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“O essencial é saber ver” - Fernando Pessoa ( Alberto Caeiro )

Ilustração: Jean Baptiste Debret

Ferro de passar roupa (século XIX )

Batida policial nos morros de Rio de Janeiro


1983 Todos Negros – Foto: Luis Morier

Ferro de passar roupa ( século XX / década de 80 )


Escola, tempo e alienação.
Márcio Joffily Pereira da Costa – Março / 2009

“O homem é um ser social e sua vida não tem sentido se não se insere na
sociedade. Mas, se a sociedade é injusta? Uma sociedade fundada sobre a injustiça
educa para a injustiça. Donde se conclui que a sociedade tem que ser reeducada para
poder educar.”
Ferreira Gullar – Congresso Mundial da Educação/1983

“Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo,


sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.”

Eric Robsbawm – Era dos Extremos

“Socorro!/ Alguma alma, / Mesmo que penada, / Me empreste suas penas.


Já não sinto amor, nem dor. / Já não sinto nada...”

Arnaldo Antunes – Socorro

Introdução
Uma das discussões muito comuns na comunidade escolar trata, quando não resvala para
o reducionismo de meras questões disciplinares, da questão da apatia, indiferença ou
alheamento dos estudantes. Contudo, como quase sempre, no ambiente escolar, nada se
discute de forma aprofundada, tais características dos discentes são reunidas e rotuladas
como desinteresse. Pronto, muito simples e rapidamente, o diagnóstico está definido e as
causas de tal desinteresse não importam, pois cabe aos desinteressados e seus familiares
resolverem o problema.
Importa observar que tal situação não é privilégio da escola pública, uma vez que na rede
particular o problema também ocorre, ainda que na primeira aconteça com maior
incidência.
Na esfera oficial, os responsáveis pela implementação de políticas públicas educacionais,
auxiliados por certos profissionais da educação, sugerem as soluções mais absurdas, as
quais, quando não são descoladas da realidade, banalizam a relação docente/discente, ao
visarem à transformação do docente num mero animador de plateia, como se a sala de aula
fosse um circo ou programa de auditório.
A docência, por outro lado, embora reaja às propostas oficiais, quando formula algum
questionamento acerca do problema, tal formulação é eivada de histórias de vida, no estilo
saudosista do no meu tempo ou na minha época. Algo que soa como uma certa
perplexidade diante das transformações históricas ou um desejo de que a história se repita
ou não exista, o que dá no mesmo.
Da esfera oficial, nada se pode esperar acerca dessa dificuldade, pois esta, segundo seu
propósito, cumpre seu papel, o de administrar as contradições da ordem vigente, ainda que
isso implique em desumanização crescente da comunidade escolar.
E mais, embora a luta por um melhor aparelhamento da escola seja justa, pois que tais
condições materiais são benéficas, por si só, isso não confere sentido à escola. Do que
valem as melhores condições materiais de uma escola, se elas são postas a serviço da
reprodução do sem-sentido que grassa socialmente? Se o inverso é verdadeiro, como se
explica o índice crescente, entre jovens, de criminalidade e usuários de drogas nos estratos
sociais mais abastados? Dos que creditam tal fenômeno à falta de educação ou perda de
valores, poucos o fazem ingenuamente, a maioria opina de forma oportunista, por
comodidade ou defesa de interesses. Ainda que como polo privilegiado de expressão do
nonsense social, a escola pode e deve forjar sentido, motivação ou estímulo, mas tal
sentido, por sê-lo, deve necessariamente conflitar com a sociedade do espetáculo, que
semeia a cultura do corpo, sublimação da sexualidade, homogeneização, a competição
econômica do ao vencedor as batatas, em suma, a alienação cuja raiz está localizada na
forma de organização econômica capitalista.
Como podemos perceber, queiramos ou não, as raízes da apatia, indiferença ou
alheamento do discente são profundas. Não são o aparato tecnológico, a aquisição de uma
inteligência prática necessária ao mercado de trabalho, o discurso vago de cidadania e
respeito às diferenças que vão erradicá-las, mas sim sua abordagem, no estudo sistemático e
discussão, no sentido de transplantá-las para o ambiente pedagógico.
A considerar a amplitude do tema, aqui nos deteremos a um de seus aspectos, a questão
do tempo. Aspecto de fundamental importância cuja abordagem no ambiente pedagógico,
sobretudo em Português e História, o que não isenta as demais disciplinas, mesmo as
exatas, via de regra, é feita de forma precária, o que contribui para a reprodução do sem-
sentido.

