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A Dominação Muçulmana e o Cristianismo

Moçárabe1

O cristianismo e o islamismo exprimem de modo diverso a fé no Deus único,


revelado aos homens para lhes indicar o caminho que os conduz à plena realização
natural e sobrenatural. O fundo matricial comum convergiu, contudo, na dificuldade em
suportar as diferenças. Os muçulmanos aceitam a Bíblia como palavra de Deus, mas num
estádio histórica e doutrinariamente propedêutico da revelação alcorânica. Na perspetiva
islâmica, o cristianismo é válido em tudo o que respeita ao monoteísmo e aos artigos da
fé concordantes com a revelação do Alcorão. O cristianismo, encerrando a revelação com
os escritos neotestamentários, rejeita a autenticidade da revelação islâmica, ocorrida
quase seis séculos depois.
Uma grande parte dos desentendimentos que envenenaram as relações seculares
entre os cristãos e os muçulmanos teve o seu fundamento doutrinal em torno de alguns
polos básicos de convergência/divergência. Partindo a perspetiva islâmica, podemos
reduzi-los a dois grupos:
− Os seis artigos da fé da teologia islâmica (Kalâm): Deus, os anjos, a Palavra de
Deus, os enviados, o último dia e a predestinação.
− Os cinco pilares ou mandamentos do islamismo: a profissão de fé (chahâda), a
oração ritual (salât), o imposto social ou esmola legal (zakât), o jejum (sawun)
e a peregrinação (hajj).
O fundo comum foi agravado por divergências de caráter moral, como a moral
matrimonial, e doutrinal, como alguns dogmas do cristianismo:
− O mistério da Trindade, que os muçulmanos rejeitam em nome do
monoteísmo, enquanto acusam os cristãos de associadores ou politeístas.
− Os mistérios da divindade e incarnação de Cristo, que os muçulmanos
consideram um simples homem, mesmo se profeta.
Este quadro doutrinal pressupõe-se para a compreensão tanto da situação dos
cristãos sob a dominação islâmica, chamados moçárabes, como também dos muçulmanos
sob dominação cristã, que estudaremos à frente, conhecidos ao longo de toda a Idade
Média por mouros.

1. A dominação muçulmana
À morte do rei Vitiza (701-709) agravaram-se as dissensões na monarquia
visigótica, cujos reis ascendiam ao poder por eleição e não por sucessão familiar. O trono
foi entregue a Rodrigo, administrador duma província do sul, em detrimento de Áquila ou
de outro filho de Vitiza. Os vitizianos decidiram então em pedir ajuda aos árabes,
contando o apoio de Julião, governador de Ceuta e inimigo de Rodrigo. Assim entre abril e
maio de 711 vieram do Norte de África por Gibraltar e desembarcaram na Península
milhares de árabes e berberes, comandados por Tarik, que avançaram até Córdova, onde
se fixaria a capital do emirato (756-929) e depois cafilado (929-1031) peninsular. Até 756,

1
Este esquema sintetiza sobretudo Joaquim CHORÃO LAVAJO, Islão e Cristianismo: entre a Tolerância e a
Guerra Santa, in HRP, I, 91-103.
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a administração muçulmana da Península esteve na dependência do califado de Damasco,


