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A R TE

N O B R A S IL

uma histôria do
Modemismo na Pinacoteca
de Sào Paulo
ISMAEL
NERY

Dois Irtnôos 1^27


Pintor, desenhista e poeta, Ismael Nery mudou-secom
a farm'lia de Belém para o Rio de Janeiro em 1909. Nes-
ôlco sobre ici a se mesmo ano, seu pai, m édico da Marinha, faleceu
78.7 x 69.7 cm
Accrvoda FundaçàoJosé a bordo de um navio retornando de viagem. Sua mâe.
( Pauhnn Nemirovskv. eatôlica fervorosa, entrou para a Ordem Terceira de
Obra cm comodalo com
« Pinacoîcca do listado
Sâo Francisco e passou a atender pelo nome de irmâ
de SAoPaulo. Verônica. Entre 1917 e 1920, Nery estudou na Escola
Nacional de Bêlas Artes do Rio de Janeiro e, em 1921,
viajou pela Europa e pelo Oriente Médio, tendo incor-
porado em suas pinturas estilem as das vanguardas.
sobretudo do cubism o e do expressionismo.

De volta ao Brasil, em pregou-se como desenhista


na seçâo de A rquitetura e Topografia do Patrimônio
Histôrico Nacional, ligado ao Ministério da Fazenda,
onde conheceu o poeta M urilo Mendes (1901-1975).
que se tornaria um grande amigo e incentivador de
sua obra. No ano seguinte, casou-se com a poétisa
Adalgisa Ferreira (1905-1980).

Em 1927, perm aneceu durante algunsmesesna Europa


e entrou em contato com artistas surrealistas, entre
os quais Marc C hagall (1887-1985), que influenciaria
sua pintura a partir de entào. Em 1930, apareceramos
primeiros sintom as de um a tuberculose que 0 levaria
a morte em 193/], aos 33 anos de idade.

A figura hum ana sem pre foi o assunto favorito do ar-


tista, especialm ente os retratos e autorretratos. Tanto
em Figuras em azul, de c. 1926, como em Dois irmùos,

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4G
de 1927, Nery adota uma linguagem moderna, deri-
vada dos ensinamentos cubistas: os personagens sâo
geomet rizados e fragmentados em pianos, e a diferen-
ciaçao entre figura e fundo é ténue. Figuras em azul,
em particular, é construida por meio de uma paleta
monoeromâtica, procedimento recorrente nos pri-
mciros anos da produçâo cubista de Georges Braque
e Pablo Picasso.

Embora partidârio de linguagens modernistas, Nery


via na pintura - e na poesia - um meio para dar corpo a
suas ideias sobre o essencialismo, nâo tendo uma preo-
cupaçào espeefflea com o refinamento técnico.1 Como
o prôprio nome dâ a entender, tratava-se de um siste-
ma filosôfico elaborado pelo artista, que tinha como
meta a busca de uma essência, de uma unidade ori­
ginal perdida. Nery perseguia a plénitude, a re-uniâo
das polaridades cindidas, a totalidade ancestral, di-
Figuras em azul. c. 1926
vina. Sua visâo de mundo tinha um alcance mistico,
ôleo sobre tclacolada que, para ele, podia ser entendido como uma introdu-
sobre eartâo çâo ao catolicismo.
45.3 x 33,7 cm
Acervo da Fundaçüo José e
Paulina Nemirovsky. Obra em Anos mais tarde, Murilo Mendes explicaria sua ver-
comodato corn a Pinaeoteca do
EsladodcSào Paulo.
sâo do essencialismo: “[era] baseado na abstraçào do
tempo e do espaço, na seleçâo e cultivo de elementos
essenciais à existência, na reduçâo do tempo à uni­
dade, na evoluçâo sobre si mesmo para descoberta do
prôprio essencial, na representaçâo das noçôes per­
1. Segundo Murilo Mendes, “a
primeira vez que viu Tintoretto, manentes que darâo à arte a universalidadeV
[Nery] achou inütil continuar a
pintar". In Recordaçoes de Ismael Na poesia, Nery se descreve:
Nery, 1° jul. 1943. Reproduzido em
Ismael Nery 100 anos: a poélica
de um mito. Rio de Janeiro: Eu sou a tangèneia de duas formas opostas
Centro Cultural Banco do Brasil; e justapostas
Sao Paulo: Fundaçào Armando
Alvares Penteado, 2000. p. 79.
Eu sou o que nâo existe entre o que existe
Eu sou tudo sem ser coisa alguma
2. MENDES, Murilo. Recordaçoes Eu sou o amor entre os esposos.
de Ismael Nery, 24 ago. 1948.
Reproduzido em Ismael Nery 100
Eu sou o marido e a niulher.
anos: a poética de um rnito, op. Eu sou a unidade infinita.
cit., p. 80. Eu sou um deus com prlncipio.
Eu sou poetaP
3. Prim eira estrofe do poerna
“ Eu", re p rod uzid o em A M A R A L ,
Aracy (O rg.). Ismael Nery: bO anos Realizuda em Paris, em 1927. a pintura Dois irmôos foi
depots. Sâo Paulo: M useu de A rte apresentada no Salflo Revolucionâriode 1931 - organi-
C on tem p orônca da U n iveisid a d e
zado pelo arquiteto l.ücio Costa (1902-1998) na Escola
do Sâo Paulo, 1984 p 33.

