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Gláuc ia de Oliveira Assis

Universidade do Estado de Santa Catarina

Mulheres migrantes no passado e


no presente: gênero
gênero,, redes soc iais
e migraç ão internac ional
Resumo
esumo: Este artigo pretende analisar a inserção das mulheres nos fluxos migratórios do passado
e do presente, procurando demonstrar que a migração não é resultado apenas de uma escolha
rac ional, mas também de estratégias familiares nas quais homens e mulheres estão inseridos,
c ontribuindo para rearranjos das relaç ões familiares e de gênero. Para tanto, disc ute c omo a
partic ipaç ão das mulheres foi analisada nos fluxos migratórios e aborda o rec ente movimento
de brasileiros para o exterior, desc revendo as trajetórias de homens e mulheres. O trabalho de
c ampo, tal c omo a vida desses migrantes, dividiu-se entre dois lugares: a c idade de Cric iúma
(SC), no Brasil, e a região de Boston, nos Estados Unidos. Os dados coletados a partir das entrevistas
e da observaç ão partic ipante têm revelado que as mulheres partic ipam efetivamente desse
proc esso, integrando e artic ulando redes de migraç ão. Os dados também sugerem que a
migraç ão provoc a rearranjos familiares e de gênero ao longo do proc esso.
Palavras-c have
have: emigrantes brasileiros; gênero; migraç ão internac ional; redes familiares.

Co p yrig ht ⎝ 2007 b y Re vista


Estudos Feministas.
Introd uç ã o
No fina l d o séc ulo XX e iníc io d o séc ulo XXI, a s
ima g ens e notíc ia s d e imig ra ntes send o ‘b a rra d os’ em
a erop ortos, na veg a nd o à d eriva em b a lsa s p rec á ria s,
a tra vessa nd o a fronteira d o Méxic o e enfrenta nd o os
p erig os d o d eserto evid enc ia m q ue a c irc ula ç ã o d e
tra b a lha d o re s no mund o g lo b a liza d o é b e m ma is
c ontrolada e dramátic a do que a c irc ulaç ão de dinheiro,
b e ns o u me smo ne g o c ia nte s e turista s. No mund o
globalizado, os migrantes não c onsiderados livres para
c irc ular são tratados c omo ameaç a, c omo questão de
se g ura nç a na c io na l. As ima g e ns re tra ta m ho me ns,
mulheres e c rianç as que tentam c ruzar fronteiras c ada vez
mais vigiadas, em travessias arrisc adas, c onfigurando um
drama humano e polític o c uja fac e dramátic a revela a
busc a de uma vida melhor em outro lugar.

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GLÁUCIA DE OLIVEIRA ASSIS

O aumento dos desloc amentos populac ionais que


oc orreram a partir da déc ada de 1950 é c arac terizado
por uma maior diversidade étnic a, de c lasse e de gênero,
a ssim c omo p ela s múltip la s rela ç ões q ue os imig ra ntes
estabelec em entre a soc iedade de destino e a de origem
d os fluxos. Dessa forma , nã o sã o a p ena s os europ eus
branc os partindo da Europa para “Fazer a Améric a” (c erc a
d e 90% d o s fluxo s d o sé c ulo XIX), m a s ta m b é m
trabalhadores imigrantes não-branc os partindo dos países
periféric os e dirigindo-se para os Estados Unidos, Canadá
e países da Europa.
O aumento da partic ipaç ão das mulheres nos fluxos
migratórios internac ionais é outra c arac terístic a que tem
c oloc a d o q uestões sig nific a tiva s p a ra a s teoria s sob re
1
MOROKVASIC, 1984. migraç ões. Segundo Mirjana Morokvasic ,1 a inc orporaç ão
d e mulheres imig ra ntes à forç a d e tra b a lho nos p a íses
ind ustria liza d o s te m sid o vista no c o nte xto d e c rise
ec onômic a mund ia l, c ontexto esse ma rc a d o p or uma
p rog ressiva d esind ustria liza ç ã o e p or um merc a d o d e
trabalho sexualmente segregado. Em geral, essas mulheres
inserem-se no setor de serviç os doméstic os e utilizam-se de
redes soc iais informais, os c hamadas enc laves étnic os de
im ig ra nte s, tra b a lha nd o c o m o d o na s-d e -c a sa o u
empregadas doméstic as.
2
ANTHIAS, 2000. Flo ya Anthia s, 2 a o a na lisa r a s mig ra ç õ e s q ue
oc orreram para o sudoeste da Europa no final do séc ulo
XX, destac a que não se trata de rec onhec er a importânc ia
proporc ional das mulheres ou sua c ontribuiç ão ec onômic a
e soc ial, mas sim c onsiderar o papel dos proc essos, do
disc urso, bem c omo as identidades de gênero, no proc esso
de migraç ão e estabelec imento na soc iedade de destino.
No caso da emigração de brasileiros para os Estados Unidos,
3
Ma xim e MARGOLIS, 1994; podemos observar nos primeiros estudos3 que, assim c omo
Gláuc ia de Oliveira ASSIS, 1995; nos estudos c lássic os de migraç ão, a questão de gênero
Teresa SALES, 1999b.
não era problematizada. Ao longo da déc ada de 1990, o
fluxo d e b ra sileiros p a ra os Esta d os Unid os ma nteve-se
c o ntínuo, a o me smo te mp o q ue se d ive rsific a va a
populaç ão, tornando mais c omplexas as c arac terístic as da
populaç ão e revelando outros pontos de partida para a
emigraç ão.
Pesq uisa s rec entes p roc ura m c omp reend er essa
nova c onfiguraç ão ao demonstrar diferenç as na inserç ão
no m e rc a d o d e tra b a lho : e nq ua nto a s m ulhe re s
c onc entram-se, c omo outras imigrantes latinas, na área
4
Ana Cristina MARTES, 2000; do serviç o doméstic o,4 os homens dirigem-se para o setor
Sora ya FLEISCHER, 2002; ASSIS, da c onstruç ão c ivil e de restaurantes. Além de analisar essa
2004.
5
inse rç ã o, o s e stud o s c o me ç a m a p ro b le ma tiza r a s
Sylvia DEBIAGGI, 2002 e 2003;
Wilson FUSCO, 2002; ASSIS, 1999 mudanç as nas relaç ões familiares e de gênero.5 Portanto,
e 2004. o fluxo brasileiro é c onstituído por uma diversidade étnic a,

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MULHERES MIGRANTES NO PASSADO E NO PRESENTE

de c lasse e de gênero que o termo “migrante brasileiro”


muitas vezes enc obriu.
A maior visibilidade das mulheres nas migraç ões
internac ionais rec entes c ontribuiu para problematizar as
visões c ristalizadas sobre a inserç ão de homens e mulheres
6
Este a rtig o é uma versã o d o mig ra ntes nesse p roc esso. Neste a rtig o, 6 o g ênero é
trabalho apresentado no Seminá- analisado c omo um princ ípio c lassific atório que atravessa
rio Internac ional Fazendo Gênero
6: Saberes Globais/Fazeres Locais,
o movimento mig ra tório e q ue, junta mente c om outra s
Saberes Loc ais/Fazeres Globais, c ategorias c omo “c lasse”, “geraç ão” e “etnia”, c onfigura
em agosto de 2004. as oportunidades de mulheres e homens migrantes. Partindo
dessa perspec tiva, analiso o rec ente fluxo de brasileiros
para o exterior, verific ando c omo se reartic ulam as relaç ões
familiares e de gênero nesse proc esso.

Perc orrendo a trajetória dos emigrantes: o


trabalho de c ampo
As p esq uisa s sob re os emig ra ntes b ra sileiros, em
geral, c onc entram-se na soc iedade de destino nos Estados
Unidos, na Europa ou no Japão. As análises sobre pontos
d e p a rtid a no Bra sil, em p a rtic ula r, c onc entra m-se na
cidade de Governador Valadares (MG), dado o significativo
fluxo d e emig ra ntes d essa reg iã o. Assim, a p esq uisa
realizada em Cric iúma, c ontemplando a c idade de origem
e as c idades de destino nos Estados Unidos, c ontribui para
revelar a c onstruç ão de novas c onexões transnac ionais.
A c idade de Cric iúma, loc alizada no sul do estado
de Santa Catarina, a partir de meados da déc ada de 1990
tornou-se p onto d e p a rtid a d e um a mp lo movimento
migratório. Na c idade, c om 170.322 mil habitantes (Censo
2000), inic iou-se um proc esso de c onexão c om a região
de Boston e c om outras c idades na Europa, em que os
c ric iumenses c onstroem red es d e rela ç ões a o a rtic ula r
c ontextos loc ais a situaç ões globais. Essas redes não são
neutras segundo as relaç ões de gênero “ esta é uma outra
c ontribuiç ão deste trabalho.
A p e sq uisa d e c a mp o se g uiu a tra je tória d os
emig ra ntes, send o rea liza d a entre os d ois lug a res: em
Cric iúma (SC) e na região de Boston (EUA). O c ampo foi
multissituado, o que tornou os desloc amentos c onstantes,
na tentativa de ac ompanhar as redes c onstruídas pelos
migrantes em sua vida c otidiana nos Estados Unidos. O
trabalho de c ampo, realizado entre març o e agosto de
2001, em Cric iúma, e entre dezembro de 2001 e març o de
7
O projeto de pesquisa foi c oor- 2002, na região de Boston, c ombinou pesquisa etnográfic a
denado pela professora Teresa e um survey7 na cidade de Criciúma. A pesquisa aí realizada
Sales e obteve o financ iamento envolveu entrevistas em profundidade c om aqueles/as que
da FAPESP (Teresa SALES, Wilson
FUSCO, Glá uc ia ASSIS e Elisa
permanec eram na c idade e que me indic aram parentes
SASAKI, 2002). e amigos c om os quais me enc ontrei na região de Boston

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GLÁUCIA DE OLIVEIRA ASSIS

para ac ompanhar sua vida c otidiana, o trabalho, o lazer,


os projetos de retorno, em um total de 45 entrevistas. Para
a finalidade deste artigo, apresentarei uma c ombinaç ão
da análise de algumas trajetórias de migraç ão artic uladas
c om os d a d os d o survey q ue d emonstra m c omo se
c onfiguram as redes soc iais entre os emigrantes brasileiros.

