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Bases neurais e evolutivas para uma proposta de educação religiosa

Bruno Lobão & Fívia de Araújo Lopes

Introdução

O objetivo desta revisão é fazer um apanhado das principais descobertas


científicas contemporâneas na área de neuroteologia, que estuda aspectos fisiológicos e
evolutivos de como o fenômeno religioso se manifesta no cérebro, bem com o situar
estas recentes descobertas no contexto da educação religiosa no Brasil.
Uma pergunta com a qual frequentemente nos deparamos, e que é de fato
arrebatadora, é a de como as religiões, no geral, conseguem operar verdadeiras sessões
de cura de pacientes com as mais diversas somatizações. Em outras palavras, como
paralíticos se levantam, como pessoas com câncer se curam com a fé, como doenças
crônicas têm seus sintomas debelados, em sessões espirituais das mais diversas
religiões.
A religião, tal como definida pelo antropólogo Clifford Geertz (1989), é (a) um
sistema de símbolos que atua para (b) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras
disposições e motivações nos homens por meio da (c) formulação de conceitos de uma
ordem de existência geral e (d) vestindo essas concepções com tal aura de factualidade
que (e) as disposições parecem singularmente realistas. Em outras palavras, a religião de
modo geral lida com uma linha de pensamento otimista, que tão somente depende da
crença, da confiança em seus próprios elementos. Por outro lado, o pensamento
científico, em sua essência, não é propriamente otimista. Você é bem sucedido se busca
as exceções, e não se tenta explicar as regras que já existem. Já dizia o etólogo Konrad
Lorenz, “a regra de hoje pode ser a exceção de amanhã”. E a probabilidade de uma
regra se tornar exceção é, de forma geral, pequena. O cientista, em certo sentido, rema
contra a maré, procurando uma fagulha de exceção nos mares de regras e normas do que
já é conhecido, nas diversas áreas do conhecimento, e precisa oferecer evidências da
ocorrência dessas exceções. O religioso pode se dar ao luxo de remar num mar de
otimismo, de expectativa, de anti-racionalidade, pois nas barganhas religiosas com os
deuses, os milagres são sempre possíveis, basta ter fé.
Um dos modos que poderíamos utilizar para se comparar a ciência e a religião
seria vê-las como maneiras de pensar o mundo e de alguma forma ter expectativas
ponderáveis em relação ao futuro. Como cientistas, a tendência é a de argumentar que a
ciência é o melhor das explicações possíveis, já que, nenhuma estrutura de pensamento
se provou mais eficiente em prever o futuro do que o pensamento cientifico. Nas
palavras de Einstein “o pensamento científico pode parecer brincadeira de criança perto
da realidade, mas ainda assim, é a melhor coisa que nós temos” (SAGAN, 2008).
Apesar disso, com a junção de conhecimentos da Psicologia Evolucionista e das
Neurociências ultimamente podemos abrir um pouco os horizontes de estudo para a
religião, o que inclui as suas possibilidades tecnológicas. A religião tem uma ferramenta
que definitivamente a ciência não dispõe claramente: ela oferece pacotes motivacionais,
uma vez que os conceitos religiosos estão profundamente relacionados com os sistemas
