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Rudolf Steiner
Economia viva
O mundo como organismo econômico único
Catorze conferências proferidas em Dornach (Suíça),
de 24 de julho a 6 de agosto de 1922
3ª edição
Tradução de
Heinz Wilda
Título original:
Nationalökonomischer Kurs
© 1961 Rudolf Steiner Nachlassverwaltung, Dornach
5ª ed. 1979, Rudolf Steiner Verlag, Dornach (Suíça)
GA-Nr. 340 — ISBN 3-7274-3400-7
Cotejo da tradução:
Günter Kollert (com edição original)
Josiana Arippol (com edição inglesa)
Jos Schoenmaker (com edição holandesa)
Editoração: Ramon Negreiros
Notas numeradas:
© 1993 New Economic Publications, Sussex
Tradução: Ana Vieira Pereira
Revisão e adaptação: Jacira Cardoso
3ª edição — 2006
98-2662 CDD-330.01
O surgimento da Ciência Econômica. Os três períodos da vida econômica moderna: economia instin-
tiva (Inglaterra), economia industrial e economia estatal (Alemanha). Contraste entre Inglaterra e
Alemanha no século XIX. Transições instintivas e conscientes para o industrialismo. O solo virgem
da Índia e a antiga economia agrária da Europa Central. A emergência do Estado na economia alemã
em lugar dos ideais de 1830 e 1840 (liberalismo). A inabilidade para ingressar na economia mundial.
A ausência de contrastes entre âmbitos da vida, particularmente entre a vida cultural, a jurídica e a
econômica. A ordem social tríplice. Limitações no pensamento econômico. Economia e teoria da luz.
Inviabilidade dos conceitos científico-naturais. Invalidade das regiões econômicas isoladas. O mundo
como um organismo econômico e social global.
A questão do preço e a impossibilidade de sua definição. Os três fatores do processo econômico: natu-
reza, trabalho e capital. O processo econômico em moto perpétuo. A troca como essência da economia.
Flutuação de preços. A teoria usual acerca de terra, trabalho e capital. Economia animal. Trabalho
aparente. Trabalho humano excedente à provisão própria. A insensatez da concepção marxista do tra-
balho. A irrelevância do trabalho em si. Trabalho direcionado pelo espírito: criação de valor econômico.
Intercâmbio de valores. Preço e interação de valores. Estática e movimento na economia. A polaridade
entre a natureza e o capital.
A forma própria da Ciência Econômica. Ética e Ciência Natural. Religião e economia na Antiguidade.
Distinção entre mandamento e lei. A emancipação do direito e do trabalho em relação à vida religiosa.
O surgimento do egoísmo e a busca da democracia. Divisão do trabalho e altruísmo. Trabalho indi-
vidual para a comunidade. Impossibilidade econômica do egoísmo. Divisão do trabalho e altruísmo.
Contradição entre egoísmo e economia mundial. Trabalho e autossustento. O preço médio. O comer
ciante intermediário.
O efeito barateador da divisão do trabalho. Origem do capital pela divisão do trabalho. O capital
emancipado da terra pelo espírito. Capitalismo e finanças. Dinheiro: espírito realizado. O espírito
valorizando o capital. Investimentos. Empréstimos. A circulação do capital. A diversificação de
capacidades no trabalho. A relação entre dois polos de valor, mercadorias e dinheiro. Natureza
essencial da mercadoria e do dinheiro. Mobilidade de pensamento. Observação interior do processo
econômico.
A polaridade entre produção e consumo. O processo econômico como processo orgânico. Valorização e
desvalorização. Valores criados por tensão e movimento. Analogia entre cinética e energia potencial.
Crédito pessoal para projetos e taxa de juros. Crédito real. Estancamento do capital em terras e seu
desaparecimento no espírito. A inexistência de valor da terra. Valores reais e valores aparentes. As-
sociações. Distribuição da força de trabalho. Realocação de habilidades.
A fórmula do preço correto. A oposição entre terra capitalizada e produção de bens. Duas taxas de juros.
O significado econômico da atividade intelectual. Consumidores puros. Bens e forma de pagamento.
Pagar, emprestar, doar. Capital e empréstimo. Vida cultural e doação. Doação: juros sobre a terra.
Associações regulando as doações.
Compra, empréstimo e doação, três fatores da formação de preço. Os fatores do repouso. A ficção
do preço do trabalho. Determinação recíproca de valores. Produtos do trabalho. O preço correto
e a falsificação do preço. Origem do arrendamento. Arrendamento como doação compulsória.
Criação de renda inerente ao processo econômico. A agricultura como entidade singular. A des-
valorização constante do capital industrial. Autossustentação com agricultura. A necessidade de
estabelecer o equilíbrio. Meios de produção. Capital industrial. Mercadorias. Bens. A necessidade
das associações.
Conceitos econômicos vigentes. A ideia de oferta e demanda. Oferta, demanda e preço como fatores
primários. O papel do direito. O papel das capacidades individuais. Impossibilidades econômicas:
permuta entre direitos e mercadorias, entre capacidades e direitos. ‘Mais-valia’: conceito moral, e não
econômico. Ciência Econômica e Ciência Natural. Associações para produção, consumo e distribuição.
A economia da troca, do dinheiro e das capacidades humanas.
Valores indiretos nas relações econômicas. Conceito de ‘economias regionais’. Distância entre despesa
e receita. O papel da doação. A associação. Capital mercantil (Inglaterra), de empréstimo (França) e
industrial (Alemanha). Capital de empréstimo e autoridade. Capital industrial. Matérias-primas
e conceitos de poder. A procura de mercados e a prudência humana. Capital mercantil e competição. O
surgimento da concorrência. O controle financeiro subtraído ao ser humano. A ‘circulação monetária
sem sujeito’ e o ‘imperialismo sem objeto’.
Circulação de valores. Lucro. O lucro em ambos os lados da troca. Criação de valores pelo intercâmbio.
Transformação de mercadoria em dinheiro. As associações e o ‘senso comum objetivo’. Vantagem (lucro)
como meio de pressão. Capital de empréstimo (empreendimento) como meio de sucção. Interesse, reci-
procidade humana e empréstimo. Imaginação e juízo econômico. Altruísmo objetivo em lugar de moral
subjetiva. Ordem social trimembrada: a vida econômica entre a vida jurídica e a vida cultural-espiritual.
Evolução da vida econômica. Economias privadas. Economias nacionais. Economias estatais. O Es-
tado como organismo econômico e cultural. Vantagem mediante a consolidação das economias. David
Ricardo e Adam Smith. A Inglaterra como líder do comércio mundial. Origem do padrão-ouro para
as moedas. Transição do comércio mundial para a economia mundial. Economia mundial como o fim
da consolidação. Economia mundial como uma economia fechada. Relação entre mercadorias e
dinheiro. A não-depreciação do dinheiro. Consumo total por toda a humanidade. Inadequação da
mentalidade econômico-nacional para a economia mundial. Economias fechadas e doações livres.
A não-capitalização da terra. Relação entre produção de alimentos, doações livres e vida cultural.
Dinheiro e preço. Fatores subjacentes à formação de preço. A valorização do dinheiro. Dinheiro como
meio de troca – concorrente desleal da mercadoria. Dinheiro de compra, dinheiro de empréstimo e
dinheiro de doação. A transição do dinheiro de empréstimo para dinheiro de doação. Correção da
função do dinheiro. O envelhecimento e a renovação do dinheiro. O dinheiro velho como dinheiro
de doação. Administração associativa do empréstimo e da doação. Dinheiro e controle da economia.
O valor econômico das produções intelectuais. A premissa das necessidades culturais. O cultivo do
solo como ponto de partida para a atividade econômica. A atividade cultural-espiritual como trabalho
economizado. A avaliação da produção intelectual pelo trabalho físico economizado. Relação entre
produção agrícola e produção intelectual. Balanços inerentemente compensatórios.
A Ciência Econômica moderna. Conceitos vivos para a economia. Paralelismo entre valores reais e
falsos valores. Contabilidade mundial. Meio de troca, a qualidade principal do dinheiro. Valor nominal
e valor real do dinheiro. A polaridade entre trabalho despendido e trabalho economizado. A natureza
como base de valor. Trabalho acumulado e trabalho poupado. Dinheiro como soma total dos meios de
produção. Relação entre população e área de terra. Valores monetários: padrão-ouro e padrão natural.
Preços como relação entre número de habitantes e área cultivável. A economia como valor econômico.
Ilustrações ......................................................................................................................................139
Nota à edição brasileira
O presente volume possui um caráter especial no âmbito das obras de Rudolf Steiner pu-
blicadas em português. Reproduzindo na íntegra um curso ministrado a estudantes de Economia
há mais de setenta anos — o que a priori poderia sugerir obsolescência ou inadequação a este fim
de século —, sua necessidade e atualidade se revelam imediatamente nas primeiras páginas. De
fato, a grande maioria das questões econômicas que preocupavam o mundo em 1922 persiste ainda
hoje com a mesma — se não maior — intensidade, e sua solução ainda parece longínqua apesar
dos esforços de especialistas e autoridades governamentais para encontrá-la. Inflação, padrões
monetários, mercados de trabalho e tantos outros são assuntos que desafiam e comprometem a
estabilidade não só de países ou comunidades econômicas, mas de todo o Planeta como cenário do
intenso intercâmbio gerado pela economia moderna.
É com grande surpresa que se constata, nesta série de conferências, quão à vontade Ru-
dolf Steiner — mais conhecido como pensador e filósofo — se movimenta nesse complexo âmbito
de realidades e conceitos que povoam o mundo econômico. E é propondo a observação a partir de
dentro dos processos que ele vem dar sua grande contribuição para um enfoque vivo e realmente
prático dos problemas dessa área. Aí reside o caráter todo peculiar de suas observações: fazer
ver a qualidade realmente econômica dos fatos, despojando-os de interesses políticos, culturais
e outros — pois a economia contém intrinsecamente interesses próprios e, para ser saudável em
si mesma, deve pautar-se por evidências simples e objetivas, inerentes à sua própria natureza.
E a esta última pertence, dentre outras, a tendência à integração, à eliminação de barreiras,
num contínuo fluir interativo que pressupõe — sem qualquer interferência da moral ou da
ética — o altruísmo (sic!) em benefício exclusivo das próprias relações econômicas.
É com o objetivo de proporcionar — tanto a especialistas quanto a interessados em Economia
— o acesso a esta contribuição diferenciada que empreendemos esta edição, num esforço conjunto
entre editores e consultores econômicos para um objetivo que julgamos plenamente justificado e
gratificante. E não é sem razão que intitulamos este livro Economia viva: seus enfoques partem
verdadeiramente da realidade palpável, deixando de lado qualquer abstração inócua.
A tradução da obra foi realizada inteiramente a partir do original em alemão, com posteriores
cotejos de apoio com as versões inglesa e holandesa e, finalmente, com revisão e adaptação finais
com vistas à melhor fluência e compreensibilidade possíveis. A estrutura em conferências foi man-
tida, adotando-se títulos para as mesmas em função do assunto principal tratado em cada uma
delas. As notas de rodapé visam a subsidiar o leitor em aspectos importantes ou curiosos. Além
disso incluímos, no final do livro, notas numeradas extraídas da tradução inglesa Economics, de
Christopher H. Budd (New Economy Publications, Sussex, editora à qual agradecemos a autori-
zação). Conforme se explica na introdução às notas, estas também foram devidamente adapatadas
à presente edição brasileira.
As figuras aludidas no texto encontram-se nas páginas finais.
Na expectativa de que este trabalho possa ampliar as perspectivas diante dos complexos
desafios econômicos de hoje, convidamos o leitor a conhecer o claro e competente pensamento de
Steiner a respeito da matéria.
Os editores
1 Do industrialismo à economia mundial
24 de julho de 1922
Hoje quero iniciar fazendo uma espécie de introdução, para amanhã passar ao
1. que, de certo modo, deverá constituir um tratado global sobre questões sócio-econômicas
que o homem moderno é levado a formular para si mesmo.
A ‘Ciência Econômica* tal como se fala a seu respeito na atualidade é, de fato,
uma criação recente. No fundo ela não surgiu senão na época em que a vida econô-
mica dos povos modernos começou a tornar-se muito complexa em comparação com
2.
as condições econômicas de tempos anteriores. E como o presente curso se destina,
em particular, aos estudantes de Economia, será necessário demorar-nos, à guisa de
introdução, na peculiaridade do pensamento econômico moderno.
Não será necessário retrocedermos muito na História para perceber que já no
século XIX a vida econômica se transformou com relação a condições anteriores. Basta
os Senhores se lembrarem de que em certo sentido a Inglaterra, por exemplo, estava
constituída essencialmente de modo moderno, quanto à sua economia, já na primeira
metade do século XIX; de maneira que, no decorrer daquele século, pouca coisa mudou
radicalmente na estrutura econômica inglesa. As grandes questões que nos tempos
modernos se relacionam, em sentido social, com os problemas econômicos, já existiam
na Inglaterra na primeira metade do século XIX; já naquele tempo, as pessoas que
se empenhavam em desenvolver uma mentalidade moderna a respeito de assuntos
sócio-econômicos podiam fazer seus estudos na Inglaterra, ao passo que, por exemplo,
na Alemanha tais estudos não teriam surtido frutos. Na Inglaterra, foram particu-
larmente as importantes relações comerciais o que se haviam formado até o primeiro
3. terço do século XIX, tendo-se criado, no âmbito da economia inglesa, uma sólida base
no capital comercial como correlato da formação da estrutura comercial. Lá não havia
necessidade de se recorrer, para a economia moderna, a um ponto de partida diverso
do que resultara, como capital comercial, das condições comerciais consolidadas que,
conforme dissemos, já existiam até no primeiro terço do século XIX. A partir dessa
época, tudo na Inglaterra transcorreu com uma certa consequência lógica. Contudo não
devemos esquecer que toda a economia inglesa só foi possível na base construída sobre
a relação da Inglaterra com as colônias, em especial com a Índia. Toda a economia na-
cional inglesa não teria sido possível sem essa relação da Inglaterra com suas colônias;
em outras palavras, a economia nacional inglesa, com sua capacidade de desenvolver
grandes núcleos de capital, foi construída sobre a possibilidade de poder recorrer a
regiões economicamente virgens. Não devemos esquecer-nos disso, mormente se agora
quisermos passar da economia nacional inglesa para a alemã.
Estudando esta última, verificaremos que no primeiro terço do século XIX ela ainda
4. correspondia aos costumes econômicos tradicionais tal qual existiam essencialmente
** Não relacionada com a filosofia política britânica de mesmo nome (v. tb. nota 49). (N.E.)
1. Do industrialismo à economia mundial 13
já dos anos trinta pretendiam; o Estado se consolidou pelas meras vias do poder. Esse
Estado também se apoderou gradativamente — em plena consciência — da vida eco-
nômica, sendo essa vida totalmente permeada em sua estrutura, no último terço do
século XIX, pelo princípio oposto ao anterior. No segundo terço havia-se desenvolvido
com base nas concepções liberalistas, mas agora desenvolvia-se inteiramente sob as
condições do princípio de Estado. Era isso o que conferia a marca global à vida econô-
mica na Alemanha; ocorre que toda essa evolução englobava elementos de consciência.
Não obstante, tudo isso também se passava inconscientemente.
O ponto mais importante nisso tudo é que se criava — não apenas no modo de
pensar, mas em toda a maneira de agir economicamente — um contraste radical entre
a economia inglesa e a que surgia como economia da Europa Central. Ora, era jus-
8. tamente este contraste que indicava a direção em que se desenrolavam as relações
econômicas. Toda a economia do século XIX, tal qual se projetou pelo século XX adentro,
não teria sido imaginável sem o antagonismo entre o oeste e o centro europeus: o modo
de vender, de apresentar as mercadorias, de fabricá-las.
E assim a economia inglesa se tornou paulatinamente possível com base na pro-
priedade da Índia, e agora sua ampliação é devida ao contraste entre as economias do
9. oeste e do centro europeus. Ora, a vida econômica não se baseia no que se percebe na
atividade do âmbito reduzido de cada região; ela se baseia nas grandes inter-relações
do mundo lá fora.
Foi com esse antagonismo que o mundo se abriu à era da economia mundial —
mas sem poder entrar nela. É que na realidade a economia mundial baseava-se nos
elementos instintivos que se haviam desenvolvido e que acabo de apontar mencionando
o antagonismo entre a Inglaterra e a Europa Central. No século XX existia praticamente
o fato — sem que o mundo o soubesse ou percebesse — de esse antagonismo se tornar
cada vez mais presente, mais profundo. Surgiu então a seguinte questão importante:
10. as condições econômicas resultaram desses contrastes, projetando-os mais e mais para
o futuro; porém, paralelamente à constante recrudescência desses antagonismos, não
se conseguia achar um modo de levar adiante uma cooperação econômica. Era essa a
grande questão do século XX: o contraste havia criado a economia e a economia havia
aumentado o contraste; o contraste carecia de uma solução. E levantou-se o problema:
como é que se solucionam os contrastes? Ora, a evolução histórica demonstrou que os
homens não foram capazes de solucionar o problema.
Tal como eu falei agora dever-se-ia ter falado em 1914, ainda na época da paz.
Mas então sobreveio, em lugar de uma solução, o resultado da incapacidade de se
11.
achar uma solução no sentido da História Universal. Encarando-se a coisa do lado
econômico, foi essa a doença que sobreveio então.
Ora, no fundo a possibilidade de qualquer evolução se deve a contrastes. Quero
mencionar apenas um desses contrastes: pela razão de a economia inglesa se haver
consolidado numa época bem anterior à da Europa Central, os ingleses não eram
capazes de estipular para certas mercadorias preços tão baixos como era o caso na
12. Alemanha, resultando daí a grande oposição da concorrência; porque o made in Ger-
many era questão de concorrência. E uma vez terminada a guerra, surgiu a pergunta:
pois bem, agora que os homens se trucidavam em vez de buscar uma solução por meio
dos antagonismos, como é que poderão levar a cabo as coisas? Eu sentia então que
primeiro deveríamos encontrar as pessoas capazes de compreender os contrastes
14 Rudolf Steiner
que teriam de ser criados numa outra esfera; porque a vida é baseada em contras-
tes, e só pode existir quando há contrastes interagentes. E foi ass im que em 1919
ocorria dizer: apontemos então para os contrastes para os quais, em verdade,
tende a evolução da História Universal — os contrastes no âmbito econômico, no
jurídico-político e no espiritual-cultural, ou seja, os contrastes da trimembração.7
O que, no fundo, justificou naquela época a ideia de que a trimembração deveria
ser introduzida no maior número possível de cabeças? Quero dar uma explicação exte-
rior: o mais importante teria sido introduzir a trimembração no maior número possível
de cabeças antes de se manifestarem as consequências econômicas que sobrevieram
desde então.8 Devemos lembrar--nos de que, na época em que a trimembração seria
mencionada pela primeira vez, ainda não nos encontrávamos diante das dificuldades
monetárias existentes hoje; pelo contrário: tivesse sido compreendida a trimembração
naquele tempo, as dificuldades jamais poderiam ter surgido. Porém deparávamo-nos
13. com a impossibilidade de as pessoas demonstrarem um senso realmente prático de
tais coisas. Procurávamos explicar a trimembração, e como resultado as pessoas per-
guntavam: ora, tudo isso é muito belo e nós o compreendemos; mas o importante seria
que controlássemos o declínio da moeda. Bem, a única coisa que se podia responder a
essa gente era: é isso o que pretende a trimembração. Acostumem-se à trimembração;
pois ela constitui o único meio de oposição ao declínio da moeda. Era justamente esse
o propósito da trimembração; não obstante, as pessoas continuavam indagando como
se faria isso. Ora, elas não compreendiam a trimembração, embora não deixassem de
afirmar compreendê-la.
E hoje a situação nos obriga a dizer o seguinte: — Falando atualmente para
pessoas como os Senhores, já não se pode fazê-lo da mesma forma como antes, pois
tornou-se necessária uma outra linguagem. É isto o que pretendo proporcionar-lhes
14.
nestas conferências. Pretendo mostrar-lhes como hoje a pessoa pode abordar tais
questões, especialmente diante de jovens que ainda têm a possibilidade de colaborar
na estruturação do que, de algum modo, deve ser estruturado.
É da maneira como acabei de falar-lhes que se pode caracteriz ar hoje uma
época como o século XIX, isto é, apontando para os contrastes em sentido histórico
e econômico. Porém poder-se-ia remontar também a tempos anteriores, abrangendo
15. a época em que as pessoas começaram a refletir sobre a economia. Contemplando
a história desta última, vemos que outrora tudo ocorria de maneira instintiva. A
complicação da vida econômica só se deu propriamente na época moderna, quando
as pessoas consideraram necessário refletir sobre essas coisas.
Minhas palestras destinam-se em primeiro lugar a estudantes, e por isso falo de
modo a fazê-los chegar a compreender a Ciência Econômica. Portanto, quero explicar
agora o que hoje importa essencialmente. A época em que se deveria refletir sobre Eco-
16.
nomia era uma em que os pensamentos não mais conseguiam abarcar um campo como
esse. Simplesmente não havia mais as ideias necessárias para tal. Quero demonstrar-lhes
a justeza disto mediante um exemplo da Ciência Natural.
A coisa é a seguinte: — Como homens, possuímos nosso corpo físico, que tem
um peso como outros corpos físicos. Depois de um almoço ele fica mais pesado do
17. que antes. Seria até possível conferir na balança. Isso quer dizer que participamos
da gravidade — uma qualidade de toda substância ponderável —, mas esta não
servir ia para muita coisa no corpo humano; quando muito, poderíam os passar
1. Do industrialismo à economia mundial 15
pelo mundo quase como autômatos, e não como seres conscientes. Já indiquei em
muitas ocasiões o que precisamos para formar conceitos dotados de valor — o que
é necessário para o homem poder pensar. O cérebro humano tem um peso de uns
1.400 gramas, se pesado isoladamente. Se deixássemos esses 1.400 gramas exercer
pressão sobre os vasos sanguíneos que se encontram na base da abóbada crania-
na, estes seriam esmagados. Não viveriam por um só instante caso nosso cérebro
fosse constituído de forma a fazer, com seus 1.400 gramas, pressão sobre o crânio.
A existência do princípio de Arquimedes é uma grande dádiva para o homem, isto
é, o fato de todo corpo perder na água tanto de seu peso quanto pesa o líquido que
ele desloca. Portanto, um corpo imerso na água perde uma parte de seu peso cor-
respondente ao peso do corpo d’água de tamanho igual ao dele. O cérebro flutua
no líquido cerebral, perdendo nisto 1.380 gramas de seu peso; pois é esse o peso do
corpo d’água do mesmo tamanho do cérebro humano. A pressão que o cérebro exer-
ce sobre a base é de apenas 20 gramas, peso que a base consegue suportar. Se nos
perguntarmos agora para que serve isso, deveremos dizer que não conseguiríamos
raciocinar mediante um cérebro que fosse apenas massa ponderável. Não pensamos
mediante o que é substância ponderável, e sim mediante a impulsão, o movimento
ascensional. Primeiro a substância deve perder seu peso, para podermos pensar.
Pensamos mediante aquilo que levita da Terra.
Contudo, o estado de consciência estende-se por todo o corpo. O que é que nos torna
conscientes em todo o nosso corpo? Nosso corpo contém 25 trilhões de hemácias. Essas
25 trilhões de hemácias são diminutas; mesmo assim possuem peso, por conterem ferro.
Cada uma dessas 25 trilhões de hemácias flutua no soro sanguíneo, perdendo tanto
18. de seu peso quanto desloca de líquido. Sendo assim, em cada uma dessas hemácias é
produzida uma impulsão 25 trilhões de vezes. O que impulsiona para cima, desse modo,
nos faz conscientes em todo o nosso corpo. Podemos dizer o seguinte: quando engolimos
alimentos, primeiro estes têm de ser despojados de seu peso e transformados, para po
derem servir-nos. Essa é uma exigência do organismo.
Os homens desaprenderam de pensar dessa maneira e de considerar isso como
algo abalizado, na época em que se tornou preciso pensar em termos econômicos. Desde
19. então contaram exclusivamente com substâncias ponderáveis, não se preocupando com
a transformação sofrida, por exemplo, por uma substância no organismo, com respeito
a seu peso, pelo fato de estar sujeita à impulsão.
Mas há ainda o seguinte: — Recordando-se de seus estudos de Física, os Senhores
não ignorarão que na Física se fala de espectro. Através do prisma se produz uma gama
de cores: vermelho, cor-de-laranja, amarelo, verde, azul, índigo, violeta. Na extensão
do vermelho ao violeta, o espectro parece luminoso. Também sabemos que para além
da área luminosa se supõem os raios assim chamados infravermelhos, e para além do
violeta os raios ultravioletas. Falando-se apenas de luz não se abrange, portanto, todo
20. esse fenômeno; deve-se dizer que a luz é polarmente transformada para os dois lados.
Deve-se mencionar que para além do vermelho a luz submerge no calor, e para além do
violeta nas reações químicas; e que nesse processo, por assim dizer, desaparece como
luz. Portanto, se alguém proferisse uma teoria exclusiva da luz, proferiria apenas um
aspecto — e, com isso, uma falsa teoria da luz. Na mesma época em que se deveria ter
começado a refletir sobre Economia, o modo de pensar da Física encontrava-se num
estágio que produzia uma falsa teoria da luz.9
16 Rudolf Steiner
Mencionei estes fatos pelo motivo de existir aqui uma analogia válida. Observem
essa... agora não economia humana, mas sim economia de pardais ou economia de
andorinhas! Trata-se também de uma espécie de economia; porém essa economia do
21. reino animal não tem muito valor para o reino humano. No caso do hamster, podemos
até falar de um capitalismo animal. O elemento essencial da economia animal consiste
em que a natureza oferece os produtos e o animal, como ser isolado, se apodera deles.
De certo modo o homem participa dessa economia animal, porém tem de superá-la.
A economia que pode começar por ser denominada economia humana é compa-
rável ao que, no espectro, é visível como luz, enquanto devemos comparar com a parte
do infravermelho aquilo que ainda se estende para a natureza. Trata-se aí, por exemplo,
22. do campo da agricultura, do campo da geografia econômica, etc. Não é possível deline-
armos o estudo da economia rigorosamente nessa direção. Ele se estende a um campo
que deve ser apreendido de modo totalmente diferente. É isso o que se dá, por um lado.
Por outro lado, porém, ocorreu que sob nossas condições econômicas muito com-
plexas, de certo modo, os homens paulatinamente perderam o raciocínio econômico. Tal
como ao aproximar-se do ultravioleta a luz cessa de aparecer como tal, na economia
a atuação humana cessa de ser puramente econômica. Frequentemente expliquei de
que maneira aconteceu isso. Vemos tal fenômeno surgir realmente apenas no século
XIX. Até então, a vida econômica é relativamente dependente da habilidade de cada
indivíduo. Um banco prosperava se houvesse um indivíduo capaz nesse banco. Cada
pessoa por si ainda tinha valor. Gosto de contar aquele bonito exemplo de quando uma
vez o Barão de Rothschild recebeu a visita de um emissário do rei da França. Este
23.
queria pedir um empréstimo. Rothschild estava ocupado, tratando com um negociante
de couros, e solicitou que se pedisse ao emissário do rei para esperar um pouco. Então
o homem ficou muito indignado ao saber que devia esperar enquanto um comerciante
de couro estava na sala. Quando o criado veio e lhe pediu que aguardasse um pouco,
ele não acreditou. “Diga ao senhor Rothschild que eu venho como emissário do rei da
França!” Quando o criado trouxe novamente a resposta dizendo que ele esperasse, o
homem correu para dentro da sala exclamando: “Sou o emissário do rei da França!”
Rothschild disse: “Por favor, sente-se, pegue uma cadeira!” O homem repetiu: “Sou o
emissário do rei da França!” E Rothschild: “Por favor, pegue duas cadeiras!”
O que, naquela época, ocorria na vida econômica estava ligado conscientemente
à personalidade humana. Mas as coisas mudaram. Hoje em dia bem pouca coisa, na
totalidade da vida econômica, depende da personalidade isolada. A atuação humana na
economia já entrou fortemente naquilo que eu gostaria de equiparar ao ultravioleta.
Trata-se daquilo que trabalha no capital como tal. As massas de capital trabalham por
24. si sós. Uma vida supraeconômica sobrepõe-se à vida econômica, o que essencialmente
é devido à força própria das massas de capital. Por isso podemos dizer o seguinte: se
hoje quisermos realmente compreender a vida econômica, deveremos encará-la como
colocada entre dois campos, dos quais um leva para baixo, à natureza, e o outro para
cima, ao capital. Entre estes encontra-se o que temos de apreender como a verdadeira
vida econômica.
Disso, porém, resulta que as pessoas nem sequer tinham a noção necessária para
delimitar, para situar corretamente a teoria econômica como tal no âmbito de todos os
25.
conhecimentos. Pois veremos que, por curioso que pareça, somente aquela esfera que
ainda não cabe na atuação econômica propriamente dita, e que podemos equiparar ao
1. Do industrialismo à economia mundial 17
infravermelho, é que pode ser captada pela razão humana. Pode-se ponderar, quanto
a ela, da mesma forma como se ponderam outros processos: como se cultivaria a aveia, a
cevada, etc.; qual seria, na mineração, o melhor método para extrair as matérias-primas.
No fundo, é somente sobre isso que podemos refletir corretamente com a razão que
costumamos empregar na ciência dos tempos modernos.
Isso tem um imenso significado. Lembrem-se do que eu dei como sendo o conceito
de que se necessita na ciência. Nós ingerimos substâncias pesadas como alimento. O fato
de elas nos serem úteis é devido à circunstância de constantemente perderem seu peso
26. dentro de nós, ou seja, de se transformarem completamente. A transformação ocorre
de modo diferente em cada órgão. No fígado ocorre diferentemente do que no cérebro
ou nos pulmões. O organismo é diferenciado, e as condições variam para cada órgão.
Presenciamos uma constante alteração da qualidade correspondente aos vários órgãos.
Temos uma situação mais ou menos análoga ao falar, no âmbito de uma economia
nacional, do valor de uma mercadoria, por exemplo. É um absurdo definirmos uma
substância como o carbono e depois perguntarmos: como se comporta essa substância
27. dentro do corpo humano? Até em sua ponderabilidade o carbono se torna algo com-
pletamente diferente do que é lá fora; tampouco tem sentido indagarmos o valor de
uma mercadoria: este varia dependendo de ela estar exposta numa loja ou estar sendo
transportada de um lugar a outro.
As ideias da Ciência Econômica devem ser bem móveis. Devemos perder o cos-
tume de construir conceitos que possam ser definidos. Devemos conscientizar-nos de
estarmos lidando com um processo vivo, e de que dentro de um processo vivo os con-
ceitos devem ser maleáveis. Ocorreu, porém, que as pessoas procuravam apreender
os conceitos ‘valor’, ‘preço’, ‘produção’, ‘consumo’, etc. pelas ideias existentes. Porém
estas de nada valiam; por isso não foi possível estabelecer uma teoria econômica. Não
podemos responder mediante os conceitos costumeiros, por exemplo, à pergunta: o que
28. é valor, o que é um preço? Devemos observar algo, relativamente ao valor e ao preço
que lhe correspondem, sempre na circulação em que se encontra. Se indagarmos, por
exemplo, pela simples qualidade física do carbono, não chegaremos a saber coisa alguma
do que acontece, por exemplo, no pulmão, embora o carbono se encontre também no
pulmão; é que toda a configuração é diferente no pulmão. Assim, o ferro encontrado na
mina é algo bem diferente do que no processo econômico. A economia se interessa por
qualidades do ferro bem diferentes de sua simples “existência”. Temos de contar com
fatores instáveis como estes.
Há 45 anos conheci uma família em cuja casa vi um quadro que, penso eu, havia
estado no sótão por uns 30 anos. Enquanto se encontrava no sótão e não havia ninguém
que soubesse algo desse quadro além de sua simples existência num canto, ele não tinha
valor algum no processo econômico; mas no momento em que os donos reconheceram
ser valioso, o quadro adquiriu um valor de trinta mil florins — uma soma apreciável
naquele tempo. De que dependia o valor? Exclusivamente da opinião que as pessoas
29.
formavam do quadro. Este não havia sido removido de seu lugar — só que as ideias
formadas pelas pessoas a seu respeito mudaram. Assim, de objeto algum importa o que
ele ‘é’ por si só. E particularmente os conceitos da Ciência Econômica não podem ser
desenvolvidos com base na realidade exterior; eles têm sempre de ser desenvolvidos com
base no processo econômico. E dentro desse processo a coisa se transforma constante-
mente. Devemos, portanto, ter em conta a circulação no processo econômico antes de
18 Rudolf Steiner
falarmos de coisas como valor, preço, etc. Não obstante, observamos nas atuais teorias
econômicas que estas principiam com definições de valor e preço. O primeiro, porém,
de que precisamos é a descrição do processo econômico; só daí resultarão as coisas que
contam hoje em dia.
No ano de 1919 era lícito, pelo motivo de tudo ter sido destruído, pensar que as
pessoas se tivessem convencido da necessidade de começar com algo novo. Ora, não
foi assim que ocorreu. O reduzido número de pessoas que, naquele tempo, acreditavam
ser preciso começar de novo tampouco tardaram em recair no comodismo: nada se pode
fazer. Nesse meio tempo sobreveio a calamidade, a desvalorização da moeda nas regiões
do leste e do centro, e com isso uma completa revolução nas camadas sociais; porque
cada desvalorização tem de acarretar uma depauperação das pessoas que vivem daquilo
que equiparamos ao ultravioleta. Isso ocorre, em realidade, talvez com maior frequência
do que já se percebe hoje; mas é inexorável. Com isso somos remetidos, antes de mais
nada, ao conceito do organismo social, pela razão de ficar patente que a desvalorização
da moeda é uma consequência da antiga delimitação em Estados, a qual intervém no
processo econômico. É preciso compreendermos esse processo, mas primeiro devemos
compreender o organismo social. Ocorre que o conceito de organismo social, em todas as
30.
teorias econômicas, de Adam Smith10 até às mais modernas, em realidade se restringe
a pequenas regiões. Elas nem sequer se preocupam com a necessidade de uma analogia
adotada, por mais simples que seja, ter de ser concludente. Os Senhores já viram um
organismo bem desenvolvido apresentando-se da seguinte maneira: — Aqui está, por
exemplo, uma pessoa, aqui uma segunda pessoa, aqui uma terceira, e assim por dian-
te (ver figura 1). Seriam bonitos organismos humanos, colados dessa forma uns aos
outros; mas isso não existe em organismos desenvolvidos. Não obstante, é o caso com
relação aos Estados. Organismos precisam de um espaço vazio entre si. Quando muito,
os diferentes Estados podem ser comparados às células de um organismo, e somente toda
a Terra, como corpo econômico, pode ser comparada a um organismo. Devemos ter isso
em conta. Uma coisa palpável desde que temos a economia mundial é que os diferentes
Estados não podem ser comparados senão a células. A Terra toda, tomada como um or-
ganismo econômico, é o organismo social.
Tal fato não é levado em conta em lugar algum. É que toda a teoria da Ciência
Econômica encalhou numa posição que não corresponde à realidade, pois desejava-se
estabelecer princípios válidos para uma célula isolada. Por isso é que ao estudarmos a
31.
teoria econômica francesa encontramos uma constituição diferente da que encontramos
nas teorias inglesa, alemã ou outra. Porém, como economistas, não podemos prescindir
da compreensão do organismo social como um todo.
Era isso o que eu queria expor-lhes hoje, à guisa de introdução.
2 O processo econômico
25 de julho de 1922
Por isso, assombra-nos sempre de novo ver como, em livros usuais sobre economia,
fala-se como se fosse possível definir o preço. Não é possível defini-lo; pois o preço
é concreto em cada lugar, e toda definição em termos de economia nem sequer se
aproxima do assunto.
Por exemplo, uma vez me aconteceu o seguinte caso: — Em determinada região, os
terrenos eram bem baratos. Havia uma sociedade que tinha como membro um homem
bastante famoso. A sociedade comprou todos os terrenos baratos e em seguida fez com
5.
que o homem famoso construísse para si uma casa nessa região. Depois os lotes foram
colocados à venda, e por preços bem mais elevados do que fora pago na compra, pelo
único motivo de o homem famoso ter construído sua casa nas proximidades.
Essas coisas demonstram quão indeterminadas são as circunstâncias de que de-
pende o preço de algo no processo econômico. Os Senhores podem naturalmente dizer
que tais coisas deveriam ser controladas. São os adeptos da reforma agrária e outras
pessoas afins que se opõem a elas, querendo de certa forma estabelecer, por meio das
mais diversas medidas, uma espécie de preço justo para os bens. Isso é inteiramen-
te possível; contudo, no sentido da economia o preço não se altera com isso. Quando
ocorrem coisas como as do nosso exemplo, em que os lotes foram vendidos a um preço
mais elevado, seria possível tirar novamente o dinheiro dessa gente impondo-lhes um
alto imposto territorial. Neste caso é o Estado que embolsa o dinheiro; mas nem assim
se apreendeu a realidade, pois de qualquer modo o preço aumentou. Podemos adotar
contramedidas, que no entanto apenas disfarçam a questão. O preço é sempre aquele
6. que haveria resultado sem tais medidas. Apenas se desloca o problema, e não se segue
um raciocínio econômico dizendo, após ter disfarçado a situação pelas medidas adota-
das, que os lotes não aumentaram de preço depois de dez anos. Trata-se do seguinte:
a economia deve colocar-se com as duas pernas na realidade, e na economia só se pode
falar das condições prevalecentes naquela época e naquele lugar em questão. A quem
vise ao progresso da humanidade deverá ficar claro que as coisas podem ser diferentes;
mas por ora elas devem ser consideradas em sua realidade momentânea. De tudo isso
os Senhores podem perceber quão impossível é abordarmos algo como esse conceito
importantíssimo da economia — o preço — querendo apreendê-lo por meio de uma de-
finição de contornos nítidos. Desse modo não chegaremos a resultado algum na teoria
econômica. Devemos enveredar por caminhos inteiramente diferentes; temos de estudar
o processo econômico em si.
Nem por isso o problema do preço deixa de ser o mais importante; devemos
dirigir-nos a ele enfocando o processo econômico e procurando captar, por assim dizer,
7.
o ponto em que, em qualquer lugar e tempo, o preço de uma coisa qualquer resulte das
circunstâncias econômicas subjacentes.
