bruxa é indicada pelos sintomas que se manifestam na criança

embruxada. Esses sintomas Scío interpretados pela màe da

criança ou pela benzedeira que, assim, verbalizam a presença

da bruxa. E falando sobre essa presença e dando um nome á


- 205 -

bruxa, ou seja, lançiando palavras eficazes no combate, que o


poder pode ser enfrentado e desfeito.

Para os homens, o poder da bruxa è inefável, na medida

em que existe a partir de um principio incompreensivel. Esse

principio refere-se a um poder do feminino e ás diferenças

entre o feminino e o masculino, presente nào apenas no seu

discurso intencional, mas também em suas fantasias e no seu

imagi nàri o.

Para as mulheres, è possivel transformar a presença da

bruxa em discurso na medida em que existe uma identi ficaçèfo

com esses princípios também demarcadores de diferenças com

05 homens. Falar da bruxa no momento em que ela age, ou

seja, no momento em que existe a possibilidade de uma

intervenção, e a fala è a própria intervençào, è uma forma

de dominar a situaçào a partir do conhecimento sobre ela.

Quando o homem domina a situaçào de bruxaria através do

poder penetrante de seu olhar, ele age sobre esse poder sem

necessariamente compreendê—lo. Jà a mulher estabelece seu

dominio a partir do entendimento do que està acontecendo e

sua conseqüente verbalização. De um lado, funciona a "magia

dos atos”, de outro, a "magia das palavras".


- 2 06 -

4) Medo e conflito como expressão de uma situaçào


de poder

Para falar em poder feminino, è preciso recuperar o que

jà avançaram as pesquisas feministas recentes, que propõem

uma revalorizaçào do poder das mulheres. Michelle Perrot

(1988) sintetiza as preocupações comuns dessas pesquisas na


necessidade de distinguir o poder no singular, que designa

sobretudo a figura central do Estado (um poder masculino) do

poder no plural, "fragmentos mültiplos, equi vai ente<õ ás


influências difusas e peri fèr icas" . E a estes íiltimos que

se referem as mulheres! na» diversas sociedades elas nào

detêm o poder, mas têm poderes. Esses poderes se fundamentam

na existência de formas próprias de sociabilidade e

expressào, numa cultura própria, que se apresenta de formas

diferentes de uma sociedade para outra. Na Lagoa, apesar de

ser o poder do homem aquele visto como legitimo, reconhecido

como autoridade, jà foi observado que em várias situaçbes e

em momentos da vida social as mulheres partilham espaços

próprios que excluem os homens ou os colocam numa posiçào

secundária. Atè alguns anos atrás, esses espaços eram

claramente identificáveis: a confecçào da renda, que reunia

mulheres de'várias gerações no interior ou no quintal da

casa, sem os homens? a colheita do cafè, feita pelas

mulheres da familia, vizinhas e parentes, da qual os homens

raramente participavam? a lavaçào de roupas na fonte


- 207 -

(córrego mais próximo da casa), que reunia as mulheres

durante algumas horas, sendo um importante espaço de troca

de in-formações e conhecimento; os encontros em torno da

capeiinha. Hoje alguns desses espaços continuam existindo,


como a lavaçào comum da roupa na -fonte e a capei inha, outros

com menos intensidade e menos visiveis, como a colheita do

cafè ou a con-fecçclo da renda, feita por um nàmero cada vez

menor de mulheres, lias novos espaços -foram criados, como a

rua durante o dia, importante espaço de sociabilidade

feminina, enquanto os homens estào trabalhando na roça, na

cidade ou prestando serviços para o "pessoal de fora" que

vive na comunidade. A sensaçào que eu tinha quando olhava a

rua, da janela de minha casa, era de que aquela era umêi

comunidade habitada por mulheres e crianças. Os poucos

homens que apareciam estavam apenas de passagem, nSo

chegavam a ocupar aquele espaço da rua. As mulheres também

se reünem, mais recentemente, em torno dos grupos de màes

ligados á escola, na sala de espera do Posto de SaCide, um

espaço fundamentalmente frequentado pelas mulheres e suas

cri anças.

Esses momentos de sociabilidade própria das mulheres

expressam ncío somente ^a formaçào de uma cultura feminina

especifica, mas a existência de poderes femininos que se

revelam também em outros momentos da vida social. Esses

poderes nào aparecem apenas nos longos períodos de ausência

dos homens e no cotidiano da vida familiar, mas também no


- 208 ~

imaginèirio de homens e mulheres, que tém, como uma de suas

manifestações, os mitos sobre as bruxas. De um lado, eles

falam sobre uma realidade que pouco està contida em seu

discurso conscientemente articulado. De outro, esses mitos


simbolizam os desdobramentos no plano do inconsciente e do

imaginário sobre a figura feminina.

