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A GAROTA DINAMARQUESA: A TRANSGÊNERO DO SÉCULO XX.

Jorge André Nogueira Alves1

Resumo: O filme A Garota Dinamarquesa, baseado em um livro homônimo, traz às telas a história
do pintor Einar Mogens Wegener, que dá existência material à Lili Elbe, precursora, no início do
século XX, à vivência transgênero. A narrativa cinematográfica propicia, no ambiente escolar, o
debate lúcido a respeito de construções de gênero e de identidades de gênero. É preciso ressaltar
que a década de 1920, na Europa, foi bastante tumultuada pelas transformações nos costumes
sociais e artísticos, estes nas propostas das vanguardas europeias e aqueles nas mudanças de
comportamento de uma matriz social arraigada. Entre outras mudanças, as mulheres puderam
abandonar os espartilhos, cortar os cabelos na altura do queixo, pintar os lábios de vermelho, fumar
em público, tudo visível a todos. Mas ainda era um tempo em que a sexualidade, no exercício
binário, era tratada como tabu, assim a transgressão da dicotomia homem/mulher potencializa a
interdição social de sua visibilidade e discussão.
Palavras-chave: Cinema. Gênero. Transexualidade.

Expectativa na fila do cinema

Mesmo que aborde episódios ocorridos há um século, A Garota Dinamarquesa trata de


questões de gênero urgentes. Baseado no livro homônimo de David Ebershoff – inspirado
livremente em uma história real –, o filme conta a história da dinamarquesa Lili Elbe, uma das
primeiras transexuais a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo. Nascida biologicamente
como homem, batizada de Einar Mogens Wegener. Com a identidade de gênero masculina, foi um
consagrado pintor de paisagens na Dinamarca dos anos 1920 e se casou com uma aluna, Gerda
Wegener.
De acordo com a narrativa cinematográfica, uma modelo de Gerda falta a uma sessão. A
pintora, então, pede ao marido que vista roupas femininas e pose para ela. Esse é o gatilho para que
Einar deixe aflorar Lili, a mulher que tinha guardado dentro de si e que sempre reprimiu. A
princípio, Gerda incentiva o que julga ser uma fantasia crossdressing2 do marido. Até que percebe
que a transformação é mais profunda – e que só terminará quando Einar se tornar definitivamente
Lili, por meio de uma então pioneira e arriscada cirurgia. Em vez de se concentrar na reação da

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Professor de Língua portuguesa e Literatura. Possui mestrado em Linguística Aplicada pela Universidade Católica de
Pelotas () é doutorando em Liguística Aplicada na mesma instituição e professor EBTT do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense, Bagé/RS, Brasil.
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É um termo que se refere a pessoas que vestem roupa ou usam objetos associados ao sexo oposto, como por exemplo:
joias, perucas, perfumes, maquiagens, por qualquer uma de muitas razões, desde vivenciar uma faceta feminina (para os
homens), masculina (para as mulheres), motivos profissionais, para obter gratificação sexual, ou outras.

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sociedade à mudança de Einar, A Garota Dinamarquesa prefere focar o impacto causado sobre a
relação do casal, na luta de Gerda para aceitar Lili – e na de Lili para aceitar a si mesma.
O cinema constitui a indústria de entretenimento, visando, na maior parte das vezes, ao lucro
com a bilheteria e com os produtos que é capaz de gerar. Mas, quando as telas exibem filmes cuja
temática certamente não trará os ganhos de produções milionárias, há o enfoque sobre relações
sociais. Esses meandros pós-modernos denotam os interesses da civilização de massa, envolta por
tecnologias em ritmo acelerado e pela valorização da imagem. O texto, dentro de uma visão
tradicional, perde seu espaço em meio aos jogos imagéticos velozes, que constituem um novo tipo
textual, representado pela linguagem cinematográfica. “Mas esse é um mundo cujos sinais mais
claros tendem a ser tecnológicos, ainda que suas exigências e reivindicações sejam subjetivas e
envolvam a obrigação de produzir pessoas novas, formas totalmente novas de subjetividade”
(Jameson, 2006, p. 379). O cinema valoriza o poder da imagem. Os atores, participantes do jogo,
são os estereótipos do conceito de beleza pós-modernos. E o público quer fazer parte do mundo
criado pela sétima arte. Nessa experiência, dá-se visiblidade a novas-velhas formas de subjetividade
e Lili Elbe é uma representante delas.