A invisib ilid a d e d a s mulheres nos estud os


d e im ig ra ç ã o : a c o m p a nha nd o p a is,
m a rid o s e filho s o u fa ze nd o p a rrte
te d o
8
8
Este tópico é uma versão modifi-
cada do capítulo 2 de minha tese
p roc esso?
de doutorado (ASSIS, 2004).
9 O Museu de Ellis Island 9 pode ser c onsiderado um
Do séc ulo XIX até metade dos
anos 1950, Ellis Island foi o lugar p onto d e p a rtid a p a ra c omeç a rmos a p erc eb er c omo
no qual func ionava o Departa- homens e mulheres mig ra ntes fora m rep resenta d os no
m e nto d e Im ig ra ç ã o No rte - proc esso migratório para os Estados Unidos e, de modo
Americ ano e para onde se dirigia ma is g era l, c omo a s mulheres sã o rep resenta d a s na s
a ma ioria d os 35 milhões d e
mig ra ntes q ue a p orta va m nos migraç ões internac ionais. As várias fotos que rec onstroem
Estados Unidos. Quando c hega- a p a ssa g em d e milhões d e mig ra ntes p elo serviç o d e
vam, os imigrantes eram entrevis- imigraç ão nos Estados Unidos evidenc iam quais eram as
tados, examinados e, se aprova- expec tativas do Serviç o de Imigraç ão sobre os migrantes.
d os, lib era d os p a ra entra r nos
Nas fotos que se enc ontram no Museu e que representam
Esta d os Unid os. O lug a r fic ou
fec hado e abandonado durante a c hegada dos homens, há uma legenda c om a seguinte
vá rios a nos; p orém, d ep ois d e a pergunta: “Voc ê tem trabalho?”. Já nas fotos em que
uma g ra nd e reforma , tra nsfor- a p a rec em mulheres e c ria nç a s, c onsta na leg end a
mou-se em Museu da Imigraç ão. explic ativa a pergunta? “Voc ê é c asada?”. Essas imagens
revelam diferentes expec tativas e representaç ões em rela-
ç ão aos migrantes que também são rec orrentes nas teorias
sobre migraç ões internac ionais. Enquanto os homens são
representados c omo aqueles que vinham em busc a de
trabalho, as mulheres não foram inicialmente representadas
c omo trabalhadores imigrantes, e sim c omo aquelas que
ac ompanhavam maridos e filhos. Dessa forma, nunc a eram
perc ebidas c omo sujeitos no proc esso migratório.
No c aso das mulheres imigrantes que c hegaram a
Nova York, no final do séc ulo XIX e iníc io do séc ulo XX,
Nanc y Foner10 relata as experiênc ias das jovens imigrantes
10
FONER, 2000. ita lia na s e jud ia s. Seg und o a a utora , a d esp eito d a
importânc ia do trabalho das mulheres para a família, os
sa lá rio s o b tid o s nã o se tra d uzia m e m um a m a io r
ind ep end ênc ia fina nc eira ou c ontrole fa milia r, p ois o
rendimento das filhas era perc ebido c omo parte de um
fundo familiar. O relato de Foner demonstra que a migraç ão
nunc a foi neutra c om relaç ão ao gênero. Nesse mesmo
sentido, Patric ia Pessar11 observa que, até rec entemente, o
11
PESSAR, 1999. termo “mig ra nte” era c a rreg a d o p or uma c onota ç ã o
masc ulina, c riando uma c onc epç ão de que o migrante
verdadeiro é “do sexo masc ulino”.

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MULHERES MIGRANTES NO PASSADO E NO PRESENTE

12
Ma rion F. HOUSTOUN, Rog er Mas por que as experiênc ias dessas mulheres não
KRAMER e Joan BARRETT, 1984. foram inc orporadas nos estudos de migraç ão? Uma das
13
Uma a ná lise d eta lha d a d a
p o lític a m ig ra tó ria no rte - exp lic a ç ões p a ra o eng lob a mento d a s mulheres na
americana ao longo do século XX c ategoria “migrante” era que os homens representavam a
enc ontra-se em Rossana Roc ha maioria nos fluxos internac ionais e, mesmo quando havia
REIS, 2003. Seg und o a a utora , predominânc ia de mulheres (c omo no c aso dos irlandeses
apesar da ideologia dos Estados
para os Estados Unidos no séc ulo XIX), essas não tiveram
Unid o s c omo te rra de
o p o rtunid a d e s p a ra os suas experiênc ias tratadas c omo objeto de análise. Para
imigrantes, mesmo no período de Ma rion F. Houstoun, Rog er Kra mer e Joa n Ba rrett,12 ta l
maior migraç ão para os Estados perspectiva de caracterização da migração contribuiu para
Unidos – entre o final do séc ulo q ue nã o se e vid e nc ia sse um d a d o sig nific a tivo : a
XIX e iníc io d e séc ulo XX – a
polític a americ ana de imigraç ão predominância das mulheres nos fluxos internacionais legais
esta b elec ia uma série d e leis para os Estados Unidos desde 1930. Segundo os autores,
restritivas aos imigrantes, sendo de 1857 até 1922, os homens dominaram os fluxos para os
se le c io na d o s p o r c rité rio s Estados Unidos; porém, no período de 1930 a 1979, as
re lig io so s e ra c ia is a q ue le s
mulheres representaram 55% de todos os imigrantes para
c onsiderados desejáveis, razão
pela qual, até meados do séc ulo o país e passaram os homens em mais de um milhão.
XX, a maioria dos imigrantes era A exp lic a ç ã o p a ra o a umento sig nific a tivo d a s
d e o rig e m e uro p é ia . Ne sse mulheres está rela c iona d a à s mud a nç a s na p olític a
sentido, ao mesmo tempo que os migratória norte-americ ana.13 A partir de 1920 até 1952, foi
americ anos se diziam abertos a
tod os os homens (g rifos meus) e limina d a a d isc rimina ç ã o p or se xo nos d ire itos d e
dispostos a adotar a religião c ivil residentes reunirem-se c om as esposas estrangeiras, o que
americana, ganhava destaque a favorec eu a admissão de mulheres por dispensar esposas
idéia de que os Estados Unidos de c idadãos americ anos de numerosas restriç ões e por
eram um país de anglo-saxões, o
c onferir status de residênc ia permanente para elas.14 Os
que c onduziu a um fec hamento
p rog ressivo d a s fronteira s e a o tra d ic iona is p a p éis sexua is ta mb ém c ontrib uíra m p a ra
estabelec imento de c otas para d e te rmina r o s níve is e o s p a d rõ e s d a mig ra ç ã o. As
imig ra ntes, p rinc ip a lmente em imigrantes, uma vez estabelec idas, mantiveram relaç ões
relaç ão às raç as c onsideradas c om a soc iedade de origem e tec eram c onexões c om a
ind esejá veis (a siá tic os e outros
imig ra ntes nã o -b ra nc os). Reis soc iedade de destino, c onstruindo redes de migraç ão que
re ssa lta a ind a q ue , se a té estimularam novas migraç ões.
meados do século XX a discussão Os dados demonstraram não apenas a presenç a
sob re a imig ra ç ã o g ira va em feminina nos fluxos do iníc io do séc ulo (partic ularmente
torno do eixo nativismo/religião
signific ativa no c aso dos Estados Unidos), mas também o
c ivil, a partir do final do séc ulo
XX, em um movimento q ue só c resc imento da partic ipaç ão nas migraç ões internac ionais
tende a se ac entuar depois dos na segunda metade do séc ulo XX, apontando para um
atentados do dia 11 de setembro fator c ruc ial a fim de entendermos essa invisibilidade: a
d e 2001, o eixo p rinc ip a l d a perspec tiva teóric a – presente nos estudos de imigraç ão
polític a de imigraç ão parec e ser
d ire ito s hum a no s/se g ura nç a até o iníc io dos anos 1970 – era ‘c ega’ em relaç ão às
nac ional (REIS, 2003, p. 43). diferenç as de gênero, raç a e etnia.
14
HOUSTOUN, KRAMER e BARRETT, Porta nto, a té o iníc io d os a nos 1970, c onforme
1984, p. 952. destac am Patric ia Pessar e Sylvia Chant e Sarah Radc liffe,15
15
PESSAR, 1999, p. 54; e CHANTe
as mulheres não se enc ontravam presentes nas análises
RADCLIFFE, 1992, p. 19.
16
SASAKI e ASSIS, 2000, empíric as e nos esc ritos produzidos porque muitos teóric os
a na lisa nd o a s te o ria s d e esta va m influenc ia d os p ela s teoria s neoc lá ssic a s d e
mig ra ç ã o, d e mo nstra m q ue , migraç ão.16 Havia um pressuposto de que os homens eram
se g und o o s ne o c lá ssic o s, o mais aptos a c orrer risc os, enquanto as mulheres eram as
mig ra nte c a lc ula o c usto e o
b e ne fíc io d a e xp e riê nc ia guardiãs da c omunidade e da estabilidade. Essa imagem,
migratória, e é isso que influenc ia favorec ida pela teoria push-pull, c oloc ava a migraç ão