emocionais humanos.
Pensemos então na religião como tecnologia. Especificamente como tecnologia
motivacional. Um engenheiro outrora diria que tecnologia é tudo o que se faz com o
polegar opositor. Chips, roldanas, castelos de lego, helicópteros. Hoje em dia,
tecnologia é mais do que isso. Um sistema de pensamento é uma tecnologia. Um
sistema motivacional é uma tecnologia. Se você imagina um sistema de motivação, que,
mesmo através de um possível auto-engano, é capaz de levar alguém à cura de uma
doença psicossomática, é passível de promover a união de um grupo social em torno de
um bem comum, é intenso o suficiente para levar os homens a se arriscarem por mares
nunca dantes navegados, para equilibrar a psique frente à incerteza da morte, do
casamento, da passagem para a idade adulta, da caça e das intempéries da natureza,
temos uma tecnologia de pensamento poderosa operando sobre o indivíduo, impelindo-
o à sobrevivência frente a um ambiente hostil.
Entendida como uma tecnologia motivacional a religião pode colaborar para o
treinamento da inteligência emocional de seus praticantes, e através de seus símbolos,
oferecer meios para que os indivíduos lidem com suas frustrações, seus medos, seus
anseios, suas expectativas. Ela poderia permitir uma nova maneira de apreender o
mundo.
Postos estes argumentos, que podem parecer atuais, é importante ressaltar que
definitivamente não têm nada de novo no pensamento científico. Brilhantemente, um
antropólogo chamado Bronislaw Malinowski realizou ponderações muito semelhantes
já no início do século XX em seu livro chamado “Os argonautas do Pacífico Ocidental”,
a partir de suas observações antropológicas de nativos nas ilhas Trobriand
(MALINOWSKI, 1984), que se mantém, por sinal, extremamente vivas e atuais, frente
à novas descobertas com técnicas de imageamento cerebral, as quais iremos mencionar
mais adiante. De acordo com Malinowski, os nativos possuíam pleno domínio de
técnicas de navegação para passarem de uma ilha para outra, quando a distância era
pequena. Para tais travessias curtas, eles simplesmente confiavam em seu
conhecimento, e entravam em suas canoas guiadas a vela. No entanto, quando tinham
que fazer uma travessia mais longa, com regimes de ventos e de marés instáveis, eles
recorriam à sua religião para fazer a travessia, pedindo a ajuda dos deuses. A partir daí,
Malinowski postulou pela primeira vez uma grande utilidade evolutiva da religião: ela
seria útil para lidar com incertezas, como a incerteza da morte, da passagem para a fase
adulta, para o casamento. E, com efeito, na maioria das sociedades, não só entre os
trobriandeses, esses aspectos da vida social são cercados de religiosidade. Outras
funções da religiosidade também postuladas por Malinowski seriam o aumento da
coesão do grupo social em torno de uma unidade de crenças (que poderia favorecê-los
na competição com outros grupos), além de diminuição da agressividade e das tensões
sociais. Tais funções descrevem bem a utilização da religião tanto para indivíduo quanto
para a sociedade. Mas uma questão importante é quanto ao surgimento do fenômeno
religioso dentre os seres humanos. Qual seria a origem evolutiva da religião?