Quando falam explicitamente de como vivem e se

organizam, os nativos da Lagoa reconhecem apenas uma forma

de poder e autoridade, a dos homens. Mesmo quando se referem

és situações descritas acima, ou á importância e ao poder


das mulheres dentro de casa, e a circunstâncias concretas em

que as mulheres têm uma influência central, ou quando os

homens estào ausentes, esta situaçào è vista como temporária

e limitada. Ela nào è elaborada no sentido de revelar essa

outra face do feminino na comunidade e que està presente no

seu cotidiano e em suas práticas. As mulheres eventualmente

substituem a autoridade do homem, mas mesmo quando exercem

poder falam sempre em nome dele.

Nesse primeiro sentido que envolve as narrativas pode

se observar uma defasagem entre o modo como vivem e o que

falam sobre o seu modo de viver. Os modelos que os nativos

apresentam conscientemente sào rígidos na definiçào de

papéis bem demarcados e no' reconhecimento único da

autoridade dos homens. E principalmente nas outras formas,


menos conscientes e racionais, de falar sobre sua vida que a
- 2 0 9 -

contradição entre 05 modelos e as práticas aparece. E

através das narrativas, das histórias sobre o passado, que è

simbolizada e revelada a ambiguidade de seu imaginário em

relaçêfo ás mulheres. Con-flito e medo, essas duas -faces sob


as quais a bruxa se apresenta nas di-ferentes narrativas, é

uma das -formas expressivas dessa "outra -face" do ■feminino, e

reveladores dessas situaçòes de poder -feminino que existem

subjacentes ás relaçòes -formais e que nào aparecem

conscientemente elaboradas em seus discursos. Na medida em

que esse poder náo se materializa enquanto uma autoridade

legitimada no interior da comunidade, é preciso que ele ee

mani-feste de outras -formas.

O outro desses sentidos está ligado aos sentimentos

comuns dessa sociedade em relaçào ás suas mulheres. Se, por

um lado, o feminino està presente nos discursos

intencionais, por outro, ele também está presente a nivel do

inconsciente de homens e mulheres, que se mostra através das

narrativas. Esse feminino é ambíguo, contraditòrio e

plurissignificativo. Nas narrativas sobre as bruxas, ele se

apresenta de forma particular. 0 fato de toda a açào da

bruxa ser definida como involuntária, originada em impulsos

inconscientes e incontrolàveis está profundamente ligado ao

fato de que a bruxa é sempre uma mulher. Ou seja, náo è em

qualquer um que se manifestam esses impulsos, mas nas

mulheres. Esses dois traços caracterlsticos da bruxaria


- 2 1 0 -

marcam sua singularidade e^ a diferença com outras

representações e práticas envolvendo poderes misticos, como

a feitiçaria, que è uma açào voluntária, podendo ser

praticada por homens.


CONCLUSSES
- 211 -

CONCLUSOES

E através clos discursos e, part icul armente, atravès

das narrativas de homens e mulheres sobre as bruxas, que a

bruxaria se apresenta como uma realidade presente para os


moradores da comunidade estudada, liais do que fragmentos que

sobreviveram ao tempo, ou uma explicação para os mal-estares

e conflitos da vida cotidiana, a bruxaria se configura em


uma verdadeira cosmoiogia, uma forma dos nativos falarem de

seu mundo e de si mesmos. As narrativas de bruxaria mostram

uma dimensào do imaginário nativo subjacente ás

manifestações mais explicitas de sua cultura e náo tornado

visivel pelos modelos e discursos conscientemente

mani pulados.

Enquanto os modelos, corroborados apenas parcialmente

pelas práticas, apresentam uma forte cisào na forma como se

constituem as identidades de gênero na comunidade, as

narrativas apresentam a bruxa como uma figura feminina

poderosa e ameaçeidora. Elas falam de um mundo feminino

construído ao nível do inconsciente nativo, que náo è nem

uma manifestação restrita a medos e impulsos individuais,

nem a realização de um "inconsciente coletivo” anterior a

estes ou á vida social. As narrativas, mais do que isso.


- 2 1 2 -

trazem á tona uma parte do imaginário social, nào revelada


em outros planos de seu discurso. Na medida em que,

contradizendo os modelos, as mulheres têm poderes, nào

tornados legítimos no interior da comunidade, è preciso que


esse poderes se manifestem de outras -formas. Na medida,

ainda, em que a imagem -feminina se apresenta como ambigua,

contraditòria e dividida, è preciso encontrar uma maneira de


-falar dessa ambiguidade. A bruxa fe uma -forma expressiva

dessa "outra -face" do feminino.

