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Economia viva

Rudolf Steiner

Economia viva
O mundo como organismo econômico único
Catorze conferências proferidas em Dornach (Suíça),
de 24 de julho a 6 de agosto de 1922

3ª edição

Tradução de
Heinz Wilda
Título original:
Nationalökonomischer Kurs
© 1961 Rudolf Steiner Nachlassverwaltung, Dornach
5ª ed. 1979, Rudolf Steiner Verlag, Dornach (Suíça)
GA-Nr. 340 — ISBN 3-7274-3400-7

Direitos desta tradução reservados à


Editora Antroposófica Ltda. — Rua da Fraternidade, 174
04738-020 São Paulo - SP — Tel./Fax (11) 5687-9714
www.antroposofica.com.br — editora@antroposofica.com.br

Cotejo da tradução:
Günter Kollert (com edição original)
Josiana Arippol (com edição inglesa)
Jos Schoenmaker (com edição holandesa)
Editoração: Ramon Negreiros
Notas numeradas:
© 1993 New Economic Publications, Sussex
Tradução: Ana Vieira Pereira
Revisão e adaptação: Jacira Cardoso

1ª edição: 1995; 2ª edição: 1998

3ª edição — 2006

ISBN 85-7122-054-9 (da coleção)


ISBN 85-7122-104-9 (do volume)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Steiner, Rudolf, 1861–1925.


Economia viva : o mundo como organismo econômico
único : catorze conferências proferidas em Dornach (Suíça),
de 24 de julho a 6 de agosto de 1922 / Rudolf Steiner ;
tradução de Heinz Wilda. — 2. ed. — São Paulo : Antroposófica,
1998. — (Rudolf Steiner : obra geral)

Título original: Nationalökonomischer Kurs.


Bibliografia.
ISBN 85-7122-054-9 (obra completa) —
ISBN 85-7122-104-9 (volume)

1. Antropossofia 2. Economia 3. Economia – Discursos,


ensaios, conferências 4. Economia mundial
I. Título. II. Série.

98-2662 CDD-330.01

Índices para catálogo sistemático:


1. Economia : Análise teórica 330.01
Sumário

Nota à edição brasileira ............................................................................................................................9

Primeira conferência (24 de julho de 1922)


Do industrialismo à economia mundial ........................................................................................................11

O surgimento da Ciência Econômica. Os três períodos da vida econômica moderna: economia instin-
tiva (Inglaterra), economia industrial e economia estatal (Alemanha). Contraste entre Inglaterra e
Alemanha no século XIX. Transições instintivas e conscientes para o industrialismo. O solo virgem
da Índia e a antiga economia agrária da Europa Central. A emergência do Estado na economia alemã
em lugar dos ideais de 1830 e 1840 (liberalismo). A inabilidade para ingressar na economia mun­dial.
A ausência de contrastes entre âmbitos da vida, particularmente entre a vida cultural, a jurídica e a
econômica. A ordem social tríplice. Limitações no pensamento econômico. Economia e teoria da luz.
Inviabilidade dos conceitos científico-naturais. Invalidade das regiões econômicas isoladas. O mundo
como um organismo econômico e social global.

Segunda conferência (25 de julho de 1922)


O processo econômico ............................................................................................................................19

A questão do preço e a impossibilidade de sua definição. Os três fatores do processo econômico: natu-
reza, trabalho e capital. O processo econômico em moto perpétuo. A troca como essência da economia.
Flutuação de preços. A teoria usual acerca de terra, trabalho e capital. Economia ani­mal. Trabalho
aparente. Trabalho humano excedente à provisão pró­pria. A insensatez da concepção marxista do tra-
balho. A irrelevância do trabalho em si. Trabalho direcionado pelo espírito: criação de valor eco­nô­mico.
Intercâmbio de valores. Preço e interação de valores. Estática e movimento na economia. A polaridade
entre a natureza e o capital.

Terceira conferência (26 de julho de 1922)


A Ciência Econômica ............................................................................................................................27

A forma própria da Ciência Econômica. Ética e Ciência Natural. Religião e economia na Antiguidade.
Distinção entre mandamento e lei. A emancipação do direito e do trabalho em relação à vida religiosa.
O surgimento do egoísmo e a busca da democracia. Divisão do trabalho e altruísmo. Trabalho indi-
vidual para a comunidade. Impossibilidade econômica do egoísmo. Divisão do trabalho e altruísmo.
Contradição entre egoísmo e economia mundial. Trabalho e autossustento. O preço médio. O comer­
ciante intermediário.

Quarta conferência ( 27 de julho de 1922)


A divisão do trabalho e a criação de valores ......................................................................................................35

O efeito barateador da divisão do trabalho. Origem do capital pela divisão do trabalho. O capital
emancipado da terra pelo espírito. Capitalismo e finanças. Dinheiro: espírito realizado. O espírito
valorizando o capital. Investimentos. Empréstimos. A circulação do capital. A diversifi­ca­ção de
capacidades no trabalho. A relação entre dois polos de valor, mer­cadorias e dinheiro. Natureza
essencial da mercadoria e do di­nheiro. Mobilidade de pensamento. Observação interior do processo
e­conômico.

Quinta conferência (28 de julho de 1922)


A produção e o consumo de valores .................................................................................................................45

A polaridade entre produção e consumo. O processo econômico como processo orgânico. Valorização e
desvalorização. Valores criados por tensão e movimento. Analogia entre cinética e energia potencial.
Crédito pessoal para projetos e taxa de juros. Crédito real. Estancamento do capital em terras e seu
desaparecimento no espírito. A inexistência de valor da terra. Valores reais e valores aparentes. As-
sociações. Distribuição da força de trabalho. Realocação de habilidades.

Sexta conferência (29 de julho de 1922)


O preço correto ............................................................................................................................53

A fórmula do preço correto. A oposição entre terra capitalizada e produção de bens. Duas taxas de juros.
O significado econômico da atividade intelectual. Consumidores puros. Bens e forma de pagamento.
Pagar, emprestar, doar. Capital e empréstimo. Vida cultural e doação. Doação: juros sobre a terra.
Associações regulando as doações.

Sétima conferência (30 de julho de 1922)


Os fatores da formação de preço ....................................................................................................................61

Compra, empréstimo e doação, três fatores da formação de preço. Os fatores do repouso. A ficção
do preço do trabalho. Determinação recíproca de valores. Produtos do trabalho. O preço correto
e a falsificação do preço. Origem do arrendamento. Arrendamento como doação compulsória.
Cria­ção de renda inerente ao processo econômico. A agricultura como entidade singular. A des-
valorização constante do capital industrial. Autossustentação com agricultura. A necessidade de
estabelecer o equilíbrio. Meios de produção. Capital industrial. Mercadorias. Bens. A necessidade
das associações.

Oitava conferência (31 de julho de 1922)


Sobre oferta e demanda ............................................................................................................................ 69

Conceitos econômicos vigentes. A ideia de oferta e demanda. Oferta, demanda e preço como fatores
primários. O papel do direito. O papel das capacidades individuais. Impossibilidades econômicas:
permuta entre direitos e mercadorias, entre capacidades e direitos. ‘Mais-valia’: conceito moral, e não
econômico. Ciência Econômica e Ciência Natural. Associações para produção, consumo e distribuição.
A economia da troca, do dinheiro e das capacidades humanas.

Nona conferência (1 de agosto de 1922)


As formas de capital ......................................................................................................................................77

Valores indiretos nas relações econômicas. Conceito de ‘economias regio­nais’. Distância entre despesa
e receita. O papel da doação. A associação. Capital mercantil (Inglaterra), de empréstimo (França) e
industrial (Alemanha). Capital de empréstimo e autoridade. Capital industrial. Matérias-primas
e conceitos de poder. A procura de mercados e a prudência humana. Capital mercantil e competição. O
surgimento da concorrência. O controle financeiro subtraído ao ser humano. A ‘circulação monetária
sem sujeito’ e o ‘imperialismo sem objeto’.

Décima conferência (2 de agosto de 1922)


Das associações ......................................................................................................................................85

Circulação de valores. Lucro. O lucro em ambos os lados da troca. Criação de valores pelo intercâmbio.
Transformação de mercadoria em dinheiro. As associações e o ‘senso comum objetivo’. Vantagem (lucro)
como meio de pressão. Capital de empréstimo (empreendimento) como meio de sucção. Interesse, reci-
procidade humana e empréstimo. Imaginação e juízo econômico. Altruísmo objetivo em lugar de moral
subjetiva. Ordem social trimembrada: a vida econômica entre a vida jurídica e a vida cultural-espiritual.

Décima primeira conferência (3 de agosto de 1922)


As condições e consequências de uma economia mundial .....................................................................93

Evolução da vida econômica. Economias privadas. Economias nacionais. Economias estatais. O Es-
tado como organismo econômico e cultural. Vantagem mediante a consolidação das economias. David
Ricardo e Adam Smith. A Inglaterra como líder do comércio mundial. Origem do padrão-ouro para
as moedas. Transição do comércio mundial para a economia mundial. Economia mundial como o fim
da consolidação. Economia mundial como uma economia fechada. Relação entre mercadorias e
dinheiro. A não-depreciação do dinheiro. Consumo total por toda a humanidade. Inadequação da
mentalidade econômico-nacional para a economia mundial. Economias fechadas e doações livres.
A não-capitalização da terra. Relação entre produção de alimentos, doações livres e vida cultural.

Décima segunda conferência (4 de agosto de 1922)


Dinheiro ......................................................................................................................................103

Dinheiro e preço. Fatores subjacentes à formação de preço. A valorização do dinheiro. Dinheiro como
meio de troca – concorrente desleal da mercadoria. Dinheiro de compra, dinheiro de empréstimo e
dinheiro de doa­ção. A transição do dinheiro de empréstimo para dinheiro de doação. Correção da
função do dinheiro. O envelhecimento e a renovação do dinheiro. O dinheiro velho como dinheiro
de doação. Administração as­so­ciativa do empréstimo e da doação. Dinheiro e controle da economia.

Décima terceira conferência (5 de agosto de 1922)


A economia do espírito ......................................................................................................................................113

O valor econômico das produções intelectuais. A premissa das necessidades culturais. O cultivo do
solo como ponto de partida para a atividade econômica. A atividade cultural-espiritual como trabalho
economizado. A avaliação da produção intelectual pelo trabalho físico economizado. Relação entre
produção agrícola e produção intelectual. Balanços inerentemente compensatórios.

Décima quarta conferência (6 de agosto de 1922)


Conceitos vivos para a economia mundial .....................................................................................................121

A Ciência Econômica moderna. Conceitos vivos para a economia. Paralelismo entre valores reais e
falsos valores. Contabilidade mundial. Meio de troca, a qualidade principal do dinheiro. Valor nominal
e valor real do dinheiro. A polaridade entre trabalho despendido e trabalho economizado. A natureza
como base de valor. Trabalho acumulado e trabalho poupado. Dinheiro como soma total dos meios de
produção. Relação entre população e área de terra. Valores monetários: padrão-ouro e padrão natural.
Preços como relação entre número de habitantes e área cultivável. A economia como valor econômico.

Notas e bibliografia ......................................................................................................................................131

Ilustrações ......................................................................................................................................139
Nota à edição brasileira

O presente volume possui um caráter especial no âmbito das obras de Rudolf Steiner pu-
blicadas em português. Reproduzindo na íntegra um curso ministrado a estudantes de Economia
há mais de setenta anos — o que a priori poderia sugerir obsolescência ou inadequação a este fim
de século —, sua necessidade e atua­lidade se revelam imediatamente nas primeiras páginas. De
fato, a grande maioria das questões econômicas que preocupavam o mundo em 1922 persiste ainda
hoje com a mesma — se não maior — intensidade, e sua solução ainda parece longínqua apesar
dos esforços de especia­listas e autoridades governamentais para encontrá-la. Inflação, padrões
monetários, mercados de trabalho e tantos outros são assuntos que desafiam e comprometem a
estabilidade não só de países ou comunidades econômicas, mas de todo o Planeta como cenário do
intenso intercâmbio gerado pela economia moderna.
É com grande surpresa que se constata, nesta série de conferências, quão à vontade Ru-
dolf Steiner — mais conhecido como pensador e filósofo — se movimenta nesse complexo âmbito
de realidades e conceitos que povoam o mundo econômico. E é propondo a observação a partir de
dentro dos processos que ele vem dar sua grande contribuição para um enfoque vivo e realmente
prático dos problemas dessa área. Aí reside o caráter todo peculiar de suas observações: fazer
ver a qualidade realmente econômica dos fatos, despojando-os de interesses políticos, culturais
e outros — pois a economia contém intrinsecamente interesses próprios e, para ser saudável em
si mesma, deve pautar-se por evidências simples e objetivas, inerentes à sua própria natureza.
E a esta última pertence, dentre outras, a tendência à integração, à eliminação de barreiras,
num contínuo fluir interativo que pressupõe — sem qualquer interferência da moral ou da
ética — o altruísmo (sic!) em benefício exclusivo das próprias relações econômicas.
É com o objetivo de proporcionar — tanto a especialistas quanto a interessados em Economia
— o acesso a esta contribuição diferencia­da que empreendemos esta edição, num esforço conjunto
entre editores e consultores econômicos para um objetivo que julgamos plenamente justificado e
gratificante. E não é sem razão que intitu­lamos este livro Economia viva: seus enfoques partem
verdadeiramente da realidade palpável, deixando de lado qualquer abstração inócua.
A tradução da obra foi realizada inteiramente a partir do original em alemão, com posteriores
cotejos de apoio com as versões inglesa e holandesa e, finalmente, com revisão e adaptação finais
com vistas à melhor fluên­cia e compreensibilidade possíveis. A estrutura em conferências foi man-
tida, adotando-se títulos para as mesmas em função do assunto principal tratado em cada uma
delas. As notas de rodapé visam a subsidiar o leitor em aspectos importantes ou curiosos. Além
disso incluímos, no final do livro, notas numeradas extraídas da tradução inglesa Economics, de
Christopher H. Budd (New Economy Publications, Sussex, editora à qual agradecemos a autori-
zação). Conforme se explica na introdução às notas, estas também foram devidamente adapatadas
à presente edição brasileira.
As figuras aludidas no texto encontram-se nas páginas finais.
Na expectativa de que este trabalho possa ampliar as perspectivas diante dos complexos
desafios econômicos de hoje, convidamos o leitor a conhecer o claro e competente pensamento de
Steiner a respeito da matéria.

Os editores
1 Do industrialismo à economia mundial
24 de julho de 1922

Hoje quero iniciar fazendo uma espécie de introdução, para amanhã passar ao
1. que, de certo modo, deverá constituir um tratado global sobre questões sócio-econômicas
que o homem moderno é le­vado a formular para si mesmo.
A ‘Ciência Econômica* tal como se fala a seu respeito na atua­lidade é, de fato,
uma criação recente. No fundo ela não surgiu senão na época em que a vida econô-
mica dos povos modernos começou a tornar-se muito complexa em comparação com
2.
as con­dições econômicas de tempos anteriores. E como o presente curso se destina,
em particular, aos estudantes de Economia, será necessário demorar-nos, à guisa de
introdução, na peculiaridade do pensamento econômico moderno.
Não será necessário retrocedermos muito na História para per­ceber que já no
século XIX a vida econômica se trans­formou com relação a condições anteriores. Basta
os Senhores se lembrarem de que em certo sentido a Inglaterra, por exemplo, estava
constituída essen­cialmente de modo moderno, quanto à sua economia, já na primeira
metade do século XIX; de maneira que, no decorrer daquele século, pouca coisa mudou
radicalmente na estrutura econômica inglesa. As grandes questões que nos tempos
modernos se relacionam, em sentido social, com os problemas econômicos, já existiam
na Inglaterra na primeira metade do século XIX; já naquele tempo, as pessoas que
se empenhavam em desenvolver uma mentalidade moderna a respeito de assuntos
sócio-econômicos podiam fazer seus estudos na Inglaterra, ao passo que, por exemplo,
na Alemanha tais estudos não teriam surtido frutos. Na Inglaterra, foram particu-
larmente as importantes relações comerciais o que se haviam formado até o primeiro
3. terço do século XIX, tendo-se criado, no âmbito da economia inglesa, uma sólida base
no capital comercial como correlato da formação da estrutura co­mercial. Lá não havia
ne­cessidade de se recorrer, para a economia moderna, a um ponto de partida diverso
do que resultara, como capital comercial, das condições comerciais consolidadas que,
conforme dissemos, já existiam até no primeiro terço do século XIX. A partir dessa
época, tudo na Inglaterra transcorreu com uma certa consequên­cia lógica. Contudo não
devemos es­quecer que toda a economia inglesa só foi possível na base construída sobre
a relação da Inglaterra com as colô­nias, em especial com a Índia. Toda a economia na-
cional inglesa não teria sido possível sem essa relação da Inglaterra com suas colônias;
em outras palavras, a economia nacional inglesa, com sua capacidade de desenvolver
grandes núcleos de capital, foi construída sobre a possibilidade de poder recorrer a
regiões economicamente virgens. Não devemos es­quecer-nos disso, mormente se agora
quisermos passar da eco­nomia nacional inglesa para a alemã.
Estudando esta última, verificaremos que no primeiro terço do século XIX ela ainda
4. correspondia aos costumes econômicos tradicio­nais tal qual existiam essencialmente

* A expressão original de Steiner, Nationalökonomie (Economia Política), deve-se à denominação


da cadeira da qual seus ouvintes eram alunos. A tradução ‘Ciência Econômica’ parece-nos mais adequada
aos conceitos do próprio Autor. (N.R.)
12 Rudolf Steiner

desde a Idade Média. Na Alemanha do primeiro terço do século XIX, os costumes e as


relações econômicas ainda eram inteiramente antiquados. Por isso, todo o tempo de
vida econômica na Alemanha era diferente do da Inglaterra durante o primeiro terço
e ainda na primeira metade do século XIX. Na Inglaterra já se contava com costumes
de vida rapidamente mutáveis, por assim dizer. A tendência geral da vida econômica
permanece essencialmente a mesma, porém já é orientada para hábitos rapidamente
mutáveis. Na Alemanha estes ainda permanecem conservadores. A vida econômica
pode continuar a passos de tartaruga, adaptada à circunstância de as condições téc-
nicas permanecerem mais ou menos inalteradas por muito tempo, e de tampouco as
necessidades se alterarem rapidamente.
Ora, no segundo terço do século XIX ocorre uma revira­volta nisso. Com o de-
senvolvimento da mentalidade industrial, houve uma rápida assemelhação com as
5. condições inglesas. Na pri­meira metade desse século a Alemanha era essencialmente
um país agrário, mas rapidamente se transformou em país indus­trial — muito mais
rapidamente do que qualquer região da Terra.
Todavia, isso ainda estava relacionado com outra coisa. Poder-se-ia dizer que na
Inglaterra se deu instintivamente a transição para uma concepção industrial da economia
nacional. No fundo, não se sabia como isso ocorreu; foi tal qual um fenômeno natural.
Na Alemanha, é verdade, reinava o elemento medieval no primeiro terço do século XIX,
sendo ela um país agrário; porém, paralelamente ao fato de as condições econômicas
exteriores serem de tal molde que quase po­diam ser chamadas de medievais, o pensar
dos homens modificava-se profundamente. Os homens conscientizavam-se da necessidade
de so­brevir algo novo, pois o que existia já não era oportuno; assim, a transformação
nas condições econômicas na Alemanha do segundo terço do século XIX deu-se muito
mais conscientemente do que na Inglaterra. Na Alemanha as pessoas estavam mais
cônscias — na Inglaterra elas nada sabiam — do modo pelo qual haviam entrado no
moderno capitalismo. Se os Senhores lessem hoje o que, naquela época, se discutia sobre
a chegada do industrialismo, teriam a impressão de ser muito esquisita a maneira de
6. pensar das pessoas na Alemanha daquele tempo. Elas encaravam francamente como
uma perfeita libertação dos homens, como a salvação da humanidade — chamando de
liberalismo, de democracia — o desvencilhar-se de ligações antigas, da tradi­ção corpora-
tiva, e a transição para a posição perfeitamente livre — como o chamavam — do homem
na vida econômica. Por isso, jamais observamos na Inglaterra teoria alguma sobre a
economia nacional tal como a desenvolveram pessoas que receberam sua formação no
auge daquela época que acabo de caracterizar. Schmoller1, Roscher2 e outros extraíram
suas concepções do apogeu dessa economia nacional liberalista.** O que edificaram,
fizeram-no em plena consciência. O inglês teria considerado insípida tal teoria eco-
nômica. Teria dito que não é apropriado refletir sobre tais coisas. É interessante, por
isso, observar a diferença radical no tratamento de tais questões na Inglaterra — quero
mencionar apenas pessoas já bastante teóricas como Beaconsfield3 — e na Alemanha,
onde falava gente como Richter4, Lasker5 e até Brentano.6 Portanto, na Alemanha se
entrou conscientemente nesse segundo período.
Sobreveio então o terceiro período, o período estatal propriamente dito. É que ao
7. se aproximar o último terço do século XIX o Estado alemão se consolidou, no fundo,
pelas meras vias do poder. Não se consolidou o que os idealistas de 1848 ou também

** Não relacionada com a filosofia política britânica de mesmo nome (v. tb. nota 49). (N.E.)
1. Do industrialismo à economia mundial 13

já dos anos trinta pretendiam; o Estado se consolidou pelas meras vias do poder. Esse
Estado também se apoderou gradativamente — em plena consciên­cia ­— da vida eco-
nômica, sendo essa vida totalmente permeada em sua estrutura, no último terço do
século XIX, pelo princí­pio oposto ao anterior. No segundo terço havia-se desenvolvido
com base nas concepções liberalistas, mas agora de­senvolvia-se inteiramente sob as
condições do princípio de Estado. Era isso o que conferia a marca global à vida econô-
mica na Alemanha; ocorre que toda essa evolução englobava elementos de consciência.
Não obstante, tudo isso também se passava inconscientemente.
O ponto mais importante nisso tudo é que se criava — não apenas no modo de
pensar, mas em toda a maneira de agir economica­mente — um contraste radical entre
a economia inglesa e a que surgia como economia da Europa Central. Ora, era jus-
8. tamente este contraste que indicava a direção em que se desenrolavam as relações
econômicas. Toda a economia do século XIX, tal qual se projetou pelo século XX adentro,
não teria sido imaginável sem o antagonismo entre o oeste e o centro europeus: o modo
de vender, de apresentar as mercadorias, de fabricá-las.
E assim a economia inglesa se tornou paulatinamente possível com base na pro-
priedade da Índia, e agora sua ampliação é devida ao contraste entre as economias do
9. oeste e do centro europeus. Ora, a vida econômica não se baseia no que se percebe na
atividade do âmbito reduzido de cada região; ela se baseia nas grandes inter-relações
do mundo lá fora.
Foi com esse antagonismo que o mundo se abriu à era da eco­nomia mundial —
mas sem poder entrar nela. É que na rea­lidade a economia mundial baseava-se nos
elementos instin­tivos que se ha­viam desenvolvido e que acabo de apontar mencionando
o antagonismo entre a Inglaterra e a Europa Central. No século XX existia praticamente
o fato — sem que o mundo o soubesse ou percebesse — de esse antagonismo se tornar
cada vez mais presente, mais profundo. Surgiu então a seguinte questão im­portante:
10. as condições econômicas resultaram desses contrastes, projetando-os mais e mais para
o futuro; porém, paralelamente à constante recrudescência desses antagonismos, não
se conseguia achar um modo de levar adiante uma cooperação econômica. Era essa a
grande questão do século XX: o contras­te havia cria­do a economia e a economia havia
aumentado o contraste; o contraste carecia de uma solução. E levantou-se o problema:
como é que se solucionam os contrastes? Ora, a evolução histórica demonstrou que os
homens não foram capazes de solucionar o problema.
Tal como eu falei agora dever-se-ia ter falado em 1914, ainda na época da paz.
Mas então sobreveio, em lugar de uma solução, o resultado da incapacidade de se
11.
achar uma solução no sentido da História Universal. Encarando-se a coisa do lado
econômico, foi essa a doença que sobreveio então.
Ora, no fundo a possibilidade de qualquer evolução se deve a contrastes. Quero
mencionar apenas um desses con­trastes: pela razão de a economia inglesa se haver
consolidado numa época bem anterior à da Europa Central, os ingleses não eram
capazes de estipular para certas mercadorias preços tão baixos como era o caso na
12. Alemanha, resultando daí a grande oposição da concorrência; porque o made in Ger-
many era questão de concorrência. E uma vez terminada a guerra, surgiu a pergunta:
pois bem, agora que os homens se trucidavam em vez de buscar uma solução por meio
dos antagonis­mos, como é que poderão levar a cabo as coisas? Eu sentia então que
primeiro deveríamos encontrar as pessoas capazes de compreender os contrastes
14 Rudolf Steiner

que teriam de ser criados numa outra esfera; porque a vida é baseada em contras-
tes, e só pode existir quando há contrastes interagentes. E foi as­s im que em 1919
ocorria dizer: apontemos então para os contrastes para os quais, em verdade,
tende a evolu­ção da História Universal — os contrastes no âmbito econô­mico, no
jurídico-político e no espiritual-cultural, ou seja, os contrastes da tri­membração.7
O que, no fundo, justificou naquela época a ideia de que a tri­membração deveria
ser introduzida no maior número possível de cabeças? Quero dar uma explicação exte-
rior: o mais importante teria sido introduzir a trimembração no maior nú­mero possível
de cabeças antes de se manifestarem as con­sequências econômicas que sobrevie­ram
desde então.8 Devemos lembrar--nos de que, na época em que a trimembração seria
mencionada pela primeira vez, ainda não nos encontrávamos diante das dificuldades
monetárias existentes hoje; pelo contrário: ti­vesse sido compreendida a trimembração
naquele tempo, as di­ficuldades jamais poderiam ter surgido. Porém deparávamo-nos
13. com a impossibilidade de as pessoas demonstrarem um senso realmente prático de
tais coisas. Procurávamos explicar a trimembração, e como resultado as pessoas per-
guntavam: ora, tudo isso é muito belo e nós o compreendemos; mas o im­portante seria
que controlássemos o declínio da moeda. Bem, a única coisa que se podia responder a
essa gente era: é isso o que pretende a trimembração. Acostumem-se à trimembra­ção;
pois ela constitui o único meio de oposição ao declínio da moeda. Era justamente esse
o propósito da trimembração; não obstante, as pessoas continuavam indagando como
se faria isso. Ora, elas não compreendiam a trimembração, em­bora não deixassem de
afirmar compreendê-la.
E hoje a situação nos obriga a dizer o seguinte: — Falando atual­mente para
pessoas como os Senhores, já não se pode fazê-lo da mesma forma como antes, pois
tornou-se necessária uma outra linguagem. É isto o que pretendo proporcionar-lhes
14.
nestas conferências. Pretendo mostrar-lhes como hoje a pessoa pode abordar tais
questões, especialmente diante de jovens que ainda têm a possibilidade de cola­borar
na estruturação do que, de algum modo, deve ser estruturado.
É da maneira como acabei de falar-lhes que se pode caracteri­z ar hoje uma
época como o século XIX, isto é, apontando para os con­tras­tes em sentido histórico
e econômico. Porém poder-se-ia remontar ­também a tempos anteriores, abrangendo
15. a época em que as pessoas começaram a refletir sobre a economia. Contemplando
a história desta última, vemos que outrora tudo ocorria de maneira instintiva. A
com­plicação da vida econômica só se deu propriamente na época ­mo­der­­­­­­­na, quando
as pessoas consideraram necessário refletir sobre essas coisas.
Minhas palestras destinam-se em primeiro lugar a estu­dantes, e por isso falo de
modo a fazê-los che­gar a compreender a Ciência Econômica. Portanto, quero ex­plicar
agora o que hoje importa es­sen­cial­mente. A época em que se deveria refletir sobre Eco-
16.
nomia era uma em que os pensamentos não mais conseguiam abarcar um campo como
esse. Simplesmente não havia mais as ideias necessá­rias para tal. Quero demonstrar-lhes
a justeza disto mediante um exemplo da Ciência Natural.
A coisa é a seguinte: — Como homens, possuímos nosso corpo físico, que tem
um peso como outros corpos físicos. Depois de um al­moço ele fica mais pesado do
17. que antes. Seria até possível conferir na balança. Isso quer dizer que participamos
da gravidade — uma qualidade de toda substância ponderável —, mas esta não
servi­r ia para muita coisa no corpo humano; quando muito, podería­m os passar
1. Do industrialismo à economia mundial 15

pelo mundo quase como autômatos, e não como seres conscientes. Já indiquei em
muitas ocasiões o que precisamos para formar conceitos dotados de valor — o que
é necessário para o homem poder pensar. O cérebro humano tem um peso de uns
1.400 gramas, se pesado isoladamente. Se deixássemos esses 1.400 gramas exercer
pressão sobre os vasos sanguíneos que se encontram na base da abóbada crania-
na, estes seriam esmagados. Não viveriam por um só instante caso nosso cérebro
fosse consti­tuído de forma a fazer, com seus 1.400 gramas, pressão sobre o crânio.
A existência do princípio de Arquimedes é uma grande dádiva para o homem, isto
é, o fato de todo corpo perder na água tanto de seu peso quanto pesa o líquido que
ele desloca. Portanto, um corpo imerso na água perde uma parte de seu peso cor-
respondente ao peso do corpo d’água de tamanho igual ao dele. O cérebro flutua
no líquido cerebral, perdendo nisto 1.380 gramas de seu peso; pois é esse o peso do
corpo d’água do mesmo tamanho do cérebro humano. A pressão que o cérebro exer-
ce sobre a base é de apenas 20 gramas, peso que a base consegue suportar. Se nos
perguntarmos agora para que serve isso, deveremos dizer que não conseguiríamos
raciocinar mediante um cérebro que fosse apenas massa ponderável. Não pensamos
mediante o que é substância ponderável, e sim mediante a impulsão, o movimento
ascensional. Primeiro a substância deve perder seu peso, para podermos pensar.
Pensa­mos mediante aquilo que levita da Terra.
Contudo, o estado de consciência estende-se por todo o corpo. O que é que nos torna
conscientes em todo o nosso corpo? Nosso corpo contém 25 trilhões de hemácias. Essas
25 trilhões de hemácias são diminutas; mesmo assim possuem peso, por conterem ferro.
Cada uma dessas 25 trilhões de he­mácias flutua no soro sanguíneo, perdendo tanto
18. de seu peso quanto desloca de líquido. Sendo assim, em cada uma dessas hemácias é
produzida uma impulsão 25 trilhões de vezes. O que impulsiona para cima, desse modo,
nos faz conscientes em todo o nosso corpo. Podemos dizer o seguinte: quando engolimos
alimentos, primeiro estes têm de ser despojados de seu peso e transformados, para po­
derem servir-nos. Essa é uma exigência do organismo.
Os homens desaprenderam de pensar dessa maneira e de con­siderar isso como
algo abalizado, na época em que se tornou preciso pensar em termos econômicos. Desde
19. então contaram exclusivamente com substâncias ponderáveis, não se preocupando com
a transformação sofrida, por exemplo, por uma substância no organismo, com respeito
a seu peso, pelo fato de estar sujeita à impulsão.
Mas há ainda o seguinte: — Recordando-se de seus estudos de Física, os Senhores
não ignorarão que na Física se fala de espectro. Através do prisma se produz uma gama
de cores: ver­melho, cor-de-laranja, amarelo, verde, azul, índigo, violeta. Na extensão
do vermelho ao violeta, o espectro parece luminoso. Também sabemos que para além
da área luminosa se supõem os raios assim chamados infra­vermelhos, e para além do
violeta os raios ultravioletas. Falando-se apenas de luz não se abrange, portanto, todo
20. esse fenômeno; deve-se dizer que a luz é polarmente transformada para os dois lados.
Deve-se mencionar que para além do vermelho a luz submerge no calor, e para além do
violeta nas reações químicas; e que nesse pro­cesso, por assim dizer, desaparece como
luz. Portanto, se alguém proferisse uma teoria exclusiva da luz, proferiria apenas um
aspecto — e, com isso, uma falsa teoria da luz. Na mesma época em que se deveria ter
começado a refletir sobre Economia, o modo de pensar da Física encontrava-se num
estágio que produzia uma falsa teoria da luz.9
16 Rudolf Steiner

Mencionei estes fatos pelo motivo de existir aqui uma analogia válida. Observem
essa... agora não economia humana, mas sim economia de pardais ou economia de
andorinhas! Trata-se também de uma espécie de economia; porém essa economia do
21. reino animal não tem muito valor para o reino humano. No caso do hamster, podemos
até falar de um capitalismo animal. O elemento essencial da economia animal consiste
em que a natureza oferece os produtos e o animal, como ser isolado, se apodera deles.
De certo modo o homem participa dessa economia animal, porém tem de superá-la.
A economia que pode começar por ser denominada econo­mia humana é compa-
rável ao que, no espectro, é visível como luz, enquanto devemos comparar com a parte
do infravermelho aquilo que ainda se estende para a natureza. Trata-se aí, por exemplo,
22. do campo da agricultura, do campo da geografia econômica, etc. Não é possível deline-
armos o estudo da eco­nomia rigorosamente nessa direção. Ele se estende a um campo
que deve ser apreendido de modo totalmente di­ferente. É isso o que se dá, por um lado.
Por outro lado, porém, ocorreu que sob nossas con­dições econômicas muito com-
plexas, de certo modo, os homens paulatinamente perderam o raciocínio econômico. Tal
como ao aproximar-se do ultravioleta a luz cessa de aparecer como tal, na economia
a atuação humana cessa de ser puramente econômica. Frequentemente expliquei de
que maneira aconteceu isso. Vemos tal fenômeno surgir real­mente apenas no século
XIX. Até então, a vida econômica é relativamente dependente da habilidade de cada
indivíduo. Um banco prosperava se houvesse um indivíduo capaz nesse banco. Cada
pessoa por si ainda tinha valor. Gosto de contar aquele bonito exemplo de quando uma
vez o Barão de Rothschild recebeu a visita de um emissário do rei da França. Este
23.
queria pedir um empréstimo. Roth­schild estava ocupado, tratando com um negociante
de couros, e solicitou que se pedisse ao emissário do rei para esperar um pouco. Então
o homem ficou muito indignado ao saber que devia esperar enquanto um comerciante
de couro estava na sala. Quando o criado veio e lhe pediu que aguardasse um pouco,
ele não acreditou. “Diga ao senhor Rothschild que eu venho como emissário do rei da
França!” Quando o criado trouxe novamente a resposta dizendo que ele esperasse, o
homem correu para dentro da sala exclamando: “Sou o emissário do rei da França!”
Rothschild disse: “Por favor, sente-se, pegue uma cadeira!” O homem repetiu: “Sou o
emissário do rei da França!” E Rothschild: “Por favor, pegue duas cadeiras!”
O que, naquela época, ocorria na vida econômica estava ligado conscientemente
à personalidade humana. Mas as coisas mudaram. Hoje em dia bem pouca coisa, na
totalidade da vida econômica, depende da personalidade isolada. A atua­ção humana na
economia já entrou fortemente naquilo que eu gostaria de equiparar ao ultravioleta.
Trata-se daquilo que tra­balha no capital como tal. As massas de capital trabalham por
24. si sós. Uma vida supraeconômica sobrepõe-se à vida eco­nômica, o que essencialmente
é devido à força própria das massas de capital. Por isso podemos dizer o seguinte: se
hoje quisermos real­mente compreender a vida econômica, deveremos encará-la como
colocada entre dois campos, dos quais um leva para baixo, à natureza, e o outro para
cima, ao capital. Entre estes encontra-se o que temos de apreender como a verdadeira
vida econômica.
Disso, porém, resulta que as pessoas nem sequer tinham a noção necessária para
delimitar, para situar corretamente a teoria eco­nômica como tal no âmbito de todos os
25.
conhecimentos. Pois veremos que, por curioso que pareça, somente aquela esfera que
ainda não cabe na atuação econômica propriamente dita, e que podemos equiparar ao
1. Do industrialismo à economia mundial 17

infravermelho, é que pode ser captada pela razão humana. Pode-se ponderar, quanto
a ela, da mesma forma como se ponderam outros processos: como se cultivaria a aveia, a
cevada, etc.; qual seria, na mineração, o melhor mé­todo para extrair as matérias-primas.
No fundo, é somente sobre isso que podemos refletir corretamente com a razão que
costumamos empregar na ciência dos tempos modernos.
Isso tem um imenso significado. Lembrem-se do que eu dei como sendo o conceito
de que se necessita na ciência. Nós ingerimos subs­tâncias pesadas como alimento. O fato
de elas nos serem úteis é devido à circunstância de constantemente perderem seu peso
26. dentro de nós, ou seja, de se transformarem completamente. A transforma­ção ocorre
de modo diferente em cada órgão. No fígado ocorre diferentemente do que no cérebro
ou nos pulmões. O organismo é diferenciado, e as condições variam para cada órgão.
Presenciamos uma constante alteração da qualidade correspondente aos vários órgãos.
Temos uma situação mais ou menos análoga ao falar, no âmbito de uma economia
nacional, do valor de uma mercadoria, por exemplo. É um absurdo definirmos uma
substância como o carbono e depois perguntarmos: como se comporta essa substância
27. dentro d­o corpo humano? Até em sua ponderabilidade o carbono se torna algo com-
pletamente diferente do que é lá fora; tampouco tem sentido inda­garmos o valor de
uma mercadoria: este varia dependendo de ela es­­tar exposta numa loja ou estar sendo
transportada de um lugar a ou­t­r­o.
As ideias da Ciência Econômica devem ser bem móveis. De­vemos perder o cos-
tume de construir conceitos que possam ser definidos. Devemos conscientizar-nos de
estarmos lidando com um processo vivo, e de que dentro de um processo vivo os con-
ceitos devem ser maleáveis. Ocorreu, porém, que as pes­soas procuravam apreender
os conceitos ‘valor’, ‘preço’, ‘produ­ção’, ‘consumo’, etc. pelas ideias existentes. Porém
estas de nada valiam; por isso não foi possível estabelecer uma teoria econômica. Não
podemos responder mediante os conceitos costumeiros, por exemplo, à pergunta: o que
28. é valor, o que é um preço? Devemos observar algo, re­lativamente ao valor e ao preço
que lhe correspondem, sempre na circulação em que se encontra. Se indagarmos, por
exemplo, pela simples qualidade física do carbono, não che­garemos a saber coisa alguma
do que acontece, por exemplo, no pulmão, embora o carbono se encontre também no
pulmão; é que toda a configuração é diferente no pulmão. Assim, o ferro encontrado na
mina é algo bem diferente do que no processo econômico. A economia se interessa por
qualidades do ferro bem diferen­tes de sua simples “existência”. Temos de contar com
fatores instáveis como estes.
Há 45 anos conheci uma família em cuja casa vi um quadro que, penso eu, havia
estado no sótão por uns 30 anos. Enquanto se encontrava no sótão e não havia ninguém
que soubesse algo desse quadro além de sua simples existência num canto, ele não tinha
valor algum no processo econômico; mas no momento em que os donos reconheceram
ser valioso, o qua­dro adquiriu um valor de trinta mil florins — uma soma apreciá­vel
naquele tempo. De que dependia o valor? Exclusivamente da opinião que as pessoas
29.
formavam do quadro. Este não havia sido removido de seu lugar — só que as ideias
formadas pelas pessoas a seu respeito mudaram. Assim, de objeto algum importa o que
ele ‘é’ por si só. E particularmente os conceitos da Ciência Econômica não podem ser
desenvolvidos com base na realidade exterior; eles têm sempre de ser desenvolvidos com
base no processo econômico. E dentro desse processo a coisa se transforma constante-
mente. Devemos, portanto, ter em conta a circulação no processo econômico antes de
18 Rudolf Steiner

falarmos de coisas como valor, preço, etc. Não obstante, observamos nas atuais teorias
econômicas que estas principiam com definições de valor e preço. O primeiro, porém,
de que precisamos é a descrição do processo econômico; só daí resultarão as coisas que
contam hoje em dia.
No ano de 1919 era lícito, pelo motivo de tudo ter sido destruído, pensar que as
pessoas se tivessem convencido da necessidade de começar com algo novo. Ora, não
foi assim que ocorreu. O reduzido número de pessoas que, naquele tempo, acreditavam
ser preciso começar de novo tampouco tarda­ram em recair no comodismo: nada se pode
fazer. Nesse meio tempo sobreveio a calamidade, a desvalorização da moeda nas regiões
do leste e do centro, e com isso uma completa revolução nas camadas sociais; porque
cada desvalorização tem de acarretar uma depauperação das pessoas que vivem daquilo
que equiparamos ao ultravioleta. Isso ocorre, em realidade, talvez com maior frequência
do que já se percebe hoje; mas é inexorável. Com isso somos remetidos, antes de mais
nada, ao conceito do organismo social, pela razão de ficar patente que a desvalorização
da moeda é uma consequência da antiga delimitação em Estados, a qual intervém no
processo econômico. É preciso compreendermos esse processo, mas primeiro devemos
compreender o organismo social. Ocorre que o conceito de organismo social, em todas as
30.
teorias econômicas, de Adam Smith10 até às mais modernas, em realidade se restringe
a pequenas regiões. Elas nem sequer se preocupam com a necessidade de uma analogia
adotada, por mais simples que seja, ter de ser concludente. Os Senhores já viram um
organismo bem desenvolvido apresentando-se da seguinte maneira: — Aqui está, por
exemplo, uma pessoa, aqui uma segunda pessoa, aqui uma terceira, e assim por dian-
te (ver figura 1). Seriam bo­nitos organismos humanos, colados dessa forma uns aos
ou­tros; mas isso não existe em organismos desenvolvidos. Não obstante, é o caso com
relação aos Estados. Organismos precisam de um espaço vazio entre si. Quando muito,
os diferentes Estados podem ser comparados às células de um organismo, e somente toda
a Terra, como corpo econômico, pode ser comparada a um organismo. Devemos ter isso
em conta. Uma coisa palpável desde que temos a economia mundial é que os diferentes
Esta­dos não podem ser comparados senão a células. A Terra toda, tomada como um or-
ganismo econômico, é o organismo social.
Tal fato não é levado em conta em lugar algum. É que toda a teo­ria da Ciência
Econômica encalhou numa posição que não corresponde à rea­lidade, pois desejava-se
estabelecer princípios válidos para uma célula isolada. Por isso é que ao estudarmos a
31.
teoria econômica france­­sa encontramos uma constituição diferente da que encontramos
nas teo­rias in­glesa, alemã ou outra. Porém, como economistas, não podemos prescindir
da compreensão do organismo social como um todo.
Era isso o que eu queria expor-lhes hoje, à guisa de introdu­ção.
2 O processo econômico
25 de julho de 1922

Os primeiros conceitos e pontos de vista que teremos de desenvolver justamente


no campo da economia não poderão deixar de ser um tanto complicados, e isto por uma
razão inteiramente objetiva. Os Senhores de­vem imaginar que a economia, mesmo
quando considerada como economia mundial, encontra-se num constante movimento;
tal como o sangue corre através do corpo humano, os bens fluem como mercadorias, por
1. todas as vias possíveis, pelo corpo econômico inteiro. Nesse processo econômico, temos
de considerar como sendo o elemento mais importante aquilo que se desenrola en­tre
compra e venda. Ao menos é isso o que vale para a economia atual. No decorrer destas
palestras teremos de abordar os mais diversos impulsos ­atuantes no corpo econômico;
con­tudo, a economia se apresenta como tal ao homem no momento em que ele deve
comprar ou vender alguma coisa.
Todo pensar instintivo de cada pessoa, por ingênuo que seja, culmina naquilo que
2.
se passa entre comprador e vendedor, sendo disso que, no fundo, tudo depende.
Verifiquemos o que se dá quando, na circulação econômica, efetuam-se compra e
venda. O que importa ao homem é o preço de uma mercadoria, de um bem qualquer. A
questão do preço é, contudo, aque­la em que terão de desembocar as mais importantes
discussões econômicas; pois é no preço que culmina tudo o que atua como impulsos e forças
na economia. Por isso, pri­meiro teremos de dirigir nossa atenção ao problema do preço,
3.
o que, todavia, absolutamente não é simples. Basta imaginarmos o caso mais trivial: no
lugar A existe uma merca­doria qualquer que tem seu preço nesse lugar; ela não é compra-
da aí, mas transportada para mais adiante. É necessário acrescentar ao preço o que foi
pago pelo transporte para o lu­gar B. O preço muda no curso da circulação. É o caso mais
simples, mais banal, diria eu. Não há dúvida de que haja casos muito mais complexos.
Suponhamos que uma casa numa cidade maior tenha um certo preço em dado
momento. Depois de quinze anos, a mesma casa custa, talvez, seis ou oito vezes mais.
Ao fa­lar desse aumento de preço, nem precisamos levar em conta que, porventura, o
aumento possa ser causado pela desvalori­zação da moeda. Nem queremos levar isso
em consideração. O aumento do preço pode simplesmente ter sido causado pelo fato
de, nesse ínterim, haverem sido construídas muitas outras casas na redondeza, outros
edifícios que contribuam para incrementar o valor da casa. Pode haver dez ou quinze
4. outras circunstâncias para o aumento do preço da casa. No fundo, jamais estaremos
realmente em condições de oferecer uma explicação generalizada para cada caso, no
sentido de determinarmos inequivocamente, para certo lugar, as condições que fixam o
preço de um bem, digamos, de casas, ferragens, cereais ou qualquer ou­tro. Por enquanto,
não podemos dizer muito mais do que o seguinte: devemos observar como o preço oscila
conforme o lugar e o tempo. E talvez possamos acompanhar uma ou outra das con­
dições pelas quais, num certo lugar, o preço veio a ser o que é. Mas não pode haver
uma definição ge­neralizada de como o preço se compõe; isso é realmente im­possível.
20 Rudolf Steiner

