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Nova biografia apresenta Karl Marx sem cair na

tentação maniqueísta
30 Janeiro 2018

Biografia "Karl Marx: Grandeza e Ilusão" tem como maior mérito a reconstituição do
ambiente em que se deu a formação intelectual do jovem Marx, fundamental para entender
como ele passou a pensar o capitalismo. Livro ainda discute com competência fracassos e
insights do alemão, mas se concentra pouco em 'O Capital'.
A resenha é de Celso Rocha de Barros, doutor em sociologia pela Universidade de
Oxford e Marcos Lisboa, presidente do Insper, publicada por Folha de S. Paulo, 28-
01-2018.
Eis o artigo.
Os países desenvolvidos passaram por transformação espantosa a partir de 1700: a
renda por habitante cresceu mais de 50 vezes e a expectativa de vida aumentou em 40
anos.
Para ter uma noção do imenso avanço, a dieta típica de um habitante de um país rico no
começo do século 18, como a França, não era melhor do que a de um morador de um dos
países mais pobres do mundo na segunda metade do século 20, como Ruanda. Esse
notável desempenho, entretanto, não veio sem solavancos.
A transição para o capitalismo foi particularmente dolorosa. A rápida e
desordenadaurbanização e a superabundância de trabalhadores vindos do campo
resultaram em salários baixos, condições sanitárias inadequadas, moradias precárias e
proliferação de doenças transmissíveis.
Para a maioria da população nos países desenvolvidos, foi um período de retrocesso, com
queda da expectativa de vida e de outros indicadores socioeconômicos.
A pobreza, antes escondida nos campos, tornou-se visível nas cidades, onde a degradação
contrastava com um aumento da riqueza que parecia inexoravelmente restrito a poucos.
Não surpreende que então tenham surgido movimentos bastante críticos
ao capitalismo nascente.
Karl Marx (1818-83) foi o mais famoso dos intelectuais revolucionários do século 19, e sua
vida é contada na biografia "Karl Marx: Grandeza e Ilusão" [Companhia das Letras,
784 págs., R$ 79,90], de Gareth Stedman Jones, ex-editor da revista "New Left
Review".
O maior mérito da biografia talvez esteja na reconstituição do ambiente em que se deu a
formação intelectual do jovem Marx. Quem já estudou o autor de "O Capital" e
"Manifesto Comunista" sabe que as disputas em torno do legado de Hegel e a relação
entre essas disputas e a política prussiana da época podem ser temas áridos.
Entretanto, são fundamentais para entender como o pensador alemão passou da discussão
da religião como projeção de conflitos terrenos para a discussão do Estado como projeção
de conflitos na sociedade civil, e daí para a discussão do capitalismo.
Ao reconstituir esses debates, Jones mostra como as ideias filosóficas radicais de
emancipação do jovem Marx o acompanharam por toda a vida. Durante sua evolução
intelectual, o pensador procurou conciliar essa visão emancipatória da juventude com a
crítica do capitalismo, formulada muitos anos depois —e aqui ele fracassou.
Se o tratamento dado ao jovem Marx é cuidadoso, o livro como um todo apresenta-se
desbalanceado. Jones poderia ter gasto menos espaço com querelas políticas menores e se
concentrado no fundamental: a obra tardia e inconclusa de seu biografado, "O Capital".
Acertos
A análise econômica de Marx combina alguns momentos de impressionante percepção,
para a época, com outros recheados de argumentos inconsistentes.
Começamos pelos melhores momentos. A maioria dos intelectuais de então associava a
miséria urbana apenas à substituição da classe dominante. Onde antes havia os grandes
senhores herdeiros do feudalismo, agora reinava a burguesia. Marx, porém, desde meados
dos anos 1840, reconhecia que o capitalismo trazia algo além de uma nova forma de
opressão.
Como escreveu Jones: "Karl foi o primeiro a evocar os poderes aparentemente ilimitados
da economia moderna e o seu alcance verdadeiramente global. Foi o primeiro a mapear a
assombrosa transformação produzida em menos de um século pelo surgimento de um
mercado mundial e pelo desencadeamento das forças sem precedentes da indústria
moderna".
Em "O Capital", Marx oferece uma explicação nova para o sucesso da nova ordem em
produzir tantas inovações e aumento da produtividade: a concorrência.