Verificando as teorias econômicas mais em uso, os Senhores geralmente encontra-
rão enumerados três fatores mediante cuja interação se desenrolaria todo o processo da
economia. São eles: a natureza, o trabalho humano e o capital. Certamente se poderá
dizer, por ora, que ao se acompanhar o processo econômico como um todo constata-se em
8. seu âmbito algo que se origina da natureza, algo que é o resultado do trabalho humano
e também algo que é empreendido ou ordenado pelo capital. Porém não se conseguirá
apreender de maneira viva o processo econômico simplesmente colocando lado a lado
a natureza11, o trabalho humano e o capital. Tal enfoque levará, particularmente, às
mais diversas unilateralidades — é isso o que mostra a história das teorias econômi-
2. O processo econômico 21
cas. Enquanto alguns pensam que todo valor repousa na natureza, e que o trabalho
humano não acrescenta qualquer valor especial à substância dos objetos naturais,
outros opinam que todo valor economicamente significativo é agregado a um bem12,
a uma mercadoria qualquer pelo fator que chamam de trabalho cristalizado dentro
destes. Em contrapartida, se os Senhores colocarem lado a lado o capital e o tra
balho13, encontrarão pessoas dizendo ser o capital o único que possibilita o trabalho,
sendo o salário extraído do capital acumulado; já outros dizem: não, o trabalho é o
que produz valores, sendo o que o capital ganha apenas a mais-valia subtraída do
resultado do trabalho.
O fato é o seguinte: encarando as coisas de um ponto de vista, dá-se razão a uma
pessoa; encarando-as de outro ponto, quem tem razão é a outra pessoa. Tal tipo de
abordagem da realidade nos parece quase como certos tipos de contabilidade: colocan-
do um item num lugar, obtém-se um resultado; colocando-o em outro lugar, obtém-se
resultado diverso. Pode-se falar, com base em razões aparentemente bem fortes, numa
mais-valia que é descontada do salário de trabalho e da qual se apropria o capitalista.
Com base em razões igualmente boas, pode-se dizer que no contexto da economia total é
ao capitalista que se deve tudo, podendo ele pagar seus operários apenas com o que lhe
sobra para os salários. Para as duas opiniões existem razões muito boas e muito más. É
que todas essas reflexões nem sequer conseguem aproximar-se da realidade econômica;
são úteis como base para agitadores, mas de modo algum constituem algo que interesse
9. numa teoria econômica séria. Deveremos encontrar outras bases se quisermos falar com
certa razão de um progresso do organismo econômico. Ora, até certo ponto todas essas
posições têm sua justificativa; e se Adam Smith, por exemplo, vê no trabalho empregado
nos bens o fator primordial para a formação de valores, não há dúvida de que também
para tal posição se possa encontrar excelentes razões. Um homem como Adam Smith
certamente não raciocinava sem fundamento: mas também ali a base é que se pensa
poder captar algo que está parado, podendo-se extrair disso uma definição, esquecendo
que no processo econômico tudo está em movimento contínuo. É relativamente fácil
estabelecer conceitos a respeito de fenômenos da natureza, mesmo os mais complexos,
em vista das concepções de que se necessita para uma teoria econômica. Na economia
os fenômenos são infinitamente mais complexos, mais instáveis, mais variáveis do que
na natureza; são muito mais flutuantes e mais difíceis de apreender por conceitos fixos.
A verdade é que se deve empregar um método totalmente diferente. Tal método lhes
parecerá difícil nas primeiras aulas; porém os Senhores verificarão que dele resultará
algo possível de servir de base para uma verdadeira teoria econômica. Pode-se dizer
10.
o seguinte: para o processo econômico que estamos enfocando, confluem a natureza, o
trabalho humano e — enquanto se focalize o aspecto puramente exterior da economia
— o capital. Isto em primeira instância!
Para prosseguir, dirijamos logo nossa atenção ao elemento do meio, o trabalho
humano, procurando formar uma concepção a seu respeito descendo ao reino animal —
ontem já fiz tais alusões — e observando, em vez de a economia humana, a economia
dos pardais ou das andorinhas. Aí vemos que a natureza forma o fundamento para a
11.
economia. O pardal também tem de executar uma espécie de trabalho. No mínimo ele
tem de pular de um lugar a outro a fim de encontrar os grãozinhos, precisando às vezes
pular muito num mesmo dia até encontrar seus grãos. A andorinha, ao construir seu
ninho, também tem de efetuar uma espécie de trabalho; ela tem muito o que fazer. Não
22 Rudolf Steiner
porém o azul se modifica de acordo com a maior ou menor espessura da parte clara.
À medida que o deslocamos, a intensidade do azul varia, é flutuante. Tal é o caráter
do valor na economia, pois este nada é senão o transparecer da natureza através do
trabalho humano ambulante por toda parte.
Tais elementos não nos fornecem, por enquanto, mais do que algumas indicações
abstratas; contudo estas nos servirão de guia nos próximos dias, a fim de encontrarmos
os fatos concretos. Como é costume em todas as ciências, começamos com o mais sim-
ples. Vemos, pois, que o trabalho não tem, por si só, qualquer determinação no contexto
econômico. Não faz diferença alguma se uma pessoa racha lenha ou se, por ser gorda,
coloca-se sobre uma roda* — há gente que faz isso — e, pulando sempre de degrau em
degrau, fica mais magra; é possível que ela realize a mesma quantidade de trabalho que
aquela pessoa que racha lenha. É um perfeito absurdo a maneira como, por exemplo,
14. Marx encara o trabalho, buscando sua equivalência no que é gasto no organismo humano
pelo trabalho — pois se gasta o mesmo tanto, não importando se a pessoa racha lenha
ou dança sobre a roda. No sentido econômico, não importa o que ocorre com o homem.
Já vimos que a economia faz divisa com elementos não-econômicos. Visto no sentido
puramente econômico, de modo algum é legítimo reiterar que o trabalho desgasta a
pessoa — pelo menos para estabelecermos o conceito de trabalho no contexto econômico.
Este desgaste, contudo, tem um significado no sentido indireto, por fazer com que se
tenha de cuidar das necessidades da pessoa. Quanto às considerações de Marx a esse
respeito, trata-se de um colossal contrassenso.
Ora, o que será necessário para acompanharmos o trabalho no sentido do processo
econômico? Para isso é necessário, por enquanto, abstrairmos completamente do homem
e observarmos a forma como o trabalho se insere no processo econômico. O trabalho
numa roda, como o descrevemos, não se insere de forma alguma, pois fica totalmente
preso à pessoa; rachar lenha, isso sim, já se insere no processo econômico. E podemos
perceber que em todos esses casos se trata do fato de a natureza ser modificada pelo
trabalho humano. Só enquanto a natureza é transformada pelo trabalho humano é que
15.
produzimos valores econômicos, pelo lado que estamos contemplando. Se, por exem-
plo, consideramos útil à saúde física trabalhar na natureza e, nos intervalos, dançar
um pouco ou fazer eurritmia**, isso deve ser julgado a partir de outro ponto de vista;
contudo, o que fazemos nos intervalos não pode ser denominado trabalho em sentido
econômico, nem ser considerado como formativo de valores econômicos. Poderá ter um
valor sob outro aspecto; é preciso começarmos por formar conceitos nítidos dos valores
econômicos como tais.
Existe uma outra possibilidade, bem diversa, de surgir o valor econômico.
Para tal devemos ter em mente o trab alho em si, tomando-o como um fato dado.
Como acabamos de ver, esse trabalho em si é algo totalmente neutro, irrelevante
16. em sentido econômico. Todavia torna-se criador de valor econômico quando di-
rigido pelo espírito 14, pela inteligência humana — e, neste caso, devo variar um
pouco meu modo de expor as coisas. Mesmo nos casos mais extremos, os Senhores
poderiam pensar que o que em si não é trabalho estivesse sendo transformado em
* Aparelho de ginástica da época, o qual consistia numa roda guarnecida de travas à guisa de
‘degraus’ para tração. (N.E.)
trabalho pelo espírito humano. Se alguém resolve colocar em seu quarto uma roda
para emagrecer, não existe nisso qualquer valor econômico. Se, porém, ele colocar
uma corda em torno da roda e fizer tal corda acionar uma máquina, teremos tor-
nado produtivo, pelo espírito, algo que nem sequer é trabalho. O efeito secundário
consiste no emagrecimento da pessoa; mas o que realmente conta aqui é o fato de o
trabalho ser conduzido em determinada direção pelo espírito, pela inteligência, pelo
raciocínio, ou talvez pela especulação, e de os trabalhos serem colocados em certas
inter-relações, etc. Assim sendo, podemos dizer o seguinte: temos aí o segundo lado
daquilo que forma valores na economia. Estando o trabalho ao fundo e em primeiro
plano o espírito que dirige o trabalho, aí transparece o trabalho através do espírito,
produzindo novamente valor econômico.
Veremos que esses dois lados existem em todo lugar. No esquema (fig. 2, à es-
querda) desenhei o valor econômico, através do qual aparece a natureza; agora devo
17.
desenhar o que acabo de expor, de modo que temos lá atrás o trabalho e na frente o que
é espiritual e confere ao trabalho uma certa alteração (fig. 2, à direita).
São estes, essencialmente, os dois polos do processo econômico. Os Senhores não
encontrarão outras maneiras de se produzirem valores econômicos: ou a natureza é
modificada pelo trabalho ou o trabalho é modificado pelo espírito, sendo que amiúde o
18. espírito se manifesta exteriormente na formação de capital; é por isso que no contexto
da economia o espírito deve ser procurado na configuração dos capitais, ou pelo menos
tem aí a sua expressão exterior. Contudo chegaremos a apreender isso ao contemplar-
mos o capital como tal e, depois, o capital como meio monetário.
Assim os Senhores podem perceber que não é possível falarmos de uma definição
do valor econômico — pois precisamos ter em conta de quantos fatores isto depende, de
quantas pessoas tolas e inteligentes depende o fato de, em algum lugar, o trabalho ser
19. modificado pelo espírito. Isso depende de uma porção de condições flutuantes. Todavia
podemos ter certeza de que sempre vale o que é evidente, ou seja, que nesses dois opos-
tos polares devem ser procurados os fatores que formam valor no processo econômico.
Ora, se for esse o caso, teremos a seguinte situação: ao nos encontrarmos num
processo econômico relacionado com compra-e-venda em algum lugar, presenciamos
essencialmente uma troca de valores. Seria efetivamente errôneo falar de troca de
bens, pois não encontramos outra troca senão a de valores. No processo econômico o
bem é um valor, seja ele produto da natureza modificado ou trabalho modificado. O
que se permuta são valores, e isto é o que importa. Sendo assim, os Senhores terão
de compreender o seguinte: quando em algum lugar ocorre compra-e-venda, dá-se
uma troca de valores. O que resulta, então, no processo econômico quando valor e
valor, por assim dizer, se confrontam a fim de permutar-se, é o preço. Os Senhores
20.
não encontrarão um preço em lugar algum senão onde valor e valor se confrontam
no processo econômico. Por isso não é possível refletirmos sobre o preço pensando
apenas na troca de bens. Se os Senhores comprassem uma maçã por, digamos, cinco
centavos, poderiam dizer que trocam um bem pelo outro bem — a maçã contra os
centavos. Desta maneira, porém, jamais chegarão a uma visão econômica. A maçã
foi colhida em algum lugar, foi transportada, e talvez haja acontecido muita outra
coisa à sua volta. Foi o trabalho que a modificou. Os Senhores não estão lidando
com a maçã, e sim com o produto natural modificado pelo trabalho humano que re-
presenta um valor. Na economia sempre se deve partir do valor. Da mesma forma,
2. O processo econômico 25
os cinco centavos representam um valor, e não um bem — pois esses cinco centavos
não são outra coisa senão o sinal de que junto à pessoa que quer comprar a maçã
existe um outro valor que ela permuta pela maçã.
O que eu quis frisar é o fato de hoje havermos chegado a compreender que é er-
rôneo falar de bens na economia, devendo-se falar de valores como o fator elementar;
e que também é errôneo querer apreender o preço de outra maneira que não o jogo de
21.
valores. Valor contra valor resulta no preço. Uma vez que o valor é algo flutuante, não
podendo ser definido, o que resulta como preço na permuta de valor contra valor é algo
flutuante ao quadrado.
De tudo isso podemos deduzir que é totalmente inútil querermos apreender de
alguma maneira o valor e o preço para termos uma base firme na economia, e até
22. mesmo para querermos intervir num processo econômico. O que deve ser considerado
nesse caso é algo completamente diverso, que deve estar por detrás, e de fato está.
Isso nos é demonstrado por uma observação muito simples.
Imaginem o seguinte: a natureza nos transparece através do trabalho humano. Se,
por exemplo, extrairmos ferro em determinado lugar sob condições extraordinariamente
severas, o que resulta como valor é um objeto da natureza modificado pelo trabalho hu-
mano. Se, em outro lugar, o ferro for extraído sob condições mais leves, provavelmente
resultará um valor bem diferente. Vemos, portanto, que não é possível abordar a coisa
pelo valor — temos de olhar por detrás deste. Devemos remontar àquilo que forma o
valor, chegando talvez às circunstâncias mais constantes sobre as quais se poderá exercer
23. uma influência direta — pois no momento em que introduzirem o valor na circulação
econômica, os Senhores deverão deixá-lo flutuar conforme o organismo econômico. Ao
observarmos a composição sutil do glóbulo sanguíneo — que é diferente na cabeça, no
coração ou no fígado —, não nos adiantará dizer que queremos encontrar uma definição
para o sangue — pois não é isso o que queremos; o que queremos é unicamente saber
quais os alimentos mais favoráveis para cada caso. Do mesmo modo, não adianta discu
tir sobre o valor e o preço, tratando-se, isso sim, de buscar os fatores primários — que,
formados corretamente, resultarão no preço correspondente, que assim surgirá por si.
Em nosso estudo de Economia, é impossível determo-nos na esfera das definições
de valor e preço; porém devemos sempre remontar ao ponto de partida, ou seja, àquilo
24.
de que, por um lado, o processo econômico extrai sua nutrição e que, por outro, o regula:
a natureza, por um lado, e o espírito, por outro.
A dificuldade de todas as teorias econômicas dos últimos tempos foi o fato de
elas sempre terem começado por querer apreender o flutuante. Para quem consegue
discernir as coisas, dessa forma não resultam definições erradas, e sim, no fundo,
muitas corretas. Quem diz que o trabalho corresponde ao que tem de ser reposto no
corpo humano, não passando de substância consumida, engana-se redondamente,
pois não enxerga as coisas mais banais. Mas acontece que até pessoas bastante ins
25. truídas tropeçaram ao elaborar suas teorias de Economia, por quererem observar
em condições estáticas as coisas que se encontram em fluxo. Pode-se fazer isso em
relação às coisas da natureza — até se deve fazê-lo, muitas vezes; neste caso, basta
observar de uma maneira bem diferente o que é estático. Quando, na observação da
natureza, falamos de movimento, consideramo-lo como que composto de pequenas
situações subsequentes de repouso. Pelo fato de procedermos à integração, também
consideramos o movimento como algo composto de situações de repouso.
26 Rudolf Steiner
Não é possível apreender o processo da economia com base neste tipo de conheci-
mento. Por isso devemos dizer o seguinte: o que importa é começarmos por apreender
a teoria econômica pela maneira como, de um lado, aparece o valor ao ser a natureza
modificada pelo trabalho, ou seja, ao transparecer a natureza através do trabalho; e, do
outro lado, pelo modo como aparece o valor ao ser visto o trabalho através do espírito.
Esses dois modos de surgimento do valor são polarmente distintos, tal qual no espectro
um polo, o polo luminoso, o amarelo, é distinto do polo azul ou violeta. Podemos, portanto,
reter a seguinte imagem: tal qual de um lado aparecem no espectro as cores quentes,
26. também de um lado se evidencia o valor natural, que se manifestará mais na formação
de renda15 da terra ao percebermos a natureza modificada pelo trabalho, e de outro
aparece mais o valor que se manifesta no capital ao enxergarmos o trabalho modificado
pelo espírito. Aí pode surgir, pois, o preço, quando valores de um polo se confrontam
com valores do outro, ou até quando valores dentro de um polo entram em interação.
Cada vez que se tratar de formação de preço, verificaremos que os valores entram em
interação. Isto significa que devemos desconsiderar totalmente tudo o que existe além
disto — até mesmo a matéria —, e ater-nos primeiramente à maneira como se formam
valores de um lado e de outro. Só então poderemos adentrar o problema do preço.
3 A Ciência Econômica
26 de julho de 1922
Quero mencionar um caso particular, que lhes evidenciará do que estamos tra-
tando aqui. Suponhamos que observações quaisquer, as quais são sempre de natureza
teórica — todas as observações que não conduzem a uma ação são teóricas —, nos in-
dicassem em algum lugar uma queda sensível de preço em algum tipo de mercadoria,
5. sendo a baixa tão sensível que já resulte numa flagrante miséria. Inicialmente trata-se
de observarmos teoricamente tal baixa real dos preços. Estamos então, por assim di-
zer, no estágio de anotar as posições do termômetro. Mas depois tratar-se-á de saber o
que fazer quando os preços de uma classe de mercadorias ou de um produto houverem
baixado de forma preocupante.
Ora, estudaremos essas coisas ainda mais em pormenores; no momento só quero
dizer o que terá de ser feito e por quem, quando os preços de uma classe de mercado-
rias tiverem caído sensivelmente. Será o caso de tomarmos medidas adequadas para
contrabalançar a queda dos preços. Provavelmente existem diversas medidas para
6. tal fim; mas uma delas será fazermos algo para acelerar a circulação, o comércio das
mercadorias em questão. Será essa uma das medidas, embora não suficiente; porém não
nos preocupemos em perguntar se a medida seria suficiente ou até se seria correta; o
importante, tendo os preços baixado dessa forma, é fazermos algo capaz de incrementar
o movimento do dinheiro.
Na realidade temos de realizar algo comparável a influenciar a posição do ter
mômetro: se estivermos com frio numa sala, não tentaremos esticar, de alguma maneira
7. misteriosa, a coluna de mercúrio do termômetro; nem nos preocuparemos com a baixa
ocorrida nele, e sim aqueceremos o quarto. Enfrentamos a questão num ponto bem
diferente.
Assim, também, o que importa na economia é aplicarmos nossa ação a um ponto
bem diverso. Aí a coisa se torna prática, e teremos de dizer que a Ciência Econômica é
8.
tanto ciência teórica quanto ciência prática. O importante, todavia, será como conseguir
combinar o prático e o teórico.
Este, por enquanto, é um dos lados da forma da Ciência Econômica. O outro lado
é aquele para o qual já chamei a atenção muitos anos atrás, sem que a coisa tivesse sido
compreendida. Trata-se de um ensaio que escrevi no começo do século com o título The-
osophie und soziale Frage [Teosofia e a questão social] * e que, no fundo só teria sido de
9. alguma significância se aproveitado pelos práticos, e se estes tivessem agido de acordo.
Uma vez que não tomaram conhecimento algum dele, eu nem o concluí nem continuei a
publicá-lo. Só podemos esperar que essas coisas sejam compreendidas cada vez mais, e
espero que estas conferências contribuam para uma compreensão mais profunda. Con
tudo, se quisermos compreendê-las deveremos intercalar uma breve exposição histórica.
Remontando um pouco na vida histórica da humanidade, os Senhores des
cobrirão que — já aludi a isso na primeira conferência — em tempos mais antigos,
até ainda nos séculos XV e XVI, não existiam questões econômicas tais como as
10.
temos hoje em dia. A vida econômica, por exemplo no antigo Oriente, passava-se
em grande parte de modo instintivo; havia certas condições sociais entre as pessoas
que formavam castas, classes, e, sob a influência daquilo que resultava de relações
* Ensaio de 1905, posteriormente publicado sob o título Geisteswissenschaft und soziale Frage
(Dornach, Rudolf Steiner Verlag, 1989), base para a edição brasileira Economia e sociedade (2. ed. São
Paulo: Antroposófica, 2003 [título anterior: Ciência Espiritual e questão social]). (N.E.)
3. A Ciência Econômica 29
de homem para homem a partir de tais condições, estas formaram o instinto para o
modo como o indivíduo viria a intervir na vida econômica. Eram principalmente os
impulsos da vida religiosa que formavam a base dessa vida e que, em épocas antigas,
dirigiam-se ao mesmo tempo à orientação, à ordenação da economia. Ao perscrutar
a história da vida no Oriente, os Senhores perceberão que, de certa maneira, não
existia em lugar algum uma divisão rigorosa entre o que a religião impunha e o que
devia ser executado na economia. Os mandamentos religiosos estendiam-se frequen-
temente à vida econômica, de modo que nessas épocas antigas não preocupava a
questão trabalhista, a questão da circulação social dos valores do trabalho. Em certo
sentido o trabalho era feito instintivamente; e a questão de uma pessoa trabalhar
mais ou menos do que outra não era muito importante, na vida pública, ao menos
nos tempos que precederam a época romana. As exceções a isso não interessam no
curso geral da evolução humana. Ainda em Platão encontramos, de fato, uma visão
da vida social que encara o trabalho como algo tão natural que não se discute; sem
considerar o trabalho, Platão reflete apenas sobre aqueles aspectos da vida social
avistados sob forma de impulsos éticos e repletos de sabedoria.
Isso mudou paulatinamente à medida que os impulsos diretamente religiosos e
éticos deixavam de criar os instintos econômicos e restringiam-se cada vez mais à vida
moral, tornando-se simples normas para a maneira como as pessoas deveriam ter senti-
mentos mútuos, como deveria configurar-se sua relação com os poderes extra-humanos,
11. etc. Mais e mais surgia entre os homens a concepção, o sentimento de que — falando
metaforicamente — não haveria necessidade de um sermão a respeito da maneira
como se deve trabalhar. E foi com isso que o trabalho e a sua incorporação à vida social
principiou a constituir uma questão.
Ora, tal incorporação do trabalho à vida social seria uma impossibilidade histó-
rica sem o advento daquilo que constitui o direito. Vemos, portanto, nascer na História
simultaneamente a valorização do trabalho de cada indivíduo e o direito. Em relação
aos tempos antigos, não podemos falar de direito no sentido em que hoje em dia o
concebemos; não podemos falar de direito senão a partir do momento em que este se
separa do mandamento. Em tempos primordiais o mandamento era universal, abran-
gendo a um tempo tudo o que constituísse direito. Mais tarde o mandamento é cada
12 vez mais restringido à vida puramente anímica, e o direito se faz valer com relação à
vida exterior. Isso se passa no curso de um certo período histórico em que surgiram
condições sociais bem determinadas. Sobrepassaria o âmbito destas conferências dar
uma descrição detalhada desse processo; porém não deixa de ser um estudo interessante
acompanhar, especialmente com relação aos primeiros séculos da Idade Média, a for-
ma como, por um lado, as condições jurídicas e, por outro, as condições trabalhistas se
segregaram das organizações religiosas em que antigamente se encontravam mais ou
menos englobadas — em se tratando de organizações religiosas no sentido mais amplo.
Isso traz uma consequência bem peculiar. Enquanto os impulsos religiosos são
determinantes para toda a vida social da humanidade, o egoísmo não faz mal. Trata-se
de um fato extraordinariamente importante para a compreensão dos processos sociais
13. e econômicos. Por mais egoísta que seja o homem, o egoísmo não será prejudicial se a
organização religiosa, tal como era severa, por exemplo, em certas regiões do antigo
Oriente, for constituída de forma que a pessoa se incorpore de modo frutífero na vida
social; em contraposição, o egoísmo começa a ter importância na vida dos povos no mo-
30 Rudolf Steiner
mento em que direito e trabalho se segregam dos outros impulsos e correntes sociais.
Por isso, ao passo que trabalho e direito se emancipam, o espírito da humanidade aspira
inconscientemente, diria eu, a dominar o egoísmo humano que começa a manifestar-se e
que, de certo modo, tem de ser integrado à vida social. Tal aspiração culmina na moderna
democracia, no senso para a igualdade dos homens, para a possibilidade de cada indi-
víduo poder exercer sua influência sobre o estabelecimento do direito e sobre a escolha
de seu trabalho.
Concomitantemente a tal culminação do direito e do trabalho emancipados,
surge algo mais que, em verdade, já existia nos períodos mais antigos da evolução
humana, quando todavia revestia-se de um significado bem diverso por causa dos
14. impulsos sócio-religiosos; algo que, particularmente em relação à nossa civilização
europeia, existia em medida reduzida durante a Idade Média, mas chegou à sua mais
alta culminação a partir da época em que o direito e o trabalho ficaram emancipados
ao máximo: a divisão do trabalho.
Nas épocas mais remotas da evolução da humanidade, a divisão do trabalho não
tinha qualquer importância especial, justamente porque o trabalho estava integrado
aos impulsos religiosos, estando cada pessoa em seu lugar certo — de modo que a
15. divisão do trabalho não tinha sua atual importância. Quando, porém, o anseio por
democracia se uniu à aspiração por divisão do trabalho — isso não se deu senão nos
últimos séculos e, em particular, no século XIX —, a divisão do trabalho começou a
adquirir um significado todo especial, por ter uma consequência econômica.
Em última análise, a divisão do trabalho (de cujas causas e desenvolvimento
ainda falaremos, ao pensá-la abstratamente até seu fim) leva à situação em que nin
16. guém utiliza para si mesmo o que produz — falando-se, porém, em sentido econômico!
Economicamente, a bem dizer, ninguém consome para si próprio o que produz. O que
significa isso? Ora, vou esclarecê-lo com um exemplo.
Suponhamos um alfaiate, que faz roupa. Por causa da divisão do trabalho, é natural
que deva produzir roupa para outras pessoas. Ele poderia dizer também que, ao mesmo
tempo que fabricasse roupa para outras pessoas, também faria sua própria roupa. Nesse
caso, empregaria uma parte de seu trabalho para fazer sua própria roupa e outra parte,
bem mais ampla, que sobrasse ele empregaria no feitio de roupa para outras pessoas.
Encarando isso de um modo ingênuo ou banal, poder-se-ia dizer o seguinte: certamente
é a coisa mais natural, também no âmbito da divisão do trabalho, que o alfaiate faça
sua própria roupa e trabalhe como alfaiate para outras pessoas. Contudo, como se
apresenta a coisa no sentido econômico? Do seguinte modo: pelo motivo de ter surgido
a divisão do trabalho, não sendo mais cada ser humano produtor de todas as coisas de
17.
que precisa, e sim cada um trabalhando para os outros, os produtos adquirem um certo
valor e, por conseguinte, também um preço. E agora surge a seguinte questão: se por
causa da divisão do trabalho — que tem sua continuação na circulação dos produtos
— se, portanto, pela divisão do trabalho introduzida na circulação das mercadorias, os
produtos, por exemplo, do alfaiate tiverem um certo valor, será que os produtos que ele
fizer para si próprio terão um valor igual na economia ou serão, talvez, mais baratos ou
mais caros? Eis uma pergunta significativa. Se ele produzir suas próprias roupas, elas
deixarão de entrar na circulação dos produtos. O que ele produzir para si próprio não
terá parte no barateamento motivado pela divisão do trabalho e, portanto, será mais
caro. Mesmo se ele nada pagar, será mais caro. Ficará mais caro pela simples razão de
3. A Ciência Econômica 31
ele ser impossibilitado de empregar, nas coisas que fabrica para si próprio, apenas tanto
trabalho quanto precisa para o que entraria na circulação, conforme o valor das coisas.
Talvez seja necessário refletirmos sobre isso um pouco mais de perto; mas não há
dúvida de que tudo o que serve à produção própria, não entrando assim na circulação
baseada na divisão do trabalho, tem de ser mais caro do que aquilo que toma parte
na divisão do trabalho. Assim, tomando a divisão do trabalho ao extremo, deveríamos
18.
dizer o seguinte: tivesse o alfaiate de trabalhar exclusivamente para outras pessoas,
conseguiria para os produtos de seu trabalho os preços que estes deveriam render. E,
por sua vez, teria de comprar sua roupa de um outro alfaiate ou em lugares onde se
vende roupa.
Tendo tudo isso em mente, os Senhores deverão admitir que a divisão do trabalho
tende a impedir que alguém ainda trabalhe para si próprio; que, pelo contrário, tudo
o que alguém produz tem de ser passado aos outros, e o que ele necessita lhe deve ser
entregue pela comunidade. Eventualmente poderão objetar que praticamente um terno
deveria custar ao alfaiate, se este o comprasse de um outro alfaiate, tanto quanto lhe
custaria se ele mesmo o fizesse, pois o outro não o faria mais caro ou mais barato. Se
fosse esse o caso, não haveria divisão do trabalho, ao menos não completa, pelo simples
motivo de que para esse produto de confecção a divisão do trabalho não poderia resul-
19. tar na maior concentração metódica. Não é, portanto, possível que onde haja divisão
do trabalho esta não flua para o âmbito da circulação, não sendo assim possível, nesse
caso, que um alfaiate compre diretamente de outro alfaiate, já que ele terá de comprar
do comerciante. Tal processo produz um valor bem diferente. Ele, por assim dizer,
compraria de si mesmo o terno que tivesse feito para si próprio; porém ele o comprará
de um comerciante. É isso que faz a diferença. Se a divisão do trabalho, em conjunto
com a circulação, contribui para baixar os preços, o terno lhe sai mais barato quando
comprado do comerciante do que ao fabricá-lo ele próprio.
Consideremos isso, por enquanto, como algo que nos aproxima da forma da Teoria
20.
Econômica; os fatos, esses nós teremos de considerar mais uma vez.
Contudo, o seguinte é algo que entendemos de modo imediato: quanto mais avançar
a divisão do trabalho, tanto mais ocorrerá de cada um trabalhar para o outro, para a
comunidade anônima, e jamais para si mesmo. Em outras palavras: com o advento da
moderna divisão do trabalho, o funcionamento da economia exige que o egoísmo seja
21.
integralmente erradicado de seus processos. Por favor, não entendam isso em sentido
ético, mas puramente econômico! Na economia, o egoísmo é impossível. Quanto mais a
divisão do trabalho progredir, tanto menos poderemos fazer algo em proveito próprio;
teremos de fazer tudo em proveito alheio.
No fundo, as condições exteriores fizeram com que o altruísmo surgisse, como
22. exigência, mais rapidamente na área econômica do que fora compreendido no âmbito
ético-religioso. Existe para isso um fato histórico, facilmente compreensível.
A palavra ‘egoísmo’ pode ser encontrada em tempos bem antigos, se bem que
talvez não na acepção incisiva de hoje em dia. O contrário dela, a palavra ‘altruísmo’,
23. com seu sentido de ‘pensar no outro’, mal existe há uns cem anos**, pois foi cunhada
como palavra só muito tarde; por isso podemos dizer — sem dar muita ênfase a essa
** Pelo francês altruisme, termo cuja criação é atribuída a Augusto Comte no início do séc.
IX. (N.E.)
32 Rudolf Steiner
econômico! De maneira geral não se nota isso no caso do assalariado comum, pois
não se reflete sobre qual seria a base para a permuta de valores. O que o assala-
riado fabrica nada tem a ver com a remuneração de seu trabalho. A remuneração,
ou atribuição de valor ao trabalho, resulta de fatores totalmente diversos, de modo
que ele trabalha pelo ganha-pão, para sua autossustentação. Tudo isso é disfarçado,
simulado, porém é um fato.
Daí se levanta uma das primeiras questões importantíssimas da economia: como
conseguiremos eliminar do processo econômico o trabalho como ganha-pão? De que
modo podemos mudar a posição, no processo econômico, dos que hoje ainda trabalham
apenas pelo ganho, para que eles se tornem trabalhadores em prol das necessidades
27.
sociais? Será que isso é necessário? Certamente! Pois se não o fizermos, jamais teremos
preços corretos, e sim sempre preços errados. Temos de acertar preços e valores que não
sejam dependentes das pessoas, e sim do processo econômico — preços resultantes da
flutuação dos valores. A questão crucial é a questão dos preços.
Observando agora os preços do mesmo modo como observamos a posição do ter-
mômetro, nós nos acercaremos das outras condições, que chamamos de subjacentes.
28. Ora, observar o termômetro só tem sentido se pudermos partir de um ponto zero. Daí
vamos para cima e para baixo. Ora, para os preços resultará, de um modo todo natural,
uma espécie de ponto zero, e isso da seguinte maneira:
De um lado temos a natureza (v. fig. 2); ela é modificada pelo trabalho humano,
resultando daí os produtos naturais transformados. Este é um ponto onde se produ-
zem valores, tendo-se o valor 1. No outro lado temos o trabalho. Ele é modificado pelo
espírito, resultando o outro valor, valor 2. O que eu já disse é que pela interação dos
valores 1 e 2 resultam os preços. Pouco a pouco progredimos na apreensão dessas con
cepções econômicas. Acontece que nossos valores 1 e 2 são, de fato, polarmente opostos.
Tomemos, por exemplo, aquele que recebe seu ganho nesta área, ou principalmente
nesta área (ver fig. 2, à direita), pois não é possível fazê-lo integralmente numa área
só: trata-se do trabalhador cujo trabalho é organizado pelo espírito, e como tal tem
interesse em que os produtos da natureza sejam desvalorizados. Aquele, todavia, que
trabalha com a natureza tem interesse em que os outros produtos sejam desvalorizados.
E se tal interesse16 se tornasse processo real, como em realidade já o é — e se não fosse
assim os agricultores teriam preços bem diferentes, e vice-versa: nos dois lados temos
29. preços totalmente disfarçados —, poderíamos observar possivelmente uma espécie de
preço médio no ponto central onde dois se encontram (para um ato econômico, sempre
são necessários dois), dois que tenham o mínimo interesse possível tanto na natureza
quanto na espiritualidade ou no capital. Onde encontramos um caso prático disso? É o
caso, na prática, em que observamos um comerciante comprando de outro comerciante,
ambos comprando um do outro. Aí os preços tendem a adotar seu valor médio. Se, sob
condições que se estabelecem também de forma normal — teremos ainda de explicar
essa palavra —, um comerciante de sapatos comprar de um comerciante de roupas e
vice-versa, o que resulta como preço terá a tendência a equilibrar-se numa posição média.
Não devemos procurar a posição média de preço nos interesses nem dos produtores que
se encontram no lado da natureza nem daqueles que estão no lado do espírito; devemos
procurar os preços médios no comerciante intermediário. Não importa se temos ou não
mais um intermediário. O preço médio tende a surgir onde um intermediário negocia
com outro, comprando e vendendo.
34 Rudolf Steiner
Isso não contradiz o outro enunciado — pois, no fundo, o que são os modernos ca-
pitalistas senão comerciantes? O industrial é, em verdade, comerciante. De passagem,
ele é alguém que produz mercadorias; mas no sentido econômico, é comerciante. Em seu
caso, o comércio se desenvolveu com ênfase para o lado da produção, mas essencialmente
30. o industrial é comerciante. Isso é importante, e assim as condições modernas fazem
com que o que se forma aqui no meio (na fig. 2) como determinada tendência irradie
para um e para outro lado. Como isso se dá para um lado, é fácil de compreender se
estudarmos o empresariado industrial; a maneira como se configura para o outro lado,
isso teremos de verificar nos próximos dias.
4 A divisão do trabalho e a criação de valores
27 de julho de 1922
pela qual os preços são pressionados só se manifestará depois de longo tempo. O alfaiate
terá de fazer muitos outros ternos antes que a pequena taxa de barateamento se faça
sentir. Mas não há dúvida de que em dado momento ela aparecerá em seu balanço glo-
bal. Digo isto para mostrar-lhes que não se deve raciocinar de modo tão terrivelmente
obtuso ao se tratar de um processo econômico, que consiste num número imensurável
de fatores engrenados, causadores de cada fenômeno individual.
É claro que, no raciocínio econômico, os Senhores logo chegarão a um desastre
se limitarem seus pensamentos, por assim dizer, aos fatos mais próximos das pessoas
atuantes na economia. Desse modo absolutamente não chegarão a compreender algo
5. no processo econômico. Os Senhores devem atentar para a globalidade do organismo
social; e tal visão global finalmente nos levará a empregar exemplos drásticos, que tal-
vez não se manifestem num só dia e, sim, poderão fazer-se sentir fortemente no curso
de uma década.
Todavia, é muito útil partirmos de tais exemplos meio abs urdos a fim de,
gradualmente, transportar nosso modo de pensar costumeiro para um pensar que
abranja o amplo e, nesse processo, perca os contornos rígidos e chegue a apreender as
6. qualidades flutuantes. Pode ser que enxerguemos, nitidamente esboçado, o que se en-
contra ao alcance direto de nossa percepção; trata-se aqui, todavia, de ganharmos uma
visão abrangente, sendo que esta nos fornece ideias bem maleáveis, não coincidentes
com as ideias obtidas num âmbito restrito.
É isto o que eu gostaria de frisar hoje, para que os Senhores, partindo de coisas
relativamente simples, percebam como o processo econômico se compõe dos fatores mais
7. variados. Para nos aproximarmos cada vez mais de uma compreensão do problema do
preço, hoje vamos focalizar o processo econômico como tal a partir de um certo ponto
de vista.
É pela natureza que vamos começar. O trabalho humano tem de começar por
ocupar-se com a natureza, transformando os produtos da natureza de modo que esse
produto da natureza receba um valor pelo fato de o trabalho humano incidir sobre ele.
Na economia não lidamos com a substância; a substância como tal não tem valor eco-
nômico. O carvão que se encontra como substância na mina sob a terra não tem valor
8. econômico, nem tampouco receberia um valor econômico caso se deslocasse por si da
mina para a casa, para o aposento daquele que o utiliza para aquecer. O que transforma
a substância do carvão em valor é o trabalho aplicado, ou seja, o que teve de ser feito
para extrair o carvão e também para instalar a mina, depois para transportar o carvão,
etc. Tudo o que constitui trabalho humano impresso na substância do carvão é que lhe
confere valor econômico. E é só este que interessa na economia.
Não é possível apreender um fenômeno econômico qualquer a não ser partindo
de tais ideias. Ora, aplicando desse modo o trabalho humano à natureza, chegamos,
9.
na evolução contínua da economia, forçosamente à divisão do trabalho, a qual surge
pelo fato de várias pessoas colaborarem num assunto economicamente significativo.