As narrativas, falando desses niveis mais profundos do

imaginário nativo, sào um fator demarcador de diferença no

interior da comunidade. Na medida em que o processo de

urbanização e de incorporação de uma "cultura urbana" diluem

OB contornos da comunidade, que apresenta hoje

características evidentes de uma sociedade complexa, as

narrativas se apresentam como articuladores simbólicos de

suas fronteiras, como um fator de constituição de identidade

entre os nativos lagoenses.


N O X í=sS
NOTAS

(1) Cf. Beck, 1989.

(2) Ver sobre isso Oliveira, 1986 e Caldeira, 1989.

(3) Nào sào apenas expressào DA realidade, mas sào também


modelos PARA a realidade - que a influenciam e midificam.
Cf. Geerts, 1974.

<4> Entrevista nào-diretiva segunda as formulaçòes feitas em


THIOLLENT (1985) e história de vida enquanto técnica de
pesquisa desenvolvida por diversos pesquisadores da àrea das
ciências sociais e por uma extensa bibliografia nas ultimas
décadas.

(5) Os estudos sobre comunidade no Brasil dào diferentes


sentidos ao conceito de "comunidade". Utilizo aqui esse
conceito, com a ressalva de que nào estou me referindo a uma
sociedade fechada ou isolada.

(6) Recentemente alguns jovens nativos, filhos de moradores


do Canto da Lagoa, fizeram uma pesquisa buscando
reconstituir a árvore genealógica das familias do Canto.
Concluiram, numa primeira etapa do trabalho, que foram duas
as familias que deram origem ás outras: os Souza e os
Si 1vei ra.

(7) Uma outra pesquisa aponta que as rendeiras que possuem


barraca na avenida das Rendeiras têm dois ou três sobrenomes
comuns. Sendo a maioria dessas rendeiras ou vendedoras de
renda vindas do Retiro da Lagoa, confirma-se a hipótese de
que também là foram algumas poucas familias que deram origem
á comunidade.

(8) No caso da construçào de uma casa, por exemplo, a


colocaçào do revestimento de barro nas paredes ou da "linha"
dependia do esforço de vários homens chamados para a "farra"
e que, no final do trabalho, recebiam café com cachaça,
cravo e açàcar do dono da casa. Quem nào tinha engenho, mas
plantava mandioca, usava o engenho de um vizinho ou parente
em troca da meia ou terça parte da farinha.

(9) Trabalho especializado, que só alguns homens sabem


realizar. Consiste em "torrar" a mandioca jà ralada e
prensada para fazer a farinha.
- 214

(10) Essas questòes -foram trabalhadas, entre outros, por


Mariza Corrêa no seu artigo apresentado na ANPOCS em 1988.

(11) Esses rituais nào deixam de se constituir em "potlach".


Uma -forma de redi str ibui çào da renda entre os membros da
comuni dade.

(12) Fora a si'tuaçào especl-fica das comunidades de


colonisaçào açoriana da ilha, que indica uma tendência
oposta ás conclusòes de Freire-Maia, estudos de outros
grupos no mesmo estado também apontam para outras direçòes.
E o caso das comunidades negras, onde hè uma -forte
tendência á endogamia. Alèm disso, o estado de Santa
Catarina è de di-ficil generalização, dado as especi-ficidades
de sua colonização. Cada região possui particularidades que
devem ser levadas em conta em qualquer estudo que se
pretenda mais abrangente.

(13) Aqui acontece o oposto daquilo que -vivem os segmentos


mais intelectualizados das camadas médias urbanas, para quem
o moderno é não casar, mas ir morar junto.

(14) Estudos de 1983 (Beck) apontam para cerca de três mil


mulheres envolvidas com essa atividade.

(15) A instalação da rede pòblica de ègua na Lagoa começou a


ser -feita em julho de 1988. Até essa data, as casas recebiam
ègua através de redes privadas que canalizavam a ègua de
vertentes dos morros da Lagoa, Com isso, a disponibilidade
de àgua dependia diretamente do nivel pluviomètrico da
região. Em período de seca, as mulheres se viam obrigadas a
recorrer ao córrego para lavar suas roupas, mesmo tendo
instalações e tanque em casa.

(16) Exemplos dessa vigi li a, sào as situaçòes descritas


anteriormente, sobre o controle exercido por alguns homens
em relação ao -trabalho da mulher -fora de casa, á hora em que
volta, etc.