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GLÁUCIA DE OLIVEIRA ASSIS

e determina a sua decisão, sendo c omo resulta d o d e um c á lc ulo ra c iona l e ind ivid ua l e
a m ig ra ç ã o e nte nd id a a q ui re le g a va a s mulhe re s a um lug a r se c und á rio, se m
c o m o sim p le s so m a tó ria d e
ind ivíd uos q ue se movem em rec onhec er o seu trabalho c omo imigrantes, c onforme já
funç ão do diferenc ial de renda. foi relatado.
O modelo neoc lássic o definia o O aumento da partic ipaç ão feminina, a partir de
suc esso do migrante por fatores 1970, o c o rre e m um c o nte xto d e c re sc ime nto d a s
como educação, experiência de
migraç ões internac ionais a partir da segunda metade do
trabalho, domínio da língua da
sociedade hospedeira, tempo de séc ulo XX. Os migrantes c ontemporâneos, diferentemente
permanênc ia no destino e outros d e se us a nte c e sso re s, c o nta m c o m um siste ma d e
elementos do c apital humano. c omunic aç ões e transporte mais barato e efic iente, o que
diminuiu as distânc ias e tornou mais freqüentes os c ontatos
entre a soc iedade de origem e a soc iedade de destino.
Como seria m a s mulheres d e d iferentes orig ens
na c io na is no s fluxo s c o nte mp o râ ne o s? As mulhe re s
imig ra ntes hoje nã o seria m simp lesmente c óp ia s d a s
imigrantes do passado em uma vestimenta moderna. Elas
c hegam c om diferentes c apitais humanos - muitas delas
c om melhor nível educ ac ional e maior qualific aç ão que
as mulheres que c hegaram no final do séc ulo XIX e iníc io
do séc ulo XX. As imigrantes c ontemporâneas benefic iam-
se da expansão das oportunidades educ ac ionais e de
emprego, além de uma legislaç ão liberalizante no que se
refere ao divórc io e às disc riminaç ões de gênero. Embora
e ssa s d ife re nç a s se ja m sig nific a tiva s, ha ve ria ma is
similaridades que diferenç as entre a vida dessas mulheres
migrantes de diferentes origens nac ionais.
O que há de ponto em c omum é que, tal c omo as
mulheres q ue c heg a ra m há c em a nos, a s imig ra ntes
c ontemporâneas enc ontram um merc ado segmentado por
g ê ne ro e , a p e sa r d e uma me lho r e sc o la riza ç ã o e
q ua lific a ç ã o, a ind a se d irig em p a ra c erta s oc up a ç ões
tradicionalmente femininas, fazendo, por exemplo, com que
uma á re a c o mo o e mp re g o d o mé stic o, q ue ha via
diminuído nos Estados Unidos e na Europa, volte a c resc er
no final do séc ulo XX. Um outro dado importante a ser
relevado é que essa inserç ão não é diferenc iada apenas
por gênero, mas também por origem nac ional. Ao analisar
as representaç ões sobre mulheres imigrantes rec entes para
17
ANTHYAS, 2000. a Europa, Anthyas17 evidencia como elas são categorizadas
d ife re nte me nte , se g und o p a d rõ e s ra c ia is e o rig e m
na c iona l. Alg uma s seria m p a tolog iza d a s c omo vítima s
(c omo as mulheres do Sri Lanka), outras seriam desejadas
por sua suposta submissão (c omo as mulheres das Filipinas),
outras seriam desejadas por sua beleza c onsiderada dentro
do padrão oc idental (c omo as mulheres do Leste Europeu).
No c a so d a s mulheres imig ra ntes b ra sileira s nos
Esta d o s Unid o s, ta m b é m p o d e m o s o b se rva r e ssa s
c a teg oriza ç ões. Às rep resenta ç ões d e sensua lid a d e e
b e le za d a mula ta , q ue na Euro p a muita s ve ze s se

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MULHERES MIGRANTES NO PASSADO E NO PRESENTE

relac ionam à imagem da prostituiç ão e da disc riminaç ão,


agrega-se a imagem de mulher c arinhosa, de boa esposa
e mãe, o que c onfere uma c erta vantagem às mulheres
no merc ado matrimonial em c omparaç ão aos homens.
Esses estereótipos produzem representaç ões diferenc iadas
sobre a mulher brasileira nos Estados Unidos.
Com relaç ão às motivaç ões para a migraç ão, um
outro conjunto de fatores de ordem não econômica parece
ter impac to na seletividade da migraç ão e é menc ionado
mais por mulheres do que por homens. Podem ser c itados
c omo fatores não ec onômic os: a transgressão dos limites
sexuais impostos pela soc iedade, os problemas c onjugais
e a violênc ia físic a, a impossibilidade de divórc io, os c asa-
mentos infelizes e desfeitos, a disc riminaç ão c ontra grupos
femininos espec ífic os e a ausênc ia de oportunidades para
18
MOROKVASIC, 1984. a s mulhe re s. Co nfo rme Mo ro kva sic , 18 e sse s e stud o s
apontaram para o fato de que as mulheres migram não
a p e na s p o r ra zõ e s e c o nô m ic a s, m a s ta m b é m p o r
rompimento c om soc iedades disc riminatórias, nas quais
estariam em posiç ão subordinada.
Portanto, nos fluxos c ontemporâneos, as mulheres
tend em a mig ra r sozinha s ou c omo p rimeira s em sua s
famílias, sendo pioneiras em enc ontrar trabalho nos Estados
Unidos, quebrando a imagem daquelas que esperam, ou
que seguiriam os passos dos homens.
Os dados apresentados não pretendem fazer uma
c umulaç ão entre as c ategorias “sexo” e “gênero”, porém
demonstrar a importânc ia da inserç ão das mulheres nos
fluxos migratórios c ontemporâneos e a nec essidade de se
lançar um olhar para as migrações que não apenas ressalte
a sua partic ipaç ão, mas que c ontemple a perspec tiva de
gênero. Desde o momento da partida, a esc olha de quem
vai migrar, os motivos da migraç ão, a permanênc ia ou o
retorno oc orre artic ulado em uma rede de relaç ões que
envolvem gênero, parentesc o e geraç ão. Partindo dessa
perspec tiva, as teorias de imigraç ão são questionadas a
lanç ar um outro olhar sobre os povos em movimento.
À medida que os estudos de imigração incorporaram
a perspec tiva de gênero, emergiram as experiênc ias de
19
YANAGIZAKO, 1977. homens e mulheres. Sylvia Yanagizako 19 demonstrou c omo
a s mulheres d a p rimeira e d a seg und a g era ç ã o d e
imig ra nte s ja p o ne sa s, c e ntra d a s e m sua s re d e s d e
parentesc o, c riaram novas formas c ulturais e símbolos no
c ontexto de migraç ão.

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GLÁUCIA DE OLIVEIRA ASSIS

As relaç ões de gênero e as redes soc iais


tec idas no proc esso migratório
As teoria s d e red es soc ia is c onstituem uma d a s
abordagens alternativas aos extremos da teoria neoclássica
20
PESSAR, 1999; Monic a BOYD, e do determinismo estrutural.20 Enquanto as transformaç ões
1989. mac roestruturais são c ompreendidas c omo desenc adea-
doras das pressões migratórias, as famílias e as redes soc iais
respondem a tais pressões e determinam quais membros
d os d omic ílios e d a s c omunid a d es rea lmente mig ra m.
Nesse c ontexto, a migraç ão, artic ulada pelas redes soc iais,
também vai deixando de ser vista apenas c omo dec isão
rac ional de um indivíduo para ser enc arada c omo uma
e stra té g ia d e g rup o s fa milia re s, d e a miza d e o u d e
vizinhanç a em que as mulheres inserem-se ativamente.
Seg und o Doug la s Ma ssey, Ra fa el Ala rc on, Jorg e
21
MASSEY, ALARCON, DURAND e Dura nd e Humb erto Gonza lez, 21 a s red es mig ra tória s
GONZALEZ, 1987, p.139-140. c onsistem em laç os soc iais que ligam as c omunidades
re m e te nte s a o s p o nto s e sp e c ífic o s d e d e stino na s
soc iedades rec eptoras. Esses laç os unem migrantes e não-
mig ra ntes em uma red e c omp lexa d e p a p éis soc ia is
c omplementares e relaç ões interpessoais que são mantidas
p or um c onjunto informa l d e exp ec ta tiva s mútua s e
c omp orta mentos p resc ritos. As rela ç ões em red e ma is
importantes são as baseadas em parentesc o, amizade e
origem c omum, as quais são reforç adas por uma interaç ão
reg ula r em a ssoc ia ç ões voluntá ria s. No enta nto, a o
c onsiderar as redes c onstruídas apenas entre os homens,
o estudo de Massey et al. não observou c omo as redes
soc ia is era m informa d a s p or a trib utos d e g ênero e d e
parentesc o.
22
TILLY, 1990. Por isso, segundo Charles Tilly, 22 a nova onda de
migraç ão não pode ser explic ada apenas pelos fatores
de atraç ão e repulsão que fazem as pessoas migrarem
devido aos diferenc iais de oferta de trabalho. No c aso das
migraç ões de longa distânc ia, quanto mais estabelec idas
enc ontram-se as redes, maiores c hanc es tem o migrante
no loc al de destino. Dessa forma, as redes soc iais tornam-
23
Seg und o Aleja nd ro PORTES, se um rec urso prec ioso, pois c onstituem o c apital soc ial23
1995, o conceito de capital socal q ue a uxilia p e sso a s c o m p o uc o s re c urso s, p o uc a
refere-se à ha b ilid a d e d o ind i-
experiênc ia profissional e baixo nível de esc olaridade na
víduo de mobilizar recursos escas-
sos em virtude de seu pertenc i- migraç ão de longa distânc ia.24
mento na rede ou nas estruturas Se, p or um la d o, a c omp reensã o d o p roc esso
soc iais mais amplas. Os rec ursos migratório a partir do enfoque nas redes soc iais aponta
adquiridos por meio do c apital para a importânc ia das relaç ões de solidariedade que os
so c ia l se mp re imp lic a m uma
expec tativa de rec iproc idade.
migrantes c onstroem entre a soc iedade de origem e de
24
PORTES, 1995; PESSAR, 1999. destino, o que os auxilia nos primeiros momentos da vida
em um novo lugar, por outro lado revela que tais redes são

752 Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 745-772, setembro-dezembro/2007


