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É por esse motivo que a vida deveria ser um hino de louvor, e santidade deveria
ser alegria. Tristeza era comumente atribuída à influência demoníaca.
A partir desse ponto de vista, percebe-se que a melancolia é um fenômeno
incompreendido no meio religioso. A aquisição da melancolia, seja por meio natural ou
proveniente de acontecimentos durante a vida, não era recomendável em nenhuma hipótese,
porque a melancolia seria a possessão de um espírito maligno (o demônio do meio- dia) e
ninguém que estivesse possuído por um demônio poderia servir a Deus com veracidade, ou
seja, não poderia estar dos dois lados ao mesmo tempo.
Avançando alguns séculos, surge a figura de Robert Burton (1577-1640) como um
dos autores que mais contribuiu para o estudo da melancolia. Nascido em Leicestershire na
Inglaterra, estudou em Christ Church College (Oxford), tornou-se vigário de Saint Thomas,
depois bibliotecário da mesma instituição em que estudou. Por um período exerceu as funções
de reitor em Seagrave.
A célebre sua obra A anatomia da melancolia é dedicada ao seu protetor em
Seagrave, Lord George Beekely. Sob o pseudônimo de Demócritus Júnior, em 1621 publicou
na Inglaterra o livro que o consagraria. A obra teve grande sucesso. Cinco edições foram
publicadas durante a vida do autor, e uma sexta ainda foi revista, ampliada e publicada após a
sua morte. Tratava-se de uma obra que atendia os interesses da geração melancólica da época
na Europa. Já no que se refere à obra, no Renascimento, a melancolia alternava entre o estado
emocional, condição existencial e ainda como patologia. A melancolia era exaltada entre os
intelectuais, e foi extremamente abominada entre as pessoas ditas comuns, justamente pelo
fato de se tratar de uma doença associada a demência e o despossuir da glória divina
(SCLIAR, 2003, p. 8).
É impressionante a repercussão de tal obra, primeiramente porque o tema não era
uma novidade. Autores antigos como Hipócrates e Aristóteles já haviam firmado bases sobre
a melancolia. Além disso, se tratava de um texto longo. Para se ter noção, em uma edição de
bolso (do New York Review of Books), são 1417 páginas de pesquisa exaustiva e citações em
latim culto. Vale ressaltar que, na época, o latim já havia sido substituído por línguas
vernáculas. O uso do latim culto serviu como prova de erudição e conhecimento. Mas, com
erudição ou com humor, Burton foi o responsável pela reintegração da melancolia nos
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círculos intelectuais. O termo já era conhecido, porém, ganhou novo significado com sua
obra. Burton se referia a uma melancolia renascida.
O retorno da peste negra à Europa veio ao encontro da obra de Burton, mesmo
sendo escrita trezentos anos mais tarde. Mas, há alguma semelhança entre esses
acontecimentos?, se pergunta Scliar (2003, p. 9). Certamente, a primeira ideia que se tem é de
que tanto a peste negra quanto a melancolia são doenças. Entretanto, não se assemelham
apenas neste ponto. Indiscutivelmente, a peste negra é uma doença, que dissemina e pode
progredir rapidamente para dois quadros, o da cura ou, definitivamente, o da morte. Já a
melancolia, às vezes, é doença, e às vezes não é. Além disso, a melancolia não tem progresso
definido, arrastando-se ao longo do tempo.
Moacyr Scliar (2003, p. 72), ainda acentua nas palavras de Robert Burton a
expressão “Be not solitary, be not idle”, ou seja, “Não seja solitário, não seja inativo”. Mas,
uma vez que, associando o melancólico à genialidade, através da simbologia, o autor inglês
está comparando-o a uma coruja, símbolo da sabedoria, de atividades noturnas e,
aparentemente, triste.
No Renascimento, a melancolia influenciou o campo das artes. E uma das obras
de maior destaque é a gravura Melancolia I, do pintor alemão Albrecht Dürer, representando a
melancolia como metáfora. De acordo com Moacyr Scliar (2003, p. 81-86), a melancolia,
nessa época, não é mais vista como uma patologia associada à entidade médica. Nesse
período, foi atribuído o conceito de metáfora ao tema, configurando, assim, uma mudança de
paradigma. Na gravura de Dürer, há vários elementos que configuram sua representação. A
melancolia é representa como uma mulher de assas, capaz de altos voos intelectuais, como
postulado por Aristóteles no Problema XXX. Mas, a melancolia não está voando: permanece
em estado de imobilidade, com o rosto apoiado em uma das mãos como se estivesse
segurando a cabeça pesada. Walter Benjamin (1984, p. 164) caracteriza os utensílios dispersos
no chão, como objetos de ruminação, sem nenhuma serventia para vida ativa.
Para Benjamin (1984, p. 171-174), o plano de fundo (sendo o mar) representa a
inclinação do melancólico para longas viagens. Enquanto que a figura do cão, não é incluída
por acaso na gravura de Dürer. Na tradição antiga, o baço é responsável pelo organismo do
cão, o mesmo baço que, segundo Hipócrates, causava a melancolia. Com a degeneração do
baço, o cão perdia sua alegria e sucumbia a raiva. Dessa forma, o cão simbolizava o aspecto
sombrio da complexidade melancólica. Aliás, a melancolia é simbolizada pelo fato de o
animal aparecer dormindo.