Por isso, assombra-nos sempre de novo ver como, em livros usuais sobre economia,
fala-se como se fosse possível definir o preço. Não é possível defini-lo; pois o preço
é concreto em cada lugar, e toda defini­ção em termos de economia nem sequer se
aproxima do assunto.
Por exemplo, uma vez me aconteceu o seguinte caso: — Em determinada região, os
terrenos eram bem baratos. Havia uma socie­dade que tinha como membro um homem
bastante famoso. A socieda­de comprou todos os terrenos baratos e em seguida fez com
5.
que o homem famoso construísse para si uma casa nessa região. Depois os lotes foram
colocados à venda, e por preços bem mais ele­vados do que fora pago na compra, pelo
único motivo de o homem famoso ter construído sua casa nas proximidades.
Essas coisas demonstram quão indeterminadas são as circunstâncias de que de-
pende o preço de algo no pro­cesso econômico. Os Senhores podem naturalmente dizer
que tais coisas deveriam ser controladas. São os adeptos da reforma agrária e outras
pessoas afins que se opõem a elas, querendo de certa forma estabelecer, por meio das
mais diversas medidas, uma es­pécie de preço justo para os bens. Isso é inteiramen-
te possível; contudo, no sentido da economia o preço não se altera com isso. Quando
ocorrem coisas como as do nosso exemplo, em que os lotes foram vendidos a um preço
mais elevado, seria possível ti­rar novamente o dinheiro dessa gente impondo-lhes um
alto imposto territorial. Neste caso é o Estado que embolsa o dinheiro; mas nem assim
se apreendeu a realidade, pois de qualquer modo o preço aumentou. Podemos adotar
contramedidas, que no entanto apenas disfarçam a questão. O preço é sempre aquele
6. que haveria resultado sem tais medidas. Apenas se desloca o problema, e não se segue
um raciocínio econômico dizendo, após ter disfarçado a situação pelas medidas adota-
das, que os lotes não aumen­taram de preço depois de dez anos. Trata-se do seguinte:
a economia deve colocar-se com as duas pernas na realidade, e na economia só se pode
falar das condições prevalecentes naquela época e naquele lugar em questão. A quem
vise ao progresso da humanidade deverá ficar claro que as coisas podem ser diferentes;
mas por ora elas devem ser consideradas em sua realidade momentânea. De tudo isso
os Senhores podem per­ceber quão impossível é abordarmos algo como esse conceito
importantíssimo da economia — o preço — querendo apre­endê-lo por meio de uma de-
finição de contornos nítidos. Desse modo não chegaremos a resultado algum na teoria
econômica. Devemos enveredar por caminhos inteiramente diferentes; temos de estudar
o processo econômico em si.
Nem por isso o problema do preço deixa de ser o mais im­portante; devemos
dirigir-nos a ele enfocando o processo econômico e procurando captar, por assim dizer,
7.
o ponto em que, em qualquer lugar e tempo, o preço de uma coisa qualquer resulte das
circunstâncias econômi­cas subjacentes.
Verificando as teorias econômicas mais em uso, os Senhores geralmente encontra-
rão enumerados três fatores mediante cuja interação se desenrolaria todo o processo da
economia. São eles: a natureza, o trabalho humano e o capital. Certamente se poderá
dizer, por ora, que ao se acompanhar o processo econômico como um todo constata-se em
8. seu âmbito algo que se origina da natureza, algo que é o resultado do trabalho humano
e também algo que é empreendido ou ordenado pelo capital. Porém não se conseguirá
apreender de maneira viva o processo econômico simplesmente colo­cando lado a lado
a natureza11, o trabalho humano e o capital. Tal enfoque levará, particularmente, às
mais diversas unila­teralidades — é isso o que mostra a história das teorias econômi-
2. O processo econômico 21

cas. Enquanto alguns pensam que todo valor repousa na natureza, e que o trabalho
humano não acrescenta qualquer va­lor especial à substância dos objetos naturais,
outros opinam que todo valor economicamente significativo é agregado a um bem12,
a uma mercadoria qualquer pelo fator que chamam de trabalho cristalizado dentro
destes. Em contrapar­tida, se os Senhores colocarem lado a lado o capital e o tra­
balho13, encontrarão pessoas dizendo ser o capital o único que possibilita o trabalho,
sendo o salá­rio extraído do capital acumulado; já outros dizem: não, o trabalho é o
que produz valores, sendo o que o capital ganha apenas a mais-valia subtraída do
resultado do trabalho.
O fato é o seguinte: encarando as coisas de um ponto de vista, dá-se razão a uma
pessoa; encarando-as de outro ponto, quem tem razão é a outra pessoa. Tal tipo de
abordagem da realidade nos parece quase como certos tipos de contabilidade: colocan-
do um item num lugar, obtém-se um resultado; colocando-o em outro lugar, obtém-se
resultado diverso. Pode-se falar, com base em razões aparentemente bem fortes, numa
mais-valia que é descontada do salário de tra­balho e da qual se apropria o capitalista.
Com base em razões igualmente boas, pode-se dizer que no contexto da economia total é
ao capitalista que se deve tudo, podendo ele pagar seus operários apenas com o que lhe
sobra para os salários. Para as duas opiniões existem razões muito boas e muito más. É
que todas essas reflexões nem sequer conseguem aproximar-se da realidade econô­mica;
são úteis como base para agitadores, mas de modo algum constituem algo que interesse
9. numa teoria econômica séria. Deveremos encontrar outras bases se quisermos fa­lar com
certa razão de um progresso do organismo econômico. Ora, até certo ponto todas essas
posições têm sua justifica­tiva; e se Adam Smith, por exemplo, vê no trabalho empregado
nos bens o fator primordial para a formação de valores, não há dúvida de que também
para tal posição se possa encontrar excelentes razões. Um homem como Adam Smith
certamente não racio­cinava sem fundamento: mas também ali a base é que se pensa
poder captar algo que está parado, podendo-se extrair disso uma definição, esquecendo
que no processo econômico tudo está em movimento contínuo. É rela­tivamente fácil
estabelecer conceitos a respeito de fe­nômenos da natureza, mesmo os mais complexos,
em vista das concepções de que se necessita para uma teoria econômica. Na economia
os fenômenos são infinitamente mais complexos, mais instáveis, mais variáveis do que
na natureza; são muito mais flutuantes e mais difíceis de apreender por con­ceitos fixos.
A verdade é que se deve empregar um método totalmente diferente. Tal método lhes
parecerá difícil nas primeiras aulas; po­rém os Senhores verificarão que dele resultará
algo possível de servir de base para uma verdadeira teoria econômica. Pode-se dizer
10.
o seguinte: para o processo econômico que estamos enfo­cando, confluem a natureza, o
trabalho humano e — enquanto se focalize o aspecto puramente exterior da economia
— o capital. Isto em primeira instância!
Para prosseguir, dirijamos logo nossa atenção ao elemento do meio, o trabalho
humano, procurando formar uma concepção a seu respeito descendo ao reino animal —
ontem já fiz tais alusões — e observando, em vez de a economia humana, a economia
dos pardais ou das andorinhas. Aí vemos que a natureza forma o fundamento para a
11.
economia. O pardal tam­bém tem de executar uma espécie de trabalho. No mínimo ele
tem de pular de um lugar a outro a fim de encontrar os grão­zinhos, precisando às vezes
pular muito num mesmo dia até encon­trar seus grãos. A andorinha, ao construir seu
ninho, também tem de efetuar uma espécie de trabalho; ela tem muito o que fazer. Não
22 Rudolf Steiner

obstante, não podemos chamar isso de trabalho no sen­tido econômico. Se o fizermos,


isso de nada nos adiantará em nossas concepções econômicas; pois observando a coisa
mais de perto, teremos de dizer que o pardal ou a andorinha são, na realidade, organi-
zados de tal modo que forçosamente executam aqueles movimentos para encontrar sua
alimentação. Eles não po­deriam conservar-se sadios caso não pudessem movimentar-se
dessa maneira. Trata-se de uma extensão de seu organismo, pertencendo-lhes assim
como suas pernas e asas. Portanto, ao querermos estabelecer conceitos econômicos,
poderemos desconsiderar a­quilo que aqui se pode chamar de trabalho fictício. Em
tais situações onde se usufrui da natureza diretamente, e onde o ser isolado executa
o trabalho fictício exclusivamente para sua satisfação e de seus próximos, devemos
desconsiderar esse trabalho fictício caso queiramos determinar o que é valor — valor
no sentido da economia. Eis o que nos preocupa em primeiro lugar: aproximar-nos de
uma concepção do valor na economia.
Se observarmos, portanto, a economia animal, poderemos di­zer que o que nela
forma valor é exclusivamente a natureza. Ora, quando passamos ao homem, ou seja, à
economia humana, sem dúvida temos também, do lado da natureza, o ponto de partida
no valor natural; porém no momento em que as pessoas não trabalham apenas para si
próprias ou para seus próximos, mas começam a cuidar-se mutuamente, logo vem ao
caso o aspecto referente no trabalho humano. No momento em que a pessoa não apenas
usa para si os produtos da natureza, mas entra em alguma relação com outras pessoas e
permuta bens com elas, também sua ação relativa à natureza torna-se trabalho. Temos
nisso um lado do valor na econo­mia. Este resulta da aplicação do trabalho humano aos
produtos da natureza, ou seja, do fato de ter­mos na circulação econômica produtos da
12. natureza modifica­dos pelo trabalho humano. É aí que realmente começa a nas­cer um
valor na economia. Enquanto intocado no lugar original, o produto natural não possui
outro valor senão aquele que também teria para o animal. O valor para a economia
humana começa no momento em que fazemos o primeiro passo para inserir o produto
natural transformado no processo de circula­ção econômica. Nesse caso podemos carac-
terizar esse valor econômico pela seguinte frase: o valor econômico, visto por este lado,
é o produto da natureza transformado pelo trabalho humano. Não importa se o trabalho
humano consistir em cavarmos, ra­charmos lenha ou transportarmos o produto de um
lugar para ou­tro. Tratando-se por ora da determinação do valor em geral, podemos
dizer o seguinte: o que forma o valor é o trabalho humano, transformando um produto
da natureza de modo que este possa ingressar no processo de circulação eco­nômica.
Levando isso em conta, os Senhores logo apreenderão a quali­dade totalmente
flutuante do valor de um bem que circula na economia — pois o trabalho é algo que
existe permanentemente, aplicado ao bem econômico. Sendo assim, não po­demos
realmente definir o que seja o valor; podemos ape­nas dizer que o valor aparece num
certo tempo e num certo lugar pelo fato de o trabalho humano transformar o produ-
to natural. É então que aparece o valor. Para começar, não podemos nem que­remos
13.
definir o valor, mas apenas apontar o ponto em que ele aparece. Quero mostrar-lhes
isso num esquema que evi­dencie o seguinte: como pano de fundo, por assim dizer, te­
mos a natureza (fig. 2 à esquerda); e temos o trabalho humano aplicado à natureza;
e o que se evidencia em decorrência da in­teração entre natureza e trabalho humano
é um lado do valor. Não seria uma imagem errônea se, por exemplo, disséssemos:
olhando um plano negro, qualquer coisa negra através de algo claro, vemo-lo em azul;
2. O processo econômico 23

porém o azul se modifica de acordo com a maior ou menor espessura da parte clara.
À medida que o deslo­camos, a intensidade do azul varia, é flutuante. Tal é o caráter
do valor na economia, pois este nada é senão o transparecer da natureza através do
trabalho humano ambulante por toda parte.
Tais elementos não nos fornecem, por enquanto, mais do que algumas indicações
abstratas; contudo estas nos servirão de guia nos próximos dias, a fim de encontrarmos
os fatos concretos. Como é costume em todas as ciências, começamos com o mais sim-
ples. Vemos, pois, que o trabalho não tem, por si só, qualquer determinação no con­texto
econômico. Não faz diferença alguma se uma pessoa racha lenha ou se, por ser gorda,
coloca-se sobre uma roda* — há gente que faz isso — e, pulando sempre de degrau em
degrau, fica mais magra; é possível que ela realize a mesma quanti­dade de trabalho que
aquela pessoa que racha lenha. É um perfeito absurdo a maneira como, por exemplo,
14. Marx encara o trabalho, buscando sua equivalência no que é gasto no organismo humano
pelo trabalho — pois se gasta o mesmo tanto, não importando se a pessoa racha lenha
ou dança sobre a roda. No sentido econômico, não importa o que ocorre com o homem.
Já vimos que a economia faz divisa com elementos não-econômicos. Visto no sentido
puramente econômico, de modo algum é legítimo reiterar que o trabalho desgasta a
pessoa — pelo menos para estabelecermos o conceito de trabalho no contexto eco­nômico.
Este desgaste, contudo, tem um significado no sentido indireto, por fazer com que se
tenha de cuidar das necessidades da pessoa. Quanto às considerações de Marx a esse
respeito, trata-se de um colossal contrassenso.
Ora, o que será necessário para acompanharmos o trabalho no sentido do processo
econômico? Para isso é necessário, por enquanto, abstrairmos completamente do homem
e obser­varmos a forma como o trabalho se insere no processo econô­mico. O trabalho
numa roda, como o descrevemos, não se insere de forma alguma, pois fica totalmente
preso à pessoa; ra­char lenha, isso sim, já se insere no processo econômico. E podemos
perceber que em todos esses casos se trata do fato de a natureza ser modificada pelo
trabalho humano. Só enquanto a natureza é transformada pelo trabalho humano é que
15.
produzimos valores econômicos, pelo lado que estamos contemplando. Se, por exem-
plo, consideramos útil à saúde física trabalhar na natureza e, nos intervalos, dançar
um pouco ou fa­zer eurritmia**, isso deve ser julgado a partir de outro ponto de vista;
contudo, o que fazemos nos intervalos não pode ser denominado trabalho em sentido
econômico, nem ser considerado como formativo de valores econômicos. Poderá ter um
valor sob outro aspecto; é preciso começarmos por formar conceitos nítidos dos valores
econômicos como tais.
Existe uma outra possibilidade, bem diversa, de surgir o valor econômico.
Para tal devemos ter em mente o tra­b alho em si, tomando-o como um fato dado.
Como aca­bamos de ver, esse trabalho em si é algo totalmente neutro, irrelevante
16. em sentido econômico. Todavia torna-se criador de valor econômico quando di-
rigido pelo espírito 14, pela inteligência humana — e, neste caso, devo variar um
pouco meu modo de expor as coisas. Mesmo nos casos mais extremos, os Senhores
poderiam pensar que o que em si não é trabalho esti­vesse sendo transformado em

* Aparelho de ginástica da época, o qual consistia numa roda guarnecida de travas à guisa de
‘degraus’ para tração. (N.E.)

** Arte antroposófica do movimento, podendo ser cênica, pedagógica ou terapêutica. (N.E.)


24 Rudolf Steiner

trabalho pelo espírito humano. Se alguém resolve colocar em seu quarto uma roda
para ema­grecer, não existe nisso qualquer valor econômico. Se, porém, ele co­locar
uma corda em torno da roda e fizer tal corda acionar uma máquina, teremos tor-
nado produtivo, pelo espírito, algo que nem sequer é trabalho. O efeito secundário
consiste no emagrecimento da pessoa; mas o que realmente conta aqui é o fato de o
trabalho ser conduzido em determinada direção pelo espírito, pela inte­ligência, pelo
raciocínio, ou talvez pela especulação, e de os trabalhos serem colocados em certas
inter-relações, etc. Assim sendo, podemos dizer o seguinte: temos aí o segundo lado
daquilo que forma valores na economia. Estando o trabalho ao fundo e em primeiro
plano o espírito que dirige o trabalho, aí transparece o trabalho através do espírito,
produzindo novamente valor econômico.
Veremos que esses dois lados existem em todo lugar. No esquema (fig. 2, à es-
querda) desenhei o valor econômico, através do qual aparece a natureza; agora devo
17.
desenhar o que acabo de expor, de modo que temos lá atrás o trabalho e na frente o que
é espiritual e confere ao trabalho uma certa alteração (fig. 2, à direita).
São estes, essencialmente, os dois polos do processo econô­mico. Os Senhores não
encontrarão outras maneiras de se produzirem valo­res econômicos: ou a natureza é
modificada pelo trabalho ou o trabalho é modificado pelo espírito, sendo que amiúde o
18. espírito se manifesta exteriormente na formação de capital; é por isso que no contexto
da econo­mia o espírito deve ser procurado na configuração dos capitais, ou pelo menos
tem aí a sua expressão exterior. Contudo chegaremos a apreender isso ao contemplar-
mos o capital como tal e, depois, o capi­tal como meio monetário.
Assim os Senhores podem perceber que não é possível falarmos de uma definição
do valor econômico — pois precisamos ter em conta de quantos fatores isto depende, de
quantas pessoas tolas e inteligentes depende o fato de, em algum lugar, o trabalho ser
19. mo­dificado pelo espírito. Isso depende de uma porção de con­dições flutuantes. Todavia
podemos ter certeza de que sem­pre vale o que é evidente, ou seja, que nesses dois opos-
tos polares devem ser pro­curados os fatores que formam valor no processo econômico.
Ora, se for esse o caso, teremos a seguinte situação: ao nos encontrarmos num
processo econômico relacionado com compra-e-venda em algum lugar, presenciamos
essencialmente uma troca de valores. Seria efetivamente errôneo falar de troca de
bens, pois não encontramos outra troca senão a de valores. No processo econômico o
bem é um valor, seja ele produto da natureza modificado ou trabalho modificado. O
que se permuta são valores, e isto é o que importa. Sendo assim, os Senhores terão
de compreender o seguinte: quando em algum lugar ocorre compra-e-venda, dá-se
uma troca de valores. O que resulta, então, no processo econômico quando valor e
valor, por assim dizer, se confrontam a fim de permutar-se, é o preço. Os Senhores
20.
não en­contrarão um preço em lugar algum senão onde valor e valor se confrontam
no processo econômico. Por isso não é possível re­fletirmos sobre o preço pensando
apenas na troca de bens. Se os Senhores comprassem uma maçã por, digamos, cinco
centavos, poderiam dizer que trocam um bem pelo outro bem — a maçã contra os
centavos. Desta maneira, porém, jamais chegarão a uma visão econômica. A maçã
foi colhida em algum lugar, foi transportada, e talvez haja acontecido muita ou­tra
coisa à sua volta. Foi o trabalho que a modificou. Os Senhores não estão lidando
com a maçã, e sim com o produto natural modificado pelo trabalho humano que re-
presenta um valor. Na economia sempre se deve partir do valor. Da mesma forma,
2. O processo econômico 25

os cinco centavos representam um valor, e não um bem — pois es­ses cinco centavos
não são outra coisa senão o sinal de que junto à pessoa que quer comprar a maçã
existe um outro valor que ela permuta pela maçã.
O que eu quis frisar é o fato de hoje havermos chegado a com­preen­der que é er-
rôneo falar de bens na economia, devendo-se falar de valores como o fator elementar;
e que também é errôneo querer apreender o preço de outra maneira que não o jogo de
21.
valores. Valor contra valor resulta no preço. Uma vez que o valor é algo flutuante, não
podendo ser definido, o que resulta como preço na permuta de valor contra valor é algo
flutuante ao quadrado.
De tudo isso podemos deduzir que é totalmente inútil que­rermos apreender de
alguma maneira o valor e o preço para termos uma base firme na economia, e até
22. mesmo para querermos in­tervir num processo econômico. O que deve ser considerado
nesse caso é algo completamente diverso, que deve estar por detrás, e de fato está.
Isso nos é demonstrado por uma ob­servação muito simples.
Imaginem o seguinte: a natureza nos transparece através do trabalho humano. Se,
por exemplo, extrairmos ferro em de­terminado lugar sob condições extraordinariamente
severas, o que resulta como valor é um objeto da natureza modi­ficado pelo trabalho hu-
mano. Se, em outro lugar, o ferro for extraído sob condições mais leves, provavelmente
resultará um valor bem diferente. Vemos, portanto, que não é possível abordar a coisa
pelo valor — temos de olhar por detrás deste. Devemos remontar àquilo que forma o
valor, chegando talvez às circunstâncias mais constantes sobre as quais se poderá exercer
23. uma influência direta — pois no momento em que introduzirem o valor na circu­lação
econômica, os Senhores deverão deixá-lo flutuar conforme o organismo econômico. Ao
observarmos a composição sutil do glóbulo sanguíneo — que é diferente na cabeça, no
coração ou no fígado —, não nos adiantará dizer que queremos encontrar uma definição
para o sangue — pois não é isso o que queremos; o que queremos é unicamente saber
quais os alimentos mais favoráveis para cada caso. Do mesmo modo, não adianta discu­
tir sobre o valor e o preço, tratando-se, isso sim, de buscar os fa­tores primários — que,
formados corre­ta­mente, resultarão no preço correspondente, que assim surgirá por si.
Em nosso estudo de Economia, é impossível determo-nos na esfera das definições
de valor e preço; porém deve­mos sempre remontar ao ponto de partida, ou seja, àquilo
24.
de que, por um lado, o processo econômico extrai sua nutrição e que, por outro, o regula:
a natureza, por um lado, e o espí­rito, por outro.
A dificuldade de todas as teorias econômicas dos últimos tempos foi o fato de
elas sempre terem começado por querer apreender o flutuante. Para quem consegue
discernir as coisas, dessa forma não re­sultam definições erradas, e sim, no fundo,
mui­tas corretas. Quem diz que o trabalho corresponde ao que tem de ser reposto no
corpo humano, não passando de substância consu­mida, engana-se redondamente,
pois não enxerga as coisas mais banais. Mas acontece que até pessoas bastante ins­
25. truídas tropeçaram ao elaborar suas teorias de Economia, por quererem observar
em condições estáticas as coisas que se encontram em fluxo. Pode-se fazer isso em
re­lação às coisas da natureza — até se deve fazê-lo, muitas ve­zes; neste caso, basta
observar de uma maneira bem diferente o que é estático. Quando, na observação da
natureza, falamos de movimento, consideramo-lo como que composto de pequenas
situações subsequentes de repouso. Pelo fato de procedermos à integração, também
consideramos o movimento como algo composto de situações de repouso.
26 Rudolf Steiner

Não é possível apreender o processo da economia com base neste tipo de conheci-
mento. Por isso devemos di­zer o seguinte: o que importa é começarmos por apreender
a teoria econômica pela maneira como, de um lado, aparece o valor ao ser a natureza
modificada pelo trabalho, ou seja, ao transparecer a natureza através do trabalho; e, do
ou­tro lado, pelo modo como aparece o valor ao ser visto o trabalho através do espírito.
Esses dois modos de surgimento do valor são polarmente distintos, tal qual no espectro
um polo, o polo luminoso, o amarelo, é distinto do polo azul ou violeta. Podemos, por­tanto,
reter a seguinte imagem: tal qual de um lado aparecem no espectro as cores quentes,
26. também de um lado se evidencia o valor natu­ral, que se manifestará mais na formação
de renda15 da terra ao perce­bermos a natureza modificada pelo trabalho, e de outro
aparece mais o valor que se manifesta no capital ao enxer­garmos o trabalho modificado
pelo espírito. Aí pode surgir, pois, o preço, quando valores de um polo se confrontam
com valores do outro, ou até quando valores den­tro de um polo entram em interação.
Cada vez que se tratar de formação de preço, verificaremos que os valores entram em
interação. Isto significa que devemos desconsiderar to­talmente tudo o que existe além
disto — até mesmo a matéria —, e ater-nos primeiramente à maneira como se formam
valo­res de um lado e de outro. Só en­tão poderemos adentrar o problema do preço.
3 A Ciência Econômica
26 de julho de 1922

Ontem eu expus que no âmbito da economia o importante, no fundo, é entendermos


o elemento flutuante que caracteriza a circulação dos valores e a interação dos valores
flu­tuantes na formação dos preços; tendo isso em mente, os Senhores poderão dizer o
seguinte: em primeiro lugar trata-se de descobrir a forma que a Teoria ou a Ciência
1. Econômica deve ter, pois o que é flutuante não se deixa captar diretamente. No fundo,
não faz sentido querermos apreender o que é ­flutuante diretamente pela observação;
isso só fará sentido se con­templarmos o elemento flu­tuante em conexão com as condições
­subjacentes.
Objetivemos isso fazendo uma analogia: — Para certas finalidades da vida,
usamos o termômetro a fim de verificar os graus de temperatura. Em certo sentido,
acostumamo-nos a comparar esses graus — com­paramos vinte graus de calor com,
digamos, cinco graus, etc. Também podemos elaborar curvas de temperatu­ras. Po-
demos, por exemplo, marcar as temperaturas durante o inverno e as temperaturas
crescentes durante o verão, o que nos dará a posição flutuante do termômetro. Mas
as causas subjacentes nós não apreenderemos senão aprofundando-nos nas dife-
rentes circunstâncias que condicionam uma temperatura mais baixa no inverno
2. e uma mais alta no verão, temperaturas diferentes numa região e outra, etc. Só
possuiremos algo real reduzindo as temperaturas flutuantes às suas causas subja-
centes. Anotar simplesmente as diferentes tempera­turas não representa, no fundo,
mais do que um procedimento es­tatístico. Analogamente, não chega a muito mais
do que isso o estudo isolado dos preços, dos valores, etc. Tudo isso so­m ente fará
sentido ao começarmos a encarar preços e valores como posições no termômetro
apontando para algo diferente. Só assim nos daremos conta dos elementos reais da
economia. Daí se depreenderá a forma que a Teoria Eco­nômica deve ter na realidade.
Talvez os Senhores saibam que, de acordo com um antigo costume, as Ciências
se dividem em teóricas e práticas. A Ética, por exemplo, denomina-se ciência prática; a
Ciên­cia Natural, teórica. A Ciência Natural trata daquilo que é; a Ética, daquilo que deve
ser. Desde tempos mais antigos fazia-se a distinção entre ‘ciências do que é’ e ‘ciências
3. do que deve ser’. Agora não precisamos preocupar-nos com isso senão para destinar os
conceitos. Não obstante, podemos perguntar o seguinte: será que a Ciência Econômica
é uma ciência do ser, tal como opina Lujo Brentano, ou é uma ciência do ‘deve ser’, uma
ciência prática? Eis a questão.
Sem dúvida será necessário fazermos observações no âmbito da economia se qui-
sermos adquirir um conhecimento; e teremos de fazê-las tal qual se observam posições
do barômetro ou termômetro para se saberem as condições do ar e da temperatura. Em
4.
con­formidade com isso, a Economia é uma ciência teórica. Porém isso não nos leva a
coisa alguma; só nos servirá para algo se pudermos agir, com base nesse conhecimento
teórico.
28 Rudolf Steiner

Quero mencionar um caso particular, que lhes evidenciará do que estamos tra-
tando aqui. Suponhamos que observações quaisquer, as quais são sempre de natureza
teórica — todas as observações que não conduzem a uma ação são teóricas —, nos in-
dicassem em al­gum lugar uma queda sensível de preço em algum tipo de mer­cadoria,
5. sendo a baixa tão sensível que já resulte numa flagrante miséria. Inicialmente trata-se
de observarmos teo­ricamente tal baixa real dos preços. Estamos então, por assim di-
zer, no estágio de anotar as posições do termômetro. Mas depois tratar-se-á de saber o
que fazer quando os preços de uma classe de mercadorias ou de um produto houverem
baixado de forma preocupante.
Ora, estudaremos essas coisas ainda mais em por­menores; no momento só quero
dizer o que terá de ser feito e por quem, quando os preços de uma classe de mercado-
rias tiverem caído sensivelmente. Será o caso de tomarmos medidas adequadas para
contrabalançar a queda dos preços. Provavelmente existem di­versas medidas para
6. tal fim; mas uma delas será fazer­mos algo para acelerar a circulação, o comércio das
mercado­rias em questão. Será essa uma das medidas, embora não suficiente; porém não
nos preocupemos em perguntar se a medida seria suficiente ou até se seria correta; o
importante, tendo os preços baixado dessa forma, é fazermos algo capaz de incrementar
o movimento do dinheiro.
Na realidade temos de realizar algo comparável a influenciar a posição do ter­
mômetro: se estivermos com frio numa sala, não tentaremos esticar, de alguma maneira
7. misteriosa, a coluna de mercúrio do termôme­tro; nem nos preocuparemos com a baixa
ocorrida nele, e sim aqueceremos o quarto. Enfrentamos a questão num ponto bem
diferente.
Assim, também, o que importa na economia é aplicarmos nossa ação a um ponto
bem diverso. Aí a coisa se torna prá­tica, e teremos de dizer que a Ciência Econômica é
8.
tanto ciência teórica quanto ciência prática. O importante, todavia, será como conseguir
combinar o prático e o teórico.
Este, por enquanto, é um dos lados da forma da Ciência Econômica. O outro lado
é aquele para o qual já chamei a atenção muitos anos atrás, sem que a coisa tivesse sido
compreen­dida. Trata-se de um ensaio que escrevi no começo do século com o título The-
osophie und soziale Frage [Teosofia e a questão social] * e que, no fundo só teria sido de
9. alguma significância se aprovei­tado pelos práticos, e se estes tivessem agido de acordo.
Uma vez que não tomaram conhecimento algum dele, eu nem o concluí nem continuei a
publicá-lo. Só podemos esperar que essas coisas sejam compreendidas cada vez mais, e
espero que estas confe­rências contribuam para uma compreensão mais profunda. Con­
tudo, se quisermos compreendê-las deveremos intercalar uma breve exposição histórica.
Remontando um pouco na vida histórica da humanidade, os Senhores des­
cobrirão que — já aludi a isso na primeira conferência — em tempos mais antigos,
até ainda nos séculos XV e XVI, não existiam questões econômicas tais como as
10.
temos hoje em dia. A vida econômica, por exemplo no antigo Oriente, passava-se
em grande parte de modo instintivo; havia certas condições sociais entre as pessoas
que formavam cas­tas, classes, e, sob a influência daquilo que resultava de relações

* Ensaio de 1905, posteriormente publicado sob o título Geisteswissenschaft und soziale Frage
(Dornach, Rudolf Steiner Verlag, 1989), base para a edição brasileira Economia e sociedade (2. ed. São
Paulo: Antroposófica, 2003 [título anterior: Ciência Espiritual e questão social]). (N.E.)
3. A Ciência Econômica 29

de homem para homem a partir de tais condições, es­tas formaram o instinto para o
modo como o indivíduo viria a intervir na vida econômica. Eram principalmente os
impulsos da vida reli­giosa que formavam a base dessa vida e que, em épocas anti­gas,
dirigiam-se ao mesmo tempo à orientação, à ordenação da economia. Ao perscrutar
a história da vida no Oriente, os Senhores perce­berão que, de certa maneira, não
existia em lugar algum uma divisão rigorosa entre o que a religião impunha e o que
devia ser executado na economia. Os mandamentos religiosos estendiam-se frequen-
temente à vida econômica, de modo que nessas épocas antigas não preocupava a
questão trabalhista, a questão da circulação social dos valores do trabalho. Em certo
sen­tido o trabalho era feito instintivamente; e a questão de uma pessoa trabalhar
mais ou menos do que outra não era muito importante, na vida pública, ao menos
nos tempos que precederam a época romana. As exceções a isso não interessam no
curso geral da evolução hu­mana. Ainda em Platão encontramos, de fato, uma visão
da vida social que encara o trabalho como algo tão natural que não se discute; sem
considerar o trabalho, Platão reflete apenas sobre aqueles aspectos da vida social
avistados sob forma de impulsos éticos e repletos de sabedoria.
Isso mudou paulatinamente à medida que os impulsos di­retamente religiosos e
éticos deixavam de criar os instin­tos econômicos e restringiam-se cada vez mais à vida
moral, tornando-se simples normas para a maneira como as pessoas deveriam ter senti-
mentos mútuos, como deveria configurar-se sua relação com os poderes ­extra-humanos,
11. etc. Mais e mais surgia entre os homens a concepção, o sentimento de que — falando
metaforicamente — não haveria necessi­dade de um sermão a respeito da maneira
como se deve tra­balhar. E foi com isso que o trabalho e a sua incorporação à vida social
principiou a constituir uma questão.
Ora, tal incorporação do trabalho à vida social seria uma impossibilidade histó-
rica sem o advento daquilo que constitui o direito. Vemos, portanto, nascer na História
simultaneamente a valorização do trabalho de cada indivíduo e o direito. Em relação
aos tempos antigos, não podemos falar de direito no sentido em que hoje em dia o
concebemos; não podemos falar de direito senão a partir do momento em que este se
separa do mandamento. Em tempos primordiais o manda­mento era universal, abran-
gendo a um tempo tudo o que constituísse direito. Mais tarde o mandamento é cada
12 vez mais restringido à vida puramente anímica, e o direito se faz valer com rela­ção à
vida exterior. Isso se passa no curso de um certo pe­ríodo histórico em que surgiram
condições so­ciais bem determinadas. Sobrepassaria o âmbito destas conferências dar
uma descrição detalhada desse processo; porém não deixa de ser um estudo interessante
acompanhar, especial­mente com relação aos primeiros séculos da Idade Média, a for-
ma como, por um lado, as condições jurídicas e, por outro, as condições trabalhistas se
segregaram das organizações re­ligiosas em que antigamente se encontravam mais ou
menos englobadas — em se tratando de organizações religiosas no sen­tido mais amplo.
Isso traz uma consequência bem peculiar. Enquanto os im­pulsos religiosos são
determinantes para toda a vida social da humanidade, o egoísmo não faz mal. Trata-se
de um fato extraordina­riamente importante para a compreensão dos processos sociais
13. e econômicos. Por mais egoísta que seja o homem, o egoísmo não será prejudicial se a
organização religiosa, tal como era severa, por exemplo, em certas regiões do antigo
Oriente, for constituída de forma que a pessoa se incorpore de modo frutífero na vida
social; em contraposição, o egoís­mo começa a ter importância na vida dos povos no mo-
30 Rudolf Steiner

mento em que direito e trabalho se segregam dos outros impulsos e correntes so­ciais.
Por isso, ao passo que trabalho e di­reito se emancipam, o espírito da humanidade aspira
in­conscientemente, diria eu, a dominar o egoísmo humano que começa a manifestar-se e
que, de certo modo, tem de ser integrado à vida social. Tal aspiração culmina na moderna
democracia, no senso para a igualdade dos ho­mens, para a possibilidade de cada indi-
víduo poder exercer sua influência sobre o estabelecimento do direito e sobre a escolha
de seu trabalho.
Concomitantemente a tal culminação do direito e do tra­balho emancipados,
surge algo mais que, em verdade, já existia nos períodos mais antigos da evolução
humana, quando todavia revestia-se de um significado bem diverso por causa dos
14. impulsos sócio-religiosos; algo que, particu­larmente em relação à nossa civilização
europeia, existia em medida reduzida durante a Idade Média, mas chegou à sua mais
alta culminação a partir da época em que o direito e o trabalho ficaram emancipados
ao máximo: a divisão do tra­balho.
Nas épocas mais remotas da evolução da humanidade, a di­visão do trabalho não
tinha qualquer importância especial, justamente porque o trabalho estava integrado
aos impulsos religiosos, es­tando cada pessoa em seu lugar certo — de modo que a
15. divisão do trabalho não tinha sua atual importância. Quando, porém, o anseio por
democracia se uniu à aspiração por divisão do trabalho — isso não se deu senão nos
últimos séculos e, em particular, no século XIX —, a divisão do trabalho começou a
adquirir um sig­nificado todo especial, por ter uma consequência eco­nômica.
Em última análise, a divisão do trabalho (de cujas causas e desenvolvimento
ainda falaremos, ao pensá-la abstratamente até seu fim) leva à situação em que nin­
16. guém utiliza para si mesmo o que produz — falando-se, porém, em sentido econômico!
Economicamente, a bem dizer, ninguém consome para si próprio o que produz. O que
significa isso? Ora, vou esclarecê-lo com um exemplo.
Suponhamos um alfaiate, que faz roupa. Por causa da divi­são do trabalho, é natural
que deva produzir roupa para outras pessoas. Ele poderia dizer também que, ao mesmo
tempo que fabricasse roupa para outras pessoas, também faria sua pró­pria roupa. Nesse
caso, empregaria uma parte de seu tra­balho para fazer sua própria roupa e outra parte,
bem mais ampla, que sobrasse ele empregaria no feitio de roupa para ou­tras pessoas.
Encarando isso de um modo ingênuo ou banal, po­der-se-ia dizer o seguinte: certamente
é a coisa mais natural, também no âmbito da divisão do trabalho, que o alfaiate faça
sua própria roupa e trabalhe como alfaiate para outras pes­soas. Contudo, como se
apresenta a coisa no sentido econô­mico? Do seguinte modo: pelo motivo de ter surgido
a divisão do tra­balho, não sendo mais cada ser humano produtor de todas as coisas de
17.
que precisa, e sim cada um trabalhando para os outros, os produtos adquirem um certo
valor e, por conse­guinte, também um preço. E agora surge a seguinte questão: se por
causa da divisão do trabalho — que tem sua continuação na cir­culação dos produtos
— se, portanto, pela divisão do trabalho introduzida na circulação das mercadorias, os
produtos, por exemplo, do alfaiate tiverem um certo valor, será que os produtos que ele
fizer para si próprio terão um valor igual na economia ou serão, talvez, mais baratos ou
mais caros? Eis uma pergunta significativa. Se ele produzir suas próprias rou­pas, elas
deixarão de entrar na circulação dos produtos. O que ele produzir para si próprio não
terá parte no barateamento mo­tivado pela divisão do trabalho e, portanto, será mais
caro. Mesmo se ele nada pagar, será mais caro. Ficará mais caro pela simples razão de
3. A Ciência Econômica 31

ele ser impossibilitado de empregar, nas coisas que fabrica para si próprio, apenas tanto
trabalho quanto precisa para o que entraria na circulação, conforme o valor das coisas.
Talvez seja necessário refletirmos sobre isso um pouco mais de perto; mas não há
dúvida de que tudo o que serve à produção própria, não entrando assim na circulação
baseada na divisão do trabalho, tem de ser mais caro do que aquilo que toma parte
na divisão do trabalho. Assim, tomando a divisão do trabalho ao extremo, deveríamos
18.
dizer o seguinte: tivesse o alfaiate de trabalhar exclusivamente para outras pessoas,
conseguiria para os produtos de seu trabalho os preços que estes deveriam render. E,
por sua vez, teria de com­prar sua roupa de um outro alfaiate ou em lugares onde se
vende roupa.
Tendo tudo isso em mente, os Senhores deverão admitir que a divisão do trabalho
tende a impedir que alguém ainda tra­balhe para si próprio; que, pelo contrário, tudo
o que alguém pro­duz tem de ser passado aos outros, e o que ele neces­sita lhe deve ser
entregue pela comunidade. Eventualmente poderão objetar que praticamente um terno
deveria custar ao alfaiate, se este o comprasse de um outro alfaiate, tanto quanto lhe
custaria se ele mesmo o fizesse, pois o outro não o faria mais caro ou mais barato. Se
fosse esse o caso, não haveria divisão do trabalho, ao menos não completa, pelo simples
motivo de que para esse produto de confecção a divisão do trabalho não poderia resul-
19. tar na maior concentração metódica. Não é, portanto, possível que onde haja divi­são
do trabalho esta não flua para o âmbito da circulação, não sendo assim possível, nesse
caso, que um alfaiate compre diretamente de outro al­faiate, já que ele terá de comprar
do comerciante. Tal processo produz um valor bem diferente. Ele, por assim dizer,
compra­ria de si mesmo o terno que tivesse feito para si próprio; porém ele o comprará
de um comerciante. É isso que faz a di­ferença. Se a divisão do trabalho, em conjunto
com a circula­ção, contribui para baixar os preços, o terno lhe sai mais barato quando
comprado do comerciante do que ao fabricá-lo ele próprio.
Consideremos isso, por enquanto, como algo que nos aproxima da forma da Teoria
20.
Econômica; os fatos, esses nós teremos de considerar mais uma vez.
Contudo, o seguinte é algo que entendemos de modo imediato: quanto mais avançar
a divisão do trabalho, tanto mais ocor­rerá de cada um trabalhar para o outro, para a
comunidade anô­nima, e jamais para si mesmo. Em outras palavras: com o ad­vento da
moderna divisão do trabalho, o funcionamento da economia exige que o egoísmo seja
21.
integralmente erradicado de seus processos. Por favor, não en­tendam isso em sentido
ético, mas puramente econômico! Na economia, o egoísmo é impossível. Quanto mais a
divisão do trabalho progredir, tanto menos poderemos fazer algo em pro­veito próprio;
teremos de fazer tudo em proveito alheio.
No fundo, as condições exteriores fizeram com que o altruísmo surgisse, como
22. exigência, mais rapida­mente na área econômica do que fora compreendido no âmbito
ético-re­ligioso. Existe para isso um fato histórico, facilmente compreensível.
A palavra ‘egoísmo’ pode ser encontrada em tempos bem anti­gos, se bem que
talvez não na acepção incisiva de hoje em dia. O contrário dela, a palavra ‘altruísmo’,
23. com seu sentido de ‘pensar no outro’, mal existe há uns cem anos**, pois foi cunhada
como palavra só muito tarde; por isso podemos dizer — sem dar muita ênfase a essa

** Pelo francês altruisme, termo cuja criação é atribuída a Augusto Comte no início do séc.
IX. (N.E.)
32 Rudolf Steiner

exterioridade, embora uma observação histórica o evidenciasse — o seguinte: a apre-


ciação do altruísmo ainda estava longe de ser incluída nas reflexões éticas quando sua
observância na economia, mediante a divisão do trabalho, já era um fato. Considerando
o al­truísmo como exigência econômica, disso decorre de imediato que devemos descobrir
para a atividade econômica um caminho segundo o qual — para o método moderno de
atividade econô­mica — pessoa alguma tenha de cuidar de si mesma e cuide somente
dos outros, resultando disso a melhor ma­neira de se cuidar de cada indivíduo. Tal ideia
poderia ser vista como idealismo; porém chamo mais uma vez sua aten­ção para o fato
de que nestas conferências não falo nem em sentido idealista nem ético, mas econômico.
Não é nem um deus, nem uma lei moral, nem um instinto, mas simplesmente a mo-
derna divisão de trabalho que exige, na vida econômica atual, o altruísmo no trabalho,
na produção de bens. É, pois, uma categoria inteiramente econômica que exige isso.
É mais ou menos isto o que, outrora, eu estava querendo ex­por naquele ensaio —
a saber, que nossa economia exige mais de nós do que logramos alcançar, atualmente,
no campo ético-religioso. É isso o que causa muitas lutas. Estu­dem a sociologia da
atualidade, e descobrirão que as lutas sociais podem ser explicadas, em grande parte,
pelo fato de, na expansão da economia para a economia mundial, ter surgido cada vez
24. mais a necessidade de sermos altruístas, de se arranjarem altruisticamente as diversas
instituições sociais herdadas, e isso numa época em que as pessoas ainda não haviam
compreendido, em seu pensamento, a necessidade de se transcender o egoísmo — con-
tinuando, por isso, a deturpar egoisticamente o que realmente se apresentava como
uma exigência da época.
Só chegaremos ao significado do que acabo de dizer quando não nos limitarmos a
estudar o fato banal, que está bem à vista, como também o fato disfar­çado, mascarado.
Tal fato disfarçado consiste no seguinte: por causa da discrepância, na mentalidade do
homem moderno, entre a exigência da economia e a capaci­dade ético-­religio­sa, numa
grande parte da economia as pes­soas praticamente cuidam de si próprias, havendo
portanto uma contradição, dentro da economia, com o que na verdade seria sua própria
exigência em decorrência da divisão do trabalho. Não importam as poucas pessoas
que se autossusten­tam nos moldes do alfaiate que mencionei. Do alfaiate que faz seus
próprios ternos, sabemos que ele é uma pessoa que mistura à divisão do trabalho algo
que não faz parte desta, fato que é evidente. Na economia moderna está dissimulada
25. a situação de que a pessoa absolutamente não produz seus produtos para si mesma,
não tendo, no fundo, nada em especial a ver com o valor ou o preço desses produtos.
Cabe-lhe apenas — não considerando o processo econômico em que esses produtos
se inserem — introduzir como valor na economia apenas aquilo que ela é capaz de
produzir com suas mãos. No fundo, toda pessoa assalariada é um autossus­tentador.
É uma pessoa que contribui com tanto quanto quer ganhar, já estando condicionada
a contribuir para o organismo so­cial apenas com o equivalente ao que pretende ga-
nhar, e não com tudo com que seria capaz de contribuir. É que ser autossus­tentador
significa trabalhar para o ganha-pão; já trabalhar para os outros significa trabalhar
a partir das necessi­dades sociais.
Na medida em que as exigências da divisão do trabalho já foram cumpridas
nos tempos modernos, realmente existe altruísmo, ou seja, trabalha-se para o pró-
26.
ximo; porém onde tal exigência não foi cumprida perdura o velho egoísmo, pura
e simplesmente baseado no fato de o homem ter de se autossustentar. Egoísmo
3. A Ciência Econômica 33

econômico! De maneira ge­ral não se nota isso no caso do assalariado comum, pois
não se reflete sobre qual seria a base para a permuta de valo­res. O que o assala-
riado fabrica nada tem a ver com a remuneração de seu trabalho. A remuneração,
ou atribuição de valor ao trabalho, resulta de fatores totalmente diversos, de modo
que ele trabalha pelo ganha-pão, para sua autossusten­tação. Tudo isso é disfarçado,
simulado, porém é um fato.
Daí se levanta uma das primeiras questões importantíssi­mas da economia: como
conseguiremos eliminar do pro­cesso econômico o trabalho como ganha-pão? De que
modo pode­mos mudar a posição, no processo econômico, dos que hoje ainda trabalham
apenas pelo ga­nho, para que eles se tor­nem trabalhadores em prol das necessidades
27.
sociais? Será que isso é necessário? Certamente! Pois se não o fizermos, jamais teremos
preços corretos, e sim sempre preços errados. Temos de acertar preços e valores que não
sejam dependentes das pes­soas, e sim do processo econômico — preços resultantes da
flutuação dos valores. A questão crucial é a questão dos preços.
Observando agora os preços do mesmo modo como observamos a posi­ção do ter-
mômetro, nós nos acercaremos das outras condições, que chamamos de subjacentes.
28. Ora, observar o termômetro só tem sentido se pu­dermos partir de um ponto zero. Daí
vamos para cima e para baixo. Ora, para os preços resultará, de um modo todo natu­ral,
uma espécie de ponto zero, e isso da seguinte maneira:
De um lado temos a natureza (v. fig. 2); ela é modificada pelo trabalho humano,
resultando daí os produtos naturais transformados. Este é um ponto onde se produ-
zem valores, tendo-se o va­lor 1. No outro lado temos o trabalho. Ele é modificado pelo
espírito, resultando o outro valor, valor 2. O que eu já disse é que pela interação dos
valores 1 e 2 resultam os pre­ços. Pouco a pouco progredimos na apreensão dessas con­
cepções econômicas. Acontece que nossos valores 1 e 2 são, de fato, polarmente opostos.
Tomemos, por exemplo, aquele que recebe seu ganho nesta área, ou principalmente
nesta área (ver fig. 2, à direita), pois não é possível fazê-lo integralmente numa área
só: trata-se do trabalhador cujo trabalho é organizado pelo espírito, e como tal tem
interesse em que os produtos da natureza sejam desvalorizados. Aquele, todavia, que
trabalha com a natureza tem interesse em que os outros pro­dutos sejam desvalorizados.
E se tal interesse16 se tornasse processo real, como em realidade já o é — e se não fosse
assim os agricultores teriam preços bem diferentes, e vice-versa: nos dois lados temos
29. preços totalmente disfarça­dos —, poderíamos observar possivelmente uma espécie de
preço médio no ponto central onde dois se encontram (para um ato eco­nômico, sempre
são necessários dois), dois que tenham o mínimo interesse possível tanto na natureza
quanto na espirituali­dade ou no capital. Onde encontramos um caso prático disso? É o
caso, na prática, em que observamos um comerciante com­prando de outro comerciante,
ambos comprando um do outro. Aí os preços tendem a adotar seu valor médio. Se, sob
condições que se estabelecem também de forma normal — tere­mos ainda de explicar
essa palavra —, um comerciante de sapatos comprar de um comerciante de roupas e
vice-versa, o que resulta como preço terá a tendência a equili­brar-se numa posição média.
Não devemos procurar a posição mé­dia de preço nos interesses nem dos produtores que
se encontram no lado da natureza nem daqueles que estão no lado do espírito; devemos
procurar os preços médios no comerciante intermediário. Não importa se temos ou não
mais um intermediário. O preço médio tende a surgir onde um intermediário negocia
com outro, comprando e vendendo.
34 Rudolf Steiner

Isso não contradiz o outro enunciado — pois, no fundo, o que são os modernos ca-
pitalistas senão comerciantes? O industrial é, em verdade, comerciante. De passagem,
ele é alguém que produz mercadorias; mas no sentido econômico, é comer­ciante. Em seu
caso, o comércio se desenvolveu com ênfase para o lado da produção, mas essencialmente
30. o industrial é comerciante. Isso é importante, e assim as condições modernas fazem
com que o que se forma aqui no meio (na fig. 2) como determinada tendência irradie
para um e para outro lado. Como isso se dá para um lado, é fácil de compreender se
estudar­mos o empresariado industrial; a maneira como se configura para o outro lado,
isso teremos de verificar nos próximos dias.
4 A divisão do trabalho e a criação de valores
27 de julho de 1922