O cinema é na escola

Na atualidade, o acesso a produções cinematográficas popularizou-se intensamente, em


virtude do uso massivo da televisão na maioria das residências do país. Desde as antigas vídeo-
locadoras até os baixos custos de alguns filmes, os frequentadores de cinemas, os downloads e,
atualmente, o Netflix, por exemplo, são algumas das formas de aquisição e recepção de um filme
pelo espectador. Trevizan & Crepaldi (2009, p. 186) mencionam que “a linguagem audiovisual é
bastante atraente e pode produzir experiências diferenciadas e enriquecedoras na sala de aula” e que
o papel da escola é “formar a competência leitora dos alunos, tornando-os cidadãos com maior
senso crítico”. Nessa mesma perspectiva, Napolitano (2009, p. 20) destaca duas formas que
considera “instigantes e desafiadoras”, para o uso do cinema na escola. Estas são:
O filme pode ser um “texto” gerador de debates articulados a temas previamente selecionados pelo
professor.
Esta abordagem pode ser mais adequada no trabalho com os Temas Transversais: cidadania,
meio ambiente, sexualidade, diversidade cultural, etc. Em princípio, todos os filmes –
“comerciais” ou “artísticos”, ficcionais ou documentais – são veículos de valores, conceitos e
atitudes tratados nos Temas Transversais, com possibilidade de ir além deste enfoque. Neste
sentido, o cinema é um ótimo recurso para discuti-los (NAPOLITANO, 2009, p.20).

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Conforme relata o autor, o filme, analisado como um texto gerador de debates se respalda no
plano conteudístico voltado para as discussões temáticas que este sugere. Mas o tema, segundo ele,
é apenas o ponto de partida para o estudo de sua relação com a linguagem da produção fílmica.
Nessa perspectiva teórica, o professor pode destacar outras possibilidades que vão além da leitura
do tema apresentado no filme; por exemplo, a observação necessária da linguagem construída pelo
produtor do filme, seus modos de produção simbólica, para a veiculação estética e ideológica do
conteúdo temático.
O fato de ser tratado como um texto gerador não isenta o professor de problematizar o
tratamento – estético e ideológico – que o filme desenvolve sobre os temas a serem
debatidos. Os filmes, como qualquer obra de arte, comunicam e perturbam o espectador mais
pela maneira, pela forma como os temas são desenvolvidos, do que pelos temas em si. Por
isso, os vários aspectos da linguagem não devem ser menosprezados: os ângulos e
enquadramentos da câmera, o tipo de interpretação imprimida pelos atores, a montagem dos
planos e sequencias, a fotografia (texturas e cores da imagem que vemos na tela), enfim, a
narrativa que conduz a trama (NAPOLITANO, 2009, p.20).

Neste sentido, a leitura de um filme, tendo como referência uma análise estética e
ideológica, significa educar o olhar do leitor (estudante) para uma formação competente na leitura
dessa linguagem audiovisual. Segundo Trevizan & Crepaldi (2009, p.168 e 170) “a leitura dos
textos visuais é rica em complexidades ideológicas e estéticas e não pode ser reduzida a uma
abordagem superficial de seus conteúdos literais”. Assim, a cultura estética e ideológica de um
filme favorece a formação de um leitor completo, pois a linguagem visual constitui, conforme as
autoras citadas, “um objeto cultural a ser decifrado por um ser social competente, bem informado,
sintonizado com o repertório enciclopédico do autor (do texto), ativado no momento da criação”.
Outra forma de relevância do filme na formação de leitores críticos está, segundo Napolitano
(2009), no fato de este ser identificado como um “documento” e analisado como um “produto
cultural e estético”, respaldado por “valores, conceitos e representações da sociedade”. Nesta linha
de raciocínio, Napolitano (2009, p. 11) argumenta que “trabalhar com o cinema (filme) na sala de
aula é ajudar a escola a reencontrar a cultura ao mesmo tempo cotidiana e elevada”. As produções
cinematográficas se respaldam em campos que são capazes de sintetizar, numa mesma obra
artística, uma variedade de elementos como: os valores sociais, o lazer, a ideologia, dentre outros.
Desse modo, é valido mencionar que filmes proporcionam sempre diferentes possibilidades de
atividades educativas, todas promotoras da construção crítica dos receptores.
Em especial, possibilitar que A garota Dinamarquesa se constitua como o texto base para
um debate lúcido em sala de aula de ensino médio significa atentar para as sexualidades desviantes
do que socialmente foi normalizado pela heterossexualidade compulsória e pelas narrativas de