Tempo histórico
Segundo Eric Robsbawm, em “Era dos Extremos-O breve século XX/1914-1991”:

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam


nossa experiência pessoal a das gerações passadas- é um dos fenômenos mais
característicos e lúgrubes do final do século XX. Quase todos os jovens de
hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação
orgânica com o passado público da época em que vivem.

Baseado no que diz o historiador, do que serve uma certa aprendizagem de linguagem,
sobretudo a função verbal, e conceitos históricos, se como diz Robsbawm, para muitos
jovens, o presente é contínuo. Ora, presente contínuo é atemporalidade, eternidade. Nesse
sentido, do que serve a história? Quais tipos de aulas de Português, gramática ou literatura,
e História, por exemplo, os estudantes têm, que não interferem nessa situação? Ainda que
consideremos só os bons alunos aprovados com louvor, tais aulas são questionáveis. Do
contrário, onde estão eles? Na universidade pública? Bem empregados? Não engrossam o
rol dos sem-tempo?
Cabe destacar que a observação do historiador não se restringe à juventude, pois engloba
adultos, sobretudo especialistas da área de História. Ao comentar a visita do presidente
Mitterand a Sarajevo, em 28 de junho de 1992, cuja visita teve como propósito lembrar o
assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria-Hungria, o que levou à eclosão
da Primeira Guerra Mundial, diz que quase ninguém captou a alusão, exceto uns poucos
historiadores profissionais e cidadãos mais idosos. A memória histórica já não estava
viva.
O intuito das citações acima não é o de pôr em discussão quaisquer aspectos qualitativos
acerca da disciplina de História ou desempenho dos historiadores, nem tampouco
questionar a relevância de datas históricas, mas o de destacar a constatação que Robsbawm
faz acerca da relação do ser humano com o tempo histórico no final do século XX.
Como podemos ver, é necessário algo mais, além da inteligência prática vinculada ao
tempo cotidiano, trata-se do tempo histórico. Podemos perceber que não só os jovens
padecem dessa dificuldade, mas também os adultos, sobretudo os escolarizados e
integrantes dos quadros educacionais. Se é assim, o que se pode esperar da juventude,
uma vez que seus referenciais, os adultos, vivem enredados num presente contínuo e,
portanto, sem memória histórica? Cobrar consciência histórica de estudantes sem tê-la
equivale à cobrança de leitura e produção de texto quando não se lê e nem tampouco se
escreve. É um disparate, senão uma farsa.
Como dito acima, aqui, o interesse não é o de discutir a causa dessa generalização do
apagamento do tempo histórico, a alienação econômica originária das contradições entre
capital e trabalho, mas um de seus aspectos, a alienação do homem em relação ao tempo,
este, na condição de categoria absolutizada.
Deste modo, cabe destacar que a natureza da constatação de Eric Robsbawm não é
novidade. Além de o tempo ter sido objeto de estudo desde a Antiguidade, como categoria
relacionada ou não ao espaço e movimento, posteriormente, a relação do homem comum
com o tempo passou a ser objeto de preocupação, como por exemplo, em Literatura ( crítica
literária ou obra literária ) e Lingüística. É certo que os estudos ou abordagens dessa relação
sempre foram determinadas pela concepção ideológica do que seja o tempo, se algo que se
auto-explica ou categoria que se define a partir de sua relação com espaço e movimento.