de que era uma província, já chamada também emirato2. Rodrigo não lhes conseguiu
fazer frente e desapareceu na batalha de Guadalete ou Guadibeca em julho desse ano,
atraiçoado por duas alas do seu exército. Entretanto os árabes alcançaram Toledo, capital
visigótica, e prosseguiram no domínio da Península, que tomou o nome de Al-Andaluz,
liderados subsequentemente por Musa e Abdelaziz. Resistiu apenas o pequeno território
asturiano, nas montanhas do Norte, a partir do qual Pelágio pôde organizar a reconquista.
A invasão e a conquista aconteceram, pois, com grande rapidez. Em cerca de cinco
anos (711-716), os árabes controlaram todo o território hispânico, à exceção do reduto
asturiano. Às dissensões na monarquia visigoda, podemos acrescentar outras justificações
para a celeridade a tomada:
− O dinamismo da jihâd, termo que significa a luta espiritual do homem contra
as paixões e as forças do mal e depois referido à guerra santa desencadeada
pelos muçulmanos contra os infiéis para os subjugar ou obrigar a converter ao
islão.
− O apoio comprometido de forças oriundas da comunidade hispano-romana e
visigoda, por vários motivos:
o O exagerado compromisso entre a Igreja e o poder político tornou cada
um solidário das vicissitudes do outro. Houve nobres e eclesiásticos que
se colocaram do lado do exército invasor.
o A débil implantação do cristianismo e certa zonas, facilitando a adesão à
nova religião.
o A assimilação pelos visigodos, em contacto com os hispano-romanos, do
abrandamento de costumes e do amolecimento das virtudes militares,
que lhes tinham garantido a força.
o O descontentamento generalizado do povo, penalizado cada vez mais
pelo peso dos impostos.
o O sistema de eleição dos monarcas no seio dum povo, cujo civismo
democrático não era muito forte.
o As aspirações judaicas a melhorarem a situação de marginalização vivida
durante o reinado visigótico.
o A aspiração dos servos e escravos à libertação.
o Os casamentos de Abdelaziz com a viúva de Rodrigo e de Munuza, valido
das Astúrias às ordens dos árabes, com uma irmã de Pelágio, atraindo
para o lado dos invasores grupos sociais com influência sobre as
populações.
Muitos hispano-romanos e visigodos, entre os quais sobressaíam os eclesiásticos,
não querendo converter-se ao islamismo nem sujeitar-se aos invasores, refugiaram-se no
reino merovíngio, na Itália e no norte da Península (nas Astúrias e na Vascónia),

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Em 756, Abderramão I, vindo do oriente, inaugurou em Córdova uma dinastia de príncipes omíadas,
independentes de Damasco, que continuaram a chamar-se emires, até que Abderramão III tomou o título
de califa em 929, mantendo-se, todavia, a mesma dinastia. O califado de Córdova manteve-se até 1031,
altura em que o seu declínio levou a que se dividisse em pequenos principados independentes, conhecidos
por taifas (partidos). De 1100 a 1145, os berberes almorávidas, vindos de África, impuseram o seu domínio
aos vários príncipes dissidentes, sem, contudo, impedirem o avanço da reconquista. Seguiu-se ainda a
dinastia dos berberes almóadas (1145-1269).
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reforçando a resistência e contribuindo para a reconquista. Os estratos mais baixos da


população, explorados durante a dominação romana ou visigótica, adaptaram-se mais
facilmente à situação.

2. O estatuto dos moçárabes


Normalmente os árabes não impunham o islamismo aos povos que consideravam
detentores da revelação divina, a que chamavam gentes do Livro (ahl al-Kitâb). Mediante
condições previamente negociadas (pactos), os cristãos, judeus ou zoroastristas podiam
continuar a praticar as suas religiões.