MULHERES MIGRANTES NO PASSADO E NO PRESENTE

25
TILLY, 1990; Pierette HONDAGNEU- também fonte de ambigüidade e conflito.25 Em decorrência
SOTELO, 1994; Jacqueline HAGAN, d isso, muita s vezes os mig ra ntes rec ém-c heg a d os sã o
1998; PESSAR, 1999.
exp lora d os p or seus c onterrâ neos; a ssim, ta is rela ç ões
seriam a base não só para a solidariedade e a ajuda mútua,
26
TILLY, 1990. mas também para a divisão e o c onflito étnic o.26
27
CASTRO, 1989. Mary Garc ia Castro,27 ao analisar a literatura sobre
mulheres latino-americ anas e c aribenhas, ressaltou que os
estud os d e red es d e p a rentesc o d emonstra m c omo a s
mulheres são hábeis na c riaç ão de redes de apoio mútuo
que orientam a aloc aç ão dos migrantes e sua integraç ão
no merc a d o d e tra b a lho. A exp eriênc ia d e mulheres
d e sta c a -se nã o a p e na s p o rq ue vive m e xp e riê nc ia s
migratórias de forma própria, mas também porque são
influentes agentes no estímulo a outras migraç ões.
28
PESSAR, 1999. É nesse sentido que Patric ia Pessar,28 ao c otejar os
vários estudos que têm c omo foc o as redes soc iais, c ritic a
o fato de os autores não perc eberem que o ac esso dos
indivíduos às redes soc iais, e as troc as que nelas oc orrem,
são direitos e responsabilidades informados pelo gênero e
pelas normas de parentesc o.
No c a so d a s m ulhe re s m e xic a na s, Pie rre te
29
HONDAGNEU-SOTELO, 1994. Hondagneu-Sotelo 29 evidenc iou c omo as redes das quais
estas dispõem para migrar são diferentes das redes c om
as quais c ontam os homens, uma vez que elas tentam
esc apar da vigilânc ia e do c ontrole c arac terístic os das
re d e s fa m ilia re s tra d ic io na is. Ta m b é m a p o nta nd o
30
ZHOU e LOGAN, 1989. d iferenç a s no uso d a s red es, Min Zhou e John Log a n30
demonstram que as mulheres chinesas, por sua vez, quando
trabalham para seus c onterrâneos, rec ebem menos do que
os homens em funç ão da supremac ia masc ulina na c ultura
c hinesa.
Assim c omo os/as migrantes mexic anos/as, c hineses/
as, salvadorenhos/as ou de outros grupos étnic os, os/as
emigrantes brasileiros/as nos Estados Unidos farão uso das
red es d e a c ord o c om a s norma s d e p a rentesc o e d e
gênero estabelec idas em c ada grupo. Para c ompreender
c omo a s red es soc ia is c onfig ura m-se, a rtic ula m-se e
modific am-se perpassadas pelos atributos de gênero e
parentesc o, apresento os dados da pesquisa de c ampo
realizada na c idade de origem Cric iúma (SC) e nas c idades
de destino na região de Boston nos Estados Unidos.

“Ritorna nd o a terra d ei noni” ou p a rrtind


tind o
para “ fazer a Améric a?
a?”” Os novos emigran-
tes c ric iumenses
No fina l d o sé c ulo XIX, a re g iã o q ue ho je
c ompreende a c idade de Cric iúma, loc alizada no sul do

Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 745-772, setembro-dezembro/2007 753


GLÁUCIA DE OLIVEIRA ASSIS

estado de Santa Catarina e distante de Florianópolis 190


Km (via BR 101), tornou-se loc al de enc ontro de diferentes
etnias de imigrantes que ali se instalaram c omo aspiraç ão
do governo ao projeto nac ional de c olonizaç ão das terras
do interior c om mão-de-obra européia e não mais esc rava
e ao branqueamento da populaç ão do país.
A c idade de Cric iúma, ao longo destes 120 anos,
foi rec onstruindo os signific ados para os imigrantes e a
migraç ão. No entanto, é a partir de meados dos anos 1980
que se intensific a o movimento de revalorizaç ão das várias
etnias que formam a c idade, partic ularmente da etnia
italiana. Nas décadas de 1980 e 1990, através de convênios
c om a lg uma s reg iões d a Itá lia , os d esc end entes d os
im ig ra nte s re a liza m um m o vim e nto d e b usc a p e la
c idadania européia e, por isso, vários deles partem para a
Itá lia a fim d e reenc ontra r seus p a rentes, ta l c omo os
italianos vêm c onhec er “um pedac inho” da Itália no Brasil.
A dupla c idadania abre o merc ado de trabalho para os
desc endentes dos imigrantes na c omunidade européia.
Esse “ re to rno ” à te rra d o s no no s e no na s p o d e se r
c onsiderado o iníc io do movimento migratório de Cric iúma.
Os d e sc e nd e nte s m ig ra va m p a ra tra b a lha r
temporariamente em c idades italianas e inic iaram assim o
31
O trabalho de Adiles SAVOLDI, c aminho inverso,31 já que os desc endentes c ric iumenses
1999, faz uma análise interessan- esta ria m volta nd o p a ra a terra d e seus b isa vôs.32 Esses
te sobre esse proc esso de migra-
tra b a lha d o re s te mp o rá rio s sã o re c o nhe c id o s p e lo s
ção de “retorno” às origens itailia-
nas. c onsulados italianos e, pelo fato de possuírem o passaporte
32
SAVOLDI, 1999. italiano, podem trabalhar legalmente na Itália ou em outros
países europeus. Nesse enc ontro de c ulturas, os emigrantes
temporários surpreendem-se quando c hegam à Itália e são
rec onhec id os c omo b ra sileiros/estra ng eiros. Por isso, os
c ric iumenses, quando c hegaram à Itália para trabalhar e
perc eberam “c erto prec onc eito”, desc obrem que afinal
não estavam voltando para a terra de seus avós, e sim
c hegando c omo trabalhadores migrantes.
A partir dos anos 1990, o fluxo diversific a-se, e os
c ric iumenses passaram a utilizar a dupla c idadania para
emigrar para os Estados Unidos. Entretanto, a emigraç ão
para esse país tem c arac terístic as distintas, uma vez que,
diferentemente da migração para a Itália, os migrantes não
partem para os Estados Unidos c om uma doc umentaç ão
que lhes permita trabalhar, tornando-se, assim, imigrantes
indoc umentados no país de destino.
O duplo direc ionamento de emigraç ão instigou-me
a p ensa r na s rep resenta ç ões c onstruíd a s em torno d o
desejo de ir para os Estados Unidos ou para a Itália. Ao
longo da pesquisa, c onstatei que o projeto de emigrar
envolvia dois imaginários: um primeiro estaria ligado ao
passado, c om os emigrantes tentando refazer a trajetória

754 Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 745-772, setembro-dezembro/2007


MULHERES MIGRANTES NO PASSADO E NO PRESENTE

de seus tataravôs voltando para a Itália, perc orrendo o


c aminho inverso; um segundo estaria ligado ao presente e
ao sonho de milhares de brasileiros que partem para os
Estados Unidos, desde meados dos anos 1980, para “ fazer
a Améric a ”. Na c id a d e, esses d ois ima g iná rios estã o
p resentes e c ontrib uem p a ra c onstruir um ima g iná rio
positivo para os novos emigrantes c ric iumenses.
O c a minho q ue g ra nd e p a rte d o s mig ra nte s,
portanto, não é de “retornar” à terra dos seus, mas “fazer a
Améric a ”, mob iliza nd o, muita s vezes, a s lemb ra nç a s e
memórias dos imigrantes que vieram para o Brasil na virada
33
Como se trata de uma migra- d o sé c ulo XIX. Co mo re la ta Anita Ba ily 33 (47 a no s,
ç ão indoc umentada, para pre- d esc end ente d e imig ra ntes ita lia nos, q ua tro a nos nos
servar a identidade das entrevis-
Estados Unidos),
tadas, todos os nomes que apare-
c em nas entrevistas são fic tíc ios. A maioria dos imigrantes que estão aqui tem alguma
c oisa disso c om eles [nonos] [...] Hoje nós estamos aqui
[Estados Unidos] c omo imigrantes da mesma forma
quando eles estavam lá [Brasil]. É diferente, porque
aqui é um país de Primeiro Mundo, nós viemos para a
c idade, eles foram para o mato, para a c olônia. Nós
deixamos o Terc eiro Mundo para vir para o Primeiro.
Mas isso não muda o fato de sermos imigrantes.

O rela to d e Anita e d e outros d esc end entes nos


Esta d os Unid os revela m c omo o p a ssa d o mig ra tório é
ac ionado pelos migrantes, o que demonstra uma c onexão
c om o presente. Embora atribuam um signific ado ao fato
d e mig ra rem p a ra o c ha ma d o “Primeiro Mund o”, fic a
e vid e nte no re la to a p e rc e p ç ã o d a c o nd iç ã o d e
trabalhador migrante. A dupla c idadania torna-se uma
estratégia de migraç ão para os c ric iumeneses e ressalta a
lig a ç ã o c om os imig ra ntes d o p a ssa d o, va loriza nd o a
migraç ão no presente c omo um rec urso, uma possibilidade
de batalhar por uma vida melhor. É assim que Anita, depois
da separaç ão de um c asamento de mais de 20 anos,
dec idiu migrar para se enc ontrar c om a filha que já se
enc ontrava nos Estados Unidos.
Anita dec idiu emigrar no final da déc ada de 1990,
momento em q ue há um c resc imento sig nific a tivo d a
migraç ão de c ric iumenses para a região de Boston. Antes
dela, porém, outros homens e mulheres começaram a trilhar
o c a m inho rum o a o s Esta d o s Unid o s o u à Euro p a ,
c onstruind o em Cric iúma , a ssim c omo em Governa d or
Valadares na déc ada de 1980, uma nova c onexão.

Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 745-772, setembro-dezembro/2007 755


GLÁUCIA DE OLIVEIRA ASSIS

A c o ne xã o e ntre Cric iúma e Bo sto n: a


c onfiguraç ão das redes soc iais
Os c ric iumenses p a rtira m rumo à Europ a e a os
Estados Unidos em meados da déc ada de 1970, mas é no
iníc io dos anos 1990 que esse fluxo torna-se signific ativo
tanto para aqueles que partiram quanto para aqueles que
fic a ra m na c id a d e, c ria nd o-se, a ssim, um c a mp o d e
relaç ões transnac ionais que c omeç a a ser observado no
c otidiano da c idade. É interessante observar que homens
e mulhe re s e mig ra m e m mome ntos d ife re nte s e e m
p ro p o rç õ e s d ife re nte s, o q ue re ve la um p ro c e sso
atravessado por atributos de gênero e parentesc o, c omo
observaremos a seguir.
Os dados demonstram que, quando se analisa a
distribuiç ão por sexo, há um predomínio na migraç ão de
homens, q ue c onstituem 63% d o tota l d e mig ra ntes
c ric iumenses, enq ua nto a s mulheres rep resenta m 37%
desse total. No entanto, embora a maioria dos migrantes
se ja c o nstituíd a p o r ho m e ns, a s m ulhe re s e stã o
c onc entra d a s na fa ixa d e 20 a 29 a nos, enq ua nto os
homens c onc entram-se na faixa dos 20 a 34 anos, o que
sugere que a média de idade dos migrantes homens é
maior que das migrantes mulheres. Essa distribuiç ão por
idade também é importante para pensar as posiç ões de
ambos ao longo do proc esso migratório, uma vez que as
mulheres mig ra m ma is exp ressiva mente na seg und a
metade dos anos 1990.
Nesse sentid o, o movimento d e emig ra ntes d e
Cric iúma ma nté m um p a d rã o se me lha nte a o utro s
movimentos mig ra tórios interna c iona is, nos q ua is há
predomínio dos homens no iníc io do movimento. Foi na
virada dos anos 1990 que o movimento esporádic o de
c ric iumenses passou a apresentar um fluxo mais c ontínuo.
O a umento d o número d e p rimeira via g em a o exterior
oc orre nos anos de 1993 (c om 4,9%) e 1994 (c om 6,0%) do
total das viagens, c omo podemos observar no Gráfic o 1.