Escolhamos um exemplo bem simples. Suponhamos que numa certa região algumas
pessoas houvessem empreendido uma determinada atividade que implicasse no fato de
10. elas se deslocarem de suas casas, em diferentes localidades, até um lugar de trabalho
em comum — digamos, a um lugar de extração de determinados produtos naturais. Su-
ponhamos que estivéssemos ainda numa época bem primitiva, em que os trabalhadores
4. A divisão do trabalho e a criação de valores 37
não encontrassem outro meio de se deslocar senão a pé para o lugar onde trabalham a
natureza. Um dia alguém tem a ideia de construir uma carroça e de usar cavalos para
puxá-la. Agora, o que até então cada um tinha de fazer isoladamente começa a ser feito
em conjunto com aquele que oferece a carroça. Um trabalho é dividido — é dividido o
que, no sentido da economia, constitui trabalho. Na prática isso se passa de forma que
cada um que use a carroça tenha de pagar uma certa taxa ao empreendedor carroceiro.
Com isso a pessoa que inventou a carroça ingressou na categoria dos capitalistas.
A carroça passou a representar um genuíno capital para a pessoa. Onde quer que os
Senhores verifiquem, sempre descobrirão que o ponto de nascimento do capital se en
contra na divisão do trabalho, na articulação do trabalho.17 Mas como foi que se inventou
a carroça? Esta foi inventada por meio do espírito. Todo processo desse tipo consiste na
11. aplicação do espírito ao trabalho, no fato de o trabalho, de uma ou outra maneira, ser
permeado pelo espírito. Portanto, é trabalho permeado pelo espírito o que aparece no
decorrer da divisão do trabalho. Se no curso da divisão do trabalho vemos surgir capital,
não se trata de outra coisa senão de trabalho permeado pelo espírito. A primeira fase
do capital quase sempre consiste no fato de o trabalho estar sendo organizado, dividido,
etc. a partir do espírito, enquanto antes o era exclusivamente a partir da natureza.
É necessário que se forme, desse ponto de vista, uma clara imagem do capital e
de sua formação — pois somente a partir deste ponto de vista é possível compreender
12.
a função do capital no processo econômico. O surgimento do capital sempre é um fenô-
meno que acompanha a divisão, a articulação do trabalho.
Com isso, porém, algo se desata da relação imediata com a natureza em que se
encontra o ser humano ao trabalhá-la. Enquanto se trata apenas da elaboração da
natureza, não podemos falar senão de produtos naturais que foram modificados pelo
trabalho humano e receberam seu valor nesse processo; no momento, porém, em que
dizemos que o espírito organiza o trabalho como tal, ocorre uma emancipação da natureza
13. — pois o homem que cria capital com sua carroça não se importa, no fundo, para qual
finalidade transporta as pessoas de um lugar a outro. Aqui (na figura 2, à esquerda), em
toda parte a natureza, diria eu, ainda transparece através do trabalho humano. Mesmo
não constituindo valor o carvão como substância, e sim aquilo que é impregnado nele
como trabalho humano, não há dúvida de que o produto natural transparece através
do trabalho humano. Este é um lado da formação dos valores econômicos.
O outro lado é que aquilo que o espírito organiza no trabalho se emancipa comple-
tamente da natureza, diferenciando-se completamente dela. E chegamos finalmente no
ponto em que temos o capitalista, a quem não importa que relação com a natureza tem o
trabalho por ele organizado. Pode ocorrer que esse homem resolva, em vez de continuar
14. transportando algumas pessoas em sua carroça para determinado lugar de trabalho
— digamos, na agricultura —, mudar o percurso da carroça e levar outras pessoas a
um outro lugar de trabalho. Fica patente que, com o emprego do espírito, aquilo que é
divisão do trabalho humano se emancipa totalmente do fundamento natural. Com isto
chegamos também à emancipação do capital com relação à base natural.
Os detentores de diversos ponto de vista econômicos defenderam o conceito do
capital como energia de trabalho acumulada; porém essa é uma definição que, por
15. tratar de algo flutuante, de certo modo só se aplica a uma determinada fase. Enquanto
estivermos, no sentido mais estrito, ligados com a organização espiritual a um deter-
minado tipo de trabalho, a natureza ainda transparecerá. No momento, porém, em que
38 Rudolf Steiner
TeV
Surge o dinheiro. O dinheiro, porém, não surge aqui em toda a sua abstração,
embora eu deva dizer que já seja abstrato como a substância à qual o espírito se di-
rige; porém está sendo assaz individualizado, bem particularizado quando o espírito
34. o apreende e o aplica nisso ou naquilo. Pelo fato de atuar assim, o espírito como tal
determina o valor do dinheiro. É aqui que o dinheiro começa a adquirir um deter-
minado valor. Ora, se um tolo desperdiça o dinheiro em algo que não dá frutos, ou
se o aplica de outra maneira qualquer, em todo caso isso se reflete como valor bem
42 Rudolf Steiner
NtV mercadoria
Saúde = =
TeV dinheiro
serva seus processos pelo lado de fora. O característico dos processos econômicos é que
nos encontramos dentro deles. Devemos, pois, estudá-los a partir de dentro. Temos de
aclimatar-nos nos processos econômicos tal como, digamos, um ente que se encontre
dentro de um balão de ensaio. Aí se compõe algo sob a ação do calor. Tal ser no balão de
ensaio, que estou querendo equiparar a nós, não pode ser o químico, mas deveria ser um
ente que sofresse o calor, vindo a ferver também. O químico não pode fazer isso; para ele
o processo é algo situado fora dele. Na Ciência Natural estamos fora dos processos. O
químico não poderia aguentar uma temperatura de 150 graus centígrados. No processo
econômico nós tomamos parte em todas as fases, tendo de compreendê-lo interiormente.
Por isso talvez um matemático pudesse dizer o seguinte: “É verdade que você nos deu
algo como uma fórmula. Não estamos acostumados a construir fórmulas matemáticas
dessa maneira.” Certo, pois estamos acostumados apenas a ver as fórmulas matemáti-
cas construídas, observando os processos do lado de fora! Devemos desenvolver a visão
concreta para obtermos um numerador comum e um divisor, para compreendermos que
um processo tem de ser representado por uma divisão, e não por uma subtração. Temos
de tentar pensar no processo econômico a partir de dentro. Foi por isso que ontem eu
escolhi aquele exemplo drástico, em que não lhes apresentei o alfaiate e o comerciante
vistos de fora, tal como faz a Ciência Natural; é que dessa maneira não conseguiríamos
compreender do que se trata. Se quisermos adentrar o processo, não nos agradará um
modo de pensar que só observe do lado de fora, como o pesquisador que olha o balão de
ensaio apenas do exterior. Devemos representar interiormente toda a soma de processos
que se passam entre o alfaiate e todos os efeitos econômicos.
Eu não estaria sendo veraz no cumprimento do que os Senhores esperam de
38. mim se apresentasse o assunto de maneira diferente do que estou fazendo. Com
isso a coisa ficou um pouco difícil desde o início.
5 A produção e o consumo de valores
28 de julho de 1922
* Steiner utiliza a expressão ‘crédito pessoal’, à qual acrescentamos ‘para projetos’, significan-
do ‘crédito baseado na verdadeira confiança no que a pessoa é capaz de realizar’. (N.E.)
48 Rudolf Steiner
o capital correspondente a essas terras, ou seja, o que deve ser pago por essas terras
quando compradas. Suponhamos agora que a taxa de juros caia para 4%; neste caso pode
ser — e é — creditado mais capital por essas terras.26 O que vemos por toda parte é que,
na esteira de taxas de juros em declínio, as terras não baixam de preço, e sim ficam mais
caras. O crédito real encarece enquanto o crédito pessoal para projetos barateia. O crédito
real eleva o preço das terras, enquanto o crédito pessoal para projetos abaixa os preços
dos produtos. Tais condições têm realmente muita significação no processo econômico —
pois no momento em que o capital retorna à natureza, ou seja, simplesmente se reúne à
natureza sob forma de crédito real, resultando numa conexão entre capital e terras, entre
capital e natureza, o processo econômico é cada vez mais conduzido à elevação dos preços.
Portanto, o processo econômico só transcorrerá de modo sensato se o capital não se
conservar aqui (v. figura 3) na natureza, e sim desaparecer dentro dela. De que maneira
o capital pode desaparecer dentro da natureza? Ora, enquanto pudermos unir o capital
à natureza, ou seja, constantemente encarecer, pela formação de capital, a natureza em
seu estado ainda original, o capital não poderá sumir dentro da natureza; pelo contrá-
rio, ele se preservará dentro dela. Em todos os países em que a legislação hipotecária
permite que o capital se una à natureza, o resultado é um estancamento do capital na
natureza sob forma de terras. Em vez de o capital ser consumido aqui (v. figura 3), isto
é, de desaparecer aqui, em vez de surgir aqui uma tensão formadora de valores, surge
um novo movimento, formador de valores, nocivo para o processo econômico. O único
meio de evitar isso seria, num processo econômico sadio, não se conceder, à pessoa que
14.
terá que trabalhar as terras, um crédito real sobre estas, mas somente um crédito pessoal,
ou seja, um crédito para a utilização do capital no cultivo das terras. Se simplesmente
unirmos as terras ao capital, este estancará ao chegar à natureza. Unindo-se, porém, à
produtividade espiritual de alguém que apenas exerce a gestão das terras, promovendo
assim o processo econômico, ao chegar à natureza o capital desaparecerá, não vindo a
estancar; ele não será preservado, e sim retornará ao trabalho através da natureza, pas-
sando assim por novo ciclo. Um dos estancamentos mais nocivos no processo econômico
é causado pela simples vinculação do capital à natureza; com isso — se nos situarmos
hipoteticamente no início do processo econômico, onde vemos desenvolverem-se trabalho
e capital em conexão com a natureza —, na continuidade do processo, o capital fica em
condições de apoderar--se da natureza, ao invés de perder-se dentro dela.
Sem dúvida os Senhores poderiam apresentar uma grave objeção, que seria a
seguinte: ora, foi justamente dentro desse movimento que nasceu o capital; o que ocor-
rerá quando o capital chegar lá, diante da natureza, em volume tão grande que não
haja possibilidade de canalizar tudo para o trabalho? — ou quando, digamos, não haja
a possibilidade de se encontrarem novos métodos de trabalho ou de incentivar a produ-
ção de matéria-prima? Em todos esses casos não é a natureza que é ligada ao capital, e
sim o trabalho: se, portanto, chegarmos aqui (figura 3) com nosso capital e tornarmos
15.
mais racional a produção de matéria-prima, ou abrirmos novas fontes de produção de
matéria-prima ou coisas semelhantes, poderemos aqui canalizar o capital diretamente
para o trabalho. E quando houver excesso de capital27, é claro que os vários detentores
de capital sentirão o efeito disto, pois não terão onde aplicá-lo. A observação da História
nos confirmará ter, de fato, surgido um excesso de capital, que por isso não encontrou
outro caminho senão conservar-se na natureza. Como consequência observamos o sur-
gimento do assim chamado aumento do valor das terras no processo econômico.
5. A produção e o consumo de valores 49
Levando porém em consideração, nesse contexto mais amplo, o que sempre foi
apresentado de maneira insatisfatória pelos adeptos da reforma agrária — de modo
que jamais se chegou a compreender o assunto perfeitamente —, teremos de con-
cordar que ao se unir o capital à natureza o valor desta, é claro, se elevará. Quanto
mais um bem é sobrecarregado com hipotecas, tanto maior é seu preço. O valor cresce
constantemente. Ora, será que essa elevação do valor das terras é uma realidade?
Obviamente não. Por natureza, as terras não podem crescer em valor a não ser que
lhes seja aplicado um trabalho mais racional. Nesse caso é o trabalho que aumenta
16. o valor; porém o aumento de valor das terras como tais — caso não tenha havido
melhorias através de trabalho prévio — é um perfeito absurdo, um contrassenso. As
terras, enquanto apenas pertencentes à natureza, ainda não podem absolutamente ter
valor. Nós lhes conferimos um valor ao ligar o capital a elas, podendo-se assim dizer o
seguinte: o que, hoje em dia, se chama de valor das terras no contexto econômico não
é, em verdade, outra coisa senão o capital fixado nas terras; porém o capital fixado
nas terras não é um valor real, e sim um valor aparente. É isso o que importa, ou
seja, que se aprenda finalmente, no âmbito do processo econômico, o que são valores
reais e valores aparentes.28
Se em seu sistema mental se alojou um erro, os Senhores não percebem logo
a ação desse erro, pois a conexão entre o erro e todos aqueles diferentes distúrbios
de processos orgânicos ligados a ele, só possíveis de serem descobertos por meio da
ciência noológica, pode ser detectada pelos métodos grosseiros da ciência moderna.29
Ignora-se, por exemplo, o fato de erros causarem distúrbios digestivos nos órgãos
periféricos. Porém no processo econômico os erros e formas ilusórias se fazem notar,
tornando-se reais e surtindo consequências. E no sentido econômico realmente não
17.
faz diferença essencial se, por exemplo, em algum ponto eu gasto dinheiro que não
esteja baseado em realidade alguma, representando apenas um aumento de papel-
-moeda em circulação, ou se confiro às terras valor de capital. Em ambos os casos
estou criando valores ilusórios. Por tal aumento de papel-moeda eu elevo os preços
numericamente, mas na verdade nada realizo no processo econômico. Apenas desloco
as coisas, podendo, todavia, causar grandes danos ao indivíduo. É assim que a capi
talização das terras causa dano às pessoas envolvidas no processo econômico.
Poder-se-ia fazer estudos bem interessantes comparando, por exemplo, a legislação
hipotecária tal como vigorava antes da guerra** nos países da Europa Central — onde
a própria legislação facilitava o livre aumento dos preços das terras com efeitos sobre
18. o processo econômico — com a legislação da Inglaterra, que de certo modo não permite
um aumento substancial dos preços das terras. Tais assuntos podem servir de temas
de dissertação bem interessantes. Um bom tema seria a comparação numérica entre
os efeitos das legislações hipotecárias inglesa e alemã.
Com isso pude ilustrar-lhes que na verdade se trata do seguinte: a natureza não
deve levar aqui (v. figura 3) a uma conservação do capital, devendo este, pelo contrá-
rio, continuar a fomentar o trabalho. Quero frisar uma vez mais o seguinte ponto: a
19.
única medida para evitar a presença de capital lá onde não possa ser utilizado é fazer
o excedente ser consumido durante o processo (v. figura 3), restando assim somente o
quanto, nesse trabalho, possa ser empregado no cultivo das terras. A coisa mais natural
é que, deste modo, o capital seja consumido aqui (figura 3). A hipótese de que em todo
o ciclo nada se consuma é algo trágico. Seria necessário arrastarem-se os produtos por
todo o caminho. O processo se torna orgânico unicamente pelo fato de as coisas serem
consumidas. Da mesma maneira, todavia, como é consumida a natureza trabalhada,
por um lado, e o trabalho organizado pelo capital, por outro, é que o capital deve ser
totalmente consumido em seu caminho ulterior. É esse consumo de capital o que tem
de ser realizado.
Isso só pode ser alcançado mediante uma organização correta do processo eco-
nômico do começo ao fim, ou seja, até sua volta à natureza, passando a existir desse
modo algo como o fator autorregulador no organismo humano. O organismo humano, ao
menos quando funciona normalmente, consegue que as substâncias alimentícias não-
-assimiladas não sejam depositadas em algum lugar. Quando substâncias alimentícias
não-assimiladas são depositadas em qualquer lugar, o homem fica doente da mesma
forma como se fossem depositadas partes não-assimiladas do organismo. Imaginem, por
exemplo, substâncias sendo depositadas durante o metabolismo cefálico, isto é, a ocor-
rência de um metabolismo desregulado na cabeça. As substâncias não são segregadas,
20.
mas depositadas, pelo fato de o consumo não ser regulado corretamente. O resultado
são estados de enxaqueca. Podemos, assim, verificar que em toda parte do organismo
humano as causas de doenças residem na assimilação e na segregação incorretas das
substâncias a serem digeridas. Situação análoga temos no organismo social, quando há
um acúmulo daquilo que na verdade deveria ser consumido em algum lugar. É abso-
lutamente necessário que aqui (v. figura 3) ocorra o consumo do capital, para que este
não possa ligar-se à natureza formando algo estático, como que um elemento petrificado
no processo econômico — pois as terras capitalizadas são um elemento impossível no
processo econômico.
Quero frisar expressamente que aqui não se trata de fazer política de agitação.
Pretendo desenvolver as coisas tal qual se configuram dentro do processo natural. O
que nos interessa aqui é apenas o lado científico das coisas; contudo, não é possível
praticar uma ciência que se ocupe com a atuação das pessoas sem apontar os fenômenos
21.
mórbidos que possam surgir, do mesmo modo como não se pode considerar o organis-
mo humano sem levar em conta as doenças que este possa sofrer. Ora, deve haver um
consumo adequado de capital, só não o consumo total, sendo necessário alguma coisa
ser transferida para que se possa continuar trabalhando a natureza.
A parte que deve ser transferida eu posso demonstrar-lhes numa imagem.
Imaginem um camponês, que no processo econômico é obrigado a preocupar-se em se
desfazer do produto de seus campos e reter uma parte para a semeadura do próximo
ano. As sementes têm de ser guardadas e conservadas. Essa é uma imagem perfei-
tamente aplicável a este processo (v. figura 3). O capital tem de ser consumido até
ao ponto de sobrar apenas o que pode ser considerado uma espécie de semente para
22. uma nova ativação do processo econômico, a partir da natureza. Portanto, deve sobrar
apenas o que, por exemplo, possa racionalizar o aproveitamento de certas fontes de
matérias-primas, ou que eventualmente melhore as condições do solo, digamos, pelo
desenvolvimento de melhores adubos. Para tudo isso tem de ser aplicado trabalho.
Portanto, deve furtar-se ao consumo o que possa continuar atuando no trabalho; em
contrapartida deve ser consumido antes, estando ainda aqui (v. figura 3), o que se
uniria à natureza de um modo inorgânico.
5. A produção e o consumo de valores 51
Ora, os Senhores poderiam dizer o seguinte: explique-nos agora como deve acon-
23. tecer para que aqui reste apenas a quantidade correta de capital, para que tal capital
seja, por assim dizer, apenas a semente para o próximo ciclo!
Ora, com a Ciência Econômica não nos situamos no campo da lógica, mas no
campo da realidade concreta. Aí não é possível dar respostas tal como se pode dar, sob
certas circunstâncias, digamos, na Ética Teórica. Na Ética Teórica é perfeitamente
possível repreender um criminoso e praticar uma série de coisas que satisfaçam às
exigências éticas. Porém o processo econômico depende de ação, de realização. Deve-
24. -se falar de realidades concretas. Falando do processo produtivo e demonstrando
como este cria valores, fala-se de realidades. Todo o mundo sabe que com o consumo
se trata de realidades. Portanto, não podemos falar de processo econômico, mas de
realidades. No mundo real as ideias nada produzem. O que ordena o processo eco-
nômico de maneira correta está representado no que em meu livro Die Kernpunkte
der sozialen Frage [v. nota 7] chamei de verdadeiras associações.30
Quando a vida econômica se firmar sobre os próprios pés31 e as pessoas envol-
vidas nessa vida, quer como produtores, quer como consumidores ou mesmo comer-
25. ciantes, forem reunidas como tais em associações, tais pessoas terão, mediante todo
o processo econômico, a possibilidade de frear uma formação de capital forte demais,
ou de incrementar uma formação de capital fraca demais.
Para tal é necessária, naturalmente, a correta observação do processo econômico.
Ela faz parte disso. Deverá ser possível observar apropriadamente se em algum lugar
um tipo de mercadoria é vendido barato ou caro demais. O barateamento ou o encare-
cimento em si não têm significado algum; somente quando, com base nas experiências
26. que não podem ser obtidas nas deliberações conjuntas no âmbito associativo, estivermos
em condições de poder determinar que, por exemplo, cinco unidades de dinheiro são
pouco ou muito para uma quantidade de sal, somente então — quando houver uma
base real para se julgar um preço alto ou baixo demais — será possível adotarem-se as
medidas necessárias.
Se o preço de uma mercadoria ou de um bem qualquer ficar barato demais, fazendo
com que seus produtores não mais recebam a remuneração adequada por seus préstimos,
deve-se diminuir o número de operários para a produção de tal bem e transferir os que
sobram para uma outra ocupação. Quando um produto fica caro demais, então se deve
trazer novos operários. As associações ocupam-se com o adequado emprego de pessoas
27. no âmbito dos diferentes ramos da economia. Devemos convencer-nos de que uma real
elevação do preço de um artigo na economia terá de acarretar um aumento do número de
pessoas que elaboram tal artigo, enquanto uma real diminuição do preço, uma diminuição
excessiva do preço, acarretará a medida de transferir uma parte dos operários para um
outro campo de trabalho. Só é lícito falarmos de preços em conexão com a distribuição de
pessoas dentro de determinados ramos de trabalho no âmbito de um organismo social.
As concepções que muitas vezes prevalecem hoje em dia, a tendência bem
difundida de se preferir trabalhar com conceitos, e não com realidades, vemo-las
demonstradas por alguns monetaristas. Para estes a coisa é muito simples. Se em
28. algum lugar os preços forem, digamos, altos demais, de modo que se esteja obrigado
a gastar demais dinheiro por um artigo qualquer, dever-se-á simplesmente cuidar de
reduzir a circulação de dinheiro, e logo as mercadorias ficarão mais baratas, e vice-
-versa. Pensando a fundo, os Senhores descobrirão que, na realidade, para o processo
52 Rudolf Steiner
econômico isso significa a mesma coisa que se, por alguma artimanha, ao sentir muito
frio conseguíssemos fazer subir a coluna de mercúrio no termômetro. Estamos apenas
manipulando os sintomas. Não criamos algo real mudando o valor do dinheiro.
Em contraposição, estaremos criando algo real regulandoo trabalho, ou seja, o
número de pessoas que trabalham; assim, o preço dependerá do número de operários que
trabalham num determinado campo. Querer deixar que o Estado regule isso significaria
a pior tirania.32 Devemos aspirar a que isso seja regulado pelas associações livres que se
29.
formarem dentro dos diferentes campos sociais, e em cujo âmbito cada um possa ter uma
perfeita visão da situação — fazendo parte da associação correspondente ou tendo nela
um representante que lhe comunica as ocorrências, ele pode ser informado por alguém
sobre o que acontece, ou compreendê-lo por si mesmo —, eis o que deve ser almejado.
Tudo isso exige, naturalmente, que se cuide para que os operários não sejam
limitados a poder executar durante toda a sua vida somente um trabalho qualquer, e
sim para que sejam capazes de cumprir também outras tarefas. Isso se fará necessário
mormente pelo motivo de, outrossim, acumular-se aqui capital em excesso (v. figura 3).
Poderíamos empregar o capital porventura excedente aqui para capacitar os operários,
a fim de poder transferi-los a outros ramos profissionais. Vemos, portanto, que no mo-
30. mento em que começamos a pensar de modo racional, o processo econômico se corrige
a si próprio — e isso é o que importa. Eis o essencial: que ele se corrija a si próprio.
Porém o processo econômico jamais se corrigirá se nos limitarmos a dizer que a situação
melhorará por meio da inflação ou da publicação desta ou daquela regulamentação. Por
esse meio ela em nada melhorará; só melhorará permitindo-se que o processo econômico
seja constantemente observado em cada um de seus pontos, podendo os observadores
agir imediatamente em consequência de tais observações.
Era até este ponto que eu queria chegar hoje, a fim de fazê-los perceber que, no
contexto do que foi tencionado por mim como ‘trimembração’, não se visava a fazer
31. agitação, mas a expor ao mundo algo resultante de uma real observação do processo
econômico.
6
O preço correto
29 de julho de 1922
Talvez os Senhores saibam que em meu livro Die Kernpunkte der sozialen Frage
[v. nota 7] eu procurei expor, numa fórmula, uma maneira de se chegar a uma ideia
do preço correto, dentro do processo econômico. É claro que tal fórmula não propicia
1. mais do que uma abstração. Ora, nestas palestras nossa tarefa consiste justamente
em introduzir nessa abstração, ao menos esquematicamente, toda a economia. Penso,
assim, que estas palestras poderão acabar formando um todo, embora o tempo seja
curto.
Indiquei, pois, em Die Kernpunkte a seguinte fórmula: existe um preço correto
quando alguém recebe, como recompensa por um produto que elaborou, tanto quanto
precise para satisfazer suas necessidades — a soma de suas necessidades, na qual
naturalmente estão incluídas as necessidades das pessoas que dele dependem —, até
que tenha elaborado um novo produto idêntico. Tal fórmula, por mais abstrata que
seja, nem por isso deixa de ser abrangente e completa. Na elaboração de uma fórmula
2. importa, pois, que ela realmente abranja todos os detalhes concretos. E penso que para
a Economia essa fórmula é realmente tão completa quanto o é, digamos, o teorema de
Pitágoras para todos os triângulos retângulos. Ora, trata-se do seguinte: do mesmo
modo como aquele teorema deve abranger a diversidade dos lados dos triângulos,
infinitamente mais elementos devem ser englobado nessa fórmula. É justamente na
compreensão de como englobar nessa fórmula todo o processo econômico que consiste
a ciência da Economia.
Hoje quero partir de um detalhe muito essencial de tal fórmula, o qual consiste
no fato de aí eu não apontar para o que já passou, e sim para o que ainda virá. Digo
expressamente o seguinte: as necessidades devem ser satisfeitas pelo valor equivalente,
até que o produtor tenha elaborado um outro produto idêntico. Isto é algo essencial nessa
fórmula. Caso se pretendesse um valor equivalente por um produto acabado, devendo
este corresponder de alguma maneira ao que realmente sucede no âmbito econômico,
poderia facilmente acontecer de o produtor receber um valor tal que satisfizesse apenas
uns cinco sextos de suas necessidades até ele poder acabar um novo produto; é que os
processos econômicos mudam no curso do tempo, do passado para o futuro. E quem
3. acreditar poder restringir seus cálculos ao passado, estará sempre fadado a chegar
a conclusões incorretas no processo econômico; pois atuar economicamente consiste,
propriamente, no fato de processos futuros serem colocados em movimento com o auxí-
lio de algo que aconteceu antes. Contudo, caso se utilizem os processos passados para
iniciar os futuros, os valores, conforme o caso, terão de alterar-se de modo significativo,
pois de fato eles se alteram continuamente. Por isso o ponto essencial dessa fórmula
é o seguinte: se alguém vende um par de sapatos, o tempo que levou para produzi-los
não é, de modo algum, economicamente importante; importante é o tempo em que ele
produzirá o próximo par de sapatos. É isso o que importa nessa fórmula, e devemos
compreendê-lo em sentido mais amplo, no processo econômico.
54 Rudolf Steiner
Ontem nos familiarizamos com a circulação (ver fig. 3): natureza – trabalho – ca-
pital tornado produtivo pelo espírito. Em lugar do capital eu poderia escrever também
espírito. Começamos por acompanhar o processo econômico nesta direção — contrária
ao ponteiro do relógio — e verificamos que aqui, na natureza, não deve haver um re-
presamento, devendo chegar até aí somente o que, como semente, terá a possibilidade
de continuar o processo econômico, evitando assim um represamento econômico pela
fixação do capital na renda de terras. Eu já lhes disse que, no fundo, a renda pela venda
das terras — ou seja, a valorização das terras — contraria, no processo econômico, os
interesses que existem na produção de bens de valor. Quem, com a ajuda do capital,
deseja produzir bens de valor, tem interesse numa taxa de juros baixa; nesse caso terá
4.
de pagar menos juros, e o capital de empréstimo que recebeu lhe deixará maior liberdade
e movimento. Por outro lado, uma pessoa que possui terras — devemos analisar essas
coisas porque nos dizem respeito no âmbito de nossa economia — e tem interesse em
elevar o preço delas, alcança seu intento justamente pelo fato de os juros baixarem. Se
tiver de pagar uma taxa de juros mais baixa, o valor de suas terras crescerá, enquan-
to o produtor de bens de valor, tendo de pagar menos juros, poderá produzir esses
bens mais em conta. Portanto, mercadorias que envolvem um processo de produção
ficam mais em conta com uma taxa de juros baixa; em contrapartida, terras que pro-
porcionam uma renda sem que, primeiro, tenham produzido, ficam mais caras com
uma taxa de juros baixa. Este é um cálculo simples — trata-se de um fato econômico.
Resulta daí que haveria a necessidade de se estabelecer uma dupla taxa de ju-
ros: uma taxa a mais baixa possível para as operações que envolvem trabalho — para
a produção de bens de valor econômico — e uma taxa a mais alta possível para as
terras. É uma consequência lógica. O estabelecimento de uma taxa de juros bem alta
para as terras não é tão facilmente realizável. Uma taxa um pouco mais alta que fos-
se aceitável para o capital de empréstimo sobre as terras não ajudaria muito, e uma
taxa de juros consideravelmente mais alta — por exemplo, uma taxa que mantivesse o
5. valor das terras sempre no mesmo nível, ou seja, a taxa de cem por cento — seria, na
prática, extremamente difícil de tornar-se exequível sem mais nem menos. Cem por
cento para empréstimos sobre as terras melhoraria a situação de imediato; mas, como
eu já disse, não seria exequível na prática. Mas o que importa nessas coisas é obter
uma visão clara e precisa do processo econômico; e quem o obtiver logo se dará conta de
que o regime de associações pode fazer o processo econômico recobrar a saúde. É que o
processo econômico, quando encarado corretamente, revela-se perfeitamente possível
de ser dirigido com acerto.
No processo econômico lidamos com produção e consumo, conforme já indicamos
ontem. Passemos então a observar as atividades de produção e consumo. Ora, temos
aí um antagonismo que desempenhou um papel importante nas muitas recentes
6. discussões no âmbito da política econômica, as quais frequentemente até resvala-
ram para a agitação. Discutia-se muito, principalmente sobre a questão de saber se
a atividade cultural ou espiritual — simplesmente o trabalho ligado às capacidades
do espírito — seria, de alguma forma, um produtor de valores no âmbito econômico.
O trabalhador intelectual certamente é consumidor. Discutia-se muito sobre
se ele também seria produtor no sentido econômico; e, por exemplo, os marxistas
7.
mais extremados não se cansavam de citar aquele infeliz contador hindu que tinha
de escriturar as contas de sua comunidade e, portanto, não cultivava os campos ou
6. O preço correto 55
Por isso, nenhuma concepção econômica é real quando não leva em conta o que
é realizado pelo trabalho espiritual — se assim quisermos chamá-lo —, o que vale
dizer, no fundo, pelo pensar. Mas tal trabalho espiritual é realmente difícil de se apre
ender pelo fato de possuir peculiaridades bem marcantes que, à primeira vista, não
são facilmente apreensíveis economicamente. A atividade espiritual já começa com a
organização e distribuição do trabalho por meio do pensar. Com o tempo, todavia, ela
se torna cada vez mais independente. Observando a atividade intelectual realizada por
uma pessoa dirigente de uma empresa inserida na cultura material, podemos verifi-
car que ela efetua uma grande quantidade de trabalho a partir do espírito, mas ainda
9. continua trabalhando com aquilo que o processo econômico lhe fornece do passado. Em
todo caso não se pode evitar, já por interesses puramente práticos, que no contexto da
atividade intelectual-espiritual — prefiro chamá-la assim em lugar de trabalho —, no
contexto da atuação a partir do espírito, também surja uma atuação perfeitamente livre.
Já a invenção do cálculo diferencial, por exemplo, ou, mais ainda, a pintura de um quadro,
envolvem uma atividade espiritual totalmente livre. Nesses casos pode-se falar, ao menos
em sentido relativo, de uma atividade espiritual livre, já que as tintas e outros materiais
utilizados, oriundos do passado, não têm tanto peso no resultado final em comparação
com o das matérias-primas adquiridas para uma fabricação material.
Ao passar para lá (ver fig. 4) entramos no campo da vida espiritual inteiramente
livre, campo em que encontramos em primeiro lugar o ensino e a educação. As pessoas
encarregadas do ensino e da educação encontram-se na vida espiritual livre por exce-
lência. No que diz respeito ao curso puramente material do processo econômico, esses
trabalhadores espirituais livres são, antes de mais nada, absolutamente só consumido-
res. Os Senhores podem dizer que elas produzem algo e até são remuneradas pelo que
10. produziram — como no caso, por exemplo, de um pintor. Portanto, aparentemente existe
um processo econômico idêntico ao da fabricação e venda de uma mesa; e não obstante
trata-se de um processo essencialmente diferente quando fazemos abstração das com-
pras e vendas realizadas pelo indivíduo e começamos a pensar à maneira econômica,
dirigindo nossa atenção a todo o organismo econômico — uma exigência dos tempos
atuais em face da tão avançada divisão do trabalho.
Além disso, existem puros consumidores de outras espécies dentro de um organis-
mo social: são os jovens, as crianças e os idosos. Os primeiros são consumidores puros
11.
até certa idade. E os aposentados, sejam voluntários ou forçados, voltam a ser puros
consumidores.
Basta uma ligeira reflexão para nos convencermos de não poder haver progresso
no processo econômico sem existirem puros consumidores que não sejam produtores;
pois se todo mundo fosse produtor, não seria possível consumir tudo o que fosse pro-
12. duzido para que o processo econômico não sofresse estagnação — ao menos do modo
como a vida humana é organizada atualmente. E essa vida humana não se restringe à
economia, devendo ser encarada em sua totalidade. Assim sendo, o progresso do processo
econômico só é possível quando inclui consumidores puros.
Tal fato de termos no processo econômico também consumidores puros, eu o ilus-
13.
trarei para os Senhores a seguir, de um ponto de vista totalmente diverso.
Podemos guarnecer este círculo (v. fig. 4) — que pode ser muito elucidativo — com
14. todas as qualidades possíveis, e sempre permanecerá a pergunta sobre como incluirmos
as diversas etapas, os diferentes fatos neste círculo que representa a circulação do pro-
6. O preço correto 57
para horror de muita gente — essa categoria, em que os valores — por exemplo,
—
os meios de produção — passam, no fundo, por um processo idêntico ao ato de doar,
para quem estiver capacitado a continuar administrando-os. Ora, deve-se cuidar
para que a doação não seja feita de maneira confusa, não havendo, porém, dúvida
sobre tratar-se de uma doação no sentido econômico. Tais doações são inteiramente
necessárias.
Ponderem bem a seguinte situação, com a qual cada vez mais se defrontarão no
processo econômico: a necessidade de este abranger a tríade pagar–emprestar–doar — e
17. os Senhores se convencerão de que ela deve estar incluída em todo processo econômico,
pois de outra forma não poderia haver esse processo, que se perderia totalmente no
absurdo.
Pode haver épocas em que se refute tal necessidade; ora, hoje em dia os conhe-
cimentos de Economia não vão tão a fundo, e principalmente aqueles que pretendem
ensinar a Ciência Econômica deveriam saber disso e de que, sobretudo, ninguém está
muito propenso a aprofundar-se nas verdadeiras concatenações dessa disciplina. É
evidente, tão evidente, diria eu, que pode acontecer o fato curioso de podermos ler no
Basler Nachrichten [Noticiário de Basiléia] de hoje considerações a respeito do fato de
nem nos governos nem em pessoas particulares existir a inclinação para se desenvolver
18. um raciocínio econômico. Ora, eu não acredito que um jornal como o Basler Nachrichten
iria discutir coisas que não sejam realmente evidentes! Em todo caso, é interessante
que isso seja discutido dessa forma; o artigo a que me refiro é de interesse pelo fato de,
por um lado, começar a lançar uma forte luz sobre a absoluta impotência da Ciência
Econômica, e também por dizer que a situação tem de mudar e que governos e indivíduos
têm de começar, finalmente, a mudar de mentalidade: é até aí que vai o artigo. Nesse
jornal, naturalmente, nada se encontra sobre a direção em que deve ir a mudança de
mentalidade. Isso também é um indício muito interessante!
Poderemos intervir de um modo perturbador no processo econômico se não observar-
mos um relacionamento correto entre os componentes dessa trindade. Existe hoje muita
gente particularmente entusiasmada pela exigência de se instituir um alto imposto sobre
heranças, que também são doações. Na verdade isso não é algo significativo no processo
econômico; a herança com um valor, digamos, igual a V não é desvalorizada quando se
divide esse valor V em duas partes, V1 e V2, dando o valor V2 a uma outra pessoa, de
19. modo que o herdeiro fique apenas com o valor V1: é que nesse caso os dois operam com
o valor V em conjunto. O que importa é que quem receber o valor V2 o administre tão
favoravelmente quanto o faria quem tivesse recebido V1 e V2 juntos. Ocorre que cada
um deve decidir o seguinte, de acordo com seu gosto: se o resultado econômico seria
melhor no caso de um indivíduo inteligente trabalhar com toda a herança ou no caso
de um outro receber somente uma parte da herança, ficando o restante com o Estado
e sendo ele obrigado a cooperar economicamente com este último.
Esses são assuntos que decididamente nos desviam do pensar puramente eco-
nômico, pois aí se trata de um pensar imbuído de ressentimento, um pensar a partir
da emoção. O caso é que se tem inveja dos herdeiros ricos. Pode ser que isso tenha
20. fundamento, porém não se pode falar somente de tais coisas quando se quer raciocinar
economicamente. O que importa é o que é necessário ponderar no sentido econômico,
pois disso dependerá o que deve suceder. Sem dúvida podemos imaginar um organismo
social que adoeça porque o ato de pagar esteja coligado de modo não-orgânico ao de
6. O preço correto 59
Chegamos a formar agora uma nítida ideia de como a economia global trans-
corre de modo a abranger, como fatores impulsionantes, como fatores dinâmicos, os
seguintes: compra (ou venda), empréstimo e doação. Devemos convencer-nos de que
sem tal interação entre emprestar, doar e comprar não pode existir uma economia.
1. Portanto, o que no processo econômico engendra os valores — dos quais já falamos
focalizando-os de um dos lados —, isto é, o que leva à formação dos preços, origina-se
desses três fatores: compra, empréstimo e doação. O que importa é apenas saber-
mos como tais fatores atuam na formação de preços, pois somente após conhecermos
isso é que poderemos chegar a uma espécie de formulação do problema do preço.
Trata-se de perscrutarmos a fundo a natureza de cada um dos problemas econô-
micos. Cabe notar que, nesse sentido, nossa economia está repleta de representações
2. totalmente nebulosas, representações que se tornam vagas principalmente pelo motivo
— como já expliquei várias vezes — de se pretender captar em situação estática o que
está em movimento.