2.1. O estatuto socioeconómico


Os autóctones, embora politicamente dominados, foram sempre mais numerosos
que os árabes. Apesar dos números quanto a estes serem díspares, não foram além
dumas dezenas ou centenas de milhares (30.000 a 200.000, registando as estremas dos
diferentes estudos) entre os milhões de hispanos.
Ao ser dominada pelos muçulmanos, a população hispânica cindiu-se em três
grandes grupos:
− Os que aceitaram a conversão ao islamismo que, de acordo com a lei
alcorânica, era normalmente proposta antes do ataque, ingressaram na
comunidade islâmica (umma) e passaram a usufruir, ao menos teoricamente,
dos direitos e prerrogativas atribuídas aos respetivos crentes. Eram os
musalima ou muladî-s, adotados, que os cristãos apelidavam de renegados.
Quantitativamente numerosos, alguns ocuparam cargos de relevo e tornaram-
se mediadores culturais entre os invasores e os moçárabes.
− Os cristãos que não aceitaram o convite à conversão ao islamismo e não
assinavam o pacto de rendição eram submetidos pela força e os seus templos
derrubados ou transformados em mesquitas. Privados dos seus bens, podiam
continuar a tratar as terras, mas como simples arrendatários e na contingência
de serem expulsos.
− Os que, voluntariamente ou por exigência das circunstâncias, se sujeitavam à
dominação, negociavam a liberdade com um pacto individual ou coletivo. Este
pacto permitia-lhes continuar na posse dos bens e gozar duma certa
autonomia jurídica e religiosa, proporcional ao grau de submissão negociado e
ao grau de tolerância dos chefes locais. Os cristãos submetidos por pacto eram
chamados mu'ahidûn (os que assinaram um pacto) ou dimmî-s (tributários),
termos que com o tempo foram aplicados respetivamente aos cristãos e aos
judeus. Os documentos latinos, castelhanos e portugueses medievais
designaram-nos por moçárabes, de musta’rab (tornado árabe), para significar
que os cristãos, não tendo abdicado da sua fé, aceitaram viver sob o domínio
islâmico.
As crónicas hispânicas medievais consideram esta situação generalizada,
aprovando-a ou reprovando-a. Entre as cidades hispânicas que se submeteram por pacto
contam-se Lisboa, Mérida, Toledo, Lérida, Pamplona, Carmona, Córdova, Sevilha e
Múrcia. As cidades de Santarém, Coimbra e Seia, apesar de submetidas pela força,
assinaram um pacto de coexistência pacífica. Apesar do clima de insegurança das
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incursões de Afonso I das Astúrias, muitos cristãos permaneceram na região entre o


Douro e o Mondego.
Os moçárabes eram, todavia, vítimas de muitas discriminações resultantes dos
pactos:
− Davam obrigatoriamente hospedagem gratuita nas suas igrejas e casas
durante três dias e três noites a viandantes muçulmanos.
− Não podiam vestir como os muçulmanos e tinham de rapar só a parte anterior
da cabeça.
− Não podiam andar a cavalo. Deslocavam-se de mula ou burro, sem selins e
estribos e com os dois pés pendentes para o mesmo lado.
− Não podiam andar munidos de espada, nem fabricar ou utilizar armas.
Do ponto de vista administrativo, os moçárabes gozavam de uma relativa
autonomia, na medida em que eram governados por leis e chefes por eles escolhidos:
− Viviam em espaços próprios, separados das comunidades islâmicas,
governados e protegidos por um comes, eleito por eles, mas nomeado pelo
poder central muçulmano, de quem dependia.
− O comes era secundado por um exceptor ou cobrador de impostos, que
recebia a jízia a que estavam sujeitos, e por um censor, que os julgava nos
litígios internos, de acordo com o direito visigótico. Os conflitos ente
muçulmanos e cristãos eram julgados pelo encarregado de polícia, chamado
zavalmedina ou prefeito da cidade.
− Os cristãos exerceram ainda outros cargos, que depois foram conservados no
período posterior à reconquista, como o almoxarife (intendente da fazenda), o
almotacé (fiel de pesos e medidas) e o alarife (perito de construções). Alguns
cristãos exerceram cargos importantes na burocracia emiral ou califal e no
próprio exército árabe.
No decurso da dominação árabe, a convivência entre cristãos e muçulmanos não
foi fácil. Apesar de alguns historiadores insistiram na exemplaridade da coabitação
pacífica, a aparente passividade da submissão não foi sinónimo de paz, nem de aceitação
dos dominadores. Os cronistas do séc. VIII falam duma pax fraudifica (paz fraudulenta) e a
Crónica Moçárabe de 754 relata devastações e atrocidades semeadas pelos árabes desde
o Império bizantino até à Hispânia. As próprias fontes árabes, para este efeito insuspeitas,
confirmam os atropelos e atrocidades cometidas.
Aos custos socio-religiosos a que os moçárabes estavam sujeitos, juntavam-se os
de ordem económica. Relegados para os meios rurais, os moçárabes viram-se obrigados a
trabalhar as terras em proveito dos novos donos, que os oneravam com pesados
impostos. Por exigência da lei alcorânica, estavam obrigados a pagar duas espécies de
impostos:
− A jízia ou capitação:
o Era uma contribuição imposta a cada cristão (imposto pessoal), a pagar
no fim de cada mês lunar, variando a quantia consoante as posses. Com
o seu pagamento era-lhes dada a liberdade religiosa concedida pelo
Alcorão às gentes do Livro.
o Estavam isentos os idosos, as mulheres, as crianças, os inválidos, os
pedintes, os doentes, os loucos e os monges.
5