756 Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 745-772, setembro-dezembro/2007


MULHERES MIGRANTES NO PASSADO E NO PRESENTE

GRÁFICO 1 – ANO DA PRIMEIRA VIAGEM SEGUNDO O SEXO – CRICIÚMA, 2001

Fonte: Pesquisa de c ampo


Casos válidos: 546
Total de c asos: 546
Esses dados foram os primeiros indic ativos de que a
migraç ão esporádic a estava tornando-se um movimento
c ontínuo. Ao a na lisa rmos o p eríod o d e 1998 a 2000,
perc ebemos que 48,4% do total de migrantes realizaram
sua p rime ira via g e m ne ssa é p o c a , c o m a se g uinte
distribuiç ão: 12,5% em 1998, 17,2% em 1999 e 18,7% em
2000. Esse p eríod o c orresp ond e exa ta mente a o q ue é
c onhec ido na c idade c omo a “c rise do setor c arbonífero”.
Essa c rise signific ou o aumento de desemprego na c idade,
se nd o a p o nta d a p e lo s p ró p rio s e m ig ra nte s e p o r
autoridades loc ais c omo um dos fatores que c oloc am a
34
FUSCO, 2002. migraç ão internac ional c omo uma alternativa para seus
35
SALES, 1999a , d e no m ino u moradores.
“triênio da desilusão” o período - Assim , d ife re nte m e nte d o s e m ig ra nte s d e
entre os anos de 1987 e 1989 -
q ua nd o milha res d e b ra sileiros
Governador Valadares, que realizaram 40,8% das primeiras
deixaram o país dec epc ionados viagens no período de 1987 a 1989,34 poderíamos dizer
tanto c om a polític a ec onômic a q ue o “triênio d a d esilusã o”, 35 na reg iã o d e Cric iúma ,
quanto c om a situaç ão polític a.

Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 745-772, setembro-dezembro/2007 757


GLÁUCIA DE OLIVEIRA ASSIS

oc orreu dez anos depois. Por outro lado, podemos também


atribuir esse c resc imento ao amadurec imento das redes
soc ia is, na s q ua is homens e mulheres mig ra ntes estã o
inseridos em diferentes c ontextos.
Para a maioria dos c ric iumenses, o país de destino
na primeira viagem são os Estados Unidos, para onde se
d irig em 59,9% d os homens e 58,9% d a s mulheres q ue
b usc a m o so nho d e “ fa ze r a Am é ric a ” , c o nfo rm e
observamos na Gráfic o 2. Para a Itália, migram 11,3% do
total de homens e 18,3% do total de mulheres, seguindo-
se Portugal, c om 11,9% para os homens e 9,4% para as
mulheres.

GRÁFICO 2 – PAÍS DE DESTINO NA PRIMEIRA VIAGEM SEGUNDO O SEXO – CRICIÚMA, 2001

Fonte: Pesquisa de c ampo


Casos válidos: 546
Total de c asos: 546

758 Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 745-772, setembro-dezembro/2007


MULHERES MIGRANTES NO PASSADO E NO PRESENTE

Co m re la ç ã o à Euro p a , a s mulhe re s mig ra m


proporc ionalmente em maior número para a Itália do que
os homens - são 18,1% do total de mulheres c ontra 11,7%
do total de homens. Tal diferenç a pode ser explic ada pelo
tip o d e tra b a lho oferec id o esp ec ific a mente p a ra a s
mulheres descendentes de italianos, muito procuradas para
serviç os de c uidado de idosos e de pessoas doentes ou
para atuarem c omo babás. Atuando c omo c uidadoras,
essas mulheres se inserem no que tem sido denominado
rede internac ional de c uidados. As mulheres brasileiras são
c onsid era d a s ma is c a rinhosa s e a tenc iosa s q ue outra s
mig ra nte s e , no c a so d a s q ue tê m a va nta g e m d a
a sc end ênc ia ita lia na , isso d e c erta forma a b re ma is o
merc ado de trabalho, não apenas para os serviç os de
c uid a d os e serviç os d oméstic os, ma s ta mb ém p a ra a
temporada em sorveterias no verão. É o que demonstra o
36
Jorna l d a Ma nhã, Cric iúma , a núnc io p ub lic a d o no Jorna l d a Ma nhã , 36 intitula d o
20.4.2000, Geral. “Chanc es de trabalho para desc endentes na Europa”, que
solic ita mulheres de 18 a 28 anos para trabalhar em uma
sorveteria italiana na Alemanha.
O a núnc io termina va sa lienta nd o q ue “é inútil
telefonar quem não possuir passaporte italiano legalizado”.
Atra vé s d e le , p o d e mo s p e rc e b e r d ua s imp o rta nte s
37
c a ra c te rístic a s d e sse s no vo s fluxo s m ig ra tó rio s: a
Os “ c o io te s” sã o e m g e ra l
mexic anos que c obram um bom possibilidade da migraç ão legalizada para a Itália e uma
d inheiro p a ra leva r imig ra ntes seletividade por sexo e idade, uma vez que o anúnc io
c la nd e stina me nte d o Mé xic o dirige-se espec ific amente às mulheres entre 18 e 28 anos.
para os Estados Unidos, através No entanto, mesmo c om o merc ado de trabalho disponível
da fronteira. Durante o trabalho
d e c a mp o em Cric iúma e na
para as mulheres, a grande maioria delas ac aba dirigindo-
reg iã o d e Boston, ouvi vá rios se para os Estados Unidos, assim c omo os homens.
relatos de imigrantes sobre a peri- Outro dado interessante sobre a primeira viagem é
gosa travessia, incluindo a passa- que ela pode indic ar algumas estratégias para ir para os
gem de mulheres e c rianç as. O Estados Unidos. Quando c onsideramos aqueles que fizeram
rela to ma is surp reend ente q ue
o uvi fo i d e um ta xista , e m a primeira viagem para o Méxic o, observamos que são
Cric iúma, c ujo genro foi para os 6,4% do total dos homens e apenas 1,0% do total das
Esta d os Unid os p elo Méxic o. O mulheres. “Passar pelo Méxic o” é o c aminho esc olhido por
g e nro a rrum o u tra b a lho e aqueles que não c onseguem o visto de turista para entrar
dinheiro para voltar ao Brasil e
busc ar a mulher e os dois filhos
nos Estados Unidos e rec orrem, por isso, à estratégia de
pequenos, e “de quebra” levou atravessar a fronteira pagando a um “c oiote” 37 para passar.
também o c unhado que resolveu Essa é uma empreitada que envolve muito risc o, motivo
ir junto. Os c inc o atravessaram a pelo qual os migrantes só rec orrem a ela em último c aso,
fronteira do México, numa segun- pois, além de c ara, é muito perigosa. A passagem pela
da viagem. Segundo dados da
Embaixada Americ ana, o índic e fronteira do Méxic o é um evento que marc a as trajetórias
de brasileiros flagrados tentando d e ho m e ns e m ulhe re s m ig ra nte s. No e nta nto , é
p a ssa r ile g a lm e nte p a ra o s considerada uma travessia mais arriscada para as mulheres,
Esta d os Unid os c resc eu 787%, uma vez que, além dos risc os inerentes da travessia no
passando de 350 prisões em 1992
p a ra 3.105 p risõ e s e m 2001
deserto – o c alor, as c obras, a políc ia da fronteira –, as
(Folha de São Paulo, 24.3.2002, mulheres enfrentam o risc o de rapto e estupro por parte
p. 8-9, Caderno Cotidiano). dos c oiotes, sendo por isso uma travessia menos utilizada

Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 745-772, setembro-dezembro/2007 759


GLÁUCIA DE OLIVEIRA ASSIS

por mulheres. No c aso dos homens, em geral, o relato da


travessia enfatiza a c oragem e a aventura, e as mulheres,
quando c onseguem, fazem questão de enfatizar que sua
travessia foi segura e que não sofreram nada, que foram
respeitadas pelos c oiotes, ou seja, “c orreu tudo direitinho”,
c omo d izem. A p rimeira via g em p elo Méxic o revela ,
portanto, o c usto do sonho americ ano, pois milhares de
brasileiros/as foram presos na fronteira nos últimos anos e
deportados de volta ao Brasil e outros/as morreram tentando
a travessia.
Ta l seletivid a d e d o lug a r d e d estino p od e ser
explic ada não apenas pelo diferenc ial de renda que o
dólar oferec e aos emigrantes, mas também por enc ontra-
re m ma iores op ortunid a d es d e tra b a lho e mora d ia ,
sugerindo que as redes soc iais estão mais c onsolidadas
no s Esta d o s Unid o s, o q ue a te nua ria o s risc o s d o
emp reend imento mig ra tório. Além d isso, send o g ra nd e
p a rte d o m o vim e nto d e tra b a lha d o re s m ig ra nte s
38
O te rmo “ ind o c ume nta d o ” indoc umentados,38 eles partem para regiões onde possam
re fe re -se a o fa to d e q ue o s c onseguir trabalhar c om mais fac ilidade. Por isso, embora
migrantes não possuem os doc u-
mentos q ue os a utoriza ria m a
uma p a rc ela d os emig ra ntes seja d esc end ente d os
trabalhar em um país estrangeiro. imig ra ntes ita lia nos e tenha a p a rentemente ma iores
Na litera tura sob re imig ra ç ã o, oportunidades de trabalhar na Europa, os c ric iumenses
tem-se utilizado esse termo, consi- esc olhem migrar para os Estados Unidos. Isso revela que a
derando que os imigrantes não
esc olha do país de destino não tem relaç ão direta c om a
são ilegais; apenas não dispõem
dos documentos que regularizam origem étnic a dos migrantes, já que 44% dos entrevistados
seu status migratório. Os grupos dec lararam ter origem italiana.
de direitos c ivis que atuam junto Portanto, em vez de perc orrerem o c aminho inverso,
aos imigrantes também o empre- aqueles que se dirigem aos Estados Unidos retomam o sonho
g a m p or c onsid era rem q ue é
menos disc riminatório, por defen-
de seus nonos de “fazer a Améric a”, c ontinuando o projeto
derem politic amente essa deno- de seus antepassados. Um outro aspec to destac ado pelos
minaç ão sob o slogan “nenhum migrantes é que o fato de muitos deles possuírem a pele e
se r hum a no é ile g a l” e p o r os olhos c laros e se c onsiderarem mais branc os faz c om
c onsideraram que os migrantes
q ue nã o se “p a reç a m b ra sileiros”, d e a c ord o c om o
tê m o d ire ito d e c irc ula r no
mundo globalizado, assim c omo estereótipo que os norte-americ anos têm do país (nesse
c irc ula m turista s, ho me ns d e c aso, referem-se aos estereótipos de brasileiros mulatos e
negóc ios e merc adorias. mestiç os), p od end o passar p or a meric a nos, a o menos
enquanto não prec isam falar a língua nativa (o inglês). Essa
a p a rê nc ia é c o nsid e ra d a , p o r a lg uns m ig ra nte s
c ric iumenses, uma vantagem étnic a em relaç ão àqueles
que vêm de outras regiões do Brasil, c omo os mineiros, por
exemp lo, torna nd o-se uma tenta tiva d e neg oc ia r sua
identidade e esc apar do prec onc eito e da disc riminaç ão.