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Naeional de Bêlas Artes -, com esse titulo. Porém,
a nos mais tarde passou a ser conhecida como Adal-
gisa e o artista. Tendo em vista os fundamentos do
essencialismo, pouco importa se as figuras represen-
tadas silo ele prôprio e a esposa ou ele mesmo e uma
irmà im aginària;4 sào expressôes das polaridades fe-
minina e m asculina constitutivas de cada individuo,
da fusào entre o eu e o outro, de elementos opostos e/
ou complementares.

Hà interpretaçôes que veem no rosto esboçado no


canto inferior à direita desta pintura a figura da mâe -
com quem Ismael e Adalgisa moravam - ou de Murilo
Mendes, presença constante na vida do casai. Jâ o es-
critor Affonso Romano de Sant’Anna (1937) analisa:
“sua obra-vida pode surgir de um jogo que se estabe-
lece entre 0 UM, 0 DOIS e 0 TRÈS. Um jogo combinatô-
rio que valoriza cada uma dessas unidades em si, mas
que é feito da complementaridade entre todos eles”.5

R.T.B.

4. Î4ery tambérn dedicou urn


poerna a uma irma que nunca
existiu: “A minha irma é minha
ediçâofeminina e meu castigo./
Dà a todos o que eu nunca de
mulher algurna recebi./ Se eu nào
soubesse que sou tambérn o 60U
castigo/ Ha muito tempo r^uu séria
fratncida ou suicida". Isrnaela,
de 1932, esta repiodu/ido em
AMARAL, op. cit., p 32.

6. SANT’ANNA, Affonso Romano


de Ismael Nery. a circularidade
do urn. do dois e do très. In I smoel
Ncry. Sào Paulo. Dar^ Galcria, 1991.

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CICERO
DIAS

M am oeiro ou Dançarino, 1946 O mais longevo dos modernistas, com uma carreira
que se estendeu por mais de oitenta anos, Cicero Dias
ôlco sobre tela
128 x 96,2 cm foi um artista que, em seus melhores momentos, soube
Acervo da Fundaçâo José unir tendências do surrealismo a um imaginârio ad-
c Paulina Ncmirovsky. vindo de sua infância rural, passada no engenho per-
Obra em comodato com
a Pinacoteca do Estado nambucano Jundiâ. Criou paisagens oniricas tingidas
de Sâo Paulo. de um misto de saudade e deslocamento, um surrea­
lismo embalado pelas memôrias infantis de um Brasil
agrârio que desaparecia a largos passos. Em um livro
de memôrias publicado postumamente, intitulado
Eu ui o mundo, Dias descreve suas lembranças dos
grandes corredores das casas-grandes dos engenhos,
das ladainhas, dos carros de cavalo com lanternas
de prata vindos de Londres, dos doces de tacho, das
casas de santo, e do contato com o mundo por meio
dos almanaques que lia na biblioteca de seu avô ba-
râo. Essas experiências e memôrias, meio lembradas
meio esquecidas - o artista ficou em Pernambuco
até os treze anos, quando transferiu-se para o Rio de
Janeiro -, formam a matéria-prima sensivel com base
na quai o mundo pictôrico de Cicero Dias é construi-
do. Como ele prôprio escreveu: “Minha memôria nào
obedece a leis, mas à saudade que tenho dos doces de
caju em calda”.1

No Rio de Janeiro, Dias terminou seus estudos no Co-


légio de Sdo Bento e ingressou, em 1925, no curso de
Arquitetura da Escola Nacional de Bêlas Artes, que
1- DIAS, Cicero. Eu vi o mundo.
Sâo Paulo: Cosac Naify, abandonarla em 1928, logo apôs sua primeira expo-
2011. p. 13. siçâo individual em junho daquele ano. Nessa mostra,