o O ritual do pagamento visava humilhar os contribuintes e induzi-los a


renegar o cristianismo:
 De pé e publicamente, o cristão depositava o imposto nas mãos
do recebedor que, por sua vez o entregava ao senhor,
solenemente instalado numa poltrona.
 Depois o senhor, seguido normalmente pelos muçulmanos
presentes, agarrava o cristão pelo pescoço e exclamava
sarcasticamente: «o dimmî, inimigo de Alá, paga a jízia».
− O carage:
o Era um imposto a que também estavam sujeitos os muçulmanos, que
incidia sobre os bens prediais ou territoriais (géneros da terra), de que
devia ser entregue uma percentagem ao Estado, que podia chegar aos
20%.
o O seu pagamento, a que os hispânicos já estavam habituados desde a
época romana, garantia-lhes a posse das propriedades e,
consequentemente, uma certa autonomia económica.
A quantia dos impostos variava de acordo com a natureza dos pactos e com as
alterações, às vezes unilaterais, a que estavam sujeitos. A situação económica variava
pois segundo as épocas e lugares e pode ser caracterizada como uma tolerância
discriminatória.
Apesar das pressões e das conversões ao islamismo, a comunidade moçárabe
resistiu e sobreviveu religiosa, linguística e culturalmente, malgrado a tentativa de
absorção dos muçulmanos. Por trás da aparente serenidade da exploração tributária, os
moçárabes alimentaram com paciência o anseio de libertação e pegavam em armas
quando as conjunturas políticas o permitiam.

2.2. A liberdade religiosa limitada


A liberdade de que gozavam os cristãos que viviam sob a dominação islâmica era
muito condicionada por restrições de ordem social, religiosa e económica. Os pactos
assinados determinavam globalmente as seguintes medidas discriminatórias:
− Proibiam a ostentação da cruz nas Igrejas, a pregação e outras manifestações
religiosas fora delas, assim como o toque dos sinos.
− Impunham nos funerais e noutras manifestações religiosas a oração em voz
baixa sempre que estivesse presente um muçulmano.
− Os defuntos cristãos tinham que levar o rosto coberto e serem sepultados em
cemitérios próprios.
− Proibiam o uso de nomes, palavras e expressões muçulmanas e a proclamação
de verdades de fé católicas, como a divindade de Cristo e a Trindade, que se
opusessem ao Alcorão.
− Proibiam que os católicos tivessem criadas muçulmanas, que presidissem a
reuniões em que estivessem os muçulmanos e que se sentassem quanto estes
estivessem de pé.
− Permitiam a conversão dos católicos ao islamismo, mas decretavam a morte
para os muçulmanos que se convertessem ao cristianismo. Obrigavam as
mulheres cristãs que se casassem com muçulmanos a abraçar a fé islâmica.
Relativamente à organização religiosa devemos referir aos seguintes aspetos:
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− Os moçárabes viveram agrupados em comunidades, das quais as mais