Ontem eu escolhi um exemplo — um pouco drástico, diria eu — da vida econô-


mica para, com ele, ilustrar algo. Parece que tal exemplo deu muito o que pensar a
alguns dos Senhores. Trata-se do exemplo do alfaiate, para quem sai menos em conta
trabalhar para si próprio, ou seja, fazer um terno para si mesmo, do que comprar seu
terno de um comer­ciante, restringindo-se a fazer ternos só para outras pes­soas. Muito
facilmente pode acontecer que não com­preendamos esse exemplo drástico, pelo fato de
ser totalmente natural fazer o seguinte cálculo: ora, o comerciante compra o terno do
1. alfaiate mais barato do que o vende, já que tem de ganhar alguma coisa; por conseguinte,
é claro que o al­faiate paga mais caro o terno que compra do comerciante — devido ao
acréscimo do lucro deste — do que lhe custaria fazê-lo ele próprio. É evidente, até inevi-
tável que se faça essa objeção; mesmo assim es­colhi justamente esse exemplo drástico
para demonstrar que, com relação à moderna econo­mia, é necessário raciocinar não em
termos de uma economia caseira, e sim em termos uma macro­economia, levando-se em
conta o que surge com a divisão do trabalho.
Em realidade não importa que, logo após ter terminado seu próprio terno, o al-
faiate tenha sofrido uma perda em comparação com o possível resultado caso tivesse
vendido o terno a um comerciante e depois comprado um outro terno; o que aqui vem
2. ao caso é saber se, depois de certo pe­ríodo, digamos, após um período qualquer, ao fazer
as contas o alfaiate teria saído com vantagem por ter feito seu próprio terno ou se lhe
teria sido mais vantajoso deixar de fazê-lo.
Ora, quando atua de fato, a divisão do trabalho barateia os produtos de maneira
correta — por seu intermédio os produtos ficam mais baratos no contexto de toda a
economia; em contraposição, quando atuamos con­tra a divisão do trabalho, é causada
uma pressão sobre os preços dos produtos correspondentes, sendo que essa pressão dos
preços repercute no processo econômico. Em outras palavras: sem dúvida o alfaiate
terá uma vantagem se considerarmos o terno isolado que ele fizer para si próprio;
3. mas em certo sentido ele começará a exercer pressão sobre os preços dos ternos, ini-
cialmente em medida insignificante — mas se mui­tos alfaiates o fizerem, o efeito se
multiplicará. Os ter­nos ficarão mais baratos, e ele terá de vender também os ou­tros
a preço menor. E será somente uma questão de tempo ele verificar em seu balanço
uma perda de renda na venda dos outros ternos, a qual não teria ocorrido se ele não
houvesse exer­cido pressão sobre os preços.
Não vem ao caso o fato de se misturar ao assunto um pouco de raciocínio de econo­
mia caseira. Tampouco eu quis insinuar que o al­faiate não tenha o direito ou o gosto de
4. produzir seu pró­prio terno; porém ele só não deve pensar que isto lhe sai mais barato
— pelo contrário, lhe sai mais caro em seu balanço, após um certo tempo. Em verdade
o resultado seria pequeno num caso drástico como o de nosso exemplo, pois a diferença
36 Rudolf Steiner

pela qual os preços são pressionados só se manifestará depois de longo tempo. O alfaiate
terá de fazer muitos outros ternos antes que a pequena taxa de barateamento se faça
sentir. Mas não há dúvida de que em dado momento ela aparecerá em seu balanço glo-
bal. Digo isto para mostrar-lhes que não se deve racioci­nar de modo tão terrivelmente
obtuso ao se tratar de um processo econômico, que consiste num número imensurável
de fatores engrenados, causadores de cada fenômeno individual.
É claro que, no raciocínio econô­mico, os Senhores logo chegarão a um desastre
se limitarem seus pensamentos, por assim dizer, aos fatos mais próximos das pessoas
atuantes na econo­mia. Desse modo absolutamente não chegarão a compreender algo
5. no processo econômico. Os Senhores devem atentar para a globali­dade do organismo
social; e tal visão global finalmente nos levará a empregar exemplos drásticos, que tal-
vez não se manifestem num só dia e, sim, poderão fazer-se sentir fortemente no curso
de uma década.
Todavia, é muito útil partirmos de tais exemplos meio ab­s urdos a fim de,
gradualmente, transportar nosso modo de pensar costumeiro para um pensar que
abranja o amplo e, nesse processo, perca os contornos rígidos e chegue a apreender as
6. qualidades flutuantes. Pode ser que enxerguemos, nitidamente esboçado, o que se en-
contra ao alcance direto de nossa percepção; trata-se aqui, todavia, de ganharmos uma
visão abrangente, sendo que esta nos fornece ideias bem maleáveis, não coincidentes
com as ideias obtidas num âmbito res­trito.
É isto o que eu gostaria de frisar hoje, para que os Senhores, par­tindo de coisas
relativamente simples, percebam como o processo econômico se compõe dos fatores mais
7. variados. Para nos aproximarmos cada vez mais de uma compreensão do pro­blema do
preço, hoje vamos focalizar o processo econômico como tal a partir de um certo ­ponto
de vista.
É pela natureza que vamos começar. O trabalho humano tem de começar por
ocupar-se com a natureza, transformando os produtos da natureza de modo que esse
produto da natureza receba um valor pelo fato de o trabalho humano incidir sobre ele.
Na economia não lidamos com a substância; a substância como tal não tem valor eco-
nômico. O carvão que se encontra como substância na mina sob a terra não tem valor
8. eco­nômico, nem tampouco receberia um valor econômico caso se deslo­casse por si da
mina para a casa, para o aposento daquele que o utiliza para aquecer. O que transforma
a substância do carvão em valor é o trabalho aplicado, ou seja, o que teve de ser feito
para extrair o carvão e também para instalar a mina, depois para transportar o carvão,
etc. Tudo o que constitui trabalho humano im­presso na substância do carvão é que lhe
confere valor econômico. E é só este que interessa na economia.
Não é possível apreender um fenômeno econômico qual­quer a não ser partindo
de tais ideias. Ora, aplicando desse modo o trabalho humano à natureza, chegamos,
9.
na evolu­ção contínua da economia, forçosamente à divisão do trabalho, a qual surge
pelo fato de várias pessoas colabora­rem num assunto economicamente significativo.
Escolhamos um exemplo bem simples. Suponhamos que numa certa região algumas
pessoas houvessem empreendido uma determi­nada atividade que implicasse no fato de
10. elas se deslocarem de suas casas, em diferentes localidades, até um lugar de trabalho
em comum — digamos, a um lugar de extração de determinados produtos naturais. Su-
ponhamos que estivéssemos ainda numa época bem primitiva, em que os trabalhadores
4. A divisão do trabalho e a criação de valores 37

não encontrassem outro meio de se deslocar senão a pé para o lugar onde trabalham a
natureza. Um dia alguém tem a ideia de construir uma carroça e de usar cava­los para
puxá-la. Agora, o que até então cada um tinha de fazer isoladamente começa a ser feito
em conjunto com aquele que oferece a carroça. Um trabalho é dividido — é dividido o
que, no sentido da economia, constitui trabalho. Na prática isso se passa de forma que
cada um que use a carroça tenha de pa­gar uma certa taxa ao empreendedor carroceiro.
Com isso a pessoa que inventou a carroça ingressou na ca­tegoria dos capitalistas.
A carroça passou a representar um genuíno capital para a pessoa. Onde quer que os
Senhores verifiquem, sem­pre descobrirão que o ponto de nascimento do capital se en­
contra na divisão do trabalho, na articulação do trabalho.17 Mas como foi que se inventou
a carroça? Esta foi inventada por meio do espírito. Todo processo desse tipo consiste na
11. aplicação do espírito ao trabalho, no fato de o trabalho, de uma ou outra maneira, ser
permeado pelo espírito. Portanto, é trabalho permeado pelo espírito o que aparece no
decorrer da divisão do trabalho. Se no curso da divisão do trabalho vemos surgir capital,
não se trata de outra coisa senão de trabalho permeado pelo espírito. A primeira fase
do capital quase sempre con­siste no fato de o trabalho estar sendo organizado, dividido,
etc. a partir do espírito, enquanto antes o era exclusivamente a partir da natureza.
É necessário que se forme, desse ponto de vista, uma clara imagem do capital e
de sua formação — pois somente a partir deste ponto de vista é possível compreender
12.
a função do capital no processo econômico. O surgimento do capital sempre é um fenô-
meno que acompanha a divisão, a articulação do trabalho.
Com isso, porém, algo se desata da relação imediata com a natureza em que se
encontra o ser humano ao trabalhá-la. Enquanto se trata apenas da elaboração da
natureza, não pode­mos falar senão de produtos naturais que foram modi­ficados pelo
trabalho humano e receberam seu valor nesse processo; no momento, porém, em que
dizemos que o espírito organiza o trabalho como tal, ocorre uma emancipação da natureza
13. — pois o homem que cria capital com sua carroça não se importa, no fundo, para qual
finalidade transporta as pessoas de um lugar a outro. Aqui (na figura 2, à esquerda), em
toda parte a natureza, diria eu, ainda transpa­rece através do trabalho humano. Mesmo
não constituindo valor o carvão como substância, e sim aquilo que é im­pregnado nele
como trabalho humano, não há dúvida de que o produto natural transparece através
do trabalho hu­mano. Este é um lado da formação dos valores econômicos.
O outro lado é que aquilo que o espírito organiza no tra­balho se emancipa comple-
tamente da natureza, diferenciando-se completamente dela. E chegamos finalmente no
ponto em que temos o capitalista, a quem não importa que relação com a natureza tem o
trabalho por ele organizado. Pode ocorrer que esse homem resolva, em vez de continuar
14. transportando algumas pessoas em sua carroça para determinado lugar de trabalho
— digamos, na agricultura —, mudar o percurso da carroça e levar outras pessoas a
um outro lugar de trabalho. Fica patente que, com o emprego do espírito, aquilo que é
divisão do trabalho humano se emancipa totalmente do fundamento natural. Com isto
chegamos também à emancipação do capital com relação à base natural.
Os detentores de diversos ponto de vista econômicos defenderam o conceito do
capital como energia de tra­balho acumulada; porém essa é uma definição que, por
15. tratar de algo flutuante, de certo modo só se aplica a uma determi­nada fase. Enquanto
estivermos, no sentido mais estrito, ligados com a organização espiritual a um deter-
minado tipo de trabalho, a natureza ainda transparecerá. No momento, porém, em que
38 Rudolf Steiner

a pessoa se emancipa — ou seja, quando começa a interessar-se exclusi­vamente em


tornar frutífero, pela aplicação do espírito, aquilo que lucrou —, nota-se que na massa
de capital daí resultante gra­dualmente se tornam difusos os contornos do trabalho,
fazendo-o desapare­cer como elemento particular.
Suponhamos que alguém tenha, durante um certo tempo, formado um capital
que prossiga trabalhando economicamente. O dono de uma carroça pode trabalhar
no sentido econômico adquirindo mais carroças. Nesse caso seu capital trabalha eco­
nomicamente. No fundo, porém, nada mais há aí da natu­reza do trabalho. Na pessoa
de um mineiro encontramos bas­tante dessa natureza; no capital, porém, percebemos
16. cada vez menos a participação do trabalho. Isso fica ainda mais evi­dente ao supormos
que o capitalista transfira o negó­cio para outra pessoa, à qual talvez não ligue outro
interesse, com esta transferência, senão a frutificação do que foi gerado pelo espírito;
a natureza do trabalho que está sendo organizado não lhe interessará de maneira
alguma, contanto que este seja or­ganizado. O que lhe interessa é apenas organizar,
não vindo ao caso o que se organiza.
Em outras palavras: trata-se de um processo de abstração real. Trata-se da mesma
coisa que se efetua internamente na abstração do raciocínio lógico, só que aí é efetuada
ex­ternamente. A peculiaridade tanto da substância natural como dos tipos de trabalho
desaparece gradativamente nas massas de capital. Continuando a acompanhar o pro-
cesso econômico, os Senhores verificarão que nada mais existe do que origi­nalmente
17. foi organizado como trabalho. Pois o progresso do processo econômico se nos apresenta
mais ou menos da seguinte forma: o homem que construiu a carroça pelo menos ainda
imprimiu algo de seu espírito à invenção; agora ele ganha — ganha mais valor do que pode
dar conta. Ora, devem esses valores permanecer ina­proveitáveis para a economia? Não
devem. Deve surgir mais alguém que possa aproveitar esses valores tornando-os produ-
tivos de ma­nei­ra diversa, isto é, incutindo-lhes um tipo diferente de qualidade ­espiritual.
Assim os Senhores podem imaginar que os valores gerados pelo inventor da car-
roça — isto é, o que resultou como fru­to da invenção — após algum tempo passariam à
posse de um ferreiro artesanal. Este dispõe do espírito para instalar uma forja artesanal;
18. porém só com esse espírito, sem mais, ele nada pode começar. O outro, no entanto, já­
criou valo­res econômicos que deve transferir ao ferreiro. Nisto já temos o mais pleno
processo de abstração na realidade externa.
Portanto, para que o processo possa continuar, isto é, para que o construtor da
carroça possa passar seus valores ao ar­tesão, será necessário existir um elemento que se
19. relacione, como algo abstrato, com o elemento específico que vive na economia. E isso é, de
princípio, o dinheiro. O dinheiro não é outra coisa senão o valor, expresso exteriormente,
gerado pela divisão do trabalho e transferido de uma pes­soa a outra.
Vemos, pois, surgir o capitalismo no decorrer da divisão do trabalho, vemos sur-
gir a economia monetária no prossegui­mento do capitalismo, e isso logo de início. O
dinheiro é algo totalmente abstrato com relação aos processos eco­nômicos específicos.
Com cinco francos no bolso poderíamos comprar tanto um almoço ou um jantar quanto
20. a parte de um terno. Ao dinheiro é irrelevante o que se compra, ou seja, pelo quê ele
é trocado no processo econômico. O dinheiro não tem absolutamente interesse pelos
diversos fatores econômicos enquanto ainda influenciados pela natureza; assim ele se
torna a expressão, o instrumento ou, enfim, o meio de o espírito in­tervir no organismo
econômico em que prevalece a divisão do trabalho.
4. A divisão do trabalho e a criação de valores 39

Sem a criação do dinheiro não seria possível a interven­ção do espírito no or-


ganismo econômico, se considerarmos a divisão do trabalho. Sendo assim, podemos
dizer o seguinte: aquilo que originalmente se acha unido na situação econômica e
que cada um, em seu egoísmo, consegue ganhar com seu trabalho, é re­partido em
prol da comunidade. É assim que ocorre na di­visão de trabalho. No capital, as par-
21. tes são novamente reunidas num processo global. A formação de capital é, de fato,
uma síntese. Desse modo, a pessoa que se constitui em for­mador de capital e que,
pela necessidade do surgimento do dinheiro, pôde converter seu capital em capital
monetário, torna-se credor18 para alguém que não possui senão espí­rito. Este recebe
o dinheiro, que é o verdadeiro represen­tante de valores econômicos gerados pelo
espírito.
Devemos, realmente, encarar a coisa do ponto de vista puramente econômico. Por
mais maléfico que o dinheiro possa ser no sentido religioso ou ético, no sentido econômico
ele é o espírito operante no or­ganismo da economia — não é outra coisa. Portanto, no
processo econômico o dinheiro tem de ser gerado para que o espírito possa progredir
em seu curso, desde o ponto de partida em que primeiramente se alia à natureza. Ele
permaneceria em estágios primitivos caso sua ligação se res­tringisse à natureza. Para
que se possam infundir no processo econômico as realizações do espírito, este tem de
22.
tornar-se realidade como dinheiro. O dinheiro é espírito materializado. É aí que entra
novamente o concreto. Inicialmente o dinheiro é uma abstração, da qual se pode dizer o
seguinte: não faz diferença se, por cinco francos, compro uma parte do terno ou mando
cortar uma ou várias vezes meu cabelo — ou seja, nada disso importa, para o dinheiro.
Porém no momento em que o dinheiro volta à pessoa e, com isso, ao espírito do homem,
transforma-se naquilo que novamente, nessa si­tuação concreta, opera economicamente.
Vale dizer que no dinheiro o espírito é economicamente operante.
Com isso, porém, cria-se uma situação toda particular. Aquele que inicialmente
ganhou o dinheiro torna-se emprestador, credor; o outro, que só tinha o espírito e
recebe o dinheiro, torna-se devedor. Cria-se um relacionamento entre duas pessoas.
Uma relação idêntica pode ser criada pelo fato de os emprestadores serem várias
pessoas que dão a uma outra seu superávit, possibilitando a esta última, por meio
de seu espírito, efetivar uma síntese ainda mais elevada; não obstante, ela per-
manece devedora. Esta trabalha sobre uma base que se emancipou totalmente da
base natural, pois mesmo o que ela recebe dos primeiros capitalistas lhe representa
um nada e deve ser devolvido depois de algum tempo, já que não lhe pertence. Na
23. verdade ela não trabalha economicamente senão enquanto devedora; em contra-
posição, é economicamente responsável como criadora intelectual. No tratamento
da questão social, devemos levar especialmente em conta que certamente um dos
relacionamentos mais saudáveis é aquele em que uma pessoa intelectualmente
criativa19 é liberada para trabalhar em prol da comunidade por esta lhe ter dado o
dinheiro para isso. Ainda veremos qual é o papel de proprie­dade e posse nesse con-
texto. Por enquanto trata-se de acom­panharmos o processo econômico. É indiferente
considerar­mos ou não o emprestador como alguém que tem posses e o devedor do
modo como o considera a jurisprudência. O que nos interessa, neste momento, é
como decorre o processo eco­nômico.
Vemos, enfim, uma parte do processo econômico onde a atuação parte unicamente
24.
do que foi conquistado pelo espírito, do que já se emancipou. Mas essa realização espi­
40 Rudolf Steiner

ritual se originou da organização do trabalho. Agora, porém, encontramo-nos na segunda


etapa. Nessa segunda etapa, em que um agente cultural ou espiritual atua como devedor,
seria to­lice, no sentido econômico, querer afirmar que o capital de empréstimo recebido
por essa pessoa seja trabalho cristalizado; para o processo econômico, não importa o
modo como é gerado o capital que ela deve. O im­portante é em que condições se encontra
o espírito de quem recebe o dinheiro, e se este é capaz de transformá-lo em pro­cessos
econômicos frutíferos. O primeiro trabalho que gerou o capital já não tem valor econô-
mico; tal valor econômico repousa agora unicamente no espírito que ele consegue ativar
para tornar o capital produtivo. Imaginem o seguinte: por mais espírito que possa estar
armazenado no capital, vem um tolo qualquer e desperdiça tudo; trata-se de um processo
diferente do que existe quando uma pes­soa inteligente o usa para iniciar um processo
frutífero.
Portanto, nessa segunda etapa, em que se lida com credor e devedor, deve-se dizer
25.
o seguinte: aqui se trata de capital do qual já desapareceu o trabalho.
Em que consiste, agora, o significado econômico de tal ca­pital de onde desapa-
receu o trabalho? O significado econômico consiste meramente no fato de primeiro se
26. haver criado a possibilidade de conseguir, ou seja, de acumular tal capital devedor, e,
se­gundo, de este poder tornar-se produtivo por meio do espírito. É nisto que consiste o
significado econômico desse capital.
Disso resulta, como algo real, a relação entre o devedor e seus financiado-
res. O devedor se encontra bem no meio do processo econômico iniciado por ele.
De um lado lidamos com o que tende a ele e, de outro, com algo que parte de quem
27.
produz por meio do espírito, isto é, do próprio devedor. Podemos dizer que, nes-
te caso, aquilo que de um lado é capital de empréstimo é, pelo simples fato de se
tornar capital devedor, transformado na segunda etapa do processo econômico.20
Em tudo isso não existe outra coisa senão a circulação do capital; todavia, tal
circulação do capital se encontra numa atividade sócio-orgânica, tal como temos o san-
28.
gue ativo na organização humana ou animal ao correr através da cabeça e ser utilizado
para o que a cabeça produz.
Podemos perguntar o seguinte: o que é provocado pelo fato de aparece­rem em-
prestadores e devedores? Trata-se de uma situação bem idêntica à que encontramos na
Física como diferença de nível. Se temos água em cima, esta chega embaixo por causa
29. da diferença de nível. Da mesma maneira, simplesmente existe uma diferença de ní-
vel social entre a primeira posição do capital e a segunda — entre a do em­prestador,
que não sabe o que fazer com o capital, e a do devedor, que sabe utilizá-lo. É isso que
provoca a diferença de nível.
Devemos considerar o que é que atua nessa diferença de nível. O agente nem
é o que se manifesta como espírito no processo; o que condiciona tal diferença de
nível são os diferentes dons das pessoas. Se, num processo econômico sadio, um tolo
tiver capital, ele ficará em cima e o inteligente embaixo. Isso causa a diferença de
30. nível, e o capital tende a fluir para os inteligentes.21 E é a dife­rença de nível entre
as disposições humanas que dá o impulso para o capital fluir. Na realidade não é
a atividade humana, e sim a qualidade humana das pessoas inter-relacionadas no
or­ganismo social que causa a diferença de nível, dando continuidade ao processo
econômico.
4. A divisão do trabalho e a criação de valores 41

Observando concretamente esse processo econômico, poder­-s­ e-á dizer o seguinte:


— Nós partimos da natureza, que em si não tem valor. O fato de não o ter evidencia-se, por
exem­plo, no pardal que não paga pela satisfação de suas necessi­dades junto à natureza.
Portanto, a natureza como tal ainda não tem valor econômico. Isso nos é evidenciado
pela economia do pardal em confronto com a economia humana. O valor, na economia,
começa no momento em que o trabalho humano se alia à natureza. O processo econô-
31. mico dessa forma tem sua continuação na divisão do trabalho. O que temos até agora,
podemos chamá-lo, de um modo altamente indefinido, de ‘trabalho aplicado à natureza’.
Para chegarmos a preencher a coisa com um perfeito sentido econômico, quero desig-
nar tal fenômeno como Nt = natureza apreendida pelo trabalho humano. O que quer
dizer isto no sentido da economia? Como já vimos, isto é valor; na economia isto é valor.
Podemos, portanto, dizer o seguinte: a natureza, apreendida pelo trabalho humano,
tornada valor = NtV. Este é um aspecto.
Agora vem a divisão do trabalho. Con­tudo, o que quer dizer, neste sentido, divisão
do trabalho? Divi­são do trabalho, neste sentido, significa desmembrar a­queles processos
que foram inicialmente executados como sendo aplicados à natureza e continuaram
então a existir. Se eu trabalho para construir toda uma estufa, tenho de percorrer os
32.
mais diversos processos de trabalho; se divido o trabalho, desmembro os processos —
eu divido. Se em NtV temos o produto da natureza modificado pelo trabalho que se
tornou valor, aquilo que resulta da divisão do trabalho, ou seja, da desmembração de
NtV, tem de ser = NtV1, NtV2, etc. (poderíamos escrevê-lo também de outra maneira).
Considerando isso como um processo real, de que forma de­vemos expressá-lo no
momento da incidência da divisão do trabalho? Ora, por uma divisão, por uma fração.
Aquilo que existe na realidade deve, ao passar para a divisão do trabalho o valor que
aqui anotei, ser dividido de algum modo. A questão, agora, é a seguinte: pelo quê deve-
mos dividi-lo? O que é que divide esse processo? O que é o divisor? É claro que para tal
devemos olhar para o outro lado. Na matemática pura, basta usar o que é dado nos
números; tendo, porém, de desco­brir processos de cálculo na própria realidade das coi-
33.
sas, é preciso encontrar o que divide de fato. Já encontramos do outro lado o trabalho
apreendido pelo espí­rito. Podemos, portanto, confrontar NtV com o trabalho apreendido
pelo espírito, que se torna valor para o outro lado = TeV, escrevendo-o embaixo da linha
fracionária. Ora, já chegamos a compreender algo sobre esse trabalho apreen­dido pelo
espírito: se ele deve continuar agindo no processo econômico, e deve fazê-lo depois do
NtV ser dividido, já vimos o que acon­tece com TeV = trabalho organizado pelo espírito
e transformado em valor:
NtV

TeV
Surge o dinheiro. O dinheiro, porém, não surge aqui em toda a sua abstração,
embora eu deva dizer que já seja abstrato como a substância à qual o espírito se di-
rige; porém está sendo assaz individualizado, bem particu­larizado quando o espírito
34. o apreende e o aplica nisso ou naquilo. Pelo fato de atuar assim, o espírito como tal
determina o va­lor do dinheiro. É aqui que o dinheiro começa a adquirir um deter-
minado valor. Ora, se um tolo desperdiça o dinheiro em algo que não dá frutos, ou
se o aplica de outra maneira qual­quer, em todo caso isso se reflete como valor bem
42 Rudolf Steiner

determi­nado no processo econômico. Desse modo, algo relacionado com dinheiro é


recebido como denominador. Como numerador, é claro, não podemos ter senão algo
em que se transformou a substância da natureza. Se, porém, uma substância da na-
tureza se transformar pelo trabalho e se inserir no processo econômico, ela se tornará
mercadoria (colocada, na fórmula, acima da linha fracionária = mercadoria). E aquilo
que constitui trabalho organizado é dinheiro (colocado, na fórmula, abaixo da linha
fracionária = dinheiro). A fórmula significa que agora surgiram novos valores: o valor-
-mer­cadoria e o valor-dinheiro. Tendo em mente um
Nt V
mercadoria processo econômico baseado na divisão do trabalho,
=
TeV
dinheiro devemos compreender que o quociente resultante da
divisão da mercadoria existente no processo econômico
pelo dinheiro circulante nesse processo — se o encararmos não como o que temos em
caixa, e sim como algo apreendido pelo espí­rito dohomem —, que tal quociente repre-
senta uma atuação conjunta em que o dinheiro é o divisor, o denominador. E é em tal
atuação conjunta — que de modo algum pode ser representada por uma subtração,
mas por uma divisão — que consiste, em verdade, a saúde do processo econômico. Para
chegarmos a compreender a saúde do processo econômico, teremos de compreender o
que realmente age no numerador e no denominador da fração.

NtV mercadoria
Saúde = =
TeV dinheiro

Cada vez mais teremos de compreender em que consiste a essência da merca-


doria, por um lado, e em que consiste a essência dos meios cir­culantes — do dinheiro
—, por outro. Não poderão ser soluciona­das as mais importantes questões da Ciência
Econômica se não nos aprofundarmos desse modo minucioso no assunto, e se não com­
35.
preendermos também claramente que tudo o que ocorre na economia sempre terá de ser
algo flutuante. Basta a mer­cadoria ser levada de um lugar para outro e o numerador
já muda, e assim por diante. De fato, só posso provar sempre o quanto tudo é flutuante
no processo econômico.
Há uma diferença considerável entre a carteira com cinco francos que eu tenho
no bolso e a que uma outra pessoa tem, também com cinco francos. Não é indiferente
em qual das duas car­teiras estejam os cinco francos; tudo isso tem de ser apreendido,
36.
absolutamente, no processo econômico concreto. Se não for assim, teremos apenas alguns
conceitos abstratos e desconexos de preço e valor, de produção e consumo, etc., e não se
apreende aquilo que realmente leva à compreensão do processo econômico.
O infinitamente entristecedor de nossa época é que nos encontramos numa situação
caracterizada pelo fato de a humanidade se haver acostumado, durante séculos, a ter con-
ceitos de contornos nitidamente delineados mas não aplicáveis ao processo; e tal situação
nos impede de fazer o que hoje se ergue diante de nós como uma exigência pre­mente, ou
seja, a necessidade de mobilizarmos nossos conceitos a entrar em movimento, a fim de
37.
podermos penetrar com nosso pensar nos processos econômicos. É isso o que deve ser
conseguido: a mobilidade do pensamento necessária para podermos pensar de dentro
do processo como tal. Cer­tamente as Ciências Naturais também perscrutam processos,
mas apenas tal como se apresentam vistos de fora. Isso em nada nos ajuda. Teríamos
de subir bem alto num balão22 e observar o processo econômico tal como o químico ob-
4. A divisão do trabalho e a criação de valores 43

serva seus processos pelo lado de fora. O característico dos proces­sos econômicos é que
nos encontramos dentro deles. Devemos, pois, estudá-los a partir de dentro. Temos de
aclimatar-nos nos processos econômicos tal como, digamos, um ente que se encontre
dentro de um balão de ensaio. Aí se compõe algo sob a ação do calor. Tal ser no balão de
ensaio, que estou querendo equiparar a nós, não pode ser o químico, mas deveria ser um
ente que sofresse o calor, vindo a ferver também. O químico não pode fazer isso; para ele
o processo é algo situado fora dele. Na Ciência Natu­ral estamos fora dos processos. O
químico não poderia aguen­tar uma temperatura de 150 graus centígrados. No processo
econômico nós to­mamos parte em todas as fases, tendo de compreendê-lo inte­riormente.
Por isso talvez um matemático pudesse dizer o seguinte: “É verdade que você nos deu
algo como uma fórmula. Não estamos acostumados a construir fórmulas matemá­ticas
dessa maneira.” Certo, pois estamos acostumados apenas a ver as fórmulas matemáti-
cas construídas, observando os proces­sos do lado de fora! Devemos desenvolver a visão
concreta para obter­mos um numerador comum e um divisor, para compreendermos que
um processo tem de ser representado por uma divisão, e não por uma subtração. Temos
de tentar pensar no processo econômico a partir de dentro. Foi por isso que ontem eu
escolhi aquele exemplo drástico, em que não lhes apresentei o al­faiate e o comerciante
vistos de fora, tal como faz a Ciên­cia Natural; é que dessa maneira não conseguiríamos
compreender do que se trata. Se quisermos adentrar o processo, não nos agradará um
modo de pensar que só observe do lado de fora, como o pesquisador que olha o balão de
ensaio apenas do exterior. Devemos representar interiormente toda a soma de pro­cessos
que se passam entre o alfaiate e todos os efeitos eco­nômicos.
Eu não estaria sendo veraz no cumprimento do que os Senhores esperam de
38. mim se apresentasse o assunto de maneira diferente do que estou fazendo. Com
isso a coisa ficou um pouco difícil desde o início.
5 A produção e o consumo de valores
28 de julho de 1922

Avançando ainda um pouco na consideração das sequências factuais que ontem


1.
contemplamos no âmbito do processo econômico, chegaremos ao seguinte resultado:
Vimos como o processo econômico é posto em movimento pelo fato de a natureza
começar a ser trabalhada, de modo que o produto natural, ainda puro e sem valor para o
processo econômico, transforma-se no produto elaborado. Depois vimos como o processo
prossegue quando o trabalho, por assim dizer, é capturado pelo capital que o articula
e organiza, e na sequência o trabalho desaparece novamente no capital, de maneira
2. que é o capital que deve trabalhar para o processo econômico continuar a progredir.
Tal trabalho, porém, não é idêntico ao trabalho executado an­teriormente; é, antes, um
processo de aproveitamento do capi­tal pelo elemento puramente espiritual. E é pelo
fato de o elemento espiritual tornar o capital novamente produtivo dentro do processo
econômico, tal como o descrevi ontem, que este processo progride.
Para podermos chegar gradativamente à compreensão da fórmula indicada ontem,
quero demonstrar de uma maneira es­quemática — simbólica, por assim dizer — o que
acabo de expor. Podemos dizer que a natureza desaparece no trabalho (v. figura 3).
Temos então este fluxo da natureza para dentro do trabalho; a natureza submerge no
trabalho. O trabalho conti­nua desenvolvendo-se; os valores criados prosseguem fluindo
adiante. O trabalho desaparece dentro do capital. Acompanhamos o processo até este
3.
ponto (v. figura 3). Agora será fácil levá-lo adiante. É preciso que o círculo se feche. O
capital não pode sim­plesmente estancar, caso contrário não se trataria de um processo
orgânico, e sim de um processo que morreria no capital. O capi­tal deve novamente desa-
parecer na natureza. Penso que os Senhores podem acompanhar com os próprios olhos
a necessidade de o capital desaparecer na natureza; mas antes devem poder apoiar-se
em ou­tro conceito, caso queiram compreender corretamente tal desa­parecimento.
Recapitulemos a parte do processo econômico que pude ex­por-lhes até aqui. De-
monstrei a elaboração da natureza, a organização do trabalho pelo espírito e, com isso,
o surgimento do capital, que é um fenômeno que acompanha a organização do trabalho
pelo espírito. Depois a disponibilidade do capital — a qual, de certo modo, consiste em
4. receber o capital proveniente do espírito que organiza o trabalho, ou seja, esta emanci-
pação do capital pela qual o trabalho desaparece para, em seguida, o espírito inventivo
atuar no capital, em sua qualidade de espírito atuante no contexto social. Não nos in-
teressa aqui o aspecto técnico das invenções; este só será levado em conta no decorrer
ulterior de nossas exposições.
Ora, os Senhores podem verificar que tudo o que lhes expus o foi a partir de
um ponto de vista unilateral; contudo, foi necessário proceder desse modo. Tudo foi
5. descrito a partir do ponto de vista da produção. Quando muito, até agora falei apenas
indicativamente de outra coisa que não a produção. Talvez eu haja às vezes incluído
conceitos pertencentes ao consumo, quando se tratou de nos familia­rizarmos um pouco
46 Rudolf Steiner

com a questão do preço; mas do consumo propria­mente dito os Senhores, na verdade,


nada terão percebido. Falei então somente da produção; porém o processo econômico
não consiste apenas em produção, mas também em consumo.
Por uma consideração simples, os Senhores chegarão a perceber que o consu-
mo é o polo diametralmente oposto ao da produção. Empenhamo-nos em encontrar,
no âmbito da produção, valores que nascem no processo econômico; o consumo,
no entanto, consiste no contínuo aniquilamento dos valores, num contínuo gasto
desses valores — portanto, em sua contínua desvalorização. E isso é, de fato, o que
6. desempenha o outro papel no processo econômico: a contínua desvalorização dos
valores. É precisamente por isso que se pode dizer, justificadamente, que o processo
econômico é um processo orgânico onde intervém o elemento espiritual — pois um
organismo consiste em construir algo e novamente destruí-lo. No organismo deve
haver constante pro­dução e consumo. O mesmo deve haver no organismo econômico:
deve-se produzir e consumir constantemente.
Isso nos leva a considerar sob outra luz, de um outro ponto de vista, as forças pro-
dutoras de va­lores conhecidas por nós até agora. Na realidade, até agora demonstramos
somente o modo como nascem valores dentro ou no curso do processo produtivo. Ora,
7. a cada vez que um valor se aproxima de uma desvalorização, muda todo o movimento
contínuo até aqui verificado. Vimos que surgem va­lores pela aplicação do trabalho à
natureza, surgem também valores pela aplicação do espírito ao trabalho e, ainda, pela
aplicação do espírito ao capital — tudo isso constituindo um movimento progressivo.
Podemos, portanto, dizer que estivemos considerando o movimento forma­dor de va-
lores no âmbito do processo econômico. Porém existe algo mais, pelo fato de, em toda parte
no processo econômico, surgir também o que desvaloriza, o consumo. Existe o desenvolvi-
mento de valores resultante da interação entre a própria produção e o consumo. Ao entrar
no con­sumo, o valor deixa de progredir — ele não aumenta. Ele não progride porque algo
8.
se lhe opõe. E o que se lhe opõe é o consumo, com as necessidades que gera. Aí o valor se
encontra numa si­tuação completamente diferente do que observamos até aqui. Até agora
consideramos o valor num movimento contínuo. Agora temos de começar a notar que o
valor avança até certo ponto, onde é detido. A cada vez que o valor é detido, o movi­mento
formador de valores não continua, sendo substituído por uma tensão formadora de valores.
Esse é o segundo elemento no processo econômico. Neste não temos so-
mente movimentos formadores de valores, mas tam­b ém tensões formadoras de
valores. Tais tensões se nos mos­t ram mais claramente, no confronto do consu-
midor com o pro­d utor ou comer­c iante, quando no momento seguinte a forma-
ção de valores cessa pelo fato de passar à desvalorização. Forma-se uma tensão
que se mantém em equilíbrio pela ne­c essidade que surge do outro lado. É aqui
(v. figura 3) que o processo formador de valores é detido, sendo que a necessi­dade lhe
9. vem de encontro causando a tensão entre produção e consumo, que também é fator de
valor — fator que agora se revela como uma fonte de energia refreada e mantida em
equilí­brio, e não como uma continuação do fluxo de energia. Temos nisso um caso aná­
logo ao do contraste, na Física, entre forças dinâmicas vivas e forças de tensão, entre
energias dinâmicas e energias estáticas, nas quais é produzido um equilíbrio. Não
tomando em consideração tais energias de tensão no processo econômico, chega-se às
ideias mais estranhas. Veremos que quem desenvolver tais ideias estranhas, embora
possa chegar à compreensão de condições eco­nômicas isoladas em geral, chegará aos
5. A produção e o consumo de valores 47

conceitos mais confusos. Se, por exemplo, só tomar unilateralmente em consideração os


mo­vimentos econômicos das energias, não poderá compreender por que o diamante na
coroa inglesa possui um va­lor tão espantosamente alto; para tal seria preciso recorrer ao
conceito do valor de tensão econômica. Da mesma forma, vemos ainda hoje que muitos
entendidos em Ciência Econômica in­cluem em seus cálculos a raridade de um produto
da natureza. Jamais se che­gará a entender a raridade como fator formativo de valo­res
considerando-se somente o movimento como formativo de valores no âmbito econômico,
sem compreender como em toda parte, porém mais pronunciadamente no extremo do
consumo ou também sob outras condições, a formação de valores se dá por meio de ten-
sões, de situa­ções, estados de equilíbrio.
Vemos, portanto, que no processo econômico — que desse modo pode­mos consi-
derar como plenamente orgânico e onde o espí­rito intervém continuamente — pode-se
apresentar também a desvaloriza­ção. A desvalorização tem de existir ou existe cons-
tantemente. Sendo assim, podemos dizer que neste caminho (ver desenho) percorrido
10.
pelos valores — da natureza e do trabalho ao capital — ocorre concomitantemente
uma contínua desvalorização. Se, por acaso, tal desvalorização não pudesse ocorrer de
maneira correta, o que aconteceria então? O que aconteceria pode-se tornar visível aos
Senhores precisamente neste lugar (v. figura 3).
Para ter uma imagem clara, utilizemos um pouco a questão do crédito. Se qui-
sermos colocar o capital a serviço do espírito, no sentido tal como o descrevi ontem, o
produtor espiri­tual se tornará devedor. Ele se torna devedor ou pode tornar-se devedor
pela única razão de ter crédito. O crédito entra aqui (v. figura 3), e neste caso é o que se
11. pode chamar de crédito pessoal para projetos.* Ele tem crédito, e esse crédito pode ser
expresso em números. O capital que muitas ou diversas outras pessoas lhe adiantam
forma seu crédito pessoal para projetos. Tal crédito pessoal tem, como sabemos, uma
certa consequência, ao menos quando o consideramos no contexto de nossa economia
atual. Seu efeito econômico tem a ver com a taxa de juros.
Suponhamos que a taxa de juros seja baixa.24 Terei de pa­gar pouca coisa às pessoas
que me adiantam o capital, quando eu, como criador espiritual no processo econômico,
me torno devedor, ou seja, uma pessoa que recorre ao cré­dito. Pelo fato de eu ter de pagar
menos juros, posso produzir minhas mercadorias a um preço mais baixo: assim poderei
influir no processo econômico no sentido de se baixarem os preços. Podemos, portanto,
dizer que o crédito pessoal para projetos barateia a produção quando a taxa de juros se
12.
reduz. Será sempre assim enquanto considerarmos a circunstância de simplesmente
o espírito tornar produtivo o capital no processo econômico. No caso de a taxa de juros
baixar, a pessoa que utiliza o crédito terá maior facilidade para produzir, podendo in-
tervir de maneira mais intensiva no processo econô­mico, ou seja, mais intensivamente
em favor dos outros. Se ela começar a produzir a preços mais baixos, sua inter­venção
no processo econômico será frutífera primeiramente para os consumidores.
Consideremos agora a outra possibilidade. Um crédito, o assim chamado crédito
real, é concedido com base em terras.25 No caso do crédito real sobre terras, a coisa é es-
13.
sencialmente di­ferente. Suponhamos que a taxa de juros seja de 5%, isto é, que a pessoa
captadora do crédito sobre suas terras tenha de pagar 5%. Capitalizando isto, teremos

* Steiner utiliza a expressão ‘crédito pessoal’, à qual acrescentamos ‘para projetos’, significan-
do ‘crédito baseado na verdadeira confiança no que a pessoa é capaz de realizar’. (N.E.)
48 Rudolf Steiner

o capital correspondente a essas terras, ou seja, o que deve ser pago por essas terras
quando compradas. Suponhamos agora que a taxa de juros caia para 4%; neste caso pode
ser — e é — creditado mais capital por essas terras.26 O que vemos por toda parte é que,
na esteira de taxas de juros em declínio, as terras não baixam de preço, e sim ficam mais
caras. O crédito real encarece enquanto o crédito pessoal para projetos barateia. O crédito
real eleva o preço das terras, enquanto o crédito pessoal para projetos abaixa os preços
dos pro­dutos. Tais condições têm realmente muita significação no processo econômico —
pois no momento em que o capital re­torna à natureza, ou seja, simplesmente se reúne à
natureza sob forma de crédito real, resultando numa conexão entre capital e terras, entre
capital e natureza, o processo econômico é cada vez mais conduzido à elevação dos preços.
Portanto, o processo econômico só transcorrerá de modo sen­sato se o capital não se
conservar aqui (v. figura 3) na natureza, e sim desaparecer dentro dela. De que ma­neira
o capital pode desaparecer dentro da natureza? Ora, enquanto pudermos unir o capital
à natureza, ou seja, constantemente encarecer, pela formação de capital, a natureza em
seu estado ainda original, o capital não poderá sumir dentro da natureza; pelo contrá-
rio, ele se preservará dentro dela. Em todos os países em que a legislação hipotecária
permite que o capital se una à natureza, o re­sultado é um estancamento do capital na
natureza sob forma de terras. Em vez de o capital ser consumido aqui (v. figura 3), isto
é, de desaparecer aqui, em vez de surgir aqui uma ten­são formadora de valores, surge
um novo movimento, formador de valores, nocivo para o processo econômico. O único
meio de evitar isso seria, num processo econômico sadio, não se conceder, à pessoa que
14.
terá que trabalhar as terras, um crédito real sobre estas, mas somente um crédito pessoal,
ou seja, um crédito para a utilização do capital no cultivo das terras. Se simplesmente
unirmos as terras ao capi­tal, este estancará ao chegar à natureza. Unindo-se, porém, à
produtividade espiritual de alguém que apenas exerce a gestão das terras, promovendo
assim o processo econômico, ao chegar à natureza o capital desaparecerá, não vindo a
es­tancar; ele não será preservado, e sim retornará ao trabalho através da natureza, pas-
sando assim por novo ciclo. Um dos estancamentos mais nocivos no processo econômico
é cau­sado pela simples vinculação do capital à natureza; com isso — se nos situarmos
hipoteticamente no início do processo econômico, onde vemos desenvolverem-se trabalho
e capital em conexão com a natureza —, na continuidade do processo, o capital fica em
con­dições de apoderar--se da natureza, ao invés de perder-se dentro dela.
Sem dúvida os Senhores poderiam apresentar uma grave objeção, que seria a
seguinte: ora, foi justamente dentro desse movimento que nasceu o capital; o que ocor-
rerá quando o capital chegar lá, diante da natureza, em volume tão grande que não
haja possibilidade de canalizar tudo para o trabalho? — ou quando, digamos, não haja
a possibilidade de se encontrarem novos métodos de trabalho ou de incenti­var a produ-
ção de matéria-prima? Em todos esses casos não é a natureza que é ligada ao capital, e
sim o trabalho: se, portanto, chegarmos aqui (figura 3) com nosso capital e tornarmos
15.
mais racional a produção de matéria-prima, ou abrirmos novas fontes de produção de
ma­téria-prima ou coisas semelhantes, poderemos aqui canalizar o capital diretamente
para o trabalho. E quando houver excesso de capital27, é claro que os vários detentores
de capital sentirão o efeito disto, pois não terão onde aplicá-lo. A observação da História
nos confirmará ter, de fato, surgido um excesso de capital, que por isso não encontrou
outro caminho senão conservar-se na natureza. Como consequência observamos o sur-
gimento do assim chamado aumento do valor das terras no processo econômico.
5. A produção e o consumo de valores 49

Levando porém em consideração, nesse contexto mais am­plo, o que sempre foi
apresentado de maneira insatisfatória pelos adeptos da reforma agrária — de modo
que jamais se chegou a compreender o assunto perfeitamente —, teremos de con-
cordar que ao se unir o capital à natureza o valor desta, é claro, se elevará. Quanto
mais um bem é sobrecarregado com hipo­tecas, tanto maior é seu preço. O valor cresce
constan­temente. Ora, será que essa elevação do valor das terras é uma realidade?
Obviamente não. Por natu­reza, as terras não podem crescer em valor a não ser que
lhes seja aplicado um trabalho mais racional. Nesse caso é o trabalho que aumenta
16. o valor; porém o aumento de valor das terras como tais — caso não tenha havido
melhorias através de trabalho prévio — é um per­feito absurdo, um contrassenso. As
terras, enquanto apenas pertencentes à natureza, ainda não podem absolutamente ter
valor. Nós lhes conferimos um valor ao ligar o capital a elas, podendo-se assim di­zer o
seguinte: o que, hoje em dia, se chama de valor das terras no contexto econômico não
é, em verdade, outra coisa senão o capital fixado nas terras; porém o capital fixado
nas terras não é um valor real, e sim um valor aparente. É isso o que importa, ou
seja, que se aprenda finalmente, no âmbito do processo econômico, o que são valores
reais e valores aparentes.28
Se em seu sistema mental se alojou um erro, os Senhores não percebem logo
a ação desse erro, pois a conexão entre o erro e todos aqueles diferentes distúrbios
de processos orgânicos ligados a ele, só possíveis de serem descober­tos por meio da
ciência noológica, pode ser detectada pelos métodos grosseiros da ciência moderna.29
Ignora-se, por exemplo, o fato de erros causarem distúrbios digestivos nos órgãos
periféri­cos. Porém no processo econômico os erros e formas ilusórias se fazem notar,
tornando-se reais e surtindo consequências. E no sentido econômico realmente não
17.
faz dife­rença essencial se, por exemplo, em algum ponto eu gasto dinheiro que não
esteja baseado em realidade alguma, representando apenas um aumento de papel-
-moeda em circulação, ou se confiro às terras valor de capital. Em ambos os casos
estou criando va­lores ilusórios. Por tal aumento de papel-­moeda eu elevo os preços
numericamente, mas na verdade nada realizo no processo econômico. Apenas desloco
as coisas, podendo, toda­via, causar grandes danos ao indivíduo. É assim que a capi­
talização das terras causa dano às pessoas envolvidas no processo econômico.
Poder-se-ia fazer estudos bem interessantes comparando, por exem­plo, a legislação
hipotecária tal como vigorava antes da guerra** nos países da Europa Central — onde
a própria legislação facilitava o livre aumento dos preços das terras com efeitos sobre
18. o processo econômico — com a legis­lação da Inglaterra, que de certo modo não permite
um au­mento substancial dos preços das terras. Tais assuntos podem servir de temas
de dissertação bem interessantes. Um bom tema seria a comparação numérica entre
os efeitos das legislações hipotecárias inglesa e alemã.
Com isso pude ilustrar-lhes que na verdade se trata do seguinte: a natureza não
deve levar aqui (v. figura 3) a uma conservação do capital, devendo este, pelo contrá-
rio, continuar a fomentar o trabalho. Quero frisar uma vez mais o seguinte ponto: a
19.
única medida para evitar a presença de capital lá onde não possa ser utilizado é fazer
o excedente ser consumido durante o processo (v. figura 3), restando assim somente o
quanto, nesse trabalho, possa ser empregado no cultivo das terras. A coisa mais natural

** Primeira Guerra Mundial (1914-1918). (N.E.)


50 Rudolf Steiner

é que, deste modo, o capital seja consumido aqui (figura 3). A hipótese de que em todo
o ciclo nada se consuma é algo trágico. Seria necessário arrastarem-se os produtos por
todo o caminho. O processo se torna orgânico unicamente pelo fato de as coisas serem
consumidas. Da mesma maneira, todavia, como é consu­mida a natureza trabalhada,
por um lado, e o trabalho organi­zado pelo capital, por outro, é que o capital deve ser
totalmente consumido em seu caminho ulterior. É esse consumo de capital o que tem
de ser realizado.
Isso só pode ser alcançado mediante uma organização correta do processo eco-
nômico do começo ao fim, ou seja, até sua volta à natu­reza, passando a existir desse
modo algo como o fator autorregulador no organismo humano. O organismo hu­mano, ao
menos quando funciona normalmente, consegue que as substâncias alimentícias não-
-assimiladas não sejam deposita­das em algum lugar. Quando substâncias alimentícias
não-assimiladas são depositadas em qualquer lugar, o homem fica doente da mesma
forma como se fossem depositadas partes não-assimiladas do orga­nismo. Imaginem, por
exemplo, substâncias sendo depositadas durante o metabolismo cefálico, isto é, a ocor-
rência de um metabolismo desregulado na cabeça. As substân­cias não são segregadas,
20.
mas depositadas, pelo fato de o consumo não ser regulado corretamente. O resultado
são estados de enxaqueca. Podemos, assim, verificar que em toda parte do organismo
humano as cau­sas de doenças residem na assimilação e na segregação incorretas das
substâncias a serem digeridas. Si­tuação análoga temos no organismo social, quando há
um acú­mulo daquilo que na verdade deveria ser consumido em algum lugar. É abso-
lutamente necessário que aqui (v. figura 3) ocorra o consumo do capital, para que este
não possa li­gar-se à natureza formando algo estático, como que um elemento petrificado
no processo econômico — pois as terras capita­lizadas são um elemento impossível no
processo econômico.
Quero frisar expressamente que aqui não se trata de fazer política de agitação.
Pretendo desenvolver as coisas tal qual se confi­guram dentro do processo natural. O
que nos interessa aqui é apenas o lado científico das coisas; contudo, não é possível
praticar uma ciên­cia que se ocupe com a atuação das pessoas sem apontar os fenômenos
21.
mórbidos que possam surgir, do mesmo modo como não se pode considerar o organis-
mo humano sem levar em conta as doenças que este possa sofrer. Ora, deve haver um
consumo adequado de capital, só não o consumo total, sendo necessário alguma coisa
ser transferida para que se possa continuar trabalhando a natureza.
A parte que deve ser transferida eu posso demonstrar-lhes numa imagem.
Imaginem um camponês, que no processo econômico é obrigado a preocupar-se em se
desfazer do produto de seus campos e reter uma parte para a semeadura do próximo
ano. As sementes têm de ser guardadas e conservadas. Essa é uma imagem perfei-
tamente aplicável a este processo (v. figura 3). O capi­tal tem de ser consumido até
ao ponto de sobrar apenas o que pode ser considerado uma espécie de semente para
22. uma nova ativação do processo econômico, a partir da natureza. Portanto, deve sobrar
apenas o que, por exemplo, possa ra­cionalizar o aproveitamento de certas fontes de
matérias-primas, ou que eventualmente melhore as condições do solo, digamos, pelo
desenvolvimento de melhores adubos. Para tudo isso tem de ser aplicado trabalho.
Portanto, deve furtar-se ao consumo o que possa continuar atuando no trabalho; em
contrapartida deve ser consumido antes, estando ainda aqui (v. figura 3), o que se
uniria à natureza de um modo inorgânico.
5. A produção e o consumo de valores 51

Ora, os Senhores poderiam dizer o seguinte: explique-nos agora como deve acon-
23. tecer para que aqui reste apenas a quantidade correta de capital, para que tal capital
seja, por assim dizer, apenas a semente para o próximo ciclo!
Ora, com a Ciência Econômica não nos situamos no campo da lógica, mas no
campo da realidade concreta. Aí não é possível dar respostas tal como se pode dar, sob
certas circunstâncias, digamos, na Ética Teórica. Na Ética Teórica é perfeitamente
possível repreender um criminoso e praticar uma série de coisas que satisfaçam às
exigências éticas. Porém o pro­cesso econômico depende de ação, de realização. Deve-
24. -se falar de realida­des concretas. Falando do processo produtivo e demonstrando
como este cria valores, fala-se de realidades. Todo o mundo sabe que com o consumo
se trata de realidades. Portanto, não podemos falar de pro­cesso econômico, mas de
realidades. No mundo real as ideias nada produzem. O que ordena o processo eco-
nômico de maneira correta está representado no que em meu livro Die Kernpunkte
der sozialen Frage [v. nota 7] chamei de verdadei­ras associações.30
Quando a vida econômica se firmar sobre os próprios pés31 e as pessoas envol-
vidas nessa vida, quer como pro­dutores, quer como consumidores ou mesmo comer-
25. ciantes, forem reunidas como tais em associações, tais pessoas te­rão, mediante todo
o processo econômico, a possibilidade de frear uma formação de capital forte demais,
ou de incrementar uma formação de capital fraca demais.
Para tal é necessária, naturalmente, a correta observação do processo econômico.
Ela faz parte disso. Deverá ser possível observar apropriadamente se em algum lugar
um tipo de mercadoria é vendido barato ou caro demais. O barateamento ou o encare-
cimento em si não têm significado algum; somente quando, com base nas experiências
26. que não podem ser obtidas nas deliberações conjuntas no âmbito associativo, estivermos
em condições de poder determinar que, por exemplo, cinco unidades de dinheiro são
pouco ou muito para uma quanti­dade de sal, somente então — quando houver uma
base real para se julgar um preço alto ou baixo demais — será possível adotarem-se as
medidas necessárias.
Se o preço de uma mercadoria ou de um bem qualquer ficar barato demais, fazendo
com que seus produtores não mais recebam a remuneração adequada por seus préstimos,
deve-se dimi­nuir o número de operários para a produção de tal bem e transferir os que
sobram para uma outra ocupação. Quando um produto fica caro demais, então se deve
trazer novos operários. As as­sociações ocupam-se com o adequado emprego de pessoas
27. no âmbito dos diferentes ramos da economia. Devemos convencer-nos de que uma real
elevação do preço de um artigo na economia terá de acarretar um aumento do número de
pessoas que elaboram tal artigo, enquanto uma real diminuição do preço, uma diminui­ção
excessiva do preço, acarretará a medida de transferir uma parte dos operários para um
outro campo de trabalho. Só é lícito falarmos de preços em conexão com a distribuição de
pessoas dentro de determinados ramos de trabalho no âmbito de um organismo social.
As concepções que muitas vezes prevalecem hoje em dia, a tendência bem
difundida de se preferir trabalhar com concei­tos, e não com realidades, vemo-las
demonstradas por alguns mone­taristas. Para estes a coisa é muito simples. Se em
28. algum lugar os preços forem, digamos, altos demais, de modo que se esteja obrigado
a gastar demais dinheiro por um artigo qualquer, dever-se-á simplesmente cuidar de
reduzir a circu­lação de dinheiro, e logo as mercadorias ficarão mais bara­tas, e vice-
-versa. Pensando a fundo, os Senhores descobrirão que, na realidade, para o processo
52 Rudolf Steiner

eco­nômico isso significa a mesma coisa que se, por alguma artimanha, ao sentir muito
frio conseguíssemos fa­zer subir a coluna de mercúrio no termômetro. Estamos apenas
manipulando os sintomas. Não criamos algo real mudando o valor do dinheiro.
Em contraposição, estaremos criando algo real regulando­o trabalho, ou seja, o
número de pessoas que trabalham; assim, o preço dependerá do número de operários que
trabalham num determinado campo. Querer deixar que o Estado regule isso significaria
a pior tirania.32 Devemos aspirar a que isso seja regulado pelas associações livres que se
29.
formarem dentro dos diferentes campos sociais, e em cujo âm­bito cada um possa ter uma
perfeita visão da si­tuação — fazendo parte da associação correspondente ou tendo nela
um representante que lhe comunica as ocorrências, ele pode ser informado por alguém
sobre o que acontece, ou compreendê-lo por si mesmo —, eis o que deve ser almejado.
Tudo isso exige, naturalmente, que se cuide para que os operários não sejam
limitados a poder executar durante toda a sua vida somente um trabalho qualquer, e
sim para que sejam capazes de cumprir também outras tarefas. Isso se fará necessário
mormente pelo motivo de, outrossim, acumular-se aqui capital em excesso (v. figura 3).
Poderíamos em­pregar o capital porventura excedente aqui para capacitar os operários,
a fim de poder transferi-los a ou­tros ramos profissionais. Vemos, portanto, que no mo-
30. mento em que começamos a pensar de modo racional, o processo econômico se corrige
a si próprio — e isso é o que importa. Eis o essencial: que ele se corrija a si próprio.
Porém o processo eco­nômico jamais se corrigirá se nos limitarmos a dizer que a situação
melhorará por meio da inflação ou da publicação desta ou daquela regulamentação. Por
esse meio ela em nada melhorará; só melhorará permitindo-se que o processo econômico
seja constantemente observado em cada um de seus pontos, podendo os observadores
agir imediatamente em consequência de tais observações.
Era até este ponto que eu queria chegar hoje, a fim de fazê-los per­ceber que, no
contexto do que foi tencionado por mim como ‘trimembração’, não se visava a fazer
31. agitação, mas a expor ao mundo algo resultante de uma real observação do processo
econômico.
6
O preço correto
29 de julho de 1922