Na medida em que um produtor individual seja capaz de introduzir uma mudança que
reduza seus custos em relação aos demais produtores, ele obtém um retorno adicional
(mais-valia extraordinária, no jargão de Marx). Esse ganho não é duradouro, pois logo
seus concorrentes tentam copiá-lo. Mas o retorno, mesmo que temporário, estimula a
inovação.
Esse argumento foi posteriormente difundido por Schumpeter e se tornou lugar-comum
nos livros de economia.
Em outros momentos, entretanto, o pensador alemão erra feio.
Erros
Seguindo uma variação do argumento dos economistas clássicos, Marx supõe que o valor
das mercadorias é determinado pela quantidade de trabalho necessária à sua produção.
Os salários, por sua vez, são determinados pelo valor da cesta de bens necessários à
subsistência dos trabalhadores. Os trabalhadores, porém, produzem mais do que o
necessário à sua sobrevivência. A diferença é a mais-valia apropriada pelos donos
dos meios de produção.
Segundo Marx, os ganhos de produtividade decorrentes da concorrência terminariam
por reduzir a quantidade de trabalho utilizada na produção das mercadorias, aumentando
a relação capital/trabalho. Como, para o autor de "O Capital", apenas o trabalho gera
valor, o resultado seria a tendência à queda da taxa de lucro, que resultaria na crise do
capitalismo.
Marx, entretanto, não consegue demonstrar analiticamente a sua conjectura. Para seu
mérito, deve-se ressaltar que ele reconhece as dificuldades, ainda que fracasse
sistematicamente ao tentar superá-las nos manuscritos do volume 3 de "O Capital".
Suas conjecturas sobre salários e lucros foram igualmente derrotadas pelos dados das
principais economias desde 1900.
Os salários não permaneceram no nível de subsistência, mas cresceram com a
produtividade do trabalho; a taxa de retorno do capital não apresentou tendência de
queda ao longo do século 20, e sim permaneceu relativamente estável em meio a oscilações
ocasionais. E o mesmo é verdade sobre as participações dos salários e da remuneração
do capital na renda nacional dos países desenvolvidos.
Como se sabe, Marx se defrontou com problemas analíticos igualmente intransponíveis ao
propor que a sua teoria do valor trabalho explicaria o preço das mercadorias.
Os manuscritos preparatórios de "O Capital" (os "Grundrisse") mostram que o plano
inicial era muito ambicioso. Tratava-se de analisar o processo de construção socialque
resultou no capitalismo, na formação do Estado moderno e na constituição
do mercado global, além de descrever a causa da sua crise inevitável: a trajetória de
queda da taxa de lucro.
Dados os imensos problemas com os argumentos, não surpreende que Marx tenha revisto
seu projeto original e decidido publicar, nos termos de Jones, "uma obra muito mais
descritiva (...) do que em progressão dialética".
Jones também aponta, corretamente, que grande parte de "O Capital" se concentra na
análise "factual do desenvolvimento e do estado das relações entre capital e trabalho,
sobretudo na Inglaterra". Ele destaca a extraordinária quantidade de estatísticas,
relatórios e informações da imprensa utilizados para descrever as condições de vida dos
trabalhadores.
"O Capital" também inclui uma análise da produtividade crescente da agricultura, que
tem como efeito colateral a expulsão dos camponeses para as cidades. Daí por que, para o
biógrafo, Marx foi "um dos principais fundadores (...) do estudo sistemático de história
social e econômica".
Sem dogmatismo
Resta-nos concordar com o diagnóstico de Jones: "Se 'O Capital' se tornou um marco no
pensamento do século 19, não foi por ter identificado as 'leis do movimento' do capital. (...)
[E]mbora tenha produzido um poderoso retrato da miséria (...) [e] das condições de vida
dos trabalhadores (...), não conseguiu estabelecer uma ligação lógica e convincente entre o
avanço da produção capitalista e a pauperização dos trabalhadores".
Finalmente, Jones acerta ao criticar a análise da democracia na reflexão geral de Marx.
Quando o autor do "Manifesto Comunista" se depara com a formação dos primeiros
partidos social-democratas, fica claro que sua visão de política era ainda
demasiadamente influenciada pela Revolução Francesa.
Marx compreendeu que uma sociedade capitalista era completamente diferente de
outros tipos de sociedade, mas não que uma sociedade democrática era completamente
diferente de uma sem democracia, o que surpreende, dado seu sucesso como jornalista
político.