importantes foram as de Toledo, Córdova, Sevilha e Mérida. No futuro
território português mantiveram-se ativas as dioceses de Lisboa e Coimbra. A
situação da de Braga é pouco clara, mas sabe-se que teve vários bispos
residentes nas Astúrias e que Afonso o casto a colocou na dependência de
Lugo. Conhecem-se também nomes de bispos durante a dominação islâmica
para as dioceses de Lamego, Viseu e Porto.
− Apesar a incerteza que reina sobre a situação dos mosteiros do Ocidente
peninsular, muitos deles refizeram a sua normalidade depois da agitação dos
primeiros tempos. A partir de meados do séc. IX, sobretudo nas regiões do
Porto e Coimbra, foi nos mosteiros que os cristãos encontraram espaço para se
consagrarem a Deus e que os moçárabes das vizinhanças alimentaram a sua fé.
Conhece-se o funcionamento dos mosteiros de Cete, Lavra, Crestuma, Lorvão,
Vacariça, Guimarães, São Miguel de Riba Paiva, Vairão, Moreira e Pedroso.
− Os bispos instituídos após a invasão, ainda que designados pelas comunidades
cristãs, ficavam sujeitos à aprovação dos monarcas muçulmanos, que não
abdicaram deste e de outros privilégios herdados dos visigodos. O controlo
eclesial passava também pela convocação dos concílios pelos sultões.
− A liberdade de culto, com os limites conhecidos, só era reconhecida dentro das
igrejas já existentes na altura da invasão e nos mosteiros e casas de habitação.
Os cristãos não podiam construir novos templos, nem reconstruir os que se
arruinavam, tendo aliás muitos deles sido convertidos em mesquitas.
− Uma das manifestações de maior vitalidade religiosa deste período foi o culto
dos santos, que continuou aceso e perdurou durante toda a dominação
islâmica. Particularmente importante foi o culto de São Vicente e dos Santos
Justa, Máximo e Veríssimo em Lisboa (as atas do martírio destes três últimos
remontam ao séc. X), de Santa Maria em Faro, de São Brás em Alportel, de São
Manços em Évora, de São Sisenando em Beja, de Santa Iría em Santarém. É
ainda conhecida em vários locais a veneração de Santa Comba, São Paio e São
Mamede.
A tolerância inicial foi desaparecendo cada vez mais. A partir do final do século X,
passou a ser uma pálida sombra do que fora antes. Mosteiros e igrejas, inicialmente
pujantes, soçobraram diante das violências dos muçulmanos. As perseguições, o
isolamento nos campos ou nos bairros periféricos das cidades e a marginalização social,
económica e religiosa levavam muitos moçárabes a emigrar para o norte cristão. Muitos
monges do sul, ao verem destruídos e ameaçados os seus mosteiros, foram fundar outros
no norte, influenciando com a sua cultura as populações das vizinhanças.
Não foi fácil o encontro da cristandade do norte, profundamente influenciada pela
França, com os moçárabes. Paralelamente à estabilização política, houve a preocupação
de restaurar as dioceses do território recém-conquistado e de insuflar nos mosteiros de
tradição visigótica o espírito reformador de Cluny e Cister, bem como a observância
agostiniana em Santa Cruz de Coimbra. Isto implicava a substituição do rito moçárabe
pelo romano, num processo longo e conflituoso. Os moçárabes eram detentores do rito
visigótico, de que se consideravam depositários. Recusavam, por isso, a liturgia romana,
veiculada pelos cristãos reconquistadores do norte, que Afonso VI tinha imposto ao reino
de Leão em 1080.
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− A título de exemplo para o âmbito diocesano, os moçárabes de Coimbra,


aquando da reconquista, em 1064, liderados pelo moçárabe Sisnando lutaram
contra as imposições do norte. O apego às suas tradições, conotadas com o
islamismo, custou-lhes a acusação de traidores. Sisnando encontrou aliás no
bispo Paterno (1080-1087) um apoio no estabelecimento dos poderes civil e
religioso do reino de Leão, mas com conotações moçárabes. Só após a morte
de Sisnando, em 1092, foi possível nomear um bispo de rito romano, Crescónio
(1092-1098) de Tui que, juntamente com Gonçalo Pais de Paiva (1109-1128),
venceram as últimas resistências moçárabes.
− No que respeita aos mosteiros, houve um impressionante movimento de
reconversão, que acompanhou a formação do Condado Portucalense. Os
mosteiros de tradição visigótica, masculinos, femininos ou dúplices, trocaram a
Regra de São Frutuoso ou Regula Communis pela de Cluny e, a partir de
1143/44, com a filiação do mosteiro de Tarouca a Claraval e a fundação do de
Alcobaça, pela de Cister.