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Acerca dos sonhos, Walter Benjamin (1984, p. 175) afirma que os maus sonhos
são provenientes do baço. Porém, os sonhos proféticos são também privilégio do melancólico,
uma vez que podem ser compreendidos a partir da perspectiva da “geomancia”, termo que
vem do grego, ge = terra + manteia = adivinhação. Assim, toda a sabedoria do melancólico
vem do abismo. Tendo em vista que tudo que é saturnino remete às profundezas, o cão
aparece cabisbaixo, o olhar voltado para o chão caracteriza o saturnino, que perfura o solo
com seus olhos.
A pedra tem um significado especial. Aegidius Albertinus (apud Benjamin, 1984,
p. 176), fala sobre a comparação da pedra com o ser melancólico:
[A] aflição, que em geral abranda o coração, torna-o cada vez mais
obstinado em seus pensamentos pervertidos, porque suas lágrimas não caem
no coração, suavizando sua dureza, mas acontece com ele como com a
pedra, que se molha por fora apenas quando o clima está úmido.
Ainda de acordo com Benjamin (1984, p. 177), é possível perceber que o símbolo
da pedra represente apenas os aspectos mais óbvios da terra, enquanto elemento seco, frio e
imóvel, referindo-se a acedia, a inércia do coração.
Sob a ótica da psicologia, no século XX, Sigmund Freud, no intitulado “Luto e
melancolia”, expõe pontos importantes entre as diferenças e semelhanças acerca desses dois
estados. Segundo Freud (2014), as características da melancolia é um desânimo profundo e
penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a
inibição de toda e qualquer atividade e a culpa vigente.
Em conformidade com Freud (2014), na melancolia há perdas consideráveis,
porém, a diferença crucial, em se comparando com o luto, é que na melancolia o ente querido
não precisa necessariamente estar morto. O que realmente importa é que o objeto de estima
tenha sido de alguma maneira perdido, como acontece no caso de um relacionamento
amoroso rompido. Acontece que, em alguns casos, o paciente tem consciência da perda que
deu origem à sua melancolia, “mas apenas no sentido de que sabem quem ele perdeu, mas não
o que perdeu nesse alguém” (FREUD, 2014, grifos do autor).
Outro autor fundamental para a compreensão do tema da melancolia é Walter
Benjamim (apud SCLIAR, 2003, p. 92), que mostra como era vista a melancolia na
dramaturgia barroca alemã, acentuando o caráter artístico ao tema. Segundo Benjamin, os
dramaturgos barrocos alemães eram luteranos, o que acabou por influenciar rigorosa
obediência ao dever na época. Tal imposição ao servir caracterizou nas pessoas comuns a
moralidade e a honestidade em pequenas atitudes cotidianas, mas, Benjamim diz que, nos
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grandes homens, isso produziu a melancolia. O ideal de morte estava sempre presente, porque
o mundo havia se tornado vazio, se transformado em máscara, que a dramaturgia barroca
alemã recuperou.
O estado melancólico faz com que o homem passe por um estado de
autoabsorção, resultando em uma queda em um abismo sem fim. No período barroco, a
crença da extrema miséria humana poderia ser subentendida como a melancolia nascente “dos
abismos da condição da criatura”. Em um tempo que a religiosidade prevalecia de modo
imperativo (BENJAMIM, 1984, p. 169).
Susan Sontag, no seu ensaio “Sob o signo de saturno” (1986, p. 86), aponta que
Benjamin mais do que ter realizado estudos filosóficos a respeito da melancolia, foi ele
mesmo um notório melancólico. Para ele, a solidão era o estado mais adequado para o
homem. Porém, não a solidão de estar em um quarto, mas sim a solidão de estar em meio a
uma multidão e sentir-se só, andando sem direção, apenas observando.
A melancolia, sob a ótica de Walter Benjamim, é uma condição do homem
moderno diante das profundas mudanças que ocorreram a partir do final do século XIX, como
o desenvolvimento industrial, o cotidiano de uma cidade moderna, uma metrópole
cosmopolita, ou seja, que reúne pessoas de diversos lugares. Daí, o reflexo da posição do
homem diante da modernidade e o resultado dos embates existenciais: a melancolia.
REFERÊNCIAS:
FROTA, Adolfo José de Souza. Poesia da dor: Luto e melancolia em Edgar Allan Poe e
Carlos Drummond de Andrade. Disponível em: <http://www.unemar.br/revistas/ecos/docs/
v_13/1_ Pag _ Revista _ Ecos _ V-13 _ N-02 _ A-2012.pdf >. Acesso em: 08 de março. 2014.
SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sérgio Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 1984.
SONTAG, Susan. Sob o signo de saturno. In:______. Sob o signo de saturno. Tradução de
Ana Maria Capovilla & Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM Editores, 1986. p. 85-103.