Religião e Psicologia Evolucionista

As observações de Malinowski foram bastante relevantes para que se começasse


a pensar em uma função ecológica e evolutiva para a religiosidade no comportamento
humano. Lidar com o desconhecido, explicar fenômenos naturais, explicar as origens
das coisas. De fato, tal como discutido pelo antropólogo evolutivo Pascal Boyer, a
religiosidade oferece as respostas para uma mente humana sedenta de explicações
(BOYER, 2001). Mas quando as crenças religiosas teriam surgido?
Muitos pesquisadores sugerem que a partir do momento em que nossos
ancestrais começaram a utilizar de símbolos, seria possível inferir o início da crença
religiosa (CULLOTA, 2009). Alguns achados na África do Sul remeteriam a 100.000
anos atrás. No entanto, segundo TATTERSALL (1999), os vestígios de religiosidade
datariam de 40.000 anos atrás. Algumas escavações arqueológicas verificaram que em
acampamentos de neandertais na Europa se podia encontrar em urnas funerais restos de
flores e outros vegetais, bem como adornos utilizados pelos entes em vida.
Teorias modernas postulam também que, nesse caso já o homem moderno
(Homo sapiens) a arte rupestre encontrada em algumas cavernas da Europa com
Lascaux e, de vários animais, cenas da vida do homem primitivo e alguns itens
pictóricos mais abstratos representam não somente uma mera versão de aspectos
daquilo que observavam, mas uma complexa interação sugestiva de cunho místico. Os
animais representados seriam símbolos de poder e de força, e alguns itens pictóricos
com formas mais abstracionistas e zoomórficas poderiam estar relacionados a visões em
estado de transe dessas comunidades primitivas. Tais achados coincidem exatamente
com a chamada “Explosão do Paleolítico Superior”, quando uma explosão simbólica
floresceu por volta de 30.000 a 35.000 anos atrás (CULLOTA, 2009). O que a
simbologia poderia nos contar sobre o aparecimento da evolução em nossa espécie?
Segundo Joseph Bulbulia, pesquisador da Universidade de Victoria, na Nova
Zelândia, existem duas propostas explicativas para o surgimento da religião em nossa
espécie (BULBULIA, 2004). A primeira que veria a religião com uma função
adaptativa do ponto de vista evolutivo, agindo como uma “cola social” e favorecendo a
vida em grupo em nossa espécie. É claro que a religiosidade tem um importante papel
na coesão de grupos, pois facilitaria a união e a formação de uma identidade grupal. Em
algumas ocasiões criticas como guerras ou escassez de alimentos, os indivíduos que
vivem em grupos mais coesos podem ter mais chances de sobreviver em tais
comunidades, em torno de uma estratégia comum de maximização de recursos. No
entanto, pesquisas tem demonstrado que o etnocentrismo (favorecimento de seu próprio
grupo e indiferença ou hostilidade em relação a grupos externos – HAMMOND e
AXELROD, 2006) pode se utilizar de outros marcadores de grupo, favorecendo a
coesão interna, não sendo pois essa uma atribuição exclusiva da religião (KURSBAN et
al., 2001; COSMIDES et al., 2003; YAMAMOTO et al., 2009)
A segunda explicação teórica para a evolução da religião, argumenta que ela é
um sub-produto das capacidade cognitiva de nossas mentes, ou seja, o funcionamento
normal de nossas mentes favoreceria uma hipersensibilidade de detecção de agentes
(BOYER, 2008; BULBULIA, 2004). Em outras palavras, a religião teria evoluído a
partir da nossa própria tendência evolutiva para analisar a natureza e prever o futuro.
Isso remete, evidentemente, as navegações mais “arriscadas” dos trobriandeses de
Malinowski, que barganhavam com deuses frente à condições adversas e incertas de
navegação.
Segundo o antropólogo brasileiro Dennis Werner, as pressões evolutivas que
agiram no ser humano no último milhão de anos, levaram-no ao desenvolvimento de
uma área especifica do encéfalo responsável pela previsão de fatos: o córtex pré-frontal.
Esta área, em relação ao outros primatas, se encontra, em termos proporcionais e em
termos absolutos, significativamente aumentada. Apesar de consumir mais energia, um
cérebro capaz de prever o futuro aumentou enormemente a capacidade humana de
planejar e controlar a obtenção de recursos, em relação a outras espécies, o que facilitou
sua primazia nos últimos 50.000 anos (WERNER, 1999). Com isso, estima-se que a
evolução do neocórtex tenha conduzido os humanos primitivos a desenvolver uma
capacidade de privação de recompensa imediata em função da manutenção de
benefícios a longo prazo. Outra evidência interessante para a proposta da religião como
sub-produto, vem de pesquisas com ressonância magnética. Na infância, por volta dos
cinco anos de idade, as crianças desenvolvem a habilidade para se colocar no lugar do
outro, tentando antecipar as ações do mesmo, e agir adequadamente em relação à essa
previsão. Trata-se do que os pesquisadores da cognição chamam de Teoria da Mente
(ToM). De acordo com Ottoni (2009), a expressão ToM refere-se a atribuição de
estados mentais a outros indivíduos, usando-os para prever e explicar seu
comportamento. As áreas ativadas quando “ativamos” a ToM, coincidem com as áreas
cerebrais ativadas durante as experiências religiosas (KAPOGIANNIS et al., 2009).
Não é difícil supor que, em povos primitivos, a religiosidade tenha surgido com
um intuito de preencher o espaço gerado pelas expectativas humanas frente ao
conhecimento parcial e incompleto dos fenômenos naturais. A angústia da incerteza de
futuros dúbios teria favorecido o surgimento das primeiras religiões, que evoluíram para
as religiões que conhecemos hoje, como o cristianismo, budismo e o islamismo.
É importante contextualizarmos a religião numa perspectiva histórica e
sociobiológica, para podermos também entendê-la sob uma ótica neurobiológica. De
acordo com o filósofo da mente Daniel Denett, a religião pode e deve ser estudada
cientificamente, e inclusive no ínterim de um processo de aprendizado, pois hoje
dispomos de ferramentas avançadas e de arcabouço teórico (em especial, dentro da
Psicologia Evolucionista) para isso (DENNETT, 1999).