Após a morte de Marx, as muitas inovações tecnológicas produzidas pela economia de
mercado e a expansão das políticas públicas, em meio às pressões típicas
nasdemocracias, permitiram a melhora da qualidade de vida já nas primeiras décadas do
século 20.
De 1890 a 1930, a expectativa de vida aumentou 14 anos na Inglaterra e 16 anos
nos Estados Unidos. Além disso, a jornada de trabalho caiu em cerca de 20 horas
semanais de 1890 a 1990.
A desigualdade de renda na Inglaterra, medida pelo índice de Gini, caiu de 0,65, no
começo do século 19, para 0,55, no começo do século 20, atingindo 0,32 em 1973 (quanto
mais perto de zero, menor a desigualdade).
Crises ocasionais ocorreram, algumas muito severas, como a de 1929 e a de 2008, mas o
resultado de longo prazo foi uma queda sem precedentes da pobreza.
Como Jones enfatiza, muitas das contradições e tensões presentes na reflexão do
velho Marx desapareceram quando se constituiu o marxismo tal como o conhecemos.
Foi Engels quem, no trabalho de edição das obras póstumas, e em especial em seu livro
"Anti-Dühring", apresentou o marxismo como um sistema que deveria ser, para as
ciências históricas, o que o darwinismo foi para a biologia.
Essa visão de um processo mecânico inevitável que levaria ao socialismo foi acolhida
pelos socialistas alemães num período em que a repressão lhes dificultava a atuação
política. Quando puderam disputar eleições, tiveram enorme sucesso, e essa versão
do marxismo difundiu-se pela Europa, inclusive na Rússia.
Como sabemos, mais tarde os socialistas alemães começariam a revisão crítica do
legado marxista, mas, àquela altura, a história na Rússia já seguia outro caminho.
A biografia de Gareth Stedman Jones discute com competência tanto os fracassos
quanto os insights de Karl Marx. Quem sabe esse resgate possa colaborar para enfrentar a
narrativa cheia de som e fúria da política contemporânea.
É urgente voltar a Marx para entender nova fase
da economia, diz professor
19 Setembro 2017

Nick Nesbitt afirma que nem a esquerda nem os neoliberais têm explicação adequada
para a atual transformação do capitalismo, com a automatização da produção e a
substituição quase completa da mão de obra humana. Para ele, é urgente voltar a "O
Capital", de Marx, cujo primeiro volume completa 150 anos.
A entrevista é de Luís Costa, publicada por Folha de S. Paulo, 17-09-10’7.
Um século e meio depois de Karl Marx lançar o primeiro volume de "O Capital", a sua
análise da economia capitalista ainda hoje é a ferramenta teórica mais importante para
compreender o mundo do trabalho, avalia F. Nick Nesbitt, 52, professor da Universidade
Princeton, nos Estados Unidos.
Nesbitt organizou "The Concept in Crisis: Reading Capital Today" [Duke
University Press, 328 págs., R$ 405,94, R$ 84,60 em e-book] (o conceito em crise: ler "O
Capital" hoje), livro que acaba de ser lançado nos EUA e rediscute o clássico "Ler o
Capital" (1965), escrito pelo marxista francês Louis Althusser (1918-90).
Nesbitt, que leciona no departamento de literatura comparada, afirma
que Marxantecipou o que ele chama de "capitalismo pós-humano", isto é, uma dupla
tendência à eliminação gradual do trabalho humano das cadeias produtivas e à
precarização da força de trabalho.
Eis a entrevista.
A economia global não é mais industrial como aquela de que Marx falava. Por
que retornar a "O Capital" hoje?
Alguns leitores de Marx gostariam de fazer crer que seus vastos escritos são pouco mais
que uma descrição das condições de exploração da classe trabalhadora no século 19. Eu, ao
contrário, penso que o Marx genial e duradouro deve ser encontrado, mais que em seus
prodigiosos textos políticos, na obra-prima sem paralelos que é "O Capital".
Marx gastou toda a energia intelectual das últimas três décadas de vida para descrever não
só as condições da classe trabalhadora no século 19. "O Capital" transcende a
especificidade histórica de seu lugar e momento de escrita. Como o subtítulo diz, é uma
crítica sistemática da economia política do capitalismo, com a proeza e a influência da
ordem de "Princípios da Filosofia do Direito", de Hegel [livro publicado em 1820], ou
mesmo de "A República", de Platão [datada do século 4º a.C.].