Consideremos, sob a premissa de a dinâmica econômica abranger doação, emprésti-
mo e compra, os fatores estáticos mais proeminentes de nossa economia. Verifiquemos o
que na atualidade se discute com a maior frequência e por cujo intermédio, em verdade,
introduzem-se a maioria dos erros na Ciência Econômica. Fala-se do salário, dando-lhe
uma conotação de preço pelo trabalho. Diz-se, ao pagar mais a um assalariado, que
o trabalho ficou mais caro, e, ao rebaixar o salário de um assalariado, que o trabalho
3. ficou mais barato. Fala-se efetivamente na existência de uma espécie de compra entre
o assalariado, que vende seu trabalho, e a pessoa que o compra. Trata-se, porém, ape-
nas de uma compra fictícia. Em realidade não ocorre uma compra. O difícil de nossas
condições econômicas é que, de certo modo, temos em toda parte situações disfarçadas,
mascaradas, que se apresentam de modo diferente do que de fato são em sentido mais
profundo. Já mencionei isso anteriormente.
Já tivemos oportunidade de aprender que o valor na economia só pode sur-
gir na permuta dos produtos, na troca de mercadorias, de produtos econômicos
em geral. Não há absolutamente outra maneira pela qual possa surgir valor. Por
outro lado, é fácil convencer-se do acerto da seguinte proposição: se o valor puder
surgir somente da mencionada maneira, e se o preço do valor produzido tiver de
4. ser estabelecido, como expus ontem, de modo a se levar em conta que a pessoa que
tenha produzido um bem possa receber, pelo produto, um tal contravalor que lhe
permita satisfazer suas necessidades pelo tempo requerido para a produção de um
bem idêntico — se isto deve ser possível, então os produtos terão de estabelecer
seus valores reciprocamente. E no final das contas não é muito difícil compreender
que, no processo econômico, os produtos estabelecem seu valor reciprocamente. O
62 Rudolf Steiner
fato é apenas disfarçado pela aparição do dinheiro entre o que é permutado. Porém
esse não é o aspecto significativo do assunto. Não teríamos o mínimo interesse no
dinheiro se este não promovesse, facilitasse e barateasse a troca dos produtos. Não
necessitaríamos de dinheiro se não ocorresse que a pessoa que entregou um produto
ao mercado — sob o processo de divisão de trabalho — não queira dar-se ao trabalho
de ir buscar as coisas de que precisa lá onde são produzidas, mas prefira receber o
valor em dinheiro para, por sua vez, ir abastecer-se de maneira mais conveniente.
Portanto, podemos dizer que em verdade a formação dos preços se deve à tensão
recíproca surgida entre os produtos no processo econômico.
Consideremos, deste ponto de vista, a assim chamada relação assalariada, a relação
de trabalho. Ora, não é possível trocarmos o trabalho por uma coisa qualquer, pois em
verdade não existe uma possibilidade de definição de valor recíproco entre o trabalho
e qualquer outro elemento. Podemos ter a ilusão de estarmos pagando o trabalho — e
sob tal ilusão estabelecer a relação empregatícia; mas em realidade não é assim: em
realidade ocorre algo totalmente diverso, ou seja, que também na relação empregatí-
cia ou trabalhista se trocam valores. O trabalhador produz algo, fornece um produto;
5. e é esse produto que, em verdade, o empresário lhe compra. Realmente o empresário
paga até ao último centavo os produtos que o operário fornece — devemos encarar as
coisas de maneira correta —; ele compra os produtos do trabalhador. E depois de ter
comprado produtos cabe-lhe a tarefa, por intermédio das condições gerais do organismo
social, de incrementar o valor dos produtos pela aplicação de seu espírito empresarial.
É isso que lhe traz então, de fato, o lucro. É disso que ele tira seu proveito e que o co-
loca em condições, depois de ter comprado os produtos de seus operários, de elevar o
valor, através da conjuntura — se é que podemos usar tal palavra tão mal-afamada.
Vemos que nas relações de trabalho trata-se de uma verdadeira compra. E não
podemos dizer que em tal relação de trabalho surja diretamente uma mais-valia. O que
podemos dizer é que em decorrência das condições sociais o preço pago pelo empresário
não é aquele do qual lhes falei ontem. Trata-se de um fenômeno que encontraremos em
outros pontos do processo econômico: embora os produtos determinem reciprocamente
seus valores reais, tais valores não são pagos no processo. É muito fácil verificarmos
que nem todos os valores são pagos no processo. Imaginem uma pessoa que seja um
6. pequeno fabricante e, de repente, receba uma grande herança; ele fica aborrecido com
sua fábrica e resolve vender a preços bastante baixos as mercadorias que lhe restaram.
Nem por isso as mercadorias baixam de valor — apenas não se paga o preço verda
deiro. O preço é adulterado no processo econômico. Devemos não perder de vista que,
em todo estágio do processo econômico, existe a possibilidade de se adulterar o preço;
porém mesmo assim este sempre existirá. As mercadorias que esse fabricante vende
não possuem um valor menor do que mercadorias idênticas produzidas por um outro
fabricante.
Agora que procuramos ter bem claro que na relação de assalariamento lidamos
efetivamente com uma compra, disponhamo-nos a questionar com o que é que se lida
no caso do rendimento proveniente de terras, do preço das terras. É que o preço das
7. terras não resulta originalmente da situação existente numa economia formada. Para
ilustrá-lo de modo um pouco radical, basta apontarmos o fato de as terras terem che-
gado originalmente à disponibilidade de alguns indivíduos mediante conquista, isto é,
pelo uso do poder. Na maioria dos casos, talvez pudéssemos descobrir também algum
7. Os fatores da formação de preço 63
vestígio de troca. Por exemplo, um conquistador de terras poderá ceder partes delas
a pessoas que o ajudaram na conquista. Portanto, nada temos aí, no ponto de partida
da economia de um povo, que seja verdadeiramente econômico. Todo o processo nada
tem a ver com economia, sendo de tal feitio que apenas nos permite falar de poder e
direito. Direitos são conquistados pelo poder, direitos sobre terras. No fundo, vemos aí
o elemento econômico esbarrar em condições de direito e poder.
Contudo, o que se passa sob a influência de tais condições de direito e poder? Ora,
a influência de tais condições de direito e poder sempre faz com que a pessoa que está
com a livre disponibilidade das terras esteja em melhor situação do que aqueles que
ela fará trabalhar a seu serviço e que lhe fornecerão os produtos de seu trabalho. Não
estou falando do trabalho, e sim dos produtos do trabalho — pois são esses produtos do
trabalho que importam. A pessoa que conquistou as terras deverá receber mais do que
8. dará aos outros — é a simples consequência de sua situação de conquista e direito. Mas
o que é que ela recebe a mais do que dá aos outros, e que deturpa a relação de preço?
Não é outra coisa senão uma doação compulsória. Percebemos nesse ponto surgir, sem
dúvida, a relação de doação, com a restrição de que quem realiza a doação não o faz de
livre vontade, mas sob coação. Há uma doação compulsória. É o que vemos aqui com
relação às terras. Tal doação compulsória, porém, eleva substancialmente os preços que,
em verdade, os produtos das terras deveriam ter como preços de troca.
Assim sendo, o preço de tudo o que está sujeito a tais condições de direito tende a
elevar-se acima de sua realidade. Se silvicultores ou caçadores convivem com agriculto-
res, os primeiros levam vantagem sobre os segundos. É que agricultores vivendo entre
silvicultores são obrigados a pagar aos últimos, pelo que lhes é fornecido, preços mais
altos do que seriam os puros preços de troca entre silvicultura e agricultura; o motivo
disso é que a silvicultura, por uma pura relação de direito, pode ser mais fortemente
sujeita à determinação de quem estipula os preços. Na agricultura é indispensável efe-
tuar um verdadeiro trabalho, enquanto na silvicultura ainda estamos muito próximos
9. de uma avaliação em que não entra o trabalho, mas unicamente as condições de direito
e de poder. E se artesãos35 vivem entre agricultores, os preços tendem a elevar-se acima
do real em favor dos agricultores, e de descer abaixo do real para os artesãos. Artesãos
entre agricultores vivem de modo relativamente mais caro; agricultores, como minoria
entre artesãos, levam uma vida mais em conta. Assim, a progressão dessa tendência, ou
seja, de os preços se elevarem acima ou caírem abaixo dos verdadeiros, apresenta-se
como segue: o fato se faz notar mais pronunciadamente na silvicultura, depois na
agricultura, a seguir no artesanato e, por fim, nas atividades profissionais completa-
mente livres. É assim que devemos buscar formação de preços no processo econômico.
Existe, no processo econômico, uma tendência própria no sentido de produzir
rendimento sobre terras; trata-se, de certo modo, de uma inclinação para submeter-se
à coação de pagar mais pela agricultura do que pelas outras coisas. Existe tal tendên-
cia na presença da divisão do trabalho; e todas as nossas exposições referem-se a um
organismo social em que há divisão de trabalho. A mencionada tendência é motivada
10.
simplesmente pelo fato de, na agricultura, não poder ocorrer o que tive de mencionar
duas vezes, há alguns dias — e que, diria eu, causou algumas dificuldades a grande
parte dos prezados ouvintes —, ou seja, que o autossustentador vive, de fato, de modo
mais caro; por isso ele tem de pedir mais por seus produtos, isto é, tem de cobrar mais
de si próprio do que paga uma pessoa que compra seus produtos de outros na livre
64 Rudolf Steiner
circulação econômica. Isto faz certo sentido com relação aos ofícios, mesmo que lhes
custe bastante chegar a compreender perfeitamente esse sentido. Porém com relação
à agricultura e à silvicultura não faz sentido algum. É justamente isso que se deve
saber quanto às realidades, ou seja, que os conceitos sempre se aplicam apenas a um
determinado campo e se modificam com relação a um outro campo. É o caso também
em outros campos da realidade. Um remédio para a cabeça pode ser algo nocivo, pato-
gênico para o estômago, e vice-versa. E é assim que decididamente ocorre no processo
econômico. Se pudesse ser totalmente possível o agricultor não ser autossustentador,
também para ele prevaleceriam as normas válidas, em outros casos, para a circulação
das mercadorias. Porém ele não pode senão ser autossustentador, porque no processo
econômico toda a agricultura de um organismo social se junta por si só numa unidade,
mesmo que existam propriedades individuais. Em qualquer circunstância, aquele que
é agricultor é obrigado a reter, da totalidade de sua produção, aquilo com que ele se
autossustenta. Se o recebe de outros, ele também o retém. Na realidade ele é autos-
sustentador, sendo por isso obrigado a pagar seus produtos mais caro. A consequência
disso é que os preços têm de subir para este lado.
Isto quer dizer que no processo econômico existe, de fato, uma tendência a
produzir rendimento do solo. O que importa é apenas descobrir a maneira de neutra-
lizar o rendimento do solo no processo econômico. É imprescindível não ignorarmos
11. a existência dessa tendência. Poderíamos tentar abolir o rendimento do solo — ele
sempre voltará a ser produzido de alguma forma, e pelo simples motivo que acabo
de expor.
Pela mesma razão de existir, no processo econômico, a tendência a produzir ren-
dimento do solo é que existe, por outro lado, a tendência dos empresários a desvalorizar
o capital, a torná-lo cada vez mais barato. Chegaremos mais facilmente a compreender
tal tendência se percebermos a impossibilidade de comprar capital. Não há dúvida de
que se negocia capital, de que se compra capital, mas qualquer compra de capital é ape-
nas uma transação disfarçada. Em verdade não compramos capital; o capital é apenas
emprestado.36 Também nos casos em que aparentemente existe uma situação diversa,
sempre se poderá verificar o caráter de empréstimo do capital empresarial. Digo expres-
samente capital empresarial porque o conceito não se aplica ao rendimento do solo; no
caso do capital empresarial é decididamente assim que ocorre, pelo simples motivo de
12.
sempre existir a tendência a desvalorizar o que depende da vontade humana37 — na
figura 4 vemo-lo no artesanato e nas atividades livres — em comparação com o resto.
O capital empresarial está completamente voltado para a atividade livre. É constan-
temente desvalorizado, de modo a podermos dizer o seguinte: neste lado do processo
econômico (fig. 4), onde produzimos o rendimento do solo, temos tendência a rebaixar o
capital empresarial, a valorizá-lo cada vez menos. Assim como pelo lado do rendimento
do solo temos um constante encarecimento, pelo lado do capital empresarial temos um
constante barateamento. O capital tende a experimentar uma constante redução de
seu valor econômico, ou melhor, de seu preço, enquanto o rendimento do solo tende a
constantemente subir de preço.
Existe mais uma razão pela qual os Senhores poderão compreender a tendên-
cia do capital a baixar de valor. Compreendendo que na agricultura só se pode ser
13.
autossustentador, sendo essa autossustentação que causa elevação (fig. 4) na ava-
liação dos produtos agrícolas, veremos que com relação ao capital empresarial, onde
7. Os fatores da formação de preço 65
produção são natureza abraçada pelo espírito. A natureza pode ser trabalhada e envia-
da nesta direção (v. fig. 5), tornando-se então capital; ou pode ser enviada nesta outra
direção, tornando-se então meio de produção.
Da mesma maneira, o que surge aqui com a ajuda do meio de produção pode con-
tinuar em seu curso e ser acolhido pelo trabalho. Tal como aqui a natureza é acolhida
pelo espírito, o que é meio de produção em seu sentido mais amplo pode ser recebido
20. pelo trabalho. Se o meio de produção for acolhido pelo trabalho, isto é, se surgir uma
conexão entre o meio de produção e o trabalho, é em tal conexão que reside o capital
empresarial. Isso é o capital empresarial. Portanto, acompanhando-se este processo aqui
(v. fig. 5), surge um movimento que interpenetra meio de produção e capital empresarial.
E se tal movimento continuar, de modo a ser continuamente acolhido pela nature-
za — aliás, agora por uma outra parte da natureza do que no processo de consumo — o
que é produzido pela cooperação entre os meios de produção e o capital empresarial,
21. começará a nascer no processo econômico a mercadoria propriamente dita. É que a
mercadoria já é de fato acolhida pelo processo natural. Ou ela é comida — sendo, nesse
caso, acolhida energicamente pela natureza — ou é aniquilada, é desgastada até acabar.
Em todo caso, algo torna-se mercadoria pelo fato de voltar à natureza.
Sendo assim, podemos dizer o seguinte: acabamos de acompanhar aquele movi
mento em que consiste todo o processo econômico e que abrange os fatores representados
por meios de produção, capital empresarial e mercadoria. Aqui (v. fig. 5) neste ponto a
distinção será muito difícil — pois é extremamente difícil distinguir, no que vai e vem
na verdadeira troca, isto é, na compra-e-venda, se algo vem ou vai em seu movimento,
22. se é mercadoria ou se é algo que não pode ser chamado de mercadoria no verdadeiro
sentido da palavra. Ora, o que é que torna um bem uma mercadoria? Para dizer a ver-
dade, se eu quisesse ser exato deveria escrever ‘bem’ no movimento em direção oposta
ao do ponteiro do relógio, e no movimento retrógrado deveria escrever ‘mercadoria’ —
pois um bem é mercadoria apenas na mão do comerciante que o oferece e não o utiliza
para si mesmo.
O que me interessava hoje era, principalmente, adquirirmos conceitos que apon-
tassem as verdadeiras relações no processo econômico, as quais, devido a processos
deturpados, são constantemente levadas a atuar de modo a não permitir que o processo
econômico funcione sem perturbação. O essencial da tarefa da economia consiste em
compensar tais perturbações. As pessoas falam muito, hoje em dia, da necessidade de
se eliminarem os males da economia, e ficam pensando sub-repticiamente que assim
tudo estaria resolvido e adviria o paraíso na Terra. Isso, porém, seria como se alguém
23. dissesse: “Eu gostaria de comer uma vez tanto que nunca mais precisasse fazê-lo.” Não
posso agir assim porque sou um organismo em que constantemente devem desenvolver-se
processos ascendentes e descendentes. Tais processos também devem estar presentes
na economia; deve existir a tendência a, por um lado, deturpar os preços por meio da
formação de renda e, por outro, baixar os preços em relação ao capital empresarial. Tais
tendências sempre existem e devem ser levadas em conta, a fim de se conseguirem, na
medida do possível, os preços com um mínimo de deturpação.
Para tal seria necessário que a experiência humana direta apreendesse o pro-
cesso econômico, por assim dizer, sempre no status nascendi, ou seja, estar sempre
24.
no meio dele. Disso um indivíduo jamais seria capaz, nem uma comunidade, mesmo
que ultrapassasse um certo âmbito como, por exemplo, no caso do Estado; são capazes
68 Rudolf Steiner
disso apenas as associações, brotadas da própria vida econômica e que, por isso, estão
em condições de atuar diretamente a partir dela, de uma maneira viva. É justamente
ao considerarmos o processo econômico do ponto de vista eminentemente técnico que
somos levados a reconhecer que a partir desse próprio processo devem formar-se as
instituições capazes de unir as pessoas, de forma que estas participem associativamente
no processo vivo e direto, podendo observar as tendências em andamento e descobrir
como enfrentá-las.
8 Sobre oferta e demanda
31 de julho de 1922
Hoje ainda deveremos tratar de corrigir alguns conceitos existentes, que atrapa-
lham quem se empenha em chegar a uma concepção econômica objetiva, realista e, a
partir dela, situar-se no curso da vida econômica. Em verdade, uma Ciência Econômica
1.
que não seja capaz de fecundar a vida prática não possui um valor real. E conceitos
deduzidos de tal disciplina meramente contemplativa têm de conduzir, até certo ponto,
a uma certa inconveniência.
Pressupondo já nos termos convencido de que a questão do preço seja o assunto
mais importante em nossas considerações econômicas, trata-se agora de encararmos
o preço no sentido que já apontei, ou seja, o de que o preço nos indica se as condições
no organismo econômico estão ou não em ordem à medida que o preço suba, desça ou
2.
se mantenha estável, ou então seja considerado alto ou baixo demais para certo grupo
de produtos. Sendo assim, a tarefa das associações deverá ser a seguinte: descobrir,
conforme o barômetro da posição dos preços, o que deverá ser feito nas demais esferas
da vida econômica.39
Sabemos que uma opinião prevalecente em muitos círculos é que, com relação à
questão de preços, não há praticamente coisa alguma a fazer senão o que resulte es-
pontaneamente sob o efeito do que chamam de oferta e demanda.40 Aliás, tal conceito
defendido não só por Adam Smith, mas por muitos outros — isto é, o de que em última
análise o preço se regula automaticamente sob a influência de oferta e demanda —, foi
abalado sob a pressão não dos fatos econômicos, e sim das aspirações sociais cada vez
3.
mais evidentes nos últimos tempos. O que esses círculos sustentam é simplesmente que
uma oferta excessiva terá de levar a medidas para reduzi-la, acarretando assim uma
regulagem automática dos preços. Da mesma maneira, uma demanda, seja ela excessiva
ou insuficiente, exigirá uma regulagem por parte dos produtores, a fim de não produzi-
rem demais ou muito pouco. Com isso, pensam, o preço automaticamente se aproximará
de uma certa situação estável sob a influência da oferta e da demanda no mercado.
Trata-se agora de verificar se tal concepção se mantém apenas na teoria, no siste-
ma conceitual, ou se serve para ingressarmos na realidade. Sem dúvida, tal concepção
não serve para isso; porque tão logo os Senhores se virem às voltas com tais conceitos
de oferta e demanda, perceberão que é totalmente impossível sequer estabelecê-los em
sentido econômico. Tais conceitos podem ser estabelecidos no estilo dos observadores
4. contemplativos da economia. Podemos mandar as pessoas à praça para verificar o efeito
da oferta e da demanda; porém a pergunta é se tais observações servem para as pessoas
se aprofundarem no curso dos processos econômicos ao ponto de, com tais conceitos,
apreenderem algo de concreto. É que na vida real tais conceitos não lhes servem de
nada, pois elas desconsideram por completo o que está por trás dos processos que querem
abranger com seus conceitos. Elas observam no mercado o jogo entre oferta e demanda;
70 Rudolf Steiner
porém isso não abrange o que se passa atrás daquilo que se apresenta como oferta nem,
por sua vez, o que precede o surgimento da demanda. É nestes aspectos que residem os
verdadeiros processos econômicos; só que no mercado eles se confundem, por assim dizer.
Isto nos proporciona a melhor evidência de como esses conceitos são altamente frágeis.
Se quisermos formular conceitos viáveis, estes podem e devem ser dinâmicos
frente à vida. Devemos ter a possibilidade de ter tais conceitos, de transferi-los de
um para outro campo da realidade, sendo que eles têm de transformar-se; porém um
conceito não deve ser de feitio a implodir a si mesmo. O conceito de oferta e também
o de demanda se implodem a si mesmos. Suponhamos que exista uma oferta qualquer
— por exemplo, quando alguém leva uma mercadoria ao mercado e a oferece por um
5. preço qualquer. Isto é uma oferta; qualquer um pode afirmar isso. Eu, porém, afirmo: não,
isso é uma demanda. Se alguém leva mercadorias à praça para vendê-las, nesse caso isso
representa uma demanda por dinheiro. Ora, quando não nos aprofundamos no contexto
econômico, não existe diferença alguma entre eu ter uma oferta de mercadorias ou uma
demanda por dinheiro, ou se tenho uma demanda em sentido geral. Se quero desenvolver
a demanda, necessito oferta de dinheiro.
Portanto, oferta de mercadorias é demanda por dinheiro, e oferta de dinheiro é
demanda por mercadorias. Temos aqui realidades econômicas. Porque o processo eco-
nômico, seja baseado em troca ou comércio, não é capaz de realizar-se de outra maneira
6. senão ao existirem, tanto no comprador como no vendedor, simultaneamente oferta e
demanda. A oferta de dinheiro que o comprador tem deve primeiro ser desenvolvida
atrás de suas costas ou atrás das costas da demanda, no processo econômico, da mesma
forma como tem de ser desenvolvida a mercadoria que aparece como oferta.
Portanto, não operamos com conceitos reais ao acreditar que o preço se desenvolve
7.
a partir da inter-relação entre o que costumamos denominar oferta e demanda:
P = f (OD)
Ele não se desenvolve absolutamente da maneira como se define ao estabelecer
esse raciocínio; pois o preço se desenvolve também sob a influência da possibilidade de
o interessado se tornar um oferecedor de dinheiro, ou de o processo econômico não lhe
permitir tornar-se um oferecedor de dinheiro num dado momento com relação a um
8.
determinado produto. No processo econômico, não se trata apenas de existir a oferta
de um número de mercadorias, mas de existir também um número de pessoas capazes
de produzir a oferta de dinheiro justamente para aquelas mercadorias. É algo que
logo lhes demonstrará não ser possível falarmos de um jogo entre oferta e demanda.
Deixando de lado os conceitos que podem ser o resultado de um raciocínio errôneo
e atentando somente para os fatos — sejam eles os fatos do mercado ou apenas os de
9. uma simples troca de dinheiro e mercadorias, mesmo sem existir o mercado —, não nos
resta dúvida de que o preço se desenvolve entre a oferta e a demanda, porém a partir
de ambos os lados. É isso o que acontece, puramente de acordo com os fatos.
Acontece, todavia, que oferta, demanda e preço são três fatores, todos eles pri-
mários. Não se trata de escrevermos ‘preço = função de oferta e demanda’, tratando
matematicamente ‘o’ e ‘d’ como grandezas variáveis, e ‘p’, o preço, como uma grandeza
10.
resultante das duas variáveis; não, devemos considerar ‘o’ e ‘d’ — oferta e demanda — e
‘p’ — preço — como variáveis independentes umas das outras, e tratar de aproximar-nos
de uma grandeza ‘x’ (a caminho de uma fórmula). Não devemos imaginar que somente ‘o’
8. Sobre oferta e demanda 71
e ‘d’ sejam variáveis, sendo o preço uma função das duas, mas que as três são variáveis
independentes entre si, entrando em interação umas com as outras, o que resulta em
algo novo. O preço encontra-se entre oferta e demanda, porém de maneira muito insólita:
X = f (ODP)
Devemos iniciar toda a nossa consideração por um lado bem diferente. Se numa
praça qualquer observamos a oferta e a demanda encontrarem-se, no tocante a essa
determinada região, na relação em que, por exemplo, Adam Smith as observava, isso
reflete aproximadamente a circulação de mercadorias do ponto de vista do comerciante;
porém não reflete em absoluto a situação do ponto de vista do consumidor ou do produ
tor. Para o ponto de vista do consumidor, vale algo bem diferente; sua posição resulta do
11.
que ele tem. Entre o que ele tem e o que ele dá desenvolve-se uma relação semelhante
à que, para o comerciante, resulta da oferta e da demanda: para o consumidor vale a
interação entre preço e demanda. Essa sua demanda é pequena quando, para o seu
bolso, o preço é alto demais, e aumenta quando, para o seu bolso, o preço se encontra
num nível suficientemente baixo. Tudo o que lhe interessa, como consumidor, são o
preço e a demanda.
Logo, podemos dizer o seguinte: pelo lado do consumidor, lidamos com a interação
entre o preço e a demanda; pelo lado do comerciante, com a interação entre a oferta e
a demanda. E no caso do produtor trata-se da interação entre a oferta e o preço. É que,
12.
com relação à sua oferta disponível, ele tem de observar os preços viáveis em todo o
processo econômico onde se encontra. Assim, podemos chamar a primeira equação de
equação dos comerciantes:
P = f (OD)
Adam Smith a declarou válida para toda a economia; mas nesse caso ela é falsa.
Podemos desenvolver a seguinte comparação: podemos considerar a oferta — ‘o’ — como
13. função de preço e demanda; e a demanda — ‘d’ — como função de oferta e preço. Temos
então nessa equação ‘d = função de oferta e preço’ a equação do produtor:
D = f (OP)
o que quero dizer. Ora, eu dou dinheiro ou algo que produzi por dinheiro — é assim
que geralmente acontecem as coisas —, mas será que com isso apreendemos a reali-
dade plena do processo econômico? Eu poderia adquirir dinheiro ou mercadorias de
maneira outra do que a entrega de uma mercadoria por dinheiro ou de dinheiro por
uma mercadoria. Suponhamos que eu furte algo. Furtando, também adquiro algo. E
se o furto fosse exercido em grande escala, por exemplo durante décadas, tal como o
faziam outrora os velhos salteadores, seria preciso estabelecer uma ciência econômica
totalmente diferente da que é adequada à nossa ética moderna. Poderia parecer-lhes
um exemplo muito estranho eu dizer: sim, eu furto; mas o que, no fundo, significa
furtar? Furtar significa tirar alguma coisa de alguém sem que este possa defender-se,
e sem que o ladrão considere oportuno dar algo equivalente, uma indenização pelo
que furtou.
Comparemos agora esse conceito um pouco susp eito do furtar com aquele
designado com o termo requisitar. Sob certas condições, requisita-se algo das pes-
soas tirando-lhes alguma coisa sem dar-lhes uma compensação. Acontece também,
em outros casos no processo econômico, de se tirar algo das pessoas sem que estas
recebam compensação alguma. A tais ocorrências só quero aludir, para que não se
pense que estou fazendo agitação, pois o que quero é fazer ciência. Imaginem que
18.
em algum lugar eu estabelecesse uma ordem social em pequena escala, abolisse aí
o dinheiro e simplesmente organizasse investidas armadas, abatendo as pessoas
que tivessem algo e tirando-lhes suas coisas. Ora, o que poderia impedir que isso
acontecesse? Poderia ser que os outros se defendessem caso possuíssem os meios
para tal, ou talvez eu me convenc esse da inutilidade disso, por exemplo, se meu
campo de ação fosse pequeno.
Algo diferente deve entrar em jogo no processo econômico. Não é possível eu
tirar, sem mais nem menos, alg uma coisa de alguém. E por que não? Porque, de
certo modo, meus contemporâneos deveriam reconhecer meu direito de ficar com
a coisa furtada. E de modo algum eles reconheceriam que eu ficasse com o trunfo
adquirido como resultado de minha matança de seres humanos na redondeza. O
que é que entra em jogo aí? É o direito que entra no assunto. Veremos que não
obteremos uma imagem correta do processo econômico sem dar-nos conta da inci-
dência do direito em todos os seus detalhes. Não é possível raciocinar ou realizar
algo no sentido da economia sem que o direito se faça valer nela. Substituindo o
comércio de troca pelo comércio facilitado pelo dinheiro, perceberemos logo que o
direito influi na economia. De que outra maneira, pois, seria possível eu adquirir
19.
um par de sapatos em troca de, digamos, vinte marcos, e não em troca de um outro
objeto qualquer — de forma que eu tenha os meus sapatos e o outro o dinheiro —,
se esses vinte marcos, mesmo sendo de ouro, não fossem reconhecidos por ninguém
como val or útil para se adquirir algo? Se esses marcos não foss em introduzidos
legitimamente no processo econômico, jamais tiraríamos proveito deles, por mais
quantidade que houvéssemos acumulado. Por conseguinte, no momento de aparecer
o dinheiro no processo econômico fica evidente o surgimento de fatores de direito.
É extremamente importante termos isso em mente, pois nos demonstra que não é
possível contemplarmos todo o organismo social sem gradativamente ampliarmos
nossa visão de um processo puramente econômico para um que abrange aquilo que
ocorre sob a influência do direito.
8. Sobre oferta e demanda 73
* Hans Sachs (1494-1576), poeta e mestre-cantor; Jacob Boehme (1575-1624), místico. (N.T.)
74 Rudolf Steiner
contas, não somos homens bairristas, como tampouco somos políticos bairristas. Isso,
sem dúvida, é correto contanto que se refira à cosmovisão. Porém não há outro caminho
para se saber algo abalizado, por exemplo, sobre o que se passa no comércio do que estar
atuando no meio dele. Não existe outro caminho. Teorias podem ser interessantes, mas
não importa sabermos como se negocia de um modo geral, e sim como, por exemplo, em
Basiléia e arredores os produtos passam de um lugar a outro. Mesmo sabendo isso, ainda
não saberemos como os produtos são negociados em Lugano. Portanto, o que importa
não é conhecer o assunto de um modo geral, mas conhecer algo num campo específico.
Assim, tendo uma pessoa formado um juízo competente sobre, digamos, o preço mais ou
menos alto pelo qual podem ser fabricadas foices ou quaisquer implementos agrícolas,
ela está longe de saber por que preço se podem produzir parafusos.
O juízo apropriado para a vida econômica tem de ser formado diretamente
a partir da realidade concreta. E isso não se poderá dar de outra maneira senão
formando, para determinadas regiões cujo âmbito resultará do processo econômico,
30.
as associações onde haja gradualmente representações dos mais diversos ramos re-
lacionados ao que se passa nos três campos da vida econômica: o da produção, o do
consumo e o da circulação.
Devo dizer que, de certo modo, é extremamente triste constatar que em nossos
tempos não há compreensão alguma por um assunto, no fundo, tão simples e objetivo.
No momento em que surgir real compreensão, será possível organizá-lo num só dia,
sem nem sequer precisar esperar até depois de amanhã. Porque não se trata de fazer
transformações radicais, e sim de procurar em cada situação concreta a união associa-
tiva. Para tanto, basta compreender o assunto de ativar a necessária vontade. Trata-se
de um campo em que o pensar econômico coincide, de certo modo, com o pensar moral
31. e, diria eu, com o religioso — o que de fato nos causa tanta aflição, já que, a mim por
exemplo, parece totalmente incompreensível que uma observação econômica como esta
possa ter passado despercebida às pessoas que, oficialmente, cuidam das necessidades
religiosas do mundo. É indubitável que os últimos tempos revelaram uma progressiva
incapacidade de se ter domínio sobre as condições econômicas, e que os fatos ultrapas-
saram a medida do que os homens dominam; de modo que a questão mais premente
que se nos apresenta é a seguinte: de que maneira tal situação poderá ser dominada?
Contudo ela tem de ser dominada por pessoas, e por pessoas em associações.
Não quero encerrar estas observações relativamente sérias com uma piada, mas
quero dizer o seguinte: nossa Ciência Econômica se desenvolveu de modo a não acom-
panhar, em suas concepções, o que se passou na transição da economia de troca para
a economia monetária e para a economia de capacidades. Ela continua atuando, em
seus conceitos, na economia de troca, considerando o dinheiro ainda como se fora uma
espécie de substituto para a troca. As pessoas não querem admitir isso; mas é nisso que
consistem suas teorias. Sabemos que nos sistemas econômicos antigos, que talvez não
32.
nos sejam muito simpáticos, houve as trocas e depois veio o dinheiro; e aí — não quero,
como já disse, fazer uma piada, mas o gênio da linguagem provoca isso — da palavra
alemã tauschen [trocar] surgiu simplesmente [pela introdução do ditongo ä = ae] a
metafônica täuschen [enganar], e tudo se tornou vago: hoje encontramos ‘enganar’ em
toda espécie de processos econômicos. Não se trata de uma burla intencional, mas de
um embaçamento de todo o processo. É preciso voltarmos a descobrir como os processos
econômicos se realizam interiormente.
9 As formas de capital
1 de agosto de 1922
As fórmulas que tentei apresentar ontem não são, naturalmente, fórmulas ma-
1. temáticas; trata-se, como as que já mencionei em ocasião anterior, de fórmulas que
na verdade deverão ser verificadas junto à própria vida. E não só isso; elas deverão
ser entendidas de modo a enquadrarem-se na vida real da economia.
Hoje terei de expor algumas coisas que sucessivamente os levarão a compreender
como tais coisas atuam na economia. Embora admitamos que, no processo econômico
2. global, tudo o que nele circula deve ter um certo valor, por outro lado não devemos
ter dúvida de poder ocorrer, no organismo econômico, muita coisa que não expresse
diretamente seu valor nos processos econômicos.
Quero explicar-lhes com um exemplo que nos levará a introduzir alguns outros
conceitos econômicos. Unruh43, em seus livros sobre Economia, apresentou muito bem
tais assuntos que esclarecem concatenações econômicas supostamente ocultas. Aqui
3. eu só exponho detalhes que tive oportunidade de corroborar pessoalmente, e dos quais
posso dizer que a observação os confirma, mesmo que Unruh, um espírito perfeitamente
versado em Ciência Econômica, pela razão de, no fundo, raciocinar não econômica mas
politicamente, não saiba colocar as coisas em sua devida relação.
Um detalhe que pode chamar nossa atenção sobre a complexidade do processo
econômico é o preço do centeio em certas regiões da Europa central. Frequentemente
ouvimos alguns latifundiários dizerem o seguinte: “Com o preço do centeio não se
ganha nada; pelo contrário, com esse preço temos prejuízo.” O que significa isso, em
verdade? A princípio significa que para essa gente o centeio não pode ser vendido
de um modo como deve ser vendido, por exemplo — ao menos quanto ao essencial
—, aquilo cujo preço é hoje, via de regra, composto a partir dos preços de matérias-
-primas, dos custos de produção e de um certo lucro. Analisando dessa maneira os
preços do centeio, verificar-se-ia que não correspondem aos custos de produção mais
um certo lucro — situam-se muito abaixo. E se procedêssemos a simplesmente lançar
no balanço da agricultura os preços do centeio pelo valor que alcançam na praça, tais
4.
valores teriam de influenciar o balanço em sentido negativo. Examinando o assunto,
pode-se verificar que é absolutamente correta a afirmação de que se vende abaixo
do preço, como diriam. Ora, é impossível que na realidade isso seja assim. Visto do
lado de fora, porém, ocorre realmente. O que acontece é o seguinte: o centeio não só
fornece o fruto, mas também a palha. Os agricultores que vendem o fruto do centeio
abaixo do preço vendem apenas uma pequena porção da palha. Ocupam o resto em
sua propriedade, principalmente para os animais. Em seu balanço, então, procuram
compensar o que perdem em centeio com o estrume que recebem dos animais. Ocorre
que tal estrume é o melhor que há para a agricultura. Ele é rico em bactérias — e dessa
maneira ganha-se o estrume praticamente de graça, do ponto de vista do balanço. É
dessa forma que se consegue um correto equilíbrio do balanço.
78 Rudolf Steiner
Os Senhores veem que aqui algo nos obriga a estabelecer um conceito econômico
extremamente importante, poucas vezes mencionado na literatura de Ciência Econô-
mica. O conceito que desejo estabelecer é o da economia regional dentro da economia
geral. Refiro-me ao caso em que uma economia negocia consigo mesma, efetua troca de
produtos dentro de seu âmbito, de maneira que os produtos não são vendidos para fora
5. e nada de fora é comprado, circulando todos no âmbito dessa região econômica — eis o
que quero denominar ‘economia regional’ em confronto com a economia geral. Onde há
economia regional existe inteiramente a possibilidade de os produtos serem entregues
até mesmo abaixo do preço normalmente necessário do ponto de vista econômico geral.
É claro que, desse modo, a formação de preços num âmbito mais amplo se torna uma
sequência de fatos extraordinariamente complexa.
Ora, partindo dessas conexões, também já observadas como fatos por certos
cientistas econômicos, podemos passar a uma outra sequência factual a que já aludi
de um certo ponto de vista, mas que agora deve ser também levada em conta a partir
de um outro. Bem, uns dias atrás eu lhes disse não ser possível abranger de um só
lance as conexões da área econômica. Se um sapateiro ficasse doente — disse eu —,
consultando-se com um médico não muito hábil, talvez tivesse de ficar de cama por três
6. semanas, não podendo fabricar sapatos durante esse tempo; assim, os sapatos produ-
zidos por ele faltariam por três semanas na economia. Disse mais: se ele conseguisse
um médico hábil que o curasse em oito dias, de modo que ele fizesse sapatos durante
os restantes quinze dias, poder-se-ia formular a seguinte pergunta: argumentando-se
no sentido econômico, quem terá fabricado então os sapatos? Num sentido econômico,
não há dúvida de que, nesse momento do processo econômico, é o médico quem terá
fabricado os sapatos.
Porém há mais um detalhe nessa questão, ou seja, pergunta-se se o médico rece-
beu o pagamento correspondente. Ora, o médico não recebeu pagamento pelos sapatos.
Poderíamos estabelecer o seguinte cálculo: poderíamos calcular quanto custariam
na praça os sapatos que o médico produziu e, projetando isso num balanço a prazo
relativamente longo, incluí-lo em seus custos de formação; perceberíamos então que
provavelmente seus custos de formação não seriam tão diferentes dos custos de todos
os sapatos que ele produziu e de todos os cervos que abateu* — pois reconhecidamente
7.
os médicos nem sempre costumam retrair um paciente da vida cotidiana por apenas
uma semana, se podem fazê-lo por três semanas. Em todo caso, como quer que o ba
lanço global se apresentasse, o cálculo econômico não seria correto se estabelecêssemos
o balanço de modo a não adjudicarmos à sua formação todos os sapatos que ele teria
fabricado, todos os cervos que teria abatido ao curar um caçador antes do prazo e os
cereais que teria colhido, etc. Só que o processo econômico ficará naturalmente muito
complexo, e o pagamento também se revela extraordinariamente difícil.