Tempo e história
Em linhas gerais, até nossos dias, foram duas as formas de relação do homem com o
tempo, o tempo cíclico e o tempo linear. Da Antiguidade até meados da Idade Média, o
ciclo das estações e fatos meteorológicos eram utilizados como referência temporal das
atividades. Ainda na Idade Média, com o surgimento embrionário do capitalismo, o tempo
passou a ser objeto de medida, assume a característica de linearidade em razão da
necessidade de ser otimizado. Acerca do instante de transição dentre esses dois momentos,
do tempo medieval ao tempo moderno, Jacques Le Goff, em “Para um novo conceito de
Idade Média-Tempo, Trabalho e Cultura no Ocidente”, diz o seguinte:

Da mesma forma que o camponês, o mercador está submetido, na sua atividade


profissional, em primeiro lugar ao tempo meteorológico, ao ciclo das estações, à
imprevisibilidade das intempéries e dos cataclismos naturais. Neste aspecto, e
durante muito tempo, ele só necessitou de submissão à ordem da natureza e de
Deus e só teve, como meio de ação, a oração e as práticas supersticiosas. Mas
quando se organiza uma rede comercial, o tempo torna-se objeto de medida. A
demora de uma viagem, por mar ou por terra, de um lugar para outro, o problema
dos preços que, no decorrer de uma mesma operação comercial, e mais ainda
quando o circuito se complica, sobem ou descem, aumentam ou diminuem os
lucros, a duração de trabalho artesanal ou operário ( o mercador é também quase
sempre um dador de trabalho )-tudo isso se impõe cada vez mais à sua atenção e se
torna objeto de regulamentação cada vez mais minuciosa.

Por certo, esta brevíssima distinção de cada um dos momentos e respectiva transição, por
si só, não responde ao que queremos, embora seja algo significativo, uma vez que nos
mostra um momento de grande transformação cuja razão econômica vem, de forma
crescente, causando impactos psicológicos.
O texto literário, sobretudo a poesia e o romance, ao longo da história da literatura, vem
expressando as inquietações decorrentes das constatações do processo de fragmentação do
tempo na relação do homem comum com a temporalidade. Dentre várias obras importantes,
“Em busca do tempo perdido” ( Marcel Proust ), a poética do heterônimo Alberto Caeiro (
Fernando Pessoa ) e “A Paixão Segundo G.H.” ( Clarice Lispector ), destacam-se nesse
viés. Como veremos abaixo, exceto Proust, que problematiza a questão diretamente,
Fernando Pessoa e Clarice Lispector o fazem de forma implícita, ao sugerirem a tensão
embutida no problema.

Tempo, espaço e movimento


Por outro lado, de certa forma, Goethe foi mais além que ambos, uma vez que resolve o
dilema prousteano e explicita o que Pessoa e Clarice insinuam. Tal constatação tem como
suporte os estudos elaborados por Mikhail Bakhtin acerca das categorias de tempo e espaço
no romance cujo suporte essencial é o conceito de cronotopo. Segundo Bakhtin, em
“Questões de Literatura e de Estética-Formas de tempo e cronotopo no romance”,
cronotopo é a interligação fundamental das relações temporais e espaciais. Parcialmente
transplantado das ciências matemáticas, nas quais foi introduzido com base na teoria da
relatividade ( Einstein ), para a literatura, nele ( cronotopo ) é importante a expressão de
indissolubilidade de espaço e de tempo ( tempo como a quarta dimensão do espaço ).
Conforme Bakhtin:

No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e


temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se,
comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se,
penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo
transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo.
Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico.

As rápidas caracterizações feitas anteriormente acerca dos tempos cíclico e linear


referem-se diretamente às atividades dos homens, e o que os diferencia, basicamente, são as
relações entre passado e presente feitas pelos homens com vistas ao futuro, lastreadas em
suas relações socioeconômicas.
Se para os homens da Antiguidade e os da Idade Média, até o surgimento dos mercadores,
a relação do presente com o passado, sobretudo no aspecto socioeconômico, era de
reproduzi-lo ( o passado ), sob este aspecto não havia futuro. Ora, um presente que se limita
a reproduzir o passado não supõe futuro, é o tempo do eterno retorno. A caracterização
desse tempo como cíclico a partir do tempo expresso pela natureza supõe que nesta não há
transformação, o que não é correto, pois a natureza tem seu movimento de transformações,
sua história, ainda que não perceptível como a história dos homens.
A partir das transformações de maior envergadura, ainda no contexto medieval, a relação
do presente com o passado não se dá mais pela mera reprodução deste, mas como algo que
impulsiona para o futuro no sentido de superá-lo ( o passado ), sobretudo em relação aos
aspectos socioeconômicos.
Deste modo, em decorrência deste processo de sucessivas e ininterruptas transformações,
as possibilidades de se perceber as marcas do tempo no espaço, nas coisas, segundo o
conceito bakhtiniano de cronotopo, tornam-se mais evidentes. Trata-se, de certa forma, de
elementos que caracterizam fatos históricos com maior ostensividade. Nesse sentido, em
“A Estética da Criação Verbal-O espaço e o tempo”, Bakhtin diz:

O tempo se revela acima de tudo na natureza: no movimento do sol e das


estrelas, no canto de galo, nos indícios sensíveis e visuais das estações do ano.
O crescimento das árvores e do rebanho, as idades do homem, todos eles indícios
visíveis que se referem a períodos mais amplos. Por outro lado, teremos os sinais
visíveis, mais complexos, do tempo histórico propriamente dito, as marcas visíveis
da atividade criadora do homem, as marcas impressas por sua mão e por seu
espírito: cidades, ruas, casas, obras de arte e de técnica, estrutura social, etc. O
artista decifra nelas os desígnios mais complexos do homem, das gerações, das
épocas, dos povos, dos grupos e das classes sociais. O trabalho dos olhos que
vêem combina-se aqui com um processo muito complexo do pensamento. Quaisquer
que sejam, porém, o nível de profundidade e o grau de generalização desse processo
cognitivo, este nunca se separa totalmente do trabalho a que se dedicam os olhos,
não se separa do indício sensível e concreto, não se separa da palavra viva e
imaginativa. Por fim, temos as contradições sócio-econômicas-essas forças motrizes
da evolução-que vão do contraste elementar, imediatamente visível ( a diversidade
social do país natal tal como a observamos da estrada ) até as manifestações mais
profundas e complexas tais como aparecem nas relações e nas idéias do homem.
Essas contradições abrem necessariamente uma janela para o tempo futuro. E quanto
mais profundamente se revelarem essas contradições, mais plena e substancial será a
visão do tempo através das imagens do artista-romancista.
Na literatura mundial, um dos ápices da visão do tempo histórico é atingido por
Goethe.

Como podemos perceber, Bakhtin, de forma magistral, nos mostra detalhadamente o


processo pelo qual ocorre a apropriação do tempo, em sua plenitude, pelo homem. Aos
desavisados, cabe lembrar que a ênfase atribuída ao olhar não se trata de sensacionismo
vulgar, mas de um olhar desalienado. Além disso, em decorrência desse olhar isento de
contaminação alienante, descortina-se o futuro pleno de potencialidades, é a manifestação
da genericidade humana na convergência dos tempos presente, passado e futuro. Nesse
instante, rompe-se a falsa dicotomia entre presente e passado, tão cara aos românticos e
própria de uma interpretação equivocada do real. E mais, importa destacar que tal
capacidade não é privilégio do artista, assim como a filosofia não é privilégio do filósofo,
como constataram, respectivamente, Proust e Gramsci.
Embora a maior parte do que diz Bakhtin se refira ao artista que foi Goethe, o que pode
ser interpretado como sendo a faculdade de percepção integral do tempo como própria do
artista, em outras citações, ainda que poucas, Bakhtin nos mostra que o cidadão Goethe
concebia o mundo de modo a perceber o tempo nas coisas. Abaixo podemos percebê-lo,
quando Bakhtin cita Goethe, inclusive, em discurso direto:

Eis um exemplo que ilustra a perspicácia histórica característica da visão


de Goethe. Dirigindo-se a Pirmont, ao atravessar a aldeia de Einbeck, Goethe
vê, de imediato, que uns trinta anos antes, a aldeia tivera um excelente
burgomestre ( Anais ).
O que afinal vira ele de especial? Vira áreas verdes e árvores, e descobrira
caráter não fortuito delas. Vira a marca de uma vontade do homem que se
exercia de acordo com uma finalidade, e, segundo a idade das árvores-idade
que soubera avaliar a olho-, soubera avaliar essa atividade voluntária
do homem.
Conquanto o fato que relatamos seja ínfimo e circunstancial, não deixa
de revelar a estrutura de uma visão histórica.
Vamos deter-nos nela um momento.
No fato que citamos, o que importa é a marca substancial e viva do passado
no presente. O que temos aqui, não é uma ruína, talvez pitoresca porém morta,
destituída de qualquer vínculo consubstancial com a contemporaneidade viva
e sem ação sobre esta. Goethe não gostava do aspecto de “antiguidade” das
ruínas que ele qualificava de fantasmas ( Gespenster ) e das quais fugia.
Esses vestígios, tal como um corpo estranho, incrustavam-se no presente, no
qual eram inúteis e ininteligíveis. Goethe era hostil à confusão mecânica do
presente com o passado que ignora o vínculo autêntico entre épocas. É por
essa razão que ele não gostava do culto dos sítios históricos ao qual se
entregam os turistas; não suportava ouvir as narrativas dos guias sobre os
grandes acontecimentos históricos que haviam ocorrido outrora. Tudo aquilo
não passava de fantasmas, desprovidos de qualquer vínculo necessário e
visível com a realidade viva que o rodeava.
Um dia, na Sicília, não longe de Palermo, num vale luxuriante, um guia
contava com muitos pormenores a Goethe as terríveis batalhas travadas e
as extraordinárias façanhas praticadas outrora por Aníbal naqueles lugares.
“De mau humor, critiquei-lhe a maldita evocação daqueles falecidos fantasmas.”
( ... ) “E não pude explicar-lhe claramente meu estado de espírito ante tal
mistura da passado com o presente”. ( ... ) “Não consegui explicar-lhe que o
modo mais rápido de ter uma idéia de uma região montanhosa é examinar as
espécies de pedras que os rios arrastam consigo, e que também naquele caso
tratava-se de formar, através das ruínas, uma noção daqueles cumes
eternamente clássicos da Antigüidade terrestre”.
O trecho que citamos tem uma importância especial, que não se deve aos
poucos elementos de rousseaunismo ( oposição entre o tempo da natureza e
o tempo “daqueles cumes eternamente clássicos da antigüidade terrestre”,
entre o vale fértil e a história dos homens feitas de guerras e de devastações),
mas a outra coisa: é a primeira vez que se manifesta a hostilidade
característica de Goethe pelo passado desvinculado, o passado em si e para si,
o passado que será, justamente, o predileto dos românticos.

Como citado acima, vemos que a concepção goetheana de tempo não o percebe ( o tempo
) de forma compartimentada, mas vinculado ao espaço, às coisas e ao movimento.
Conforme já mencionado acerca da concepção de tempo, desde a Antiguidade estudava-
se a questão, e, segundo Jacques Le Goff, Aristóteles já propunha que o tempo é o número
do movimento. Ora, a considerar que o movimento não se refere a outra coisa senão à
matéria, não há como se desvincular tempo da matéria. Deste modo, o tempo e o espaço,
assim como movimento e relação, são condições de existência da matéria, das coisas.
Durante bom período da Idade Média cujo poder político era da Igreja, ainda conforme
Le Goff, a concepção de tempo é completamente esvaziada de historicidade, e afirma:

Para Santo Agostinho, o tempo da história, para retomarmos um termo feliz


de Henri Marrou, conserva uma “ambivalência” em que, no âmbito da
eternidade e subordinados à acção da Providência, os homens dominavam o seu
próprio destino, assim como o da Humanidade. Porém, conforme demonstraram
Bernhein e Arquillière, as grandes idéias do De Civitate Dei, onde as análises
históricas são ecos dos progressos teológicos, esvaziam-se da historicidade com o
agostinianismo político, ( ... ).