Marx trabalhou para desenvolver uma compreensão conceitual da natureza, da forma e das
estruturas do sistema capitalista.
Ao contrário das incontáveis descrições superficiais do capitalismo –preços e lucros, as
perdas e os luxos dos capitalistas e das nações, as condições dos trabalhadores, a política de
produção, distribuição, consumo e redistribuição da riqueza– que agraciam os anais do
liberalismo e da esquerda tradicional, "O Capital" é, sobretudo, um trabalho de filosofia
conceitual e crítica.
Diante das enormes transformações potencialmente catastróficas do capitalismo hoje –
transformações que apenas se aceleraram neste século–, se quisermos compreender as
forças que atualmente conduzem a globalização, não aprenderemos nada olhando para as
estatísticas e as análises neoliberais sobre PIB, emprego, lucro, crescimento e outras
categorias do cálculo econômico, que são apenas descritivas. Em vez disso, devemos voltar
à análise conceitual de Marx.
Que debates o sr. procura criar ou revisitar no livro?
Como organizador, acima de tudo, pretendi ultrapassar a estúpida, superficial e moralista
interdição de um dos grandes pensadores do século passado, feita em razão das tragédias
de sua biografia. Althusser passou a maior parte de sua vida frequentando clínicas
psiquiátricas, para culminar em um ataque de insanidade que custou a vida de sua mulher
e sua própria existência pública.
Em segundo lugar, quis chamar a atenção para a leitura filosófica e conceitual iniciada
por Althusser e seus alunos [o livro de Nesbitt tem capítulos escritos por frequentadores
dos seminários que deram origem a "Ler o Capital", como o filósofo Étienne Balibar].
Trato "Ler o Capital" como a maior realização filosófica de Althusser para entender as
crises, transformações e potencialidades do capitalismo tardio. O livro argumenta que
Marx construiu em "O Capital" uma filosofia da forma-valor que é surpreendentemente
pressagiadora em nos ajudar a entender o capitalismo contemporâneo.
Na contramão do revisionismo e das rupturas pós-marxistas dos anos 1960,
Althusser se manteve fiel a uma leitura marxista-leninista tradicional. Essa
ainda é uma perspectiva teórica e política viável?
Penso que não. A virtude contemporânea de "Ler o Capital" é ter deixado de lado as
inclinações políticas datadas de Althusser, concentrando-se unicamente na crítica teórica
do capitalismo.
Althusser afirmava que "O Capital" era mais bem compreendido entre
operários do que entre intelectuais, porque estes não experimentavam a
exploração de que fala o livro. O sr. concorda com essa afirmação?
Acho que essas afirmações de Althusser não são mais do que atormentada má-fé de um
brilhante pensador iconoclasta em sua recusa a deixar o Partido Comunista francês,
tentando encaixar-se em seu próprio círculo existencial.
Embora qualquer um possa potencialmente compreender "O Capital", esse trabalho
filosófico-crítico é de ordem de complexidade totalmente diferente de algo como o
"Manifesto Comunista". Com um livro tão complexo e exigente, qualquer um que fizer o
esforço de entender seus volumes interpretará seus argumentos de acordo com posições
subjetivas.
Ao mesmo tempo, podemos alcançar uma compreensão mais aguda da lógica objetiva do
texto, como ocorreu, acredito, nas últimas décadas de pesquisa.
O que havia no século 19 e ainda há de equivocado sobre a visão econômica de
Marx entre estudiosos?
A economia dominante continua ignorando o poder de muitos dos conceitos-chave
de Marx: força de trabalho, valor excedente absoluto e relativo, tempo de trabalho
socialmente necessário, tendência à queda da taxa de lucro. No entanto, o conceito
fundamental para a crítica de Marx é sua teoria do valor-trabalho [relação entre o valor da
mercadoria e o tempo dedicado à sua produção].
Ao abandonar qualquer forma da teoria do valor-trabalho, de [Adam] Smith a Marx, a
economia neoliberal ganhou na habilidade de quantificar e analisar lucros e os vários
movimentos internos ao capitalismo, mas perdeu a capacidade de entendê-lo como uma
prática social, para não falar dos meios para construir qualquer crítica viável a suas crises,
danos e limites.