Disto os Senhores perceberão que não se pode dizer com certeza, a qualquer
instante, qual é a fonte de pagamento efetiva no processo econômico. Às vezes é neces-
sário ir muito longe para descobrir de onde vem esse pagamento. Quem, porventura,
8.
procurar por procedimentos simples e ligeiros no processo econômico jamais chegará a
concepções econômicas que espelhem de algum modo a realidade. Jamais concordará
com o que eu disse, isto é, que fórmulas dadas praticamente abrangem preço, oferta e
demanda. Mas é preciso concordar com isso. Ocorre, todavia, que se torna extraordina
riamente difícil aquilatar o processo econômico de maneira acertada — porque, pelo
fato de muitas vezes o lugar das despesas estar muito distanciado do lugar das recei
tas, não é fácil descobrir o que foi comprado e pago, o que foi emprestado e o que foi
doado. Suponhamos, pois, a efetivação do que eu disse alguns dias atrás, ou seja, que
algum capital nascido de qualquer maneira fosse impedido de estagnar-se em terras e
fosse introduzido na cultura espiritual, por exemplo, sob forma de bolsas e fundações.
Trata-se então de doações. E assim talvez os Senhores possam ver, de um lado de sua
contabilidade global abrangendo a verdadeira vida econômica, um lançamento repre-
sentando os sapatos fabricados pelo médico durante duas semanas e compensado, de
outro lado, sob o título ‘doações’ caso ele haja desfrutado de uma bolsa ou participado
de uma fundação.
Em suma, partindo daí podemos levantar a seguinte questão de grande peso:
quais são, em verdade, as transferências de capital mais produtivas no processo eco-
nômico? Perscrutando mais a fundo tais concatenações como acabo de descrevê-las,
principalmente no que concerne a capitais disponíveis para serem aplicados em fun-
9. dações, bolsas e outros bens espirituais de cultura — que por sua vez poderão fazer
frutificar todo o empresariado, toda a produção espiritual —, os Senhores verificarão
que o mais fecundo no processo econômico são justamente as doações; descobrirão
também que só se conseguirá um processo econômico verdadeiramente sadio se pri
meiramente existir a possibilidade de pessoas doarem alguma coisa, e em segundo
lugar se essas pessoas tiverem a boa vontade de fazê-lo de uma maneira sensata. Com
isso chegamos a algo que se insere de uma maneira insólita na economia.
O mais singular nisso tudo é algo que não pode ser deduzido de conceitos, mas
que somente uma experiência abrangente pode propiciar; tal experiência abrangente
com certeza lhes propiciará, à medida que os Senhores se aprofundarem no assunto — e
para tal eu até lhes recomendaria estudarem um grande número de temas de disserta-
ção orientados na direção da seguinte pergunta: o que é feito das doações no processo
econômico? Os Senhores descobrirão que as doações, os capitais de doação representam
o elemento mais produtivo no processo econômico. Os capitais de empréstimo já são
10. menos produtivos, e o menos produtivo, o mais estéril no processo econômico é o que se
refere diretamente à compra-e-venda. As transações baseadas em empréstimo — isto
é, o que entra no processo econômico mediante a função do empréstimo — têm, diria
eu, produtividade mediana. Aquilo, porém, que entra através de doações é de máxima
produtividade, já pela razão de ser economizado aquele trabalho, ou melhor, o produto
daquele trabalho que, de outra maneira, teria de ser despendido para se adquirir o
que está sendo doado. Doado deve ser o que provém do processo econômico como algo
disponível, e que o perturbaria se fosse estagnar em terras.
Vemos assim que, visto num momento isolado de sua evolução, o processo eco-
nômico absolutamente não fornece informação alguma sobre si próprio, mas que deve
ser tomado em conta também o que houve antes e o que haverá depois. Esse antes e
depois, porém, não poderá ser levado em conta a não ser mediante o juízo de pessoas
11.
reunidas em associações e que, assim, poderão ter um adequado entendimento do pas
sado e do futuro. Os Senhores veem que o processo econômico tem de ser alicerçado
no entendimento das pessoas envolvidas na economia. É o que se depreende destas
coisas. É inteiramente difícil aquilatar, sem mais nem menos, o grau de participação
80 Rudolf Steiner
dos diferentes fatores do processo econômico em toda a vida dos homens enquanto diz
respeito às coisas materiais.
De um certo ponto de vista, podemos falar de capital comercial, capital de emprés-
timo e capital industrial no processo econômico. Tal divisão abrange aproximadamente
todo o capital circulante. Essas três qualidades do capital — comercial, de empréstimo
e industrial — estão envolvidas no processo econômico de maneira mais diferenciada.
12. Economias regionais, tais como mencionei hoje num exemplo, por estarem entremea-
das por toda parte no processo econômico tornam realmente difícil quantificar, para a
escala mais abrangente de um tal processo, a participação dos três tipos de capital na
prosperidade econômica geral. Não obstante, poderemos adquirir conceitos sólidos se
contemplarmos tais coisas com base num horizonte mais amplo.
Comecemos por examinar economias globais de povos ou estados, como seria
mais correto chamá-las em conformidade com a vida econômica moderna. Temos, por
exemplo, a França. No exemplo da França, com todo seu relacionamento na economia
mundial, especialmente antes da guerra [v. nota à pág. 31] e em seu comportamento
no decorrer dela, podemos observar o efeito do capital de empréstimo no processo eco
nômico como um todo. Poder-se-ia dizer que a França sempre tinha uma certa propensão
a tratar o capital de empréstimo como tal e aplicá-lo correspondentemente. Sabemos
que, no final das contas, tudo o que foi desviado para o campo político, evidenciando
assim claramente os danos causados pelo entrelaçamento da vida econômica com a
13. vida jurídica — isto é, com a vida política —, no caso da França passou sob forma de
empréstimos para a Rússia e também para a Turquia. A França exportava grandes
somas de capital de empréstimo para esses dois países. Até para a Alemanha já foi
exportado capital de empréstimo francês, apesar das relações gerais não muito boas
entre a França e a Alemanha; isso aconteceu, por exemplo, no início da construção da
estrada de ferro de Bagdá, após a Inglaterra ter-se retirado. A França concedeu em-
préstimos a pessoas, como por exemplo Siemens e Gwinner44, que estavam à testa do
empreendimento. Podemos dizer que a França foi essencialmente um país concedente
de empréstimos, servindo assim de demonstrativo para o enredamento do capital de
empréstimo no processo econômico global.
Não estou querendo falar a favor ou contra alguma coisa, e sim fazer uma expo-
sição objetiva. Um fenômeno externo poderá demonstrar-lhes os verdadeiros interesses
do capital de empréstimo. Lançando um olhar sobre economias particulares, desco
briremos, de um modo geral, o seguinte: uma pessoa com negócios privados poderá
ser considerada uma pessoa pacífica, pois certamente sabe que suas contas de juros
se atrapalhariam caso as relações econômicas fossem surpreendidas por uma guerra.
Os economistas contam com essa suposição de as pessoas concedentes de empréstimos
serem gente pacífica. É essa também a razão de ser sempre possível afirmar que a
14. França não teve culpa na eclosão da guerra. É possível dizer isso pela simples razão
de que, para provar que a França não queria a guerra, basta apontar os interesses
dos pequenos investidores, sem mencionar os interesses dos que forçaram a guerra.
Na França sempre é possível apoiar-se nas pessoas que de maneira alguma queriam
a guerra. Justamente esse fato pode mostrar-nos, em grande escala , o que é um fato
também em escala pequena: a pessoa que empresta, ou seja, quem possui capital de
empréstimo e pode cedê-lo quer, no fundo, ver impedido na medida do possível que a
economia seja conturbada por acontecimentos alheios a ela — ou por acontecimentos,
9. As formas de capital 81
em toda parte essa situação entre dois tampões, uma vez que o surgimento do indus-
trialismo tomou significação na vida econômica de todos os países, no decorrer do século
XIX e ainda no começo do século XX. É necessário ater-se aos fatos corretos da vida
econômica. Os Senhores notarão, ao observarem campos econômicos mais restritos,
que terão de trilhar caminhos extremamente difíceis para suas definições conceituais
— sendo benéfico, como eu já disse, tomarmos coisas tão óbvias como modelo para a
direção ou orientação de que necessitamos para nossa conceituação. Os caminhos lhes
ficarão mais fáceis se os Amigos observarem as economias em grande escala, formando,
com base nelas, concepções sobre a forma como geralmente os conceitos de poder, às
vezes disfarçados como conceitos de direito, realizam-se mais pronunciadamente ao se
tratar de abrir fontes de matérias-primas. Podemos estudar isso em grande escala, por
exemplo, na Guerra dos Boers [África do Sul], quando se tratava essencialmente de
desvendar jazidas de metais preciosos. Foi uma verdadeira guerra de matérias-primas,
mesmo tendo sido sempre, até certo ponto, encoberta como tal. Um outro exemplo de
como a vida econômica interfere politicamente no próprio âmbito da política e do poder,
temo-lo nas operações bélicas da Bélgica para obter o marfim e a borracha do Congo.
Vemos aí como na economia geral se procede à abertura das fontes de matérias-primas.
Ou consideremos o modo como a América do Norte se apoderou das propriedades espa-
nholas na Índia Ocidental, porque lá se encontravam as fontes da matéria-prima para
o açúcar. Vemos, pois, como a procura de matérias-primas facilmente impele o elemento
puramente econômico para um lado — para o político, para o desdobramento do poder.
Eis um lado, um dos tampões, por assim dizer.
A situação é diferente quando se trata da procura de mercados. Já a História nos
dá prova fácil do fato de a procura dos mercados não conduzir da mesma maneira à
vida política. É que o desdobramento do poder não se desenvolve da mesma forma, a
partir da natureza humana. Um exemplo muito expressivo do século XIX é a conquista
do mercado de ópio chinês pela Inglaterra, na assim chamada Guerra do Ópio. Mas
mesmo esse caso não foi resolvido exclusivamente pela guerra, tendo também, quando
a história parecia melindrosa, a política pacífica interposto um parecer mediante a
peritagem de cento e quarenta médicos que se encontraram para testemunhar que
o consumo de ópio não era mais nocivo do que o de fumo e de chá. Foi aí, portanto,
que interferiu a política, a política pacífica; contudo é sempre difícil manter a política
afastada. Os Senhores devem conhecer o dito de Clausewitz afirmando que “a guerra
17.
é a continuação da política por outros meios”. Ora, é sempre possível darem-se tais
definições; com tal tipo de definição pode-se justificar, por exemplo, a afirmação de que
o divórcio é a continuação do matrimônio por outros meios. Operando com tal lógica
será até possível iluminar sob este ou aquele foco toda classe de circunstâncias da vida,
suscitando a admiração das pessoas. Por curioso que pareça, todo o mundo estranha
quando afirmo que o divórcio é a continuação do matrimônio por outros meios. Todo
o mundo nota a graça disso. Porém ao ser proclamado em toda parte que a guerra é a
continuação da política por outros meios, ninguém reclama a estranheza da lógica e,
pelo contrário, todo mundo a admira. Quiséssemos nós empregar tal lógica na Ciência
Econômica, estabelecendo tais definições, eu ousaria dizer metodologicamente que não
progrediríamos um único passo. Contemplando aquele outro tampão — a procura de
mercados —, não podemos senão dizer que nesse caso a prudência humana em mano-
brar entre os polos da astúcia, da esperteza e da sábia direção econômica desempenha
9. As formas de capital 83
um papel essencialmente maior. Uma grande proporção dessas três qualidades entra
na conquista dos mercados, tal como estes foram estruturados especialmente pelas
grandes regiões econômico-políticas em que se converteram os próprios estados ao se
unir a política à economia; nisso os Estados, eles mesmos, empregavam grandes porções
tanto de sábia liderança quanto de astúcia, inteligência, esperteza, etc. Deduz-se daí que
só será possível formarmos conceitos concretos para as diferentes regiões econômicas
menores, a respeito da conexão entre os vários empreendimentos industriais e a sua
relação com as fontes de matérias-primas e o mercado, se observarmos tais coisas em
grande escala.
Querendo estudar a função do capital mercantil, é vantajoso estudarmos a Ingla-
terra, e preferencialmente na época em que esta experimentava seu enorme progresso
econômico com a ajuda do comércio, fazendo com que o capital mercantil crescesse cada
vez mais e impelisse suave e gradativamente o país para a esfera do industrialismo mo
derno. A Inglaterra já possuía seu capital mercantil na época em que o industrialismo
começava a transformar tudo, permitindo-nos assim estudar, em seu modelo, o capital
mercantil já em épocas mais remotas. Em época mais moderna, foi particularmente
Marx quem queria estudar no modelo Inglaterra a função econômica do industrialismo;
todavia, remontando a tempos mais antigos que precederam a inauguração do industria-
lismo — às últimas décadas do século XVIII —, é possível verificar a função do capital
18. mercantil por excelência nos destinos econômicos da Inglaterra. E aí descobre-se que,
sem dúvida, o essencial é sempre a concorrência, tanto na atividade econômica global,
principalmente orientada para o comércio, quanto no âmbito do comércio propriamente
dito, seja ele mais ou menos evidente ou oculto. Certamente a introdução de uma série
de conceitos de ética pode fazer com que a concorrência seja honesta; porém, não deixa
de ser concorrência. Pois aquilo que é o esteio da produtividade do comércio — ou seja,
o fato de o capital mercantil poder ser dirigido, no processo econômico, justamente de
forma a tornar-se eficaz como capital industrial, por exemplo —, baseia-se na tendência
do capital mercantil a acumular-se, sendo tal acumulação inimaginável sem a concorrên-
cia. De modo que uma boa oportunidade para se estudar a função do capital mercantil se
oferece ao se observar a função da concorrência na vida econômica.
Paralelamente, também as transformações históricas estão relacionadas com essas
coisas. Em absoluto podemos afirmar que, tomando-se a incipiente economia mundial
19. como um todo — e antes da guerra ela o era em alto grau —, até aproximadamente o
primeiro terço do século XIX os processos econômicos do comércio e da indústria de-
sempenhavam um papel preponderante na vida econômica.
O auge, diria eu, da era clássica do capital de empréstimo deu-se praticamente
só no século XIX, ou melhor, no início de seu segundo terço. E com isso se fez notar, na
evolução histórica, o advento daquelas instituições cuja finalidade primária é a concessão
de empréstimos, ou seja, as instituições bancárias. Assim, a era clássica do capital de
empréstimo, e com isso o desenvolvimento dos bancos, ocorreu nos últimos dois terços
20. do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Com o desenvolvimento das ins-
tituições bancárias, o empréstimo se revela cada vez mais aquilo que, diria eu, entra
como um primeiro fator no processo econômico. Mas ao mesmo tempo evidencia-se algo
todo especial nessa concessão de empréstimos: mediante os empréstimos em grande
escala, em consequência da extensão das instituições bancárias, foi retirado ao homem
o domínio da circulação monetária, tornando-se esse processo circulatório do dinheiro
84 Rudolf Steiner
Hoje precisamos discutir algo que ontem já esbocei para alguns dos Senhores.
Trata-se da relação entre o trabalho na economia e aquilo que está na base quando a
natureza é transformada, pelo trabalho, num objeto de valor econômico. No processo
subsequente, ocorre então que o trabalho organizado ou dividido é, de certa forma,
acolhido pelo capital, que então se emancipa e desemboca totalmente, poder-se-ia dizer,
na espiritualidade livre. Disso podemos deduzir que o trabalho não representa algo
de valor econômico direto — já havíamos discutido isso; no trabalho, porém, temos o
1. que mobiliza o valor econômico. O produto da natureza como tal entra na circulação
econômica pelo fato de ser trabalhado. E o trabalho que lhe confere o valor é, no fundo,
a razão por que se movimenta o objeto de valor econômico, pelo menos dentro de uma
certa região. Posteriormente será então o espírito humano, atuante no capital, que dará
continuidade a este movimento. Antes de tudo lidamos com movimento; pois tão logo
entramos na esfera do capital, deparamo-nos com o movimento causado pelo capital
mercantil, depois pelo capital de empréstimo e, finalmente, pelo capital de produção
propriamente dito, ou seja, pelo capital industrial.
Ao falar desse movimento, precisamos sobretudo ter bem claro que deve haver algo
introduzindo os valores na circulação econômica. E para obtermos uma ideia correta
2. desse fato, devemos já neste ponto começar a ocupar-nos com uma questão econômica
um tanto complicada, diria eu, que não poderá ser compreendida sem mais nem menos
caso não se busque, cada vez mais amplamente, encontrar na experiência econômica o
que pode ser dito a seu respeito e, de certa forma, verificar as coisas.
Consideremos de início o que se pode chamar de lucro econômico. A questão
do lucro, contudo, é uma questão extraordinariamente complexa. Imaginemos, por
exemplo, uma compra. O sujeito A compra de B. Ora, uma conceituação diletante
geralmente aplica o conceito de lucro somente ao vendedor. É o vendedor quem deve
lucrar. Assim temos, no fundo, apenas a troca entre aquilo que o comprador dá e o
que dá o vendedor. Porém examinando a questão a fundo os Senhores não poderão
concordar, de modo algum, que numa compra ou mesmo numa troca seja apenas o
vendedor quem lucra; pois se no processo econômico fosse apenas o vendedor quem
lucrasse, o comprador sempre seria o prejudicado em caso de haver uma simples troca.
3.
O comprador teria de ser sempre o prejudicado. Os Senhores poderão concordar, de
antemão, que isso não está certo. Caso contrário, em toda transação comercial tratar-
-se-ia de um logro do comprador por parte do vendedor; mas obviamente não é isso
o que comumente ocorre. Sabemos que quem compra quer comprar com vantagem, e
não com prejuízo. Resulta daí que também o comprador pode negociar de modo a ter
ganho. Temos então o fenômeno notável de que, numa troca entre duas pessoas, cada
uma — ao menos em compras e vendas normais — deve sair com lucro. Trata-se de
um aspecto da economia prática muito mais importante de ser considerado do que
geralmente se pensa.
86 Rudolf Steiner
Suponhamos, pois, que estou vendendo alguma coisa e recebo dinheiro em troca;
tenho de encontrar vantagem no fato de entregar minha mercadoria e em troca receber
dinheiro. É que devo cobiçar mais o dinheiro do que a mercadoria, e o comprador mais
4. a mercadoria do que o dinheiro. Depreende-se daí que, numa troca recíproca, o que é
trocado, tanto para um como para o outro lado, aumenta de valor. Isto quer dizer que,
pela simples troca, o que é trocado aumenta de valor nos dois lados. Ora, como isso é
possível?
Tal só poderá ocorrer se, ao vender algo e receber dinheiro em troca, eu tiver
a possibilidade de conseguir mais por esse dinheiro do que o outro que mo deu; e o
outro que recebe a mercadoria deverá poder obter, por meio dela, algo mais do que eu
poderia obter. Para isso será necessário que cada um de nós — comprador e vendedor
— se encontre em posição econômica diferente. Tal valorização aumentada só poderá
5.
ser o resultado daquilo que está por detrás da compra-e-venda. Eu, como vendedor,
devo encontrar-me numa posição econômica tal que faça com que o dinheiro adquira
em minha mão um valor mais alto do que na do outro; e para o outro, dada a posição
econômica em que ele se encontra, a mercadoria deve adquirir um valor mais alto do
que tinha quando eu o possuía.
Daí os Senhores já poderão deduzir que o que importa na economia não é sim-
plesmente o fato de se comprar e vender; trata-se, sim, da posição econômica em que
se encontram comprador e vendedor. Estudando bem o assunto, perceberemos que o
6.
que sucede em determinado lugar nos remete, como já nos ocorreu em outras ocasiões,
a todo o contexto da economia. Contudo, tal contexto econômico se nos revela também
numa outra ocasião.
Podemos observá-lo partindo do comércio de troca. No fundo essa observação, tal como
acabo de fazê-la, pode dizer-lhes que com o fato de se introduzir o dinheiro na economia
o comércio de troca não é totalmente superado — pois simplesmente se trocam mercado-
7. rias contra dinheiro. E o fato de ambas as partes saírem ganhando é particularmente o
que nos convencerá de existir outro aspecto importante, diferente do fato de um possuir
a mercadoria e o outro o dinheiro. O mais importante é o que cada um possa realizar, no
contexto econômico em que se encontra, com o que recebe.
Para entendermos mais a fundo esse assunto, remontemos ao mais primitivo
comércio de troca. Este lançará luz sobre o que se passa num contexto econômico
mais complexo. Suponhamos que compro ervilhas. Com as ervilhas que comprei,
posso fazer várias coisas. Posso comê-las. Admitamos que, tratando-se de comércio
de troca, eu receba as ervilhas em troca de algo que produzi e que, portanto, é uma
mercadoria. Recebo em troca ervilhas que posso comer; porém também posso receber
em troca tantas ervilhas que não consiga comê-las, nem mesmo com uma grande
família. Ponho-me em contato, então, com alguém que possa utilizar as ervilhas, e
8.
recebo em troca alguma outra coisa que me seja útil. Em substância, as ervilhas não
se transformaram; em sentido econômico, não são mais a mesma coisa. Em sentido
econômico elas se transformaram pelo fato de eu não as ter consumido pessoalmen-
te, e sim tê-las reintroduzido na circulação, representando sua permanência comigo
apenas uma transição no processo econômico. Que qualidade econômica adquiriram
as ervilhas junto a mim, em consequência de tal processo? Os Senhores veem que
bastariam certas condições suplementares e ainda a correspondente legislação deter-
minando que tudo devesse ser permutado por ervilhas — seria necessário produzir
10. Das associações 87
Notem os Senhores que com isso foi indicado algo extremante significativo no
processo econômico, algo literalmente de peso, poder-se-ia dizer. Tal peso, é verdade,
prevalece mais com relação aos produtos puramente materiais, aos produtos que o
estômago cobiça. Por isso o estômago sugere ao comprador que, digamos, frutas lhe são
mais vantajosas do que o dinheiro, no momento em que ele efetua a troca. Vemos, pois,
12. inteiramente dentro do próprio ser humano o motor que propulsiona a coisa. Percebemos
esse motor propulsionador também em outras relações que não as abrangentes de bens
materiais. Lembremo-nos de que essa disposição para conviver com vantagens, com
lucro, está também presente quando se vende algo e se recebe dinheiro: eu sei que com
minhas qualidades poderei fazer mais coisas com o dinheiro do que com a mercadoria
que possuía. Já aí começo a intervir com minhas capacidades espirituais.
Transponham tal situação para a totalidade do capital de empréstimo num organis-
mo econômico, e os Senhores verão logo que para todos os que pretendem empreender e
executar alguma coisa, para tal precisando de capital de empréstimo, é precisamente essa
necessidade de capital de empréstimo que constitui o mesmíssimo motor propulsionador
13.
que movimenta a aspiração ao lucro. Quando considero o lucro qual um deslocamento, o
capital de empréstimo atua como que aspirando; atua sugando, porém na mesma direção
em que impulsionam os lucros. Nos lucros e no capital de empréstimo temos, portanto,
aquilo que impulsiona e suga no processo econômico.
Isso nos mostra nitidamente que devemos inserir o ser humano em todos os aspectos
do processo econômico, dando-lhe um lugar à medida que esse processo consista só de
movimento e tudo que nele possa ser efetuado seja, no fundo, efetuado pelo movimento.
14. É verdade que isso pode ser um tanto incômodo para uma economia objetiva, pois o ser
humano é uma espécie de grandeza incomensurável pelo fato de ser mutante, exigindo,
como tal, maneiras variáveis de ser levado em conta; mas isso é uma realidade, e por
conseguinte devemos levá-lo em conta das mais variadas maneiras.
Como já vimos, com o ato de emprestar ocorre uma espécie de efeito de sucção
no âmbito do processo econômico. Sabemos ter havido um tempo em que a cobrança de
juros por empréstimos era julgada imoral, e só o empréstimo sem juros era considerado
moral. Então emprestar dinheiro não teria oferecido vantagem. Com efeito, a origem
do empréstimo não estava na eventual vantagem em juros oferecida pelo ato de em-
prestar dinheiro; não, a oferta de empréstimos partiu, em condições mais primitivas
15.
do que as nossas, da seguinte premissa: se eu empresto algo a alguém que é capaz de
utilizá-lo para algo que eu não posso fazer — digamos que ele esteja numa situação
de apuro possível de ser remediado se eu puder emprestar-lhe — e não lhe cobro altos
juros, talvez ele possa retribuí-lo me emprestando algo quando um dia eu o necessitar.
Os Senhores perceberão a todo instante, na História, que o pressuposto do emprestar
é a expectativa de o outro retribuir o empréstimo quando necessário.
Isso é transferido até para condições sociais mais complexas. É o caso, por exem-
plo, de quando alguém quer fazer um empréstimo junto a uma instituição de crédito e
para tal necessita de dois fiadores; em tais ocasiões, as instituições de crédito puderam
notar que até para tal serviço a reciprocidade desempenha um papel importante. Ora,
16.
se A aborda uma instituição de crédito trazendo B e C, que devem apor seus nomes como
fiadores, as instituições sempre esperam que mais tarde B venha trazendo A e C, e que
após B ter liquidado o empréstimo venha C trazendo A e B como fiadores. Em certos
círculos, tal procedimento é considerado perfeitamente normal. Alguns economistas
10. Das associações 89
afirmam que a tal regularidade assiste o mesmo direito de ser estabelecida como a
qualquer proposição definida por fórmulas matemáticas. É claro que tais colocações
devem ser entendidas cum granum salis: sempre se deve levar em conta um certo exa-
gero. No fundo, porém, ser capaz disso faz parte da mobilidade do pocesso econômico.
Desse modo podemos dizer que, originalmente, a única remuneração do emprés-
timo era a expectativa de o receptor retribuí-lo, ou, em não o fazendo, ao menos dar
17. uma ajuda para o primeiro credor conseguir empréstimo, já que este lhe teria ajudado
também. Vemos que com o ato de emprestar entra, de maneira bem marcante, a reci-
procidade humana no processo econômico.
Colocado o assunto dessa forma, o que é então o juro? Ocorre o que alguns eco-
nomistas também já perceberam, ou seja, que o juro é o que recebo ao abrir mão da
reciprocidade, isto é, ao fazer um empréstimo a alguém combinando com ele jamais vir
18.
a ser necessário que algum dia ele me empreste algo; então, por eu desistir da recipro-
cidade, ele me paga juros. O juro é a remissão de algo tecido entre uma pessoa e outra;
é a substituição do que se passa como reciprocidade humana no processo econômico.
Constatamos aí o surgimento de algo que deve ser inserido corretamente em
todo o processo econômico. Nesse caso não devemos perder de vista que, hoje em dia,
só faz sentido considerarmos processos econômicos pautados pela divisão do trabalho
— pois é com eles que temos essencialmente de lidar. A divisão do trabalho acarreta
19. que os homens dependam da reciprocidade em grau muito mais elevado do que no caso
de cada pessoa cultivar sua própria couve ou até confeccionar seus próprios sapatos e
ternos. A divisão do trabalho traz a dependência da reciprocidade, se nos apresentando
como um processo que, em última análise, faz fluir as várias correntes em diferentes
direções (v. figura 7).
Por outro lado, percebemos nos processo econômico a tendência dessas correntes
a quererem reunir-se novamente — agora, porém, de um modo diverso, mediante uma
troca adequada, o que no processo econômico complexo se dá com a ajuda do dinheiro.
Portanto, num certo estágio a divisão de trabalho torna necessária a reciprocidade, ou
seja: no nível das relações humanas isto representa a mesma coisa que encontramos,
20. por exemplo, no ato de emprestar dinheiro. Onde há muitos empréstimos encontra-
mos o princípio da reciprocidade, o qual todavia pode ser substituído pelo juro. Nesse
caso o juro é a reciprocidade realizada, só que transmudada na abstrata forma do
dinheiro. Contudo as forças da reciprocidade tornaram-se simplesmente o juro —
metamorfosearam-se, tornaram-se algo diferente. O que percebemos nitidamente no
ato de pagar juros acontece em toda parte do processo econômico.
É nisso que reside a grande dificuldade para a formação de conceitos de econo-
mia — pois não podemos formar conceitos econômicos senão apreendendo as coisas de
modo imaginativo. Conceitos absolutamente não nos permitem apreender o processo
econômico; é necessário apreendê-lo em imagens. Hoje em dia, toda erudição considera
extremamente difícil a exigência de se passar de algo situado no nível da pura abstração
21. dos conceitos para a plasticidade da imagem. Contudo, jamais conseguiremos fundamen-
tar uma verdadeira ciência da economia se não conseguirmos passar a representações
que possuam caráter de imagens, ou seja, sem chegarmos a representar sob forma de
imagens os distintos processos específicos da economia, representando-os de tal forma
que as próprias imagens nos forneçam algo dinâmico, a ponto de sabermos como atua
tal processo econômico específico ao se apresentar sob esta ou aquela forma.
90 Rudolf Steiner
nele. Querendo chamar sua atenção para algo que já é um conceito científico, digo-
-lhes o seguinte: o homem recebe a alimentação, impregna-a de ptialina e pepsina,
fá-la atravessar o estômago e o intestino. Tudo de que precisa para a alimentação,
seja carne ou vegetais, e que é empurrado para dentro, tem primeiro de ser morto,
paralisado. A vida deve ter-se afastado daquilo que temos no intestino. A seguir,
o que temos no intestino é absorvido pelo sistema linfático e reavivado dentro de
nós; sendo assim, o que parte das glândulas linfáticas e, passando pelos vasos lin-
fáticos, vai para o sangue, são produtos naturais mortos — quer de origem animal
ou vegetal — que foram reavivados. Os Senhores não conseguiriam determ inar
teoricamente a quantidade que uma glândula linfática deve acolher para reavivá-los,
porque em determinada pessoa a glândula linfática tem de absorver mais, e em outra
menos. Mas não é só isso; ocorre que numa mesma pessoa uma glândula linfática
em determinado local deve absorver mais, e outras em outro local, menos. A diges-
tão é um processo extraordinariamente complexo. Não há ciência humana capaz
de reproduzir essa sabedoria das glândulas linfáticas, que tão lindamente dividem
o trabalho entre si. É que aí não estamos em presença de juízos proferidos, mas
de juízos efetivamente atuantes. Com efeito, entre nosso intestino e nossos vasos
sanguíneos atua tal quantidade de inteligência que nem de longe os Amigos podem
encontrar, na ciência humana, algo comparável.
Somente desta forma, ou seja, quando uma razão independente se fizer va-
ler no processo econômico, é que este pod erá ter uma constituição sadia. Isso,
porém, não poderá ser alcançado senão por meio da associação de pessoas que
27.
realmente tragam em si o processo econômico em imagens, detalhe por deta-
lhe, e — pelo fato de se unirem em associações — completem-se e corrijam-se
mutuamente, promovendo assim uma boa circ ulação nesse processo econômico.
Para tal, naturalmente, é imprescindível uma certa disposição de ânimo, se
bem que apenas tal disposição de ânimo não seja suficiente. Podem-se inaugurar
associações com amplo tirocínio econômico; mas se em tais associações não houver
uma certa qualidade, nem o melhor tirocínio adiantará muito. Algo mais deve estar
contido nas associações, o que só ocorrerá se sua existência for reconhecida como uma
necessidade. Elas deverão ter senso de comunidade, um verdadeiro senso de todo o
curso do processo econômico. O indivíduo que consome diretamente o que compra
não pode senão satisfazer seu senso egoístico. De fato, se não satisfizesse seu senso
egoístico ele ficaria em má situação. Não é possível que, se alguém lhe oferecer um
terno por, digamos, quarenta francos, ele, como indivíduo no âmbito do processo eco-
28. nômico, diga: “Não concordo, pago sessenta francos.” Isso não é possível; é algo que
independe da influência do indivíduo no processo econômico. Em contraposição, no
momento em que no processo econômico entrar em cena o elemento associativo, neste
momento não estará presente o interesse pessoal imediato, sendo substituído por uma
visão global do processo econômico; o interesse do outro também estará integrado ao
juízo econômico. Ora, sem isso não poderá resultar um juízo econômico, de forma a
sermos elevados, a partir dos acontecimentos econômicos, a uma reciprocidade entre
seres humanos e ao que pode desenvolver-se dessa reciprocidade, ou seja, senso de
comunidade objetivo e atuante nas associações — um senso de comunidade que não
nasce de uma doutrinação moral, e sim do reconhecimento das exigências do processo
econômico.
92 Rudolf Steiner
É isso o que eu gostaria que fosse levado em conta em argumentações como aquelas
formuladas em Die Kernpunkte der sozialen Frage [v. nota 7]. Hoje em dia não faltam
pessoas dizendo por aí que nossa economia ficará excelente se os homens se tornarem
bons. “Vós, homens, tendes de tornar-vos bons!” Imaginem pessoas que, como Foers-
ter46, vão a toda parte e pregam que é só os homens se tornarem altruístas, adotarem
29.
o imperativo categórico do altruísmo, e a economia se tornará boa! Tais juízos, porém,
não valem muito mais do que o seguinte: se minha sogra tivesse quatro rodas e uma
direção na frente, seria um ônibus — pois de fato, neste caso, a premissa não se acha
numa relação melhor com a conclusão do que naquele; apenas foi expressa de maneira
um pouco mais radical.
Na base dos “Pontos centrais” não está a doutrinação moral, o que talvez em
outro campo possa ser importante; trata-se, isso sim, de demonstrar, a partir do pró-
prio assunto da economia, que o altruísmo deve simplesmente estar na circulação
dos elementos econômicos. É o caso até nos nossos exemplos. Se, portanto, alguém
puder levantar um crédito de capital de empréstimo e com isso conseguir inaugu-
rar um empreendimento ou uma instituição e iniciar uma produção, ele produzirá
enquanto suas capacidades forem ligadas àquela instituição. Depois, aquilo que até
30.
aí estava ativo passará a uma outra pessoa, dotada das capacidades necessárias, o
que se dará por um ato de doação — não de pessoa para pessoa, mas consumado, da
maneira a mais bem pensada possível, no próprio curso do processo econômico. De-
vemos fazer ideia de como justamente através da trimembração do organismo social
se tornará possível trazer inteligência para dentro de tal doação. Nisso o elemento
econômico faz divisa com o que é o elemento social no ser humano; no sentido mais
abrangente possível, com o que deve ser pensado em relação a todo o organismo social.
E isso os Senhores poderão observar também do outro lado. Já lhes demonstrei
que é na simples troca, pelo fato de envolver mais e mais o dinheiro, ou pelo fato de a
troca ser amplamente reconhecida, que ali a economia esbarra diretamente no campo
do direito. No momento em que a economia deve ser permeada pela razão, cumpre fazer
afluir para o seu âmbito o que figura na vida espiritual livre. Para isso os três campos
vitais do organismo social devem colocar-se numa relação correta entre si, de forma a
31. atuarem um sobre o outro de maneira correta. É isto o que tencionava a trimembração,
e não a partição em três campos separados! A divisão, em verdade temo-la a toda hora,
e trata-se agora de descobrirmos de que forma os três campos podem juntar-se para
acabar atuando no organismo social com uma inteligência intrínseca — tal como, di-
gamos, o sistema neuro-sensorial, o sistema cardiopulmonar e o sistema metabólico
atuam no organismo humano natural.47 É disso que se trata, e é do que continuaremos
falando amanhã.
11 As condições e consequências de uma
economia mundial
3 de agosto de 1922
desse tipo, que já havia crescido em direção a um tamanho gigantesco e, não obstan-
te, mantivera essencialmente o caráter de uma economia privada rural, era o que se
chamava o reino dos Merovíngeos.48 Ocorre que o reino dos Merovíngeos só pode ser
considerado um reino quando se olha para esse conceito bem exteriormente; mas com
toda a certeza ele não foi um Estado. No fundo não passou de uma grande herdade,
abrangendo uma área enorme. E toda a estrutura social nesse reino dos Merovíngeos
foi, em realidade, a seguinte: a parte econômica formava a base; um aparelho admi-
nistrativo se erigiu de acordo com o direito de então, que devia ser posto em prática,
e justamente dentro desse contexto surgiu uma vida espiritual extraordinariamente
livre para as condições da época. É verdade que a grande servidão da vida espiritual
começou a surgir somente na civilização mais nova, sob a influência do liberalismo.49
Com o advento do liberalismo a vida espiritual ficou cada vez menos livre, e o ponto
culminante dessa servidão da vida espiritual os Senhores poderão ver na realização de
todas as bem-aventuranças estatais na República Soviética, na Rússia. Lá só podem ser
vendidos livros aprovados pelo governo. O Papa, ao menos, somente proíbe os livros;
o governo soviético na Rússia, todavia, nem precisa regular as proibições, já que estas
se autorregulam, pois não podem ser publicados outros livros senão os permitidos.
Continuando a acompanhar a evolução, notaremos que a economia particular
passa gradativamente a uma economia nacional, que por sua vez desembocou numa
economia estatal em determinado momento do início da História recente. Isto se dá
de forma característica, porquanto a iniciativa da economia privada gradativamente
passa a órgãos da administração, e isto como consequência do fato de a parte fiscal se
4.
tornar uma forma de economia. E assim vemos como a economia passa à vida estatal,
como a vida espiritual é absorvida pela vida do Estado; vemos assim surgir o organismo
estatal — tanto econômico como espiritual — mais recente, que se tornou cada vez mais
poderoso como tal, ficando-nos claro que necessita passar novamente por uma certa
articulação — se é que a vida econômica deve ter continuidade.
Pois bem, de tudo isso não nos interessa aqui essa triarticulação, mas a asso-
ciação de economias privadas, tal qual geralmente ocorreu para se formar um con-
glomerado maior, um complexo maior, ou seja, a economia nacional — algo que cria
uma nova estrutura social, conservando, porém, o caráter de economia privada e,
portanto, o primitivo como inclusão. O que é que resulta disso, no verdadeiro sentido
econômico? O resultado é um intercâmbio entre as diversas economias privadas, um
intercâmbio regulado da maneira a mais diversificada. Porém essa regulação paira
como uma nuvem sobre o todo. Contudo é assim que o intercâmbio, ou seja, o comércio
entre as economias privadas resulta em algo que se manifesta essencialmente como
5. consequência dessa reunião das economias privadas numa economia nacional. Pelo
fato de cada participante do intercâmbio econômico obter uma vantagem, ou pelo
menos poder obtê-la, como vimos ontem, tal reunião tem a seguinte consequência: as
várias economias que se juntam para o intercâmbio — sendo esta, economicamente,
o essencial — obtêm cada uma sua vantagem. Percebemos assim que as diversas
economias experimentam uma vantagem nessa reunião, simplesmente pelo fato de
poderem efetuar intercâmbios entre si. E é inteiramente possível calcular, em balanço,
o quanto uma economia privada ganha das outras economias privadas com as quais
entrou em interação econômica. Cada um ganha algo — o que, por sua vez, tem um
significado no sentido da economia nacional.