As redes de parentesc o
o,, amizade e origem
c omum dos migrantes c ric iumenses
Quando partem para “fazer a Améric a”, a maioria
d os mig ra ntes c ric iumenses via ja a c omp a nha d a d e

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MULHERES MIGRANTES NO PASSADO E NO PRESENTE

parentes, o que representa 58,5% do total dos imigrantes


c ontra 41,5% daqueles que dec lararam viajar sozinhos. No
entanto, analisando os dados segundo o sexo, veremos
que os homens viajam mais sozinhos (42,7%) do que as
mulheres (39,3%). Isso signific a que, em 60,7% dos c asos,
a s mulheres via ja ra m c om p a rentes c ontra 57,3% d os
homens.
Como outros migrantes internac ionais, os c ric iumen-
ses p a rtem p a ra os Esta d os Unid os a p oia d os em red es
soc iais. A ajuda pode oc orrer ainda no país de origem,
por meio de empréstimos dos familiares, ou c om as avós e
tias assumindo o enc argo de c uidar dos filhos que perma-
nec eram no Brasil, ou já no país de destino para c onseguir
o primeiro emprego e arranjar um lugar para fic ar nos
primeiros tempos. Além de c ontar c om a ajuda de amigos,
parentes e c onterrâneos, os c ric iumenses migram para
lugares onde já exista um fluxo estabelec ido de brasileiros,
c omo a região de Boston.
Os rela tos a seg uir revela m c omo os mig ra ntes
c ric iumenses fora m c onstruind o p rojetos ec onômic os
familiares e afetivos de “fazer a Améric a” e a importânc ia
das redes soc iais na realizaç ão desses projetos. Evidenc iam
também que homens e mulheres situam-se muitas vezes
d istintiva mente em rela ç ã o a o p rojeto mig ra tório. Ap ós
c hegarem ao destino, uma das dific uldades enfrentadas
pelos migrantes é c onseguir moradia e arranjar emprego.
Os primeiros tempos são difíc eis e ter ac esso ao apoio que
as redes soc iais podem ac ionar é fundamental para os
rec ém-c heg a d os. Assim, é muito c omum ouvir entre os
imigrantes que “deram um help” ou que “rec eberam um
help” nos primeiros tempos.
É o c aso de Letíc ia (30 anos), que emigrou em 1995,
num momento d e rup tura em sua vid a . Na ép oc a d a
migraç ão, Letíc ia era viúva e estava c om o filho pequeno
(10 anos) para c riar. O irmão, que já vivia nos Estados Unidos
e sempre a havia c onvidado para emigrar, foi quem a
a c olheu. O d inheiro d a via g em veio d e p a rte d e sua s
ec onomias e parte do empréstimo do pai. Embora o irmão
já a tivesse c onvidado para ir outras vezes, ela só c onseguiu
fa zê-lo q ua nd o p erd eu o ma rid o numa exp eriênc ia
dolorosa – estavam separados há apenas quatro meses
quando ele se suic idou. Assim relata: “queria superar os
traumas, queria mudar de vida e dar estudo para o meu
filho, q ueria fa zer a lg o q ue me d esse org ulho d e mim,
entende?”.
A tra je tó ria d e Le tíc ia re ve la ta m b é m um a
c ombinaç ão dos papéis de gênero c om a posiç ão que
os/as filhos/as oc upam nas relaç ões familiares. Na família
de Letíc ia Cruz, embora o irmão mais velho tenha um papel

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GLÁUCIA DE OLIVEIRA ASSIS

importante em rec eber os irmãos, dando o help aos rec ém-


c hegados, as relaç ões interfamiliares e a migraç ão dos
demais membros oc orreram c om a ajuda de Letíc ia. Ela
partiu do Brasil apenas c om o filho e, ao longo de sete
anos, ajudou de diferentes maneiras os demais membros
de sua família de origem a migrar: sua mãe, sua irmã, seu
irmão, sua c unhada e seus sobrinhos, todos se enc ontram
atualmente nos Estados Unidos. Nesse sentido, atua c omo
uma artic uladora de redes familiares de migraç ão. Letíc ia,
assim c omo outras mulheres imigrantes, se dirigiu para a
fa xina d oméstic a . É uma informa ç ã o seg menta d a p or
g ê ne ro , p o is, e nq ua nto a m a io ria d a s m ulhe re s
39
A faxina doméstic a c onstitui-se entrevista d a s tra b a lha va c omo housec lea nner 39 “, os
num nic ho de merc ado das emi- ho m e ns c o nc e ntra m -se na c o nstruç ã o c ivil e no s
grantes brasileiras nos Estados Uni-
restaurantes. Quando eles trabalham na faxina, é sob o
dos. Segundo Ana Cristina Braga
MARTES, 2000, “ o s imig ra nte s c omando de uma mulher. É interessante observar que as
b ra sileiros a p rop ria ra m-se d o mulheres brasileiras, c onforme observado por Martes, Assis
ra mo d a fa xina d e ma neira a e Fleisc her,40 têm c onstruído um nic ho de trabalho étnic o,
g era r va nta g ens sob re outros atribuindo à faxina brasileira c arac terístic as distintivas em
grupos migrantes”. No entanto,
c onforme ob serva m FLEISHER,
relaç ão às outras mulheres, em geral imigrantes latinas.
2002, e ASSIS, 2004, é interessante Segundo as entrevistadas, as patroas norte-americ anas –
observar que não são os migran- que em geral não sabem c uidar da c asa – c onsideram a
tes brasileiros que “dominam a faxineira brasileira mais limpa, mais rápida, mais caprichosa
faxina”, mas as mulheres migran-
em relaç ão ao trabalho das outras imigrantes. Além disso,
tes que fazem da faxina um “ne-
góc io”. As mulheres que migram ela s semp re leva m uma “ c oisinha ” p a ra a s c ria nç a s
para os Estados Unidos têm na (doc inhos brasileiros) ou fazem um agrado para a patroa,
faxina um trabalho que pode lhes o que faz c om que a faxina brasileira seja rec onhec ida
garantir a realizaç ão do projeto pelas norte-americ anas.
de “fazer a Améric a”.
40
MARTES, 2000; ASSIS, 2004; e
No c aso de Giovane e Celso, ambos solteiros, eles
FLEISCHER, 2002. já partiram para os Estados Unidos sabendo não apenas
para onde iriam, mas também que tipo de serviç o fariam:
entraram no ramo da c onstruç ão c ivil. Giovane demonstra
no seu relato c omo as informaç ões c irc ulam entre os dois
países e que os emigrantes já partem sabendo o melhor
loc al para trabalhar e qual o tipo de trabalho.
Eu pesquisei lá qual era a melhor c oisa para se fazer
aqui. Me disseram que era a pintura, até pintei uma
c a sa d o irmã o d ele [a mig o q ue esta va p resente
durante a realizaç ão da entrevista] no Brasil para mim
ver se levava jeito. Eu me dei bem c om o pinc el. Eu já
vim sabendo que ia trabalhar na pintura. Já sabia que
ia ser duro, mas quando c heguei aqui era mais do
que eu imaginava. Cheguei a trabalhar aqui 105 horas
numa semana. Eu dormia às 3 horas da manhã porque
tinha que fazer as c oisas para mim. Por isso é que eu
digo que aqui ninguém é solidário. Se eu moro c om
um rapaz, sei que ele c hega tarde e vou fazer minha
janta, preparo um pouc o a mais para ele (Giovane,
26 anos, entrevista realizada em 2 de març o de 2002).