Com o fim da Idade Média e simultâneos abalo do poder político da Igreja e


desenvolvimento das ciências, sobretudo da Física, a concepção idealista de tempo
permanece influente. Em “Dialética do Conhecimento”, Caio Prado Jr, acerca da Mecânica
newtoniana, nos diz o seguinte:

Note-se que como relação ou sistema relacional, a noção de sucessão de


posições ou de espaço-tempo não pode ser desmembrada, sob pena de seus
termos perderem sentido: o tempo só existe em função do espaço, como o
espaço em função do tempo, e ambos em função da relação que os articula
e une. Daí as complicações em que se acabou embrenhando a Mecânica
newtoniana quando fez metafisicamente do tempo e do espaço, considerados
em função do movimento ( porque sem ser nessa função, espaço e tempo
são intuições distintas ) entidades à parte uma da outra e independentes.
O movimento, ou antes, a velocidade que o caracteriza, não se “compõe”
de tempo e espaço, como fez crer a Mecânica clássica nas suas projeções
metafísicas; e sim da relação que os articula, o que é muito diferente.

Tempo em Goethe e Marx


Ao cronotopo de Goethe, subjaz uma concepção de movimento, espaço e tempo
relacionados e materializados independentemente da consciência humana. À consciência
cabe o papel de refletir ou não essa realidade objetiva, não o de criá-la. Portanto, caso o
conceito de tempo para Goethe fosse outro que não o materialista, sua percepção de tempo
histórico, tal como visto acima, seria impossível.
Foi somente no século XIX que se consolidou o materialismo com Marx e Engels, o que
possibilitou com mais rigor a definição do conceito de tempo. Em “Contribuição à Crítica
da Economia Política”, Marx nos dá um exemplo prático. A discussão proposta trata da
relação entre valor de uso e valor de troca das mercadorias. Ainda que subsista na
mercadoria, para que esta se realize de forma plena é necessário que o valor de uso
incorpore o valor de troca. Se no valor de uso tem destaque o trabalho individual que o
produz, no valor de troca tal caráter qualitativo de particularidade se perde e assume
destaque um trabalho uniforme, indiferenciado. Se uma casa e um automóvel têm valores
de troca equivalentes, a diferença qualitativa de seus valores de uso é anulada e tais
produtos têm um volume igual do mesmo trabalho, o uniforme ou indiferenciado. Não se
trata da desaparição dos trabalhos particulares ou específicos contidos em cada uma das
mercadorias, mas da existência dialética entre trabalhos particulares e trabalhos
indiferenciados, estes, passíveis de criarem os valores de troca, chamados por Marx de
trabalho geral abstrato.
Por outro lado, uma casa e uma bicicleta expressam valores de troca de grandeza
inteiramente diferente, e tal diferença quantitativa é a única a apresentá-los como valores de
troca, sendo um maior ( casa ) que o outro ( bicicleta ). Segundo Marx:

A questão que se coloca é a seguinte: como medir estas quantidades? Ou


melhor: qual o modo quantitativo de existência do próprio trabalho, dado que
as diferenças de grandeza das mercadorias, enquanto valores de troca, são
apenas as diferenças de grandeza do trabalho nelas materializado. Assim como
o modo quantitativo de existência do movimento é o tempo, o modo quantitativo
de existência do trabalho é o tempo de trabalho. Supostamente dada a qualidade
do trabalho, somente pela sua própria duração ele pode ser diferenciado.

Como vemos, Marx estabelece uma analogia entre os modos quantitativos de existência
do movimento e do trabalho, que são respectivamente o tempo e o tempo de trabalho.
Cumpre destacar que a diferenciação entre as concepções de tempo, materialista e
idealista, não é uma questão menor, uma vez que, por exemplo, as várias abordagens
pedagógicas em quaisquer disciplinas, para serem completas, devem ser perpassadas por
essa diferenciação.
Em “As Astúcias da Enunciação-As categorias de pessoa, espaço e tempo”, o professor
José Luiz Fiorin, ao apresentar uma belíssima teoria acerca da demarcação e sistematização
do tempo cujo núcleo trata da enunciação como eixo ordenador da categoria topologia
concomitância vs não-concomitância, a última articulada em anterioridade vs
posterioridade, fundamenta filosoficamente sua proposta com base em Santo Agostinho,
para quem o tempo é produto do espírito.
Tal fundamentação está na abertura do capítulo referente ao tempo, o tempo dominado,
cuja epígrafe, Le temps est invention, ou il n’est rien du tout ( Bergson ), por si só, já sugere
o teor idealista que, embora não ofusque em nada a eficácia da proposta, compromete a
fundamentação.