11. As condições e consequências de uma economia mundial 95
bém Karl Marx.52 É que tudo isso só poderá ser compreendido se os pensamentos que
essas pessoas elaboraram evocarem em nós as imagens da vida econômica nascida sob
a influência dominante do poderio econômico inglês.
Ocorre que no último terço do século passado a circulação mundial desembocou na
economia mundial, e é uma transição extraordinária essa da circulação mundial para
a economia mundial. Definições que possamos dar jamais serão exatas, pois as coisas
tendem a fluir sucessivamente uma para dentro da outra. Todavia devemos dizer que,
na circulação mundial, a economia consiste no fato de diversas economias nacionais
efetuarem intercâmbios entre si. A circulação incrementa e promove o intercâmbio,
alterando essencialmente todos os preços, toda a estrutura da economia. Só que ocorre
o seguinte: em relação a todo o restante, a economia se realiza efetivamente dentro da
própria região. A economia mundial surge quando as diversas regiões econômicas não
10. apenas trocam seus produtos entre si, mas quando as economias produzem conjunta-
mente, ou seja, quando, por exemplo, um país envia produtos semiacabados para um
outro país, onde se dá continuidade à sua fabricação. Nisso temos um exemplo radical
de produção conjunta.53 Enquanto se tratar somente das matérias-primas, perdurará o
balanço da pura circulação; isso ainda não pode ser denominado cooperação econômica.
Quando, porém, todos os fatores da vida humana enquanto atingidos pelo econômico,
ou seja, toda a produção, a circulação, o consumo — não só a produção, o consumo, mas
todos eles entrelaçados — são alimentados pelo mundo inteiro, então surge a economia
mundial. Aí, porém, certas vantagens existentes até então nas economias nacionais
serão extintas pelo surgimento de uma economia mundial.
Recapitulemos mais uma vez: quando economias privadas confluem para economias
nacionais, no geral todas elas saem ganhando, tirando proveito cada qual de per si. O que,
além disso, as impele para tal passo? Em verdade não é sempre o bom juízo econômico que
as impulsiona a efetivar essa união, pois em geral o senso de liberdade é um tanto grande
demais. Para os empreendedores privados, não se trata tanto de usufruir das vantagens
que surgem. Do ponto de vista econômico tais vantagens existem, só que o assunto é bem
mais complicado. É que as economias isoladas obedecem à peculiaridade de todo organis-
mo no sentido de decair para uma vida cada vez mais fraca. Trata-se de uma lei universal
geral, válida também para a vida econômica. Uma vida econômica que não é melhorada
se deteriora. E os conglomerados surgiram essencialmente não porque se almejava elevar
11. as economias privadas, já bastante evoluídas, a uma lucratividade ainda maior, mas para
protegê-las da decadência.54 De modo que se pode dizer: a vantagem do conglomerado se faz
presente tão logo esta união se efetua. Não há dúvida de que a situação seja diferente para
cada um dos conglomerados isoladamente. De um modo geral, pode-se afirmar o seguinte: o
que as economias perdem isoladamente em valores internos é ricamente compensado, pois
geralmente resulta um superávit pela união de economias privadas em economias nacionais.
O que as economias nacionais, por seu turno, perdem gradativamente em valores internos
é ricamente compensado pela circulação mundial e pela transição para uma economia
mundial. Mas uma vez surgida a economia mundial, com quem ela irá fazer intercâmbios?
Ora, vimos de fato toda a vida econômica da Terra desembocar paulatinamente na economia
mundial. Aí acaba a possibilidade de se tirar proveito por meio de coligações.
As pessoas que disseram que a Guerra Mundial não poderia durar tanto tempo
12. como de fato durou não raciocinavam em sentido econômico-mundial, e sim econômico-
-nacional; pois se a economia mundial tivesse sido uma economia nacional, isso teria
11. As condições e consequências de uma economia mundial 97
sido verdade. Porém, tendo existido desde o início, na Guerra Mundial, a tendência a
se alastrar cada vez mais, já se preconizava sua vida mais longa. Caso se continue a
raciocinar em sentido econômico-nacional no âmbito da economia mundial, esta estará
fadada a desmoronar num certo ponto. Isso é o que deveria ter acontecido caso se pros-
seguisse pensando em termos de economia nacional, e caso esse colapso já não tivesse
sido promovido de antemão por toda espécie de forças obscuras.
Vemos assim que condições nitidamente discerníveis, embora menos nitidamente
quantificáveis, influem na vida econômica. Isso lhes dará a entender que é simplesmente
impossível prosseguir em linha reta com os antigos conceitos de economia nacional;
encontramo-nos diante da necessidade de admitir que, hoje em dia, precisamos de uma
13. teoria econômica cujo alcance ultrapasse a atualidade imediata e também entenda que
já não podem mais ter validade todas aquelas categorias econômicas desenvolvidas um
século atrás. Cumpre frisar que hoje precisamos de uma ciência econômica que torne
possível pensar em termos de economia mundial. Nisso os Senhores podem ver um de
nossos maiores problemas históricos.
Aos atuais líderes que se reúnem em Versailles, Gênova ou Haia, até agora a Ciência
só possibilitou um pensar econômico-nacional. Portanto, eles não são capazes de fazer
outra coisa senão aquilo que forçosamente cairá no ocaso se não for permeado por um
pensar em sentido econômico-mundial. Será que eles poderão negar que continuam
estilhaçando a economia, que elevam novas barreiras, atrasando assim a transição
para uma verdadeira economia mundial? O resultado disso é a tendência dos tempos
14. mais recentes a regionalizar o mundo o mais possível também economicamente, disfar-
çando tal tendência em aspirações políticas e nacionais. É imprescindível passarmos
a uma economia mundial, a uma ciência da economia mundial, sob o perigo de este
mundo se tornar economicamente impossível, capaz de sobreviver apenas se uma
parte puder tirar, mediante diferenças cambiais, vantagens econômicas às custas da
outra parte. Com isso os Senhores terão uma visão direta do que hoje está ocorrendo
intensivamente no campo econômico.55
Ao tentarmos imaginar algo como uma economia mundial, será importante en-
tendermos claramente que até certo ponto, nos limites do campo econômico-mundial,
surgem correlações diferentes de numa região econômica limítrofe com outra. O âmbito
da economia mundial já existe hoje de modo relativo, porém de forma tal que a ciência
da economia mundial tem de acompanhá-la no mesmo ritmo. O âmbito da economia
mundial não se limita com coisa alguma, e esse fato exige uma observação mais atenta
15. de certos processos econômicos que agora se evidenciam, independentemente dos li-
mites, dentro de uma região econômica fechada. A questão crucial a ser resolvida hoje
pela Ciência Econômica é o da região econômica fechada, da região econômica gigan-
tesca; pois até a questão mais insignificante — como, por exemplo, a questão do preço
de nosso café da manhã — é algo que, hoje em dia, é influenciado pela vida econômica
da Terra. E se ainda não o é, significa apenas que as coisas progridem de um modo
reduzido; e nem por isso deixará de chegar lá, e o nosso pensar terá de acompanhá-lo.
Para estudarmos as condições econômicas numa região econômica fechada, não
devemos perder de vista que na inter-relação entre produção, consumo e circulação
16. dentro de uma região econômica existe a mercadoria consumível, talvez também bens
relativamente duráveis, e aquilo que é o dinheiro. Existem diferenças essenciais com
relação à forma dos processos econômicos a que as mercadorias estão sujeitas; há uma
98 Rudolf Steiner
diferença essencial se tomarmos, por exemplo, alimentos (que são produtos de curta
durabilidade), vestuário (já de vida mais longa) ou, por exemplo, o que encontramos
na decoração de residências (de vida útil ainda mais longa). Portanto, com respeito ao
consumo, deparamo-nos com importantes diferenças temporais entre produtos econô-
micos. Um produto durável da vida econômica seria, por exemplo, a pedra na coroa da
Inglaterra, da qual já lhes falei sob outros pontos de vista, ou também pedras de outras
coroas, ou ainda a Madona Sixtina, ou outros; nessas coisas poderíamos ver uma espécie
de resultado duradouro, especialmente quando se trata de obras de arte. Ocorre que
num organismo social sujeito à divisão de trabalho e que, por isso, possui uma exten-
sa circulação, deve haver uma equivalência para cada produto. Deve existir o valor
monetário, que é o preço. Contudo, basta observar de modo global o campo econômico
para ver que tal equivalência entre os valores da mercadoria e do dinheiro é oscilante,
é mutável. Um produto tem um valor aqui, um outro valor em outro lugar. Um produto
pode ter um valor mais ou menos alto, conforme seu acabamento. Em todo caso, daí os
Senhores podem deduzir que em toda a vida econômica temos de lidar — exceção feita
a alguns bens duráveis de vida relativamente muito longa — com bens que um dia se
deterioram, perdem seu valor, em todo caso não existindo mais depois de algum tempo.
Justamente o dinheiro é algo que, por estranho que pareça, não se desgasta na vida
econômica, a despeito de se encontrar em perfeita equivalência com os outros elemen-
tos econômicos. De uma forma radical, os Senhores podem imaginar isso pelo seguinte
exemplo: — Tenho, digamos, batatas de valor equivalente a quinhentos francos. Preciso
tratar de desfazer-me delas, isto é, tenho de fazer algo para passá-las adiante. Depois
de algum tempo as batatas não existem mais, tendo sido consumidas. Se o dinheiro
estivesse em equivalência com os bens, com os bens trabalhados, deveria desgastar-se.
O dinheiro deveria deteriorar-se, tal como os outros bens. Isto quer dizer que, se no
organismo econômico temos dinheiro que não se desgasta, estamos, sob certas circuns-
17. tâncias, criando para o dinheiro uma vantagem frente aos bens que se desgastam. Isso
é extremamente importante. E ainda ficará mais importante se tivermos em mente
o seguinte: é assombrosa a comparação entre o esforço que uma pessoa que possui
uma quantidade de batatas tem de fazer para depois, digamos, de quinze anos ter o
dobro dessa quantidade, e o pequeno esforço de alguém isolado que, possuindo hoje
quinhentos francos, precisa fazer para ter o dobro depois de quinze anos! Basta que
ele não faça nada, retirando do organismo social toda a sua força de trabalho, dei-
xando os outros trabalharem e concedendo empréstimos para que possam trabalhar.
Se nesse meio-tempo ele mesmo não se ocupar com o consumo do dinheiro, o dinheiro
não precisará desgastar-se.
Com isso se introduz no corpo social muito daquilo que é sentido como, digamos,
socialmente incorreto. Essencialmente, tais transferências e deslocamentos causam
enormes alterações no corpo social também em sentido econômico — nem tanto nas
relações de propriedade, das quais nem quero falar, mas principalmente nas relações
trabalhistas e nas relações no campo da atividade humana em geral. Por isso podemos
18.
perguntar: qual é a relação dessas mudanças, dessas reviravoltas com uma outra coisa,
pela qual seja possível apreendê-las de modo ainda melhor? Encontra-se ainda um pou-
co indefinida minha exposição algo empírica da diferença entre o dinheiro e as coisas
concretas no organismo econômico. Como se pode apreender isso detalhadamente, em
imagem?
11. As condições e consequências de uma economia mundial 99
devemos submetê-las um pouco ao crivo de nossa crítica, para que os Senhores percebam
ser necessário, a partir da miscelânea de representações da moderna Ciência Econômica,
trabalhar na direção de algo especial. Estipula-se que primeiro o dinheiro deve possuir
um valor genericamente reconhecido. Trata-se então de estabelecer quem é que, neste
caso, exprime esse reconhecimento — pois a afirmação de que o dinheiro tem de possuir
um valor genericamente reconhecido ainda não diz nada, apontando unicamente para
a necessidade de ele ter uma propriedade; todavia nada foi dito sobre como o dinheiro
pode adquirir tal qualidade. A segunda qualidade é ainda mais surpreendente. Afirma-se,
por exemplo, que o dinheiro deve poder ter um tamanho pequeno e, não obstante, por
ser muito escasso, poder possuir um alto valor. Ocorre que tal qualidade do dinheiro
— como já reconhecia Licurgo, que introduziu um dinheiro um pouco mais volumoso
como medida contra o enriquecimento ilícito — torna-o especialmente apropriado para
ser guardado facilmente, constituindo, já por essa razão, um relativo estímulo para o
enriquecimento. Ora, se uma peça de vinte marcos tivesse o tamanho de uma mesa,
seria mais difícil guardá-la. Não se disporia das mesmas facilidades para ser rico como
agora; isso chamaria mais atenção, e assim por diante. É fácil notarmos que tudo isso
só pode ser afirmado por motivos puramente exteriores. Diz-se também que o dinheiro
deve ser divisível conforme necessário. Trata-se de um postulado que encontrei num
manual de Economia. Porém isso tampouco pode ser realizado senão por meio de um ou
outro reconhecimento, isto é, por algo que precisa ser realizado antes. Portanto, trata-se
de algo nebuloso. Também se exige que seja fácil de guardar. É justamente com esse
aspecto da facilidade de guardar que nos defrontaremos, em toda a sua significância,
em nossas considerações de hoje.
Ora, devemos compreender não apenas que, em verdade, o que é natureza adquire
um valor econômico somente ao entrar na circulação econômica, isto é, ao ser subme-
tido a trabalho; devemos compreender não apenas que também o trabalho recebe um
valor econômico pela maneira como é organizado e dividido, e que também o capital
4. adquire um valor somente por ser apreendido pelo espírito do homem e introduzido no
processo econômico; devemos compreender também que o dinheiro, como tal, recebe
seu valor justamente pela própria circulação. Devemos agora estudar como o dinheiro
se transforma, no curso da circulação. As premissas para tal, já as temos naquilo que
acabo de expor.
Inicialmente nos deparamos com o dinheiro como simples dinheiro de compra,
sendo portanto aquele dinheiro que utilizamos para comprar alguma coisa útil ao nosso
consumo. Depois nos deparamos com o dinheiro de empréstimo — já o vimos também.
A questão é se o dinheiro de empréstimo, tendo em vista seu papel na economia, é
a mesma coisa que o dinheiro de compra. Frente ao dinheiro de compra, devemos
perguntar-nos: qual é a origem do dinheiro de compra no meio dos outros elementos
de compra-e-venda? Ora, dinheiro de compra surge pelo fato de a pessoa que se serve
5.
dele não ter apenas em mãos algo que possibilita uma troca direta, mas algo que inter
medeia uma troca, que intervém na troca. Assim, como já expliquei estes dias, dinheiro
é tudo aquilo que intervém como mediador na troca. Eu lhes disse que, deste ponto
de vista, também ervilhas poderiam ser dinheiro. Se eu adquirir ervilhas em excesso
além daquelas que posso comer, a fim de utilizá-las na negociação de algum objeto de
uso, pelo simples ato da mediação estarei transformando em dinheiro o que, outrossim,
seria decididamente um objeto de consumo. É muito espirituoso o que a esse respeito
12. Dinheiro 105
diz Spengler60 — o qual, a par de encarar tudo numa linha de ideias inaproveitável,
muitas vezes também emite alguma observação sagaz perfeitamente correta —: que
principalmente numa certa época da evolução romana, do ponto de vista econômico
seres humanos se tornaram dinheiro, sob forma de escravos. Enquanto eu mesmo usar
o escravo — isto é, eu, como antigo romano, adquirir apenas um número de escravos
de que preciso para meu governo doméstico, o escravo será, naturalmente, meio de
produção; no momento, porém, em que o escravo passar a ser emprestado a alguém
— pois, como foi o caso durante um período do Império Romano, alguns tinham um
exército tão grande de escravos que podiam emprestá-los, trocando-os por uma série
de coisas úteis a que se podia ter acesso pelo intermédio dos escravos —, então ele se
transformará em dinheiro; portanto pode-se dizer, com referência àquelas épocas, que
seres humanos se tornaram dinheiro. Trata-se de uma observação perfeitamente válida
de Spengler. Disso podemos deduzir como atua o dinheiro de compra, como ele nasce
do que é subjacente apenas à troca. O importante será que o que for escolhido para
servir de dinheiro se revele ser o mais útil como tal, não sendo algo que oscile entre
ser comido e ser passado adiante — como é o caso das ervilhas, acarretando uma forte
oscilação do valor no processo circulatório —, mas, ao contrário, seja algo que não venha
a ser utilizado para outra finalidade senão a troca, a intermediação: algo para o qual
obviamente se fará mister um acordo, mesmo que apenas implícito, de todos os que se
servirem do dinheiro. O essencial é que seja utilizado somente para mediar ou trocar,
e não para ser todo consumido.
Os Senhores logo perceberão que há uma diferença essencial entre esse dinheiro
de compra e o que é dinheiro de empréstimo; no caso do dinheiro de compra, não existe
outra base para o seu valor, para a definição do seu valor, nenhuma outra necessidade
de estipular seu valor senão o quanto se recebe por ele. E nisso não haverá alterações
essenciais com o tempo; porque sempre teremos de avaliar um quilo de carne por seu
6. valor de consumo, independentemente de o comprarmos hoje ou depois de algum tempo;
é que, com relação ao quilo de carne, o dinheiro poderá mudar de valor — porém para a
pessoa que o consome, o quilo de carne realmente não poderá mudar de valor no decorrer
do tempo. Importante é observarmos que o quilo de carne só pode ser comido dentro de um
certo prazo de tempo em que conservar seu valor, já que depois estará deteriorado. É parte
importante da economia o fato de todas as coisas que são objeto de consumo se deteriorarem.
Quando usamos o dinheiro como equivalente numa mera troca, certamente ele
se constitui num concorrente desigual para os objetos deterioráveis, um concorrente
genuinamente desigual, pois sob condições ordinárias o dinheiro parece não ser dete-
riorável — digo-o expressamente: parece não ser deteriorável. Com isso os Senhores
percebem que, ao se permitir que na economia atuem condições diversas das que
atuam na realidade, introduz-se nessa economia um elemento doentio. Por um lado
adotam-se providências fazendo com que o dinheiro mantenha seu valor nominal sob
7.
quaisquer condições, independentemente da posição social que normalmente ocupe: o
dinheiro possui seu valor nominal, e aparentemente o preserva. Na realidade, porém,
isso não ocorre. Todas as outras coisas são honestas. A carne começa a recender mal
no momento em que, conforme suas propriedades, pode fazê-lo; o dinheiro não faz isso,
seja qual for a qualidade sob a qual apareça. O dinheiro não o faz manifestamente;
não obstante, temos de dizer o seguinte: se, por um lado, observamos que um artigo
qualquer, por alguma circunstância, ficou mais caro ou mais barato depois de algum
106 Rudolf Steiner
tempo, sem prejuízo do fato de o artigo em si preservar o mesmo valor para a vida hu
mana — ele tem de preservá-lo pela constelação de fatos que exigem ser ele consumido
à hora certa e substituído por outro igual —, e se paralelamente observamos que o
dinheiro não preserva seu valor, o dinheiro como mero meio de permuta constitui um
concorrente desigual pela razão de não evidenciar de modo algum que, em verdade,
também está sujeito a alterações. Se hoje tenho de pagar uma certa soma de dinheiro
por um quilo de carne e depois de quinze dias tiver de pagar uma soma diferente pelo
mesmo quilo de carne, não será culpa da carne o fato de na próxima vez eu talvez ter
de desembolsar mais dinheiro: será culpa do dinheiro. Isto só pode ser atribuído ao
dinheiro. E se o dinheiro continua a ostentar o mesmo número, na verdade começa a
mentir, porque diminuiu em valor. Se numa troca eu tenho de dar mais por um quilo
de carne, então é o dinheiro que está valendo menos. Isto é evidente. Portanto, pela
circulação do dinheiro eu introduzo no processo algo que, do ponto de vista econômico,
não existe. Do ponto de vista econômico a coisa é completamente diferente, ou seja:
o processo econômico faz com que o dinheiro sofra alterações.
É preciso descobrirmos as ocasiões em que o dinheiro sofre alterações. Além do
corriqueiro dinheiro de compra, temos o dinheiro de empréstimo; dinheiro de emprés-
timo é algo que alguém recebe para iniciar um empreendimento qualquer. Para ele isso
não é dinheiro de compra; torna-se dinheiro de capital. Tal dinheiro empresarial ou de
empréstimo possui um valor e propriedades essencialmente diferentes. No fundo, tal
dinheiro de empréstimo é algo totalmente diverso do dinheiro de compra. O processo de
converter dinheiro de compra em dinheiro de empréstimo resume-se a algo não muito
8. diverso, digamos, de se levar ouro ou prata ou papel para outro âmbito da vida. Valor
é algo que o objeto assume por condições completamente diversas; pois agora que o
dinheiro de empréstimo entra em circulação, trata-se de percebermos que o espírito do
ser humano, o pensar humano intervém, e que por essa intervenção do pensar humano
o dinheiro de empréstimo adquire seu verdadeiro valor. Seria muito mais importante
anotar, na cédula emprestada à pessoa empreendedora, no momento em que esta come-
çasse a usá-la, se essa pessoa é um gênio em assuntos econômicos ou um idiota; porque
é disto que depende o valor daquele dinheiro de empréstimo na situação econômica.
Passemos agora do dinheiro de empréstimo ao que eu lhes indiquei como uma
terceira espécie de dinheiro e que, hoje em dia, geralmente não é levado em conta mas
desempenha o maior papel imaginável no processo econômico, isto é, o dinheiro de
doação (dinheiro de doação abrange, de fato, tudo o que é gasto em educação e ensino,
desempenhando um enorme papel na vida econômica; dinheiro de doação também
abrange tudo o que é investido em fundações e tudo o que viabiliza que o capital não
9. fique represado em propriedade fundiária mediante a capitalização de terras, por
cujo meio se arruina a economia). Considerando o dinheiro de doação, devemos dizer
o seguinte: tal dinheiro de doação simplesmente perde o valor para uma pessoa que,
para sua subsistência, dependa de dinheiro de compra. Pois o dinheiro de doação é o
oposto do dinheiro de compra — o que se deduz do simples fato de alguém que recebe
uma doação poder comprar algo, enquanto quem não a recebe não pode utilizar esse
dinheiro como meio de compra.
Temos, assim, três espécies de dinheiro qualitativamente bem diferentes entre si,
10. ou seja, o dinheiro de compra, o dinheiro de empréstimo e o dinheiro de doação. Con-
tudo, as inter-relações entre essas três espécies de dinheiro só podem ser apreciadas
12. Dinheiro 107
* A presente tradução observa aqui uma correção do texto original, ao que consta feita origi-
nalmente por Schweppenhäuser, substituindo unrichtig (incorretamente) por nun richtig (agora cor-
retamente) e evidenciando a consistência da substituição com o exposto anteriormente e a seguir, com
relação à necessidade de o dinheiro de empréstimo poder transformar-se em dinheiro de doação. (N.T.)
108 Rudolf Steiner
e paga com isso seus operários — reserva por esta situação parecer diferente do que se
ele os pagasse com mero dinheiro de compra. Quanto mais uma pessoa precisar pagar
seus operários com mero dinheiro de compra, tanto menos lhes poderá dar, isto é, tanto
mais barato eles terão de entregar seus produtos; por outro lado, quanto mais a pessoa
conseguir pagá-los com dinheiro já transformado, ou seja, um dinheiro que já passou
para a esfera do dinheiro de empréstimo ou de doação, tanto mais salário lhes poderá
dar, e tanto mais caros poderão ser os produtos que eles trouxerem à praça. Trata-se,
portanto, de apreendermos o assunto com a razão.
Uma vez tendo-se em vista o estado das coisas, a função do dinheiro tem de ser
corrigida constantemente. Suponhamos o seguinte: uma economia regional que confine
com outra poderá facilmente enfrentar dificuldades relativamente ao preço de um bem
qualquer de que precise, caso deixe funcionar o dinheiro dessa forma selvagem e sem
conduzi-lo com a razão. Enquanto a economia regional se encontrar entre outras e não se
13. adotarem represálias contra ela, poderá simplesmente importar o bem, incrementando-se
a importação. É assim que as coisas se corrigem. Na economia mundial não há correções,
pois não se pode importar da Lua. Se pudéssemos importar da Lua ou de Vênus, ou
exportar para lá, a economia terrestre não seria mais do que uma economia regional;
e a grande questão é justamente sabermos qual será o curso da Teoria Econômica pelo
fato de a Terra estar-se tornando um campo econômico fechado.
Suponhamos que os Senhores resolvam deixar o dinheiro envelhecer. Os Senhores
têm uma moeda qualquer, não importa de que material ou qual seja o ano de cunhagem
— digamos, de 1910 —, e uma outra moeda do ano de 1915; suponhamos que a moeda
de 1915 — a qual, portanto, surgiu naquela época como dinheiro no processo econômico
— se tornasse, pelo tratamento racional, uma coisa idêntica a outros produtos de troca:
tal dinheiro perderia o valor depois de algum tempo. Os números que estou apresen-
tando são irrelevantes, só servindo para elucidar o assunto; o que em realidade tiver de
14. evidenciar-se será objeto de cálculos infindos porém alcançáveis, como ainda haveremos
de verificar. Suponhamos então que em 1940 esse dinheiro tivesse perdido seu valor para
o processo econômico. Portanto, aquela moeda só teria um certo valor entre 1915 e 1940.
Então teria um valor que, como logo veremos, é determinável. Se após 25 anos o dinheiro
perde seu valor no processo econômico, a moeda com a data do ano 1910 perderia seu
valor no ano de 1935. Assim, eu confiro ao dinheiro em meu bolso uma certa qualidade,
uma espécie de idade. Esta moeda de 1910 é mais velha e morrerá antes da outra moeda,
de 1915.61
Os Senhores poderão dizer que isso é um programa. Não, absolutamente não é um
programa; o que acabo de expor-lhes é a realidade. É assim que o processo econômico o
quer. Ele próprio faz o dinheiro envelhecer. E o fato de o dinheiro aparentemente não
15.
envelhecer, podendo-se ainda em 1940 comprar algo com a moeda de 1910, é apenas
uma máscara. É que na realidade não se estará mais comprando com esse dinheiro,
mas apenas com um valor monetário imaginado.
Se o dinheiro envelhecer em meu bolso pelo fato de o ano de seu lançamento
passar a significar algo — chamo de envelhecer o processo de se aproximar cada vez
mais da morte —, é esse envelhecimento que imprime ao dinheiro um valor, da mesma
16.
forma como o ser humano recebe um valor por seu envelhecimento. A todo ser vivo se
imprime um valor; e repentinamente o dinheiro ganha vida, imprimindo-se a ele um
valor. Por quê? Imaginem o seguinte: dinheiro jovem, quer dizer, dinheiro cunhado este
12. Dinheiro 109
ano, dinheiro de 1922, sem dúvida será um bom dinheiro de compra; imaginem porém
um empresário que se pergunte de que modo pode suprir sua empresa de dinheiro.
A empresa cujo tempo de vida tiver de ser calculado em, digamos, vinte anos deverá
ser suprida de dinheiro novo ou velho? Se receber dinheiro velho, este eventualmente
poderá ser desvalorizado em cinco ou mesmo dois anos; portanto, não pode arriscar-se
a empregar dinheiro velho: a empresa que tem de calcular a longo prazo precisa de
dinheiro novo. Assim o dinheiro novo recebe, sob a influência de empreendimentos a
longo prazo, um valor econômico particular, um valor econômico muito maior do que o
dinheiro velho. Tal valor econômico existe naquele momento, é o valor de momento do
dinheiro. Suponhamos, porém, que o empreendimento a ser realizado deva ser calculado
com uma previsão de vida de apenas três anos. Nesse caso, o empresário seria um mau
homem de negócios se empregasse dinheiro bem novo; pois o dinheiro novo é, por isso,
mais valioso e caro. Por conseguinte, ele arranjará dinheiro mais barato se precisar
dele por tempo mais reduzido. Assim os Senhores percebem que a idade do dinheiro
começa a desempenhar, para quem tem de usar o espírito ao lidar com o dinheiro, um
papel que se lhe torna consciente.
Por favor, reflitam sobre o seguinte: isto não é algo que também não possa existir de
outro modo. É que normalmente existe em estado selvagem, e então as coisas provocam
estorvos mútuos, causando condições econômicas doentias. Em contraposição, se come-
çarmos a domesticar o dinheiro, acrescentando-lhe a condição de idade e fazendo com
que, como dinheiro de empréstimo, o dinheiro novo tenha mais valor do que o dinheiro
17. velho, estaremos imprimindo ao dinheiro aquele valor real que lhe compete para sua
posição no processo econômico. Em essência, tal valor só existe enquanto o dinheiro é
dinheiro de empréstimo; pois mesmo quando se torna dinheiro de empréstimo o dinheiro
manterá seu valor anterior como dinheiro de compra. Os Senhores. como empresários,
não precisarão questionar tanto se para suas necessidades de consumo precisarão ainda
de outro dinheiro, ou coisas assim; pois isto se corrige por si.
Imaginem, agora, que se realizem aquelas doações que possuem um significado
bem real no processo econômico, aquelas doações das quais já falei em diversos contextos.
Doação é tudo o que se aplica, por exemplo, ao sistema de educação, mormente ao se tratar
de uma vida espiritual livre. Ocorre que já hoje isso existe, porém não é percebido. Se os
Senhores doam diretamente, sua razão está envolvida. Presentemente também se doa,
só que as doações estão disfarçadas em impostos e outras contribuições e desaparecem
18. na névoa geral da economia, não se percebendo o que acontece. Só que assim as coisas
ocorrem de forma selvagem; caso contrário, adviria o entendimento. Reflitam uma vez
sobre qual dinheiro aplicariam em doações, uma vez que raciocinassem realmente em
sentido econômico. Tratando-se de doações, os Senhores empregariam dinheiro velho,
que perderia seu valor o mais brevemente possível após a doação, permitindo apenas
ao receptor comprar ainda alguma coisa.
É importante também que haja rejuvenescimento no processo econômico, ou
seja, que o dinheiro tenha prole. Ser-lhes-á fácil convencer-se de que o importan-
te, nesse caso, é o fato de a coisa não poder ser tratada de modo arbitrário ou ser
19. abandonada ao caos econômico geral que o Estado econômico espalha por tudo — o
Estado que conduz tudo à confusão de valores por misturar dinheiro de emprésti-
mo, dinheiro de compra, etc., enquanto na realidade estes tendem a especificar-se
e separar-se —; os Senhores compreenderão que, caso não se deixe reinar o alvitre,
110 Rudolf Steiner
o dinheiro antes de se poder dizer algo sobre o papel que este desempenha ao se tornar
a expressão do preço de algo distinto. Só poderemos ter íntima compreensão do proces-
so econômico quando não nos detivermos na superfície para observar apenas como as
coisas parecem aí. Vista superficialmente, é claro que uma moeda de dez francos é um
moeda de dez francos, não importando se foi cunhada em 1910, 1915 ou 1920; vista de
fora, ela é sempre a mesma moeda de dez francos, e na transação corriqueira de compra
é isso o que vale. Só me dou conta disso quando tenho menos; aí percebo haver uma
diferença, ou também quando as coisas ficaram mais caras. Porém nesse processo de
possuir menos ou do encarecimento das coisas63 se oculta o que lhes mostrei como sendo
o dinheiro mais velho ou mais novo. Ao querer discernir o processo econômico, não de-
vemos falar de dinheiro mais barato ou mais caro, ou de mercadorias caras ou baratas;
antes de mais nada, o dinheiro terá de ser conhecido em sua natureza, pois o dinheiro é
aquilo com que hoje dominamos o processo econômico (amanhã ainda teremos de falar
do fato de os sucedâneos do dinheiro terem de ser tratados da mesma maneira). Isso é
o mais importante. Não devemos fugir de penetrar abaixo da superfície das coisas, nas
profundezas, para verificar o que em verdade está na origem disso. E devemos abdicar
de falar, na Economia, de dinheiro barato ou caro em relação às mercadorias; pelo con-
trário, teremos de convencer-nos de que, no processo vital da economia, deve-se falar
de dinheiro velho e dinheiro novo.
13 A economia do espírito
5 de agosto de 1922
Para se entender o significado de questões como as que expus ontem, será preciso
estudarmos hoje alguns detalhes dos processos econômicos que também interferem no
surgimento de valores econômicos e que podem demonstrar como é difícil aquilatarmos,
1. em sentido econômico, algo que sucede a partir do espírito humano. Quero dar um
exemplo, porém sem inventá-lo completamente, e sim apenas expondo-o de maneira a
fazer com que a realidade subjacente em nada contribua para o valor que tal exemplo
possa ter para nossas observações.
Vejam, pode acontecer o seguinte: — Numa determinada época vive um exímio poeta
que, com a passagem do tempo, já em vida e ainda mais após sua morte, é reconhecido
como um grande poeta. Uma pessoa que se interesse particularmente por esse poeta,
mesmo apenas como admiradora, poderá então querer dizer a si mesma: “Num futuro
próximo, o alarido por causa desse poeta aumentará consideravelmente. Tenho certeza
— ou pelo menos me arrisco nessa suposição — de que dentro de algum tempo, digamos
em vinte anos, a atenção em torno dele será bem maior do que hoje. Posso adiantar
até que, de acordo com a mentalidade de nossa época, em vinte anos será construído,
para esse poeta, um arquivo em que serão reunidos todos os seus manuscritos.” Várias
experiências que ele teve e que lhe passam pela cabeça sagaz o convenceram de que
isso acontecerá. Então ele resolve começar a comprar manuscritos desse poeta, os quais
2.
ainda são extremamente baratos. Um dia nosso homem está sentado junto a outras
pessoas. Uma delas diz: “Eu não me envolvo com especulações em valores; contento-me
com os simples juros usuais de minhas economias.” Uma outra pessoa diz: “Eu não
me contento com os simples juros; compro papéis desta ou daquela mina.” Esta já tem
uma mente especulativa: compra ações. O terceiro, o nosso homem, diz: “Eu compro os
melhores papéis que atualmente existem; compro papéis bem baratos, mas não lhes
revelo quais são os papéis que compro” — o não revelar é um detalhe importante nessa
história —; “eu compro papéis que, no futuro próximo, experimentarão a maior alta.”
E ele compra muitos manuscritos daquele poeta. Depois de vinte anos vende, por um
preço múltiplo do que gastou, os papéis ao arquivo ou a intermediários na venda para
o arquivo. Desse modo ele foi a cabeça mais especulativa dos três.
Este é um caso inteiramente real; não quero mencionar aqui os verdadeiros de-
talhes, mas aconteceu. Ora, tal caso provocou uma considerável mudança também em
valores econômicos. Trata-se agora de sabermos quais foram os fatores que contribuíram
para tal mudança. A priori foi o aproveitamento mental da circunstância de o poeta
3. estar numa valorização ascendente, manifesta até no fato de ser construído um arquivo
para ele. Acresce ainda o detalhe — pelo menos com respeito à mudança de valores, por
causa do acúmulo de tudo numa única mão — de ele haver ocultado a história, não ter
chamado a atenção dos outros, e de a eles próprios não haver ocorrido o fato. E assim
ele pôde embolsar um enorme ganho.
114 Rudolf Steiner
Menciono esse caso só por querer chamar sua atenção sobre a complexidade da
questão a respeito de quais seriam os fatores interativos na formação de valores, e quão
difícil é apreender tais fatores. A pergunta que se nos impõe é a seguinte: será com-
pletamente impossível apreendermos de algum modo tais fatores? Talvez os Senhores
4. cheguem à conclusão de que, para uma grande parte da vida, certamente é possível às
pessoas de bom-senso, no âmbito de associações, avaliar os fatores a ponto de chegar
a uma certa expressão numérica. Contudo restará ainda muita coisa, decisiva na de-
terminação de valores, que não poderá ser compreendida trivialmente pelo intelecto
saudável se não procurarmos outros meios auxiliares.
Vimos que a natureza tem de ser transformada pelo trabalho humano, isto é, tem
de ligar-se ao trabalho humano comum, se for para receber um valor econômico. Numa
organização econômica baseada em divisão de trabalho, o produto da natureza não pos-
sui inicialmente um valor propriamente dito. Se começarmos a imaginar a situação do
surgimento de valores por uma interação entre, digamos, substancialidade natural e
trabalho, teremos, mesmo que talvez inicialmente numa espécie de fórmula algébrica,
5. a possibilidade de aproximar-nos da funcionalidade da formação de valores. Será fácil
compreendermos que tal formação de valores não poderá simplesmente suceder pela
junção do trabalho com o elemento natural, ou seja, pela transformação do elemento
natural por meio do trabalho; deverá haver uma função mais complexa do que aquela
representada por uma simples adição. Mas em todo caso poderemos ater-nos ao que
já expusemos, isto é, ao fato de vermos surgir o valor econômico quando o produto da
natureza é primeiro apreendido pelo trabalho humano.
O grau fundamental da apreensão do produto da natureza pelo trabalho humano
é aquele em que há um trabalho direto na terra. Isso é o que nos leva a considerar o
cultivo da terra como ponto inicial de toda atividade econômica, já que esse cultivo da
terra constitui a condição prévia para todo o resto da economia. Estudemos agora o ou-
tro lado da atividade econômica. (Não há mais necessidade de eu lhes explanar — pois
certamente poderá ser deduzido das conferências anteriores — que também intervêm, no
movimento econômico de valores, situações em que alguém consegue um deslocamento
6. de valores.) Como deveremos prosseguir para descobrir os pontos de comparação entre
um lado e outro? Se, digamos, admitíssemos ‘natureza vezes trabalho’ como o valor
que se aproxima de um lado, ou uma função qualquer, como mencionei logo de início,
teríamos de chegar a descobrir nisso algo passível de uma comparação. Indubitavelmente
não será viável compararmos o espírito com a natureza; mal conseguiríamos encontrar
nisso algum ponto de comparação, e particularmente não por meio de considerações
econômicas, pelo simples motivo de aí penetrar algo extremamente subjetivo.