É possível verificar empiricamente a ideia de que o desenvolvimento do
capitalismo resultaria em maior prejuízo para os trabalhadores?
A leitura atenta de "O Capital" aponta para uma grande transformação na estrutura e na
operação do capitalismo na atual conjuntura histórica. É um desenvolvimento que eu
chamaria de capitalismo pós-humano, tendência recém-dominante no capitalismo do
século 21 para a força de trabalho humana tornar-se o que Marx chamou de "infinitesimal
e em extinção".
Essa tendência não é contrariada pelo fato de que, desde a década de 1980, sempre mais
pessoas no mundo "trabalham" (em condições sempre mais precarizadas).
Pelo contrário, são duas consequências da mesma tendência.
Esse aumento numérico é a forma visível da tendência de que a humanidade continua a
depender do trabalho assalariado para a sobrevivência. A desvalorização da força de
trabalho é, por outro lado, a forma conceitual da tendência, em que a automação reduz
constantemente o valor da força de trabalho aos níveis "infinitesimais".
Até a década de 1940, todo o algodão era colhido à mão. Hoje, em um mercado global, um
colhedor de algodão na Índia, que ainda trabalha com as mãos, compete com
colheitadeiras automáticas no Texas, que colhem, com um único motorista, 300 vezes
mais por dia.
No passado, novas commodities e novos setores de serviços reempregavam força de
trabalho dispensada devido à automatização de outros segmentos. Hoje, as novas áreas e
processos criados já são automatizados.
Pode-se argumentar que o capitalismo entrou nessa nova fase nos últimos dez ou 20 anos.
Sua característica é a automatização generalizada dos processos produtivos, com a
tendência de eliminação de postos de trabalho não só no Norte mas também no Sul, de
forma ainda mais devastadora.
Os sinais dessa transformação estão em toda parte, mas sua natureza e as forças que a
dirigem mal foram compreendidas, a meu ver, tanto pela esquerda quanto pelos
economistas neoliberais.
Por volta do ano 2000, estudiosos da tecnologia diziam que seria impossível fabricar um
carro de forma totalmente automatizada; hoje não só vemos tais carros nas estradas como
temos previsões de que 85% de toda a produção global possa estar automatizada dentro de
uns 20 anos.
No entanto, esse processo ainda não foi devidamente compreendido como um momento no
desenvolvimento histórico e estrutural do capitalismo. Nos artigos sobre o assunto,
encontramos meras descrições desses novos processos de automatização e seus efeitos
sobre PIB, trabalhadores, salários e empregos, mas nunca uma explicação que vá além de
referências vagas e superficiais a "competição" global e "forças do mercado".
É por isso que a análise de Marx sobre a estrutura do capitalismo é mais urgente do que
nunca.
Embora as transformações que têm ocorrido desde o ano 2000 não pudessem ser
fenomenologicamente percebidas por Althusser em 1965, elas eram bem compreendidas
por Marx, que claramente delineou a lógica estrutural desse processo em "Fragmento
sobre as Máquinas", texto de 1858.
Para formular o que pode ser uma política pós-capitalista, acredito que seja necessário
atingir uma compreensão clara e adequada sobre a natureza e os limites dessa nova forma
do capitalismo. O lugar para começar e desenvolver esse entendimento contemporâneo,
com toda complexidade e rigor, tenho certeza de que continua sendo a obra-prima de
Marx.
O que é ser marxista hoje?
Há mais de 150 anos, os escritos políticos e filosóficos de Marx são a referência mais
penetrante para a crítica sistemática do capitalismo e a luta militante para derrubar seu
reinado de iniquidade sobre uma parcela cada vez maior da humanidade. Ao mesmo
tempo, ao longo do século passado, "marxismo" e "marxista" designaram uma sistemática
incompreensão e simplificação de sua teoria.
Não me consideraria um "marxista". Sou um estudioso da monumental crítica conceitual
de Marx ao capitalismo, tentando compreendê-la para desenvolver o mais rigorosamente
possível sua implicação para o capitalismo contemporâneo e o imperialismo tardio.
Talvez, então, ser marxista hoje significaria, no mínimo, a recusa firme em abandonar o
pensamento de Marx e orientar a própria crítica e ação na luz que ele lança sobre os
obscuros desastres da era atual do capitalismo pós-humano.