Os Monoteísmos do Ocidente e a Polarização entre Bem e Mal

No ocidente, os três grandes monoteísmos, o judaísmo, o cristianismo e o


islamismo, foram desenvolvidos a partir de origens anteriores politeístas. Podemos
destacar, na origem dessas três religiões, um sistema de crenças que claramente se
manifestou em uma divisão entre forças do bem e forcas destrutivas, encarnando o mal
do universo, pela primeira vez de uma forma separatista: o zoroastrismo. Apesar de o
Zoroastrismo hoje em dia ter apenas poucos seguidores, principalmente nas regiões da
Ásia central, esta religião influenciou o desenvolvimento de outras que a sucederam
que, apesar de compreenderem um único Deus, conferem uma característica dual a essa
entidade, tanto de recompensador quanto de punitivo. O Zoroastrismo, pela primeira
vez, de uma forma sistemática e escrita, caracterizava uma dualidade do universo, um
sistema de forcas criadoras e destrutivas, uma polarização entre bem e mal, entre deuses
em oposição e disputa eterna. No cristianismo e no islamismo, esta dualidade é bastante
nítida com a postulada divisão do mundo em conceitos como céu e inferno, Deus e
diabo, culpados e absolvidos (O´NEAL e JONES , 2007)
Como veremos adiante, o sistema geral de religiões ocidentais promove um
aprendizado baseado na categorização de opostos, enquanto o sistema de crenças
oriental, também como uma tendência, pressupõe uma visão unificada e complementar
do ser humano e sua maneira de se relacionar com o mundo.
Considerando a religião como tecnologia, ela contribuiu então para a ordenação
da sociedade no que se refere ao controle de impulsos e a formação moral dos
indivíduos, como se evocasse uma fiscalização freqüente favorecendo comportamentos
pró-sociais (SHARIFF e NORENZAYAN, 2007).
No entanto, o eixo principal de argumentação desse capítulo, é o de que as
religiões e a educação religiosa nos diversos sistemas existentes, são capazes de induzir
diferentes formas de plasticidade neural nas pessoas, e o modo como o cérebro se
modifica frente à educação religiosa, pode ser crucial no processo de desenvolvimento
da inteligência emocional da criança e do adolescente. E que, em religiões como o
budismo e o hinduísmo, em uma tendência diversa das religiões monoteístas ocidentais,
podem induzir modos de controle do comportamento de uma maneira diferenciada das
religiões monoteístas e baseadas em sistemas dualistas.
A polarização no sistema ocidental geralmente está ligada ao controle dos
impulsos ditos “imorais” ou “condenáveis” por um ciclo de pecado-culpa-punição-
arrependimento-pecado-em-reincidência. No conceito monoteísta ocidental, o indivíduo
tende naturalmente para o pecado, para a perda do autocontrole. Então, quando ele erra,
ele deve se arrepender, se punir, e então obter a redenção, o alívio e a expiação de sua
culpa. Em temos neurobiológicos, isso pode ser traduzido por: um ciclo de prazer pelo
desejo incontido, seguido de incerteza, autopunição e, finalmente prazer pela redenção e
pelo perdão divino, representado pelo sacerdote.
Por outro lado, a tendência das religiões orientais é a de promover um
aprendizado baseado no autocontrole, na remissão da expectativa e do desejo para evitar
o sofrimento, em diversos aspectos e dimensões da vida. Em práticas como a Yoga,
ligada ao hinduísmo, as pessoas treinam o relaxamento, o aumento da capacidade de
atenção e o auto-controle, para lidar com as adversidades (YOGANANDA, 2001).
Falando novamente em termos neurobiológicos, a plasticidade induzida por essas
religiões estaria ligada mais ao aprendizado emocional e à consciência da expectativa do
prazer. Isso, pois, como a expectativa pode gerar frustração se o desejo não for
alcançado, através da dosagem dessa expectativa, e do desejo a ela subjacente, pode-se
gerar menor frustração com as adversidades. Como síntese, diria que as religiões
orientais, de modo geral, possuem, se bem empregado, um sistema mais condizente com
o que se tem hoje de científico em termos de práticas de desenvolvimento de
inteligência emocional em crianças.
Para sustentar esse argumento, iremos comentar agora sobre alguns
experimentos de neuroimagem e de estimulação do encéfalo, idealizados para procurar
elucidar aspectos biológicos da religiosidade humana. Esses estudos comprovam que,
durante as práticas religiosas, e conforme a religião escolhida, as pessoas podem ter
ativadas diferentes áreas do encéfalo, o que sugere diferentes tipos de plasticidade
neural ligadas ao aprendizado religioso.