2.3. A vida cultural


A conquista muçulmana provocou o estancamento da florescente cultura cristã
peninsular, formada pela confluência da cultura clássica com a visigótica e suévica,
caldeadas com a mensagem cristã. A cultura hispano-árabe formou-se lentamente a
partir do encontro da cultura ibérica anterior com elementos dos árabes e berberes. A
islamização mais profunda da Península só viria a dar-se com o califa Abderramão II (822-
853), que atraíu à Península sábios e artistas orientais. Esta fase coincidiu já com o
período da reconquista.
A divisão do antigo povo hispânico em dois grupos social, política e religiosamente
distintos provocou uma diversificação cada vez mais acentuada das respetivas culturas:
− Os muladí-s, ao assumirem o islamismo, assumiram também, ainda que
lentamente, o estatuto cultural dos outros muçulmanos.
− Os moçárabes foram menos influenciados pela cultura muçulmana, dado que
viviam socialmente marginalizados e rejeitavam o islamismo. A língua e a
cultura dos moçárabes, mesmo se contaminadas pelo árabe, mantiveram
ligações diretas com o latim, sobretudo através da liturgia e do contacto com a
Bíblia, com os autores cristãos anteriores e com os seus contemporâneos do
além-Pirenéus.
Os moçárabes e os muladî-s eram, ao que parece, detentores duma cultura muito
mais elevada do que a dos anteriores invasores. Estes eram maioritariamente berberes,
isto é pastores do Alto Atlas, e beduínos do deserto, familiarizados com os trabalhos dos
campos e as armas, mas alheios às atividades do espírito. Os moçárabes, portadores da
cultura anterior, conhecendo a língua árabe, passaram a ocupar uma vantagem cultural
sobre os invasores. Os muladî-s, mais próximos dos dominadores, contribuíram ainda
mais para o esplendor da cultura muçulmana peninsular. Com o tempo, os hispano-
muçulmanos progrediram mais culturalmente, em contacto com os seus irmãos do
oriente, enquanto os moçárabes, separados do resto da cristandade, perderam
gradualmente o contacto com as suas raízes culturais cristãs, com consequências no
definhamento da sua cultura original e na sua progressiva arabização.
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Tal como no resto da Europa até ao séc. XII, também na Península durante a
dominação islâmica, foram os mosteiros, com as suas escolas, os centros representantes
e promotores da cultura. Em Córdova e arredores foram conhecidos quinze. Em Portugal
tiveram muita importância na região de Coimbra os de Lorvão e da Vacariça. Ao serem
incorporados nos novos reinos cristãos, os moçárabes levaram consigo e transmitiram o
legado da cultura formada no contacto com os muçulmanos. Restituíram assim ao
ocidente a sua cultura transformada pelas influências hispano-árabes.
Não podemos, contudo, exagerar o peso da influência moçárabe, porque em
muitos casos a memória ficou só nalguns termos toponímicos e onomásticos,
compreensível tendo em conta que os moçárabes do sul foram acolhidos com muitas
reservas pelos conquistadores, quando não eram massacrados ou escravizados. De facto,
à medida que a reconquista foi avançando, coube também aos mosteiros e às catedrais
restauradas a tarefa de recuperar a cultura visigótica, que tinha sobrevivido nas zonas
menos controladas pelos muçulmanos. Há, pois, que relativizar tanto a posição dos que
subestimam o contributo hispano-árabe para a constituição dos povos português e
espanhol (Alexandre Herculano; Sánchez Albornoz), como a dos que exageram a
dimensão desse contributo, acusando o norte de impor violentamente ao sul não só o
cristianismo, mas também os cânones culturais importados de além-Pirenéus (Borges
Coelho; Cláudio Torres).