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fundamentação religiosa. Assim, ao eleger esta obra cinematográfica como motivo de atenção,
podemos ouvir questões a respeito da construção de gênero e da performatividade, para as quais
Butller (2003) constitui uma abordagem objetiva e norteadora.
Ainda é necessário destacar que, para Catelli Júnior (2009, p. 55), a utilização da linguagem
cinematográfica objetiva “o desenvolvimento de competências e habilidades como: criticar, analisar
e interpretar fontes documentais de natureza diversa”. Além do desenvolvimento das habilidades e
competências mencionadas pelo autor, o fato de assistir a um filme e analisá-lo, pode levar os
estudantes, também, ao reconhecimento de diferentes formas de linguagens, de atores sociais e de
distintos contextos históricos inseridos em sua produção e significação, reforçando-se a emergência
das questões de gênero e sexualidade no espaço escolar.

O filme inicia

É preciso ressaltar que a década de 1920, na Europa, foi bastante tumultuada pelas
transformações nos costumes sociais e artísticos, estes nas propostas das vanguardas europeias e
aqueles nas mudanças de comportamento de uma matriz social arraigada. Entre outras mudanças, as
mulheres puderam abandonar os espartilhos, cortar os cabelos na altura do queixo, pintar os lábios
de vermelho, fumar em público, tudo visível a todos. Mas ainda era um tempo em que a
sexualidade, no exercício binário, era tratada como tabu, assim a transgressão da dicotomia
homem/mulher potencializa a interdição social de sua visibilidade e discussão.
Nesse sentido, o que dizer da transsexualidade que, até os dias de hoje, apesar de não ser
mais catalogada como um transtorno da sexualidade no DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais – quinta edição3), ainda é considerada uma patologia, aparecendo nesta
classificação de doenças mentais, como uma disforia de gênero, entendido como uma “angústia” de
identidade de gênero. Considerando a importância deste compêndio para a comunidade médica, que
influência ele pode ter em outros segmentos sociais? Como esse discurso médico prepondera sobre
outros saberes determinando uma “verdade” sobre as questões de identidade de gênero?
De forma romanceada, com uma beleza estética bem marcada, o filme mostra o processo de
transformação de Einar em Lili, com cenas de muita sensibilidade, que trabalham com a emoção de
alguém que está na fronteira do gênero. O prazer crescente em se construir como mulher, a

3
Disponível em
http://c026204.cdn.sapo.io/1/c026204/cldfile/1426522730/6d77c9965e17b15/b37dfc58aad8cd477904b9bb2ba8a75b/ob
audoeducador/2015/DSM%20V.pdf Acessado em 22 de setembro de 2016.