Cérebro e Religião

O aprendizado religioso, por conter componentes fortemente motivacionais, está


diretamente ligado ao desenvolvimento, em especial na criança e no adolescente, da sua
inteligência emocional, em especial, de como este lida com suas frustrações,
sentimentos e expectativas.
A partir de estudos de neurobiologia, hoje se pondera que em qualquer
aprendizado, incluindo o aprendizado emocional, existe um fenômeno chamado
neuroplasticidade: as conexões entre células nervosas variam em função do valor
adaptativo do estímulo ambiental (no caso, educacional, quando se trata de educar
crianças a lidar com suas emoções). Essa mudança leva também a mudança de interação
entre várias das grandes áreas cerebrais, quando feixes de células nervosas reforçam
suas conexões (KANDEL, 2009).
O cérebro muda em função do aprendizado, seja ele racional ou emocional,
como postula o pesquisador J. LeDoux (LEDOUX, 1996). Logo, uma de nossas
hipóteses é a de que algumas áreas encefálicas podem se modificar também em função
do aprendizado religioso, que está diretamente ligado ao aprendizado emocional e
motivacional. Essa idéia é reforçada pelo autor Andrew Newberg (2007), em seus livros
que tratam de como a religiosidade pode levar a modificações funcionais e estruturais
no tecido cerebral. Isso tem, então, a seguinte implicação direta: conforme a religião é
passada, e dependendo de seu peso na vida da criança, teremos adultos que lidam de
formas diferentes com suas emoções em relação aos estímulos do meio ambiente na
vida cotidiana.
O primeiro fato de relevância descoberto sobre as implicações neurológicas da
religiosidade foi a constatação de que pacientes com epilepsia de lobo temporal (ELT)
tinham mais “visões” de cunho religioso do que a população em geral. O escritor Fiodór
Doistoievski foi um dos epilépticos a descrever que, no momento anterior à crise, tinha
uma sensação de união mística com Deus, em um prazer inenarrável. Um de seus
personagens, o príncipe Miskhin, tem esse mesmo prazer em uma das descrições de
ataques epilépticos mais antológicas da literatura artística (DOSTOIEVSKI, 1867).
Interessante notar, esse prazer não é descrito como sendo sexual, mas um prazer
místico, de “unicidade” com Deus e o universo, pelos pacientes que sofrem de ELT.
Supõe-se que boa parte das pessoas que tenham tido revelações divinas era portador de
epilepsias (ALPER, 2009)
Supõe-se que as curas bíblicas de endemoniados também tenham estreita relação
com pacientes epilépticos. A epilepsia era freqüentemente vista como possessão
demoníaca na história antiga, e passível de ser curada com a ajuda mística e religiosa.
Uma das manifestações artísticas mais sublimes sobre isso é o quadro “A
Transfiguração” de Rafael, que mostra um menino tendo uma crise (e provavelmente se
curando dela) durante a ascensão de Cristo.
A partir de então da observação da maior propensão de epilépticos de terem
“visões e experiências” místicas, de união com o sagrado, alguns cientistas começaram
a supor que a religiosidade pudesse envolver as funções do lobo temporal no cérebro,
relacionado com o desencadeamento de emoções positivas (prazer) e punitivas (medo,
raiva). Uma área em especial do lobo temporal, o complexo amidalóide (CA), está
diretamente envolvido com o controle das reações emotivas frente a estímulos
ambientais nos seres humanos.
O complexo amidalóide tem também conexões neurais diretas com o
hipotálamo, outra região que se relaciona com a modulação hormonal e imune no