3. A reconquista cristã
Entretanto, porém, foi-se desenvolvendo a reconquista. Trata-se do movimento
histórico responsável pela recuperação cristã do espaço hispânico, iniciado por um
pequeno grupo de asturianos, acantonados nos Picos da Europa. Liderados por Pelágio e
apoiados por alguns nobres visigodos, resistiram contra as forças islâmicas, que em vão
tentaram ultimar a conquista integral da Península. Foi a partir deles que se iniciou o
processo de reconquista:
− A luta pela sobrevivência. De início tratava-se de uma luta de sobrevivência
sem qualquer conotação nacionalista e cristã, como denotam as crónicas
hispânicas de 741 e 754. Lentamente o grupo assumiu como essencial à sua
luta pela liberdade as dimensões étnico-política e religiosa, como já mostram
as crónicas de Afonso III de Leão (866-910).
− O ermamento do território. Na arrancada militar que levou as forças asturiano-
leonesas até ao Douro, Afonso I (739-757) despovoou e arrasou o território
que separava os rios Douro e Minho, para criar um espaço que servisse de
barreira de proteção em relação aos muçulmanos. A Galiza ficava assim bem
demarcada em duas zonas:
o A do norte, mais povoada, que herdaria o nome original de Galiza.
o A do sul, em expansão rumo ao Mondego, que recebeu inicialmente o
nome do burgo que controlava a desembocadura do rio Douro e se
aplicava já ao território adjacente: Portucale ou Portugale. Este nome
viria a designar a região que viria a ser a Terra Portucalense, Província
Portucalense, Condado Portucalense ou simplesmente Portucale.
− O repovoamento do território. Sujeito ao ermamento que por mais de um
século a diferenciou da Galiza, a região de Portucale adquiriu maior coesão
com o repovoamento de que foi alvo durante os reinados de Ordonho I (850-
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866) e Afonso III (866-910). Aproveitando os conflitos dos muladî-s com os


árabes, este rei conseguiu alargar o domínio até Coimbra e repovoar, entre
outras, as cidades de Braga, Porto, Viseu e Lamego.
− A autonomia do território. A individualidade política do território só foi
alcançada a partir de finais do séc. XI, durante o reinado de Afonso VI. Em
1096, este monarca retirou o governo de Portucale e de Coimbra a D.
Raimundo para o entregar a D. Henrique que, a partir do casamento com D.
Teresa em 1099 se passou a chamar conde, dando uma nova consistência
jurídica ao território que governava. A entrega do território a D. Henrique
pode eventualmente justificar-se pelas dificuldades de D. Raimundo em
governar tão extenso território e suster o ímpeto almorávida ou pela
preferência do rei pela filha Teresa, apesar de ilegítima.
− A unidade eclesiástica. Ao assumir a direção do Condado Portucalense, D.
Henrique apercebeu-se das pretensões dos arcebispos de Braga e Toledo à
jurisdição metropolitana sobre o território entre o Cantábrico e o Douro. A luta
arrastou-se e Braga só conseguiu impor a sua jurisdição a todas as dioceses
portuguesas no reinado de D. Afonso Henriques, contribuindo assim, com a
unidade eclesiástica, para a unidade política.
Terminada a reconquista do seu território, com a tomada de Silves, Alvor e
Albufeira em 1249, Portugal deixava de ter o perigo islâmico a rondar-lhe as fronteiras,
mas continuava a ser confrontado no seu interior com a mesma realidade, agora
convertida em minoria étnica-religiosa, politicamente submissa, como veremos noutro
momento. A reconquista permitiu que o catolicismo se reorganizasse, sobretudo ao nível
da circunscrição eclesiástica e da recuperação monástica.

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