Talvez os Senhores saibam que em meu livro Die Kernpunkte der sozialen Frage
[v. nota 7] eu procurei expor, numa fórmula, uma maneira de se chegar a uma ideia
do preço correto, dentro do processo econômico. É claro que tal fórmula não propicia
1. mais do que uma abstração. Ora, nestas palestras nossa tarefa con­siste justamente
em introduzir nessa abstração, ao menos esquematicamente, toda a economia. Penso,
assim, que estas palestras poderão acabar formando um todo, embora o tempo seja
curto.
Indiquei, pois, em Die Kernpunkte a seguinte fórmula: existe um preço correto
quando alguém re­cebe, como recompensa por um produto que elaborou, tanto quanto
precise para satisfazer suas necessidades — a soma de suas necessidades, na qual
naturalmente estão incluídas as necessidades das pessoas que dele dependem —, até
que tenha elaborado um novo produto idêntico. Tal fórmula, por mais abstrata que
seja, nem por isso deixa de ser abrangente e completa. Na elaboração de uma fórmula
2. importa, pois, que ela realmente abranja todos os detalhes concretos. E penso que para
a Economia essa fórmula é realmente tão com­pleta quanto o é, digamos, o teorema de
Pitágoras para todos os triângulos retângulos. Ora, trata-se do seguinte: do mesmo
modo como aquele teorema deve abranger a diversidade dos lados dos triân­gulos,
infinitamente mais elementos devem ser englobado nessa fórmula. É justamente na
compreensão de como englobar nessa fórmula todo o processo econômico que consiste
a ciên­cia da Economia.
Hoje quero partir de um detalhe muito essencial de tal fórmula, o qual consiste
no fato de aí eu não apontar para o que já passou, e sim para o que ainda virá. Digo
expressamente o seguinte: as necessidades devem ser satisfeitas pelo valor equivalente,
até que o produtor tenha elaborado um outro produto idêntico. Isto é algo essencial nessa
fór­mula. Caso se pretendesse um valor equivalente por um produto acabado, devendo
este corresponder de alguma maneira ao que realmente sucede no âmbito econômico,
poderia facilmente acontecer de o produtor re­ceber um valor tal que satisfizesse apenas
uns cinco sextos de suas necessidades até ele poder acabar um novo produto; é que os
processos econômicos mudam no curso do tempo, do passado para o futuro. E quem
3. acreditar poder res­tringir seus cálculos ao passado, estará sempre fadado a chegar
a conclusões incorretas no processo econômico; pois atuar economicamente consiste,
propriamente, no fato de processos futuros serem colocados em movimento com o auxí-
lio de algo que aconteceu antes. Contudo, caso se utilizem os processos passados para
iniciar os futu­ros, os valores, conforme o caso, terão de alterar-se de modo significa­tivo,
pois de fato eles se alteram continua­mente. Por isso o ponto essencial dessa fórmula
é o seguinte: se alguém vende um par de sapatos, o tempo que levou para produzi-los
não é, de modo algum, economicamente importante; importante é o tempo em que ele
produzirá o próximo par de sapatos. É isso o que importa nessa fórmula, e devemos
compreendê-lo em sentido mais amplo, no pro­cesso econômico.
54 Rudolf Steiner

Ontem nos familiarizamos com a circulação (ver fig. 3): natureza – trabalho – ca-
pital tornado produtivo pelo espírito. Em lugar do capital eu poderia escrever também
espírito. Come­çamos por acompanhar o processo econômico nesta direção — contrária
ao ponteiro do relógio — e verificamos que aqui, na natureza, não deve haver um re-
presamento, devendo chegar até aí somente o que, como semente, terá a possibilidade
de continuar o processo econômico, evitando assim um represamento econômico pela
fixação do capital na renda de terras. Eu já lhes disse que, no fundo, a renda pela venda
das terras — ou seja, a valorização das terras — contraria, no processo econômico, os
interesses que existem na produção de bens de valor. Quem, com a ajuda do capital,
deseja produzir bens de valor, tem interesse numa taxa de juros baixa; nesse caso terá
4.
de pagar menos juros, e o capital de empréstimo que recebeu lhe deixará maior liberdade
e movimento. Por outro lado, uma pessoa que possui terras — devemos analisar essas
coisas porque nos dizem respeito no âmbito de nossa economia — e tem interesse em
elevar o preço delas, alcança seu intento justamente pelo fato de os juros baixarem. Se
ti­ver de pagar uma taxa de juros mais baixa, o valor de suas terras crescerá, enquan-
to o produtor de bens de valor, tendo de pagar menos juros, poderá produzir esses
bens mais em conta. Por­tanto, mercadorias que envolvem um processo de produção
ficam mais em conta com uma taxa de juros baixa; em contrapartida, terras que pro-
porcionam uma renda sem que, primeiro, tenham produzido, ficam mais caras com
uma taxa de juros baixa. Este é um cálculo simples — trata-se de um fato econômico.
Resulta daí que haveria a necessidade de se estabelecer uma dupla taxa de ju-
ros: uma taxa a mais baixa possível para as operações que envolvem trabalho — para
a produção de bens de valor econômico — e uma taxa a mais alta possível para as
terras. É uma consequência lógica. O estabelecimento de uma taxa de juros bem alta
para as terras não é tão facilmente realizável. Uma taxa um pouco mais alta que fos-
se aceitável para o capital de empréstimo sobre as terras não ajudaria muito, e uma
taxa de juros consideravelmente mais alta — por exemplo, uma taxa que mantivesse o
5. valor das terras sempre no mesmo nível, ou seja, a taxa de cem por cento — seria, na
prática, extremamente difícil de tornar-se exequível sem mais nem menos. Cem por
cento para empréstimos sobre as terras melho­raria a situação de imediato; mas, como
eu já disse, não seria exequível na prática. Mas o que importa nessas coisas é obter
uma visão clara e precisa do processo econômico; e quem o obtiver logo se dará conta de
que o regime de associações pode fazer o processo econômico recobrar a saúde. É que o
processo econômico, quando encarado cor­retamente, revela-se perfeitamente possível
de ser dirigido com acerto.
No processo econômico lidamos com produção e con­sumo, conforme já indicamos
ontem. Passemos então a observar as ati­vidades de produção e consumo. Ora, temos
aí um antagonismo que desempenhou um papel importante nas muitas recentes
6. discussões no âmbito da política econômica, as quais frequentemente até resvala-
ram para a agitação. Discutia-se muito, principal­mente sobre a questão de saber se
a atividade cultural ou espiritual — simplesmente o trabalho ligado às capacidades
do espírito — seria, de alguma forma, um produtor de valores no âmbito econômico.
O trabalhador intelectual certamente é consumidor. Discu­tia-se muito sobre
se ele também seria produtor no sentido econômico; e, por exemplo, os marxistas
7.
mais extremados não se cansavam de citar aquele infeliz contador hindu que tinha
de escriturar as contas de sua comunidade e, portanto, não cultivava os campos ou
6. O preço correto 55

executava um trabalho produtivo qual­quer — somente registrava tal trabalho pro-


dutivo. Então os marxis­tas lhe negavam a capacidade de produzir o que quer que
fosse. Consequentemente constatavam que ele estava sendo sustentado unicamente
pela mais-valia criada pelos produtores. Temos então esse contador por excelência,
que sempre é usado para provar algo, tal como na Lógica formal dos gi­násios temos
o Caio, que sempre é citado para provar a mortalidade dos se­res humanos. Os Se-
nhores conhecem o caso: “Todos os homens são mor­tais; Caio é um homem, logo Caio
é mortal!” Esse Caio, pelo fato de ter constantemente de provar a mortalidade dos
humanos, tornou-se uma personalidade imortal no mundo da Lógica. É o mesmo
caso do contador hindu, que é mantido exclusiva­mente pela mais-valia dos produ-
tores; assim o apresenta a literatura marxista, por assim dizer, em estado puro.
Ora, tal questão, diria eu, está muito repleta de toda classe de armadilhas
como estas, nas quais se enreda quem pretende so­lucioná-la no sentido econômico;
trata-se da questão seguinte: até que ponto a atividade intelectual é economicamen-
te produ­tiva — se não o for inteiramente? Nisso, é muito importante distinguirmos
entre o pas­sado e o futuro. Se, pois, dirigirmos nossa atenção apenas ao passado,
perscrutando-o estatisticamente, conseguiremos provar que na verdade a atividade
intelectual não é produ­tiva com relação ao passado nem a nada que seja apenas a
direta continuação do passado. Partindo do passado e indo em dire­ção ao futuro, o
que pode ser considerado materialmente pro­dutivo, no processo econômico, é somente
o trabalho material e sua continuidade. A coisa muda completamente se atentarmos
para o futuro — pois atuação econômica significa trabalhar partindo do passado em
direção ao futuro. Basta lembrar-nos do seguinte exemplo simples: — Digamos que,
numa aldeia, um arte­são que produza alguma coisa caia doente. Pode ser que ele con-
sulte um médico incompetente, tendo de ficar três semanas na cama e não podendo
elaborar seus produtos. Possivelmente causará considerável transtorno ao processo
econômico; porque se, por exemplo, o homem produz sapatos, o mercado será privado
de sapatos por três semanas — enten­dendo-se mercado no mais amplo sentido. Supo-
8. nhamos, porém, que ele tenha consultado um médico muito hábil que o cure em oito
dias, de modo que ele possa recomeçar a fabricar sapa­tos já após oito dias; poderemos
seriamente perguntar: quem foi que fabricou os sapatos durante esses catorze dias?
o sapateiro ou o médico? Em verdade foi o médico quem fabri­cou os sapatos. Não há
dúvida: tão logo passarem a enfocar o futuro a partir de um ponto qualquer, os Se-
nhores não mais poderão dizer que o espiritual não tem efeito produtivo em direção
ao futuro. Em rela­ção ao passado, o elemento espiritual, ou melhor, os que tra­balham
a partir de capacidades espirituais, são apenas consumidores; com res­peito ao futuro,
eles são eminentemente produtivos. O fato de serem os que produzem, no sentido
de transformar todo o processo produtor e torná-lo eminentemente outro no sentido
econômico, nós o percebemos hoje, por exemplo, na construção de túneis: estes não
poderiam ser construídos se não houvesse sido descoberto o cálculo diferencial. Com
tal tipo de tra­balho, ainda hoje Leipniz participa da construção de todos os túneis, e
a evolução de seus preços continua sendo determinada essencialmente por este dis-
pêndio de energias espirituais. Por isso, os Senhores jamais devem incluir em suas
ponderações econômicas as coisas do passado no mesmo sentido em que as do fu­turo.
É que a vida não vai em direção ao passado, nem tam­pouco continua o passado; a
vida segue pelo futuro adentro.
56 Rudolf Steiner

Por isso, nenhuma concepção econômica é real quando não leva em conta o que
é realizado pelo trabalho espiritual — se assim quisermos chamá-lo —, o que vale
dizer, no fundo, pelo pensar. Mas tal trabalho espiritual é realmente difícil de se apre­
ender pelo fato de possuir peculiaridades bem marcantes que, à primeira vista, não
são facilmente apreensíveis economicamente. A atividade espiritual já começa com a
organização e distri­buição do trabalho por meio do pensar. Com o tempo, todavia, ela
se torna cada vez mais independente. Observando a atividade intelectual realizada por
uma pessoa dirigente de uma empresa inserida na cultura material, podemos verifi-
car que ela efetua uma grande quantidade de trabalho a partir do espírito, mas ainda
9. continua trabalhando com aquilo que o processo econômico lhe fornece do passado. Em
todo caso não se pode evitar, já por interesses puramente práticos, que no contexto da
atividade intelectual-espiritual — prefiro chamá-la assim em lugar de trabalho —, no
contexto da atuação a partir do espírito, também surja uma atuação perfeitamente livre.
Já a invenção do cálculo dife­rencial, por exemplo, ou, mais ainda, a pintura de um quadro,
envolvem uma atividade espiritual totalmente livre. Nesses casos pode-se falar, ao menos
em sentido relativo, de uma atividade espiritual livre, já que as tintas e outros materiais
utilizados, oriundos do passado, não têm tanto peso no resultado final em comparação
com o das matérias-primas ad­quiridas para uma fabricação material.
Ao passar para lá (ver fig. 4) entramos no campo da vida espiritual inteiramente
livre, campo em que encontramos em primeiro lugar o ensino e a educação. As pessoas
encarrega­das do ensino e da educação encontram-se na vida espiritual livre por exce-
lência. No que diz respeito ao curso puramente material do processo econômico, esses
trabalhadores espirituais livres são, antes de mais nada, absolutamente só consumido-
res. Os Senhores podem dizer que elas produzem algo e até são remuneradas pelo que
10. produziram — como no caso, por exemplo, de um pintor. Portanto, aparente­mente existe
um processo econômico idêntico ao da fabricação e venda de uma mesa; e não obstante
trata-se de um processo essencialmente diferente quando fazemos abstração das com-
pras e ven­das realizadas pelo indivíduo e começamos a pensar à maneira econô­mica,
dirigindo nossa atenção a todo o organismo econô­mico — uma exigência dos tempos
atuais em face da tão avançada divisão do trabalho.
Além disso, existem puros consumidores de outras espécies dentro de um organis-
mo social: são os jovens, as crianças e os idosos. Os primeiros são consumidores puros
11.
até certa idade. E os aposentados, sejam voluntários ou forçados, voltam a ser puros
consu­midores.
Basta uma ligeira reflexão para nos convencermos de não poder haver progresso
no processo econômico sem existirem puros consumidores que não sejam produtores;
pois se todo mundo fosse produtor, não seria possível consumir tudo o que fosse pro-
12. duzido para que o processo econô­mico não sofresse estagnação — ao menos do modo
como a vida humana é organizada atualmente. E essa vida humana não se restringe à
economia, devendo ser encarada em sua totalidade. Assim sendo, o progresso do processo
econômico só é possível quando inclui consumidores puros.
Tal fato de termos no processo econômico também consumido­res puros, eu o ilus-
13.
trarei para os Senhores a seguir, de um ponto de vista total­mente diverso.
Podemos guarnecer este círculo (v. fig. 4) — que pode ser muito elucidativo — com
14. todas as qualidades possíveis, e sempre permane­cerá a pergunta sobre como incluirmos
as diversas etapas, os diferentes fatos neste círculo que representa a circulação do pro-
6. O preço correto 57

cesso econômico. Há um fato que se passa diretamente no mercado, no ato de compra-


-e-venda, quando se paga imedia­tamente o objeto comprado. Não é de todo necessário
que a pes­soa pague com dinheiro; poderia ocorrer também uma negociação de troca, se
o vendedor aceitasse a mercadoria que o comprador oferecesse em pagamento. O que
importa é o pagamento no ato, o fato de existir pagamento. E agora será necessário
passar­mos, neste ponto (fig. 4) da visão trivial, corriqueira, para a visão no sentido da
economia. É que na economia os vários conceitos interagem continuamente, re­sultando
o quadro global, o fato geral do concurso dos di­versos fatores. Poderíamos dizer que
também seria imaginável uma medida qualquer impedindo que alguém pagasse no
ato — que não existisse o pagamento à vista: nesse caso, pagar-se-ia somente após,
digamos, um mês ou um prazo qual­quer. Trata-se aqui somente do fato de as pessoas
incorrerem num erro de raciocínio ao dizer, por exemplo, que hoje me entregariam uma
mercadoria, digamos, um terno, e depois de um mês eu pagaria por ela. É que após um
mês eu não pago apenas tal mercadoria; naquele momento pago algo diferente: pago o
que, por uma possível elevação ou redução do preço, tornou-se algo diferente; o paga-
mento passa a incluir uma parcela ideal. Portanto, deve sempre existir o conceito do
pagamento à vista, fato que existe nas compras corriqueiras. Um produto torna-se
mercadoria no mercado pelo fato de ser pago à vista. Tal ocorre essencialmente com
as mercadorias que constituem natureza trabalhada. Em seu caso o pagamento à
vista tem um papel essencial. Tal pagamento é imprescindível; eu pago ao abrir
minha carteira e tirar dela o dinheiro, e o valor é determinado no momento em que
entrego o dinheiro ou permuto minha mercadoria por uma outra. É nesse momento
que se paga, e essa necessidade de haver pagamento é um dos pontos a serem con-
siderados no processo econômico.
O segundo ponto é aquele ao qual já ontem chamei a atenção, e que possui um papel
semelhante ao do pagamento à vista. Trata-se do empréstimo. Este não toca diretamente ao
ato de pagar enquanto tal; representa um fato totalmente diverso. Recebendo um emprés-
timo em dinheiro, tenho a possibilidade de aplicar meu espírito a esse capital emprestado.
Torno-me devedor, mas ao mesmo tempo torno-me produtor. O processo de em­prestar
15.
tem um papel verdadeiramente econômico. Uma pessoa cuja inteligência capacita-a a
realizar isso ou aquilo de­verá ter a possibilidade de receber capital de empréstimo, não
importa de onde; é imprescindível existir capital de empréstimo, para que a pessoa possa
recebê-lo. Teremos então, ao lado da atividade de pagar, a de emprestar (ver fig. 4).33 Com
isso temos dois fatores muito importantes no processo eco­nômico: o pagar e o emprestar.
Agora basta uma dedução muito simples — verificável, neste ponto, na figura 4
— para encontrarmos o terceiro fa­tor. Por nenhum momento os Senhores terão dúvida
sobre o que seria esse terceiro fator. Temos o pagar e o emprestar, e o ter­ceiro consiste
em... doar. Pagar, emprestar e doar: trata-se, de fato, de uma trin­dade conceitual per-
tencente a uma economia sadia. Existe uma certa relutância em incluir o ato de doar no
processo econômico; contudo, o processo econômico não terá continui­dade se não houver
16.
um ato de doar em alguma fase. Imaginem, por exemplo, o que seria das crianças se
nós não lhes doásse­mos algo. Doamos constantemente às crianças, e numa visão global
do processo econômico contínuo verificamos que o doar faz parte dele. Sendo assim, a
transferência de valores que se efetua numa doação é, na verdade, injustamente con-
siderada como algo inadmissível no processo econômico. Por isso é que se encontra
especial­men­te frisada em meu livro Die Kernpunkte der sozialen Frage [v. nota 7]
58 Rudolf Steiner

­ para horror de muita gente — essa categoria, em que os valores — por exemplo,

os meios de produção — passam, no fundo, por um processo idêntico ao ato de doar,
para quem estiver capacitado a continuar administrando-os. Ora, deve-se cuidar
para que a doação não seja feita de maneira con­fusa, não havendo, porém, dúvida
sobre tratar-se de uma doação no sentido econômico. Tais doações são inteiramente
necessárias.
Ponderem bem a seguinte situação, com a qual cada vez mais se defrontarão no
processo econômico: a necessidade de este abranger a tríade pagar–emprestar–doar — e
17. os Senhores se convencerão de que ela deve estar incluída em todo processo econômico,
pois de outra forma não poderia haver esse processo, que se perderia total­mente no
absurdo.
Pode haver épocas em que se refute tal necessidade; ora, hoje em dia os conhe-
cimentos de Economia não vão tão a fundo, e principalmente aqueles que pretendem
ensinar a Ciência Econômica deve­riam saber disso e de que, sobretudo, ninguém está
muito propenso a aprofundar-se nas verdadeiras concatenações dessa disciplina. É
evidente, tão evi­dente, diria eu, que pode acontecer o fato curioso de podermos ler no
Basler Nachrichten [Noticiário de Basiléia] de hoje considerações a respeito do fato de
nem nos governos nem em pessoas parti­culares existir a inclinação para se desenvolver
18. um raciocínio econômico. Ora, eu não acredito que um jornal como o Basler Nach­richten
iria discutir coisas que não sejam realmente evidentes! Em todo caso, é interes­sante
que isso seja discutido dessa forma; o artigo a que me refiro é de interesse pelo fato de,
por um lado, começar a lançar uma forte luz sobre a absoluta impotência da Ciência
Econômica, e também por dizer que a situação tem de mudar e que go­vernos e indivíduos
têm de começar, finalmente, a mudar de mentalidade: é até aí que vai o artigo. Nesse
jornal, naturalmente, nada se encontra sobre a direção em que deve ir a mudança de
mentalidade. Isso também é um indício muito interessante!
Poderemos intervir de um modo perturbador no processo eco­nômico se não observar-
mos um relacionamento correto entre os componentes dessa trindade. Existe hoje muita
gente particu­larmente entusiasmada pela exigência de se instituir um alto imposto sobre
heranças, que também são doações. Na verdade isso não é algo significativo no processo
econômico; a he­rança com um valor, digamos, igual a V não é desvalorizada quando se
divide esse valor V em duas partes, V1 e V2, dando o valor V2 a uma outra pessoa, de
19. modo que o herdeiro fique apenas com o valor V1: é que nesse caso os dois operam com
o valor V em conjunto. O que importa é que quem receber o valor V2 o administre tão
favoravelmente quanto o faria quem tivesse recebido V1 e V2 juntos. Ocorre que cada
um deve de­cidir o seguinte, de acordo com seu gosto: se o resultado econômico seria
melhor no caso de um indivíduo inteligente trabalhar com toda a herança ou no caso
de um outro receber somente uma parte da herança, ficando o restante com o Es­tado
e sendo ele obrigado a cooperar economicamente com este último.
Esses são assuntos que decididamente nos desviam do pensar puramente eco-
nômico, pois aí se trata de um pensar imbuído de ressentimento, um pensar a partir
da emoção. O caso é que se tem inveja dos herdeiros ricos. Pode ser que isso tenha
20. fundamento, porém não se pode falar somente de tais coisas quando se quer raciocinar
economi­camente. O que importa é o que é necessário ponderar no sentido econômico,
pois disso dependerá o que deve suceder. Sem dúvida podemos imaginar um organismo
social que adoeça porque o ato de pagar esteja coligado de modo não-orgânico ao de
6. O preço correto 59

emprestar e de doar, à medida que se proceda contra um ou outro destes ou promova


um dos dois. Em todo caso, de algum modo eles atuam em conjunto, pois se de um lado
suprimimos o doar não fazemos mais do que mudá-lo de posi­ção. E o decisivo, nesse
caso, não é questionar se devemos mudá-lo de posição, e sim se de qualquer modo tal
mudança será favorável; porque a alternativa entre o herdeiro individual assu­mir a
herança sozinho ou em conjunto com o Estado deve pri­meiramente ser decidida do
ponto de vista econômico. O que importa é qual das duas alternativas é mais favorável.
Mas o mais importante com que nos deparamos é o fato de a vida espiritual livre
se originar quase que necessariamente do ingresso do espírito na vida econômica. E,
como eu já disse, tal vida espiritual livre remete à existência de consumidores pu­ros em
termos de passado. Como, porém, essa vida espiritual livre se relaciona com o futuro?
Aí ela é produtora — em sentido indireto, porém extraordinariamente forte. Se imagi-
21. narmos a livre vida espiritual verdadeiramente emancipada no organismo so­cial, de
modo que as capacidades sempre possam desdo­brar-se plenamente, verificaremos que
tal vida espiritual livre estará em condições de exercer uma influência extremamente
frutífera sobre a vida espiritual semilivre, ou seja, aquela vida espiritual absorvida
pela produção material. E na obser­vação dessa situa­ção começamos a descobrir, nesse
assunto, uma qualidade inteiramente econômica.
Quem puder observar a vida de modo despreconceituoso se con­vencerá de que não
é em absoluto indiferente se, em algum lugar, todos os que são ativos no âmbito da vida
espiritual livre forem exterminados — talvez por não mais po­derem receber alguma
coisa para consumir ou por se conceder o direito de existir somente àqueles ativos no
processo mate­rial — ou se, no organismo social, houver a possibilidade de existirem
homens de espírito realmente livres. É que tais homens têm a qualidade de soltar a
espi­ritualidade nos outros, tornando mais móvel seu pensar e colo­cando-o, assim, em
condições de melhor intervir nos processos mate­riais. O que importa é que se trata de
seres humanos. Por isso os Senhores não devem querer contestar o que quero dizer
22.
com isso, apontando para a Itália e dizendo que, embora na Itália exista em verdade
uma abundante vida espiritual livre, os pro­cessos econômicos provindos do espírito não
foram estimulados de modo relevante. Sim, lá existe livre vida espiritual, mas livre vida
espiritual advinda do passado. São monumentos, museus, etc. — e não são estes que
contam. O que conta é o que é vivo, sendo isso o que passa dos homens de espírito livres
para as ou­tras pessoas espiritualmente produtivas. É aquilo que, pelo futuro adentro,
exerce seu efeito também na produção econômica. Podemos, portanto, dizer que é perfei-
tamente possível exercer influência salutar sobre o processo econômico abrindo campo
aos agentes culturais-espiri­tuais livres, isto é, tendo-lhes cedido livremente espaço.
Imaginemos agora que tenhamos uma vida associativa sadia numa comunidade
social. O que importa, em tal vida associa­tiva, é arranjar o processo produtivo de tal
forma que, em caso de existir excesso de mão de obra em determinado campo, as pessoas
excedentes sejam transferidas para um outro. O que importa são negociações a partir
da vida real entre as pessoas, essa fundamentação de toda a ordem social no juízo das
23.
associações. E se um dia tais associações começarem a compreender a influência da
vida espiritual livre sobre o processo econômico, elas terão à mão um bom meio — já
aludi a isso em meus ‘Pontos centrais da questão social’ [v. nota 7] — para regulamen-
tar a circulação econômica. É que então as associações descobrirão que, se a atividade
cultural ou espiritual regredir, é porque não se estará doando o suficiente; e no fato de
60 Rudolf Steiner

não se doar o suficiente elas reconhecerão a relação entre a quantidade insuficiente de


doações e a falta de atividade cultural ou espiritual livre. O retraimento desta atividade
as levará a sentir falta de doações.
Existe uma grande possibilidade de se fazer subir o juro sobre a propriedade natural
até perto dos cem por cento proporcionando-se o máximo possível dessa propriedade, como
livre doação, aos que produzem pelo espírito. Nisto temos a possibilidade de relacionar
diretamente a questão das terras com aquilo que tem o máximo efeito para o futuro, ou
seja, com o capital que deseja ser investido — tendente, portanto, a estagnar em hipo-
tecas — e ao qual é necessário possibilitar o escoamento para instituições espirituais
livres.34 É assim que a questão se nos apresenta na prática. Façamos as associações
cuidarem para que o dinheiro tendente a fluir nas hipotecas encontre o caminho para
24. as instituições espirituais livres! Nisto temos a conexão entre a vida associativa e a
vida em geral. Aprendemos assim que somente ao procurarmos aprofundar-nos nas
realidades da vida econômica é que se nos revelará, em verdade, o que deverá ser feito
em outro caso. Não pretendo ser agitador exigindo que uma ou outra coisa deva ser
feita; pretendo apenas apontar o que existe. Mas a realidade é que jamais conseguire-
mos deter o excesso de capital aplicado na natureza por meio de simples regulamentos
legais, mas somente pela organização associativa, em que desviamos o capital para as
livres instituições espirituais. Digo apenas que uma condição acarreta a outra. A Ciência
apenas indica as condições sob as quais elas ocorrem.
7 Os fatores da formação de preço
30 de julho de 1922

Chegamos a formar agora uma nítida ideia de como a economia global trans-
corre de modo a abranger, como fatores impulsionantes, como fatores dinâmicos, os
seguintes: compra (ou venda), empréstimo e doação. Devemos convencer-nos de que
sem tal interação entre emprestar, doar e com­prar não pode existir uma economia.
1. Portanto, o que no pro­cesso econômico engendra os valores — dos quais já falamos
focalizando-os de um dos lados —, isto é, o que leva à formação dos preços, origina-se
desses três fatores: compra, emprés­timo e doação. O que importa é apenas saber-
mos como tais fa­tores atuam na formação de preços, pois somente após conhecermos
isso é que poderemos chegar a uma espécie de formulação do problema do preço.
Trata-se de perscrutarmos a fundo a natureza de cada um dos problemas econô-
micos. Cabe notar que, nesse sentido, nossa economia está repleta de representações
2. totalmente nebulosas, representações que se tornam vagas principalmente pelo motivo
— como já expliquei várias vezes — de se preten­der captar em situação estática o que
está em movimento.
Consideremos, sob a premissa de a dinâmica eco­nômica abranger doação, emprésti-
mo e compra, os fatores es­táticos mais proeminentes de nossa economia. Verifiquemos o
que na atualidade se discute com a maior frequência e por cujo intermédio, em verdade,
introduzem-se a maioria dos erros na Ciên­cia Econômica. Fala-se do salário, dando-lhe
uma conotação de preço pelo trabalho. Diz-se, ao pagar mais a um assalariado, que
o trabalho ficou mais caro, e, ao rebaixar o salário de um assalariado, que o trabalho
3. ficou mais barato. Fala-se efetivamente na existência de uma es­pécie de compra entre
o assalariado, que vende seu trabalho, e a pessoa que o compra. Trata-se, porém, ape-
nas de uma compra fictícia. Em realidade não ocorre uma compra. O difícil de nossas
condições econômicas é que, de certo modo, temos em toda parte situações disfarçadas,
mascaradas, que se apresentam de modo diferente do que de fato são em sentido mais
profundo. Já mencio­nei isso anteriormente.
Já tivemos oportunidade de aprender que o valor na economia só pode sur-
gir na permuta dos produtos, na troca de mercadorias, de produtos econômicos
em geral. Não há absolu­tamente outra maneira pela qual possa surgir valor. Por
outro lado, é fácil convencer-se do acerto da seguinte proposição: se o valor puder
surgir somente da mencionada maneira, e se o preço do valor produzido tiver de
4. ser estabelecido, como expus ontem, de modo a se levar em conta que a pessoa que
tenha produzido um bem possa receber, pelo produto, um tal contravalor que lhe
permita satisfazer suas necessida­des pelo tempo requerido para a produção de um
bem idêntico — se isto deve ser possível, então os produtos terão de estabelecer
seus valores reciprocamente. E no final das contas não é muito difícil compreender
que, no processo econômico, os produtos estabelecem seu valor reciprocamente. O
62 Rudolf Steiner

fato é apenas disfar­çado pela aparição do dinheiro entre o que é permutado. Porém
esse não é o aspecto significativo do assunto. Não te­ríamos o mínimo interesse no
dinheiro se este não promovesse, fa­cilitasse e barateasse a troca dos produtos. Não
necessita­ríamos de dinheiro se não ocorresse que a pessoa que en­tregou um produto
ao mercado — sob o processo de divisão de trabalho — não queira dar-se ao trabalho
de ir buscar as coisas de que precisa lá onde são produzidas, mas prefira receber o
valor em dinheiro para, por sua vez, ir abaste­cer-se de maneira mais conveniente.
Portanto, podemos dizer que em verdade a formação dos preços se deve à tensão
recíproca surgida entre os produtos no processo econômico.
Consideremos, deste ponto de vista, a assim cha­mada relação assalariada, a relação
de trabalho. Ora, não é possível trocarmos o trabalho por uma coisa qualquer, pois em
verdade não existe uma possibilidade de definição de valor recíproco entre o trabalho
e qualquer outro elemento. Podemos ter a ilusão de estarmos pagando o trabalho — e
sob tal ilusão estabelecer a relação empregatícia; mas em realidade não é assim: em
realidade ocorre algo totalmente diverso, ou seja, que também na relação empregatí-
cia ou trabalhista se trocam valores. O trabalhador produz algo, fornece um produto;
5. e é esse produto que, em verdade, o empresário lhe compra. Real­mente o empresário
paga até ao último centavo os produtos que o operário fornece — devemos encarar as
coisas de maneira correta —; ele compra os produtos do trabalhador. E depois de ter
comprado produtos cabe-lhe a tarefa, por intermédio das condições gerais do organismo
social, de incrementar o valor dos produtos pela aplicação de seu espírito empresa­rial.
É isso que lhe traz então, de fato, o lucro. É disso que ele tira seu proveito e que o co-
loca em condições, depois de ter comprado os produtos de seus operários, de elevar o
valor, através da conjuntura — se é que podemos usar tal palavra tão mal-afamada.
Vemos que nas relações de trabalho trata-se de uma verda­deira compra. E não
podemos dizer que em tal relação de trabalho surja diretamente uma mais-valia. O que
podemos dizer é que em decorrência das condições sociais o preço pago pelo empresário
não é aquele do qual lhes falei ontem. Trata-se de um fenômeno que encontraremos em
outros pontos do processo econômico: embora os produtos determinem reciprocamente
seus valores reais, tais valores não são pagos no processo. É muito fácil verificarmos
que nem todos os valores são pagos no processo. Imaginem uma pessoa que seja um
6. pequeno fabricante e, de repente, receba uma grande herança; ele fica aborrecido com
sua fábrica e resolve vender a preços bastante baixos as mercadorias que lhe restaram.
Nem por isso as mercadorias baixam de valor — apenas não se paga o preço verda­
deiro. O preço é adulterado no processo econômico. Devemos não perder de vista que,
em todo estágio do processo econômico, existe a possibilidade de se adulterar o pre­ço;
porém mesmo assim este sempre existirá. As mercadorias que esse fabricante vende
não possuem um valor menor do que mercadorias idênticas produzidas por um outro
fabricante.
Agora que procuramos ter bem claro que na relação de assa­la­ria­­mento lidamos
efetivamente com uma compra, disponhamo-nos a questionar com o que é que se lida
no caso do rendimento proveniente de terras, do preço das terras. É que o preço das
7. terras não resulta originalmente da situação existente numa economia formada. Para
ilus­trá­-lo de modo um pouco radical, basta apontarmos o fato de as terras terem che-
gado originalmente à disponibilidade de al­guns indivíduos mediante conquista, isto é,
pelo uso do poder. Na maioria dos casos, talvez pudéssemos descobrir também algum
7. Os fatores da formação de preço 63

vestígio de troca. Por exemplo, um conquistador de terras poderá ceder partes delas
a pes­soas que o ajudaram na conquista. Portanto, nada temos aí, no ponto de partida
da economia de um povo, que seja verdadei­ramente econômico. Todo o processo nada
tem a ver com economia, sendo de tal feitio que apenas nos permite falar de poder e
direito. Direitos são conquistados pelo poder, direi­tos sobre terras. No fundo, vemos aí
o elemento econômico es­barrar em condições de direito e poder.
Contudo, o que se passa sob a influência de tais condições de direito e poder? Ora,
a influência de tais condições de direito e poder sempre faz com que a pessoa que está
com a livre disponibilidade das terras esteja em melhor situação do que aqueles que
ela fará trabalhar a seu serviço e que lhe fornecerão os produtos de seu trabalho. Não
estou falando do trabalho, e sim dos produtos do trabalho — pois são esses produtos do
trabalho que importam. A pessoa que conquistou as terras deverá receber mais do que
8. dará aos outros — é a simples consequência de sua situação de conquista e direito. Mas
o que é que ela recebe a mais do que dá aos outros, e que deturpa a relação de preço?
Não é outra coisa senão uma doação compulsória. Percebemos nesse ponto surgir, sem
dúvida, a relação de doação, com a restrição de que quem realiza a doação não o faz de­
livre vontade, mas sob coação. Há uma doação compulsória. É o que vemos aqui com
relação às terras. Tal doação compulsória, porém, eleva substancialmente os preços que,
em ver­dade, os produtos das terras deveriam ter como preços de troca.
Assim sendo, o preço de tudo o que está sujeito a tais condições de direito tende a
elevar-se acima de sua reali­dade. Se silvicultores ou caçadores convivem com agriculto-
res, os primeiros levam vantagem sobre os se­gundos. É que agricultores vivendo entre
silvicultores são obrigados a pagar aos últimos, pelo que lhes é fornecido, preços mais
altos do que seriam os puros preços de troca entre silvicultura e agricultura; o motivo
disso é que a silvicultura, por uma pura relação de direito, pode ser mais fortemente
sujeita à determinação de quem estipula os preços. Na agricultura é indispensável efe-
tuar um verdadeiro trabalho, enquanto na silvicultura ainda estamos muito próximos
9. de uma avaliação em que não en­tra o trabalho, mas unicamente as condições de direito
e de poder. E se artesãos35 vivem entre agricultores, os preços tendem a elevar-se acima
do real em favor dos agricultores, e de descer abaixo do real para os artesãos. Artesãos
entre agricultores vivem de modo relativamente mais caro; agricultores, como minoria
entre artesãos, levam uma vida mais em conta. Assim, a progressão dessa tendência, ou
seja, de os preços se elevarem acima ou caírem abaixo dos verdadeiros, apresenta-se
como segue: o fato se faz notar mais pronunciadamente na silvicultura, depois na
agricultura, a seguir no artesanato e, por fim, nas ati­vidades profissionais completa-
mente livres. É assim que devemos buscar formação de preços no processo econômico.
Existe, no processo econômico, uma tendência própria no sentido de produzir
rendimento sobre terras; trata-se, de certo modo, de uma inclinação para submeter-se
à coação de pagar mais pela agri­cultura do que pelas outras coisas. Existe tal tendên-
cia na presença da divisão do trabalho; e todas as nossas exposições referem-se a um
organismo social em que há divisão de trabalho. A mencionada tendência é motivada
10.
simplesmente pelo fato de, na agricultura, não poder ocorrer o que tive de mencionar
duas vezes, há alguns dias — e que, diria eu, causou algumas dificuldades a grande
parte dos prezados ouvintes —, ou seja, que o autossustentador vive, de fato, de modo
mais caro; por isso ele tem de pedir mais por seus produtos, isto é, tem de cobrar mais
de si próprio do que paga uma pessoa que compra seus produtos de outros na livre
64 Rudolf Steiner

circulação econômica. Isto faz certo sentido com relação aos ofícios, mesmo que lhes
custe bastante chegar a compreender perfeitamente esse sentido. Porém com relação
à agricultura e à silvicultura não faz sen­tido algum. É justamente isso que se deve
saber quanto às realidades, ou seja, que os conceitos sempre se aplicam apenas a um
de­terminado campo e se modificam com relação a um outro campo. É o caso também
em outros campos da realidade. Um remédio para a cabeça pode ser algo nocivo, pato-
gênico para o estô­mago, e vice-versa. E é assim que decididamente ocorre no processo
econô­mico. Se pudesse ser totalmente possível o agricultor não ser autossustentador,
também para ele prevaleceriam as normas válidas, em outros casos, para a circulação
das mercado­rias. Porém ele não pode senão ser autossustentador, por­que no processo
econômico toda a agricultura de um orga­nismo social se junta por si só numa unidade,
mesmo que existam propriedades individuais. Em qualquer circunstância, aquele que
é agricultor é obrigado a reter, da totalidade de sua produção, aquilo com que ele se
autossustenta. Se o recebe de outros, ele também o retém. Na realidade ele é autos-
sustentador, sendo por isso obrigado a pagar seus produtos mais caro. A consequên­cia
disso é que os preços têm de subir para este lado.
Isto quer dizer que no processo econômico existe, de fato, uma tendência a
produzir rendimento do solo. O que importa é apenas desco­brir a maneira de neutra-
lizar o rendimento do solo no processo econômico. É imprescindível não ignorarmos
11. a existência dessa ten­dên­cia. Poderíamos tentar abolir o rendimento do solo — ele
sempre volta­rá a ser produzido de alguma forma, e pelo simples motivo que acabo
de expor.
Pela mesma razão de existir, no processo econômico, a ten­dência a produzir ren-
dimento do solo é que existe, por outro lado, a tendência dos empresários a desvalorizar
o capital, a torná-lo cada vez mais barato. Chegaremos mais facilmente a compreender
tal tendência se percebermos a impossibilidade de comprar capital. Não há dúvida de
que se negocia capi­tal, de que se compra capital, mas qualquer compra de capital é ape-
nas uma transação disfarçada. Em verdade não compramos ca­pital; o capital é apenas
emprestado.36 Também nos casos em que aparentemente existe uma situação diversa,
sempre se po­derá verificar o caráter de empréstimo do capital empre­sarial. Digo expres-
samente capital empresarial porque o conceito não se aplica ao rendimento do solo; no
caso do ca­pital empresarial é decididamente assim que ocorre, pelo simples motivo de
12.
sempre existir a tendência a desvalorizar o que depende da vontade humana37 — na
figura 4 vemo-lo no artesanato e nas atividades livres — em comparação com o resto.
O capital empresarial está completa­mente voltado para a atividade livre. É constan-
temente desvalorizado, de modo a podermos dizer o seguinte: neste lado do processo
econômico (fig. 4), onde produzimos o rendimento do solo, temos tendência a rebaixar o
capital empresarial, a valorizá-lo cada vez menos. Assim como pelo lado do rendimento
do solo temos um constante encarecimento, pelo lado do capital empresarial temos um
constante barateamento. O capital tende a experimentar uma constante redução de
seu valor econômico, ou melhor, de seu preço, enquanto o rendimento do solo tende a
constantemente subir de preço.
Existe mais uma razão pela qual os Senhores poderão compreender a tendên-
cia do capital a baixar de valor. Compreendendo que na agricultura só se pode ser
13.
autossustentador, sendo essa autossustentação que causa elevação (fig. 4) na ava-
liação dos produtos agrícolas, veremos que com relação ao ca­pital empresarial, onde
7. Os fatores da formação de preço 65

rege o princípio do empréstimo, não se pode ser autossustentador. Não é possível


abastecer de capital a si próprio. Caso exista um auto­financiamento, este deverá ser
declarado no balanço — se é que este seja correto — da mesma forma como aquilo
que se empresta. Uma vez que ali (ver fig. 4) não há a possibilidade de se autos-
sustentar, existe naturalmente também a tendência oposta, a da queda dos preços.
É precisamente o discernimento dessas condições no processo econômico que
importa, pois disso perceberemos que o es­tabelecimento de preços corretos não é um
assunto muito fá­cil. Tal procedimento é constantemente afetado pelo fato de, por um
lado, aparecerem no mercado coisas cujo preço tende, de certo modo, a ser colocado
alto demais e, por ou­tro, coisas com tendência a serem baratas demais. Como, po­rém,
o preço é provocado pela troca, aquilo que se acha no meio está sujeito a constantes
perturbações. Podemos observá-lo claramente no processo econômico: na mesma medida
14. em que os produtos agrícolas e de silvicultura ficam mais caros, os produzidos na livre
atividade humana ficam mais baratos. É isso o que causa aquelas tensões provocadoras
das agitações e insatisfações sociais. Por esse motivo, a pergunta mais importante no
que diz respeito à formação de preços é a seguinte: como conseguiremos compensar a
tensão que existe, na formação de preços, entre a avaliação dos bens resultantes da
livre vontade humana e daqueles bens em que há uma cooperação da natureza? Como
poderemos abordar tal tensão? Como poderemos compensar a tendência para baixo
com aquela para cima?
A divisão do trabalho faz nascer produtos cada vez mais diferenciados. Basta termos
em mente a simplicidade dos pro­dutos que surgem, digamos, num povo de caçadores que
vive totalmente imerso na silvicultura. Este realmente não é to­cado pelas dificuldades
da formação de preços. Se, porém, a agricultura se junta à silvicultura, já começam as
dificul­dades, pois a dificuldade está na diferenciação. À medida que a divisão do tra-
balho se alastra, criando novas necessidades, a variedade dos produtos aumenta e as
dificuldades da formação de preços se avolumam; pois quanto mais diver­sos forem os
produtos, tanto mais difícil se tornará a definição recíproca de valor — não podendo a
definição de valor ser outra senão recíproca. Podemos deduzir isso do fato de existir uma
avaliação recíproca já no caso de produtos não muito diferen­ciados, como por exemplo
trigo, centeio e outros cereais. Ob­servemos períodos bastante extensos e verificaremos
que a relação na avaliação recíproca do trigo, do centeio e de ou­tros cereais ficou quase
estável. Subindo o preço do trigo, os dos outros cereais também sobem, e vice-versa.
15.
A razão disso é que existe apenas uma pequena diferenciação entre esses produtos.
Se a varia­ção aumentar, isso não mais será assim; nesse caso, acontecimentos dentro
do organismo social podem fazer subir repentinamente o preço de algum produto em
comparação com um outro que pode baixar — produtos esses cujos dois preços as pes-
soas estavam acostumadas a contrapor. Imaginem as mudan­ças que isso causará nas
relações econômicas. De um modo geral, as mudanças na economia são causadas mais
pelos au­mentos e diminuições dos preços recíprocos dos produtos do que por qualquer
outro fator. É que a dificuldade da vida no âmbito da economia, tomada como um todo,
é acarretada pela subida e descida recíproca dos preços. Os consumidores deveriam
interes­sar-se muito pouco por uma subida ou queda de todos os preços — isto é, se estes
subissem ou caíssem uniformemente. O que lhes importa, todavia, é eles subirem ou
caírem em medida di­ferente. Isso é uma consequência trágica, diria eu, que surge das
atuais condições econômicas;38 é do fato de os produtos subirem ou caírem de maneira
66 Rudolf Steiner

diferenciada — sobem ou caem sobretudo os valores monetários propria­mente ditos,


nos quais, entretanto, são preservados os verdadeiros valores ori­ginais — que resulta
atualmente uma completa confusão para a comuni­dade humana.
Isso, porém, obriga-nos a considerar os fatores atuantes no organismo econômico
de um modo ainda diferente. Partimos da­quilo que a economia comum leva em conta ao
falar dos fatores existentes no organismo econômico; che­gamos, porém, a verificar que
a nada nos pode levar a simples enumeração dos fatores ‘natureza, capital e trabalho’.
Porque quando ao que foi dito antes os Senhores acrescentarem o que eu ex­pus hoje,
perceberão que a fixação dos preços dos produtos naturais não se dá sob condições
puramente econômicas, e sim sob condições jurídicas; perceberão que a avaliação do
capital empresarial é influenciada pela livre vontade humana, com tudo o que esta
16. realiza ao atuar na vida pú­blica. Imaginem o que é necessário para se acumular al-
gum capital empresarial para uma finalidade qualquer. A livre vontade humana tem
nisso um papel. O ato de em­prestar está sujeito à livre vontade humana — talvez
não direta­mente. É claro que quem almeja algum capital economizado es­tá disposto
a tomá-lo emprestado; mas já o fato de alguém poupar é uma expressão da vontade.
Vemos que a livre vontade humana tem nisso uma influência essencialíssima. Tendo
isso em mente, descobriremos ainda uma divisão dos fatores econô­micos diversa da
que consideramos até o momento.
Até aqui eu lhes dei uma divisão esquemática, consistindo no seguinte:
natureza existe, mas o valor surge somente pelo trabalho na natureza, quan-
do natureza e trabalho se encon­t ram. E valor surge pelo trabalho, quando este
se move em dire­ç ão ao capital ou ao espírito. E por isso surge a tendência a re-
17.
gressar novamente à natureza. Isso pode ser impedido evitando-se que o capital
excedente seja fixado em terras, e sim seja transferido para empreendimentos
espirituais livres onde desaparecerá, com exceção de um pequeno resto que
deve ser preservado como semente para a manutenção do processo econô­m ico.
Além desse movimento que aqui (v. fig. 5) vai da esquerda à direita — e que faz
surgir a natureza trabalhada, o tra­balho organizado e dividido e o capital emancipado
que atua somente dentro dos empreendimentos espirituais —, existe ainda um outro
movimento: trata-se daquele movimento que não resulta em proveito de modo a que o
anterior tenha sempre continuação no próximo, mas que corre em sentido oposto. Um
movi­mento vai em sentido oposto ao do relógio, e o outro no sen­tido dos ponteiros. No
18.
primeiro surge algo por se engrenar a parte anterior na próxima; no outro movimento
esse algo surge porque o que aqui (fig. 5) corre para este lado capta o que corre para
o outro lado e como que o abraça. Logo os Senhores perceberão o que quero dizer com
isso. Se levarem em conta que em verdade o capital é espírito efetivado no processo
econô­mico, nada impedirá de escrevermos ‘espírito’ em lugar de ‘capi­tal’, de modo a
termos: natureza, trabalho e espírito.
Se o espírito acolhe a natureza trabalhada — se não simplesmente a in­troduz, com
um movimento progressivo oposto ao do ponteiro do relógio, no processo econômico, e
sim a acolhe —, então nasce o meio de produção. O meio de produção é algo diferente,
19. ou seja, encontra-se de certo modo num movimento totalmente oposto ao do produto
da natureza elabo­rado para o consumo. É um produto da natureza que é acolhido pelo
espírito, um produto da natureza necessitado pelo espírito. Desde a pena de escrever,
que é meu meio de produção, até as má­quinas mais complexas na fábrica, os meios de
7. Os fatores da formação de preço 67

produção são natureza abraçada pelo espírito. A natureza pode ser tra­balhada e envia-
da nesta direção (v. fig. 5), tornando-se então ca­pital; ou pode ser enviada nesta outra
direção, tornando-se então meio de produção.
Da mesma maneira, o que surge aqui com a ajuda do meio de produção pode con-
tinuar em seu curso e ser acolhido pelo trabalho. Tal como aqui a natureza é acolhida
pelo espírito, o que é meio de produção em seu sentido mais amplo pode ser re­cebido
20. pelo trabalho. Se o meio de produção for acolhido pelo trabalho, isto é, se surgir uma
conexão entre o meio de produção e o trabalho, é em tal conexão que reside o capital
empresarial. Isso é o capital em­presarial. Portanto, acompanhando-se este processo aqui
(v. fig. 5), surge um movimento que interpenetra meio de produção e capital empresarial.
E se tal movimento continuar, de modo a ser continuamente acolhido pela nature-
za — aliás, agora por uma outra parte da natureza do que no processo de consumo — o
que é produzido pela cooperação entre os meios de produção e o capital empresa­rial,
21. começará a nascer no processo econômico a merca­doria propriamente dita. É que a
mercadoria já é de fato acolhida pelo processo natural. Ou ela é comida — sendo, nesse
caso, acolhida energicamente pela natureza — ou é aniquilada, é desgastada até acabar.
Em todo caso, algo torna-se mercadoria pelo fato de voltar à natureza.
Sendo assim, podemos dizer o seguinte: acabamos de acompanhar aquele movi­
mento em que consiste todo o processo econômico e que abrange os fatores representados
por meios de produção, capital empresarial e mercadoria. Aqui (v. fig. 5) neste ponto a
distinção será muito difícil — pois é extremamente difícil distinguir, no que vai e vem
na verdadeira troca, isto é, na compra-e-venda, se algo vem ou vai em seu movimento,
22. se é mercadoria ou se é algo que não pode ser chamado de mercado­ria no verdadeiro
sentido da palavra. Ora, o que é que torna um bem uma mercadoria? Para dizer a ver-
dade, se eu quisesse ser exato deveria escrever ‘bem’ no movimento em direção oposta
ao do pon­teiro do relógio, e no movimento re­trógrado deveria escrever ‘mercadoria’ —
pois um bem é mercadoria apenas na mão do comerciante que o oferece e não o utiliza
para si mesmo.
O que me interessava hoje era, principalmente, adquirirmos conceitos que apon-
tassem as verdadeiras relações no processo econômico, as quais, devido a processos
deturpados, são constantemente levadas a atuar de modo a não permitir que o processo
econômico funcione sem perturbação. O essencial da tarefa da economia consiste em
compensar tais perturbações. As pessoas falam muito, hoje em dia, da neces­sidade de
se eliminarem os males da economia, e ficam pensando sub-repticiamente que assim
tudo estaria resolvido e adviria o paraíso na Terra. Isso, porém, seria como se alguém
23. dissesse: “Eu gostaria de comer uma vez tanto que nunca mais precisasse fazê-lo.” Não
posso agir assim porque sou um organismo em que constantemente devem desenvolver-se
processos ascendentes e descendentes. Tais processos também devem estar presentes
na economia; deve existir a tendência a, por um lado, deturpar os preços por meio da
formação de renda e, por outro, baixar os preços em relação ao capital empresarial. Tais
ten­dências sempre existem e devem ser levadas em conta, a fim de se conseguirem, na
medida do possível, os preços com um mínimo de deturpação.
Para tal seria necessário que a experiência humana direta apreendesse o pro-
cesso econômico, por assim dizer, sempre no status nascendi, ou seja, estar sempre
24.
no meio dele. Disso um indivíduo jamais seria capaz, nem uma comunidade, mesmo
que ultrapassasse um certo âmbito como, por exemplo, no caso do Estado; são capazes
68 Rudolf Steiner

disso apenas as associações, brotadas da própria vida econômica e que, por isso, estão
em condições de atuar diretamente a partir dela, de uma maneira viva. É justamente
ao considerarmos o processo econômico do ponto de vista eminentemente técnico que
somos levados a re­conhecer que a partir desse próprio processo devem formar-se as
instituições capazes de unir as pessoas, de forma que estas participem associativamente
no processo vivo e direto, podendo observar as ten­dências em andamento e descobrir
como enfrentá-las.
8 Sobre oferta e demanda
31 de julho de 1922