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erotização do próprio corpo, a observação ávida e o “estudo” que faz dos movimentos e atitudes de
outras mulheres não deixam dúvidas de que se está diante de uma mulher. Uma mulher que sangra
pelo nariz, já que não possui os atributos fisiológicos para fazê-lo pelas vias naturais do corpo
biológico.
Do momento em que Einar, com roupas femininas, pousa para sua esposa até a resolução do
conflito tem-se um curto espaço temporal, em que se destaca o sofrimento dele ao manter-se em
uma posição masculina como marido e pintor. Mas Einar sentia-se confortável como Lili, cujos
gestos são suaves e tímidos, talvez ainda no modelo da mulher do século XIX.
É a materialidade de Lili que Gerda, esposa do pintor, retrata em suas obras. É com elas que
ganha notoriedade como artista. Gerda dá nascimento à modelo Lili, a misteriosa mulher de suas
telas, que transparecia uma “verdade feminina”. À proporção que Gerda, como pintora, se
consagrava aos olhos do público, a presença de Einar distanciava-se. Não havia apenas o conflito
sobre a identidade de gênero, havia também o conflito de um relacionamento que chegava ao seu
término, pois Gerda e Einar não se identificam mais como um casal, ainda que ela o queira. Lili
quer Gerda como uma amiga, uma confidente, como alguém capaz de a conduzir pelo universo
feminino.
Não havia, nesse período, Estudos Queer nos quais Lili pudesse se entender como uma
mulher em uma zona de fronteira cujos marcos delimitadores são impalpáveis. Lili não se via nas
ruas e não se lia nos livros, mas enxergava-se, enquanto existência, nos quadros pintados por Gerda.
Surge, assim, a sua necessidade de materializar-se aos olhos dos outros, de dar continuidade à sua
existência. Amparada pelo discurso médico, que lhe dizia ser possível a redesignação de sexo,
submeteu-se a uma castração cirúrgica sob a supervisão de Magnus Hirchsfeld, o famoso médico
alemão que fundou a primeira associação de defesa de homossexuais e transexuais, e depois passou
por várias operações nas mãos de Kurt Warnekros, o cirurgião de Dresden a quem Elbe se referia
como seu criador e salvador. Em 1933, Warnekros planejava completar o processo implantando em
Elbe um útero e criando uma vagina artificial, mas a artista não resistiu à cirurgia e morreu dias
antes de completar 50 anos.
É indiscutível que Lili Elbe foi a pioneira solitária na luta pelo reconhecimento da
construção de gênero, ela não teorizou sobre o tema, apenas o vivenciou dentro do que lhe era
possível. Tentando por em prática um sonho de libertação do jugo do binarismo considerado
natural, lança-se em uma série de cirurgias e tratamentos que a ciência médica daquele período
julgava pertinentes. O filme não tem seu foco sobre essa matéria, tampouco sobre questões de

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manifestação de preconceito que não chegam a ser envidenciadas em mais que algumas cenas. As
cenas em que Lili aparece no hospital para submeter-se a cirurgias delicadas e invasivas retratam
um tratamento cortês das pessoas que a cercam, muito diferente dos que hoje são dispensados à
comunidade LGBTTTQI4 no Brasil, sem a romantização de uma produção de cinema em um nível
hollywoodiano.
Lili é uma personagem especial, pois foi criada para representar pessoas, já como constatava
Brait (1985), a partir dos dizeres de Ducrot e Todorov:
Uma leitura ingênua dos livros de ficção confunde personagens e pessoas. Chegaram mesmo
a escrever “biografias” de personagens, explorando partes de sua vida ausente do livro (“o
que fazia Hamlet durante seus anos de estudo?’). Esquece-se que o problema da personagem
é antes de tudo lingüístico, que não existe fora das palavras, que a personagem é um ser de
papel”. Entretanto recusar toda a relação entre personagem e pessoa seria absurdo: as
personagens representam pessoas, segundo modalidades próprias de ficção. (DUCROT &
TODOROV apud BRAIT, 1985)

Lili Elbe foi uma pessoa no mundo real, que viveu a relação com seu gênero e sexualidade.
Sua narrativa de vida tornou-se literária e, da literatura, tornou-se cinema. Isso possibilita a
visibilidade para a transgeneridade, para pessoas que se identificam com a personagem e com a Lili
não ficcional, que desbancou, na carne, a máxima freudiana de que a anatomia é destino. Antes de
Simone de Beauvoir escrever O segundo sexo, em 1949, Lili já encarava organicamente a noção de
que o gênero depende do significado cultural que o corpo adquire na experiência vivida. O corpo
adquire significado, constrói-se. Nada na natureza determina a ordem social do corpo. A garota
dinamarquesa tem o mérito de nos fazer ver na intimidade o que acontece quando a construção do
gênero é um aspecto fundamental na subjetividade da vida do outro, e como o gênero faz-se ao
modo da tão poderosa ideia de Beauvoir: não se nasce, torna-se. Os atos de Lili nos aproximam de
sua condição humana, suas razões, seus afetos, seu tempo histórico, suas condições materiais. Em
tempos de patrulha do gênero alheio, deveríamos mirar na vida desbravadora de Lili e na utopia de
que “isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além”, nas palavras do
poeta Paulo Leminski.