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MULHERES MIGRANTES NO PASSADO E NO PRESENTE

O re la to d e Gio va ne e vid e nc ia q ue , me smo


c ontando c om o apoio das redes, a experiênc ia não é
fác il e nem sempre as expec tativas de rec iproc idade são
c orrespondidas, daí a sua queixa de que “aqui ninguém é
solidário”. Embora ele rec lame da falta de solidariedade,
a o mesmo temp o a firma q ue “d á um help” nã o só na
moradia, mas também no emprego. Depois de trabalhar
para brasileiros que o exploraram e para outros que não
p a g a va m d ireito, c om a a jud a d e outros b ra sileiros
estabelec idos há mais tempo nos Estados Unidos, arranjou
um trabalho em que o patrão tratava-o melhor e, desde
então, c omeç ou a levar seus amigos e c onhec idos da
região de Cric iúma, ou c hamar outros brasileiros que havia
c onhec ido nos Estados Unidos. Esse breve relato demonstra
que quem rec ebe um help deve retribuir a ajuda em outro
momento, ou rec ebendo alguém, ou ajudando a arranjar
trabalho, ou dando apoio emoc ional ou financ eiro em
momentos difíc eis.
Essa ajuda é diferenc iada para homens e mulheres;
por exemplo, enquanto as mulheres c ontam mais c om os
parentes, os homens c ontam mais c om os amigos, o que
41
BOTT, 1976. c orrobora c om a análise de Elisabeth Bott.41 No entanto,
matizando um pouc o mais essas informaç ões, perc ebemos
q ue, emb ora p red omine a a jud a d os a mig os p a ra os
homens, os parentes também têm um importante papel
no momento d a c heg a d a e d e a rra nja r o emp reg o.
Quando viajam para arrisc ar a vida no exterior, os homens
estão ac ompanhados de pais, mães e irmãos, c ontando
mais c om seus laç os c onsangüíneos, e as mulheres viajam
a c omp a nha d a s d os esp osos e d o filho, seus la ç os d e
c onjugalidade e depois dos parentes. No c aso de ajuda
p a ra a ho sp e d a g e m, no va me nte e ntre o s ho me ns
predomina a ajuda dos parentes de sangue: os irmãos e
os pais, seguidos de tios e primos. No c aso das mulheres,
há o predomínio dos laç os de c onjugalidade: a maioria
das mulheres migra para se enc ontrar c om seus c ônjuges
e o re sta nte d e la s p a ra se re unir c o m p a re nte s
c onsangüíneos.
Ta is d a d os e vid e nc ia m q ue , q ua nd o mig ra m,
homens e mulheres utilizam-se das redes de parentes e
amigos em diferentes momentos do proc esso migratório e
não fazem isso nec essariamente da mesma forma, o que
sugere que as mulheres estariam mais ligadas aos laç os
42
FUSCO, 2002, p. 75. c onjugais e às redes de parentesc o que os homens. Fusc o 42
c onstata ainda a importânc ia desses laç os de parentesc o
para a migraç ão em Governador Valadares. Em ambos os
c asos, há uma ampliaç ão da rede de parentes que integra
a migraç ão de longa distânc ia em relaç ão ao estudo de

Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 745-772, setembro-dezembro/2007 763


GLÁUCIA DE OLIVEIRA ASSIS

43
MASSEY et al., 1987. Ma ssey et a l.,43 uma vez q ue esses a utores a na lisa ra m
apenas as redes de parentesc o masc ulinas.
Esses relatos demonstram alguns c ontextos nos quais
homens e mulheres migrantes vão tec endo suas redes entre
Cric iúma e os Estados Unidos, c ontribuindo para questionar
44
SOARES, 2003. Weber Soares.44 Ao analisar as abordagens realizadas por
45
SALES, 1999a ; FUSCO, 2002; Sales, Fusc o, e Sasaki e Assis,45 ele afirma que tais estudos
SASAKI e ASSIS, 2000. seriam disc ursos que não passam de uma representaç ão
metafóric a de redes soc iais, pois haveria uma c onfusão
entre redes soc iais, redes pessoais e redes de migraç ão.
Embora seja importante matizar a quais delas nos referimos,
os d a d os a p resenta d os d emonstra m q ue a s red es d e
migraç ão, no c aso brasileiro, são sustentadas princ ipal-
mente por redes de parentesc o, amizade e de origem
c omum, c omo demonstra o relato de Letíc ia e de outras
emig ra ntes entrevista s, c uja s tra jetória s d e mig ra ç ã o
rec onstruí a p a rtir d a s red es tec id a s entre o Bra sil e os
Estados Unidos.
Portanto, ao longo das déc adas de 1980 e 1990,
múltip la s rela ç ões sã o tec id a s entre a s soc ied a d es d e
destino e origem. Assim c omo tantos migrantes internac io-
nais, os migrantes c ric iumenses c onec tam-se entre os dois
lug a res, p ossib ilita nd o a c irc ula ç ã o d e p essoa s, d e
informaç ões de trabalho, de ideologias sobre a migraç ão
entre a soc ied a d e d e emig ra ç ã o e a soc ied a d e d e
imigraç ão – um c ampo de relaç ões transnac ionais.
A c onfiguraç ão dessa rede de relaç ões transnac io-
na liza d a s c oloc a homens e mulheres em c onta to c om
outras experiênc ias de vivênc ias de relaç ões de gênero.
Nesse ponto, é importante destac ar que, embora a maioria
das mulheres entrevistadas trabalhasse no Brasil e não tenha
tido restriç ões ou dific uldades para emigrar, c omo oc orre
c om mulheres mexic anas analisadas, por exemplo, elas se
sentem mais independentes nos Estados Unidos. Através de
sua s red es, ela s p a rec em c onseg uir monta r o p róp rio
neg óc io “ “o neg óc io d a fa xina ” “ e c onq uista r uma
autonomia que inc lui o c arro e a esc olha relativa a c om
quem morar. Isso é o que demonstra a fala de Marc ela, 40
a nos, emig ra nte b ra sileira q ue esta va há 14 a nos nos
Estados Unidos na époc a da entrevista:
Eu ac ho que as mulheres aqui se sentem mais seguras,
ind e p e nd e nte s, a q ui te m tra b a lho , vo c ê te m
oportunidade. Você pode ir a qualquer lugar, qualquer
shop p ing q ue eles nã o q uerem sa b er se voc ê é
housec leaner ou o quê. Por esse motivo, a gente tem
mais liberdade que no Brasil. No Brasil, mulher de 40
anos tem que ser amante, aqui a gente namora c ara
de 20 ou 30 anos, mesmo tendo 40 anos. A gente se
sente livre para ir a qualquer lugar sem prec onc eito.

764 Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 745-772, setembro-dezembro/2007


MULHERES MIGRANTES NO PASSADO E NO PRESENTE

As mulheres brasileiras aqui fazem suc esso. Como a


gente está c om a bola toda, algumas extrapolam, a
g ente va i p a ra o c lub e d a nç a r e solta a fra ng a
(Entrevista realizada em janeiro de 2002).

O relato de Marc ela é muito interessante, pois revela


uma representaç ão das feminilidades brasileiras que ouvi
outra s vezes d e mulheres imig ra ntes. Ao d izer q ue a s
mulheres brasileiras fazem suc esso, referia-se ao fato de
serem c onsid era d a s ma is feminina s e c a rinhosa s em
c omparaç ão c om as mulheres americ anas.
Ao long o d o tra b a lho d e c a mp o, e a tra vés d os
relatos dos imigrantes, pude observar diferentes represen-
taç ões sobre os relac ionamentos afetivos que c ruzavam
gênero, nac ionalidade e raç a. Dentre as migrantes que
entrevistei, d a s mulheres q ue mig ra ra m solteira s, d ua s
casaram-se com americanos e uma delas estava namoran-
do um americ ano há um ano e meio (em 2003, eles se
c asaram).
Os homens brasileiros, por sua vez, relatavam não
g osta r d a s norte-a meric a na s, p orq ue a s c onsid era m
“menos femininas”. Descrevem sua feminilidade de maneira
neg a tiva , ressa lta nd o q ue nã o se vestia m d ireito, q ue
mantinham relacionamentos sexuais com eles e depois nem
ligavam de volta, ou seja, que queriam apenas sexo. Por
outro lado, muitas vezes ac usavam as mulheres brasileiras
d e se c a sa rem c om norte-a meric a nos a p ena s p a ra
c onseg uir o g reen c a rd . Qua nd o enc ontrei b ra sileiro
c a sa d o c om estra ng eira s, em g era l, era m imig ra ntes
p ortug uesa s ou la tina s, ma s nã o fiz um leva nta mento
sistemátic o, observando apenas os grupos c om os quais
me relac ionei ao longo do trabalho de c ampo.
Ao realizar a pesquisa de c ampo em Governador
Valadares (1993), entrevistei um senhor c hamado Antonio
Lopes, que na époc a tinha 45 anos e que vivia, desde o
fina l d a d éc a d a d e 1960, nos Esta d os Unid os. Antonio
relatou-me emoc ionado que havia se c asado c om uma
americ ana, mas que o c asamento não havia dado c erto
devido a um “c hoque c ultural”: ele queria tratá-la c om
nomes e apelidos utilizados no Brasil, c hamá-la de “minha
honey”, “meu doc inho de c oc o”, e ela dizia que não era
objeto sexual. Esse exemplo demonstra c omo os homens
sentem-se c onfronta d os c om sua ma sc ulinid a d e, sua s
estra tég ia s d e sed uç ã o, sua p osiç ã o d e c hefe e d e
provedor, sua virilidade “ atributos muito valorizados entre
os homens brasileiros.
De outros homens solteiros, ouvi queixas semelhantes
quando diziam que as migrantes brasileiras, nos Estados
Unid os, esta va m muito “p ra frente”, a c ha va m q ue nã o

Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 745-772, setembro-dezembro/2007 765