Hoje ainda deveremos tratar de corrigir alguns concei­tos existentes, que atrapa-
lham quem se empenha em chegar a uma concepção econômica objetiva, realista e, a
partir dela, situar-se no curso da vida econômica. Em verdade, uma Ciência Econômica
1.
que não seja capaz de fecundar a vida prática não possui um valor real. E conceitos
deduzidos de tal disciplina meramente contemplativa têm de conduzir, até certo ponto,
a uma certa inconveniência.
Pressupondo já nos termos convencido de que a questão do preço seja o assunto
mais importante em nossas conside­rações econômicas, trata-se agora de encararmos
o preço no sentido que já apontei, ou seja, o de que o preço nos indica se as condições
no organismo econômico estão ou não em ordem à medida que o preço suba, desça ou
2.
se mantenha estável, ou então seja considerado alto ou baixo demais para certo grupo
de produtos. Sendo assim, a tarefa das associações deverá ser a seguinte: descobrir,
conforme o barômetro da posição dos preços, o que deverá ser feito nas demais esferas
da vida econômica.39
Sabemos que uma opinião prevalecente em muitos círculos é que, com relação à
questão de preços, não há praticamente coisa alguma a fazer senão o que resulte es-
pontaneamente sob o efeito do que chamam de oferta e demanda.40 Aliás, tal conceito
defendido não só por Adam Smith, mas por muitos outros — isto é, o de que em última
análise o preço se regula automaticamente sob a influência de oferta e demanda —, foi
abalado sob a pressão não dos fatos econômicos, e sim das aspirações sociais cada vez
3.
mais evidentes nos últimos tempos. O que esses círculos sustentam é simplesmente que
uma oferta excessiva terá de levar a medidas para reduzi-la, acarretando assim uma
regulagem automática dos preços. Da mesma maneira, uma demanda, seja ela exces­siva
ou insuficiente, exigirá uma regulagem por parte dos pro­dutores, a fim de não produzi-
rem demais ou muito pouco. Com isso, pensam, o preço automaticamente se aproximará
de uma certa situa­ção estável sob a influência da oferta e da de­manda no mercado.
Trata-se agora de verificar se tal concepção se mantém apenas na teoria, no siste-
ma conceitual, ou se serve para ingressarmos na realidade. Sem dúvida, tal concepção
não serve para isso; porque tão logo os Senhores se virem às voltas com tais conceitos
de oferta e demanda, perceberão que é totalmente impossível sequer estabelecê-los em
sentido econômico. Tais conceitos podem ser estabelecidos no estilo dos observadores
4. contemplativos da economia. Podemos mandar as pessoas à praça para verificar o efeito
da oferta e da demanda; porém a pergunta é se tais observa­ções servem para as pessoas
se aprofundarem no curso dos processos econômicos ao ponto de, com tais conceitos,
apreenderem algo de concreto. É que na vida real tais conceitos não lhes servem de
nada, pois elas desconsideram por completo o que está por trás dos processos que querem
abranger com seus con­ceitos. Elas observam no mercado o jogo entre oferta e demanda;
70 Rudolf Steiner

porém isso não abrange o que se passa atrás daquilo que se apresenta como oferta nem,
por sua vez, o que precede o surgimento da demanda. É nestes aspectos que residem os
verdadei­ros processos econômicos; só que no mercado eles se confundem, por assim dizer.
Isto nos proporcio­na a melhor evidência de como esses con­ceitos são altamente frágeis.
Se quisermos formular conceitos viáveis, estes podem e devem ser dinâmicos
frente à vida. Devemos ter a possibilidade de ter tais conceitos, de transferi-los de
um para outro campo da realidade, sendo que eles têm de transformar-se; porém um
conceito não deve ser de feitio a implodir a si mesmo. O conceito de oferta e também
o de demanda se implodem a si mesmos. Su­ponhamos que exista uma oferta qualquer
— por exemplo, quando alguém leva uma mercadoria ao mercado e a oferece por um
5. preço qualquer. Isto é uma oferta; qualquer um pode afirmar isso. Eu, porém, afirmo: não,
isso é uma demanda. Se alguém leva mercadorias à praça para vendê-las, nesse caso isso
representa uma demanda por dinheiro. Ora, quando não nos aprofun­damos no contexto
econômico, não existe dife­rença alguma entre eu ter uma oferta de mercadorias ou uma
demanda por dinheiro, ou se tenho uma demanda em sentido geral. Se quero desenvolver
a demanda, necessito oferta de dinheiro.
Portanto, oferta de mercadorias é demanda por dinheiro, e oferta de dinheiro é
demanda por mercadorias. Temos aqui realidades econômicas. Porque o processo eco-
nômico, seja baseado em troca ou comércio, não é capaz de realizar-se de outra ma­neira
6. senão ao existirem, tanto no comprador como no vendedor, simultaneamente oferta e
demanda. A oferta de dinheiro que o comprador tem deve primeiro ser desenvolvida
atrás de suas costas ou atrás das costas da demanda, no processo econômico, da mesma
forma como tem de ser desenvolvida a mercadoria que aparece como oferta.
Portanto, não operamos com conceitos reais ao acreditar que o preço se desenvolve
7.
a partir da inter-relação entre o que costumamos denominar oferta e demanda:
P = f (OD)
Ele não se desenvolve absolutamente da maneira como se define ao estabelecer
esse raciocínio; pois o preço se desenvolve também sob a influência da possibilidade de
o interessado se tornar um oferecedor de dinheiro, ou de o processo econômico não lhe
permitir tornar-se um oferecedor de dinheiro num dado momento com relação a um
8.
determinado produto. No processo econômico, não se trata apenas de existir a oferta
de um nú­mero de mercadorias, mas de existir também um número de pes­soas capazes
de produzir a oferta de dinheiro justamente para aquelas mercadorias. É algo que
logo lhes demonstrará não ser possível falarmos de um jogo entre oferta e demanda.
Deixando de lado os conceitos que podem ser o resultado de um raciocínio errôneo
e atentando somente para os fatos — se­jam eles os fatos do mercado ou apenas os de
9. uma simples troca de dinheiro e mercadorias, mesmo sem existir o mercado —, não nos
resta dúvida de que o preço se desenvolve entre a oferta e a de­manda, porém a partir
de ambos os lados. É isso o que acontece, puramente de acordo com os fatos.
Acontece, todavia, que oferta, demanda e preço são três fatores, todos eles pri-
mários. Não se trata de escrevermos ‘preço = função de oferta e demanda’, tratando
matematica­mente ‘o’ e ‘d’ como grandezas variáveis, e ‘p’, o preço, como uma grandeza
10.
resultante das duas variáveis; não, devemos consi­derar ‘o’ e ‘d’ — oferta e demanda — e
‘p’ — preço — como variáveis independentes umas das outras, e tratar de aproximar-nos
de uma grandeza ‘x’ (a caminho de uma fórmula). Não devemos ima­ginar que somente ‘o’
8. Sobre oferta e demanda 71

e ‘d’ sejam variáveis, sendo o preço uma função das duas, mas que as três são variáveis
independentes entre si, entrando em interação umas com as outras, o que resulta em
algo novo. O preço encontra-se entre oferta e demanda, porém de maneira muito insólita:
X = f (ODP)
Devemos iniciar toda a nossa consideração por um lado bem diferente. Se numa
praça qualquer observamos a oferta e a demanda encontrarem-se, no tocante a essa
determinada região, na relação em que, por exemplo, Adam Smith as observava, isso
reflete aproximadamente a circulação de mercadorias do ponto de vista do comerciante;
porém não reflete em abso­luto a situação do ponto de vista do consumidor ou do produ­
tor. Para o ponto de vista do consumidor, vale algo bem diferente; sua posição resulta do
11.
que ele tem. Entre o que ele tem e o que ele dá desenvolve-se uma relação semelhante
à que, para o comerciante, resulta da oferta e da demanda: para o consumidor vale a
interação entre preço e demanda. Essa sua demanda é pequena quando, para o seu
bolso, o preço é alto demais, e aumenta quando, para o seu bolso, o preço se encontra
num nível suficientemente baixo. Tudo o que lhe interessa, como consumidor, são o
preço e a de­manda.
Logo, podemos dizer o seguinte: pelo lado do consumidor, lidamos com a interação
entre o preço e a demanda; pelo lado do comerciante, com a interação entre a oferta e
a demanda. E no caso do produtor trata-se da interação entre a oferta e o preço. É que,
12.
com relação à sua oferta disponível, ele tem de observar os pre­ços viáveis em todo o
processo econômico onde se encontra. Assim, podemos chamar a primeira equação de
equa­ção dos comerciantes:
P = f (OD)
Adam Smith a declarou válida para toda a econo­mia; mas nesse caso ela é falsa.
Podemos desenvolver a seguinte comparação: podemos considerar a oferta — ‘o’ — como
13. função de preço e de­manda; e a demanda — ‘d’ — como função de oferta e preço. Temos
então nessa equação ‘d = função de oferta e preço’ a equação do produtor:
D = f (OP)

E na terceira equação — oferta como função de preço e demanda — temos a


14. equação do consumidor:
O = f (PD)
Porém as equações continuam sendo diferentes em qualidade, uma vez que a do
15. consumidor é uma oferta de dinheiro e a do lado do produtor uma oferta de mercadorias41,
e no caso do comerciante lidamos com algo que se encontra entre dinheiro e mercadoria.
Em todo caso, percebemos que o processo da economia deve ser considerado muito
mais complexo do que geralmente se considera. A tendência moderna a formar concei-
16. tos de modo tão precoce, diria eu, é o motivo para hoje em dia não existir uma teoria
econômica metódica. Todavia, para entrarmos na realidade devemos perguntar-nos o
seguinte: o que é que reside nesse processo econômico?
Podemos dizer que o que adquiro para satisfazer minhas necessidades passa, nas
17. condições em que vivemos hoje, para o meu domínio — só mais tarde quero falar de
posse e propriedade; por ora limito-me a ex­pressões mais vagas que, todavia, cobrem
72 Rudolf Steiner

o que quero dizer. Ora, eu dou dinheiro ou algo que produzi por dinheiro — é assim
que geralmente acontecem as coisas —, mas será que com isso apreendemos a reali-
dade plena do processo econô­mico? Eu poderia adquirir dinheiro ou mercadorias de
maneira outra do que a entrega de uma mercadoria por dinheiro ou de dinheiro por
uma mercadoria. Suponhamos que eu furte algo. Furtando, também adquiro algo. E
se o furto fosse exercido em grande escala, por exemplo durante décadas, tal como o
faziam outrora os velhos salteadores, seria preciso estabelecer uma ciência econômica
totalmente diferente da que é adequada à nossa ética moderna. Poderia parecer-lhes
um exemplo muito estranho eu dizer: sim, eu furto; mas o que, no fundo, significa
furtar? Furtar significa tirar alguma coisa de al­guém sem que este possa defender-se,
e sem que o ladrão considere oportuno dar algo equivalente, uma indenização pelo
que furtou.
Comparemos agora esse conceito um pouco sus­p eito do furtar com aquele
designado com o termo requisitar. Sob certas condições, requisita-se algo das pes-
soas tirando-lhes alguma coisa sem dar-lhes uma compen­sação. Acontece também,
em outros casos no processo econômico, de se tirar algo das pessoas sem que estas
recebam compensação alguma. A tais ocorrências só quero aludir, para que não se
pense que estou fazendo agitação, pois o que quero é fazer ciência. Imaginem que
18.
em algum lugar eu estabelecesse uma ordem social em pe­quena escala, abolisse aí
o dinheiro e simplesmente organizasse investidas armadas, abatendo as pessoas
que tivessem algo e tirando-lhes suas coisas. Ora, o que poderia impedir que isso
acontecesse? Poderia ser que os outros se defendessem caso possuíssem os meios
para tal, ou talvez eu me conven­c esse da inutilidade disso, por exemplo, se meu
campo de ação fosse pequeno.
Algo diferente deve entrar em jogo no processo econômico. Não é possível eu
tirar, sem mais nem menos, al­g uma coisa de alguém. E por que não? Porque, de
certo modo, meus contemporâneos deveriam reconhecer meu direito de fi­car com
a coisa furtada. E de modo algum eles reconheceriam que eu ficasse com o trunfo
adquirido como resultado de minha matança de seres humanos na redondeza. O
que é que entra em jogo aí? É o direito que entra no assunto. Veremos que não
obteremos uma imagem correta do processo econômico sem dar-nos conta da inci-
dência do direito em todos os seus de­talhes. Não é possível raciocinar ou realizar
algo no sentido da economia sem que o direito se faça valer nela. Substituindo o
comércio de troca pelo comércio facilitado pelo dinheiro, perceberemos logo que o
direito influi na economia. De que outra maneira, pois, seria pos­sível eu adquirir
19.
um par de sapatos em troca de, diga­mos, vinte marcos, e não em troca de um outro
objeto qualquer — de forma que eu tenha os meus sapatos e o outro o dinheiro —,
se esses vinte marcos, mesmo sendo de ouro, não fossem reconhecidos por ninguém
como va­l or útil para se adquirir algo? Se esses marcos não fos­s em introduzidos
legitimamente no processo econômico, jamais tiraríamos proveito deles, por mais
quantidade que houvésse­mos acumulado. Por conseguinte, no momento de aparecer
o dinheiro no processo econômico fica evidente o surgimento de fatores de direito.
É extremamente importante termos isso em mente, pois nos demonstra que não é
possível contemplarmos todo o organismo social sem gradativamente ampliarmos
nossa visão de um processo puramente econômico para um que abrange aquilo que
ocorre sob a influência do direito.
8. Sobre oferta e demanda 73

Admitamos que eu haja adquirido do sapateiro um par de sapatos e lhe haja


dado vinte marcos. Poderia acontecer que ao tal sapateiro, imediatamente depois de
me haver vendido os sapatos, ocorresse a ideia de que no mundo já houve sapateiros
que foram também outra coisa além de sapateiros — Hans Sachs e Jacob Boehme, por
exemplo* —; e assim ele poderia resolver usar os vinte marcos para outra finalidade do
que fazer um novo par de sapatos. Poderia usar sua engenhosidade para fazer alguma
coisa que, de repente, fizesse com que os vinte marcos adquirissem um valor completa-
mente diferente do valor de um par de sapatos. No mesmo momento em que tivermos
transformado a mercadoria em dinheiro, ou seja, em direito, poderemos ou preservar
20. esse direito — comprando pelos vinte marcos algo que tenha o mesmo valor dos sapatos
— ou usar nossa engenhosidade para aplicar o dinheiro em alguma coisa que produza
algo totalmente novo para o processo econômico. Aqui entram em jogo as faculdades
humanas que se desenvolvem livremente entre os homens, e que se incorporam ao que
adquiri como direito mediante o dinheiro, da mesma forma como o dinheiro se incorpora
à mercadoria como concretização do direito. Com isso, naquilo que até aqui observamos
em todo o processo orgânico — tendo então considerado primeiro a natureza, depois
a natureza trabalhada e por fim o trabalho articulado pelo espírito — introduzimos o
direito e as faculdades do homem.
Portanto, no próprio processo econômico encontramos uma articulação que é trí-
21.
plice. Só que agora cumpre ra­ciocinarmos corretamente a respeito dessa ‘trimembração’.
Ao considerarmos a economia geral, perceberemos que, por serem fatos o que
acabo de caracterizar, surgem aí certas impossibilidades concretas. É que uma pessoa
pode chegar a um direito tam­bém por conquista ou coisa semelhante, assumindo o
direito pelo exercício do poder. Nem sempre é por uma simples troca que se alcança
um ­direito; às vezes, também o poder dá a possibilidade de assumir o direito. Nesse
tipo de direito temos algo que não pode ser comparado ­com a mercadoria. Não existe
um ponto de confluência quanto à merca­do­ria, ou seja, entre mercadoria e direito.
Em nosso processo eco­nômi­co, constantemente se trocam mercadorias ou o valor mo­
22. netário de mercadorias por direitos. Quando pagamos pelo solo, quando co­operamos
com nosso aluguel no pagamento do valor que o solo possui hoje em dia, percebemos
que estamos pagando um direito por meio de uma mercadoria, ou ainda por meio do
dinheiro que recebemos por uma mercadoria; em todo caso, pagamos um valor de
direito com um valor de mercadoria. E quando contratamos um professor de escola e
lhe pagamos um certo salário, estamos pagando, neste caso, capacidades espirituais
com um valor de mercadoria ou o valor monetário correspondente. Vemos, pois, que
no processo eco­nômico ocorrem constantemente trocas entre direitos e merca­dorias,
ou entre capacidades e mercadorias ou, ainda, entre capacidades e direitos.
Coisas que não são comparáveis são permutadas no pro­cesso econômico. Ima-
ginem, por exemplo, a situação de alguém que quer receber um pagamento por uma
invenção, ou quer fa­zer registrar uma patente: em princípio, ele faz com que um va­lor
23. puramente espiritual seja remunerado com um valor mone­tário. Não há absolutamente
um fator de comparação que possa ser introduzido nisso. Aqui tocamos um elemento que
particu­larmente introduz vida no processo econômico. E quando in­cluímos o conceito
do trabalho, a coisa torna-se mais complexa ainda.

* Hans Sachs (1494-1576), poeta e mestre-cantor; Jacob Boehme (1575-1624), místico. (N.T.)
74 Rudolf Steiner

Eu já expus que na realidade o operário não recebe o que em geral se entende


pelo conceito do salário, mas que praticamente vende até ao último tostão o resultado
de seu trabalho ao empresário, recebendo o pagamento correspondente, enquanto o
empresário, de acordo com a conjuntura, imprime o valor correto, mais alto, ao que
comprou do operário. Num sentido econômico, não podemos dizer que o lucro é tirado do
trabalho como mais-valia. O raciocínio econômico não nos deixa chegar a tal juízo — o
que, mediante um juízo moral, talvez seja possível. O lucro surge porque o operário se
encontra numa situação social mais desvantajosa e, por isso, os resultados do trabalho
24. vendidos por ele possuem, no lugar onde ele os vende, um valor mais baixo do que têm
quando o empresário situado numa posição diferente os revende. Este último simples-
mente tem melhores conhecimentos da situação, e por isso pode vender em condições
melhores. O mesmo que se refere à relação entre operário e empresário vale também
para quem vai à praça e compra uma mercadoria qualquer por um preço qualquer. Ele
tem de comprá-la aí. Por quê? Pela simples razão de que suas condições não permitem,
digamos, comprá-la em outro lugar. Outra pessoa pode ter a possibilidade de comprá-la
muito mais em conta num outro lugar. Não faz diferença. Do ponto de vista econômico,
o que se passa entre o empresário e o operário é simplesmente uma espécie de mercado.
No entanto, existe de fato uma certa diferença entre eu ter plena consciência de
que seja assim ou acreditar que o operário seja pago por seu trabalho. Talvez os Se-
nhores a considerem uma diferença meramente teórica; porém basta efetivarem-se na
prática uma ou duas concepções desse tipo e os Senhores perceberão quão diferentes
são as condições sob a influência de uma ou de outra concepção. Ocorre que o que se
passa entre os homens é também o resultado de concepções. As concepções modificam o
que se passa à medida que elas mesmas se modificam. Hoje em dia, todo o proletariado
fundamenta sua agitação no fato de o trabalho ter de ser remunerado adequadamente;
porém em parte alguma o trabalho é pago, sendo sempre os resultados do trabalho
que são pagos. Se as pessoas viessem a compreender isso no sentido correto, tal se
expressaria também na realidade dos preços. Não se pode dizer que não há diferença
25.
entre falar de preço de mercadoria ou de salário; pois no momento em que se fala de
salário, acredita-se estar, de fato, remunerando o trabalho. Com isso se chega a todos
aqueles outros conceitos secundários que juntam o trabalho, como tal, com outros
processos econômicos produtores de valores — surgindo, assim, os distúrbios sociais
de maneira errônea. Os distúrbios sociais surgem de maneira correta quando nascem
de experiências, de sentimentos. Sentimentos e emoções, até certo ponto, sempre têm
razão; porém não é possível corrigir o que deve ser corrigido quando não se dispõe dos
conceitos corretos. E o fatídico na vida social é que muitas vezes as discrepâncias nas-
cem de maneira totalmente correta mas as correções são feitas sob premissas falsas. E
é da maneira mais difundida que as pessoas desenvolvem tais conceitos errados, que
então são transferidos para toda a visão econômica, onde surtem efeitos devastadores.
Escolhamos um exemplo muito simples: — Um senhor — conto este exemplo
como um fato da vida real — disse-me um dia o seguinte: “Gosto muito de escrever
muitos cartões postais aos meus amigos, muitos cartões postais.” Eu lhe disse: “Eu não
26. gosto absolutamente de escrever cartões postais, e isso por razões de economia” — foi
no tempo em que eu ainda não era tão atarefado como hoje. E ele: “Por quê?” Disse eu:
“Com cada cartão postal que escrevo, involuntariamente tenho de pensar num carteiro
que talvez seja obrigado a correr até ao quarto andar. Em poucas palavras, eu provoco
8. Sobre oferta e demanda 75

um deslocamento no processo econômico. Não é o trabalho do carteiro o que importa,


mas no caso do carteiro temos dificuldade em distinguir entre o serviço e o trabalho,
e é o serviço que deve ser avaliado. Se gostasse de escrever muitos cartões postais aos
meus amigos, eu aumentaria de maneira pouco econômica o serviço que os carteiros
são obrigados a cumprir.” Respondeu ele: “Essa linha de raciocínio não tem sentido
econômico; pois bastaria estipular que cada carteiro fosse obrigado a entregar somente
certa quantidade — e se as pessoas escrevessem cartões postais em excesso, bastaria
empregar muitos outros carteiros, aumentando assim o número de carteiros que ganha-
riam seus salários. Assim eu sou realmente”, disse ele, “um benfeitor das pessoas que
vão ser empregadas”. A única coisa que eu pude retrucar foi: “Mas o senhor conseguirá
produzir tudo o que essa gente adicional comerá? O senhor não está aumentando os
meios de consumo; apenas procede a um deslocamento. Os meios de consumo não se
aumentam pelo emprego de maior número de carteiros.”
Isto é o que em muitos casos produz os mais crassos enganos. Porque no caso de
uma reunião de tais senhores num conselho municipal — ou, se tais senhores fossem
ministros, um conselho ministerial —, seria muito fácil simplesmente dizer: temos
tantos e tantos desempregados; ergueremos novos edifícios ou outras obras, e essa
gente estará colocada.42 É certo que para os primeiros cinco passos se solucionou o
problema, porém nada se produziu de novo. O conjunto de todos os operários não terá
mais alimentos para comer do que antes. Fazendo-se um prato da balança descer, o
outro forçosamente subirá. Promovendo-se, por um lado, algo com uma medida isolada
27.
e não por um processo econômico abrangente, forçosamente terá de resultar, no outro
lado, uma calamidade econômica. E quem soubesse observar poderia fazer o seguinte
cálculo: se eu proceder a uma reforma social simplesmente criando trabalho para os
desempregados na construção de novos edifícios, estarei aumentando os preços de
uma ou outra mercadoria para um outro grupo de pessoas. Assim o campo econômico
demonstra, por excelência, que não se deve ter raciocínio curto, e sim considerar todo o
conjunto de circunstâncias. Cumpre lembrar sempre o seguinte: o importante é pensar
as coisas relacionando-as entre si.
Essa visão de conjunto não é absolutamente tão fácil no processo econômico,
simplesmente porque o processo econômico é algo diverso de um sistema científico. O
sistema científico pode existir, em sua totalidade, no indivíduo — talvez existisse só
28.
em esboço, mas poderia existir em cada indivíduo —; o processo econômico, todavia,
jamais poderia realizar-se em sua totalidade numa pessoa isolada, podendo espelhar-se
somente onde concorrem os juízos das pessoas envolvidas nos vários campos.
Não há possibilidade alguma de se chegar a um juízo realista, a respeito do que
lhes acabo de expor, a não ser pela via associativa — não a um juízo teórico, mas a um
juízo concreto. Em outras palavras: das três equações que estabelecemos (ver pág. 71
s.), uma pessoa que conheça somente os costumes do comerciante pensará apenas na
primeira equação e agirá sob sua influência, conhecendo, pois, o que se passa sob a
29. influência dessa equação. Do mesmo modo, o consumidor que acompanha o consumo
com inteligência conhecerá tudo o que ocorre sob a influência da segunda equação. E
o produtor conhecerá tudo o que se passa sob a influência da terceira equação. Talvez
os Senhores digam: as pessoas não são tolas a ponto de não poderem pensar além do
horizonte, ou da torre da igreja de seu bairro; uma pessoa que seja somente consumidor
ou somente comerciante poderá, decerto, raciocinar além de seu horizonte — afinal de
76 Rudolf Steiner

contas, não somos homens bairristas, como tampouco somos políticos bairristas. Isso,
sem dúvida, é correto contanto que se refira à cosmovisão. Porém não há outro caminho
para se saber algo abalizado, por exemplo, sobre o que se passa no comércio do que estar
atuando no meio dele. Não existe outro caminho. Teorias podem ser interessantes, mas
não importa sabermos como se negocia de um modo geral, e sim como, por exemplo, em
Basiléia e arredores os produtos passam de um lugar a outro. Mesmo sabendo isso, ainda
não saberemos como os produtos são negociados em Lugano. Portanto, o que importa
não é conhecer o assunto de um modo geral, mas conhecer algo num campo específico.
Assim, tendo uma pessoa formado um juízo competente sobre, digamos, o preço mais ou
menos alto pelo qual podem ser fabricadas foices ou quaisquer implementos agrícolas,
ela está longe de saber por que preço se podem produzir parafusos.
O juízo apropriado para a vida econômica tem de ser formado diretamente
a partir da realidade concreta. E isso não se poderá dar de outra maneira senão
formando, para determinadas regiões cujo âmbito resultará do processo econômico,
30.
as associações onde haja gradualmente representações dos mais diversos ramos re-
lacionados ao que se passa nos três campos da vida econômica: o da produção, o do
consumo e o da circulação.
Devo dizer que, de certo modo, é extremamente triste constatar que em nossos
tempos não há compreensão alguma por um assunto, no fundo, tão simples e objetivo.
No momento em que surgir real compreensão, será possível organizá-lo num só dia,
sem nem sequer precisar esperar até depois de amanhã. Porque não se trata de fazer
transformações radicais, e sim de procurar em cada situação concreta a união associa-
tiva. Para tanto, basta compreender o assunto de ativar a necessária vontade. Trata-se
de um campo em que o pensar econômico coincide, de certo modo, com o pensar moral
31. e, diria eu, com o religioso — o que de fato nos causa tanta aflição, já que, a mim por
exemplo, parece totalmente incompreensível que uma observação econômica como esta
possa ter passado despercebida às pessoas que, oficialmente, cuidam das necessidades
religiosas do mundo. É indu­bitável que os últimos tempos revelaram uma progressiva
incapacidade de se ter domínio sobre as condições econômicas, e que os fatos ultrapas-
saram a medida do que os homens dominam; de modo que a questão mais premente
que se nos apresenta é a seguinte: de que maneira tal situação poderá ser dominada?
Contudo ela tem de ser dominada por pessoas, e por pessoas em associações.
Não quero encerrar estas observações relativamente sérias com uma piada, mas
quero dizer o seguinte: nossa Ciência Econômica se desenvolveu de modo a não acom-
panhar, em suas concepções, o que se passou na transição da economia de troca para
a economia monetária e para a economia de capacidades. Ela continua atuando, em
seus conceitos, na economia de troca, considerando o dinheiro ainda como se fora uma
espécie de substituto para a troca. As pessoas não querem admitir isso; mas é nisso que
consistem suas teorias. Sabemos que nos sistemas econômicos antigos, que talvez não
32.
nos sejam muito simpáticos, houve as trocas e depois veio o dinheiro; e aí — não quero,
como já disse, fazer uma piada, mas o gênio da linguagem provoca isso — da palavra
alemã tauschen [trocar] surgiu simplesmente [pela introdução do ditongo ä = ae] a
metafônica täuschen [enganar], e tudo se tornou vago: hoje encontramos ‘enganar’ em
toda espécie de processos econômicos. Não se trata de uma burla intencional, mas de
um embaçamento de todo o processo. É preciso voltarmos a descobrir como os processos
econômicos se realizam interiormente.
9 As formas de capital
1 de agosto de 1922

As fórmulas que tentei apresentar ontem não são, naturalmente, fórmulas ma-
1. temáticas; trata-se, como as que já mencionei em ocasião anterior, de fórmulas que
na verdade deverão ser verificadas junto à própria vida. E não só isso; elas deverão
ser entendidas de modo a enquadrarem-se na vida real da economia.
Hoje terei de expor algumas coisas que sucessivamente os levarão a compreender
como tais coisas atuam na economia. Embora admitamos que, no processo econômico
2. global, tudo o que nele circula deve ter um certo valor, por outro lado não deve­mos
ter dúvida de poder ocorrer, no organismo econômico, muita coisa que não expresse
diretamente seu valor nos processos econômicos.
Quero explicar-lhes com um exemplo que nos levará a introduzir alguns outros
conceitos econômicos. Unruh43, em seus livros sobre Economia, apresentou muito bem
tais assuntos que esclarecem concatenações econômicas supostamente ocultas. Aqui
3. eu só exponho detalhes que tive oportunidade de corroborar pessoalmente, e dos quais
posso dizer que a observação os confirma, mesmo que Unruh, um espírito perfeitamente
versado em Ciência Econômica, pela ra­zão de, no fundo, raciocinar não econômica mas
politicamente, não saiba colocar as coisas em sua devida relação.
Um detalhe que pode chamar nossa atenção sobre a com­plexidade do processo
econômico é o preço do centeio em cer­tas re­giões da Europa central. Frequentemente
ouvimos al­guns latifundiários dizerem o seguinte: “Com o preço do centeio não se
ganha nada; pelo contrário, com esse preço temos prejuízo.” O que significa isso, em
verdade? A princípio significa que para essa gente o centeio não pode ser vendido
de um modo como deve ser vendido, por exemplo — ao menos quanto ao essencial
—, aquilo cujo preço é hoje, via de regra, composto a partir dos preços de matérias-
-primas, dos custos de produção e de um certo lucro. Analisando dessa maneira os
preços do cen­teio, verificar-se-ia que não correspondem aos custos de produção mais
um certo lucro — situam-se muito abaixo. E se procedêssemos a simplesmente lançar
no balanço da agricul­tura os preços do centeio pelo valor que alcançam na praça, tais
4.
valores teriam de influenciar o balanço em sentido ne­gativo. Examinando o assunto,
pode-se verificar que é absolutamente correta a afirmação de que se vende abaixo
do preço, como diriam. Ora, é impossível que na rea­lidade isso seja assim. Visto do
lado de fora, porém, ocorre realmente. O que acontece é o seguinte: o centeio não só
fornece o fruto, mas também a palha. Os agricultores que vendem o fruto do centeio
abaixo do preço vendem apenas uma pequena porção da palha. Ocupam o resto em
sua propriedade, principalmente para os animais. Em seu balanço, então, procuram
com­pensar o que perdem em centeio com o estrume que recebem dos animais. Ocorre
que tal estrume é o melhor que há para a agricultura. Ele é rico em bactérias — e dessa
maneira ganha-se o estrume praticamente de graça, do ponto de vista do balanço. É
dessa forma que se consegue um correto equilíbrio do ba­lanço.
78 Rudolf Steiner

Os Senhores veem que aqui algo nos obriga a estabelecer um conceito econômico
extremamente importante, poucas vezes mencio­nado na literatura de Ciência Econô-
mica. O conceito que desejo estabelecer é o da economia regional dentro da economia
geral. Refiro-me ao caso em que uma economia negocia consigo mesma, efetua troca de
produtos dentro de seu âmbito, de maneira que os produtos não são vendidos para fora
5. e nada de fora é comprado, circulando todos no âmbito dessa região econômica — eis o
que quero denominar ‘economia regional’ em confronto com a economia geral. Onde há
economia regional existe inteiramente a possibilidade de os produtos serem entregues
até mesmo abaixo do preço normalmente necessário do ponto de vista econômico geral.
É claro que, desse modo, a formação de preços num âmbito mais amplo se torna uma
sequência de fatos extraordinariamente com­plexa.
Ora, partindo dessas conexões, também já observadas como fatos por certos
cientistas econômicos, podemos passar a uma outra sequência factual a que já aludi
de um certo ponto de vista, mas que agora deve ser também levada em conta a partir
de um outro. Bem, uns dias atrás eu lhes disse não ser possível abranger de um só
lance as conexões da área econômica. Se um sapateiro ficasse doente — disse eu —,
consultando-se com um médico não muito hábil, talvez tivesse de ficar de cama por três
6. semanas, não podendo fabricar sapatos durante esse tempo; assim, os sapatos produ-
zidos por ele faltariam por três semanas na economia. Disse mais: se ele conse­guisse
um médico hábil que o curasse em oito dias, de modo que ele fizesse sapatos durante
os restantes quinze dias, poder-se-ia formular a seguinte pergunta: argumentando-se
no sentido econô­mico, quem terá fabricado então os sapatos? Num sentido econô­mico,
não há dúvida de que, nesse momento do processo econômico, é o médico quem terá
fabricado os sapatos.
Porém há mais um detalhe nessa questão, ou seja, per­gunta-se se o médico rece-
beu o pagamento correspondente. Ora, o médico não recebeu pagamento pelos sapatos.
Podería­mos estabelecer o seguinte cálculo: poderíamos calcular quanto custariam
na praça os sapatos que o médico produziu e, projetando isso num balanço a prazo
relativamente longo, incluí-lo em seus custos de formação; percebe­ríamos então que
provavelmente seus custos de formação não seriam tão diferentes dos custos de todos
os sapatos que ele produziu e de todos os cervos que abateu* — pois reconhe­cidamente
7.
os médicos nem sempre costumam retrair um pa­ciente da vida cotidiana por apenas
uma semana, se podem fazê-lo por três semanas. Em todo caso, como quer que o ba­
lanço global se apresentasse, o cálculo econômico não seria correto se estabelecêssemos
o balanço de modo a não adjudi­carmos à sua formação todos os sapatos que ele teria
fabricado, todos os cervos que teria abatido ao curar um caçador antes do prazo e os
cereais que teria colhido, etc. Só que o processo econômico ficará na­turalmente muito
complexo, e o pagamento também se revela extraordinaria­men­te difícil.
Disto os Senhores perceberão que não se pode dizer com certeza, a qualquer
instante, qual é a fonte de pagamento efetiva no pro­cesso econômico. Às vezes é neces-
sário ir muito longe para descobrir de onde vem esse pagamento. Quem, porventura,
8.
procurar por procedimentos simples e ligeiros no processo econômico jamais chegará a
concepções econômicas que espelhem de algum modo a realidade. Jamais concordará
com o que eu disse, isto é, que fórmulas dadas praticamente abrangem preço, oferta e

* Steiner refere-se aqui à atividade do caçador supostamente paciente do médico. (N.E.)


9. As formas de capital 79

demanda. Mas é preciso con­cordar com isso. Ocorre, todavia, que se torna extraordina­
riamente difícil aquilatar o processo econômico de maneira acertada — porque, pelo
fato de mui­tas vezes o lu­gar das despesas estar muito distanciado do lugar das recei­
tas, não é fácil descobrir o que foi comprado e pago, o que foi emprestado e o que foi
doado. Suponhamos, pois, a efetivação do que eu disse alguns dias atrás, ou seja, que
algum capital nascido de qualquer maneira fosse impedido de estagnar-se em terras e
fosse introduzido na cultura espiri­tual, por exemplo, sob forma de bolsas e fundações.
Trata-se então de doações. E assim talvez os Senhores possam ver, de um lado de sua
contabilidade global abrangendo a verdadeira vida econômica, um lançamento repre-
sentando os sapatos fabricados pelo médico durante duas semanas e compensado, de
ou­tro lado, sob o título ‘doações’ caso ele haja desfrutado de uma bolsa ou participado
de uma fundação.
Em suma, partindo daí podemos levantar a seguinte ques­tão de grande peso:
quais são, em verdade, as transferências de capital mais produtivas no processo eco-
nômico? Perscru­tando mais a fundo tais concatenações como acabo de descrevê-las,
principalmente no que concerne a capitais dispo­níveis para serem aplicados em fun-
9. dações, bolsas e outros bens espirituais de cultura — que por sua vez poderão fazer
frutificar todo o empresariado, toda a produção espiritual —, os Senhores verificarão
que o mais fecundo no processo econômico são justamente as doações; descobrirão
também que só se conseguirá um processo econômico verdadeiramente sadio se pri­
meiramente existir a possibilidade de pessoas doarem alguma coisa, e em segundo
lugar se essas pessoas tiverem a boa vontade de fazê-lo de uma maneira sensata. Com
isso chegamos a algo que se insere de uma maneira insólita na economia.
O mais singular nisso tudo é algo que não pode ser dedu­zido de conceitos, mas
que somente uma experiência abran­gente pode propiciar; tal experiência abrangente
com cer­teza lhes propiciará, à medida que os Senhores se aprofundarem no assunto — e
para tal eu até lhes recomendaria estudarem um grande número de temas de disserta-
ção orientados na direção da seguinte pergunta: o que é feito das doações no processo
econômico? Os Senhores descobrirão que as doações, os ca­pitais de doação representam
o elemento mais produtivo no processo econômico. Os capitais de empréstimo já são
10. menos produtivos, e o menos produtivo, o mais estéril no processo econômico é o que se
refere diretamente à compra-e-venda. As transações basea­­das em empréstimo — isto
é, o que en­tra no processo econômico mediante a função do empréstimo — têm, diria
eu, produtividade mediana. Aquilo, porém, que entra através de doações é de máxima
produtividade, já pela razão de ser economizado aquele trabalho, ou melhor, o produto
da­quele trabalho que, de outra maneira, teria de ser despen­dido para se adquirir o
que está sendo doado. Doado deve ser o que provém do processo econômico como algo
disponível, e que o perturbaria se fosse estagnar em terras.
Vemos assim que, visto num momento isolado de sua evolu­ção, o processo eco-
nômico absolutamente não fornece informação alguma sobre si próprio, mas que deve
ser tomado em conta também o que houve antes e o que haverá depois. Esse antes e
depois, porém, não poderá ser levado em conta a não ser mediante o juízo de pessoas
11.
reunidas em associações e que, assim, poderão ter um adequado entendimento do pas­
sado e do futuro. Os Senhores veem que o processo econômico tem de ser alicerçado
no entendimento das pessoas envolvidas na economia. É o que se depreende destas
coisas. É inteiramente difícil aquilatar, sem mais nem menos, o grau de participação
80 Rudolf Steiner

dos diferentes fatores do processo econômico em toda a vida dos homens enquanto diz
respeito às coisas materiais.
De um certo ponto de vista, podemos falar de ca­pital comercial, capital de emprés-
timo e capital industrial no processo econômico. Tal divisão abrange aproximadamente
todo o capital circulante. Essas três qualidades do capital — comercial, de empréstimo
e industrial — estão en­volvidas no processo econômico de maneira mais diferenciada.
12. Economias regionais, tais como mencionei hoje num exemplo, por es­tarem entremea-
das por toda parte no processo econômico tornam real­mente difícil quantificar, para a
escala mais abrangente de um tal pro­cesso, a participação dos três tipos de capital na
prosperidade econômica geral. Não obstante, poderemos adquirir conceitos sólidos se
con­templarmos tais coisas com base num horizonte mais amplo.
Comecemos por examinar economias globais de povos ou estados, como seria
mais correto chamá-las em conformidade com a vida econômica moderna. Temos, por
exemplo, a França. No exemplo da França, com todo seu relacionamento na economia
mundial, espe­cial­mente antes da guerra [v. nota à pág. 31] e em seu comportamento
no decorrer dela, podemos observar o efeito do capital de empréstimo no processo eco­
nômico como um todo. Poder-se-ia dizer que a França sempre tinha uma certa propensão
a tratar o capital de empréstimo como tal e aplicá-lo correspondentemente. Sabemos
que, no final das contas, tudo o que foi desviado para o campo polí­tico, evidenciando
assim claramente os danos causados pelo entrelaçamento da vida econômica com a
13. vida jurídica — isto é, com a vida política —, no caso da França passou sob forma de
empréstimos para a Rússia e também para a Turquia. A França exportava grandes
somas de capital de empréstimo para esses dois países. Até para a Alemanha já foi
exportado capital de empréstimo francês, apesar das relações gerais não muito boas
entre a França e a Alemanha; isso aconteceu, por exemplo, no iní­cio da construção da
estrada de ferro de Bagdá, após a In­glaterra ter-se retirado. A França concedeu em-
préstimos a pessoas, como por exemplo Siemens e Gwinner44, que estavam à testa do
empreen­dimento. Podemos dizer que a França foi essencialmente um país concedente
de empréstimos, servindo assim de demonstrativo para o enredamento do capital de
empréstimo no processo eco­nômico global.
Não estou querendo falar a favor ou contra alguma coisa, e sim fazer uma expo-
sição objetiva. Um fenômeno externo poderá demonstrar-lhes os verdadeiros interesses
do capital de emprés­timo. Lançando um olhar sobre economias particulares, desco­
briremos, de um modo geral, o seguinte: uma pessoa com negócios privados poderá
ser considerada uma pessoa pacífica, pois certamente sabe que suas contas de juros
se atrapalhariam caso as relações econômicas fossem sur­preendidas por uma guerra.
Os economistas contam com essa suposição de as pessoas concedentes de empréstimos
serem gente pací­fica. É essa também a razão de ser sempre possível afirmar que a
14. França não teve culpa na eclosão da guerra. É pos­sível dizer isso pela simples razão
de que, para provar que a França não queria a guerra, basta apontar os interesses
dos pequenos investidores, sem mencionar os inte­resses dos que forçaram a guerra.
Na França sempre é possí­vel apoiar-se nas pessoas que de maneira alguma queriam
a guerra. Justamente esse fato pode mostrar-nos, em grande escala , o que é um fato
também em escala pequena: a pessoa que empresta, ou seja, quem possui capital de
empréstimo e pode cedê-lo quer, no fundo, ver impedido na medida do possível que a
economia seja conturbada por acontecimentos alheios a ela — ou por acontecimentos,
9. As formas de capital 81

no próprio âmbito da economia, capazes de produzir fortíssimos abalos na vida econô-


mica. Quem tiver capital para emprestar preferirá uma passagem tranquila das coisas,
tanto mais à medida que não queira fiar-se em seu próprio juízo, e sim esperar que
lhe digam onde e quando aplicar bem seu dinheiro. Em nossa época, em que o juízo
público, embora relativamente escasso, é bastante presunçoso, podemos dizer que ao
mesmo tempo a possibilidade de ceder capital de emprés­timo está ligada a uma ex-
traordinariamente forte crença na autoridade, tanto na vida econômica como na vida
em geral. Tal situação, por sua vez, turva bastante o juízo econômico. Com facilidade
recebem capital de empréstimo pessoas que, de alguma maneira, exibem um tipo de
estampa ou algo assim. Dá-se preferência a conceder crédito pes­soal aos que de algu-
ma maneira trazem uma marca. É nesse sentido que se decide a coisa. E é da medida
em que se cultiva esse princípio autoritário que vemos depender quem é que chega a
intervir produtivamente na vida econômica: ou as pessoas mais capacitadas ou aquelas
que se tornaram, por exemplo, conselheiros comerciais não por suas capacidades, mas
de­vido a outras circunstâncias — que devem existir também. Podendo essas pessoas
intervir na vida econômica, seu curso será diferente do que no caso de os assuntos do
juízo público serem regulados com base nas capacidades pessoais. Nisso intervém, no
âmbito da vida econômica, algo não muito facilmente apreensível. Nos últimos tempos
criou-se o hábito, numa certa comunidade, de usar uma certa palavra sempre que já não
se conseguia formar os conceitos apropriados: a palavra ‘imponderáveis’, que eu já tive
oportunidade de ouvir em vários lugares. Quero frisar expressamente que vou evitar
essa palavra aqui, chamando ao mesmo tempo a atenção para o fato de o que deveria
ser retilíneo se bifurcar, obri­gando-nos a segui-lo por caminhos um pouco tortuosos;
contudo, não será necessário que a cada instante se use o termo ‘imponderáveis’, tal
como fomos obrigados a ouvi-lo até ao fastio aqui e ali, nos últimos tempos. Bem, com
isso tive­mos uma visão inicial do capital de empréstimo.
Passemos agora ao capital industrial. Para estudá-lo em sua essência — esse
capital industrial que percorreu um destino muito pouco edificante —, teremos uma
oportunidade muito boa acompanhando sua função particularmente na prosperidade
industrial na Alemanha nas décadas antes da guerra. Tal oportunidade existe princi-
palmente pelo fato de o capital industrial ter-se transmutado diretamente a partir do
capital de empréstimo, sob a in­fluência do espírito empreendedor — em maior grau,
na Ale­manha nas últimas décadas antes da guerra, do que em qualquer outra região
15.
do mundo. É verdade o que eu já mencionei na primeira palestra, isto é, que na Ingla-
terra, por exemplo, só paulatinamente o capital comercial se transformou em capi­tal
industrial, porque na Inglaterra o indus­tria­lismo se desen­volveu a partir do comércio
mais lentamente do que na Alemanha, onde ele ascendeu de um salto, espelhando de
fato, diria eu, o industrialismo puro — pois este é puro quando transforma não o capital
comercial, mas o capital de empréstimo em capital indus­trial. Querendo-se estudá-lo,
pode-se fazê-lo especialmente bem junto ao modelo da economia alemã.
Ora, o capital industrial se acha, por assim dizer, colo­cado entre dois tampões.
Um tampão é a matéria-prima e o ou­tro são os mercados. O capital industrial precisa
descobrir, na medida do possível, as fontes de matérias-primas e também arranjar os
mercados. Não é tão fácil estudar isso no mo­delo da indústria alemã. O industrialismo
16.
alemão permite an­tes estudarmos, do ponto de vista econômico puro, o modo intrínseco
de trabalhar do capital indus­trial; porém os Senhores poderão estudar praticamente
82 Rudolf Steiner

em toda parte essa situa­ção entre dois tampões, uma vez que o sur­gimento do indus-
trialismo tomou significação na vida econô­mica de todos os países, no decorrer do século
XIX e ainda no começo do século XX. É necessário ater-se aos fatos corretos da vida
econômica. Os Senhores notarão, ao observarem campos econômicos mais restritos,
que terão de trilhar ca­minhos extremamente difíceis para suas definições concei­tuais
— sendo benéfico, como eu já disse, tomarmos coisas tão óbvias como modelo para a
direção ou orientação de que necessi­tamos para nossa conceituação. Os caminhos lhes
ficarão mais fáceis se os Amigos observarem as economias em grande escala, formando,
com base nelas, concepções sobre a forma como geralmente os conceitos de poder, às
vezes disfarçados como conceitos de direito, realizam-se mais pronunciadamente ao se
tratar de abrir fontes de matérias-primas. Podemos estudar isso em grande escala, por
exemplo, na Guerra dos Boers [África do Sul], quando se tratava essencialmente de
desvendar jazidas de metais preciosos. Foi uma verdadeira guerra de matérias-primas,
mesmo tendo sido sempre, até certo ponto, encoberta como tal. Um outro exemplo de
como a vida econômica interfere politicamente no próprio âmbito da política e do poder,
temo-lo nas operações bélicas da Bélgica para obter o marfim e a borra­cha do Congo.
Vemos aí como na economia geral se procede à abertura das fontes de matérias-primas.
Ou con­sideremos o modo como a América do Norte se apoderou das propriedades espa-
nholas na Índia Ocidental, porque lá se en­contravam as fontes da matéria-prima para
o açúcar. Vemos, pois, como a procura de matérias-primas facilmente impele o elemento
puramente econômico para um lado — para o político, para o desdobramento do poder.
Eis um lado, um dos tampões, por assim dizer.
A situação é diferente quando se trata da procura de mer­cados. Já a História nos
dá prova fácil do fato de a procura dos mercados não conduzir da mesma maneira à
vida polí­tica. É que o desdobramento do poder não se desenvolve da mesma forma, a
partir da natureza humana. Um exemplo muito ex­pressivo do século XIX é a conquista
do mercado de ópio chinês pela Inglaterra, na assim chamada Guerra do Ópio. Mas
mesmo esse caso não foi resolvido exclusivamente pela guerra, tendo também, quando
a história parecia melin­drosa, a política pacífica interposto um parecer mediante a
peri­tagem de cento e quarenta médicos que se encontraram para testemunhar que
o consumo de ópio não era mais nocivo do que o de fumo e de chá. Foi aí, portanto,
que interferiu a política, a polí­tica pacífica; contudo é sempre difícil manter a política
afastada. Os Senhores devem conhecer o dito de Clausewitz afirmando que “a guerra
17.
é a continuação da política por outros meios”. Ora, é sempre possível darem-se tais
definições; com tal tipo de definição pode-se justifi­car, por exemplo, a afirmação de que
o divórcio é a continuação do matrimônio por outros meios. Operando com tal lógica
será até possível iluminar sob este ou aquele foco toda classe de circunstâncias da vida,
suscitando a admiração das pessoas. Por curioso que pareça, todo o mundo estranha
quando afirmo que o divórcio é a continuação do matrimônio por outros meios. Todo
o mundo nota a graça disso. Porém ao ser proclamado em toda parte que a guerra é a
continuação da política por outros meios, ninguém reclama a estranheza da lógica e,
pelo contrá­rio, todo mundo a admira. Quiséssemos nós empregar tal lógica na Ciência
Econômica, estabelecendo tais definições, eu ousaria dizer metodo­logi­ca­mente que não
progrediríamos um único passo. Contemplando aquele outro tampão — a procura de
merca­dos —, não podemos senão dizer que nesse caso a prudência humana em mano-
brar entre os polos da astúcia, da es­perteza e da sábia direção econômica desempenha
9. As formas de capital 83

um papel essen­cialmente maior. Uma grande proporção dessas três qualidades entra
na conquista dos mercados, tal como estes foram estruturados especialmente pelas
grandes regiões econômico-políticas em que se converteram os próprios estados ao se
unir a polí­tica à economia; nisso os Estados, eles mesmos, empregavam grandes porções
tanto de sábia liderança quanto de astúcia, inteligência, esperteza, etc. Deduz-se daí que
só será possível formarmos conceitos concretos para as diferentes regiões econômicas
menores, a respeito da conexão entre os vários empreendimentos industriais e a sua
relação com as fontes de matérias-primas e o mercado, se observarmos tais coisas em
grande escala.
Querendo estudar a função do capital mercantil, é vanta­joso estudarmos a Ingla-
terra, e preferencialmente na época em que esta experimentava seu enorme progresso
eco­nômico com a ajuda do comércio, fazendo com que o capital mercantil crescesse cada
vez mais e impelisse suave e gradativamente o país para a esfera do indus­trialismo mo­
derno. A Inglaterra já possuía seu capital mercantil na época em que o industrialismo
começava a transformar tudo, permitindo-nos assim estudar, em seu modelo, o capital
mercantil já em épocas mais remotas. Em época mais moderna, foi particularmente
Marx quem queria estudar no modelo Inglaterra a função econômica do industria­lismo;
todavia, remontando a tempos mais antigos que prece­deram a inauguração do industria-
lismo — às últimas décadas do século XVIII —, é possível verificar a função do capital
18. mercantil por excelência nos destinos econômicos da Ingla­terra. E aí descobre-se que,
sem dúvida, o essencial é sem­pre a concorrência, tanto na atividade econômica global,
prin­cipalmente orientada para o comércio, quanto no âmbito do comércio propriamente
dito, seja ele mais ou menos evidente ou oculto. Certamente a introdução de uma série
de conceitos de ética pode fazer com que a concorrência seja honesta; porém, não deixa
de ser concorrência. Pois aquilo que é o esteio da produtividade do comércio — ou seja,
o fato de o capital mercantil poder ser dirigido, no processo econômico, justa­mente de
forma a tornar-se eficaz como ca­pital industrial, por exemplo —, baseia-se na tendência
do capital mercantil a acumular-se, sendo tal acumulação inimagi­nável sem a concorrên-
cia. De modo que uma boa oportuni­dade para se estudar a função do capital mercantil se
oferece ao se observar a função da concorrência na vida econômica.
Paralelamente, também as transformações históricas estão relacionadas com essas
coisas. Em absoluto podemos afirmar que, tomando-se a incipiente economia mundial
19. como um todo — e antes da guerra ela o era em alto grau —, até aproximadamente o
primeiro terço do século XIX os processos econômicos do co­mércio e da indústria de-
sempenhavam um papel preponderante na vida econômica.
O auge, diria eu, da era clássica do capital de empréstimo deu-se praticamente
só no século XIX, ou melhor, no início de seu segundo terço. E com isso se fez notar, na
evolução histórica, o advento daquelas instituições cuja finalidade primária é a concessão
de empréstimos, ou seja, as insti­tuições bancárias. Assim, a era clássica do capital de
em­préstimo, e com isso o desenvolvimento dos bancos, ocorreu nos últimos dois terços
20. do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Com o desenvolvimento das ins-
tituições bancárias, o empréstimo se revela cada vez mais aquilo que, diria eu, entra
como um primeiro fator no processo econômico. Mas ao mesmo tempo evidencia-se algo
todo especial nessa concessão de empréstimos: mediante os empréstimos em grande
es­cala, em consequência da extensão das instituições bancárias, foi retirado ao homem
o domínio da circulação monetária, tornando-se esse processo circulatório do dinheiro
84 Rudolf Steiner

paulati­namente impessoal — não encontro outra expressão adequada. Como consequência


disso, deu-se o que já mencionei na pri­meira conferência, ou seja, realmente chegou o
tempo em que o dinheiro atua independentemente na economia, e o homem se encontra
uma vez por cima, outra vez por baixo, sempre conforme é comprometido nessa corrente
da eco­nomia monetária. Ora, esse seu comprometimento é muito mais acentuado do que
ele pensa, pois a circulação se objetivou, tornou-se impessoal no decorrer das últimas
décadas do sé­culo XIX. Sendo importante, na economia global, julgar toda a vida de
uma maneira imparcial, é necessário sem­pre abrangê-la em sua totalidade, e isso me
leva a considerar um fenômeno insólito do século XIX, particular­mente de seu final
— um fenômeno inicialmente de aparência psi­cológica, mas que começa a desempe-
nhar um importante papel econômico: é o fato de fenômenos vitais, oriundos de for­ças
inteiramente reais no todo da vida, continuarem rolando au­tonomamente, como que
por uma espécie de inércia social, tal como uma bola a que se deu um impulso e que
continua rolando sem que os impulsos originais continuem atuando sobre ela. Pode-se
dizer que já no primeiro terço do século XIX eviden­ciaram-se impulsos econômicos no
sistema de empréstimos. Nessa época, os impulsos econômicos começam a transformar-se
em impulsos de economia monetária pura através do sistema bancário. Com isso todo
o sistema se torna não só impessoal, mas até desnaturado; tudo é comprometido com a
corrente mo­netária autopropulsora. Uma economia monetária sem um sujeito natural
e pessoal: eis a que se inclinou, ao fim do século XIX, o que na origem foi inteira­mente
sustentado por um sujeito pessoal e natural.
É algo peculiar que essa economia sem sujeito, essa cir­culação monetária sem
sujeito esteja acompanhada por um ou­tro fenômeno. Trata-se do fato de os Estados
terem princi­piado a governar com base em impulsos econômicos, por exem­plo, em suas
pretensões colonizadoras. Amanhã veremos qual a influência dessa colonização sobre
a vida econômica; em nossas considerações devemos incluir também a descolonização.
No caso da Inglaterra, por exemplo, podemos observar muito bem a significação da
colonização num processo econômico real; em última análise, a Inglaterra quase que
21. jamais ultrapassou o estágio de colonização — ou, podemos dizer, do imperialismo com
substância objetiva. Refiro-me à impregnação do imperialismo por reais conteúdos eco-
nômicos. Contem­plando, por outro lado, a colonização alemã, por exemplo, e examinando
seus balanços, verificaremos que no início essa colonização alemã sofria um balanço
negativo. Apenas algumas regiões inexpressivas apresentavam um balanço positivo. Mas
também em outros estados alojava-se, pouco a pouco, a tendência a engrandecerem-se
simplesmente pela colonização. Algumas pessoas, como por exemplo Hilferding45 em seu
livro Finanz­kapital [Capital financeiro], publicado em Viena no ano de 1910, chamaram
isso de ‘imperialismo sem ob­jeto’.
Podemos, então, falar desses dois fenômenos como sendo sinto­mas extremamente
elucidativos da época moderna, a saber: de um lado a circulação monetária sem su-
jeito tanto natural quanto pessoal, e de outro o imperialismo sem objeto na economia
22. global. São dois fenômenos que aparecem na época moderna, como se um deles fosse
a condição prévia para o outro no contexto global. Pode-se dizer que a premissa de
onde se pode partir é puramente psicológica, mas no decurso ulterior a coisa se torna
econômica; pois se as co­lônias são improdutivas, a conta é negativa. E isso, sem dú­
vida, acaba influindo na vida econômica.
Bem, são esses os assuntos que nos cumpria considerar hoje.
10 Das associações
2 de agosto de 1922