Revolução 4.0 e a lição de Marx
01 Setembro 2017

A Quarta Revolução Industrial é a mais desconcertante revolução produtiva da história da


humanidade e desorganizará radicalmente a sociedade que conhecemos, particularmente o
mundo do trabalho. Os estudos de Marx do papel desempenhado pela maquinaria
na Revolução Industrial alerta para a importância de se estudar e conhecer a natureza
dessa revolução em curso escreve Cesar Sanson, professor na área da sociologia do
trabalho na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
Eis o artigo.
Um estudo recente divulgado pela Universidade de Oxford anunciou que 47% dos
empregos vão desaparecer nos próximos 25 anos na esteira da Quarta Revolução
Industrial. Outro relatório divulgado pela Foundation for Young Australians
(FYA)destaca que mais da metade dos estudantes estão atrás de profissões que se tornarão
obsoletas pelos avanços tecnológicos e automação. A pesquisa mostra que 60% dos jovens
entram no mercado de trabalho em profissões que serão radicalmente afetados pela
automação, e que pode ocorrer dentro dos próximos 10 a 15 anos.
É fato incontestável. Os robôs eliminam postos de trabalho num ritmo acelerado. Cada vez
mais, os trabalhadores da manufatura serão substituídos pelas impressoras 3D, os
bancários pelos algoritmos e uma enormidade de serviços pela Inteligência Artificial.
Fábricas, bancos, supermercados, fazendas e serviços públicos automatizados já são
realidade. A robotização e a informatização são irreversíveis.
As mudanças não serão apenas na base técnica, toda a estrutura ocupacional será alterada.
A tendência é de altos salários na ponta dos cargos cognitivos e de baixos salários nas
ocupações manuais. A flexibilidade será a regra nas relações de trabalho. Empregadores
utilizarão a ‘nuvem humana’ – trabalhadores que podem ser localizados em qualquer lugar
para resolução de problemas e projetos.
As inflexões não param por aí. O movimento operário tal qual o conhecemos será varrido
do mapa. O que virá pela frente não se sabe. Talvez os sindicatos desapareçam e surja outra
coisa no seu lugar.
A Quarta Revolução Industrial ou ainda a Revolução 4.0 é a mais desconcertante
revolução produtiva da história da humanidade. As revoluções anteriores também foram
radicais, mas o seu tempo de maturação foi mais prolongado. Essa, entretanto, se faz num
ritmo alucinante. O que sustenta essa Revolução na opinião de Klaus Schawb - uma
referência nos estudos da Revolução 4.0 – é sua velocidade,
profundidade e impacto sistêmico e a sua capacidade de fazer interagir diferentes
áreas: física, digital e biológica.
Estamos diante de um grande desafio: estudar, compreender e interpretar o significado e o
impacto da Quarta Revolução Industrial para o conjunto dos trabalhadores e da
sociedade.
Marx já ensinava que o capital adquirindo novas forças produtivas altera o modo de
produção e as relações sociais. O autor de O Capital foi um dedicado estudioso
das máquinas-ferramentas do seu tempo. O objetivo principal de Marx ao estudar a
tecnologia tinha como horizonte compreender a mudança de base material do capitalismo.
O seu interesse no estudo das máquinas era decifrar a lógica das forças produtivas na
dinâmica da luta de classes.
Na sua obra A Miséria da Filosofia expressava essa linha de raciocínio ao demonstrar as
relações sociais atreladas às forças produtivas: “Adquirindo novas forças produtivas, os
homens mudam o seu modo de produção, e mudando o modo de produção, a maneira
geral de ganhar a vida, eles mudam todas as suas relações sociais. O moinho dar-vos-á a
sociedade com o suserano; a máquina a vapor, a sociedade com o capitalista
industrial” [1]
Marx revela que a evolução dos meios técnicos – a maquinaria – impacta o modo
produtivo, revoluciona a forma de produzir, radicaliza a divisão do trabalho oriunda da
manufatura e reorganiza o conjunto da sociedade capitalista. Para além da consequência
objetiva (produção de mercadorias), incorre uma alteração subjetiva (produção de relações
sociais). É celebre a citação sua e de Engels no Manifesto Comunista: O capital “não
pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por
conseguinte, as relações de produção, e com isso, todas as relações sociais. (...)
Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de
concepções e de ideias secularmente veneradas (...) Tudo o que era sólido e estável se
desmancha no ar (...) Os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua
posição social e as suas relações com outros homens” [2].