GLÁUCIA DE OLIVEIRA ASSIS

precisavam deles e só queriam saber dos norte-americanos,


enquanto eles não gostavam das norte-americ anas por
c onsiderá-las pouc o femininas e sensuais, por serem pouc o
valorizados por elas devido à associação com outros latinos,
c om um estereótipo de homens mais mac histas.
Assim, há uma representaç ão das mulheres brasilei-
ras que mesc la os atributos de boa esposa e mãe c om a
imagem de sensualidade da mulher brasileira em oposiç ão
à frieza norte-americ ana. Essa representaç ão, que c ruza
g ê ne ro e o rig e m na c io na l, e stá p re se nte e m uma
assoc iaç ão que torna as mulheres brasileiras um ‘produto
de exportaç ão’. Dito de outra forma, ela justapõe distinç ões
d e g ênero, ra ç a e na c iona lid a d e q ue c la ssific a m a s
mulheres b ra sileira s c omo extrema mente feminina s e
sensuais para vender: desde biquínis até o c arnaval, enfim,
46
Esse imaginário que ressalta a a sensualidade c omo um ‘produto nac ional’.46
sensualidade da mulher brasileira No entanto, o que é sugestivo é que essas mulheres,
tem sido analisado por Adriana
em sua grande maioria branc as e oriundas de c amadas
PISCITELLI, 2001, no c a so d o
turismo sexua l em Forta leza . A médias, que migram para os Estados Unidos em busc a de
a utora d isc ute a sexua liza ç ã o autonomia e independência, conforme ressaltaram em seus
q ue o s turista s e stra ng e iro s, relatos, utilizam-se de atributos de gênero c onsiderados
basic amente os europeus, fazem c onservadores para os padrões norte-americ anos para
d o Bra sil. Nesse ima g iná rio, a s
relações entre as nacionalidades
realizarem seu desejo de permanênc ia no país. Por isso,
sã o ma rc a d a s p or g ênero. As c ombinam uma valorizaç ão da feminilidade brasileira c om
na ç õ e s e uro p é ia s a p a re c e m um atributo que, às vezes, é utilizado no Brasil para definir
ma sc uliniza d a s, ting id a s p o r as mulheres que “vendem o c orpo” – a sensualidade. Ao
ra c iona lid a d e, ob jetivid a d e e
projetarem uma imagem de sensuais, trazem para o espaço
“frieza” que se opõem à c alidez
e à abertura do Brasil, habitado doméstic o, além da representaç ão de boa esposa e mãe,
por um povo pobre, rec eptivo e também esse atributo. Essas são observaç ões qualitativas,
“c arinhoso”. É interessante obser- porém evidenc iam c omo as mulheres negoc iam c om esses
va r q ue essa s rep resenta ç ões atributos para se inserirem no merc ado matrimonial norte-
c oinc idem c om as que os ameri-
c anos, pelo menos aqueles c om
americ ano c om uma vantagem, c omo vimos nos relatos
os q ua is tive c onta to, têm d os dos homens brasileiros, que eles não desfrutam.
brasileiros e, particularmente, das Casar-se c om um norte-americ ano, ou c om outro
brasileiras. Entretanto, diferente- imig ra nte q ue tenha sua situa ç ã o reg ula riza d a , p od e
mente das jovens analisadas em
signific ar ainda uma maneira de tornar-se legal nos Estados
Fo rta le za p o r Pisc ite lli, e ssa s
mulheres não estão no circuito do Unidos. Como a grande parte das mulheres trabalha no
turismo sexual; são trabalhadoras serviç o doméstic o, torna-se mais difíc il a sua legalizaç ão,
imig ra ntes q ue vêem no c a sa - o que é um fato c omum entre as imigrantes c ric iumenses e
mento uma d a s op ortunid a d es as demais mulheres latinas analisadas por Hondageneu-
de legalizaç ão.
So te lo e Ha g a n, p o is é um o tra b a lho d e d ifíc il
47
HONDAGENEU-SOTELO, 1994; c omprovaç ão.47 A maior parte das entrevistadas estava
HAGAN, 1998. ind oc umenta d a e a q uela s q ue se leg a liza ra m nã o o
c onseguiram através do trabalho, mas por intermédio do
c asamento c om um norte-americ ano ou c om brasileiro
ou outro estrangeiro legalizado.
No q ue se refere à s rela ç ões a fetivo-c onjug a is,
quando c hegam ao país de destino, os c asais vivenc iam
um outro padrão de relações de gênero nos Estados Unidos:

766 Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 745-772, setembro-dezembro/2007


MULHERES MIGRANTES NO PASSADO E NO PRESENTE

relaç ões menos hierárquic as e maior divisão de tarefas são


a sp ec tos destac ados pelas mulheres c omo c onquistas.
Porém, essa maior divisão de tarefas, dos investimentos e
dos c uidados c om os filhos não é realizada sem c onflitos
ou dific uldades, e os homens sentem que estão perdendo
a autoridade. José Venturini (50 anos), pai da jovem Lorena,
que emigrou c om toda a família, afirmou que sentia estar
p erd end o sua a utorid a d e d ia nte d os filhos. Em sua s
palavras: “Eu estava c om a família e tinha dias em que eu
ia para debaixo do c huveiro e fic ava c horando. Dá uma
angústia não poder sair, não ter tempo”. Sobretudo no
depoimento dos c asados, pude observar esse sentimento
de perda de espaç o, de autoridade, o que susc itou entre
esses homens um ma ior d esejo d e retorna r a o Bra sil.
Contudo, para aqueles que c onseguem estabelec er-se,
c omo é o c aso de Giovane, esse projeto pode ser adiado.

Consideraç ões finais


Nos estud os c lá ssic os d e mig ra ç ã o, a s mulheres
era m d esc rita s c omo a q uela s q ue a c omp a nha va m ou
c omo aquelas que esperavam por seus maridos ou filhos,
sem evidenciar, por exemplo, a importância de seus ganhos
para a renda familiar. Portanto, as análises muitas vezes
não só enc obriam a partic ipaç ão das mulheres, c omo
ta mb é m nã o p e rc e b ia m q ue a mig ra ç ã o d e long a
distânc ia oc orre artic ulada em uma c omplexa rede de
relaç ões soc iais nas quais as mulheres têm uma importante
partic ipaç ão.
Dessa forma , emb ora d esd e os a nos 1930 a s
mulheres predominem na migraç ão legal para os Estados
Unidos, tal dado não foi observado pelos estudiosos e, como
c onseqüênc ia, aspec tos importantes da migraç ão e do
estabelec imento dos imigrantes, bem c omo as diferenç as
de c lasse, gênero e etnia entre os mesmos, não foram
p erc eb id a s. Log o, a s ra zões e a s c a ra c terístic a s d a
m o b ilid a d e d ife re nc ia d a p o r g ê ne ro nã o e ra m
a d eq ua d a mente enfoc a d a s: sujeitos mig ra ntes era m
assumidos c omo sendo de gênero masc ulino e não se
davam visibilidade à partic ipaç ão feminina. As imagens
c ristalizadas de mulheres imigrantes c omo aquelas que
e sp e ra m o u c o mo d e p e nd e nte s p a ssiva s tê m sid o
q uestiona d a s d esd e mea d os d a d éc a d a d e 1970 p or
estudiosas de gênero e feministas, instigando os estudos
mig ra tórios a la nç a r um outro olha r p a ra o p roc esso
migratório e questionando seus pressupostos teóric os.
Este trabalho demonstrou que os estudos de gênero
podem trazer c ontribuiç ões importantes para c ompreender
os movimentos migratórios c ontemporâneos.

Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 745-772, setembro-dezembro/2007 767


GLÁUCIA DE OLIVEIRA ASSIS

No passado e no presente, embora as mulheres, em


sua maioria, migrem em grupos familiares, elas também
migram sozinhas, em busc a de autonomia, para fugir de
pouc as oportunidades ou de disc riminaç ões nos loc ais de
origem.
Além disso, ao se inc orporar a c ategoria “gênero”
na análise dos fluxos migratórios, a migraç ão deixou de ser
vista apenas c omo uma esc olha rac ional de indivíduos
sozinhos e emerge envolvida em redes de relaç ões soc iais,
c omo uma estratégia de grupos familiares, de amigos ou
p essoa s d a mesma c omunid a d e. Nesse c ontexto, a s
mulheres e os homens, em diferentes momentos, aparec em
como os elos que ligam “aqui e lá“ redes sociais que ajudam
nos primeiros momentos na soc iedade de emigraç ão e na
manutenç ão dos laç os c om o lugar de origem.
Essas redes soc iais são informadas pelas normas do
parentesco e de gênero. Assim, as mulheres utilizam-se muito
ma is d a a jud a fornec id a p or p a rentes e sã o ela s q ue
artic ulam as redes entre os demais domic ílios. Os homens
também se apóiam nessas redes, mas os dados indic am
que c ontam mais c om a ajuda dos amigos para arranjar
trabalho e moradia do que com os parentes. Ao longo desse
proc esso, há uma redefiniç ão das relaç ões de gênero: as
mulheres, em geral, vivenc iam uma maior autonomia e
empoderamento na sociedade de emigração, não apenas
porque têm melhores ganhos, a despeito de um trabalho
d e b a ixo sta tus, ma s ta mb é m p o rq ue a trib uto s d a
fe minilid a d e b ra sile ira sã o va lo riza d o s no me rc a d o
matrimonial norte-americ ano, o que abre a possibilidade
d e re la c io na m e nto s a fe tivo s e , a tra vé s d e le s, d a
legalizaç ão “ mais difíc il para as mulheres que trabalham
no serviç o doméstic o. Desse modo, as mulheres negoc iam
os atributos da brasilidade e os mobilizam para se afirmarem
positivamente nos Estados Unidos. Os homens, por sua vez,
sentem mais a perda de status, pois prec isam dividir sua
autoridade, negoc iá-la, e vêem-se c onfrontados c om as
expectativas de relações mais igualitárias. Sendo assim, eles
reagem à busca feminina por maior autonomia, queixando-
se d a s mulheres b ra sileira s: “a q ui [Esta d os Unid os] em
primeiro lugar a mulher, em segundo lugar a c rianç a, em
terc eiro lugar o c ac horro e em quarto lugar o homem” “
diziam em tom joc oso, mas que revelava c erto desc onforto
ou, em alguns c asos, reaç ões mais violentas. Esse é um
c ontexto de transiç ão nas relaç ões de gênero em que
oc orrem rup tura s e p erma nênc ia s, ma s q ue sina liza m
mudanç as nas relaç ões familiares e de gênero.
A migraç ão de longa distânc ia provoc a grandes
tra nsforma ç ões p a ra os sujeitos q ue vivenc ia m essa
experiênc ia; porém, em vez de pensá-la apenas c omo um

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MULHERES MIGRANTES NO PASSADO E NO PRESENTE

fa tor q ue p rovoc a o romp imento d e la ç os, p roc urei


c omplexific ar a análise, demonstrando que a c onstituiç ão
de um c ampo de relaç ões transnac ionalizadas também
possibilita novos arranjos familiares e de gênero.

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[Rec ebido em agosto de 2006


e ac eito para public aç ão em julho de 2007]

Migrating Women in the P


Women ast and in the P
Past resent: Gender
Present: Gender,,

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GLÁUCIA DE OLIVEIRA ASSIS

Soc ial Networks and International Migration


t This paper intends to demonstrate that migratory process results not only from individual
Abstrac t:
c hoic es, but also from soc ial networks (family, kingship, friendship), in whic h men and women are
inserted. The work disc usses data from fieldwork in Cric iúma (SC) and the Boston area, in United
States. The data emerged from the interviews and partic ipant observation show that women not
only wait for their husbands or c hildren, but also partic ipate in the proc ess, integrating and
artic ulating migration networks. The data also highlighted the c hanges in the family and gender
relationships, suggesting that the migratory proc ess reartic ulate these relationships. This study
therefore evidenc es that other fac tors, along with the ones of ec onomic nature, c ontribute for
the dec ision of migrating and make the history of this flow.
Key W ords
Words
ords: Brazilian Emigrants; Gender; International Migration; Family-Networks.

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