Hoje precisamos discutir algo que ontem já esbocei para alguns dos Senhores.
Trata-se da relação entre o trabalho na economia e aquilo que está na base quando a
natureza é transformada, pelo trabalho, num objeto de valor econômico. No processo
subsequente, ocorre então que o trabalho organizado ou dividido é, de certa forma,
acolhido pelo capital, que então se emancipa e desemboca totalmente, poder-se-ia dizer,
na espiritualidade livre. Disso podemos deduzir que o trabalho não representa algo
de valor econômico direto — já havíamos discutido isso; no trabalho, porém, temos o
1. que mo­biliza o valor econômico. O produto da natureza como tal entra na circulação
econômica pelo fato de ser trabalhado. E o trabalho que lhe confere o valor é, no fundo,
a razão por que se movimenta o objeto de valor econômico, pelo menos dentro de uma
certa região. Posteriormente será então o espírito humano, atuante no capital, que dará
conti­nuidade a este movimento. Antes de tudo lidamos com movimento; pois tão logo
entramos na esfera do capital, de­paramo-nos com o movimento causado pelo capital
mercantil, depois pelo capital de empréstimo e, finalmente, pelo capi­tal de produção
propriamente dito, ou seja, pelo capital in­dustrial.
Ao falar desse movimento, precisamos sobretudo ter bem claro que deve haver algo
introduzindo os valores na circulação econômica. E para obtermos uma ideia correta
2. desse fato, devemos já neste ponto começar a ocupar-nos com uma questão econômica
um tanto complicada, diria eu, que não poderá ser compreendida sem mais nem menos
caso não se busque, cada vez mais amplamente, encontrar na experiência econômica o
que pode ser dito a seu respeito e, de certa forma, verificar as coisas.
Consideremos de início o que se pode chamar de lucro econômico. A questão
do lucro, contudo, é uma questão extraordinariamente complexa. Imaginemos, por
exemplo, uma compra. O sujeito A com­pra de B. Ora, uma conceituação diletante
geralmente aplica o conceito de lucro somente ao vendedor. É o vendedor quem deve
lucrar. Assim temos, no fundo, apenas a troca entre aquilo que o comprador dá e o
que dá o vendedor. Porém examinando a questão a fundo os Senhores não poderão
concordar, de modo algum, que numa compra ou mesmo numa troca seja apenas o
vendedor quem lucra; pois se no processo econômico fosse apenas o vendedor quem
lucrasse, o comprador sempre seria o prejudicado em caso de haver uma simples troca.
3.
O comprador teria de ser sempre o prejudicado. Os Senhores poderão concordar, de
antemão, que isso não está certo. Caso contrário, em toda transação comercial tratar-
-se-ia de um logro do comprador por parte do vendedor; mas obviamente não é isso
o que comumente ocorre. Sabemos que quem compra quer comprar com vantagem, e
não com prejuízo. Re­sulta daí que também o comprador pode negociar de modo a ter
ganho. Temos então o fenômeno notável de que, numa troca en­tre duas pessoas, cada
uma — ao menos em compras e vendas normais — deve sair com lucro. Trata-se de
um aspecto da economia prática muito mais importante de ser considerado do que
geralmente se pensa.
86 Rudolf Steiner

Suponhamos, pois, que estou vendendo alguma coisa e recebo dinheiro em troca;
tenho de encontrar vantagem no fato de entregar minha mercadoria e em troca receber
dinheiro. É que devo cobiçar mais o dinheiro do que a mercadoria, e o compra­dor mais
4. a mercadoria do que o dinheiro. Depreende-se daí que, numa troca recíproca, o que é
trocado, tanto para um como para o outro lado, aumenta de valor. Isto quer dizer que,
pela simples troca, o que é trocado aumenta de valor nos dois lados. Ora, como isso é
possível?
Tal só poderá ocorrer se, ao vender algo e receber dinheiro em troca, eu tiver
a possibilidade de conseguir mais por esse dinheiro do que o outro que mo deu; e o
outro que recebe a mercadoria deverá poder obter, por meio dela, algo mais do que eu
poderia obter. Para isso será necessário que cada um de nós — comprador e vendedor
— se encontre em posição econô­mica diferente. Tal valorização aumentada só poderá
5.
ser o resultado daquilo que está por detrás da compra-e-­venda. Eu, como vendedor,
devo encontrar-me numa posição econômica tal que faça com que o dinheiro adquira
em minha mão um valor mais alto do que na do outro; e para o outro, dada a posição
econômica em que ele se encontra, a mercadoria deve adquirir um valor mais alto do
que tinha quando eu o possuía.
Daí os Senhores já poderão deduzir que o que importa na econo­mia não é sim-
plesmente o fato de se comprar e vender; trata-se, sim, da posição econômica em que
se encontram comprador e vendedor. Estudando bem o assunto, perceberemos que o
6.
que sucede em determinado lugar nos remete, como já nos ocorreu em outras ocasiões,
a todo o contexto da economia. Contudo, tal contexto econômico se nos revela também
numa outra ocasião.
Podemos observá-lo partindo do comércio de troca. No fundo essa observação, tal como
acabo de fazê-la, pode di­zer-lhes que com o fato de se introduzir o dinheiro na economia
o comércio de troca não é totalmente superado — pois simplesmente se trocam mercado-
7. rias contra dinheiro. E o fato de ambas as partes saírem ganhando é particularmente o
que nos convencerá de existir outro aspecto importante, diferente do fato de um possuir
a mercadoria e o outro o dinheiro. O mais importante é o que cada um possa realizar, no
contexto econômico em que se encontra, com o que recebe.
Para entendermos mais a fundo esse assunto, remontemos ao mais primitivo
comércio de troca. Este lançará luz sobre o que se passa num contexto econômico
mais complexo. Suponhamos que compro ervilhas. Com as ervilhas que comprei,
posso fazer vá­rias coisas. Posso comê-las. Admitamos que, tratando-se de comércio
de troca, eu receba as ervilhas em troca de algo que produzi e que, portanto, é uma
mercadoria. Re­cebo em troca ervilhas que posso comer; porém também posso receber
em troca tantas ervilhas que não consiga comê-las, nem mesmo com uma grande
família. Ponho-me em contato, en­tão, com alguém que possa utilizar as ervilhas, e
8.
recebo em troca alguma outra coisa que me seja útil. Em substância, as ervilhas não
se transformaram; em sentido econômico, não são mais a mesma coisa. Em sentido
econômico elas se transformaram pelo fato de eu não as ter consumido pessoalmen-
te, e sim tê-las reintroduzido na circulação, representando sua permanência comigo
apenas uma transição no processo econômico. Que qualidade econômica ad­quiriram
as ervilhas junto a mim, em consequência de tal pro­cesso? Os Senhores veem que
bastariam certas condições suplementares e ainda a correspondente legislação deter-
minando que tudo devesse ser permutado por ervilhas — seria necessário produzir
10. Das associações 87

uma quantidade suficiente de ervilhas —, e elas seriam dinheiro. Assim as ervilhas


tornaram-se dinheiro no processo econômico, no exato sentido da palavra. Portanto,
não ocorre de algo se tornar dinheiro por representar algo diferente do que normal-
mente existe no processo econômico, e sim devido a passar por uma transformação
de mercadoria em dinheiro, num deter­minado ponto do processo econômico. E foi por
esse ponto que pas­sou todo o dinheiro. Todo dinheiro se transmutou, alguma vez, de
mercadoria em dinheiro.
Também disso concluímos que o processo econômico nos conduz ao homem, e que
portanto não podemos senão inserir o homem no processo econômico. Ocorre que o homem
se encon­tra, de antemão, como consumidor dentro do processo econômico. Porém quando
se ocupa economicamente com algo não pertencente ao âmbito do consumo, coloca-se, por
9. sua posição econômica, numa situação totalmente diferente daquela em que se encontra
apenas na qualidade de consumidor. Devemos ter em conta todos esses aspectos quando nos
empenhamos em formar um juízo econômico. E juízos econômicos devem ser formados no
âmbito do que eu chamei de asso­ciações. Por isso, é im­prescindível as associações abrange-
rem pessoas que saibam for­mar seu juízo conforme tais pontos de vista, a partir da prática.
Trata-se agora, ao observarmos dentro do processo econômico uma parte da natureza
trabalhada ou divisão de trabalho, de descobrirmos o que é que põe esses elementos eco-
nômicos em movimento, em circulação. Ontem, num outro ponto, foi chamada a atenção
para a necessidade de se incluir no raciocínio eco­nômico o trabalho que atua no processo
econômico — tal como, por exemplo, o físico inclui o trabalho em suas ponderações físicas.
A esse respeito deve ser dito o se­guinte: é verdade que o físico introduz em suas pondera-
ções físicas o trabalho, ao estabelecer uma fórmula que abrange massa e velocidade. Ora,
massa é algo que determinamos pela balança. Temos, pois, a possibilidade de determinar
a massa pela balança. Sem a possibilidade de fazê-lo, nada teríamos que estivesse em
movimento no processo de trabalho físico. Deve-se considerar a seguinte pergunta: será
10.
que existe algo similar também no processo econômico — algo que faça com que o traba-
lho e, mais tarde, também a intervenção do es­piritual — confira valor às coisas? Acaso o
processo econô­mico contém algo que possa ser comparado ao peso inerente a um objeto
qualquer incluído em considerações de trabalho no sentido da Física? Ora, um simples
esboço esquemático do progresso dos processos econômicos indivi­duais nos mostra dever
haver algo que põe toda a coisa em movimento, isto é, que impele os elementos econômicos
daqui para lá (v. figura 6). E a coisa seria ainda mais precisa se não houvesse apenas a
pressão daqui para lá, mas se existisse também uma força de sucção do outro lado, isto
é, se o conjunto fosse impul­sionado por uma força inerente ao processo econômico. Nesse
caso, o processo econômico conteria algo que propul­siona.
Ora, o que vem a ser isso que aí propulsiona? Acabo de de­mons­trar-lhes que cons-
tantemente surgem certas for­ças, tanto do lado do comprador como do lado do vendedor;
toda pessoa que se engajar com outra no processo econômico — não é preciso ser em
sentido moral, mas em sentido puramente econômico — leva vantagem e lucro. Assim,
não existe lugar no processo econômico onde não se possa falar de vantagem e lu­cro.
11.
Tal lucro não é algo abstrato; a ele está vinculada, e tem de estar, a ambição econômica
direta do ser humano. Tanto faz se a pessoa em questão seja comprador ou vendedor;
sua ambição econômica se liga a esse lucro, a essa vantagem. E tal vinculação com esse
proveito é o que na verdade produz todo o processo econômico, sendo a força dentro dele.
Trata-se do que, no processo de trabalho na Física, corresponde à massa.
88 Rudolf Steiner

Notem os Senhores que com isso foi indicado algo extremante significativo no
processo econômico, algo literalmente de peso, poder-se-ia dizer. Tal peso, é verdade,
prevalece mais com relação aos produtos puramente materiais, aos produtos que o
estô­mago cobiça. Por isso o estômago sugere ao comprador que, digamos, frutas lhe são
mais vantajosas do que o dinheiro, no momento em que ele efetua a troca. Vemos, pois,
12. inteiramente dentro do próprio ser humano o motor que propulsiona a coisa. Percebemos
esse motor pro­pulsionador também em outras relações que não as abran­gentes de bens
materiais. Lem­bremo-nos de que essa disposição para conviver com vantagens, com
lucro, está também presente quando se vende algo e se recebe dinheiro: eu sei que com
minhas qualidades poderei fazer mais coisas com o dinheiro do que com a mercadoria
que possuía. Já aí começo a intervir com minhas capacidades espirituais.
Transponham tal situação para a totalidade do capital de empréstimo num organis-
mo econômico, e os Senhores verão logo que para to­dos os que pretendem empreender e
executar alguma coisa, para tal precisando de capital de empréstimo, é precisamente essa
necessidade de capital de empréstimo que constitui o mesmíssimo motor propul­sionador
13.
que movimenta a aspiração ao lucro. Quando considero o lucro qual um deslocamento, o
capital de empréstimo atua como que aspirando; atua sugando, porém na mesma direção
em que impulsionam os lucros. Nos lucros e no ca­pital de empréstimo temos, portanto,
aquilo que impulsiona e suga no processo econômico.
Isso nos mostra nitidamente que devemos inserir o ser humano em todos os aspectos
do processo econômico, dando-lhe um lugar à medida que esse processo consista só de
movimento e tudo que nele possa ser efetuado seja, no fundo, efetuado pelo movi­mento.
14. É verdade que isso pode ser um tanto incômodo para uma economia objetiva, pois o ser
humano é uma espécie de grandeza incomensurável pelo fato de ser mutante, exigindo,
como tal, maneiras variáveis de ser levado em conta; mas isso é uma realidade, e por
conseguinte devemos levá-lo em conta das mais variadas maneiras.
Como já vimos, com o ato de emprestar ocorre uma espécie de efeito de sucção
no âmbito do pro­cesso econômico. Sabemos ter havido um tempo em que a co­brança de
juros por empréstimos era julgada imoral, e só o empréstimo sem juros era considerado
moral. Então emprestar dinheiro não teria oferecido vantagem. Com efeito, a origem
do empréstimo não estava na eventual vantagem em juros oferecida pelo ato de em-
prestar dinheiro; não, a oferta de emprés­timos partiu, em condições mais primitivas
15.
do que as nossas, da seguinte premissa: se eu empresto algo a alguém que é capaz de
utilizá-lo para algo que eu não posso fazer — digamos que ele esteja numa situação
de apuro possível de ser remediado se eu puder emprestar-lhe — e não lhe cobro altos
juros, talvez ele possa retribuí-lo me emprestando algo quando um dia eu o necessitar.
Os Senhores perceberão a todo instante, na História, que o pressuposto do emprestar
é a expectativa de o outro retribuir o empréstimo quando necessário.
Isso é transferido até para condições sociais mais complexas. É o caso, por exem-
plo, de quando alguém quer fazer um empréstimo junto a uma instituição de crédito e
para tal neces­sita de dois fiadores; em tais ocasiões, as instituições de crédito puderam
notar que até para tal serviço a reciprocidade desempenha um papel importante. Ora,
16.
­se A aborda uma instituição de crédito trazendo B e C, que devem apor seus nomes como
fiadores, as instituições sempre esperam que mais tarde B venha trazendo A e C, e que
após B ter liquidado o empréstimo venha C tra­zendo A e B como fiadores. Em certos
círculos, tal procedi­mento é considerado perfeitamente normal. Alguns economistas
10. Das associações 89

afirmam que a tal regularidade assiste o mesmo direito de ser estabelecida como a
qualquer proposição definida por fór­mulas matemáticas. É claro que tais colocações
devem ser entendidas cum granum salis: sempre se deve levar em conta um certo exa-
gero. No fundo, porém, ser capaz disso faz parte da mobilidade do pocesso econômico.
Desse modo podemos dizer que, originalmente, a única re­muneração do emprés-
timo era a expectativa de o receptor retribuí-lo, ou, em não o fazendo, ao menos dar
17. uma ajuda para o primeiro credor conseguir empréstimo, já que este lhe teria ajudado
também. Vemos que com o ato de emprestar entra, de maneira bem mar­cante, a reci-
procidade humana no processo econômico.
Colocado o assunto dessa forma, o que é então o juro? Ocorre o que alguns eco-
nomistas também já perceberam, ou seja, que o juro é o que recebo ao abrir mão da
reciprocidade, isto é, ao fazer um empréstimo a alguém combinando com ele jamais vir
18.
a ser necessário que algum dia ele me empreste algo; então, por eu desistir da recipro-
cidade, ele me paga juros. O juro é a remissão de algo tecido entre uma pessoa e outra;
é a substi­tuição do que se passa como reciprocidade humana no processo econômico.
Constatamos aí o surgimento de algo que deve ser inserido corretamente em
todo o processo econômico. Nesse caso não devemos perder de vista que, hoje em dia,
só faz sentido considerarmos processos econômicos pautados pela divisão do trabalho
— pois é com eles que temos essencialmente de lidar. A divisão do trabalho acarreta
19. que os homens dependam da reciprocidade em grau muito mais elevado do que no caso
de cada pessoa cultivar sua própria couve ou até confeccionar seus próprios sapatos e
ternos. A divisão do trabalho traz a dependência da reciprocidade, se nos apresentando
como um pro­cesso que, em última análise, faz fluir as várias corren­tes em diferentes
direções (v. figura 7).
Por outro lado, percebemos nos processo econômico a ten­dência dessas correntes
a quererem reunir-se novamente — agora, porém, de um modo diverso, mediante uma
troca adequada, o que no processo econômico complexo se dá com a ajuda do dinheiro.
Por­tanto, num certo es­tágio a divisão de trabalho torna necessária a reciprocidade, ou
seja: no nível das relações humanas isto representa a mesma coisa que encontramos,
20. por exemplo, no ato de emprestar dinheiro. Onde há muitos empréstimos encontra-
mos o princípio da reci­procidade, o qual todavia pode ser substituído pelo juro. Nesse
caso o juro é a reciprocidade realizada, só que transmudada na abstrata forma do
dinheiro. Contudo as forças da reciprocidade tornaram-se simplesmente o juro —
metamorfosearam-se, tornaram-se algo diferente. O que percebemos nitidamente no
ato de pagar juros acontece em toda parte do processo econômico.
É nisso que reside a grande dificuldade para a formação de con­ceitos de econo-
mia — pois não podemos formar con­ceitos econômicos senão apreendendo as coisas de
modo imaginativo. Conceitos absolutamente não nos permitem apre­ender o processo
econômico; é necessário apreendê-lo em imagens. Hoje em dia, toda erudição considera
extremamente difícil a exigência de se passar de algo situado no nível da pura abstração
21. dos conceitos para a plasticidade da imagem. Contudo, jamais consegui­remos fundamen-
tar uma verdadeira ciência da economia se não conseguirmos passar a representações
que possuam caráter de imagens, ou seja, sem che­garmos a representar sob forma de
imagens os distintos processos específicos da economia, representando-os de tal forma
que as próprias imagens nos forneçam algo dinâmico, a ponto de sabermos como atua
tal processo econômico específico ao se apresentar sob esta ou aquela forma.
90 Rudolf Steiner

Os Senhores conseguirão compreender corretamente de que se trata ao levarem


em conta que, também no processo econômico — se bem que num grau mais elementar
—, existem pes­soas incapazes de pensar no sentido em que os Amigos aprenderam, ou
pelo menos deveriam ter aprendido, no curso de seus estu­dos. Em alguns casos, essas
pessoas podem ser excelen­tes homens de negócios, com uma intuição aprimorada para a
viabilidade de ainda se comprar algo ou não, de se obter ou não vantagem com a compra.
Um camponês, por exemplo, que não tenha a mínima ideia de conceitos econômicos e
que, no decor­rer dos anos, apenas haja obtido uma certa experiência das con­dições de
22. mercado à sua volta, terá uma noção correta, sem ter de basear-se em conceitos, do que
representa a imagem da entrega de uma certa soma de dinheiro por um cavalo ou um
arado. (Sem­pre lhe será possível errar, mas isso poderá acontecer tam­bém com uma
pessoa que estudou lógica econômica; trata-se apenas de cuidar para que os enganos
não preponderem.) Tal imagem que se forma dentro dele — a de uma certa soma de
dinheiro e de um arado — provoca-lhe imediatamente a sensação de ainda poder dar
tanto dinheiro a mais ou nada mais. Isso é o que lhe dá a expe­riência sensitiva passada.
Ora, tal experiência sensitiva não pode ser eliminada nem do processo econômico mais
complexo. E isso implica em conceber algo em imagens.
A representação abstrata seria frutífera se pudéssemos dizer o seguinte: aqui
a mercadoria, ali o dinheiro; nós negociamos a mercadoria por dinheiro e o dinheiro
por mer­cadoria. Se pudéssemos dizer isso, a coisa seria simples; porém há pouco lhes
demonstrei que até ervilhas pode­riam tornar-se dinheiro. Não é verdade que nos trará
23. pro­veito introduzirmos conceitos no processo econômico. Ganharíamos algo se pudés-
semos introduzir nele a visualização de imagens. Por exemplo, a seguinte imagem: as
ervilhas caminham da banca da feira para as bocas das pessoas — eis uma imagem
concreta. Uma outra observação: as ervilhas estão sendo uti­lizadas como dinheiro —
eis uma outra imagem.
E são tais imagens — imagens da observação direta — que devemos conseguir
também na economia. Isso significa, em outras palavras: se quisermos exercer a econo-
mia corre­tamente, deveremos esforçar-nos por representar em imagens o que se passa
na produção, no comércio e no consumo. Devemos ocupar-nos com o processo concre-
to, e então ganharemos representações aproximadas — representações que, embora
aproximadas, nos trarão proveito se tivermos de agir na vida econômica; nos trarão
24.
proveito, antes de tudo, se aquilo que não sabe­mos intuitivamente — ou seja, aquilo
de que a nossa sensação não nos fornece imagens — nos for completado por outras pes­
soas às quais estejamos ligados nas associações. Não há outra possibilidade se não a
de basearmos o juízo econômico não sobre teorias, mas sobre uma as­sociação viva em
que os juízos sensitivos das pessoas atuem efetivamente, empregando as experiências
diretas dos associados para a fixação do valor de alguma coisa.
Por estranho que pareça, não se deve dizer que é possível de­terminar teoricamente
o valor de um produto; diga-se, antes, que um produto entra no processo econômico
25.
através dos vários eventos econômicos, sendo que seu valor num determinado ponto
desse processo terá de ser ajuizado pelas asso­ciações.
Em que consiste, então, o fato de se formarem juízos tais que, ao surgirem de
forma adequada no processo econômico, se mostram corretos? Em quê isto consiste?
26.
Os Senhores poderão compreendê-lo melhor por uma analogia com algum organismo
humano ou animal. O organismo humano ou animal digere os alimentos que entram
10. Das associações 91

nele. Querendo chamar sua atenção para algo que já é um conceito científico, digo-
-lhes o seguinte: o homem recebe a alimentação, impregna-a de ptialina e pepsina,
fá-la atravessar o estômago e o in­testino. Tudo de que precisa para a alimentação,
seja carne ou vegetais, e que é empurrado para dentro, tem primeiro de ser morto,
paralisado. A vida deve ter-se afastado daquilo que te­mos no intestino. A seguir,
o que temos no intestino é absorvido pelo sistema linfático e reavivado dentro de
nós; sendo assim, o que parte das glându­las linfáticas e, passando pelos vasos lin-
fáticos, vai para o sangue, são produtos naturais mortos — quer de origem animal
ou vegetal — que foram reavivados. Os Senhores não conseguiriam deter­m inar
teoricamente a quantidade que uma glândula linfática deve acolher para reavivá-los,
porque em determinada pessoa a glândula linfática tem de absorver mais, e em outra
menos. Mas não é só isso; ocorre que numa mesma pessoa uma glândula linfática
em determinado local deve absorver mais, e outras em outro local, menos. A diges-
tão é um processo extraordinariamente com­plexo. Não há ciência humana capaz
de reproduzir essa sabe­doria das glândulas linfáticas, que tão lindamente divi­dem
o trabalho entre si. É que aí não estamos em presença de juízos proferidos, mas
de juízos efetivamente atuantes. Com efeito, entre nosso intestino e nossos vasos
sanguíneos atua tal quantidade de inteligência que nem de longe os Amigos podem
encontrar, na ciência humana, algo comparável.
Somente desta forma, ou seja, quando uma razão independente se fizer va-
ler no processo econômico, é que este po­d erá ter uma constituição sadia. Isso,
porém, não poderá ser alcançado senão por meio da associação de pessoas que
27.
realmente tragam em si o processo econômico em imagens, detalhe por deta-
lhe, e — pelo fato de se unirem em associações — completem-se e corrijam-se
mutuamente, promovendo assim uma boa cir­c ulação nesse processo econômico.
Para tal, naturalmente, é imprescindível uma certa disposição de ânimo, se
bem que apenas tal disposição de ânimo não seja sufi­ciente. Podem-se inaugurar
associações com amplo tirocínio econômico; mas se em tais associações não houver
uma certa qua­lidade, nem o melhor tirocínio adiantará muito. Algo mais deve estar
contido nas associações, o que só ocorrerá se sua existência for reconhecida como uma
necessidade. Elas deverão ter senso de comunidade, um verdadeiro senso de todo o
curso do processo econômico. O indivíduo que consome dire­tamente o que compra
não pode senão satisfazer seu senso egoístico. De fato, se não satisfizesse seu senso
egoís­tico ele ficaria em má situação. Não é possível que, se alguém lhe oferecer um
terno por, digamos, quarenta francos, ele, como indivíduo no âmbito do processo eco-
28. nômico, diga: “Não concordo, pago sessenta francos.” Isso não é possível; é algo que
independe da influência do indivíduo no processo econômico. Em contraposição, no
mo­mento em que no processo econômico entrar em cena o elemento associativo, neste
momento não estará presente o interesse pessoal imediato, sendo substituído por uma
visão global do processo econômico; o interesse do outro também estará integrado ao
juízo econômico. Ora, sem isso não poderá resultar um juízo econômico, de forma a
ser­mos elevados, a partir dos acontecimentos econômicos, a uma reciprocidade entre
seres humanos e ao que pode desenvolver-se dessa reciprocidade, ou seja, senso de
comunidade objetivo e atuante nas associações — um senso de comunidade que não
nasce de uma doutrinação moral, e sim do reconhecimento das exigências do processo
econômico.
92 Rudolf Steiner

É isso o que eu gostaria que fosse levado em conta em argu­mentações como aquelas
formuladas em Die Kernpunkte der sozialen Frage [v. nota 7]. Hoje em dia não faltam
pessoas dizendo por aí que nossa economia ficará excelente se os homens se tornarem
bons. “Vós, homens, tendes de tornar-vos bons!” Imagi­nem pessoas que, como Foers-
ter46, vão a toda parte e pregam que é só os homens se tornarem altruístas, adotarem
29.
o imperativo categórico do altruísmo, e a economia se tornará boa! Tais juízos, porém,
não valem muito mais do que o seguinte: se minha sogra tivesse qua­tro rodas e uma
direção na frente, seria um ônibus — pois de fato, neste caso, a premissa não se acha
numa relação melhor com a conclusão do que naquele; apenas foi expressa de maneira
um pouco mais radical.
Na base dos “Pontos centrais” não está a doutrinação moral, o que talvez em
outro campo possa ser importante; trata-se, isso sim, de demonstrar, a partir do pró-
prio assunto da economia, que o altruís­mo deve simplesmente estar na circulação
dos elementos eco­nômicos. É o caso até nos nossos exemplos. Se, portanto, alguém
puder levantar um crédito de capital de empréstimo e com isso conseguir inaugu-
rar um empreendimento ou uma institui­ção e iniciar uma produção, ele produzirá
enquanto suas ca­pacidades forem ligadas àquela instituição. Depois, aquilo que até
30.
aí estava ativo passará a uma outra pessoa, dotada das capacidades necessárias, o
que se dará por um ato de doação — não de pessoa para pessoa, mas consumado, da
maneira a mais bem pensada possível, no próprio curso do processo econômico. De-
vemos fazer ideia de como justamente através da trimembração do organismo social
se tornará possível trazer inteligência para dentro de tal doação. Nisso o ele­mento
econômico faz divisa com o que é o elemento social no ser humano; no sentido mais
abrangente possível, com o que deve ser pensado em relação a todo o organismo social.
E isso os Senhores poderão observar também do outro lado. Já lhes demonstrei
que é na simples troca, pelo fato de envolver mais e mais o dinheiro, ou pelo fato de a
troca ser amplamente reconhecida, que ali a economia esbarra diretamente no campo
do direito. No mo­mento em que a economia deve ser permeada pela razão, cumpre fazer
afluir para o seu âmbito o que fi­gura na vida espiritual livre. Para isso os três campos
vitais do organismo social devem colocar-se numa relação correta entre si, de forma a
31. atuarem um sobre o outro de maneira correta. É isto o que tencionava a tri­membração,
e não a partição em três campos separados! A divisão, em verdade temo-la a toda hora,
e trata-se agora de descobrirmos de que forma os três campos podem juntar-se para
acabar atuando no organismo social com uma inteligência intrínseca — tal como, di-
gamos, o sistema neuro-sensorial, o sistema cardiopulmonar e o sistema me­tabólico
atuam no organismo humano natural.47 É disso que se trata, e é do que continua­remos
falando amanhã.
11 As condições e consequências de uma
economia mundial
3 de agosto de 1922

Talvez os Senhores saibam que, de acordo com a opinião de certo número de


economistas, a Guerra Mundial não poderia ter durado tanto tempo quanto durou
— pois esses economistas, com base em seus conhecimentos das relações econômicas,
esclareceram que a vida econômica tal como é não deveria permitir que uma guerra tão
ampla como essa Guerra Mundial durasse mais do que alguns meses. Como sabemos,
a realidade refutou energicamente tal opinião; e se hoje as ponderações fossem feitas
de modo objetivo, um fato como esse já deveria, por si só, conduzir à necessidade de se
revisar a Ciência Econômica. Se os Senhores se dessem ao trabalho de aprofundar-se
1. nos motivos que levaram ao menos alguns desses economistas a fazer tal afirmação,
não poderiam chegar a afirmar serem todos eles idiotas. De fato, isso eles não eram em
absoluto. Pelo contrário, os Senhores perceberiam que em realidade seus argumentos
não foram maus, e que a força de convicção que emanava desses argumentos não era
tão fraca. Não obstante, a realidade refutou sua opinião. A realidade foi que a guerra
pôde durar mais tempo do que as ponderações dos economistas consideravam possível.
Portanto, a teoria econômica obvia­mente não abarcou a realidade, sendo esta diversa
do que tal teoria pressupunha.
Só se pode compreender tal assunto chegando a um claro entendimento da evolu-
ção da vida econômica geral na Terra. Ora, em verdade essa evolução consiste em seus
diversos estágios consecutivos, que também continuam existindo lado a lado — o que
equivaleria a dizer o seguinte: as formas orgânicas mais simples de hoje conservam
uma certa semelhança com os primeiros seres vivos da evolução terrestre, os quais
ainda estão por aí — se bem que um pouco diferentes, mas sempre semelhantes — ao
lado dos seres vivos mais evoluídos de hoje; assim também persiste, hoje, a presença
de estados mais primitivos da vida econômica ao lado de formas mais evoluídas. Só
2.
que aqui ainda ocorre algo peculiar. Enquanto, por exemplo, no reino animal as for-
mas mais primitivas podem viver no espaço ao lado das mais evoluídas, na economia
os processos primitivos intervêm constantemente nos mais evoluídos. Quando muito,
podemos comparar isso a casos em que, por exemplo, bactérias intervêm em organismos
superiores. Na economia, porém, isso é infinitamente mais complexo; nem por isso uma
certa estrutura básica deixa de ficar em evidência, da qual podemos deduzir importan-
tes contribuições para aquilo em que queremos deixar culminar nossas considerações,
conforme já frisei muitas vezes.
Devemos imaginar a economia, sob suas formas primitivas, como uma economia
privada rural com uma certa abrangência. Tal abran­gência, contudo, é restrita; porém
não podemos deixar de levar em conta o seguinte: se tal economia rural privada é uma
3.
economia fechada, ela abrange também os outros componentes do organismo social,
possuindo sua própria administração, talvez suas próprias armas e defesa, talvez sua
própria polícia, e possuindo também sua própria vida espiritual. Uma economia privada
94 Rudolf Steiner

desse tipo, que já havia crescido em direção a um tamanho gigantesco e, não obstan-
te, mantivera essencialmente o caráter de uma economia privada rural, era o que se
chamava o reino dos Merovíngeos.48 Ocorre que o reino dos Merovíngeos só pode ser
considerado um reino quando se olha para esse conceito bem exteriormente; mas com
toda a certeza ele não foi um Estado. No fundo não passou de uma grande herdade,
abrangendo uma área enorme. E toda a estrutura social nesse reino dos Merovíngeos
foi, em realidade, a seguinte: a parte econômica formava a base; um aparelho admi-
nistrativo se erigiu de acordo com o direito de então, que devia ser posto em prática,
e justamente dentro desse contexto surgiu uma vida espiritual extraordinariamente
livre para as condições da época. É verdade que a grande servidão da vida espiritual
começou a surgir somente na civilização mais nova, sob a influência do liberalismo.49
Com o advento do liberalismo a vida espiritual ficou cada vez menos livre, e o ponto
culminante dessa servidão da vida espiritual os Senhores poderão ver na realização de
todas as bem-aventuranças estatais na República Soviética, na Rússia. Lá só podem ser
vendidos livros aprovados pelo governo. O Papa, ao menos, somente proíbe os livros;
o governo soviético na Rússia, todavia, nem precisa regular as proibições, já que estas
se autorregulam, pois não podem ser publicados outros livros senão os permitidos.
Continuando a acompanhar a evolução, notaremos que a economia particular
passa gradativamente a uma economia nacional, que por sua vez desembocou numa
economia estatal em determinado momento do início da História recente. Isto se dá
de forma característica, porquanto a iniciativa da economia privada gradativamente
passa a órgãos da administração, e isto como consequência do fato de a parte fiscal se
4.
tornar uma forma de economia. E assim vemos como a economia passa à vida estatal,
como a vida espiritual é absorvida pela vida do Estado; vemos assim surgir o organismo
estatal — tanto econômico como espiritual — mais recente, que se tornou cada vez mais
poderoso como tal, ficando-nos claro que necessita passar novamente por uma certa
articulação — se é que a vida econômica deve ter continuidade.
Pois bem, de tudo isso não nos interessa aqui essa triarticulação, mas a asso-
ciação de economias privadas, tal qual geralmente ocorreu para se formar um con-
glomerado maior, um complexo maior, ou seja, a economia nacional — algo que cria
uma nova estrutura social, conservando, porém, o caráter de economia privada e,
portanto, o primitivo como inclusão. O que é que resulta disso, no verdadeiro sentido
econômico? O resultado é um intercâmbio entre as diversas econo­mias privadas, um
intercâmbio regulado da maneira a mais diversificada. Porém essa regulação paira
como uma nuvem sobre o todo. Contudo é assim que o intercâmbio, ou seja, o comércio
entre as economias privadas resulta em algo que se manifesta essencialmente como
5. consequência dessa reunião das economias privadas numa economia nacional. Pelo
fato de cada participante do intercâmbio econômico obter uma vantagem, ou pelo
menos poder obtê-la, como vimos ontem, tal reunião tem a seguinte consequência: as
várias economias que se juntam para o intercâmbio — sendo esta, economicamente,
o essencial — obtêm cada uma sua vantagem. Percebemos assim que as diversas
economias experimentam uma vantagem nessa reunião, simplesmente pelo fato de
poderem efetuar intercâmbios entre si. E é inteiramente possível calcular, em balanço,
o quanto uma economia privada ganha das outras economias privadas com as quais
entrou em interação econômica. Cada um ganha algo — o que, por sua vez, tem um
significado no sentido da economia nacional.
11. As condições e consequências de uma economia mundial 95

A inauguração, de maneiras as mais diversas, da teoria econômica recente coin-


cidiu essencialmente com a formação, a partir das economias privadas, das corpora-
ções atuantes em nível econômico nacional . Querendo-se, por exemplo, compreender
as ideias econômicas de [David] Ricardo ou Adam Smith e os pensamentos que essa
gente elaborou sobre a Economia, é preciso levar em conta que sua visão se baseava
na cooperação de economias privadas. Em toda parte podemos ver como Adam Smith
muitas vezes baseia seu raciocínio e suas conclusões em economias privadas. E a outra
6.
imagem era a reunião numa economia nacional. Porém em seu raciocínio sobre essa
reunião eles preservaram boa parte do raciocínio econômico privado, resultando daí, na
maioria dos casos, concepções que encaravam a economia nacional de modo semelhante
a uma economia privada, isto é, vendo a fertilidade da economia nacional agora na reali-
zação do intercâmbio e da interação entre as diversas economias nacionais que entravam
assim em reciprocidade, e tirando daí cada uma sua vantagem. O mercantilismo50, por
exemplo, foi edificado sobre vantagens resultantes disso.
Mas já a partir da reunião de algumas economias privadas numa grande eco-
nomia nacional surgirá algo como um tipo de liderança exercida simplesmente pela
economia privada mais poderosa dentre as que se integraram a tal complexo. Tal fato,
que indubitavelmente terá ocorrido por ocasião da passagem do sistema de economia
7. privada para o de economia nacional, manifestou-se de maneira encoberta e não con-
seguiu expressar-se plenamente, pelo motivo de o sistema estatal ter tomado a si esta
liderança. Do contrário a economia mais poderosa teria assumido a liderança. Assim,
diria eu, aquilo que era do domínio das economias privadas individuais transbordou,
foi paulatinamente deslocado para dentro da economia estatal.
Quando, porém, no decorrer de época recente o intercâmbio, a interação entre as
várias economias nacionais — ou seja, a circulação mundial — se tornou cada vez mais
abrangente, o fato de a Inglaterra se revelar com sua economia nacional fez com que
sua liderança começasse a delinear-se de forma natural, na continuidade do progresso
econômico, como dominante nos novos tempos. Tendo eu chamado outro dia sua aten-
ção, a partir de um outro ponto de vista, sobre o fato de a Inglaterra ter passado por
um desenvolvimento contínuo do comércio para a indústria, é preciso, por outro lado,
dizer que na época da aquisição de suas colônias a Inglaterra se tornou o país que dava
o tom na fixação cambial das moedas. É que suas colônias se reuniram num complexo
8. econômico mais abrangente, como em outros casos ocorrera entre as economias priva-
das. Isso teve como primeiro resultado as vantagens internas que sempre surgem no
intercâmbio; além disso, resultou aquela poderosa liderança econômica que conseguiu
exercer uma posição dominante na vida econômica do mundo enquanto a circulação
mundial se aperfeiçoava. A Inglaterra tornou-se o país que dava o tom para a fixação
do câmbio, por ter sido ela o país que forçou a introdução do padrão-ouro no mundo; o
padrão-ouro foi introduzido porque, como seria fácil de verificar, frente a um país rico
que adotou o padrão-ouro os outros países que não o adotassem sairiam prejudicados
nas transações de câmbio. Por isso podemos dizer que, sob a influência da circulação
mundial, a Inglaterra se tornou a potência econômica líder.
De certo modo, pode-se dizer o seguinte: enquanto a situação foi essa, era viável
formarem-se os conceitos de economia — talvez sempre com certa adaptação e aperfei-
9.
çoamento — continuando em linha reta o que haviam elaborado Hume51, Adam Smith,
[David] Ricardo e, de certa forma na mesma linha, só que fortemente invertido, tam-
96 Rudolf Steiner

bém Karl Marx.52 É que tudo isso só poderá ser compreendido se os pensamentos que
essas pessoas elaboraram evocarem em nós as imagens da vida econômica nascida sob
a influência dominante do poderio econômico inglês.
Ocorre que no último terço do século passado a circulação mundial desembocou na
economia mundial, e é uma transição extraordinária essa da circulação mundial para
a economia mundial. Definições que possamos dar jamais serão exatas, pois as coisas
tendem a fluir sucessivamente uma para dentro da outra. Todavia devemos dizer que,
na circulação mundial, a economia consiste no fato de diversas economias nacionais
efetuarem intercâmbios entre si. A circulação incrementa e promove o intercâmbio,
alterando essencialmente todos os preços, toda a estrutura da economia. Só que ocorre
o seguinte: em relação a todo o restante, a economia se realiza efetivamente dentro da
própria região. A economia mundial surge quando as diversas regiões econômicas não
10. apenas trocam seus produtos entre si, mas quando as economias produzem conjunta-
mente, ou seja, quando, por exemplo, um país envia produtos semiacabados para um
outro país, onde se dá continuidade à sua fabricação. Nisso temos um exemplo radical
de produção conjunta.53 Enquanto se tratar somente das matérias-primas, perdurará o
balanço da pura circulação; isso ainda não pode ser denominado cooperação econômica.
Quando, porém, todos os fatores da vida humana enquanto atingidos pelo econômico,
ou seja, toda a produção, a circulação, o consumo — não só a produção, o consumo, mas
todos eles entrelaçados — são alimentados pelo mundo inteiro, então surge a economia
mundial. Aí, porém, certas vantagens existentes até então nas economias nacionais
serão extintas pelo surgimento de uma economia mundial.
Recapitulemos mais uma vez: quando economias privadas confluem para economias
nacionais, no geral todas elas saem ganhando, tirando proveito cada qual de per si. O que,
além disso, as impele para tal passo? Em verdade não é sempre o bom juízo econômico que
as impulsiona a efetivar essa união, pois em geral o senso de liberdade é um tanto grande
demais. Para os empreendedores privados, não se trata tanto de usufruir das vantagens
que surgem. Do ponto de vista econômico tais vantagens existem, só que o assunto é bem
mais complicado. É que as economias isoladas obedecem à peculiaridade de todo organis-
mo no sentido de decair para uma vida cada vez mais fraca. Trata-se de uma lei universal
geral, válida também para a vida econômica. Uma vida econômica que não é melhorada
se deteriora. E os conglomerados surgiram essencialmente não porque se almejava elevar
11. as economias privadas, já bastante evoluídas, a uma lucra­tividade ainda maior, mas para
protegê-las da decadência.54 De modo que se pode dizer: a vantagem do conglomerado se faz
presente tão logo esta união se efetua. Não há dúvida de que a situação seja diferente para
cada um dos conglomerados isoladamente. De um modo geral, pode-se afirmar o seguinte: o
que as economias perdem isoladamente em valores internos é ricamente compensado, pois
geralmente resulta um superávit pela união de economias privadas em economias nacionais.
O que as economias nacionais, por seu turno, perdem gradativamente em valores internos
é ricamente compensado pela circulação mundial e pela transição para uma economia
mundial. Mas uma vez surgida a economia mundial, com quem ela irá fazer intercâmbios?
Ora, vimos de fato toda a vida econômica da Terra desembocar paulatinamente na economia
mundial. Aí acaba a possibilidade de se tirar proveito por meio de coligações.
As pessoas que disseram que a Guerra Mundial não poderia durar tanto tempo
12. como de fato durou não raciocinavam em sentido econômico-mundial, e sim econômico-
-nacional; pois se a economia mundial tivesse sido uma economia nacional, isso teria
11. As condições e consequências de uma economia mundial 97

sido verdade. Porém, tendo existido desde o início, na Guerra Mundial, a tendência a
se alastrar cada vez mais, já se preconizava sua vida mais longa. Ca­so se continue a
raciocinar em sentido econômico-nacional no âmbito da economia mundial, esta estará
fadada a desmoronar num certo ponto. Isso é o que deveria ter acontecido caso se pros-
seguisse pensando em termos de economia nacional, e caso esse colapso já não tivesse
sido promovido de antemão por toda espécie de forças obscuras.
Vemos assim que condições nitidamente discerníveis, embora menos nitidamente
quantificáveis, influem na vida econômica. Isso lhes dará a entender que é simplesmente
impossível prosseguir em linha reta com os antigos conceitos de economia nacional;
encontramo-nos diante da necessidade de admitir que, hoje em dia, precisamos de uma
13. teoria econômica cujo alcance ultrapasse a atualidade imediata e também entenda que
já não podem mais ter validade todas aquelas categorias econômicas desenvolvidas um
século atrás. Cumpre frisar que hoje precisamos de uma ciência econômica que torne
possível pensar em termos de economia mundial. Nisso os Senhores podem ver um de
nossos maiores problemas históricos.
Aos atuais líderes que se reúnem em Versailles, Gênova ou Haia, até agora a Ciência
só possibilitou um pensar econômico-nacional. Portanto, eles não são capazes de fazer
outra coisa senão aquilo que forçosamente cairá no ocaso se não for permeado por um
pensar em sentido econômico-mundial. Será que eles poderão negar que continuam
estilhaçando a economia, que elevam novas barreiras, atrasando assim a transição
para uma verdadeira economia mundial? O resultado disso é a tendência dos tempos
14. mais recentes a regionalizar o mundo o mais possível também economicamente, disfar-
çando tal tendência em aspirações políticas e nacionais. É imprescindível passarmos
a uma economia mundial, a uma ciência da economia mundial, sob o perigo de este
mundo se tornar economicamente impossível, capaz de sobreviver apenas se uma
parte puder tirar, mediante diferenças cambiais, vantagens econômicas às custas da
outra parte. Com isso os Senhores terão uma visão direta do que hoje está ocorrendo
intensivamente no campo econômico.55
Ao tentarmos imaginar algo como uma economia mundial, será importante en-
tendermos claramente que até certo ponto, nos limites do campo econômico-mundial,
surgem correlações diferentes de numa região econômica limítrofe com outra. O âmbito
da economia mundial já existe hoje de modo relativo, porém de forma tal que a ciência
da economia mundial tem de acompanhá-la no mesmo ritmo. O âmbito da economia
mundial não se limita com coisa alguma, e esse fato exige uma observação mais atenta
15. de certos processos econômicos que agora se evidenciam, independentemente dos li-
mites, dentro de uma região econômica fechada. A questão crucial a ser resolvida hoje
pela Ciência Econômica é o da região econômica fechada, da região econômica gigan-
tesca; pois até a questão mais insignificante — como, por exemplo, a questão do preço
de nosso café da manhã — é algo que, hoje em dia, é influenciado pela vida econômica
da Terra. E se ainda não o é, significa apenas que as coisas progridem de um modo
reduzido; e nem por isso deixará de chegar lá, e o nosso pensar terá de acompanhá-lo.
Para estudarmos as condições econômicas numa região econômica fechada, não
devemos perder de vista que na inter-relação entre produção, consumo e circulação
16. dentro de uma região econômica existe a mercadoria consumível, talvez também bens
relativamente duráveis, e aquilo que é o dinheiro. Existem diferenças essenciais com
relação à forma dos processos econômicos a que as mercadorias estão sujeitas; há uma
98 Rudolf Steiner

diferença essencial se tomarmos, por exemplo, alimentos (que são produtos de curta
durabilidade), vestuário (já de vida mais longa) ou, por exemplo, o que encontramos
na decoração de residências (de vida útil ainda mais longa). Portanto, com respeito ao
consumo, deparamo-nos com importantes diferenças temporais entre produtos econô-
micos. Um produto durável da vida econômica seria, por exemplo, a pedra na coroa da
Inglaterra, da qual já lhes falei sob outros pontos de vista, ou também pedras de outras
coroas, ou ainda a Madona Sixtina, ou outros; nessas coisas poderíamos ver uma espécie
de resultado duradouro, especialmente quando se trata de obras de arte. Ocorre que
num organismo social sujeito à divisão de trabalho e que, por isso, possui uma exten-
sa circulação, deve haver uma equivalência para cada produto. Deve existir o valor
monetário, que é o preço. Contudo, basta observar de modo global o campo econômico
para ver que tal equivalência entre os valores da mercadoria e do dinheiro é oscilante,
é mutável. Um produto tem um valor aqui, um outro valor em outro lugar. Um produto
pode ter um valor mais ou menos alto, conforme seu acabamento. Em todo caso, daí os
Senhores podem deduzir que em toda a vida econômica temos de lidar — exceção feita
a alguns bens duráveis de vida relativamente muito longa — com bens que um dia se
deterioram, perdem seu valor, em todo caso não existindo mais depois de algum tempo.
Justamente o dinheiro é algo que, por estranho que pareça, não se desgasta na vida
econômica, a despeito de se encontrar em perfeita equivalência com os outros elemen-
tos econômicos. De uma forma radical, os Senhores podem imaginar isso pelo seguinte
exemplo: — Tenho, digamos, batatas de valor equivalente a quinhentos francos. Preciso
tratar de desfazer-me delas, isto é, tenho de fazer algo para passá-las adiante. Depois
de algum tempo as batatas não existem mais, tendo sido consumidas. Se o dinheiro
estivesse em equivalência com os bens, com os bens trabalhados, deveria desgastar-se.
O dinheiro deveria deteriorar-se, tal como os outros bens. Isto quer dizer que, se no
organismo econômico temos dinheiro que não se desgasta, estamos, sob certas circuns-
17. tâncias, criando para o dinheiro uma vantagem frente aos bens que se desgastam. Isso
é extremamente importante. E ainda ficará mais importante se tivermos em mente
o seguinte: é assombrosa a comparação entre o esforço que uma pessoa que possui
uma quantidade de batatas tem de fazer para depois, digamos, de quinze anos ter o
dobro dessa quantidade, e o pequeno esforço de alguém isolado que, possuindo hoje
quinhentos francos, precisa fazer para ter o dobro depois de quinze anos! Basta que
ele não faça nada, retirando do organismo social toda a sua força de trabalho, dei-
xando os outros trabalharem e concedendo empréstimos para que possam trabalhar.
Se nesse meio-tempo ele mesmo não se ocupar com o consumo do dinheiro, o dinheiro
não precisará desgastar-se.
Com isso se introduz no corpo social muito daquilo que é sentido como, digamos,
socialmente incorreto. Essencialmente, tais transferências e deslocamentos causam
enormes alterações no corpo social também em sentido econômico — nem tanto nas
relações de propriedade, das quais nem quero falar, mas principalmente nas relações
trabalhistas e nas relações no campo da atividade humana em geral. Por isso podemos
18.
perguntar: qual é a relação dessas mudanças, dessas reviravoltas com uma outra coisa,
pela qual seja possível apreendê-las de modo ainda melhor? Encontra-se ainda um pou-
co indefinida minha exposição algo empírica da diferença entre o dinheiro e as coisas
concretas no organismo econômico. Como se pode apreender isso detalhadamente, em
imagem?
11. As condições e consequências de uma economia mundial 99