Imaginem uma economia de aldeia que seja autossuficiente. Certamente poderíamos
deparar-nos com um caso desses, ao menos em parte. Ela poderá subsistir com o que
é produzido — aceitemos a hipótese de que ali não exista nem centro comercial nem
mercado — pelos camponeses, pelos que trabalham a terra, por alguns profissionais
que produzem a roupa para o povo vestir e assim por diante, por alguns outros pro
7.
fissionais, mas, de um modo geral, não por gente especialmente proletária — estes
últimos ainda não existiriam; em todo caso, não precisamos preocupar-nos com eles
neste contexto, pois o que lhes diz respeito ocupará nossa atenção no curso ulterior
de nossas considerações. Nossa comunidade de aldeia terá também um professor, um
sacerdote, ou até alguns professores e sacerdotes; se a comunidade for pura, estas
13. A economia do espírito 115
pessoas tirarão seu sustento daquilo que os outros lhes cederem do seu. E o quanto
de vida espiritual livre se desenvolver se desenrolará essencialmente entre os profes-
sores e sacerdotes — talvez ainda se inclua o prefeito; é entre essas pessoas que se
passará a vida espiritual livre. E teremos de formular a seguinte pergunta: como é
que chegaremos a uma determinação de valores em tal circulação econômica simples?
À parte do que mencionamos, não haverá aí muita vida espiritual livre. É difícil
imaginarmos que um professor ou um sacerdote se torne autor de romances; pois se a
comunidade de aldeia for isolada, ele não terá compradores. Poderíamos contar com a
possibilidade de o autor de romances ganhar algum dinheiro se fosse ao mesmo tempo
capaz de imbuir os camponeses, alfaiates e sapateiros de uma curiosidade insólita por
seus romances. Nesse caso, estaria em condições de realmente abrir uma pequena in-
8.
dústria, não é mesmo? Sem dúvida isso seria muito dispendioso. Mas em todo caso não
podemos imaginar que isso seja possível, sem mais nem menos, numa tal economia de
aldeia. Percebemos, pois, que a vida espiritual livre pressupõe certas condições prévias.
Mas talvez consigamos imaginar como, pelo fato de haver sacerdotes, professores e um
prefeito, se dá a avaliação do que produzem esses trabalhadores espirituais — pois, em
sentido econômico, eles são trabalhadores espirituais.
Qual é a condição prévia para esses trabalhadores espirituais poderem viver na
aldeia? A condição prévia é que os aldeões mandem seus filhos à escola e tenham uma
necessidade religiosa. Necessidades espirituais são a premissa fundamental. Sem esta,
nem sequer haveria trabalhadores espirituais. E agora devemos perguntar: como é que
9.
esses trabalhadores espirituais poderão avaliar economicamente seus produtos — por
exemplo, um sermão na igreja ou uma aula na escola — pelo fato de, no contexto econô-
mico, também estes terem de ser considerados economicamente? Como se avaliará isso
economicamente, no âmbito de toda a circulação? Eis a questão fundamental.
A forma de avaliar isso nos ocorrerá somente ao formarmos uma ideia viva do se-
guinte: — O que é que as outras pessoas têm de fazer? Elas têm de executar um trabalho
físico, com o qual produzem valores econômicos. Se não houvesse uma necessidade de
sermões e aulas, o pároco e o professor também deveriam executar trabalhos físicos;
nesse caso, todos trabalhariam fisicamente, e a vida espiritual não existiria. Então não
haveria necessidade de avaliação dos produtos espirituais. Chegaremos a tal avaliação
se levarmos em conta a necessidade de principalmente os sacerdotes e mestres-escolas
serem poupados do trabalho físico; pois se estes quiserem executar seu — em todo caso,
já ansiado — trabalho, o trabalho físico terá de ser-lhes subtraído. Com isso, algo que
deve ser compreendido ao menos em sentido geral poderá ser introduzido em nossa linha
10. de pensamento. Suponhamos que haja necessidade de meios-sermões e meias-aulas —
ou seja, um meio-sermão de um pároco e só a metade das aulas de um professor; o que
é que deverá ocorrer nesse caso? Já que é impossível empregar somente meio-pároco e
meio-mestre-escola, tanto o pároco quanto o mestre-escola terão de empregar uma parte
de seu tempo no trabalho físico. E a avaliação a ser feita para esses dois dependerá
então da quantidade de trabalho físico que conseguirem economizar. Isso representa
o parâmetro para o seu trabalho. Uma pessoa dedica um trabalho físico e uma outra o
economiza, e sua produção intelectual é avaliada pela quantidade de trabalho físico eco-
nomizada por essa sua produção intelectual. Com isso os Senhores veem demonstrado
nos dois campos da vida econômica, bem como ponderado em sentido econômico, que para
nós um sermão deve possuir um valor econômico, bem como uma indicação de como esse
116 Rudolf Steiner
sermão adquire esse valor. Ele o adquire pelo fato de se economizar trabalho, enquanto
de outro lado é preciso empregá-lo.64
Tal situação perpassa toda a vida espiritual. Qual é a significação, em sentido
econômico, de uma pessoa pintar um quadro em que trabalha, digamos, dez anos?
Significa que para ela o quadro adquire um valor pelo fato de permitir-lhe pintar um
quadro novamente por dez anos. Porém ela não pode fazê-lo senão deixando de execu-
tar trabalho físico por dez anos. O valor do quadro deverá ser igual ao que resultar do
11.
trabalho físico que foi empregado em outros produtos. E mesmo com referência a casos
complexos como o que expus hoje no início da aula, o resultado seria sempre o mesmo.
Em se tratando de querermos achar o conceito de valor para o desempenho intelectual,
sempre chegaremos àquele outro conceito, o do trabalho economizado — o do trabalho
que se poupa.
Foi esse o grande erro dos marxistas: o de considerarem todo o assunto apenas
do lado corpóreo, falando sempre da necessidade de se ver no capital trabalho cristali-
zado, ou seja, um produto ao qual se ligou trabalho. Quando alguém pinta um quadro,
o espírito que ele deixa afluir para o quadro durante dez anos ficará certamente ligado
ao quadro; calcular o valor disso, porém, poderão, quando muito, os que acreditam que
o espírito seja trabalho humano interior, transformado. É tolice: não é possível equi-
12.
parar, sem mais nem menos, o espiritual ao material. Contudo, não se trata aqui de
ver qualquer trabalho acumulado num desempenho intelectual que realizo. O trabalho
acumulado não pode ser apreendido economicamente. Enquanto trabalho físico, poderá
ser bastante ínfimo. E o que interessa aí como trabalho físico fica abrangido pelo outro
conceito de trabalho físico. O que confere valor ao desempenho é a quantidade de tra-
balho que posso economizar com ele.
Desse modo, de um lado do processo econômico temos a força formadora de valor,
por se arranjar trabalho e aplicá-lo ao produto — o produto atrai o trabalho. Por outro
13.
lado, o produto irradia o trabalho, provoca o trabalho; originalmente existe o valor, e
este provoca o trabalho.
Possuindo agora algo que pode ser comparado, ou seja, o trabalho no primeiro
caso e o trabalho no outro caso, estamos em condições de realmente colocar as coisas
em inter-relação. Se podemos dizer que o valor é igual a ‘natureza vezes trabalho’, V =
N x T, no outro caso devemos dizer ‘espírito menos trabalho’, V = E – T. Trata-se de coi-
14. sas diametralmente opostas. O trabalho físico só faz sentido quando a pessoa que quer
introduzi-lo na economia o aplica pessoalmente. No campo espiritual, o que se relaciona
com o desempenho é um trabalho que um realiza para o outro — sendo, portanto, efe-
tivamente aquilo que deve ser introduzido no processo econômico em sentido negativo.
É muito curioso que, acompanhando a história da Teoria Econômica, se descubra
em toda parte as coisas que, embora corretas, no fundo o são apenas num campo par-
cial. Existem certos professores de Economia que efetivamente são da opinião de que o
trabalho confere valor às coisas — escolas de Smith, de Marx, etc. Mas temos também
outras escolas com a outra definição, que também é correta para um certo campo, ou
15.
seja, a definição de que algo se torna capital, ponto de partida para um valor, pelo fato
de economizar trabalho. Ambas são corretas. Ocorre que uma é válida para tudo o que
se relaciona de algum modo com a natureza, com as terras; a outra é válida para o que
se relaciona de algum modo com o espírito. E entre esses dois extremos existe um ter-
ceiro fator. Podemos dizer o seguinte: de certo modo, nenhum dos dois extremos existe
13. A economia do espírito 117
que forçosamente tem de resultar um estado intermediário onde algo positivo e algo
negativo interagem. Pode preponderar o positivo ou o negativo. Suponhamos que o
positivo prepondere. No caso da economia aldeã, certamente preponderará o positivo;
porque nela, com certeza, não haverá um suficiente interesse mais do que pelo trabalho
intelectual primitivíssimo. Quanto mais complexa a vida ficar, ou — como também po-
deríamos expressar de modo sentimental — quanto mais a cultura progredir, tanto mais
alto se avaliará a produção intelectual, conforme sabemos empiricamente. Isto significa
que, quanto mais se economizar trabalho, tanto mais o elemento negativo agirá contra o
elemento positivo. Os Senhores perceberão que, caracterizando o assunto dessa forma,
apreende-se um processo real. Não se trata aqui de o trabalho corporal ser empregado
por um lado e, talvez, aniquilado por outro — isso não representaria um processo real
em sentido econômico, sendo, quando muito, um processo natural —; trata-se, aqui,
do fato de todo trabalho corporal empregado se configurar inteiramente formador de
valores, nada dele sendo aniquilado; aquilo que age contra, ou seja, a economia de tra-
balho, faz-se apenas em números, influenciando o valor do trabalho corporal apenas
numericamente. É justamente essa influência numérica que nos dá a possibilidade de
expressar de forma concreta o que se passa aí. Estão ativos no processo, por um lado, os
trabalhadores braçais e, por outro, as pessoas espirituais, e em sua produção trata-se
uma vez de trabalho efetivamente empregado e outra vez de trabalho que, em verdade,
representa economia de trabalho. É isso o que produz a determinação final de valor.
Podemos dizer o seguinte: pelo fato de o mesmo assunto ser considerado de dois
lados, alterando-se apenas a determinação de valor, surge a possibilidade de definirmos
as coisas e captá-las numericamente. Quando, como já dissemos, a cultura progredir,
aumentará cada vez mais a importância da atividade realizada a partir do espírito.
Isso, porém, significaria que a partir daí o trabalho braçal atua com menos força na
determinação do valor. O trabalho corpóreo está sendo empregado, e terá de sê-lo cada
vez mais, mesmo que haja progresso. Com o progresso da cultura, também o cultivo da
20.
terra terá de tornar-se cada vez mais frutífero. Mais trabalho terá de ser efetivamente
empregado nisso, em sentido positivo. Na verdade, porém, a força de determinação de
valor é extraída do trabalho físico; no entanto não poderá sê-lo a não ser que a pessoa
que executa o trabalho físico sinta cada vez mais a necessidade de um desempenho
intelectual. Vemos aqui um fator humano influenciando o curso da economia. Não é
possível evitar esse fator humano; o que vemos surgir aí é algo que se revela como uma
necessidade objetiva da vida cultural em progresso.
É certo que não há muita vida cultural na aldeia enquanto só existe um pároco
e um mestre-escola; mas suponhamos que se trate de duas aldeias — e numa delas
o pároco e o professor sejam pessoas bastante acomodadas. Provavelmente as coisas
sempre continuarão tal qual estão. Na outra aldeia, o pároco ou o professor, ou até
ambos, são pessoas brilhantes. Serão capazes de estimular uma porção de interesses
culturais na próxima geração, e talvez possam conseguir radicar-se na aldeia, para o
21.
proveito dessa próxima geração — de alguma personalidade intelectualmente produtiva
que se configure como a terceira de uma cooperação mútua. Nessa relação o elemento
espiritual exercerá, sem dúvida, uma força promotora que, por sua vez, atuará no
âmbito da economia. Mas o que significa todo esse processo? Significa, no fundo, nada
mais senão o fato de aquilo que, como trabalho, isto é, como força formadora de valores
no trabalho, possui um valor infinitamente grande no processo econômico, ser... não
13. A economia do espírito 119
poderíamos dizer desvalorizado, mas cada vez mais reduzido numericamente pelo
que lhe vem ao encontro; percebemos, assim, que a colaboração entre tudo o que é
trabalho na terra65 e aquilo que acontece pelo lado espiritual contém algo mutuamente
compensador, num certo sentido econômico. E, de fato, uma certa compensação é que
será única e exclusivamente o correto.
Nisso também surgirão condições bastante complexas; pois poderá perfeita-
mente evidenciar-se que em alguma parte haja produtores espirituais em excesso,
ou seja, que se oponha uma força poupadora de trabalho forte demais. Nesse caso
resultará um valor final negativo, e as pessoas não mais poderão viver em conjunto
22. a não ser que se consumam mutuamente. Nesse tipo de compensação evidencia-se
um certo limite. Tal limite é dado pelo fato de existir, para cada área econômica,
uma relação de balanço — simplesmente inerente à natureza da coisa — entre a
produção agrícola, por um lado, e a produção intelectual, por outro.
Enquanto a Teoria Econômica não levar em conta como a produção agrícola, na-
turalmente no mais amplo sentido, relaciona-se com a produção originada do espírito,
23. enquanto tal problema — que ainda mal foi abordado — não for trabalhado seriamente,
não poderemos contar de modo algum com uma Teoria Econômica adequada às neces-
sidades atuais.
Para tal será necessário, antes de tudo, executarem-se estudos tendo por base
dados demonstrativos que nos possam convencer, sem haver irracionalidade ou agita-
ção, de que uma região qualquer pode vir a adoecer economicamente por ter excesso
de trabalhadores espirituais; demonstrativos também do cabedal de forças para um
progresso cultural numa região que ainda não tenha alcançado o mencionado excesso.
O progresso em determinado campo só será possível enquanto tal limite estabelecido
pela compensação não for alcançado. Para determinar isso será importante pesquisar
os elementos, ainda hoje existentes, relativos a economias fechadas numa determinada
região — vestígios destas existem ainda em toda parte, pois a transição para a economia
mundial é lenta —, e pesquisar também toda a situação econômica das regiões em que
24.
vive um número relativamente baixo de poetas e pintores, bem como de industriais inte-
ligentes, etc., existindo ainda uma extensa agricultura e outras atividades relacionadas
com a terra; e pesquisar também outras regiões em que se encontre a situação oposta.
Com os dados assim acessíveis, devemos elaborar empiricamente certas leis gerais
para obter elementos teóricos para o balanço entre agricultura ou cultivo do solo, em
sentido mais amplo, e atividade cultural-espiritual, por outro lado. Será necessário, de
fato, escolher para uma região qualquer trabalhadores intelectuais medianos, por um
lado, e por outro também trabalhadores braçais medianos, que não distorçam demais o
balanço, e estabelecer o balanço entre eles, para descobrir qual a força de compensação
exercida por um lado sobre o outro.
Ora, nisso reside um ponto muitíssimo importante para quem, hoje em dia, queira
contribuir com qualquer coisa para uma atualização da Teoria Econômica — porque,
25. de fato, a situação é a seguinte: esse problema, que deve estar na base de qualquer
cogitação sobre preços e valores, mal está sendo encarado corretamente hoje em dia.
A alguns dos Senhores já expliquei ontem: as pessoas engajadas no raciocínio
econômico sempre se deixam persuadir a pensar só parcialmente, não considerando a
26.
totalidade. Sem dúvida Spengler trouxe, no final do segundo volume de seu Untergangs
des Abendlandes [Ocaso do Ocidente], algumas observações muito brilhantes; porém ele
120 Rudolf Steiner
Das observações que fizemos nestes dias os Senhores terão deduzido que o im-
portante, em primeiro lugar, é formar conceitos — ou, melhor dito, ideias — sobre a
vida econômica que nos permitam efetivamente imergir nela. Em nenhum dos campos
de atuação prática no âmbito do movimento antroposófico, dos quais participo pessoal-
mente, parto da convicção de que todos os resultados científicos alcançados deveriam
ser desmantelados; pelo contrário, estou convicto de que nossas ciências abarcam muita
coisa de extremamente útil; porém o manejo desse conteúdo útil, tanto das Ciências
Naturais quanto das Humanas, necessita e requer uma essencial continuação de seu
desenvolvimento. Por isso foi meu intuito proporcionar-lhes principalmente imagens
1. que pudessem oferecer-lhes pontos de referência para empregar corretamente o que,
sem dúvida, existe de amplamente útil também na Ciência Econômica. Por isso trouxe
tais imagens, contendo diretamente vida. O que é vivo, porém — tenham isso sempre
em mente! —, é sempre algo ambíguo. Assim, será plenamente possível um ou outro dos
Senhores sair destas reuniões com a sensação de ter isto ou aquilo a contestar contra
uma ou outra proposição. Em certo sentido eu ficaria contente se existisse tal sensação,
contanto que baseada numa genuína seriedade e num genuíno espírito pesquisador;
pois tal sensação deveria sempre existir face ao que é vivente. O que tem vida não to-
lera teorias dogmáticas. E é neste sentido que os Senhores devem entender as imagens
conceituais que lhes ofereci.
Uma imagem conceitual extremamente multifacetada, diria eu, é, sem dúvida,
a do dinheiro que envelhece ou se desgasta. Contudo, devemos entender imagens con-
ceituais como esta da mesma forma como defrontamos, por exemplo, um ser humano
em desenvolvimento. Pode-se ter a seguinte sensação generalizada: este será capaz
de desempenhar esse ou aquele papel valioso na vida. Talvez cheguemos a ter ideias
2. de como fará isso. Tais ideias de como ele procederá, porém, nem sempre deverão ser
exatas. A pessoa em questão poderá proceder de outra maneira. E assim os Senhores
talvez possam achar também várias modalidades da ideia do dinheiro que se desgasta,
e de como se processa tal desgaste. Eu procurei expor-lhes aquela modalidade que, por
assim dizer, baseia-se menos num raciocínio burocrático e mais no que se depreende
da própria vida econômica.
Objeções e mais objeções poderão ser apresentadas. Quero chamar a atenção para a
seguinte objeção, bastante possível: muito bem, o que deve determinar, por exemplo, que
um empresário qualquer invista justamente dinheiro novo em sua empresa, dado que tal
vez após pouco tempo já não se saiba se foi dinheiro novo ou não?... pois afinal a empresa
3.
tem continuidade. Devemos ter em conta o seguinte: o empresário não tira o dinheiro do ar,
mas o empresta de alguém. Tendo lido em minha obra Die Kernpunkte der sozialen Frage
[v. nota 7] que eu não defendo a eliminação do juro pelo dinheiro que representa um
valor, pois o juro é até certo grau necessário na vida econômica, os Senhores se pergun-
122 Rudolf Steiner
tarão: — Como é que eu, como empresário, conseguiria dinheiro emprestado pagando aos
credores juros apenas por um período reduzido? As pessoas me emprestarão dinheiro se
a modalidade lhes garantir o recebimento de juros por um período o mais longo possível.
— Talvez achem que não é suficiente deixar o dinheiro envelhecer desse modo. Então
poderão ponderar mais ainda a modalidade, por exemplo, em que o dinheiro emitido
hoje não recebesse a data de hoje, mas uma data futura, de modo que até àquela data
tivesse um valor crescente, e somente a partir de então um valor decrescente.
Em poucas palavras, o que tem vida pode realizar-se das mais variadas maneiras.
Por isso ocorre que, no momento em que criamos de maneira viva uma possibilidade,
esta logo pode vir a realizar-se das mais diversas formas, assim como um indivíduo
pode empregar suas habilidades das mais variadas maneiras. Isto é o essencial de um
4.
conceito não-dogmático. Contudo, assumindo tais conceitos, principalmente no âmbito
dos estudos de Economia, os Senhores perceberão como as coisas intervêm na vida, e
que somente sobre tal base prática conseguirão utilizar o que, sem dúvida, existe hoje
em observações parciais na assim chamada Ciência Econômica.
Por exemplo, no caso dos tratados existentes sobre o preço os Senhores verificarão
que se afirma serem as seguintes as condições de fixação do preço, pelo lado do vendedor:
sua necessidade de dinheiro, o valor do dinheiro, os custos de produção a serem cobertos
e a concorrência existente do lado dos compradores. Contudo, analisando tais conceitos
os Senhores descobrirão que, embora possam ponderá-los efetivamente, estes não lhes
servem para adentrar a realidade econômica, e isso pela simples razão de que primeiro
se deveria indagar o seguinte: será que existe uma situação economicamente sadia, em
que o que se pode chamar de valor útil do dinheiro possa fazer-se sentir sadiamente
caso um empresário qualquer, tendo em determinado momento necessidade de dinheiro,
possa fazer os preços subir ou cair de acordo com sua necessidade financeira? As duas
coisas podem ter um efeito sadio ou patológico. E quanto aos custos de produção, ainda
5. poderá parecer desejável, para se chegar a um preço sadio, não refletir sobre a orientação
dos preços sob o prisma da natureza absoluta dos custos de produção, e sim ponderar
o grau de redução desses custos para um artigo qualquer, a fim de que este tenha um
preço sadio no mercado. Trata-se, portanto, de formarmos conceitos tais que realmente
nos permitam raciocinar desde o princípio. Da mesma maneira como não deixamos um
ser vivo começar a viver na idade de vinte e cinco anos, tampouco deveríamos deixar
conceitos atuantes na vida terem início num ponto arbitrário. Não se deveria deixar
os conceitos econômicos terem seu início somente com a concorrência dos compradores
ou vendedores; o importante é verificar se, sob certas premissas, o erro econômico de
princípio não consiste, justamente, no fato de existir uma concorrência excessiva de
vendedores ou ainda de compradores. São justamente os detalhes que devem ser pre-
ponderantemente levados em conta na observação de questões de princípio.
Independentemente da opinião que alguém possa ter sobre o acerto das nossas
considerações, sempre foi aspirada, em toda série de observações, a necessidade de os
conceitos serem vivos. Tais conceitos mostram por si a necessidade de uma eventual
modificação, em determinado caso. O importante é sermos colocados no caminho de tais
6.
conceitos vivos. Nesse sentido, podemos dizer o seguinte: foi dito que, de um lado, temos
o dinheiro que se desgasta, ou seja, o dinheiro que envelhece; procurei demonstrar que,
devido às peculiaridades do dinheiro que entra em circulação como dinheiro de compra,
dinheiro de empréstimo e dinheiro de doação, o dinheiro, funcionando de modo desini-
14. Conceitos vivos para a economia mundial 123
bido e puramente econômico, faz nascer num lugar a necessidade de dinheiro novo e em
outro a necessidade de dinheiro velho, simplesmente em consequência das necessidades
de cada caso.
Tudo isso eu deveria poder elaborar por semanas a fio, e os Senhores notariam
que se insere inteiramente numa economia sadia, podendo-se perceber, logo ao surgir
7.
em algum ponto uma perturbação no corpo econômico, que o assunto poderá ser sanado
pela observação destes aspectos.
Ora, qual será o resultado prático de nossas reflexões se considerarmos, desse
modo, o dinheiro em circulação como reflexo do que é deteriorável nos diferentes artigos
de consumo — inclusive as produções espirituais, que também são artigos de consumo,
em sentido econômico? No dinheiro que se desgasta temos, neste caso, a corrente paralela
às mercadorias, aos bens, aos valores — inclusive valores reais — que se desgastam. O
que se nos apresenta ao contemplarmos tal paralelismo entre valor de face, ou nomi-
nal, e valor real, estendendo nossa observação a toda a economia mundial? No fundo
temos o que se poderia denominar contabilidade estendida a toda a economia mundial.
Trata-se da contabilidade mundial — pois o ato de se transferir uma remessa de um
lado para outro não significa outra coisa senão fazer um lançamento em outro lugar.
Isso se efetua, na realidade, pelo fato de o dinheiro e a mercadoria passarem de uma
8.
mão a outra. No fundo, é completamente indiferente se conseguimos estabelecer uma
contabilidade gigante, abrangendo toda a economia mundial — em que se lancem as
entradas no lugar certo e a partir da qual se dirija tudo, de modo a apenas alterar os
créditos —, ou extraímos cada transação e entregamo-la ao interessado, tornando-a
assim efetiva. Temos, pois, a contabilidade mundial como lugar de transferência de
dinheiro. E na verdade é isso o que todo mundo deveria considerar almejável — por-
que assim devolveríamos ao dinheiro o que, no fundo, este só pode ser, isto é, o meio
exterior para a troca. Pensando bem, e olhando todas as condições da economia, ve-
rificaremos que o dinheiro não pode ser outra coisa senão o meio para o intercâmbio
de resultados de trabalho. É que as pessoas vivem dos resultados do trabalho e não,
em verdade, dos símbolos desse trabalho.
Sem dúvida, pelo fato de em certo sentido o dinheiro falsear os préstimos do tra-
balho, poderá acontecer que, por uma espécie de comércio intermediário com dinheiro,
9.
ocorra também uma falsificação de toda a economia. Contudo, tal falsificação só é pos-
sível quando não se atribui ao dinheiro seu verdadeiro caráter.
O importante é nos darmos conta — tal como expus enfaticamente ontem — de que
a produção do trabalho deverá ser julgada das mais diversas maneiras relativamente ao
que circula como valores na vida econômica. Ontem pudemos chamar a atenção para
o modo como o que é primeiro extraído da natureza e submetido ao trabalho huma-
no corresponde, de fato, à imagem do trabalho unido ao produto da natureza — de
modo a se poder dizer que o processo econômico se inicia, por assim dizer, no lugar
10. onde o valor é gerado pelo trabalho agregado ao objeto da natureza. Existe, porém,
no processo econômico também a corrente oposta, que acontece quando se trata de
trabalho intelectual. Na ocorrência de trabalho intelectual, será necessário — se me
permitirem expressar-me assim — introduzir uma outra fórmula de valorização: a que
diz ter o desempenho intelectual tanto valor quanto poupar trabalho ao seu produtor.
Quem, portanto, produz um quadro e assim cria um valor, um valor pelo qual existe
interesse — caso contrário não seria um valor, supondo-se que a existência do pintor e a
124 Rudolf Steiner
criação do quadro representa um estado sadio na economia —, deve avaliar sua obra de
modo a ser-lhe poupado tanto trabalho quanto ele precisar até que possa ter produzido
um outro quadro equivalente. Sendo assim, podemos dizer que, pelo fato de se oporem,
no processo econômico, produtos espirituais e produtos resultantes exclusivamente da
natureza trabalhada, ou seja, do trabalho braçal ou ainda da elaboração pelos meios de
produção —, por se precisar, por um lado, de trabalho que se ligue aos meios de produção
e, por outro, ter economizado trabalho —, surgem assim, no circuito econômico, duas
correntes mutuamente opostas, que deverão compensar-se de maneira sadia.
A questão, todavia, é a seguinte: como é que elas se compensarão? Em princípio,
bastaria cogitarmos de uma contabilidade geral de toda a economia mundial; pois nes-
sa contabilidade geral surgiria o que deve compensar-se mutuamente. E aí surgiria o
preço. O importante será o fato de os lançamentos nessa contabilidade geral terem um
significado. Uma entrada A em minha contabilidade geral deverá corresponder ao que
posso chamar de ‘trabalho ligado à natureza’, ou uma entrada B deverá corresponder
11. a ‘quanto trabalho estará sendo economizado por tal realização’. Cada um desses lan-
çamentos deve significar alguma coisa; e somente poderá significar alguma coisa se
representar algo comparável ou, pelo menos, que esteja tornando-se comparável por
meio da economia. Não é possível perguntar sem mais nem menos: quantas nozes vale
uma batata? A pergunta deve ser a seguinte: a noz representa um produto da natureza
ligado ao trabalho humano; a batata representa outro produto da natureza ligado ao
trabalho humano; como é que os dois valores se comparam?
O importante será descobrir algo que realmente ofereça a possibilidade de se
ponderarem, um contra o outro, os valores econômicos. A coisa se torna ainda mais com-
plexa quando consideramos, por exemplo, o seguinte: alguém escreve um ensaio que, em
sentido econômico, deverá ter tanto valor quanta quantidade de trabalho físico estiver
sendo economizado com isso nos meios de produção, descontando-se o pequeno esforço
empregado em escrevê-lo. Em todo caso, os Senhores poderão imaginar que não será de
todo fácil calcular como as coisas devem ser comparadas e avaliadas mutuamente. No
entanto, captando o processo econômico por um lado diferente, teremos a possibilidade
de aproximar-nos de tal avaliação. Por um lado temos o trabalho físico empregado nos
meios de produção — aos quais também pertence a natureza —, trabalho que sempre
pode ser bem definido para determinado momento; em outras palavras, um certo tra-
balho humano torna-se necessário num certo momento — digamos, para produzir uma
12. área de x metros quadrados de trigo até o momento em que o trigo chegue ao comer-
ciante ou em outro lugar de destino — enfim, para produzir trigo. Trata-se de algo que
representa uma grandeza definida, a qual pode ser calculada até certo ponto; pois toda
realização econômica do homem sempre parte da natureza. Não pode ser diferente. O
camponês aplica seu trabalho diretamente à natureza; uma pessoa que, por exemplo,
cuida de roupas não aplica seu trabalho diretamente à natureza, porém esse trabalho
remonta diretamente a ela. Seu trabalho certamente incluirá algo que corresponda a
trabalho poupado, contanto que ela empregue inteligência nele. Porém seu trabalho
sempre remontará à natureza. Até as realizações espirituais mais complexas — tudo,
em última análise — remontam à natureza, ou ainda ao trabalho com os meios de
produção. Por mais imparcialmente que os Senhores reflitam sobre o assunto, sempre
verificarão que toda atividade econômica acabará remontando ao trabalho físico com
a natureza, e que os valores que começam a ser criados com a natureza — criados pelo
14. Conceitos vivos para a economia mundial 125
emprego do trabalho até um ponto o mais próximo dela — são valores que terão de ser
distribuídos para todo o âmbito de uma economia fechada.
Voltemos à hipótese que expus ontem: uma economia de aldeia fechada. Tal
economia abrange preponderantemente os trabalhadores braçais, e como exemplo de
trabalhadores espirituais mencionei o mestre-escola e o pároco, talvez ainda o prefeito.
Trata-se de uma economia muito singela. Nela a maioria das pessoas trabalhará fisi-
camente na terra; e terá de realizar também o trabalho físico correspondente ao que o
mestre-escola, o pároco e o prefeito necessitarem para sua alimentação, seu vestuário,
etc. Elas têm de fazer esse esforço adicional porque o mestre-escola, o pároco e o prefeito
não podem, eles mesmos, executar seu trabalho com a natureza. Imaginem agora que tal
freguesia tenha trinta camponeses e mais aquelas três — como chamá-los? — eminên-
cias. Esses três contribuem com seus préstimos espirituais. Eles precisam do trabalho
economizado dos outros. Suponhamos que cada um dos trinta camponeses entregasse
às três pessoas, ou a cada uma delas, uma senha, um pedaço de papel em que estivesse
13.
escrito, por exemplo, ‘tanto trigo’, significando o trigo já elaborado de certa forma; um
outro daria um papel em que estivesse escrito outra coisa comparável ao trigo quanto
ao consumo. É possível encontrar essas coisas na prática. Ora, o pároco, o mestre-escola
e do administrador comunal guardam isso no bolso. Em vez de eles mesmos trabalha-
rem no campo para conseguir o trigo, o milho, a carne de vaca, entregam as senhas aos
camponeses. Estes acrescentam essas quantidades ao seu trabalho e dão o produto às
três pessoas. Esse é um processo que há de estabelecer-se automaticamente; não poderia
ser de outra forma, mesmo se algum esperto inventasse de introduzir moedas metálicas
em lugar das senhas. O importante é que se crie a possibilidade de introduzir, com base
no trabalho físico acumulado, isto é, no trabalho aplicado aos meios de produção ou do
trabalho investido nos valores econômicos, ordens de apropriação a serem entregues
para que, mediante essas senhas, os que precisam disso possam poupar trabalho.
Isso lhes demonstra que espécie alguma de dinheiro pode ser outra coisa senão
unicamente uma expressão da soma dos meios de produção utilizáveis, existentes
14. numa região qualquer — os quais, naturalmente, seriam representados em primei-
ro lugar pelas terras —, resumida ao que mais facilmente os expressam. E isso en-
tão reduz todo o processo econômico a algo que, mesmo assim, pode ser apreendido.
O que é necessário dizer a esse respeito relaciona-se com o fato de ser impossível
criar um paraíso econômico em lugar algum da Terra. Quiçá acreditassem nisso os que
erigem utopias sem relação com a realidade! É muito fácil determinar que a economia
deva ser desta ou daquela forma; porém uma economia, inclusive toda a economia da
15. Terra, isto é, aquilo que se pode chamar de economia mundial, não pode ser estruturada
de forma absoluta — só de forma relativa. Suponhamos que numa região econômica
fechada exista uma área A de terras. Se nessa área todas as pessoas executassem todas
as atividades realizáveis pelo ser humano, o resultado seria diferente se naquela área
vivessem, digamos, B milhões de habitantes, ou se aí vivessem B1 milhões.
O que aqui vem ao caso depende inteiramente da relação entre habitantes e a área
de terra, ou seja, do rendimento que uma certa área de terra — em última análise, tudo
vem da terra — possa produzir para um determinado número de habitantes. Tomem
16.
o caso hipotético de uma região econômica qualquer com 35 milhões de habitantes —
na realidade, não importa quantos sejam. O que se menciona aqui a respeito de uma
região econômica fechada vale também para a economia mundial. Uma região tinha 35
126 Rudolf Steiner
Z’* — e ficaria claro em que se baseia toda a economia. Com isso o valor da moeda é
remetido aos meios de produção úteis nos quais se emprega o trabalho físico — meios
de produção de uma região econômica qualquer —, sendo esse o único valor monetário
sadio: a soma dos meios de produção utilizáveis.
É dessa forma que se apresenta o assunto a quem é capaz de observar imparcial-
mente a realidade, embora talvez alguém possa dizer não haver outro valor que possa
ser exatamente comparado com isso. Eu digo que poderá haver uma comparação precisa
até um grau muito elevado — pois pelo fato serem determinados, em última instância,
pelo consumo, tais valores não diferem muito das realizações.67 Por mais empenhado
que eu possa ser como agente cultural ou espiritual, sempre preciso, a cada ano, de
um tanto de trabalho economizado necessário ao meu sustento como ser humano. E
por tal raciocínio ficará facilmente evidente por que razão um agente cultural ou espi-
19.
ritual tem alguma necessidade adicional à de um trabalhador braçal. Se a coisa ficar
transparente dessa forma, não haverá dúvida em ser reconhecida em toda parte, por
ser transparente. Em economias fechadas sempre existem ainda condições, se bem que
cada vez mais raras, mas mesmo assim remanescentes hoje, em que os ativos em áreas
espirituais recebem sobejamente o que precisam, sendo que os demais o entregam
francamente, sem primeiro anotá-lo em pedaços de papel. Não digo isso por querer
reduzir a economia a algo sentimental, mas por também isso pertencer às realidades
da economia, pois no âmbito da economia em toda parte nos deparamos com o homem.
Com isso se alcança sobretudo uma relação realmente ampla dentro dos vários
segmentos de um todo econômico. Alcança-se a possibilidade de cada pessoa manter,
a cada instante, sua relação com a natureza também no dinheiro. Justamente o fato
de todas as nossas condições se distanciarem tanto da natureza, perdendo toda a sua
ligação com ela, é que as torna tão insalubres. Se conseguíssemos — e a solução do
problema não passa de um assunto da técnica possível de ser desenvolvida numa vida
associativa — efetivamente ter em nossas cédulas, em vez de o indefinível padrão-ouro,
20.
o padrão natural, conseguiríamos perceber diretamente, nas operações corriqueiras,
qual seria o valor até de uma realização intelectual qualquer; pois logo se saberia,
quando alguém pintasse um quadro, que tantos camponeses, por exemplo, teriam de
produzir tanto trigo ou tanta aveia, etc., durante tantos meses ou anos. Imaginem quão
transparente se tornaria o processo econômico dessa forma. Conforme a terminologia
atual, dir-se-ia, nesse caso: o que temos é um padrão natural em vez de um padrão-ouro.
Seria justamente o certo. Seria o que propicia uma verdadeira condição econômica.68
Introduzimos aqui novamente uma das tais imagens. Preciso mesmo utilizar essas
imagens, pelo fato de proporcionarem a realidade; o que em geral as pessoas têm na
cabeça, nas relações econômicas, não reflete a realidade. Só possui uma realidade quem
sabe, ao receber por alguma coisa uma moeda de certo valor, que isso representa tanto
21. de trabalho na terra ou de trabalho em outros meios de produção; e que, no momento
em que são terminados e deixam de ser mercadoria, esses meios de produção se tornam
equivalentes à natureza ao passar para o estado de desvalorização, para a impossibi-
lidade de serem comprados ou vendidos, tornando-se idênticos aos meios de produção
existentes na natureza. Não visamos mais do que a uma continuação do processo exis-
* Steiner sugere literalmente ‘X-trigo’, ‘Y-trigo’, ‘Z-trigo’. ‘Padrão natural’ é uma tradução opta-
tiva para um entendimento mais genérico, do ponto de vista econômico. (N.E.)
128 Rudolf Steiner
tente na natureza ao dizer que os meios de produção devem ser tratados dessa maneira.
Somente assim se cria um conceito claro da própria natureza como meio de produção;
porque sempre se poderiam apresentar objeções quanto aos conceitos correntes relativos
à terra, caso não se introduzisse o conceito de meio de produção conforme foi aventado
em meu livro Die Kernpunkte der sozialen Frage [v. nota 7]. Ora, basta os Senhores
considerarem que, sob certas circunstâncias, também uma região da natureza deve ser
primeiro trabalhada antes de tornar-se terra útil; que somente quando uma área da
natureza qualquer está desbravada para ser entregue ao uso — tendo sido empregado
trabalho nela — é que a conclusão desse trabalho marca a conversão de um pedaço de
terra — que a partir daí pode ser legitimamente chamado de mercadoria — em valor
econômico no sentido de um bem unido ao trabalho.
Portanto, só realmente formando os conceitos da maneira como o fizemos é que
os Senhores obterão o conceito de meio de produção em sua forma pura, podendo vir a
aplicá-lo nos diferentes campos; no momento certo compreenderão que o peso principal
do valor — por exemplo, no caso de alguém escrever um ensaio — consiste no trabalho
economizado, descontando-se apenas o pouco de trabalho físico diretamente empregado no
ato de escrever. Logo ficará evidente uma diferenciação dos conceitos nas diversas direções
22.
a fim de se inserirem corretamente na vida, caso os Senhores os formem acertadamente
a partir da própria vida. Querendo tratar da questão dos preços, não poderão proceder
de outra forma senão retrocedendo não apenas até aos custos de produção, mas até à
produção original, examinando as condições de preços desde essa produção original. Só
assim poderão acompanhar a formação de preços até um ponto qualquer dentro do pro-
cesso econômico.