encéfalo, o que contribui para explicar o porquê de pessoas que têm consecutivos
êxtases religiosos conseguem se curar de doenças crônicas e obter melhor desempenho
da função imunológica. Se a religião for interpretada, como dito anteriormente, como
tecnologia motivacional, existe uma base biológica que explica os benefícios em termos
de saúde de algumas de suas práticas (GEORGE e COHEN, 2002).
Objetivando, então, aprofundar-se um pouco mais sobre esse assunto, uma
equipe de cientistas chefiada pelo Dr. Persinger, da Universidade Laurentiana, no
Canadá, criou o que se chama “o elmo de Deus”. Trata-se de uma espécie de capacete
que, através de pulsos magnéticos uni ou bilaterais nos hemisférios cerebrais, pode
induzir modificações nas descargas elétricas do encéfalo, e, por conseguinte, na
percepção dos sujeitos que o utilizam (BOOTH et al., 2005).
O que Booth et al. (2005) observaram foi que pacientes muito religiosos, com a
estimulação eletromagnética, feita diretamente no lobo temporal, tinham a sensação de
estarem em comunhão com Deus. Já pacientes pouco religiosos ou sem religião tinham,
com a mesma estimulação no lobo temporal, apenas a sensação de que existia mais
alguém dentro da sala de experimentos.
Além disso, em observações epidemiológicas, Persinger concluiu que “uma das
principais diferenças entre os 19% de estudantes do ensino médio que tiveram
experiências religiosas antes da adolescência e os outros era a presença de um ferimento
na cabeça, ou pelo menos um desmaio durante a infância” (ALPER, 2009).
Outros pesquisadores, como Albert Sandwin, da Universidade de Pensilvânia,
encontrou pessoas que começaram a manifestar alterações de personalidade com
característica religiosa após sofrerem traumatismos na cabeça, o que chamou de
psicossíndrome orgânica” (ALPER, 2009).
Sabendo que o lobo temporal, como já dito, contribui para codificar as emoções,
então pode-se dizer que o êxtase religioso está ligado a uma forte ativação de áreas
ligadas à emoções, tanto positivas quanto negativas. O sistema límbico, o conjunto de
áreas envolvidas com o processamento emocional, é composto principalmente por
estruturas do lobo temporal, envolvidas nas visões religiosas (LEDOUX, 1996).
Os experimentos de Schjødtu et al. (2008) parecem confirmar essa hipótese. Através de
estudos de neuroimagem, foi verificado que , enquanto católicos rezavam, áreas do
sistema o núcleo Caudado e o Lobo temporal estavam ativadas nos sujeitos
experimentais. Interessantemente, nesse experimento, quanto mais religiosa é a pessoa,
mais intensa é a ativação, durante a oração, nas áreas relacionadas à interação social no
encéfalo, que são o córtex pré-frontal e a junção temporo-parietal. Em outras palavras,
em pessoas muito religiosas, a oração se assemelha uma “conversa”, a uma interação de
“barganha” com Deus, de troca e ajuste de contas. Talvez não coincidentemente,
voltamos à lembrança dos trobriandeses de Malinowski, e sua barganha com Deuses por
melhores condições de navegação. O que observaríamos, se também submetêssemos
esses nativos a um escaneamento cerebral, durante sua comunicação com os deuses?
Experimentos como esse, de submeter pessoas de várias religiões ao
escaneamento funcional, durante as diferentes práticas, irão contribuir num futuro
próximo para entendermos melhor o fenômeno religioso e como este se relaciona com
mecanismos de memória e aprendizado complexo.
Por outro lado, outro grupo de cientistas, chefiado pelo Dr. Andrew Newberg, da
Universidade de Pensilvânia, conduziu experimentos de neuroimagem, com monges