Os Senhores poderão apreender isso em imagem se começarem por pensar quão


fundamental para a economia global de uma região fechada deve ser o consumo de
19.
todas as pessoas abrangidas por tal região. Isso — o consumo de todas as pessoas que
habitam uma região — representa uma primeira premissa.
Há algo mais que tem uma certa importância fundamental. Tal importância
fundamental foi sempre mal-entendida, por exemplo, pelos fisiocratas.56 Nem por isso
deixa de ter alguma significação o fato de aquele outro elemento, ou seja, a propriedade
da terra, ter também uma importância fundamental — mesmo que por si haja ficado
claro que as terras deveriam ser continuamente desvalorizadas. E é justamente por
terem uma significância fundamental que elas têm de ser desvalorizadas. Os fisiocra-
tas cometeram o seguinte erro: viveram numa época em que a terra possuía um valor
capital, como ainda hoje é o caso. Foi sob a influência desse fato que eles raciocinaram
e acompanharam as correlações econômicas, e isso até de uma maneira bastante elu-
cidativa — pois eles eram os mais racionais de todos os economistas —, chegando à
conclusão de poderem dizer, de seu ponto de vista, que o valor econômico intrínseco de
uma região econômica reside realmente na cultura do solo, se resumirmos no conceito
de cultura do solo tudo o que devemos entender como produção de bens essencialmente
destinados à alimentação humana. Enquanto nos mantivermos no campo da alimen-
tação teremos, de fato, de ver nas terras a base, o fundamento mais ou menos fixo
20. para o que constitui o valor intrínseco de uma região econômica. Ora, não devemos
esquecer-nos de que os trabalhadores da terra, ou seja, os que juntam diretamente seu
trabalho aos produtos da natureza que a seguir vão servir de alimento à humanida-
de, ao trabalhar alimentam todos os demais, sendo que estes outros dependem deles
para sua alimentação. Não há dúvida de que os outros podem conseguir os meios para
pagar caro esses alimentos; mas em essência podemos entender a coisa de modo bem
primitivo. Não precisamos mais do que imaginar o seguinte: — Há um certo número A
de consumidores de alimentos. Tal quantidade A abrange todos os operários agrícolas
e industriais, emprestadores, comerciantes e trabalhadores espirituais, até mesmo os
da vida espiritual mais livre; trata-se de todas as pessoas que buscam alimentação. De
outro lado há os que oferecem alimentação — a categoria B —, os que verdadeiramente
oferecem algo com seu trabalho, o qual se transfere diretamente à alimentação, ou seja,
àquela parte do consumo que serve à alimentação. Se A1 for maior do que A e B ficar
igual, é claro que o que B produz deverá ser dividido em maior número de partes. E se
não for possível incrementar o valor de B por medidas quaisquer, será preciso entrar
mais gente e incrementar a produtividade do solo.
Portanto, no âmbito de uma região econômica não será possível aumentar à von-
tade, por exemplo, os agentes intelectuais sem aumentar também o que há no outro
lado, isto é, os que cuidam da produção dos alimentos. Ou então tem de ser incremen-
tada a produtividade do solo. E isto poderá partir do esforço dos agentes intelectuais.
Mas então os agentes intelectuais da época em que a produtividade é maior terão de
21. ser mais espertos, possuir maiores capacidades do que seus precursores. Visto desse
ângulo, o incremento do trabalho rural é, em certo sentido, equivalente à intensificação
do conhecimento na elaboração daquilo que vem da natureza. Isso pode ocorrer das
mais variadas maneiras. Por exemplo, se alguém iniciar uma criação racional de aves
talvez possa contribuir para o incremento da silvicultura. Isto poderá suceder das mais
diversos modos; aqui nos ocupamos apenas com o princípio.
100 Rudolf Steiner

Enquanto se pensa apenas em sentido econômico, é claro que tais circunstâncias


podem sobrevir. Num país com discernimentos reduzidos podem entrar pessoas que já
sejam mais entendidas em um outro país. Estas poderão então intensificar a cultura
22.
do solo. Ou, se muitas pessoas passarem para as classes não pertencentes à classe pro-
dutora de alimentos, trabalhadores poderão ser chamados ao país. Todas essas coisas
sucedem entre economias de regiões limítrofes, e até com outras, mais afastadas.57
Todas as ponderações sobre esse assunto podem ser resumidas na seguinte
pergunta: qual a medida a tomar se no lado A existir um consumo maior do que
B pode produzir? O que se poderia pensar a esse respeito, em sentido econômico,
23.
deixa de ser cogitável quando entra a economia mundial e, em certo sentido, já se
firmaram as condições para tal. E somos simplesmente obrigados formar ideias
sobre o que deveria mudar em se tratando de uma região econômica fechada.
Pode-se estudar isso em primeiro lugar de modo empírico, tomando uma eco-
nomia de pequena escala, em cujo caso (e casos assim sempre existiram) podemos
desconsiderar quase que por completo a importação e a exportação. Aí podemos
estudar as condições existentes numa região econômica fechada. A situação é a se-
guinte: — Como base temos as terras, o solo. O que provém das terras é submetido
ao trabalho, é elaborado, adquirindo assim seu valor. Então o trabalho é organizado;
24. com isso já entramos no âmbito humano, que já não constitui a classe alimentado-
ra e sim, no que concerne os alimentos, é consumidora, e não mais produtora. E é
particularmente no caso dos trabalhadores espirituais que temos consumidores de
alimentos, e não produtores. Devemos, pois, distinguir no âmbito econômico fecha-
do, quanto à alimentação, entre um setor produtor — que faz questão, diria eu, de
permanecer um setor produtor — e um campo consumidor. 58 É claro que tudo isso
é relativo, e que há graduais transições.
Contudo, se levarmos em conta toda a vida humana numa região econômica
fechada, deveremos considerá-la abrangendo tudo o que tive oportunidade de expor-
lhes há alguns dias: para que o capital não sofra uma estagnação, um represamento
naquele ponto (naturalmente isto se espalha por toda região econômica ) onde o es-
pírito, como formação de capital, está mais desenvolvido, os excedentes obtidos pelo
25.
trabalho não deveriam afluir para as terras, onde estagnariam; dever-se-ia cuidar —
mediante a providência de transferir o ganho para instituições espirituais por meio
de doações — para que deixe de haver excedentes (com exceção do que eu designei por
sementes), inviabilizando o surgimento de tal estancamento. Com isso nos deparamos
com o conceito da doação em toda a sua premência. Tal doação tem de existir.
Estudando tais regiões econômicas fechadas surgidas na História, os Senhores
perceberão que tais doações já existiram em toda parte. Em essência, doações são aquilo
de que depende a vida espiritual — doações em sentido econômico. A começar pelo caso
mais singelo, em que Carlos, o Calvo, com o que tinha disponível para doar podia man-
ter seu filósofo da corte, Scotus Erigena, que eventualmente poderia ser considerado
26. uma peça totalmente supérflua; e indo até o Óbolo de São Pedro, pelo qual os católicos
do mundo inteiro fazem à Igreja suas doações em doses bem pequenas. Em toda parte
onde a economia forma uma economia fechada — se bem que possa tornar-se também
uma economia gigante, quando espalhada sobre certas áreas —, vemos a transformação
do capital ganho em capital de doa­ção quando se trata da manutenção das instituições
culturais-­espirituais.59
11. As condições e consequências de uma economia mundial 101

Em outras palavras, quando passa a existir uma região econômica forçosamente


fechada como o é a economia mundial, dever-­se-ia cuidar para que não pudesse ocor-
rer, em sentido econômico, outra coisa senão desaparecer para dentro das instituições
culturais-­espirituais tudo o que de outro modo estancaria nas terras. Tudo deveria
desaparecer nessas instituições, atuando qual uma doação. Isso significa que precisa-
mos encontrar, para a moderna Ciên­cia Econômica, a resposta à seguinte pergunta: de
que forma devemos comprar e vender, em sentido econômico, para que desapareçam
27.
no âmbito cultural-espiritual aqueles valores que foram criados no âmbito puramente
material sob forma de alimentos? Eis a grande questão. Quero formulá-la mais uma
vez: que tipo de pagamento tem de ser almejado, na circulação econômica, para se
fazer com que sempre desapareça para dentro das instituições espirituais o que está
sendo criado pelo trabalho junto à natureza nos lugares em que a produção atua para
a alimentação da humanidade? Eis a grande questão econômica de cuja resposta nos
ocuparemos amanhã.
12 Dinheiro
4 de agosto de 1922

Ontem eu terminei formulando uma questão muito importante, surgida quando a


economia nacional começou a transferir-se gradativamente para a economia mundial.
Ora, é particular­mente por força dessa evolução que a questão do preço adquire, na vida
econômica, um sig­nificado essencialmente diverso do que possuía antes. Devemos estudar
1. ainda mais alguns detalhes antes de podermos chegar a uma ideia dos fatores que, em
verdade, determinam o preço; pois o que acaba apa­recendo na praça ou na circulação
dos bens em geral como preço — como preço manifesto, diria eu — é, realmente, de uma
importância econômica muito inferior ao que está por trás da formação de preço, isto é,
ao que finalmente conduz à formação de preço e que também subjaz às suas oscilações.
Ocorre que os fatores antecedentes à formação do preço, tanto do lado dos com-
pradores quanto dos vendedores, fazem parte das condições sociais das quais depende
a situação em que se encontra o comprador, ou seja, de qual valor mais ou me­nos alto
o comprador deve atribuir a uma certa quantidade de dinheiro — valor não apenas
em sentido subjetivo, pois na economia o elemento subjetivo só interessa à medida que
esteja fundamentado corretamente em acontecimentos objetivos e no julgamento cor-
reto desses acontecimentos. O valor do dinheiro, toda­via, merece atenção sobretudo a
partir de uma perspectiva objetiva. É que hoje em dia a questão econômica não mais
pode ser considerada separada­mente da questão social. Só se poderá chegar a um juízo
válido atentando-se à interação entre essas duas questões. Para tal é imprescindível
levar em conta que a insatis­fação social, que é a base para os distúrbios sociais, está
sobretudo ligada ao que antecede a formação de preços e que, no fim, se manifesta nes-
sa formação de preços. Tendo eu demonstrado que também na remuneração salarial,
2. ou seja, naquela formação de preço que finalmente se expressa no nível de salá­rios
como o temos na economia moderna, existe de certo modo um ato de compra-e-venda,
os Senhores compreenderão que tudo que conduz às lutas por reivindicações salariais
é, no fundo, de­vido às condições sociais em que vivem tanto os trabalha­dores como os
empresários, encontrando sua solução na­quela formação de preços que configura a
remuneração salarial. Por isso temos de saber, em primeiro lugar, de que modo e até
que ponto aquilo que tanto na compra-e-venda quanto na remune­ração salarial, como
também em toda a economia, desempenha hoje um importante papel — isto é, de que
forma o dinheiro como tal exerce uma influência sobre a formação de preços no curso
do pro­cesso econômico. Devemos distinguir entre o que aparece, ao final das contas,
como o preço monetário e o que, em ver­dade, representa o valor do dinheiro em deter-
minada mão — seja a mão do vendedor, seja a do comprador. Por isso teremos, hoje, de
contemplar um pouco o dinheiro.
Podemos encontrar uma série de coisas bonitas em expo­sições econômicas sobre a
3. natureza do dinheiro. Por exemplo, esses tratados econômicos enumeram as qualidades
que o dinheiro deve ter para ser útil como tal. Ora, tais quali­dades apresentadas aí,
104 Rudolf Steiner

devemos submetê-las um pouco ao crivo de nossa crítica, para que os Senhores percebam
ser necessário, a partir da miscelânea de representações da moderna Ciên­cia Econômica,
trabalhar na direção de algo especial. Estipula-se que primeiro o dinheiro deve possuir
um valor genericamente reconhecido. Trata-se então de estabelecer quem é que, neste
caso, exprime esse reconhecimento — pois a afirmação de que o dinheiro tem de possuir
um valor genericamente reconhecido ainda não diz nada, apontando unicamente para
a necessidade de ele ter uma propriedade; todavia nada foi dito sobre como o dinheiro
pode adquirir tal qualidade. A segunda qualidade é ainda mais surpreendente. Afirma-se,
por exemplo, que o dinheiro deve poder ter um tamanho pequeno e, não obstante, por
ser muito escasso, poder possuir um alto valor. Ocorre que tal qualidade do dinheiro
— como já reconhecia Licurgo, que introduziu um dinheiro um pouco mais volumoso
como medida con­tra o enriquecimento ilícito — torna-o especialmente apropriado para
ser guardado facilmente, constituindo, já por essa razão, um relativo estímulo para o
enriquecimento. Ora, se uma peça de vinte marcos tivesse o tamanho de uma mesa,
seria mais difícil guardá-la. Não se disporia das mesmas facilidades para ser rico como
agora; isso chamaria mais atenção, e assim por diante. É fácil notarmos que tudo isso
só pode ser afirmado por motivos puramente exteriores. Diz-se também que o dinheiro
deve ser divisível conforme necessário. Trata-se de um postu­lado que encontrei num
manual de Economia. Porém isso tampouco pode ser realizado senão por meio de um ou
outro reconhecimento, isto é, por algo que precisa ser realizado antes. Portanto, trata-se
de algo nebuloso. Também se exige que seja fácil de guardar. É justamente com esse
aspecto da facilidade de guardar que nos defrontaremos, em toda a sua significância,
em nossas considerações de hoje.
Ora, devemos compreender não apenas que, em verdade, o que é natureza adquire
um valor econômico somente ao entrar na circulação econômica, isto é, ao ser subme-
tido a trabalho; devemos compreender não apenas que também o trabalho recebe um
valor econô­mico pela maneira como é organizado e dividido, e que também o capital
4. adquire um valor somente por ser apreendido pelo espírito do homem e introduzido no
processo econômico; devemos compreender também que o dinheiro, como tal, recebe
seu valor justamente pela própria circulação. Devemos agora estudar como o dinheiro
se transforma, no curso da circulação­. As pre­missas para tal, já as temos naquilo que
acabo de expor.
Inicialmente nos deparamos com o dinheiro como simples dinheiro de compra,
sendo portanto aquele dinheiro que utilizamos para comprar alguma coisa útil ao nosso
consumo. Depois nos deparamos com o dinheiro de empréstimo — já o vimos também.
A questão é se o dinheiro de empréstimo, tendo em vista seu papel na economia, é
a mesma coisa que o dinheiro de compra. Frente ao dinheiro de compra, devemos
perguntar-nos: qual é a origem do dinheiro de compra no meio dos outros elementos
de compra-e-venda? Ora, dinheiro de compra surge pelo fato de a pessoa que se serve
5.
dele não ter apenas em mãos algo que possibilita uma troca direta, mas algo que inter­
medeia uma troca, que intervém na troca. Assim, como já expliquei estes dias, dinheiro
é tudo aquilo que intervém como mediador na troca. Eu lhes disse que, deste ponto
de vista, também ervilhas poderiam ser dinheiro. Se eu ad­quirir ervilhas em excesso
além daquelas que posso comer, a fim de utilizá-las na negociação de algum objeto de
uso, pelo simples ato da mediação estarei transformando em dinheiro o que, outrossim,
seria decididamente um objeto de consumo. É muito espirituoso o que a esse respeito
12. Dinheiro 105

diz Spengler60 — o qual, a par de encarar tudo numa linha de ideias inaproveitável,
muitas vezes também emite alguma observação sagaz perfeitamente correta —: que
principalmente numa certa época da evolução ro­mana, do ponto de vista econômico
seres humanos se tor­naram dinheiro, sob forma de escravos. Enquanto eu mesmo usar
o escravo — isto é, eu, como antigo romano, adquirir ape­nas um número de escravos
de que preciso para meu governo doméstico, o escravo será, naturalmente, meio de
produção; no mo­mento, porém, em que o escravo passar a ser emprestado a alguém
— pois, como foi o caso durante um período do Império Romano, alguns tinham um
exército tão grande de escravos que podiam emprestá-los, trocando-os por uma série
de coisas úteis a que se podia ter acesso pelo intermédio dos escravos —, então ele se
transformará em dinheiro; portanto pode-se dizer, com refe­rência àquelas épocas, que
seres humanos se tornaram dinheiro. Trata-se de uma observação perfeitamente válida
de Spengler. Disso podemos deduzir como atua o dinheiro de compra, como ele nasce
do que é subjacente apenas à troca. O importante será que o que for escolhido para
servir de dinheiro se revele ser o mais útil como tal, não sendo algo que oscile entre
ser comido e ser passado adiante — como é o caso das ervilhas, acarretando uma forte
oscilação do valor no processo circulatório —, mas, ao contrário, seja algo que não venha
a ser utilizado para outra finalidade senão a troca, a intermediação: algo para o qual
obviamente se fará mister um acordo, mesmo que apenas implícito, de todos os que se
servirem do dinheiro. O essencial é que seja utilizado somente para mediar ou tro­car,
e não para ser todo consumido.
Os Senhores logo perceberão que há uma diferença essencial en­tre esse dinheiro
de compra e o que é dinheiro de em­préstimo; no caso do dinheiro de compra, não existe
outra base para o seu valor, para a definição do seu valor, nenhuma outra necessidade
de estipular seu valor senão o quanto se recebe por ele. E nisso não haverá alterações
essenciais com o tempo; porque sempre teremos de avaliar um quilo de carne por seu
6. valor de consumo, independentemente de o comprarmos hoje ou depois de algum tempo;
é que, com relação ao quilo de carne, o dinheiro poderá mudar de valor — porém para a
pessoa que o conso­me, o quilo de carne realmente não poderá mu­dar de valor no decorrer
do tempo. Importante é observarmos que o quilo de carne só pode ser comido dentro de um
certo prazo de tempo em que conservar seu valor, já que depois estará deteriorado. É parte
importante da economia o fato de todas as coisas que são objeto de consumo se deteriorarem.
Quando usamos o dinheiro como equivalente numa mera troca, certamente ele
se constitui num concorrente desigual para os objetos deterioráveis, um concorrente
genuinamente desigual, pois sob condições ordinárias o dinheiro parece não ser dete-
riorável — digo-o expressamente: parece não ser deteriorável. Com isso os Senhores
percebem que, ao se permitir que na economia atuem condições diversas das que
atuam na realidade, introduz-se nessa economia um elemento doentio. Por um lado
adotam-se providências fazendo com que o dinheiro mantenha seu valor nominal sob
7.
quaisquer con­dições, independentemente da posição social que normalmente ocupe: o
dinheiro possui seu valor nominal, e aparente­mente o preserva. Na realidade, porém,
isso não ocorre. To­das as outras coisas são honestas. A carne co­meça a recender mal
no momento em que, conforme suas propriedades, pode fazê-lo; o dinheiro não faz isso,
seja qual for a qualidade sob a qual apareça. O dinheiro não o faz manifestamente;
não obs­tante, temos de dizer o seguinte: se, por um lado, observamos que um artigo
qualquer, por alguma circunstância, ficou mais caro ou mais barato depois de algum
106 Rudolf Steiner

tempo, sem pre­juízo do fato de o artigo em si preservar o mesmo valor para a vida hu­
mana — ele tem de preservá-lo pela constelação de fatos que exi­gem ser ele consumido
à hora certa e substituído por outro igual —, e se paralelamente observamos que o
dinheiro não pre­serva seu valor, o dinheiro como mero meio de permuta constitui um
concorrente desigual pela razão de não eviden­ciar de modo algum que, em verdade,
também está sujeito a alterações. Se hoje tenho de pagar uma certa soma de dinheiro
por um quilo de carne e depois de quinze dias ti­ver de pagar uma soma diferente pelo
mesmo quilo de carne, não será culpa da carne o fato de na próxima vez eu talvez ter
de desembolsar mais dinheiro: será culpa do dinheiro. Isto só pode ser atribuído ao
dinheiro. E se o dinheiro continua a ostentar o mesmo número, na verdade começa a
mentir, porque diminuiu em valor. Se numa troca eu tenho de dar mais por um quilo
de carne, então é o dinheiro que está valendo menos. Isto é evidente. Portanto, pela
circulação do dinheiro eu introduzo no processo algo que, do ponto de vista econômico,
não existe. Do ponto de vista econômico a coisa é completamente diferente, ou seja:
o processo econômico faz com que o dinheiro sofra alterações.
É preciso descobrirmos as ocasiões em que o dinheiro so­fre alterações. Além do
corriqueiro dinheiro de compra, temos o dinheiro de empréstimo; dinheiro de emprés-
timo é algo que alguém recebe para iniciar um empreendimento qualquer. Para ele isso
não é dinheiro de compra; torna-se dinheiro de capital. Tal dinheiro empresarial ou de
emprés­timo possui um valor e propriedades essencialmente diferen­tes. No fundo, tal
dinheiro de empréstimo é algo totalmente diverso do dinheiro de compra. O processo de
converter dinheiro de compra em dinheiro de empréstimo resume-se a algo não muito
8. diverso, digamos, de se levar ouro ou prata ou papel para outro âmbito da vida. Valor
é algo que o objeto assume por condições completamente diversas; pois agora que o
dinheiro de empréstimo entra em circulação, trata-se de percebermos que o espírito do
ser humano, o pensar humano intervém, e que por essa intervenção do pensar humano
o dinheiro de emprés­timo adquire seu verdadeiro valor. Seria muito mais impor­tante
anotar, na cédula emprestada à pessoa empreendedora, no momento em que esta come-
çasse a usá-la, se essa pessoa é um gênio em assuntos econômicos ou um idiota; porque
é disto que depende o valor daquele dinheiro de empréstimo na situação econômica.
Passemos agora do dinheiro de empréstimo ao que eu lhes indiquei como uma
terceira espécie de dinheiro e que, hoje em dia, geralmente não é levado em conta mas
desempenha o maior papel imaginável no processo econômico, isto é, o dinheiro de
doação (dinheiro de doação abrange, de fato, tudo o que é gasto em educação e ensino,
desempenhando um enorme papel na vida econômica; dinheiro de doação também
abrange tudo o que é investido em fundações e tudo o que viabiliza que o capital não
9. fique represado em propriedade fundiária mediante a capitalização de terras, por
cujo meio se arruina a economia). Considerando o dinheiro de doação, devemos dizer
o seguinte: tal dinheiro de doação simplesmente perde o valor para uma pessoa que,
para sua subsistência, dependa de dinheiro de compra. Pois o dinheiro de doação é o
oposto do dinheiro de compra — o que se deduz do simples fato de alguém que recebe
uma doação poder comprar algo, enquanto quem não a recebe não pode utilizar esse
dinheiro como meio de compra.
Temos, assim, três espécies de dinheiro qualitativamente bem diferentes entre si,
10. ou seja, o dinheiro de compra, o dinheiro de empréstimo e o dinheiro de doação. Con-
tudo, as inter-relações entre essas três espécies de dinheiro só podem ser apreciadas
12. Dinheiro 107

quando contemplamos relações econômi­cas pertencentes, digamos, ao setor privado, tal


como fize­mos ontem hipoteticamente com relação a um âmbito relativamente fe­chado.
Descobriremos então que, depois de certo tempo, tudo o que é dinheiro de empréstimo
se converte em dinheiro de doação. No âmbito fechado da economia mundial, tampouco
pode ser de outra maneira. Dinheiro de empréstimo tem de passar gradativamente a
dinheiro de doação; não deve es­tancar de volta no dinheiro de compra, perturbando-o.
Num círculo econômico fechado, é forçoso ocorrer que o dinheiro de empréstimo passe
a dinheiro de doação. E o que faz o dinheiro de doação no âmbito onde atua ? Ele se
desvaloriza. Podemos, assim, dizer o seguinte: pelo fato de termos o campo do dinheiro
de compra, o dinheiro passa a representar um certo valor; no campo da doação, o dinheiro
tem um valor negativo para tudo o que se refira ao campo da compra, fazendo desaparecer
esse valor de compra. E a transição entre ambos é realizada pelo dinheiro de empréstimo,
que desaparece gradativamente no dinheiro de doação.
Talvez os Senhores digam que isso é difícil de compreen­der. Não há dúvida de
que o seja; é uma pena não dispormos de tempo para trabalhar meses a fio na citação
de casos específicos, pelos quais poderíamos observar que a va­lorização e desvalori-
zação do dinheiro se dá do modo como descrevi. Contudo, a tarefa deverá justamente
consistir no fato de aquilo que pôde ser exposto neste curso sucinto vir a ser empre­
11.
gado como base para a continuação dos estudos de Economia. No espaço de quinze
dias não pode ser dado mais do que sugestões e estímulos; não obstante, os Senhores
descobrirão que as afirmações econômicas apresentadas aqui se transformarão, pe-
las pesquisas específicas, em verdades econômicas passíveis de serem utilizadas na
Ciência, e também na prática.
Ora, na realidade acontece que no processo econômico o dinheiro simplesmente
se metamorfoseia, adquire diferentes qualidades, quer como dinheiro de empréstimo,
quer como dinheiro de doação. Tal circunstância é disfarçada por nós ao chamarmos o
dinheiro simplesmente de dinheiro, deixando-nos guiar, quanto à unidade monetária
e correlatos, pelo número inscrito nele. A realidade vinga-se, mostrando a vingança na
oscilação dos preços, que aparecem por si no processo econômico sem que pos­samos
segui-los com nosso entendimento, embora devês­semos entendê-los. Diria eu que não se
deveria simplesmente deixar o dinheiro afluir para a circulação, concedendo-lhe plena
liberdade para fazer o que quiser; pois com isso introduzimos algo muito estranho na
12. economia. Acaso não ocorre que, precisando de animais para alguma operação de tra-
balho, nós os domamos e então os empregamos como animais do­mesticados? Pensem
no tempo necessário para se preparar um cavalo até que este possa servir de montaria.
Imaginem o que seria se não domesticássemos os animais, empregando-os em estado
selvagem por não querermos gastar algum esforço na domesticação. É em tal estado
selvagem que deixa­mos o dinheiro circular no processo econômico. Se ele se compraz
com isso, permitimos que se revista daquele valor que tem como dinheiro de emprés-
timo ou como dinheiro de doação; e então nos postamos com grande reserva frente a
uma situação em que uma pessoa qualquer — por exemplo, um industrial — arranja
dinheiro corretamente* transformado de dinheiro de empréstimo em dinheiro de doação

* A presente tradução observa aqui uma correção do texto original, ao que consta feita origi-
nalmente por Schweppenhäuser, substituindo unrichtig (incorretamente) por nun richtig (agora cor-
retamente) e evidenciando a consistência da substituição com o exposto anteriormente e a seguir, com
relação à necessidade de o dinheiro de empréstimo poder transformar-se em dinheiro de doação. (N.T.)
108 Rudolf Steiner

e paga com isso seus operários — reserva por esta situação parecer diferente do que se
ele os pa­gasse com mero dinheiro de compra. Quanto mais uma pessoa precisar pagar
seus operários com mero dinheiro de com­pra, tanto menos lhes poderá dar, isto é, tanto
mais barato eles terão de entregar seus produtos; por outro lado, quanto mais a pessoa
conseguir pagá-los com dinheiro já transformado, ou seja, um dinheiro que já passou
para a esfera do dinheiro de empréstimo ou de doação, tanto mais salário lhes poderá
dar, e tanto mais caros poderão ser os produtos que eles trouxerem à praça. Trata-se,
portanto, de apreendermos o assunto com a razão.
Uma vez tendo-se em vista o estado das coisas, a função do dinheiro tem de ser
corrigida constante­mente. Suponhamos o seguinte: uma economia regional que confine
com outra poderá facilmente enfrentar dificuldades relativa­mente ao preço de um bem
qualquer de que precise, caso deixe funcionar o dinheiro dessa forma selvagem e sem
conduzi-lo com a razão. Enquanto a economia regional se encontrar entre ou­tras e não se
13. adotarem represálias contra ela, po­derá simplesmente importar o bem, incrementando-se
a im­portação. É assim que as coisas se corrigem. Na economia mundial não há correções,
pois não se pode importar da Lua. Se pu­déssemos importar da Lua ou de Vênus, ou
exportar para lá, a economia terrestre não seria mais do que uma economia regional;
e a grande questão é justamente sabermos qual será o curso da Teoria Econômica pelo
fato de a Terra estar-se tornando um campo econômico fechado.
Suponhamos que os Senhores resolvam deixar o dinheiro envelhecer. Os Senhores
têm uma moeda qualquer, não importa de que material ou qual seja o ano de cunhagem
— digamos, de 1910 —, e uma outra moeda do ano de 1915; su­ponhamos que a moeda
de 1915 — a qual, portanto, surgiu na­quela época como dinheiro no processo econômico
— se tornasse, pelo tratamento racional, uma coisa idêntica a outros produ­tos de troca:
tal dinheiro perderia o valor depois de algum tempo. Os números que estou apresen-
tando são irrelevantes, só servindo para elucidar o assunto; o que em realidade tiver de
14. evidenciar-se será objeto de cálculos infindos porém alcançáveis, como ainda haveremos
de verificar. Suponhamos então que em 1940 esse dinheiro tivesse perdido seu valor para
o processo econômico. Portanto, aquela moeda só teria um certo valor entre 1915 e 1940.
Então teria um valor que, como logo veremos, é determinável. Se após 25 anos o dinheiro
perde seu valor no processo econômico, a moeda com a data do ano 1910 perderia seu
valor no ano de 1935. Assim, eu confiro ao dinheiro em meu bolso uma certa qualidade,
uma espécie de idade. Esta moeda de 1910 é mais velha e morrerá antes da outra moeda,
­de 1915.61
Os Senhores poderão dizer que isso é um programa. Não, absolutamente não é um
programa; o que acabo de expor-lhes é a realidade. É assim que o processo econômico o
quer. Ele próprio faz o dinheiro en­velhecer. E o fato de o dinheiro aparentemente não
15.
envelhecer, podendo-se ainda em 1940 comprar algo com a moeda de 1910, é apenas
uma máscara. É que na realidade não se estará mais comprando com esse dinheiro,
mas apenas com um valor mone­tário imaginado.
Se o dinheiro envelhecer em meu bolso pelo fato de o ano de seu lançamento
passar a significar algo — chamo de envelhecer o processo de se aproximar cada vez
mais da morte —, é esse envelheci­mento que imprime ao dinheiro um valor, da mesma
16.
forma como o ser humano recebe um valor por seu envelhecimento. A todo ser vivo se
imprime um valor; e repentinamente o dinheiro ganha vida, imprimindo-se a ele um
valor. Por quê? Imaginem o seguinte: dinheiro jovem, quer dizer, dinheiro cunhado este
12. Dinheiro 109

ano, dinheiro de 1922, sem dúvida será um bom dinheiro de compra; imaginem porém
um empresário que se pergunte de que modo pode suprir sua empresa de dinheiro.
A em­presa cujo tempo de vida tiver de ser calculado em, diga­mos, vinte anos deverá
ser suprida de dinheiro novo ou velho? Se receber dinheiro velho, este eventualmente
poderá ser desvalorizado em cinco ou mesmo dois anos; portanto, não pode arriscar-se
a empregar dinheiro velho: a empresa que tem de calcular a longo prazo precisa de
dinheiro novo. Assim o dinheiro novo recebe, sob a influência de empreen­dimentos a
longo prazo, um valor econômico particular, um valor econômico muito maior do que o
dinheiro velho. Tal valor econômico existe naquele momento, é o valor de momento do
dinheiro. Suponhamos, porém, que o empreendimento a ser rea­lizado deva ser calculado
com uma previsão de vida de apenas três anos. Nesse caso, o empresário seria um mau
homem de negócios se empregasse dinheiro bem novo; pois o dinheiro novo é, por isso,
mais valioso e caro. Por conseguinte, ele arranjará dinheiro mais barato se precisar
dele por tempo mais reduzido. Assim os Senhores percebem que a idade do dinheiro
começa a desempenhar, para quem tem de usar o espírito ao lidar com o dinheiro, um
papel que se lhe torna consciente.
Por favor, reflitam sobre o seguinte: isto não é algo que também não possa existir de
outro modo. É que normalmente existe em estado selvagem, e então as coisas provocam
estorvos mútuos, cau­sando condições econômicas doentias. Em contraposição, se come-
çarmos a domesticar o dinheiro, acrescentando-lhe a con­dição de idade e fazendo com
que, como dinheiro de em­préstimo, o dinheiro novo tenha mais valor do que o dinheiro
17. velho, estaremos imprimindo ao dinheiro aquele valor real que lhe compete para sua
posição no processo econômico. Em es­sência, tal valor só existe enquanto o dinheiro é
dinheiro de empréstimo; pois mesmo quando se torna dinheiro de empréstimo o dinheiro
manterá seu valor anterior como dinheiro de compra. Os Senhores. como empresários,
não precisarão questionar tanto se para suas necessidades de consumo precisarão ainda
de outro dinheiro, ou coisas assim; pois isto se corrige por si.
Imaginem, agora, que se realizem aquelas doações que pos­suem um significado
bem real no processo econômico, aquelas doações das quais já falei em diversos contextos.
Doação é tudo o que se aplica, por exemplo, ao sistema de educa­ção, mormente ao se tratar
de uma vida espiritual livre. Ocorre que já hoje isso existe, porém não é percebido. Se os
Senhores doam diretamente, sua razão está envolvida. Pre­sentemente também se doa,
só que as doações estão disfarça­das em impostos e outras contribuições e desaparecem
18. na né­voa geral da economia, não se percebendo o que acontece. Só que assim as coisas
ocorrem de forma selvagem; caso contrário, adviria o entendimento. Reflitam uma vez
sobre qual dinheiro aplicariam em doações, uma vez que ra­ciocinassem realmente em
sentido econômico. Tratando-se de doações, os Senhores empregariam dinheiro velho,
que perderia seu valor o mais brevemente possível após a doação, permi­tindo apenas
ao receptor comprar ainda alguma coisa.
É importante também que haja rejuvenescimento no processo econômico, ou
seja, que o dinheiro tenha prole. Ser-lhes-á fácil convencer-se de que o importan-
te, nesse caso, é o fato de a coisa não poder ser tratada de modo arbitrário ou ser
19. abandonada ao caos econômico geral que o Estado econômico espalha por tudo — o
Estado que conduz tudo à confusão de valores por misturar dinheiro de emprésti-
mo, dinheiro de compra, etc., enquanto na realidade estes tendem a especificar-se
e separar-se —; os Senhores compreenderão que, caso não se deixe reinar o alvitre,
110 Rudolf Steiner

introduzindo-se, isso sim, a inteligência, bastará intercalar as instituições associativas


apropriadas entre dinheiro de compra, dinheiro de empréstimo, dinheiro de doação
e a renovação do dinheiro. É só não deixar a pes­soa que tem dinheiro para emprestar
distribuí-lo de modo in­sensato, mas colocá-la em ligação com sua associação. É esta
que lhe sugerirá o modo mais sensato de conceder empréstimos, de fazer doações.
Em caso de doação — tendo todo o mundo a liberdade pessoal de fazer do­ações —,
o dinheiro passa, por ter um valor anual, pelo mesmo processo. Trata-se apenas
de fazer suceder inteligentemente o que já ocorre de forma disfarçada, ou seja, o
fato de o dinheiro que chegou ao final de seus préstimos simplesmente ser juntado.
Então no início de um novo processo de compra-e-venda o dinheiro readquire seu
valor original, ou seja, recebe uma nova data; porém agora passa novamente para
quem tem a trabalhar um produto da na­tureza — caso em que se trata apenas de
compra-e-venda; eis a mediação por via associativa.
Os três tipos de dinheiro têm de ser tratados diferente­mente, isto é, da seguinte
maneira: a partir do dinheiro de doação, que será o dinheiro mais velho, o dinheiro tem
de ser entregue a uma associação, para que o dinheiro sem valor entre novamente no
processo no ponto em que o produto da natureza começa a unir-se ao trabalho — um
passo que não poderá oferecer dificuldade econômica alguma. Ora, em que consistiria
a diferença entre esse procedimento e o que temos hoje em dia? Consiste em que, nesta
região econômica fechada — que não é uma economia regional con­finando com outra, de
modo que entre ambas se pudesse realizar exporta­ção e importação62 — delineiam-se três
campos relativos ao dinheiro: o campo do dinheiro de empréstimo, o campo do dinheiro
de compra e o campo do dinheiro de doação. Trata-se de uma correção que, em outra
ocasião, seria executada com a ajuda da vizinhança mediante exportação e importação,
mas agora é feita pelos três campos. Em caso de o dinheiro de compra causar algum
20. distúrbio, uma quantidade de dinheiro — de empréstimo ou de doação — fluiria para
dentro ou para fora do campo do dinheiro de compra, da mesma forma como, de outro
modo, ocorreria entre países. Contudo, isso se autorregula com base no fato de que,
se aparecerem irregularidades — e elas têm de sur­gir e devem ser corrigidas, porque
a vida não pode existir sem haver irregularidades, tal como é uma irregularidade o
fato de devermos digerir depois de termos enchido nosso estômago —, terão de surgir
circunstâncias em que o dinheiro de compra se torne caro ou barato demais para certas
mercadorias, e então o dinheiro barato fluirá para dentro do outro campo, tornando-se
novo dinheiro de compra, mais caro. O que de outro modo se regula apenas pela ex-
portação e importação é, dentro da região, autorregulável. Basta uma razão humana
verdadeira; e esta é introduzida no processo pelas associações, que com base em suas
experiências podem observar e, a partir de suas observações, transformar as coisas
adequadas em reali­dade.
Podemos, pois, dizer que o que hoje em dia realmente importa é, antes de tudo,
a correta compreensão da natureza do dinheiro. Geralmente não nos damos conta des-
sa natureza do dinheiro, pois este se nos apresenta sempre como algo do qual não se
nota o que em realidade é; pois no organismo social não existe dinheiro como tal, mas
21.
apenas aquelas três qualidades de dinheiro; e de mais a mais, cada espécie só adota
sua qualidade específica no justo momento em que entra no processo econômico ou em
que passa de um tipo de processo econômico para outro. Além disso, ele se transforma
constantemente dentro do processo. O que importa é primeiro chegar a conhecer bem
12. Dinheiro 111

o dinheiro antes de se poder dizer algo sobre o papel que este desempenha ao se tornar
a expressão do preço de algo distinto. Só poderemos ter íntima compreensão do proces-
so econômico quando não nos detivermos na superfície para observar apenas como as
coisas parecem aí. Vista superficial­mente, é claro que uma moeda de dez francos é um
moeda de dez francos, não importando se foi cunhada em 1910, 1915 ou 1920; vista de
fora, ela é sempre a mesma moeda de dez francos, e na transação corriqueira de compra
é isso o que vale. Só me dou conta disso quando tenho menos; aí percebo haver uma
diferença, ou também quando as coisas ficaram mais caras. Porém nesse processo de
possuir menos ou do encarecimento das coisas63 se oculta o que lhes mostrei como sendo
o dinheiro mais velho ou mais novo. Ao querer discernir o processo econômico, não de-
vemos falar de dinheiro mais barato ou mais caro, ou de mercadorias caras ou baratas;
antes de mais nada, o dinheiro terá de ser conhecido em sua natureza, pois o dinheiro é
aquilo com que hoje dominamos o processo econô­mico (amanhã ainda teremos de falar
do fato de os sucedâneos do dinheiro terem de ser tratados da mesma maneira). Isso é
o mais importante. Não devemos fugir de penetrar abaixo da superfície das coisas, nas
profundezas, para verificar o que em ver­dade está na origem disso. E devemos abdicar
de falar, na Economia, de dinheiro barato ou caro em relação às mercado­rias; pelo con-
trário, teremos de convencer-nos de que, no pro­cesso vital da economia, deve-se falar
de dinheiro velho e dinheiro novo.
13 A economia do espírito
5 de agosto de 1922

Para se entender o significado de questões como as que expus ontem, será preciso
estudarmos hoje alguns detalhes dos processos econômicos que também interferem no
surgimento de valores econômicos e que podem demonstrar como é difícil aquilatarmos,
1. em sentido econômico, algo que sucede a partir do espírito humano. Quero dar um
exemplo, porém sem inventá-lo completamente, e sim apenas expondo-o de maneira a
fazer com que a realidade subjacente em na­da contribua para o valor que tal exemplo
possa ter para nossas observações.
Vejam, pode acontecer o seguinte: ­— Numa determinada época vive um exímio poeta
que, com a passagem do tempo, já em vida e ain­da mais após sua morte, é reconhecido
como um grande poeta. Uma pessoa que se interesse particularmente por esse poeta,
mesmo apenas como admiradora, poderá então querer dizer a si mesma: “Num futuro
próximo, o alarido por causa desse poeta aumentará considera­velmente. Tenho certeza
— ou pelo menos me arrisco nessa suposição — de que dentro de algum tempo, digamos
em vinte anos, a atenção em torno dele será bem maior do que hoje. Posso adiantar
até que, de acordo com a mentalidade de nossa época, em vinte anos será construído,
para esse poeta, um arquivo em que serão reunidos todos os seus manuscritos.” Várias
experiências que ele teve e que lhe passam pela cabeça sagaz o con­venceram de que
isso acontecerá. Então ele resolve começar a comprar manuscritos desse poeta, os quais
2.
ainda são extremamente baratos. Um dia nosso homem está sentado junto a ou­tras
pessoas. Uma delas diz: “Eu não me envolvo com especulações em valores; contento-me
com os simples juros usuais de minhas economias.” Uma outra pessoa diz: “Eu não
me contento com os simples juros; compro papéis desta ou daquela mina.” Esta já tem
uma mente especulativa: compra ações. O ter­ceiro, o nosso homem, diz: “Eu compro os
melhores papéis que atualmente existem; compro papéis bem baratos, mas não lhes
revelo quais são os papéis que compro” — o não revelar é um detalhe impor­tante nessa
história —; “eu compro papéis que, no futuro próximo, experimentarão a maior alta.”
E ele compra muitos manuscritos daquele poeta. Depois de vinte anos vende, por um
preço múltiplo do que gastou, os papéis ao arquivo ou a intermediários na venda para
o arquivo. Desse modo ele foi a cabeça mais especulativa dos três.
Este é um caso inteiramente real; não quero mencionar aqui os verdadeiros de-
talhes, mas aconteceu. Ora, tal caso provocou uma considerável mudança também em
valores econômicos. Trata-se agora de sabermos quais foram os fato­res que contribuíram
para tal mudança. A priori foi o aproveitamento mental da circunstância de o poeta
3. estar numa valorização ascendente, manifesta até no fato de ser construído um arquivo
para ele. Acresce ainda o detalhe — pelo menos com respeito à mudança de valores, por
causa do acúmulo de tudo numa única mão — de ele haver ocultado a história, não ter
chamado a atenção dos outros, e de a eles próprios não haver ocorrido o fato. E assim
ele pôde embolsar um enorme ganho.
114 Rudolf Steiner