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E3CAÛA. *>t 19C' - 300S
OCERO04*5

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o artista aprcsentou uni grande numéro de aquarela-,
que vlriam a caracterlzar parle de seu l rahalho al<*su;i
transferênda para a Europa, carregado de nostalgie
peloseuesl ado natal eform ando.com oesc reveu Màrlo
de And rade, um “‘outro m undo’ comoventfsslmo em
que as représentâm es atingem as vexes uma simplill
caçâotaodeslum brantequeperdem todaacaracterlza
çâosenstvcl".2 Nesse momento, Diasjâestava bastante
envolvido com os intelectuais e artistas modernis
tas no Rio de Janeiro como Manuel Bandeira (1886
1968), Murilo Mendes, Ismael Nery e Graça Aranha
(1868 1931), este ültimo seu grande incentivador,
que havia rompido dram atieam ente com a Academia
Brasileira de Letras em 1924, dizendo “se a Academia
nào se rénova, morra a Academ ia!”. No mesmo perio
do travou amizade com o sociûlogo Gilberto Freyre
(1900-1987) e ilustrou sua obra mâxima, Casa grande
e senzala, de 1933, com um desenho representando 0
velho engenho Noruega, que o artista tinha conheci
do em sua infâneia. Em 1937, partiu para Paris mo
tivado por uma forte oposiçào ao governo ditatorial
de Getülio Vargas. La o artista criou um novo nücleo
intelectual que incluiria nào sô brasileiros como Di
Cavalcanti e Paulo Prado, mas também estrangeiros
como Pablo Picasso, de quem foi grande amigo, e 0
poeta Paul Valéry (1871-1945). Permaneceu em Paris
durante a Segunda Guerra Mundial e foi preso pelo
exército alemâo em 1942, sendo trocado, mais tarde,
por prisioneiros alemâes mantidos no Brasil. Mudou
-se para Lisboa, onde permaneceria até o tim do con
flito, quando entào voltou a Paris, e là fixou residèneia
até o fini da vida.

Em Lisboa, sua obra sofreu uma grande mudanya.


distanciando-se do figurâtivo e adentrando 0 campo
da abstrayâo, mesmo que uma abstraçâo partieular.
repleta de referêneias as membrias de sua infâneia e
a motivos Iropicais vestldos de cores fortes. O artista
acabaria por retornar à Hguraçào, no final dos anos
i960, apos intimeras ex péri ment ayOes de eunho abs
iraio. Km M am oelro ou lhm <,arino, de 1940, e possnel
2. ASSIS r ILHO, Waldii Simoeb de vei de maneira bem elara este momento de transie^0
(Coord ) Cic^ro Diat. oitodécadas do figurativo para o abstrato. Sobre dois mastros,
de pmtura Cuntibd M ui,euOscaf
Niemcîyer, E ditoi a Simoes de que parecem estar calyados, vè se um ehumayo ver
2006 p 92. de, que pode ser lido como uma saia à la Joséphine

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Baker (1906-1975) ou como uma simples vegetaçâo, o
que também influi na leitura que se fazdas hastes, ora
pernas, ora troncos. A ambiguidade progride à medi
da que o olhar do espectador sobe. Vemos suspensas
das hastes, agora unidas, formas ovoides. mamôes,
cabeças. cristas. Tudo se funde em uma linguagem
difusa, cuja execuçào - em alguns pontos da tela o ar-
tista aplicou tinta diretamente do tubo, sem recorrer
ao uso do pincel, como se pode ver claramente no chu-
maço e nas linhas geometrizadas à esquerda - remete
à velocidade e ao instintivo.

G.H.

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Arte no Brasil : um a histôria do M odernism o na
Pinacoteca de Sào Paulo : gu ia de visitaçâo
curadoria Regina Teixeira de Barros ; apresentaçào
Ivo Mesquita e Fernando M auro Barrueco ; textos
Giancarlo Hannud ... [et al.]. Sâo Paulo : Pinacoteca
do Estado, 2013.

ISBN 978-85-8256-016-7
Exposiçâo realizada na Estaçâo Pinacoteca.

1. Arte brasileira - Séc XX. 2. M odernism o. 3.


Pinacoteca do Estado de Sào Paulo - Açâo Educativa. 1.
Curadoria. 11. Apresentaçào. III. Textos.

CDD 709.81

Fontes Fakt e Acta


Papel Eurobulk 150 g/m2
Pré-impressâo, impressào e
acabamento Ipsis Grâfiea e Editora
Tiragem 3.000 exemplares

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