Com isso eu talvez lhes tenha dado pelo menos uma ideia capaz de levá-los a
entender o que é que interessa na questão fundamental da economia — a formação
de preços. Porque atuar economicamente significa levar produtos para a troca entre
as pessoas; e essa troca entre as pessoas se manifesta na formação de preços. Tal for-
mação de preços é o que importa em primeiro lugar. Os Senhores compreenderão que,
neste caso, não teremos de remontar a algo totalmente indefinido se acompanharem
regressivamente tudo até àquela relação de valores criada para a lavoura pela propor-
23.
ção entre o número de habitantes e a área cultivável. Em tal relação se expressa o que
originalmente subjaz à formação de preços, pois todo trabalho possível de ser executado
só pode partir do número de habitantes, e tudo a que esse trabalho possa ligar-se deve
provir da terra; eis o que todos necessitam, e pelos que são poupados disso por causa
de sua atividade cultural ou espiritual cabe aos demais desempenhá-lo, além do que
compete a si próprios. É assim que chegamos a compreender o fator subjacente a toda
a economia.
Ora, encarando a coisa desta forma, devemos dizer o seguinte: em nossa economia
moderna, bem complexa, ainda se insere algo daquelas condições econômicas primiti-
vas em que se tratava essencialmente, por assim dizer, da pura troca de mercadorias.
Ocorre, porém, que não estamos mais em condições de perceber essa relação em toda
24. parte. Nós a teremos sempre presente quando nossas cédulas de dinheiro expressarem
tal relacionamento com a natureza — pois na realidade ele existe. Jamais se esqueçam
disso! É a pura realidade. Eu quis dizer o seguinte — fazendo novamente uma metáfora
—: enquanto eu, bem distraidamente, gasto meus francos em uma alguma coisa, existe
sempre um diabinho que escreve sobre o dinheiro a quanto trabalho empregado na na-
14. Conceitos vivos para a economia mundial 129
tureza este corresponde. Eis a realidade. Também neste caso, para chegar à realidade
não devemos deter-nos na superfície externa.
Bem, realmente não foi possível, nestes quinze dias, fazer mais do que al-
gumas contribuições iniciais, tendo a certeza de que deveriam continuar a ser
elaboradas — sendo, talvez, o mais importante nisso os Senhores entenderem
25.
que os conceitos imaginativos desenvolvidos aqui representam algo vivo em re-
lação ao que está sendo desenvolvido alhures. Se tiverem assimilado o que é
vivo nesses conceitos imaginativos, não terão passado est es quinze dias em vão.
O que hoje em dia pesa tanto em nossas almas é o fato de existirem enormes
obstáculos para as pessoas adquirirem uma visão desimpedida do que é necessário ao
saneamento dos muitos danos da civilização. Fala-se muito do que deveria ser feito;
porém existe pouca vontade de mergulhar na realidade e haurir dela própria os dizeres
sobre o que fazer. De fato, afastamo-nos gradativamente da esfera da verdade, do verda-
deiro direito oriundo da natureza humana e daquilo que deve desenvolver-se no homem
caso ele queira ter algum valor para seus contemporâneos — ou seja, afastamo-nos da
prática da vida; saímos da palavra verdadeira para entrar no palavreado, saímos do
26.
senso de direito para entrar no convencional, e saímos da prática da vida para entrar na
mera rotina de vida. E não conseguiremos sair dessa tríplice falsidade — o palavreado,
a convenção e a rotina — se não desenvolvermos a vontade de mergulhar nas coisas,
prestando atenção à maneira como estão realmente estruturadas. Só assim nós, como
pessoas que querem observar tais assuntos pelo lado do estudo, encontraremos a pos-
sibilidade de fazer-nos entender. Hoje em dia existe no mundo muita coisa que, como
palavreado de agitação, causa terrível dano por existirem tão poucas pessoas imbuídas
da firme vontade de aprofundar-se nas realidades.
Por isso, meus caros amigos, causou-me profunda satisfação o fato de haverem
chegado até aqui, empenhando-se durante quinze dias em examinar a fundo, junto co-
migo, o campo da Economia. Agradeço-lhes de coração sua boa vontade. Posso expressar
27. este agradecimento por acreditar saber o que significa o fato de justamente os atuais
estudantes acadêmicos no campo da Economia poderem contribuir enormemente para
o saneamento de nossa vida cultural, para a reconstrução da vida da humanidade .
E devemos empenhar-nos já para que a Economia não permaneça apenas teórica,
mas evidencie-se ela mesma como valor econômico, de modo que o que economizamos
em trabalho possa, de fato, ser empregado frutiferamente pelos que o economizam para
28. nós, em proveito do progresso da humanidade. Acredito que os Senhores, ao decidirem
vir até aqui, tenham tido plena consciência da importante missão do economista; e te-
rei grande satisfação se tiverem sido estimulados, em sua vontade, pelo conteúdo que,
embora de maneira insuficiente, pudemos desenvolver.
Espero que tenhamos nova oportunidade de aprofundar mais esses assuntos.
Notas e bibliografia
As presentes notas, bem como as referências bibliográficas, foram preparadas por Christopher
H. Budd, tradutor/editor da versão inglesa de 1993 intitulada Economics (New Economy Publica-
tions, Sussex). Sua publicação nesta edição brasileira deve-se à pertinência de seus comentários e
esclarecimentos diante da realidade econômica universal de hoje, após decorridos mais de setenta
anos desde a realização do curso ministrado por Rudolf Steiner. Algumas supressões de trechos
foram efetuadas (caracterizadas aqui como [...]) e inúmeras notas foram inteiramente excluídas,
devido à relação dos respectivos textos exclusivamente com a referida edição inglesa (que inclui dois
prefácios e também as discussões realizadas após seis das presentes conferências). Por outro lado,
inserções de nossa autoria (também entre [ ]) se fizeram necessárias, para melhor subsidiar o leitor.
Primeira conferência
1. Schmoller, Gustav von. 1838-1917, economista.
2. Roscher, Wilhelm. 1817-1894, economista.
3. Beaconsfield, Earl of; Benjamin Disraeli. 1804-1881, escritor e estadista inglês.
4. Richter, Eugen. 1838-1906, político liberal.
5. Lacher, Eduard. 1829-1884, político liberal.
6. Brentano, Lugo. 1844-1931, economista alemão.
7. Aqui e no próximo parágrafo, Steiner refere-se à sociologia que ele desejava introduzir, baseada na dinâmica latente entre os
domínios cultural, econômico e político da sociedade — o que ele chamava de trimembração da vida social. Traduzidas, as deno-
minações podem variar — trimembração da ordem social, estado trimembrado, comunidade tridimensionada —, mas qualquer
que seja o nome usado, fala-se de um novo paradigma, em consonância com a linha que a evolução social da humanidade segue,
mas que ainda permanece irreconhecível. As pessoas continuam presas às sociologias que se preocupam com as existências
nacionais separadas — tornadas obsoletas pelo advento de uma economia global única. [A teoria social de Steiner encontra-se
formulada em Die Kernpunkte der sozialen Frage (Os pontos centrais da questão social), GA 23. 6ª ed. Dornach, Rudolf Steiner
Verlag, 1976. Veja também a versão inglesa Towards Social Renewal, Londres, Rudolf Steiner Press, 1977.]
8. Os leitores podem entender melhor o que Steiner tinha em mente consultando seus comentários sobre John Maynard Keynes e
seu livro intitulado The Economic Consequences of the Peace. Ver Steiner on Keynes, New Economy Publications, set./out. 1992.
9. É interessante notar, nesta colocação que Isaac Newton, sistematizador da teoria do espectro luminoso, era também um alto
cargo do Royal Mint da Inglaterra [N.T.: A ‘Casa da Moeda’ inglesa]. Estava diretamente envolvido, por isso mesmo, na forma
e condução da vida econômica de seu tempo.
10. Adam Smith. 1723-1790. Mais conhecido pelo seu Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, 1776.
Segunda conferência
11. Steiner usa a palavra ‘natureza’ onde a economia clássica diz ‘terra’, deixando o leitor com um enigma pela frente. Prendendo-nos
rigidamente a ‘natureza’, corremos o risco de ficar perdidos entre os conceitos vagos das economias ‘alternativas’, visto que
‘natureza’, nestes tempos ecológicos [...], está mais próxima de ‘paisagem’ do que de uma ‘categoria econômica’. [Em minha
tradução inglesa] eu sempre prefiro usar ‘terra’ onde Steiner usa ‘natureza’, numa tentativa de enfatizar a necessidade de
aprofundarmos o nosso entendimento dos conceitos tradicionais de economia. O que importa mais é chegar a um termo mais
profundo, estritamente econômico como ‘terra’ do que procurar expressões aparentemente mais fáceis de serem compreendidas.
A mesma coisa pode ser dita a respeito de ‘trabalho’ e ‘capital’. Se aprofundarmos, em economia pura, o significado dado a estes
termos, conseguiremos transcender os confins estreitos do pensamento econômico materialista, que poucas vezes é puramente
econômico, compreendendo frequentemente conceitos sobre a vida econômica que em si mesmos têm um caráter mais jurídico
ou ético do que econômico propriamente dito. No processo, evitaremos a outra armadilha do economista de hoje — a de abstrata-
132 Rudolf Steiner
mente esticar o universo da linguagem da economia tradicional, inventando outras categorias, como, por exemplo, ‘informação’.
A realidade é uma de três categorias — terra, trabalho e capital — às quais qualquer extrapolação ou simplificação sempre se
volta. Também se poderia argumentar que terra, trabalho e capital traduzem-se melhor por ‘natureza-homem-espírito’, e que
estaríamos sendo mais fiéis ao que Steiner tinha em mente. Foi o que tentei fazer em meu livro Prelude in Economics (New
Economy Publications, 1979). No entanto, e no contexto da língua inglesa, o resultado não se encaixa perfeitamente, como
acontece no universo econômico. No fim, resolvi usar ‘terra’ e ‘natureza’ combinados, usando-os separadamente ou enquanto
sinônimos, de acordo com o que eu pensava seria a necessidade do leitor, mantendo presente em minha mente que se tratava
de uma obra sobre economia e que se pressupunha algum esforço de sua parte para superar dificuldades! Não faço apologia de
qualquer embaraço que resulte deste tipo de tratamento do tema. Na verdade, este problema oferece por excelência o tipo de
exercício que Steiner tanto queria — o de afiar o pensamento econômico.
12. A expressão usada por Steiner consta [como na presente edição brasileira] normalmente no singular — ‘um bem’. [...] ‘Bens’,
significando — na tese defendida por Steiner — produtos da natureza modificados pelo trabalho, não são propriamente ‘um
bem’. A palavra lógica seria ‘produto elaborado’ — mas ela é um pouco restritiva. Na maioria das ocorrências usei [na tradução
inglesa] o plural ‘bens’ ou a inábil tentativa ‘produto elaborado’, como seria próprio do texto. [...] A terminologia da Ciência
Econômica é afetada o tempo todo pelo fato de, no mundo real, referir-se a um império que paira num plano superior ou que,
por outras palavras, encontra-se subentendido em suas contrapartes físicas. Por exemplo, embora todos tenhamos visto o preço
de algo marcado numa etiqueta, quem já viu ou pôde tocar um preço físico?! A necessidade de pensar concretamente nos termos
deste império subentendido é reforçada pelo uso ocasional que fiz [no inglês] de ‘um bem’. A meta é, mais do que referir-se à
sua existência física, dar conta de seu significado econômico.
13. Nesta passagem, e ao longo de todo este tratado, Steiner usa a palavra Arbeit. Pode ser traduzida, claro, por ‘trabalho’ [como na
edição brasileira], mas na versão inglesa foi adotado e mantido o termo econômico tradicional ‘mão de obra’. Uma vez assumido
isto, podemos entender o uso específico da palavra ‘mão de obra’: aquele tipo de trabalho particularmente associado ao esforço
manual. É realmente difícil usar o termo ‘mão de obra’ num sentido mais amplo e genérico — como referindo-se a todo tipo de
atividade econômica que o ser humano pode realizar, desde aquele físico e rústico, necessário ao trabalho na terra, na caça, na
mineração de carvão ou na produção de coisas, até ao intangível — mas não por isso menos econômico — trabalho de um pro-
fessor ou de um artista ou, sem dúvida, de um empreendedor realizando uma intuição. É um dos grandes desafios da moderna
economia encontrar um conceito para o esforço humano que expresse corretamente como, no direcionamento de um trabalho
físico pesado, é preciso um caráter manual (mão de obra), enquanto que no direcionamento mental ou de processos interiores
torna-se rarefeito e quase que inexistente, como por exemplo quando um inventor concebe pela primeira vez um novo projeto.
Nas conferências que se seguem, Steiner deposita grande esperança neste polo intangível do trabalho, usando frequentemente
a expressão ‘trabalho espiritual’. [...] A concepção de Steiner da vida econômica está centrada numa sequência que abrange
desde a caça até o ensino, passando sucessivamente pela agricultura e pela manufatura, sucessão esta em que as realizações
humanas se afastam da terra e se aproximam dos aspectos menos rústicos da vida econômica, como a atividade cultural. Neste
processo de abstração, quanto mais rarefeita se torna a conexão com o mundo material (representado pela terra), mais livre
está das restrições dessa mesma terra, e mais autossuficiente se torna por sua própria intangibilidade. Um empreendimento,
por exemplo, depende, para seu pleno sucesso, da imaginação e do nous — o termo grego para inteligência e bom senso — da
pessoa que o leva a efeito. O ‘fator pensamento positivo’ — para usar o jargão atual — e fenômenos similares dependem de coisas
invisíveis como confiança e expectativa. Embora uma tradução literal tivesse adotado ‘trabalho espiritual’, penso que oferece
conotações com a linguagem de nossos dias que na verdade contradiz aquilo que Steiner tinha em mente. [...] [Na presente
edição brasileira optou-se, em vários trechos, ora por ‘atividade cultural ou espiritual’, ora por ‘atividade intelectual’, de acordo
com a pertinência da opção, já que a palavra alemã geistige (espiritual) abriga toda uma gama de significados envolvendo não
só espírito propriamente dito, mas também cultura, mente, intelecto (v. tb. nota 14).]
14. Mais uma vez o termo alemão Geist não é facilmente traduzível. [...] ‘Espírito’, conforme o usa Steiner, é uma estenografia
para tudo aquilo que surge no ser humano por ser ele um ser pensante com muitos e variados talentos e capacidades a serem
desenvolvidos. O conjunto desta atividade e seus resultados constrói sua vida espiritual.
15. ‘Renda’ é aqui usada em seu significado econômico estrito, o valor que emerge da terra. Este sentido econômico paira acima do
outro, mais usual, normalmente entendido como as relações entre locatário-locador e o dinheiro pago pelo uso de um imóvel.
Os dois sentidos não são sinônimos, e qualquer economista que mereça esse nome saberá ver a diferença!
Terceira conferência
16. Este uso da palavra ‘interesse’ é importante. Diz-se muitas vezes que esta ou aquela política é determinada ou contrariada pelos
‘interesses envolvidos’ de certas partes. No entanto todos nós agimos protegendo ou aumentando os nossos interesses econômicos.
Do ponto de vista social, o desafio da economia moderna é mostrar como os interesses econômicos podem ser contrastantes ou
conflitantes. Nesta passagem, Steiner dá o primeiro passo nesta direção, embora en passant .
Notas e bibliografia 133
Quarta conferência
17. Nesta conjuntura, é importante parar para pensar — pensar economicamente, é claro! Steiner usa duas palavras — Arbeitstei-
lung e Arbeitsgliederung. A segunda não oferece tradução precisa — necessita da intermediação de uma imagem, como acontece
com todos os verdadeiros conceitos econômicos. Sem estes a Ciência Econômica cai em ideias mentais abstratas e meramente
intelectuais. Em nossa maneira comum de pensar, a imagem associada à ‘divisão do trabalho’ é aquela da produção em linha
de montagem na indústria moderna. Tende a ser a ideia de um desmembramento meramente físico do processo de trabalho,
separando-o em partes. Assim, em vez do carpinteiro de carroças, uma pessoa faz as rodas, outra os eixos e assim por diante.
Esta imagem não é incorreta, mas implica que a separação só é real porque é empreendida no mundo físico. É possível montar
uma carroça e fazer suas partes separadamente. Mas acautele-se ao transferir este aspecto atomizado da divisão do trabalho
dos produtos físicos para o aspecto social daqueles que realizam o trabalho. Os seres humanos envolvidos não devem ser vistos
no processo como se pudessem ser separados uns dos outros. Assim como as partes da carroça só têm sentido quando colocadas
todas juntas, da mesma forma a divisão do trabalho não deve fornecer desculpas para uma existência econômica atomizada.
O termo não significa divisão no sentido fragmentário e absoluto do mundo físico, mas sim o partilhar da responsabilidade de
uma tarefa em comum. Não podemos esquivar-nos facilmente ao fato de que o batismo deste processo ocorreu quando o foco
do pensamento econômico era ainda muito estreito. É um exemplo — e um muito fundamental — do problema que enfrentam
os economistas a necessidade de pensar com mais amplidão, de basear suas percepções em dados mais abrangentes do que
aqueles dados pelo aparecimento um tanto intempestivo do capitalismo industrial no estágio essencialmente agrário dos anos
passados.
18. Este termo, como logo a seguir ‘devedor’, está pensado num sentido econômico funcional, não-pejorativo.
19. A expressão de Steiner é geistige Schöpfer, ‘trabalhador espiritual’. [...]. Não quero atribuir maior valor do que aquele absolu-
tamente necessário ao termo ‘trabalhador espiritual’, pois em dois pontos acredito que este se distancie do tratamento geral
econômico que Steiner dá a seu trabalho. Primeiro, como já disse anteriormente, falta a ‘espiritual’ qualquer coisa de concreto e
de alguma maneira soa como que antieconômico, oposto à economia. Segundo, ‘trabalhador’ pertence por demais à síndrome da
fábrica, teoria de classes e ao cenário cada vez mais anacrônico do trabalho classista. Sem querer de maneira alguma negar ou
diminuir os reais problemas a que essas coisas se referem, o pensamento econômico de Steiner pretende ir além do capitalismo
que tanto maltrata as pessoas. Ele o faz precisamente por não construir com base nas ideias compreensíveis, mas não por isso
corretas, que evoluíram até tornar-se a perspectiva marxista.
20. [...] Estas expressões nos conduzem rápido demais à jurisprudência, por um lado, e, por outro, a uma profunda ‘falsa lei-
tura’ do que mais tarde Steiner batizou de ‘dinheiro de empréstimo’. Identificar ‘emprestar’ e ‘pedir emprestado’ — como
entendidos pela mente moderna, escolada nas práticas do sistema financeiro atual — com o conceito de Steiner de ‘dinhei-
ro de empréstimo’ tornou-se um grande obstáculo. A questão do sinônimo é logo a primeira — em si mesma um exemplo
do pensamento NÃO-econômico! — a alimentar sutilmente as alas de adeptos do pensamento de Steiner, impedindo que
as pessoas vejam e experimentem o tipo de capital e seus efeitos para onde Steiner, precisamente neste momento de sua
colocação, tenta a todo custo atrair a atenção. [Em minha versão inglesa] é usado deliberadamente o termo ‘transferên-
cia’ para evitar uma confusão prematura entre a jurisprudência maquiada de economia e a economia propriamente dita.
21. Uma passagem que alguns sentirão como perigoso elitismo econômico, sugerindo, aparentemente, que o capital só deveria ir
para as mãos daqueles suficientemente inteligentes da sociedade. Mas não é isto que Steiner tem em mente. Para começar,
não diz capital como diria renda. Parte do princípio de que a sociedade manterá todo ser humano economicamente (embora não
necessariamente de maneira igual nem em medida idêntica) e que este é um assunto separado do uso que fazemos do capital.
Na verdade, partindo do princípio de que os rendimentos geralmente vêm do uso produtivo e útil do capital, Steiner diz simples-
mente que, vendo de maneira geral e falando do ponto de vista econômico, o capital da humanidade, se mal administrado, não
conseguirá dar a renda necessária à humanidade como um todo, mesmo que esses rendimentos sejam compartilhados. O fato
de o capitalismo não administrar o capital da maneira que Steiner sugere não pode ser alienado de sua crescente inabilidade
para financiar as verdadeiras necessidades humanas.
22. Alguns talvez prefiram dizer satélite, em vez de balão, porque os satélites hoje em dia são capazes de observar a terra como um todo. A
tecnologia está lado a lado com a realidade econômica do mundo como um todo, mas a economia ainda está um pouco atrás, presa àquele
tipo de pensamento queAdam Smith exemplifica. Esta falta de um tratamento global da vida econômica como parte da economia provoca
a grave e desconcertante consequência de estar ralentando a ideia do mundo como um grupo humano que partilha o mesmo bem comum.
Aausência de uma consciência assim significa que, pelo fato de as várias nações que predominaram na vida econômica no começo do século
XX não se terem juntado, quando tiveram oportunidade, para criar uma única economia global para o todo da comunidade humana, a ideia
que prevalece por trás da política, hoje, é que uma nação deve sobrepor-se às outras. Nossa vida social está permanentemente permeada por
uma fria tensão devido à ausência de um conhecimento da nossa economia mundial e à busca de uma hegemonia global. Psicologicamente,
pelo menos, vivemos num estado de conflito iminente — para sempre sob a ameaça de uma guerra mundial econômica e, certamente, para
sempre assistindo a expressões isoladas desta condição, em todo o mundo e por toda a história. Muito se cria em cima deste caráter não-
econômico e ideológico destes ‘pontos problemáticos’; mas retirem-se os mercados e o acesso à mão de obra barata, retire-se a viciosa
dependência da indústria de armas e os enormes dividendos ganhos por aqueles que financiam os combatentes, retirem-se os interesses de
monopólio das corporações transnacionais — e o que sobra? Certamente um precioso nada. Em termos ideológicos, a mais real ideologia de
nossoséculofoinãoasocialista,masaautodeterminação,aliberaçãonacionaleofimdocolonialismo.Mas,emtodocaso,estesatentadosaos
134 Rudolf Steiner
povos do mundo no sentido de retirar seu lugar de direito na comunidade humana acabaram por entrar em conflito por causa da partilha de
recursos e mercados que implicavam. Na maioria dos casos, esses povos sacrificados — daAlgéria ao Vietnã — foram forçados pelo Ocidente
paradentrodasideiassocialistasporqueestaspareciamrealmenteexplicarasaçõesdoOcidente.Masestesocialismofoinasuamaiorparte
uma questão acidental e frequentemente ausente em seus resultados. O Ocidente, durante este século, recusou a mudança do paradigma
que é responsável pela emergência, por todo os lados, de nações buscando deixar de ser colônias para sempre.
Quinta conferência
23. No sentido de crédito para financiar o que o indivíduo pode, a partir de suas capacidades, realizar.
24. Nota: esta discussão dos juros está dirigida ao empréstimo individual de dinheiro sob juros, sendo esta a forma mais comum
de os indivíduos passarem pela experiência de captar dinheiro dos outros. Este é um ponto em que esta experiência comum
e familiar tem hoje uma aplicabilidade genérica. Eu tenho as minhas dúvidas. Muitos indivíduos alcançam capital mediante
uma herança, poupança ou investimentos — ou seja, sentem-se seus próprios produtores e não pagam juros por esse capital.
Também os financiamentos corporativos — de longe o maior motor da vida econômica — são grandemente conduzidos com bases
no capital investido, onde o retorno não é uma porcentagem do capital independentemente de sua produtividade, mas uma
proporção de qualquer benefício derivado de seu uso — e isso só depois de cobrados os custos. Usando o exemplo dos juros nos
fundos privados, Steiner corre o risco de desviar a atenção do leitor da questão econômica que pretende colocar, por causa da
experiência próxima que se supõe que o leitor tenha muito presente. Também se deve notar que o exemplo de crédito pessoal se
refere à capitalização da produção ou do empreendimento, e não — como a prática moderna poderia supor — ao financiamento
de uma casa, compra de ações ou pagamento de dívidas.
25. ‘Com base em terras’ = crédito vinculado à terra. Pode ser usado para adquirir terra ou para garantir dinheiro usado para outros
fins. De qualquer maneira, o efeito econômico é que seu valor é alimentado pelo valor da terra, assim financiado ou aceite como
colateral.
26. Capitalização da terra. Segue-se uma tentativa de mostrar os cálculos a que Steiner se refere:
I) Suponha-se:
a) preço não-capitalizado da terra: 100,000
b) juros de 5% ao ano
c) prazo de 20 anos
Portanto:
Valor não-capitalizado da terra: 100,000
Juros: 100,000
Valor capital da terra: 200,000
II) Agora, supondo-se juros @ de 4% ao ano:
Valor não-capitalizado da terra: 120,000
Juros: 80,000
Valor capital da terra: 200,000
27. Embora não o diga, nesta passagem Steiner acaba com um dos principais propósitos da consciência não-econômica, capitalista
dos dias de hoje — na qual todos nós nos inscrevemos —, porque o ideal capitalista continua agarrado à noção de que o capital
pode ser acumulado sem haver preocupação com as consequências econômicas desse acumular. As pessoas não pensam — ou se o
fazem, esquecem rapidamente — que quando o capital não é trabalhado e utilizado no processo econômico com fins conscientes,
indiretamente perde valor, sob a ação de efeitos econômicos aparentemente periféricos; posto que vivemos numa era que devota
toda a sua energia a acumular capital, culpando ao mesmo tempo a economia pela desvalorização mais óbvia, real e séria que
esse mesmo acumular provoca. Quanto mais cedo nosso pensamento, para nada dizer das nossas ações, se preocupar com a
realidade econômica desde esta perspectiva, melhor todos estaremos. A solução para a desvalorização do capital acumulado é
com certeza não acumular mais! (A mesma coisa podemos dizer da insensatez de tentar manter o valor do dinheiro mediante
soluções artificiais.)
28. Esta é uma observação fundamental. Os reformistas da terra a quem Steiner se refere são pessoas como Henry George e
Damaschke, que perseguem a socialização da renda e dessa forma a tornam coerente com a vida econômica atual. Até onde
alcançam as teses de Steiner, embora o objetivo de tais empreendimentos seja louvável, o efeito econômico não é atingido.
Socializar a renda é transferir os ganhos que provêm da terra — seja ela saudável ou deficitária — da esfera privada para a
pública. Todos os tipos de dificuldades sociais estão presentes neste cenário, mas para os propósitos desta nota o ponto principal
é que, economicamente falando, a meta deveria ser, em primeiro lugar, prevenir o crescimento de rendas artificiais — ou seja,
as rendas que derivam da capitalização da terra. Isto, de qualquer maneira, é o fundo da agulha do pensamento econômico,
pelo qual muito poucos já passaram — se é que algum o fez!. Nesta sociedade de propriedades hipotecadas, qual é o sentido de
‘terra’? Onde começa e acaba? É o solo, que pode ser trabalhado por um fazendeiro, ou o subsolo, que ele não pode? Por outro
lado, o subsolo pode ser escavado para abrigar depois os alicerces de um prédio. ‘Terra’ é a terra física onde o prédio se apoia,
esquecendo-se seu substrato, ou é mais a área arrendada à qual um indivíduo tem direito exclusivo ou partilhado de uso, seja
pagando uma renda, seja simplesmente alugando, hipotecando ou arrendando? Exercitar nossa mente neste ponto — ou melhor,
Notas e bibliografia 135
estruturar nossa própria economia de acordo com a solução ‘correta’ para este problema — é passar pelo fundo da agulha. É
uma necessidade do nosso tempo que as pessoas comecem a fazer justamente isto. (Ver também Rudolf Steiner, Sociology of
Land, New Economy Magazine, Set./Out. 1991.)
29. O trabalho de Steiner se apoiou amplamente no simples preceito de que o método da Ciência Natural, observa-
ção cuidadosa dos fenômenos externos, poderia ser aplicado aos fenômenos perceptíveis sem sentido aparente.
Enquanto o método poderia manter-se constante, o conteúdo e a natureza se modificariam. O método científi-
co aplicado ao mundo natural é Ciência Natural; aplicado ao mundo suprafísico, dá lugar à Ciência Espiritual.
30. Steiner fala da ideia de ‘associação’ em muitos contextos [...], mas também numa série de conferências intituladas O futuro
social [ed. brasileira em trad. de Heinz Wilda. São Paulo, Ed. Antroposófica, 1986]. Àqueles que desejem ver como o conceito de
economia associativa de Steiner se desenvolveu desde que estas conferências foram dadas, e como se relaciona com a economia
de mercado dos dias de hoje, seria interessante consultar Gaudenz Assenza, Beyond the Market, New Economy Publications,
1992.
31. [No sentido de ser] ‘independente’ ao invés de ‘livre’, porque o conceito de Steiner não é de libertação nem de conduta desconexa.
Não se trata de um laissez-faire, nem de uma ação autônoma que não reconhece limites a não ser quando obrigada a eles. O
conceito de liberdade de Steiner, quando aplicado ao capital, ao indíviduo/ser humano ou, como neste momento, à vida econômica
de maneira geral, não é separatista ou anárquico. Não importa como esteja o ser humano. Ele pertence a uma comunidade, e
liberdade não implica o presumir deste fato. Pelo mesmo princípio, o capital torna-se livre num certo ponto do processo eco-
nômico — isto é, alcança uma existência por direito próprio. Mas isto não o desculpa, remove ou aliena do processo econômico
como um todo. Muito pelo contrário. Sua independência nasce precisamente porque nesse momento ele pode desempenhar um
papel básico neste processo, como se desde a sua criação fosse essencialmente um efeito. Da mesma forma, a ideia de Steiner
de uma vida econômica autodirecionada, autônoma [...], não significa que haja uma vida econômica separada das considerações
gerais de poder e direito, cultura e política. Conduz à necessidade de redefinir o contexto político e cultural da vida econômica,
de maneira a poder desdobrar-se a seu próprio ritmo. Independência [...] não quer dizer incoerência ou conduta egoísta. Quer
dizer que quando alguma coisa é independente pode, à sua própria maneira e segundo sua própria natureza, contribuir com
alguma coisa nova para a sociedade, já que depende dessa sociedade para toda a sua existência.
32. Nos anos que mediaram desde 1922, o Estado cumpriu, é claro, muito de seu papel tirânico, tanto no sentido extremo soviético
quanto na sutil criação de empregos do mundo ocidental. Este processo foi acelerado por uma outra tirania — a do ‘mercado’.
Sem alguma coisa parecida com a visão de Steiner, a mão de obra é, com ou sem vontade, transferida, em nossos dias, de
acordo com as exigências da política pública ou do caráter errante do mercado. Neste processo, não é dada qualquer atenção
ao verdadeiro bem-estar da força de trabalho, nem os preços são estabilizados a longo prazo. Aqui se pode ver como os acon-
tecimentos se têm desenvolvido de maneira trágica, se comparados com o verdadeiro potencial que temos para resolvê-los.
Sexta conferência
33. Atenção, leitor! Como já foi dito na nota 20, ‘empréstimo’ aqui não é sinônimo de, por exemplo, empréstimo bancário. ‘Emprésti-
mo’ refere-se a uma categoria econômica num nível mais alto. Inclui, embora não seja sinônimo, esses tipos de empréstimos aos
quais estamos acostumados. ‘Empréstimo’ é um conceito de ordem, não um instrumento financeiro. Os empréstimos bancários
podem — e muitas vezes acontece — ter um caráter de não-empréstimo. Tornam-se doações quando perdoados, por exemplo;
e valores adquiridos quando o preço do empréstimo é tão grande quanto seu retorno — ou seja, quando os benefícios daquele
que toma emprestado se ressentem das cargas de juros excessivas, que retiram dele mais valor do que ele conseguiu produzir.
34. [Em minha tradução inglesa] alterei esta passagem [para “...deve ser colocado à disposição daqueles que produzem cultura no
lato sentido da palavra — aqueles que, como os professores, trabalham numa instituição cultural: escolas, teatros e similares”]
numa tentativa de deixar mais claro o que significa ‘instituição cultural livre’, um conceito que Steiner coloca sem maiores
introduções ou explicações.
Sétima conferência
35. Steiner fala de Handwerk. Poderia ser traduzido como arte ou artesanato, com seus correlatos artista e artesão. Uma tradução
econômica verdadeira, no entanto, é manufatura — uma criação humana de artefatos, independentemente de quanto tendam
mais ou menos para o lado artístico ou industrial. [Em inglês] opto por usar manufacture num sentido amplo e variado, para
marcar a progressão econômica da qual Steiner falava, desde os caçadores que simplesmente retiram o que a natureza dá —
embora a coleta já se aproxime da agricultura —, agricultores que trabalham extensivamente mas não produzem arte — no-
vamente esqueça toda e qualquer artificialidade introduzida pela engenharia genética de plantas e animais —, manufatores
que fazem coisas, os ‘ingredientes’ que se originam na terra mas que, na linguagem econômica, são produtos de trabalho e
inteligência, e assim por diante, até se chegar a, digamos, o padre ou o professor, cujo produto material é desprezível, mas cujo
efeito econômico é no entanto extraordinariamente real.
36. Vá com cuidado! ‘Emprestar’ pode conduzir a mente ao campo dos métodos atuais de transferência do uso do capital de uma
136 Rudolf Steiner
pessoa para outra. O que Steiner destaca é que o capital não é um bem a ser usado ou algo a ser possuído, mas uma realidade
que permanece. A questão é como fazer que este capital seja acessível ao indivíduo, de maneira a maximizar seu uso produtivo,
e como transferi-lo de um indivíduo a outro — no ‘mercado de capitais’, hoje, estas ações são deficientes e injustas; o capital é
emprestado por quem o pode emprestar. O que Steiner tinha em mente não pode ser totalmente compreendido até que se ima-
gine qual agente econômico estaria substituindo o mercado de capitais quando o capital emprestado assumisse a cor econômica
que Steiner lhe imaginava, e não a coloração do poder e da justiça que normalmente tem.
37. Steiner introduz o conceito da vontade humana como uma forma de aumentar a possibilidade de uso da atividade liberada.
Quer ele com isto dizer que a vontade humana não é condicionada unicamente pelo ambiente externo ao ser humano. É au-
tossuficiente, latentemente livre, e por isso capaz de seguir os requisitos de sua própria natureza e necessidades. Quanto mais
nos afastamos das atividades ligadas à terra e nos dirigimos rumo à atividade liberada, mais livre será a vontade que implica
esta atividade.
38. Steiner refere-se à inadequação econômica da Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial.
Oitava conferência
39. Isto não significa que o pensamento econômico nos induza à ideia de que uma associação econômica pode existir simplesmente
por ter esse nome. O nome pode rapidamente ser relacionado com um cartel. A questão é que são indispensáveis uma certa
linha de trabalho e uma certa meta geral, que podem ser chamadas de economia associativa. Chamar uma coisa de associação
não lhe confere o caráter que Steiner tinha em mente. No abstrato, o termo tem pouca utilidade quando separado do conceito
de unidade de que Steiner falava. A vida econômica dos nossos dias inclui certamente muitos fenômenos que justificadamente
poderiam fazer parte de uma economia associativa, mas que não usam tal denominação. (Ver Beyond the Market, New Economy
Publications, 1992.)
40. Steiner falava de tempos pré-‘mercado’.
41. No caso do produtor a demanda é uma demanda por dinheiro; no caso do consumidor, é uma demanda por produtos.
42. Pré-Keynes!
Nona conferência
43. Unruh, Hans Viktor von (1806-1886), político e escritor.
44. Siemens, Georg von (1839-1901) e Gwinner, Arthur von (1856-1931), ambos banqueiros.
45. Hilferding, Rudolf (1877-1943), financista e estadista.
Décima conferência
46. Forster, Friedrich Wilhelm (1869-1966), pedagogo e pacifista.
47. O espaço não permite uma abordagem mais ampla e completa desta ideia, com a qual, abertamente, a classe médica não con-
corda. No entanto, é uma observação fundamental da análise do ser humano que Steiner faz, e a analogia que proporciona para
o entendimento do organismo social humano é uma das que lhe são mais queridas.
mais baratos. Por isso se diz que a cultura salva o trabalho. A ideia, é claro, levada até aos estratagemas como o da ‘redução
da jornada de trabalho’, é uma manifestação do pensamento inspirado, da programação inteligente e assim por diante. E tudo
isto é corroborado pela existência do lazer, ao menos entre as populações que dele podem desfrutar. As referências de Steiner
podem parecer antiquadas — mesmo ele deixando claro que está falando dos costumes de uma aldeia ‘primitiva’ — mas suas
afirmações não perdem por isso validade nem por isso são refutadas. O fato continua: o valor econômico da atividade liberada
[ou seja, do trabalho intelectual] consiste no trabalho que poupou.
65. Nossa interpretação das teses de Steiner deve aqui ser muito cuidadosa. Simplisticamente, poder-se-ia pensar que com ‘trabalho
na terra’ ele se refere somente a trabalho agrícola. Pensar assim acarreta o risco de considerar o agricultor ou a comunidade
agrícola num estatuto de ‘caso especial’ que o colocará num posto diferenciado do resto da sociedade ou o desculpará das exi-
gências da vida econômica. Não acredito que nenhuma dessas interpretações, seja na teoria ou na prática, fosse a pretendida
por Steiner. Num nível mais técnico, sugerir a primazia da agricultura é, para Steiner, preferir a economia agrária ao moneta-
rismo, falar de trigo em vez de ouro. Não obstante a décima quarta conferência (ver nota 72), tudo o que ele diz ao longo destas
conferências contradiz esta interpretação. Steiner procura resolver o contraste entre o trigo e o ouro. Com essa finalidade, a
agricultura (a categoria econômica, não o agricultor) é vista por Steiner num contexto específico, fora do processo de troca como
tal — uma dádiva para este, na verdade. Pela mesma razão, a inteligência também é uma dádiva. Tratar a agricultura como
ela deveria ser tratada economicamente — isto é, como algo externo ao processo econômico — não é a mesma coisa que dar à
comunidade agrícola um status especial, que na verdade é um tipo de fisiocracia tardia (ver décima primeira conferência).
* Conforme mencionado no preâmbulo a estas notas, as discussões (em número de seis) realizadas após algumas confe-
rências não estão incluídas no presente volume. (N.E.)
Ilustrações
Figura 2
azul vermelho
vermelho roxo
Figura 1
valor 1 valor 2
Preço
capital
al
pi t o
do c ans um
co
Figura 4
espírito
natureza trabalho
capital
em
pre
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Figura3
a tra
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meios de
produção
espírito
Figura 5
me trabalho
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Figura 6
Figura 7