As últimas balas do cinema

Passados quase cem anos da narrativa vivida por Lili Elbe, as identidades de gênero que não
coincidem com as características biológicas de macho e fêmea e com um desejo heterossexual são

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Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros, travestis, queer, intersexuais.

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também consideradas ambíguas e até aberrantes. Há um discurso resistente à perspectiva de gênero,
que constrange as identidades de gênero a ocupar um lugar dentro de duas categorias rígidas e
estereotipadas de homens ou mulheres. Sabemos que há um movimento contrário ao engessamento
das identidades de gênero, que está à procura de soluções, como acontece em alguns casos pontuais
– países que aceitam a possibilidade de uma criança ser cadastrada na categoria “neutra” nos
registros iniciais, movimentos sociais à procura de direitos humanos para essa população,
reconhecimento médico de pessoas intersexuais, criação de categorias mais ou menos claramente
diferenciadas, como as de transexuais, travestis, intersexuais, dragkings e dragqueens, crossdressers,
mudança de documentos usando novos nomes escolhidos em função de um gênero diferente de
aquele ao que fora designado no começo da vida, e outras.
Mesmo assim, parece que esse é ainda o problema das pessoas trans na nossa sociedade,
cujo lugar – considerado ambíguo – pareceria só poder ser ultrapassado com a transformação dos
corpos, a partir do uso de silicone e hormônios e das cirurgias de redesignação sexual, que se
generalizaram no imaginário de certa parte da sociedade como a única solução desses sujeitos
afetados pela problemática de gênero, considerada, assim, como um transtorno. Os símbolos e
significantes ligados ao real da vida cotidiana não são suficientes para outorgar a essas pessoas um
lugar de aceitação e reconhecimento social. Às vezes, não reconhecido nem por elas mesmas.
Na sociedade ocidental surgiram, a partir de meados do século XX, uma série de trabalhos
de historiadoras/es, antropólogas/os e outros/as, que criaram o conceito de gênero a partir da sua
identificação nas práticas sociais, muito útil para tratar dessas questões, mas que não garante por si
só um tratamento neutro do problema. Ele está, desde sempre, articulado a questões sociais,
econômicas e, sobretudo, políticas de atribuição de funções e de poder social.
Fica claro que a bipolarização de uma variável, que tem inúmeras possibilidades de
diferenças particulares e singulares, é uma forma de continuar a manipular dados e populações, nem
sempre clara ou consciente para quem assim a utiliza. É realmente muito difícil para qualquer um
de nós, sujeitos da idade moderna, ver-nos e ver nossos semelhantes como algo que não seja
localizável dentro da categoria homens ou da categoria mulheres. E isso não é sem consequências.
Sabemos, desde os estudos feministas, que não se nasce mulher e que existem variadas formas de
sê-lo, seja porque existem diferenças óbvias segundo a idade, etnia e classe social, ou porque há
uma forma singular de cada um de ser mulher – ou homem –, mais além das características
atribuídas arbitrariamente como qualidades, normas ou expectativas ligadas a um ou outro grupo.
Questão que nos confunde e confunde teóricos e militantes, porque não há significantes para cada