(17) Greimas e Courtès (s/d) observam os limites do


conceito de ’intençào’ para explicar um ato comunicativo. A
intenção pressupõe, segundo eles, que o ato seja tomado como
voluntário e consciente. Pre-ferem usar o conceito de
-
’intencionalidade’, porque permite que se conceba o ato como
"uma tensão que se inscreve entre dois modos de existência:
a intencionalidade e a realização" (pg. 238). Mesmo
partilhando da critica, mantenho o conceito de ’intenção, na
medida em que se re-fere, aqui não somente a "açÒes
comunicativas" mas a ações concretas de um personagem dentro
do processo narrati-vo.
215 -

<18) As narrativas possuem caracteristicas próximas ás que


L&vi-Strauss propôe para o mi to, enquanto um discurso que
"desperta no homem pensamentos que lhe sào desconhecidos"
(1978:13). Que traz ô tona contradiçòes subjacentes á
organização social, mas estruturantes da cultura.

<19) 0 que remete á idèia da constituição de uma identidade


de pessoa apenas a partir dessa idade. Sobre isso ver
Duarte, 1986.

(20) Cascaes também menciona, nas histórias que recriou


sobre as bruxas, casos em que estas sào castigadas pelos
homens. Mas è preciso relativizar o caráter etnográfico de
seu trabalho, na medida em que praticamente todo o material
de campo que ele recolheu sofreu uma recriação no plano
artístico e ficcional. Como foi dito na introdução, apesar
das narrativas sobre as bruxas serem um fato presents nas
outras comunidades de colonização açoriana da ilha, elas nào
se apresentam em todos os lugares da mesma maneira. Essas
diferenças que aparecem no relato descrito podem ser
expressão de sua origem geográfica, na medida em que o
morador não è morador nem da Lagoa, nem da ilha, apesar de
sua mãe ter nascido e morador no Canto da Lagoa.

<21) A relação entre essas caracteristicas da presença das


bruxas nas comunidades da Lagoa e a bruxa no imaginãrio
europeu, tanto popular quanto católico, è discutida no
capitulo 5.

(22) Estou me referindo aqui a mulheres nativas de outras


comunidades que, mesmo possuindo uma identidade cultural com
as outras mulheres do lugar, encontram obstáculos para se
integrarem nas relações locais. Jà com as mulheres de fora
vindas da cidade ou identificadas com um ’ethos’ de camadas
médias urbanas isso nào ocorre, na medida em que a
alteridade è maior que os pontos em comum. E preciso ser um
igual, e haver uma interação efetiva para que se estabeleça
uma relaçào mediada também pela bruxaria.

<23) Arca-caida è uma doença infantil só diagnósticada pelas


benzedeiras e que não faz parte do repertório médico
oficial. Seus principais sintomas são o choro da criança, a
dificuldade de dormir e de comer.

(24) Paris, Fayard, 1989.

(25) Para Umberto Eco, em entrevista na Revista Veja, essa


tendência sincrètica das religiões è universal.

(26) Citada por Ginzburg, 1987; e Levack, 1988.


;i6 -

(27) No Brasil, nào houve a instalaçào de um Tribunal, ao


contrário de Goa, único Tribunal da Inquisiçào portuguesa
instalado em àrea colonial. Jà na América espanhola, a
Inquisiçào da Espanha instalou três tribunais: no Peru, no
Mè>:ico e em Cartagena (Colômbia), este último especializado
na perseguiçào ás -feiticeiras.

(28) Levack, 1988: "As ’strigae’, que se tornou uma das


muitos palavras latinas para bruxas, também eram denominadas
de ’lamiae’, referência á mitica rainha Líbia, amada por
Zeus, que chupava o sangue dos bebês como vingança por Hera
ter matado seus filhos."

(29) Imagem que lembra a figura da benzedeira na ilha que,


quando chamada, desenvolve suas atividades também á noite.

(30) Kramer e Sprenger (1928), citados por Levack, op, cit.

(31) Guazzo (1929), citado por Ginzburg, 1988.

(32) Citados por Ginzburg, op. cit.

(33) Uma das substâncias que, segundo os historiadores, faz


parte da fórmula do unguento è extraída da Beladona, uma
planta com principios alucinógenos que cresce em abundância
ao longo da estrado do Canto da Lagoa.

(34) Ginzburg também cita a cavalgada noturna como uma das


atividades das feiticeiras adoradoras da Deusa Diana.

(35) Alguns autores têm trabalhado as vivências dionisíacas


e 05 desregramentos dos costumes como "constantes
antropológicas", e o dionisíaco como uma "figura arquetípica
própria a qualquer sociedade". Ver, por exemplo, Maffesoli,
1987 e 1985, entre outros.
IB IB Ü L IO G R A iF -IA
- 217 -

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