Partindo da compreensão de que a evolução das forças produtivas enseja sempre mais a
exploração dos trabalhadores, Marx chega à conclusão nos seus estudos sobre
a maquinaria que a mesma se “destina a baratear a mercadoria e a encurtar a parte da
jornada de trabalho que o trabalhador precisa para si mesmo, a fim de encompridar a
outra parte da sua jornada de trabalho que ele dá de graça para o capitalista” [3]. Em
sua interpretação, a maquinaria da grande indústria está associada à produção da mais-
valia, particularmente da mais-valia relativa. Marx faz uma distinção entre mais-valia
absoluta e mais-valia relativa, a primeira é produzida pelo prolongamento físico da jornada
de trabalho e a segunda se faz pelo barateamento da força de trabalho, abreviando-se a
parte da jornada destinada à produção. Isso se faz, sobretudo através do desenvolvimento
da maquinaria.
Ainda mais. Marx revela que a maquinaria sofistica a divisão social do trabalho
tributária do período artesanal e da manufatura. E essa não é uma mudança qualquer. A
maquinaria assume um significado revolucionário nas forças produtivas e o núcleo central
dessa transformação reside no fato de que, por meio da intervenção da técnica e da ciência
no processo de trabalho tem-se a completa expropriação do saber do trabalhador no
processo produtivo.
A maquinaria na opinião de Marx significa uma ruptura da base material e do controle
do trabalhador sobre o processo de trabalho. O trabalho que se realiza tem a sua
autonomia reduzida – considerando-se que já está prescrito. Na manufatura, “a
articulação do processo social de trabalho é puramente subjetiva, combinação de
trabalhadores parciais; no sistema de máquinas, a grande indústria tem um organismo
de produção inteiramente objetivo, que o operário já encontra pronto, como condição de
produção material”, destaca Marx [4]. Na expressão de Marx, tem-se a subordinação do
trabalhador à maquinaria que “confisca toda a livre atividade corpórea e espiritual”.
Em que pese a possível e aparente demonização de Marx às máquinas-ferramentas,é
um equívoco considerar sua crítica descontextualizada do seu método – o materialismo
dialético. A partir desse método, percebe-se que o desenvolvimento dos meios técnicos é
condição necessária para o surgimento do conceito de classe social. É o desenvolvimento
das forças produtivas e o amadurecimento do capitalismo que possibilitam a irrupção de
um novo ator social no cenário da sociedade industrial, como a propósito se lê
nos Grundrisse: “Se a sociedade, tal como é, não contivesse, ocultas, as condições
materiais de produção e circulação necessárias a uma sociedade sem classes, todas as
tentativas de criá-la seriam quixotescas” [5].
A breve digressão, valendo-se de Marx sobre o papel desempenhado pela maquinaria no
nascedouro da Revolução Industrial tem como objetivo destacar o lugar transformador
da Quarta Revolução Industrial. Estamos num processo similar ao
que Marx acompanhou. Assim como a Revolução Industrial deixou para trás o mundo
rural, a Revolução 4.0 em curso desorganizará radicalmente a sociedade que
conhecemos, particularmente no mundo do trabalho. Caminhamos celeremente para o
esgotamento da sociedade industrial/salarial. O que hoje é hegemônico será visto amanhã
apenas como vestígios.
Estudar, conhecer e interpretar o que é essa Revolução permitirá uma intervenção ‘política’
mais adequada e correta. É isso que Marx nos ensina, é isso que ele fez. Dissecou as
entranhas e os mecanismos do nascedouro da Revolução Industrial para indicar aos
subordinados chaves de leitura que indicassem a resistência e a luta por dignidade.
Notas:
1 - MARX, Karl. A Miséria da filosofia (1985). São Paulo, Coleção Bases: Global Editora,
p. 106.
2 - MARX, Karl; ENGELS, Friedrich (1988). Manifesto Comunista. São Paulo:
Boitempo, p. 43.
3- MARX, Karl. O Capital - vol. II, 3ª Ed (1985), São Paulo, Nova Cultura, p. 07.
4 - ________. O Capital - vol. II, 3ª Ed (1985), São Paulo, Nova Cultura, p. 17.
5 - ROSDOLSKI, Roman (2001). Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio
de Janeiro: Contraponto, p. 353.

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