Tempo em Proust, Fernando Pessoa e Clarice Lispector


Ainda que superficialmente, comentadas as concepções idealista e materialista de tempo,
que dão suporte à obra artística, voltemos às relações entre Goethe e algumas obras como
as de Proust, Fernando Pessoa ( Alberto Caeiro ) e Clarice Lispector. Importa lembrar que
as constatações produzidas por tais relações apontam tendências e não podem, sob pena de
banalizar as referidas obras, ser generalizadas, mesmo porque se trata de comparações de
pequenos fragmentos.
Marcel Proust, em “Em busca do tempo perdido-O tempo redescoberto”, com base nas
sensações despertadas por paisagens, objetos e situações, ao buscar compreender a causa de
momentos de felicidade propiciados por tais sensações, as quais lhe possibilitam o resgate
do tempo perdido ( passado ), diz o seguinte:

Deslizei célere sobre tudo isso, mais imperiosamente solicitado como


estava a procurar a causa dessa felicidade, do caráter de certeza com que se
impunha, busca outrora adiada. Ora, essa causa, eu a adivinhava confrontando,
entre si as diversas impressões bem-aventuradas, que tinham em comum
a faculdade de serem sentidas simultaneamente no momento atual e no
pretérito, o ruído da colher no prato, a desigualdade das pedras, o sabor do
bolinho fazendo o passado permear o presente ao ponto de me tornar hesitante,
sem saber em qual dos dois me encontrava; na verdade, o ser que em mim
então gozava dessa impressão e lhe desfrutava o conteúdo extratemporal,
repartido entre o dia antigo e o atual, era um ser que só surgia quando, por uma
dessas identificações entre o passado e o presente, se conseguia situar no
único meio onde poderia viver, gozar a essência das coisas, isto é, fora do
tempo. Assim se explicava que, ao reconhecer eu o gôsto do pequeno
bolinho, houvesse cessado minhas inquietações acerca da morte, pois o ser que
me habitara naquele instante era extratemporal, por conseguinte alheio às
vicissitudes do futuro. Tal ser nunca me aparecera, nunca se manifestara
senão longe da ação, da satisfação imediata, senão quando o milagre de uma
analogia me permitia escapar do presente. Só ele tinha o poder de me fazer
recobrar os dias escoados, o Tempo Perdido, ante o qual se haviam malogrado
os esforços da memória a da inteligência.

Do exposto acima, podemos concluir que a diferença entre Goethe e Proust, sob o aspecto
do tempo, é radical. No segundo, o passado se perde e só é passível de percepção a partir de
sensações acidentais, com base numa memória involuntária. A relação entre passado e
presente é de rompimento e o resgate do passado implica em saída da ordem
temporal.Enquanto para Goethe, passado, presente e futuro fundem-se nas coisas; para
Proust, as coisas têm apenas a condição de despertar sensações. Se a presentificação do
passado só se torna possível em razão de situações fortuitas, sobretudo um passado calcado
em experiências individuais, o tempo histórico não existe. Na perspectiva prousteana, o
presente mais parece a eternidade, o que não muda. Por sua vez, as coisas, exceto em
determinadas circunstâncias, nada têm a dizer. Disto deriva o tédio, a pasmaceira do mundo
de Proust: o olhar alienado sobre as coisas.
Por outro lado, Fernando Pessoa ( Alberto Caeiro ) e Clarice Lispector optam, por via de
construções metafóricas, pela desconstrução dos simulacros, como o processo de nomeação
e perspectiva utilitária, que encobrem as coisas. A grande metáfora pessoana e clariceana
resulta da atribuição de vida às coisas cujo propósito é o de nos conclamar a que, ao
olharmos, desnudemos as coisas dos coágulos de vida que as submetem, e passemos a ver o
passado que as impregna, como também as possibilidades de futuro. Em “Paixão Segundo
G.H.”, Clarice Lispector diz:

Nunca, então, havia eu de pensar que um dia iria de encontro a este


silêncio. Ao estilhaçamento do silêncio. Olhava de relance o rosto fotografado
e, por um segundo, naquele rosto inexpressivo o mundo me olhava de volta
também inexpressivo. Esse-apenas esse- foi o meu maior contato comigo mesma?
O maior aprofundamento mudo a que cheguei, minha ligação mais cega e direta
com o mundo. O resto-o resto eram sempre as organizações de mim mesma, agora
eu sei, ah, agora eu sei. O resto era o modo como pouco a pouco eu havia me
transformado na pessoa que tem o meu nome. E acabei sendo o meu nome. É
suficiente ver no couro de minhas valises as iniciais G.H., e eis-me. Também
dos outros eu não exigia mais do que a primeira cobertura das iniciais dos nomes.
( ... ) Quanto à minha chamada vida íntima, talvez também tenha sido a escultura
esporádica o que lhe deu um leve tom de pré-clímax-talvez por causa do uso de
um certo tipo de atenção a que mesmo a arte diletante obriga. Ou por ter passado
pela experiência de desgastar pacientemente a matéria até gradativamente
encontrar sua escultura imanente; ou por ter tido, através ainda da escultura,
a objetividade forçada de lidar com aquilo que já não era eu.
Tudo isso me deu o leve tom de pré-clímax de quem sabe que, auscultando
os objetos, algo desses objetos virá que me será dado e por sua vez dado de
volta aos objetos. ( ... ) Não é que eu queira estar pura de vaidade, mas preciso
ter o campo ausente de mim para poder andar. Se eu andar. Ou não querer ter
vaidade é a pior forma de se envaidecer? Não, acho que estou precisando de
olhar sem que a cor de meus olhos importe, preciso ficar isenta de mim para ver.

Fernando Pessoa ( Alberto Caeiro ), por sua vez, num momento flagrante e inusitado, nos
diz:

Se às vezes digo que as flores sorriem


E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios ...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.

Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes


À sua estupidez de sentidos ...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.

Além de representar o polo problematizador acerca das coisas, a poética de Alberto


Caeiro, num momento de lucidez, nos diz a que veio, sensibilizar os homens estúpidos de
sentidos. Seriam os homens do mundo prousteano, que não percebem as coisas?
Como pudemos perceber, as coisas são muito mais do que percebem os olhares alienados,
e Goethe, Fernando Pessoa ( Alberto Caeiro ) e Clarice Lispector propõem,
simultaneamente, a desconstrução do mundo que as mantêm imersas e o resgate de
possibilidades por via do passado e futuro condensados no presente. Em Proust, a situação
é diferente, pois, embora ele denuncie o distanciamento do homem em relação às coisas, a
única alternativa proposta é a radicalização do estranhamento, o aprofundamento da
alienação.

Considerações finais
Rompida a relação utilitarista do homem com as coisas, proposta pela ordem vigente,
podemos perceber a importância das coisas, do objeto mais banal à pintura de Rembrandt,
no que diz respeito aos papéis que estas desempenham no desenvolvimento filogenético (
da espécie ) e ontogenético ( do ser ) do homem, no âmbito de seu processo de apropriação
e objetivação. Assim como as flores de Caeiro não sorriem, a coisa não fala, mas em seu
silêncio ela nos comunica um passado e possibilidades de futuro, além do que, ao percebê-
la nestas condições, nos re-conhecemos e ampliamos nossa humanidade, acessamos o
tempo histórico e assumimos a condição de herdeiros de um patrimônio de conhecimento
acumulado pela humanidade cuja tendência é a continuidade num crescente.
Para tanto, não há necessidade de rompimento com o cotidiano, pois é nele que a história
está ancorada. Mais do que rechaçar o cotidiano, é necessário entendê-lo e captar suas
relações dialéticas com a história. Nesse sentido, em Dialética do Concreto”, Karel Kosik
nos diz o seguinte:

A análise da vida de cada dia constitui-em certa medida apenas-a via de


acesso à compreensão e a descrição da realidade; além das suas
possibilidades, ela falsifica a realidade. Neste sentido não é possível
entender a realidade da cotidianidade, mas a cotidianidade é entendida
com base na realidade.

Referências bibliográficas

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