budistas em meditação. Nestes experimentos, foi verificado que, ao contrário do que se
pensava, durante a meditação dos monges, a área responsável pela atenção, o córtex pré-
frontal, se encontra ativada. Enquanto isso, áreas como a amídala e o córtex parietal
tiveram uma diminuição de atividade. Como a amídala está relacionada ao medo e
ansiedade, isso ajuda a explicar porque na meditação estas sensações estão reduzidas, de
acordo com o relato dos praticantes. Já a baixa ativação no lobo parietal, postula-se que
está relacionada com a perda da sensação de espaço e de tempo, dando a idéia de
unicidade com o universo descrita pelos meditadores (NEWBERG, 2009).
Vale ressaltar, ainda, que não só diferenças em termos funcionais de ativação
foram verificadas em praticantes de diferentes religiões. Um recente trabalho do grupo
de Jordan Grafman verificou que, anatomicamente, o cérebro de ateus e de religiosos é
diferente (KAPPOGIANIS et al., 2009).
No caso de ateus, o volume de uma área encefálica conhecida como precúneo,
área no hemisfério cerebral direito, encontrou-se aumentado, em relação aos religiosos.
Os autores têm a hipótese de que essa estrutura seja importante para importante para
uma habilidade para troca de perspectivas em dilemas sociais. Por exemplo, as pessoas
com o precuneo aumentado tiveram, neste estudo, uma maior tendência a considerar a
humanidade tanto boa quanto ruim, e dar mais ênfase em suas experiências no mundo
do que na imaginação da vida interior. O precuneo também parece estar relacionado
com o processamento da consciência de si mesmo, como mostram trabalhos de
ressonância magnética funcional (VOGELEY et al., 2004).
Já voluntários que experimentavam intima relação de crença com Deus, tinham,
comparativamente aos ateus, a área do córtex temporal medial direito aumentada em
volume. Esta área, como comentado anteriormente, é considerada o “locus” da religião
no cérebro, como também é uma área essencialmente ligada ao processamento das
emoções.
Por fim, os voluntários também religiosos que tinham uma crença voltada para o
temor a Deus, considerando-o um Deus punitivo, apresentaram duas áreas do córtex
cerebral diminuidas em volume: o precuneo direito e do o córtex orbito-frontal direito.
Esta última área tem sido referenciada como uma área importante para a eliciação da
ToM de outras pessoas, como também para a modulação de estímulos negativos,
impedindo que uma pessoa manifeste temor numa situação de interação social, por
exemplo. Em outras palavras, esta seria uma área controladora de manifestações de
temor. Se isso for somado com a diminuição de volume do precuneo, estas pessoas
teriam então, de maneira geral, mais dificuldade de controlar seus temores, e
provavelmente maior dificuldade em ter um grau de autoconsciência, assim como de
lidar com a ambigüidade, com situações que tiverem aspectos positivos e aspectos
negativos a serem considerados.
Essas evidências demonstram como a religiosidade pode afetar a construção de
conexões cerebrais ao longo da vida, e a maturação de diversas de suas estruturas, e
indica a necessidade desses novos estudos envolvendo, agora, as três áreas, teologia,
neurologia e pedagogia.
No intuito de transcender a questão biológica e passar para a prática educacional,
podemos levantar algumas questões que derivam do que foi aqui exposto, frente ao fato
da obrigatoriedade do ensino religioso no Brasil, e da conseqüente (e urgente)
necessidade de seu planejamento que se configura na atualidade. Por fim, é esse o nosso
próximo tema.