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um desses estados, ou porque não há um modelo que não seja o da aberração – “abjeto”,
conceituado por Judith Butler – ou da falha para designá-las.
Importa, certamente, é atentar que, no Brasil, está acontecendo o ataque de certos grupos
religiosos e políticos ao que eles denominam, de forma cínica, de defensores de uma ideologia de
gênero, coincide com essas ideias opressoras, confundindo propositalmente o que seria ideologia ou
doutrinação (a deles), com as ideias científicas trabalhadas desde os anos sessenta nas ciências
humanas e sociais. Para provar a força desses movimentos e a possibilidade de manipular que eles
possuem, só é necessário mencionar que, no meio de discussões e manobras políticas e religiosas,
alguns grupos conseguiram que fosse retirada a palavra gênero dos Planos de Educação, no nível
nacional, estadual e local, até 2020. Isso é polêmico e está sendo questionado. Sem desconhecer a
existência de muitos outros escritos importantes na área, como os de Joan Scott, por exemplo,
permito-me sublinhar a importância do pensamento queer, liderado, neste campo, pela pensadora
contemporânea Judith Butler. Ela oferece os argumentos mais importantes, se bem que polêmicos e
pouco entendidos às vezes, para pensar essa temática. E é justamente essa autora que permite
delinear algumas ideias mais claras sobre as diversas formas de identidade de gênero. Ela deixa
totalmente de lado a biologia para tratar do social na construção dos gêneros e, fundamentalmente,
trabalha sobre seu aspecto performativo, ou seja, ela afirma que o gênero é composto de gestos e
movimentos que se repetem durante toda a vida e não só de uma designação feita no momento do
nascimento ou até num momento anterior, se formos considerar a possibilidade de observação do
feto possibilitada pelas tecnologias atuais. Até pouco tempo atrás somente um livro (BUTLER,
2003) dela fora traduzido ao português: Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade”, talvez porque, pelo menos para nós, brasileiros, o que foi importante nesse momento
foi seu aspecto questionador das identidades subjetivas, numa crítica ao feminismo mais tradicional
que definia um sujeito que, segundo Butler, deveria ser considerado um sujeito político (mulheres),
a partir de uma identidade biologicamente fundada. O que ela sublinha é que nós vivemos numa
sociedade baseada numa ordem compulsória, um tanto dissimulada, que exigiria coerência entre a
biologia, entendida como sexo, o gênero, socialmente visto como qualidades e características
específicas e diferenciais, senão complementares entre dois grupos humanos, e desejo e práticas
sexuais, que, neste caso, seriam heterossexuais. Ela afirma a necessidade de desmontar, de
desconstruir essa coerência obrigatória, dita natural. Essa coerência se transforma numa crença,
tanto no pensamento religioso concreto como em nível do senso comum, e assim se desconhece a
“obrigatoriedade”, implícita e ao mesmo tempo legitimada pelo discurso social.

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Referências
BRAIT, Beth. A Personagem. São Paulo: Ática, 1985.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. São Paulo:
Civilização Brasileira, 2003.
CATELLI JUNIOR, R. Temas e linguagens da história: ferramentas para a sala de aula do ensino
médio. São Paulo: Scipione, 2009.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo. São Paulo: Ática, 2006.
NAPOLITANO, M. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2009.
TREVIZAN, Z.; CREPALDI, L. Linguagem visual e educação: a arte de ensinar. In: GEBRAN,
R. A. (org.) Ação docente no cotidiano da sala de aula: práticas e alternativas pedagógicas. São
Paulo: Arte & Ciência, 2009. Cap. 8, p. 86 – 167.

The danish girl, the transgender of the twentieth century: from the cinema to the classroom.

Astract: The film The Danish Girl, based on a book of the same name, brings to the canvas the
story of the painter Einar Mogens Wegener, who gives material existence to Lili Elbe, a precursor,
in the early twentieth century, of the transgender experience. The cinematographic narrative
provides, in the school environment, the lucid debate about constructions of gender and of gender
identities. It is necessary to emphasize that the 1920s in Europe were quite tumultuous by the
transformations in social and artistic mores, these in the proposals of the European vanguards and
those in the behavior changes of a rooted social matrix. Among other changes, women were able to
abandon their corsets, cut their chin-length hair, paint their lips red, smoke in public, all visible to
all. But it was still a time when sexuality, in binary exercise, was treated as taboo, so the
transgression of the male / female dichotomy enhances the social interdiction of its visibility and
discussion.
Keywords: Transgender. Movie theater. School.

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