A Escola e o Ensino Religioso


Finalmente chegamos à escola. O objetivo final dessa fundamentação teórica é o
de fornecer argumentos ligados à biologia para que os pedagogos e profissionais da área
de educação possam se conscientizar de que o excesso de religiosidade pode ser
pernicioso no processo do desenvolvimento da inteligência emocional de crianças e de
adolescentes. Como o ensino religioso nas escolas passou a ser obrigatório, devemos ter
em mente que a construção da imagem de um Deus punitivo nos indivíduos em
formação pode levar a uma forma de aprendizado em que o sistema límbico,
relacionado a emoções básicas de prazer e punição, se encontra mais atuante, em
detrimento de áreas encefálicas mais relacionadas ao processamento racional, como o
córtex pré-frontal (DAMASIO, 1996). Outra forma de pedagogia religiosa possível, de
maneira a evitar o conceito do Deus punitivo, seria explicar as conseqüências praticas
sociais e econômicas de comportamentos condenáveis, caso-a-caso, e não somente
passar a informação de que deve evitar certos comportamentos “porque Deus pune”. O
motivo pelo qual se deve ter um comportamento moral passaria pela racionalidade
(ligada ao processamento cortical), de modo a se evitar um aprendizado de evitação
unicamente via áreas emocionais. Uma educação moral e emocional calcada no
autocontrole, e não no domínio de um ser externo e divino, poderia, dessa forma,
induzir uma plasticidade (e uma aprendizagem) mais relacionada à interpretação
racional do mundo, mais “cortical”, e menos “límbica”, por assim dizer.
Se as crianças forem educadas sob a ótica de um Deus punitivo, dentro do que
foi exposto, corremos o risco de gerarmos adultos com um menor controle de suas
emoções, por conta da ativação excessiva do sistema límbico encefálico durante uma
fase importante da formação da personalidade. Se, pelo contrário, dentro do
ensinamento religioso, dermos mais valor ao autocontrole como melhor caminho para
execução de comportamentos morais, poderemos estar contribuindo mais
significativamente para uma geração de adultos com uma maior capacidade em termos
de inteligência emocional. Evidentemente, mais experimentos na área de neuroteologia,
envolvendo neuroimagem e diferentes formas de ensino religiosos nas escolas, ainda
precisam ser feitos para comprovar essa teoria.
Paralelamente, vale ressaltar que o ensino religioso no Brasil está, na maioria
das escolas, vinculado a uma tradição católica. Na prática, a educação religiosa acaba se
confundindo com educação “católica”. Quando se fala em educação “religiosa”, isso
não significa necessariamente uma educação “católico-cristã”. A educação religiosa
deve ser plural, a fim de permitir que o aluno possa ter a liberdade para escolher seu
sistema religioso, ou ainda, a de não escolher nenhum deles. O que ocorre, no entanto,
principalmente no interior do país, é que as escolas com ensino religioso têm em sua
maioria profissionais que só reforçam a idéia, que já é comentada no lar das crianças, do
Deus cristão que pune o pecado. A escola não deveria induzir uma religião especifica,
deveria apresentar, num contexto histórico-cultural, os principais sistemas religiosos do
mundo, e sua maneira de lidar com as questões existenciais. A criança, assim,
aprenderia a lidar desde cedo com a diversidade e com diversos sistemas de pensamento
conflitantes, e desenvolver uma habilidade de discernimento e crítica que será
importante na idade adulta, num mundo plural em que vivemos.
De todo o modo, o ensino religioso está relacionado, de maneira evidente, à
formas de plasticidade no cérebro, e se entendermos como se processam as
modificações produzidas pelo aprendizado da religião, nos próximos anos, poderemos
traçar estratégias de ensino a fim de agregar cada vez mais ao capital intelectual da
sociedade moderna em constante transformação. Aproveitando, com uma contribuição
da ciência, e controlando os excessos, o que de construtivo a discussão da religião
dentro da escola pode ter a oferecer.

Referências Bibliográficas
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BOOTH, JN; KOREN, SA; PERSINGER, MA. Increased feelings of the sensed
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