Menciono esse caso só por querer chamar sua atenção sobre a complexidade da
questão a respeito de quais seriam os fatores interativos na formação de valores, e quão
difícil é apreender tais fatores. A pergunta que se nos impõe é a seguinte: será com-
pletamente impossível apreendermos de algum modo tais fatores? Talvez os Senhores
4. cheguem à con­clusão de que, para uma grande parte da vida, certamente é possível às
pessoas de bom-senso, no âmbito de asso­ciações, avaliar os fatores a ponto de chegar
a uma certa expressão numérica. Contudo restará ainda muita coisa, decisiva na de-
terminação de valores, que não po­derá ser compreendida trivialmente pelo intelecto
saudável se não procurarmos outros meios auxiliares.
Vimos que a natureza tem de ser transformada pelo tra­balho humano, isto é, tem
de ligar-se ao trabalho humano comum, se for para receber um valor econômico. Numa
organi­zação econômica baseada em divisão de trabalho, o produto da natureza não pos-
sui inicialmente um valor propriamente dito. Se começarmos a ima­ginar a situação do
surgimento de valores por uma interação entre, digamos, substancialidade natural e
trabalho, teremos, mesmo que talvez inicialmente numa espécie de fórmula algébrica,
5. a possibilidade de aproximar-nos da funcionalidade da forma­ção de valores. Será fácil
compreendermos que tal formação de valores não poderá simplesmente suceder pela
junção do trabalho com o elemento natural, ou seja, pela transformação do elemento
natural por meio do trabalho; deverá haver uma função mais complexa do que aquela
representada por uma simples adição. Mas em todo caso poderemos ater-nos ao que
já expu­semos, isto é, ao fato de vermos surgir o valor econômico quando o produto da
natureza é primeiro apreendido pelo trabalho humano.
O grau fundamental da apreensão do produto da natureza pelo trabalho humano
é aquele em que há um trabalho direto na terra. Isso é o que nos leva a considerar o
cultivo da terra como ponto inicial de toda atividade econômica, já que esse cul­tivo da
terra constitui a condição prévia para todo o resto da economia. Estudemos agora o ou-
tro lado da atividade econômica. (Não há mais necessidade de eu lhes explanar — pois
certamente poderá ser deduzido das conferências anteriores — que também intervêm, no
movimento econômico de valores, situações em que alguém consegue um deslocamento
6. de valores.) Como deveremos prosseguir para descobrir os pontos de comparação entre
um lado e outro? Se, digamos, admitís­semos ‘natureza vezes trabalho’ como o valor
que se aproxima de um lado, ou uma função qualquer, como mencionei logo de início,
teríamos de chegar a descobrir nisso algo passível de uma comparação. Indubitavelmente
não será viável compararmos o espírito com a natureza; mal conseguiríamos encontrar
nisso algum ponto de comparação, e particularmente não por meio de considerações
econômicas, pelo simples motivo de aí penetrar algo extremamente subjetivo.
Imaginem uma economia de aldeia que seja autossuficiente. Certamente poderíamos
deparar-nos com um caso desses, ao menos em parte. Ela poderá subsistir com o que
é produzido — aceitemos a hipótese de que ali não exista nem centro comercial nem
mercado — pelos camponeses, pelos que trabalham a terra, por alguns profissionais
que produzem a roupa para o povo vestir e assim por diante, por alguns outros pro­
7.
fissionais, mas, de um modo geral, não por gente especialmente proletária — estes
últimos ainda não existiriam; em todo caso, não precisamos preocupar-nos com eles
neste contexto, pois o que lhes diz respeito ocupará nossa atenção no curso ulterior
de nossas considerações. Nossa comuni­dade de aldeia terá também um professor, um
sacerdote, ou até alguns professores e sacerdotes; se a comunidade for pura, estas
13. A economia do espírito 115

pessoas tirarão seu sustento daquilo que os ou­tros lhes cederem do seu. E o quanto
de vida espiritual livre se desenvolver se desenrolará essencialmente entre os profes-
sores e sacerdotes — talvez ainda se inclua o pre­feito; é entre essas pessoas que se
passará a vida espiri­tual livre. E teremos de formular a seguinte pergunta: como é
que chegaremos a uma determinação de valores em tal circulação econômica sim­ples?
À parte do que mencionamos, não haverá aí muita vida espiritual livre. É difícil
imaginarmos que um professor ou um sa­cerdote se torne autor de romances; pois se a
comunidade de aldeia for isolada, ele não terá compradores. Pode­ríamos contar com a
possibilidade de o autor de romances gan­har algum dinheiro se fosse ao mesmo tempo
capaz de im­buir os camponeses, alfaiates e sapateiros de uma curio­sidade insólita por
seus romances. Nesse caso, estaria em condições de realmente abrir uma pequena in-
8.
dústria, não é mesmo? Sem dúvida isso seria muito dispendioso. Mas em todo caso não
podemos imaginar que isso seja possível, sem mais nem menos, numa tal economia de
aldeia. Percebemos, pois, que a vida espiritual livre pressupõe certas condições prévias.
Mas talvez consigamos imaginar como, pelo fato de haver sacerdotes, professores e um
prefeito, se dá a avaliação do que produzem esses trabalhadores espiri­tuais — pois, em
sentido econômico, eles são trabalhadores espirituais.
Qual é a condição prévia para esses trabalhadores espirituais poderem viver na
aldeia? A condição prévia é que os aldeões mandem seus filhos à escola e tenham uma
necessidade religiosa. Necessidades espirituais são a premissa fundamental. Sem esta,
nem sequer haveria trabalhadores es­pirituais. E agora devemos perguntar: como é que
9.
esses trabalhadores espirituais poderão avaliar economicamente seus produtos — por
exemplo, um sermão na igreja ou uma aula na escola — pelo fato de, no contexto econô-
mico, também estes terem de ser considerados economicamente? Como se avaliará isso
economicamente, no âmbito de toda a circulação? Eis a questão fundamental.
A forma de avaliar isso nos ocorrerá somente ao formarmos uma ideia viva do se-
guinte: — O que é que as outras pessoas têm de fazer? Elas têm de executar um trabalho
físico, com o qual produzem valores econômicos. Se não houvesse uma necessidade de
sermões e aulas, o pároco e o professor também deveriam executar trabalhos físicos;
nesse caso, todos trabalhariam fisicamente, e a vida espiritual não existiria. Então não
haveria necessidade de avaliação dos produtos espirituais. Chegaremos a tal avaliação
se levarmos em conta a necessidade de principalmente os sacerdotes e mestres-escolas
serem poupados do trabalho físico; pois se estes quiserem executar seu — em todo caso,
já ansiado — trabalho, o trabalho físico terá de ser-lhes subtraí­do. Com isso, algo que
deve ser compreendido ao menos em sentido geral poderá ser introduzido em nossa linha
10. de pensamento. Suponhamos que haja necessidade de meios-sermões e meias-aulas —
ou seja, um meio-sermão de um pároco e só a metade das aulas de um professor; o que
é que deverá ocorrer nesse caso? Já que é impossível empregar somente meio-pároco e
meio-mestre-escola, tanto o pároco quanto o mestre-escola terão de empregar uma parte
de seu tempo no trabalho físico. E a avaliação a ser feita para esses dois dependerá
então da quantidade de trabalho físico que conseguirem economizar. Isso representa
o parâmetro para o seu trabalho. Uma pessoa dedica um trabalho físico e uma outra o
economiza, e sua produção intelectual é avaliada pela quantidade de trabalho físico eco-
nomizada por essa sua produção intelectual. Com isso os Senhores veem demonstrado
nos dois campos da vida econômica, bem como ponderado em sentido econômico, que para
nós um sermão deve possuir um valor econômico, bem como uma indicação de como esse
116 Rudolf Steiner

sermão adquire esse valor. Ele o adquire pelo fato de se economizar trabalho, enquanto
de outro lado é preciso empregá-lo.64
Tal situação perpassa toda a vida espiritual. Qual é a significação, em sentido
econômico, de uma pessoa pintar um quadro em que trabalha, digamos, dez anos?
Significa que para ela o quadro adquire um valor pelo fato de per­mitir-lhe pintar um
quadro novamente por dez anos. Porém ela não pode fazê-lo senão deixando de execu-
tar trabalho físico por dez anos. O valor do quadro deverá ser igual ao que resultar do
11.
trabalho físico que foi empregado em outros produtos. E mesmo com referência a casos
complexos como o que expus hoje no início da aula, o resultado seria sempre o mesmo.
Em se tratando de querermos achar o conceito de valor para o desempenho intelectual,
sempre chegaremos àquele outro conceito, o do trabalho economizado — o do trabalho
que se poupa.
Foi esse o grande erro dos marxistas: o de considera­rem todo o assunto apenas
do lado corpóreo, falando sempre da necessidade de se ver no capital trabalho cristali-
zado, ou seja, um produto ao qual se ligou trabalho. Quando alguém pinta um quadro,
o espírito que ele deixa afluir para o quadro durante dez anos ficará certamente ligado
ao quadro; calcular o valor disso, porém, poderão, quando muito, os que acreditam que
o espírito seja trabalho humano interior, transformado. É tolice: não é possível equi-
12.
parar, sem mais nem menos, o espiritual ao material. Contudo, não se trata aqui de
ver qualquer trabalho acumulado num desempenho intelectual que realizo. O trabalho
acumulado não pode ser apre­endido economicamente. Enquanto trabalho físico, poderá
ser bastante ínfimo. E o que interessa aí como trabalho físico fica abrangido pelo outro
conceito de trabalho físico. O que confere valor ao desempenho é a quantidade de tra-
balho que posso economizar com ele.
Desse modo, de um lado do processo econômico temos a força formadora de valor,
por se arranjar trabalho e aplicá-lo ao produto — o produto atrai o trabalho. Por ou­tro
13.
lado, o produto irradia o trabalho, provoca o trabalho; originalmente existe o valor, e
este provoca o trabalho.
Possuindo agora algo que pode ser comparado, ou seja, o trabalho no primeiro
caso e o trabalho no outro caso, esta­mos em condições de realmente colocar as coisas
em inter-relação. Se podemos dizer que o valor é igual a ‘natureza vezes trabalho’, V =
N x T, no outro caso devemos dizer ‘espírito menos trabalho’, V = E – T. Trata-se de coi-
14. sas dia­metralmente opostas. O trabalho físico só faz sentido quando a pessoa que quer
introduzi-lo na economia o aplica pessoal­mente. No campo espiritual, o que se relaciona
com o desem­penho é um trabalho que um realiza para o outro — sendo, portanto, efe-
tivamente aquilo que deve ser introduzido no processo econômico em sentido ne­gativo.
É muito curioso que, acompanhando a história da Teoria Econômica, se descubra
em toda parte as coisas que, embora corretas, no fundo o são apenas num campo par-
cial. Existem certos professores de Economia que efetivamente são da opinião de que o
trabalho confere valor às coisas — escolas de Smith, de Marx, etc. Mas temos também
outras escolas com a outra definição, que também é correta para um certo campo, ou
15.
seja, a definição de que algo se torna capital, ponto de partida para um valor, pelo fato
de economizar trabalho. Ambas são corretas. Ocorre que uma é válida para tudo o que
se relaciona de algum modo com a natureza, com as terras; a outra é válida para o que
se re­laciona de algum modo com o espírito. E entre esses dois ex­tremos existe um ter-
ceiro fator. Podemos dizer o seguinte: de certo modo, nenhum dos dois extremos existe
13. A economia do espírito 117

em estado puro, mas apenas aproximadamente; pois em última análise já há trabalho


envolvido quando, de dois colhedores de amoras — ora, sem dúvida a atividade de
colher amoras só adquire um valor econômico pelo fato de as pessoas que colhem em-
pregarem trabalho —, um é tolo a ponto de escolher os lugares onde há poucas amoras;
neste caso suas amoras possuirão um valor menor, pois ele receberia o mesmo preço
que o outro somente pela mesma quantidade, sendo que o outro terá produzido mais
por ter trabalhado num lugar onde há mais amoras. Vemos, pois, que em lugar algum
a coisa existe em estado puro. Já o ato de colher amoras envolve trabalho espiritual —
embora não se devesse chamá-lo assim —, pois o trabalho combinatório forma valores
da mesma forma como no caso do colecionador de manuscritos, ou pelo menos forma
valores por deslocamento.
Por isso podemos dizer que, indubitavelmente, a situação é a seguinte: temos o
trabalho num sentido e temo-lo em outro sentido também. Com isto é que ganhamos a
possibilidade prática de confrontar os valores econômicos. É o próprio processo econômico
16. que produz tal confrontação. Somente de uma certa maneira é que se pode apreender tal
pro­cesso pela razão. Como tudo o que estou dizendo nestes dias, trata-se de elevarmos
à razão certos processos instintivos.
Como eu já disse, nada disso existe em estado puro. Por outro lado, a situação é tal
que, por mais que o pintor combine e, por meio de sua atividade de combinação e talvez
por força clarividente — que de modo algum pode ser apreendida no campo econômico
—, queira criar algo que tenha rele­vância na economia, sempre terá de empregar um
pouco de trabalho. Sua genialidade eminente pode permitir-lhe ser um grande pre-
17. guiçoso; mesmo assim ele terá de pegar no pincel de vez em quando. De maneira que
também terá de empregar um pouco de trabalho, tal qual, por outro lado, a colheita de
amoras exige um pouco de capacidade combinatória. Não conse­guiremos apreender nem
quantitativa nem claramente as coisas que atuam na realidade senão captando-as no
pro­cesso de ocorrência. Por isso só conseguiremos retê-las em nossos conceitos se nos
conscientizarmos de que esses conceitos estão em constante movimento.
Contudo, entre esses dois polos encontra-se algo que nos permite perceber mais
nitidamente que, de fato, no processo econômico interagem diretamente o trabalho
físico e o tra­balho espiritual, existindo um constante vai-e-vem entre eles. Poderíamos
dizer que, tal como numa máquina qualquer um comando vai e volta, no processo
econômico o trabalho físico vai e o trabalho espiritual volta. Em seguida teremos de
levar em conta que, no meio desse contrabalanço pelos dois la­dos, existe um terceiro
elemento que age entre os dois polos no processo econômico, sendo, em outras palavras,
18. o se­guinte: é a circunstância de alguém ter de trabalhar fisicamente e sua ca­pacidade
combinatória intelectual lhe permitir economizar uma parte de seu trabalho físico, ou
seja, de ele executar as duas coisas ao mesmo tempo, o que, em verdade, quase sempre
corresponde à realidade. É que esta realidade uma vez se aproxima mais da primeira
fórmula V = N x T e outra vez mais da segunda V = E – T. O enunciado da segunda
fórmula, no fundo, somente se daria se entre os consumidores houvesse alguém que
apenas economizasse trabalho por esforço intelectual. Contudo, só poderia ser alguém
que houvesse nascido adulto.
Tudo isso lhes demonstra que há a possibilidade de discernir o processo econômico
19. também a partir desse ponto de vista da avaliação do elemento natural, por um lado, e
do elemento espiritual, por outro. Daí ganharmos a possibilidade de convencer-nos de
118 Rudolf Steiner

que forçosamente tem de resultar um estado intermediário onde algo positivo e algo
negativo interagem. Pode preponderar o positivo ou o negativo. Suponhamos que o
positivo prepondere. No caso da economia aldeã, certamente preponderará o positivo;
porque nela, com certeza, não haverá um suficiente interesse mais do que pelo trabalho
intelectual primitivíssimo. Quanto mais complexa a vida ficar, ou — como também po-
deríamos expressar de modo sentimental — quanto mais a cultura progredir, tanto mais
alto se avaliará a produção intelectual, conforme sabemos empiricamente. Isto significa
que, quanto mais se economizar trabalho, tanto mais o elemento negativo agirá contra o
elemento positivo. Os Senhores perceberão que, caracterizando o assunto dessa forma,
apreende-se um processo real. Não se trata aqui de o trabalho corporal ser empregado
por um lado e, talvez, aniquilado por outro — isso não representaria um processo real
em sentido econômico, sendo, quando muito, um processo natural —; trata-se, aqui,
do fato de todo trabalho corporal empregado se configurar inteiramente forma­dor de
valores, nada dele sendo aniquilado; aquilo que age contra, ou seja, a economia de tra-
balho, faz-se apenas em números, influenciando o valor do trabalho corporal apenas
numericamente. É justamente essa influência numérica que nos dá a possibilidade de
expressar de forma concreta o que se passa aí. Estão ativos no processo, por um lado, os
trabalhadores braçais e, por outro, as pessoas espirituais, e em sua produção trata-se
uma vez de trabalho efetivamente empregado e outra vez de trabalho que, em verdade,
representa economia de trabalho. É isso o que produz a determinação final de valor.
Podemos dizer o seguinte: pelo fato de o mesmo assunto ser considerado de dois
lados, alterando-se apenas a determinação de valor, surge a possibilidade de definirmos
as coisas e captá-las numericamente. Quando, como já dissemos, a cul­tura progredir,
aumentará cada vez mais a importância da atividade realizada a partir do espírito.
Isso, porém, significaria que a partir daí o trabalho braçal atua com menos força na
determinação do valor. O trabalho corpóreo está sendo empregado, e terá de sê-lo cada
vez mais, mesmo que haja progresso. Com o progresso da cultura, também o cultivo da
20.
terra terá de tornar-se cada vez mais frutífero. Mais tra­balho terá de ser efetivamente
empregado nisso, em sentido positivo. Na verdade, po­rém, a força de determinação de
valor é extraída do trabalho físico; no entanto não poderá sê-lo a não ser que a pessoa
que executa o trabalho físico sinta cada vez mais a necessidade de um desempenho
intelectual. Vemos aqui um fa­tor humano influenciando o curso da economia. Não é
possível evitar esse fator humano; o que vemos surgir aí é algo que se revela como uma
necessidade objetiva da vida cultural em pro­gresso.
É certo que não há muita vida cultural na al­deia enquanto só existe um pároco
e um mestre-escola; mas suponhamos que se trate de duas aldeias — e numa delas
o pároco e o professor sejam pessoas bastante acomodadas. Prova­velmente as coisas
sempre continuarão tal qual estão. Na outra aldeia, o pároco ou o professor, ou até
ambos, são pes­soas brilhantes. Serão capazes de estimular uma porção de interesses
culturais na próxima geração, e talvez possam conseguir radicar-se na aldeia, para o
21.
proveito dessa próxima geração — de alguma personalidade intelectualmente produtiva
que se configure como a terceira de uma cooperação mútua. Nessa relação o elemento
espiritual exercerá, sem dúvida, uma força promotora que, por sua vez, atuará no
âmbito da economia. Mas o que signi­fica todo esse processo? Significa, no fundo, nada
mais senão o fato de aquilo que, como trabalho, isto é, como força formadora de valores
no trabalho, possui um valor infinitamente grande no processo econômico, ser... não
13. A economia do espírito 119

poderíamos dizer desvalori­zado, mas cada vez mais reduzido numericamente pelo
que lhe vem ao encontro; percebemos, assim, que a colaboração entre tudo o que é
trabalho na terra65 e aquilo que acontece pelo lado espiritual contém algo mutuamente
compensador, num certo sentido econômico. E, de fato, uma certa compensação é que
será única e exclusivamente o correto.
Nisso também surgirão condições bastante complexas; pois poderá perfeita-
mente evidenciar-se que em alguma parte haja produtores espirituais em excesso,
ou seja, que se oponha uma força poupadora de trabalho forte demais. Nesse caso
resultará um valor final negativo, e as pessoas não mais poderão viver em conjunto
22. a não ser que se consumam mutuamente. Nesse tipo de com­pensação evidencia-se
um certo limite. Tal limite é dado pelo fato de existir, para cada área econômica,
uma relação de balanço — simplesmente ine­rente à natureza da coisa — entre a
produção agrícola, por um lado, e a produção intelectual, por outro.
Enquanto a Teoria Econômica não levar em conta como a produção agrícola, na-
turalmente no mais am­plo sentido, relaciona-se com a produção originada do espírito,
23. enquanto tal problema — que ainda mal foi abordado — não for trabalhado seriamente,
não poderemos contar de modo algum com uma Teoria Econômica adequada às neces-
sidades atuais.
Para tal será necessário, antes de tudo, executarem-se estudos tendo por base
dados demonstrativos que nos possam convencer, sem haver irracionalidade ou agita-
ção, de que uma região qualquer pode vir a adoecer economicamente por ter excesso
de trabalhadores espirituais; demonstrativos também do cabedal de forças para um
progresso cultural numa região que ainda não tenha alcançado o mencionado ex­cesso.
O progresso em determinado campo só será possível enquanto tal limite estabelecido
pela compensação não for alcançado. Para determinar isso será importante pesquisar
os ele­mentos, ainda hoje existentes, relativos a economias fecha­das numa determinada
região — vestígios destas existem ainda em toda parte, pois a transição para a economia
mundial é lenta —, e pesquisar também toda a situação econômica das regiões em que
24.
vive um número relativamente baixo de poetas e pintores, bem como de industriais inte-
ligentes, etc., existindo ainda uma extensa agricultura e outras atividades relacionadas
com a terra; e pesquisar também outras regiões em que se encontre a situação oposta.
Com os dados assim acessíveis, devemos ela­borar empiricamente certas leis gerais
para obter elementos teóricos para o balanço entre agricultura ou cultivo do solo, em
sen­tido mais amplo, e atividade cultural-espiritual, por outro lado. Será necessário, de
fato, escolher para uma região qualquer trabalhadores intelectuais me­dia­nos, por um
lado, e por outro também trabalhadores braçais me­dianos, que não distorçam demais o
balanço, e estabelecer o balanço entre eles, para descobrir qual a força de compensação
exercida por um lado sobre o outro.
Ora, nisso reside um ponto muitíssimo importante para quem, hoje em dia, queira
contribuir com qualquer coisa para uma atualização da Teoria Econômica — porque,
25. de fato, a situação é a seguinte: esse problema, que deve estar na base de qualquer
cogitação sobre preços e valores, mal está sendo encarado corretamente hoje em dia.
A alguns dos Senhores já expliquei ontem: as pessoas enga­jadas no raciocínio
econômico sempre se deixam persuadir a pensar só parcialmente, não considerando a
26.
totalidade. Sem dúvida Spengler trouxe, no final do segundo volume de seu Untergangs
des Abendlandes [Ocaso do Ocidente], algumas observações muito brilhantes; porém ele
120 Rudolf Steiner

estraga tais observações brilhantes com sua in­capacidade de transpor mentalmente,


para a economia moderna, os fenômenos históricos que abrange até certo grau. Em
sentido plenamente correto, ele aponta o fato de ainda ter havido na economia da Anti-
guidade uma pre­pon­derân­cia da atuação econômica fundada na terra, prevalecendo hoje
a atuação econômica fundada num raciocínio monetário, que de certo modo é trabalho
de cunho espiritual; no entanto, ele não percebe que suas constatações da História são
dois estágios da atividade econômica, os quais, não tendo um deles substituído histori-
camente o outro, ainda hoje existem lado a lado, da mesma forma como hoje o primitivo
está misturado com o mais progressivo. Lá fora encontramos as amebas em liberdade,
movimentando-se livremente, e encontramos essas mesmas amebas em nosso sangue,
nos leucócitos. Aquilo que historicamente também existe na natureza situa-se ainda
hoje lado a lado — e assim também na economia. Existem, lado a lado, as condições
mais diversas. Às vezes até ocorre que algo existente numa economia, digamos, cultivada
— justamente a parte mais evoluída dela — regride ao primitivo, de modo que se pode
dizer o seguinte: valores criados pelo fato de se viver numa cultura altamente evoluída
voltam, de certo modo, ao comércio de troca, pois os que geram economias [poupanças] de
trabalho trocam entre si, eventualmente, suas economias a fim de satisfazer mutuamente
certas necessidades. Isso realmente acontece, de modo que, nos estágios mais altamente
desenvolvidos, amiúde encontramos as funções mais primitivas justamente com relação
aos valores supremos.
Era o que eu queria acrescentar hoje, para amanhã proporcionar-lhes um encer-
ramento, ao menos provisório.
14 Conceitos vivos para a economia mundial
6 de agosto de 1922

Das observações que fizemos nestes dias os Senhores terão deduzido que o im-
portante, em primeiro lugar, é formar con­ceitos — ou, melhor dito, ideias — sobre a
vida econômica que nos permitam efetivamente imergir nela. Em nenhum dos campos
de atuação prática no âmbito do movimento antroposófico, dos quais participo pessoal-
mente, parto da convicção de que todos os resultados científi­cos alcançados deveriam
ser desmantelados; pelo contrário, estou convicto de que nossas ciências abarcam muita
coisa de extremamente útil; porém o manejo desse conteúdo útil, tanto das Ciências
Naturais quanto das Humanas, ne­cessita e requer uma essencial continuação de seu
desen­volvimento. Por isso foi meu intuito proporcionar-lhes principalmente imagens
1. que pudessem oferecer-lhes pon­tos de referência para empregar corretamente o que,
sem dúvida, existe de amplamente útil também na Ciência Econômica. Por isso trouxe
tais imagens, contendo diretamente vida. O que é vivo, porém — tenham isso sempre
em mente! —, é sempre algo ambíguo. Assim, será plena­mente possível um ou outro dos
Senhores sair destas reuniões com a sensação de ter isto ou aquilo a contestar contra
uma ou outra proposição. Em certo sentido eu ficaria contente se existisse tal sensação,
contanto que baseada numa genuína seriedade e num genuíno espírito pesquisador;
pois tal sensação deveria sempre existir face ao que é vivente. O que tem vida não to-
lera teorias dogmáticas. E é neste sentido que os Senhores devem entender as imagens
conceituais que lhes ofereci.
Uma imagem conceitual extremamente multifacetada, diria eu, é, sem dúvida,
a do dinheiro que envelhece ou se des­gasta. Contudo, devemos entender imagens con-
ceituais como esta da mesma forma como defrontamos, por exemplo, um ser humano
em desenvolvimento. Pode-se ter a seguinte sensação generalizada: este será capaz
de desempenhar esse ou aquele papel valioso na vida. Talvez cheguemos a ter ideias
2. de como fará isso. Tais ideias de como ele procederá, porém, nem sempre deverão ser
exatas. A pessoa em questão poderá pro­ceder de outra maneira. E assim os Senhores
talvez possam achar também várias modalidades da ideia do dinheiro que se des­gasta,
e de como se processa tal desgaste. Eu procurei ex­por-lhes aquela modalidade que, por
assim dizer, baseia-se menos num raciocínio burocrático e mais no que se depreende
da própria vida econômica.
Objeções e mais objeções poderão ser apresentadas. Quero chamar a atenção para a
seguinte objeção, bastante possível: muito bem, o que deve determinar, por exemplo, que
um empresá­rio qualquer invista justamente dinheiro novo em sua empresa, dado que tal­
vez após pouco tempo já não se saiba se foi dinheiro novo ou não?... pois afinal a empresa
3.
tem continuidade. Devemos ter em conta o seguinte: o empresário não tira o dinheiro do ar,
mas o em­presta de alguém. Tendo lido em minha obra Die Kernpunkte der sozialen Frage
[v. no­ta 7] que eu não defendo a eliminação do juro pelo dinheiro que representa um
valor, pois o juro é até certo grau necessário na vida econômica, os Senhores se pergun-
122 Rudolf Steiner

tarão: — Como é que eu, como empresário, conseguiria dinheiro emprestado pagando aos
credores juros apenas por um pe­ríodo reduzido? As pessoas me emprestarão dinheiro se
a mo­dalidade lhes garantir o recebimento de juros por um período o mais longo possível.
— Talvez achem que não é suficiente deixar o dinheiro envelhecer desse modo. Então
poderão ponderar mais ainda a modalidade, por exemplo, em que o dinheiro emitido
hoje não recebesse a data de hoje, mas uma data futura, de modo que até àquela data
tivesse um valor crescente, e somente a partir de então um va­lor decrescente.
Em poucas palavras, o que tem vida pode realizar-se das mais variadas maneiras.
Por isso ocorre que, no momento em que criamos de maneira viva uma possibilidade,
esta logo pode vir a realizar-se das mais diversas formas, assim como um indiví­duo
pode empregar suas habilidades das mais variadas manei­ras. Isto é o essencial de um
4.
conceito não-dogmático. Contudo, assumindo tais conceitos, principalmente no âmbito
dos estudos de Economia, os Senhores perceberão como as coisas intervêm na vida, e
que somente sobre tal base prá­tica conseguirão utilizar o que, sem dúvida, existe hoje
em observações parciais na assim chamada Ciência Econômica.
Por exemplo, no caso dos tratados existentes sobre o preço os Senhores verificarão
que se afirma serem as seguin­tes as condições de fixação do preço, pelo lado do vendedor:
sua necessidade de dinheiro, o valor do dinheiro, os custos de produção a serem cobertos
e a concorrência existente do lado dos compradores. Contudo, anali­sando tais conceitos
os Senhores descobrirão que, embora possam ponderá-los efetivamente, estes não lhes
servem para adentrar a re­alidade econômica, e isso pela simples razão de que primeiro
se deveria indagar o seguinte: será que existe uma situação economicamente sadia, em
que o que se pode chamar de valor útil do dinheiro possa fazer-se sentir sadiamente
caso um empresário qualquer, tendo em determinado momento neces­sidade de dinheiro,
possa fazer os preços subir ou cair de acordo com sua necessidade financeira? As duas
coisas po­dem ter um efeito sadio ou patológico. E quanto aos cus­tos de produção, ainda
5. poderá parecer desejável, para se chegar a um preço sadio, não refletir sobre a orientação
dos pre­ços sob o prisma da natureza absoluta dos custos de produ­ção, e sim ponderar
o grau de redução desses custos para um artigo qualquer, a fim de que este tenha um
preço sadio no mer­cado. Trata-se, portanto, de formarmos conceitos tais que realmente
nos permitam raciocinar desde o princípio. Da mesma maneira como não deixamos um
ser vivo começar a viver na idade de vinte e cinco anos, tampouco deveríamos deixar
conceitos atuantes na vida terem início num ponto arbitrário. Não se deveria deixar
os conceitos econômicos terem seu iní­cio somente com a concorrência dos compradores
ou vendedo­res; o importante é verificar se, sob certas premissas, o erro econômico de
princípio não consiste, justamente, no fato de existir uma concorrência excessiva de
vendedores ou ainda de com­pradores. São justamente os detalhes que devem ser pre-
ponderantemente levados em conta na observação de questões de princípio.
Independentemente da opinião que alguém possa ter sobre o acerto das nossas
considerações, sempre foi aspirada, em toda série de observações, a necessidade de os
conceitos se­rem vivos. Tais conceitos mostram por si a necessidade de uma eventual
modificação, em determinado caso. O importante é sermos colocados no caminho de tais
6.
conceitos vivos. Nesse sentido, podemos dizer o seguinte: foi dito que, de um lado, temos
o dinheiro que se desgasta, ou seja, o dinheiro que envelhece; procurei demonstrar que,
devido às pecu­liaridades do dinheiro que entra em circulação como dinheiro de compra,
dinheiro de empréstimo e dinheiro de doação, o dinheiro, funcionando de modo desini-
14. Conceitos vivos para a economia mundial 123

bido e puramente econô­mico, faz nascer num lugar a necessidade de dinheiro novo e em
outro a necessidade de dinheiro velho, simplesmente em consequência das necessidades
de cada caso.
Tudo isso eu deveria poder elaborar por semanas a fio, e os Senhores notariam
que se insere inteiramente numa economia sadia, podendo-se perceber, logo ao surgir
7.
em algum ponto uma perturbação no corpo econômico, que o assunto po­derá ser sanado
pela observação destes aspectos.
Ora, qual será o resultado prático de nossas reflexões se considerarmos, desse
modo, o dinheiro em circulação como reflexo do que é deteriorável nos diferentes artigos
de consumo — inclusive as produções espirituais, que também são artigos de consumo,
em sentido econômico? No dinheiro que se desgasta temos, neste caso, a corrente paralela
às mercadorias, aos bens, aos valores — inclusive valores reais — que se desgastam. O
que se nos apresenta ao contemplarmos tal paralelismo entre valor de face, ou nomi-
nal, e valor real, estendendo nossa observação a toda a economia mundial? No fundo
temos o que se poderia denominar contabilidade estendida a toda a economia mundial.
Trata-se da contabilidade mundial — pois o ato de se transferir uma remessa de um
lado para outro não significa outra coisa senão fazer um lançamento em outro lugar.
Isso se efetua, na realidade, pelo fato de o dinheiro e a mercadoria passarem de uma
8.
mão a outra. No fundo, é completamente indiferente se conseguimos estabelecer uma
contabilidade gigante, abrangendo toda a economia mundial — em que se lancem as
entradas no lugar certo e a partir da qual se dirija tudo, de modo a apenas alterar os
créditos —, ou extraímos cada transação e entregamo-la ao interessado, tornando-a
assim efetiva. Temos, pois, a contabilidade mundial como lugar de transferência de
dinheiro. E na verdade é isso o que todo mundo deveria considerar almejável — por-
que assim devolveríamos ao dinheiro o que, no fundo, este só pode ser, isto é, o meio
exterior para a troca. Pensando bem, e olhando todas as condições da economia, ve-
rificaremos que o dinheiro não pode ser outra coisa senão o meio para o intercâmbio
de resultados de trabalho. É que as pessoas vivem dos resultados do trabalho e não,
em verdade, dos símbolos desse trabalho.
Sem dúvida, pelo fato de em certo sentido o dinheiro falsear os préstimos do tra-
balho, poderá acontecer que, por uma espécie de comércio intermediário com dinheiro,
9.
ocorra também uma falsificação de toda a economia. Contudo, tal falsificação só é pos-
sível quando não se atribui ao dinheiro seu verdadeiro caráter.
O importante é nos darmos conta — tal como expus enfaticamente ontem — de que
a produção do trabalho deverá ser julgada das mais diversas maneiras relativamente ao
que circula como valores na vida econômica. Ontem pudemos chamar a atenção para
o modo como o que é primeiro extraído da natureza e submetido ao trabalho huma-
no corresponde, de fato, à imagem do trabalho unido ao produto da natureza — de
modo a se poder dizer que o processo econômico se inicia, por assim dizer, no lugar
10. onde o valor é gerado pelo trabalho agregado ao objeto da natureza. Existe, porém,
no processo econômico também a corrente oposta, que acontece quando se trata de
trabalho intelectual. Na ocorrência de trabalho intelectual, será necessário — se me
permitirem expressar-me assim — introduzir uma outra fórmula de valorização: a que
diz ter o desempenho intelectual tanto valor quanto poupar trabalho ao seu produtor.
Quem, portanto, produz um quadro e assim cria um valor, um valor pelo qual existe
interesse — caso contrário não seria um valor, supondo-se que a existência do pintor e a
124 Rudolf Steiner

criação do quadro representa um estado sadio na economia —, deve avaliar sua obra de
modo a ser-lhe poupado tanto trabalho quanto ele precisar até que possa ter produzido
um outro quadro equivalente. Sendo assim, podemos dizer que, pelo fato de se oporem,
no processo econômico, produtos espirituais e produtos resultantes exclusivamente da
natureza trabalhada, ou seja, do trabalho braçal ou ainda da elaboração pelos meios de
produção —, por se precisar, por um lado, de trabalho que se ligue aos meios de produção
e, por outro, ter economizado trabalho —, surgem assim, no circuito econômico, duas
correntes mutuamente opostas, que deverão compensar-se de maneira sadia.
A questão, todavia, é a seguinte: como é que elas se compensarão? Em princípio,
bastaria cogitarmos de uma contabilidade geral de toda a economia mundial; pois nes-
sa contabilidade geral surgiria o que deve compensar-se mutuamente. E aí surgiria o
preço. O importante será o fato de os lançamentos nessa contabilidade geral terem um
significado. Uma entrada A em minha contabilidade geral deverá corresponder ao que
posso chamar de ‘trabalho ligado à natureza’, ou uma entrada B deverá corresponder
11. a ‘quanto trabalho estará sendo economizado por tal realização’. Cada um desses lan-
çamentos deve significar alguma coisa; e somente poderá significar alguma coisa se
representar algo comparável ou, pelo menos, que esteja tornando-se comparável por
meio da economia. Não é possível perguntar sem mais nem menos: quantas nozes vale
uma batata? A pergunta deve ser a seguinte: a noz representa um produto da natureza
ligado ao trabalho humano; a batata representa outro produto da natureza ligado ao
trabalho humano; como é que os dois valores se comparam?
O importante será descobrir algo que realmente ofereça a possibilidade de se
ponderarem, um contra o outro, os valores econômicos. A coisa se torna ainda mais com-
plexa quando consideramos, por exemplo, o seguinte: alguém escreve um ensaio que, em
sentido econômico, deverá ter tanto valor quanta quantidade de trabalho físico estiver
sendo economizado com isso nos meios de produção, descontando-se o pequeno esforço
empregado em escrevê-lo. Em todo caso, os Senhores poderão imaginar que não será de
todo fácil calcular como as coisas devem ser comparadas e avaliadas mutuamente. No
entanto, captando o processo econômico por um lado diferente, teremos a possibilidade
de aproximar-nos de tal avaliação. Por um lado temos o trabalho físico empregado nos
meios de produção — aos quais também pertence a natureza —, trabalho que sempre
pode ser bem definido para determinado momento; em outras palavras, um certo tra-
balho humano torna-se necessário num certo momento — digamos, para produzir uma
12. área de x metros quadrados de trigo até o momento em que o trigo chegue ao comer-
ciante ou em outro lugar de destino — enfim, para produzir trigo. Trata-se de algo que
representa uma grandeza definida, a qual pode ser calculada até certo ponto; pois toda
realização econômica do homem sempre parte da natureza. Não pode ser diferente. O
camponês aplica seu trabalho diretamente à natureza; uma pessoa que, por exemplo,
cuida de roupas não aplica seu trabalho diretamente à natureza, porém esse trabalho
remonta diretamente a ela. Seu trabalho certamente incluirá algo que corresponda a
trabalho poupado, contanto que ela empregue inteligência nele. Porém seu trabalho
sempre remontará à natureza. Até as realizações espirituais mais complexas — tudo,
em última análise — remontam à natureza, ou ainda ao trabalho com os meios de
produção. Por mais imparcialmente que os Senhores reflitam sobre o assunto, sempre
verificarão que toda atividade econômica acabará remontando ao trabalho físico com
a natureza, e que os valores que começam a ser criados com a natureza — criados pelo
14. Conceitos vivos para a economia mundial 125

emprego do trabalho até um ponto o mais próximo dela — são valores que terão de ser
distribuídos para todo o âmbito de uma economia fechada.
Voltemos à hipótese que expus ontem: uma economia de aldeia fechada. Tal
economia abrange preponderantemente os trabalhadores braçais, e como exemplo de
trabalhadores espirituais mencionei o mestre-escola e o pároco, talvez ainda o prefeito.
Trata-se de uma economia muito singela. Nela a maioria das pessoas trabalhará fisi-
camente na terra; e terá de realizar também o trabalho físico correspondente ao que o
mestre-escola, o pároco e o prefeito necessitarem para sua alimentação, seu vestuário,
etc. Elas têm de fazer esse esforço adicional porque o mestre-escola, o pároco e o prefeito
não podem, eles mesmos, executar seu trabalho com a natureza. Imaginem agora que tal
freguesia tenha trinta camponeses e mais aquelas três — como chamá-los? — eminên-
cias. Esses três contribuem com seus préstimos espirituais. Eles precisam do trabalho
economizado dos outros. Suponhamos que cada um dos trinta camponeses entregasse
às três pessoas, ou a cada uma delas, uma senha, um pedaço de papel em que estivesse
13.
escrito, por exemplo, ‘tanto trigo’, significando o trigo já elaborado de certa forma; um
outro daria um papel em que estivesse escrito outra coisa comparável ao trigo quanto
ao consumo. É possível encontrar essas coisas na prática. Ora, o pároco, o mestre-escola
e do administrador comunal guardam isso no bolso. Em vez de eles mesmos trabalha-
rem no campo para conseguir o trigo, o milho, a carne de vaca, entregam as senhas aos
camponeses. Estes acrescentam essas quantidades ao seu trabalho e dão o produto às
três pes­soas. Esse é um processo que há de estabelecer-se automaticamente; não poderia
ser de outra forma, mesmo se algum esperto inventasse de introduzir moedas metálicas
em lugar das senhas. O importante é que se crie a possibilidade de introduzir, com base
no trabalho físico acumulado, isto é, no trabalho aplicado aos meios de produção ou do
trabalho investido nos valores econômicos, ordens de apropriação a serem entregues
para que, mediante essas senhas, os que precisam disso possam poupar trabalho.
Isso lhes demonstra que espécie alguma de dinheiro pode ser outra coisa senão
unicamente uma expressão da soma dos meios de pro­dução utilizáveis, existentes
14. numa região qualquer — os quais, naturalmente, seriam representados em primei-
ro lugar pelas terras —, resumida ao que mais facilmente os expressam. E isso en-
tão re­duz todo o processo econômico a algo que, mesmo assim, pode ser apreendido.
O que é necessário dizer a esse respeito relaciona-se com o fato de ser impossível
criar um paraíso econômico em lugar algum da Terra. Quiçá acreditassem nisso os que
erigem utopias sem relação com a realidade! É muito fácil determinar que a economia
deva ser desta ou daquela forma; porém uma economia, inclusive toda a economia da
15. Terra, isto é, aquilo que se pode chamar de economia mundial, não pode ser estruturada
de forma absoluta — só de forma relativa. Suponhamos que numa região econômica
fechada exista uma área A de terras. Se nessa área todas as pessoas executassem todas
as atividades rea­lizáveis pelo ser humano, o resultado seria diferente se naquela área
vivessem, digamos, B milhões de habitantes, ou se aí vivessem B1 milhões.
O que aqui vem ao caso depende inteiramente da relação entre habitantes e a área
de terra, ou seja, do rendimento que uma certa área de terra — em última análise, tudo
vem da terra — possa produzir para um determinado número de habitantes. Tomem
16.
o caso hipotético de uma região econômica qualquer com 35 milhões de habitantes —
na realidade, não importa quantos sejam. O que se menciona aqui a respeito de uma
região econômica fechada vale também para a economia mundial. Uma região tinha 35
126 Rudolf Steiner

milhões de habitantes numa certa época. Estabeleçamos a hipótese de esses 35 milhões


adotarem uma condição de convívio que economicamente seja a mais justa possível. É
uma exigência mais ou menos vaga, mas os Senhores logo perceberão o que quero dizer
com isso. O que deveria ser feito para que, nessa região, reinasse algo que acarretasse
preços viáveis entre os 35 milhões de pessoas? Para isso cada qual deveria receber,
logo que começasse a introduzir a vida econômica numa condição sadia, uma parte da
área de terra — agora, porém, área de terra produtivamente aproveitável —, tendo-se
ainda em conta a média de fertilidade e aproveitamento para cultivo dividida por 35
milhões. Imaginem que cada criança, ao nascer, simplesmente recebesse uma área para
futuro cultivo: se cada pessoa, ao nascer, recebesse como dote uma certa quantidade,
disso resultariam os preços apropriados para tal área — pois as coisas adquiririam seu
valor natural de troca.
O que lhes estou expondo agora como uma hipótese meio estranha é, não obstante,
a pura realidade. O processo econômico, independentemente das pessoas, de fato opera
desse modo. Não pensem que eu entenda de outra forma a não ser a imaginativa o que
vou dizer agora: o processo econômico realiza isso — já que as condições existem —,
efetivamente distribuindo toda a área de terra para quantas pessoas houver, sendo que
todas elas deverão continuar trabalhando adequadamente tudo o que brota da terra.
Imaginem toda a área de terra distribuída entre todos os habitantes, e terão o que confere
a cada objeto isoladamente seu valor de troca66; poderão registrar os valores de troca em
qualquer lugar, e perceberão que a experiência poderá dar uma aproximação bastante
17.
justa desses valores. Quando, porém, os Senhores começarem a comparar o resultado
com a nossa realidade atual, notarão que uma coisa tem um valor bem abaixo e outra
um valor bem acima. Imaginemos uma utopia existente num lugar qualquer, em que
se encontrem somente crianças recém-nascidas sob os cuidados de anjos, tendo cada
uma delas recebido um pedaço de terra; verificaremos que no momento de começarem a
trabalhar irão surgir os valores de troca evidentes. Se depois de algum tempo surgirem
outros preços, forçosamente será porque uma pessoa terá subtraído algo de outra. Isso
é o que cria as mais variadas insatisfações, isto é, o vago sentimento de que no processo
econômico pode intrometer-se alguma coisa não correspondente aos preços reais.
Porém as medidas tomadas com base numa compenetração do organismo eco-
nômico com a mentalidade observada em nossas exposições propiciam o que acabo de
indicar. É isso o que importa. E assim verificaremos que nesse dinheiro que representa,
por assim dizer, a contabilidade ambulante da economia mundial terá de inscrever-se
algo como “corresponde à quantidade de trigo a ser produzida numa área de terra de
tantos metros quadrados”, quantidade a ser comparada com outras coisas. Os Senho-
18. res já estão percebendo do que se deve partir nesse processo. Deve haver um ponto de
partida; os números devem significar alguma coisa. Simplesmente não corresponde à
realidade o fato de nosso dinheiro conter a indicação de um teor de ouro qualquer; em
contraposição, estaremos em uníssono com a realidade se inscrevermos no dinheiro
a que quantidade de trabalho empregado num determinado produto da natureza ele
corresponde. Nesse caso poderíamos dizer o seguinte: — Suponhamos, por exemplo, que
em todo o dinheiro fosse indicado ‘padrão natural X’, ‘padrão natural Y’, ‘padrão natural
14. Conceitos vivos para a economia mundial 127

Z’* — e ficaria claro em que se baseia toda a economia. Com isso o valor da moeda é
remetido aos meios de produção úteis nos quais se emprega o trabalho físico — meios
de produção de uma região econômica qualquer —, sendo esse o único valor monetário
sadio: a soma dos meios de produção utilizáveis.
É dessa forma que se apresenta o assunto a quem é capaz de observar imparcial-
mente a realidade, embora talvez alguém possa dizer não haver outro valor que possa
ser exatamente comparado com isso. Eu digo que poderá haver uma comparação precisa
até um grau muito elevado — pois pelo fato serem determinados, em última instância,
pelo consumo, tais valores não diferem muito das realizações.67 Por mais empenhado
que eu possa ser como agente cultural ou espiritual, sempre preciso, a cada ano, de
um tanto de trabalho economizado necessário ao meu sustento como ser humano. E
por tal raciocínio ficará facilmente evidente por que razão um agente cultural ou espi-
19.
ritual tem alguma necessidade adicional à de um trabalhador bra­çal. Se a coisa ficar
transparente dessa forma, não haverá dúvida em ser reconhecida em toda parte, por
ser transparente. Em economias fechadas sempre existem ainda condições, se bem que
cada vez mais raras, mas mesmo assim remanescentes hoje, em que os ativos em áreas
espirituais recebem sobejamente o que precisam, sendo que os demais o entregam
francamente, sem primeiro anotá-lo em pedaços de papel. Não digo isso por querer
reduzir a economia a algo sentimental, mas por também isso pertencer às realidades
da economia, pois no âmbito da economia em toda parte nos deparamos com o homem.
Com isso se alcança sobretudo uma relação realmente ampla dentro dos vários
segmentos de um todo econômico. Alcança-se a possibilidade de cada pessoa manter,
a cada instante, sua relação com a natureza também no dinheiro. Justamente o fato
de todas as nossas condições se distanciarem tanto da natureza, perdendo toda a sua
ligação com ela, é que as torna tão insalubres. Se conseguíssemos — e a solução do
problema não passa de um assunto da técnica possível de ser desenvolvida numa vida
associativa — efetivamente ter em nossas cédulas, em vez de o indefinível padrão-ouro,
20.
o padrão natural, conseguiríamos perceber diretamente, nas operações corriqueiras,
qual seria o valor até de uma realização intelectual qualquer; pois logo se saberia,
quando alguém pintasse um quadro, que tantos camponeses, por exemplo, teriam de
produzir tanto trigo ou tanta aveia, etc., durante tantos meses ou anos. Imaginem quão
transpa­rente se tornaria o processo econômico dessa forma. Conforme a terminologia
atual, dir-se-ia, nesse caso: o que te­mos é um padrão natural em vez de um padrão-ouro.
Seria jus­tamente o certo. Seria o que propicia uma verdadeira condição econômica.68
Introduzimos aqui novamente uma das tais imagens. Preciso mesmo utilizar essas
imagens, pelo fato de proporcionarem a realidade; o que em geral as pessoas têm na
cabeça, nas relações econômicas, não reflete a realidade. Só possui uma realidade quem
sabe, ao receber por alguma coisa uma moeda de certo valor, que isso representa tanto
21. de trabalho na terra ou de trabalho em ou­tros meios de produção; e que, no momento
em que são terminados e deixam de ser mercadoria, esses meios de produção se tornam
equivalentes à natureza ao passar para o estado de desvalorização, para a impossibi-
lidade de serem comprados ou vendidos, tornando-se idênticos aos meios de produção
existentes na natureza. Não visamos mais do que a uma continuação do processo exis-

* Steiner sugere literalmente ‘X-trigo’, ‘Y-trigo’, ‘Z-trigo’. ‘Padrão natural’ é uma tradução opta-
tiva para um entendimento mais genérico, do ponto de vista econômico. (N.E.)
128 Rudolf Steiner

tente na natureza ao dizer que os meios de produção devem ser tratados dessa maneira.
Somente assim se cria um conceito claro da própria natureza como meio de produção;
porque sempre se poderiam apresentar objeções quanto aos conceitos correntes relativos
à terra, caso não se in­troduzisse o conceito de meio de produção conforme foi aven­tado
em meu livro Die Kernpunkte der sozialen Frage [v. nota 7]. Ora, basta os Senhores
considerarem que, sob certas circunstâncias, também uma região da natureza deve ser
primeiro trabalhada antes de tornar-se terra útil; que somente quando uma área da
natureza qualquer está desbra­vada para ser entregue ao uso — tendo sido empregado
tra­balho nela — é que a conclusão desse trabalho marca a conversão de um pedaço de
terra — que a partir daí pode ser legi­timamente chamado de mercadoria — em valor
econômico no sentido de um bem unido ao trabalho.
Portanto, só realmente formando os conceitos da maneira como o fizemos é que
os Senhores obterão o conceito de meio de produção em sua forma pura, podendo vir a
aplicá-lo nos diferen­tes campos; no momento certo compreenderão que o peso principal
do valor — por exemplo, no caso de alguém escrever um ensaio — consiste no trabalho
economizado, descontando-se apenas o pouco de trabalho físico diretamente empregado no
ato de escrever. Logo ficará evidente uma diferencia­ção dos conceitos nas diversas direções
22.
a fim de se inserirem corretamente na vida, caso os Senhores os formem acertada­mente
a partir da própria vida. Querendo tratar da questão dos preços, não poderão proceder
de outra forma senão retrocedendo não apenas até aos custos de produção, mas até à
produção original, examinando as condições de preços desde essa produção original. Só
assim poderão acompanhar a formação de preços até um ponto qual­quer dentro do pro-
cesso econômico.
Com isso eu talvez lhes tenha dado pelo menos uma ideia capaz de levá-los a
entender o que é que interessa na questão fundamental da economia — a formação
de preços. Porque atuar economicamente significa levar produtos para a troca entre
as pessoas; e essa troca entre as pessoas se mani­festa na formação de preços. Tal for-
mação de preços é o que importa em primeiro lugar. Os Senhores compreenderão que,
neste caso, não teremos de remontar a algo totalmente in­definido se acompanharem
regressivamente tudo até àquela relação de valores criada para a lavoura pela propor-
23.
ção entre o número de habitantes e a área cultivável. Em tal rela­ção se expressa o que
originalmente subjaz à formação de preços, pois todo trabalho possível de ser executado
só pode partir do número de habitantes, e tudo a que esse trabalho possa ligar-se deve
provir da terra; eis o que todos necessitam, e pelos que são poupados disso por causa
de sua atividade cultural ou espiritual cabe aos demais desempenhá-lo, além do que
compete a si próprios. É assim que chegamos a compreender o fator subjacente a toda
a econo­mia.
Ora, encarando a coisa desta forma, devemos dizer o se­guinte: em nossa economia
moderna, bem complexa, ainda se insere algo daquelas condições econômicas primiti-
vas em que se tratava essencialmente, por assim dizer, da pura troca de mercadorias.
Ocorre, porém, que não estamos mais em condições de perceber essa relação em toda
24. parte. Nós a teremos sempre presente quando nossas cédulas de dinheiro expressarem
tal relacionamento com a natureza — pois na realidade ele existe. Jamais se esqueçam
disso! É a pura reali­dade. Eu quis dizer o seguinte — fazendo novamente uma metáfora
—: enquanto eu, bem distraidamente, gasto meus francos em uma alguma coisa, existe
sempre um diabinho que escreve sobre o dinheiro a quanto trabalho empregado na na-
14. Conceitos vivos para a economia mundial 129

tureza este corresponde. Eis a rea­lidade. Também neste caso, para chegar à realidade
não devemos deter-nos na superfície externa.
Bem, realmente não foi possível, nestes quinze dias, fazer mais do que al-
gumas contribuições iniciais, tendo a certeza de que deveriam continuar a ser
elaboradas — sendo, talvez, o mais importante nisso os Senhores entenderem
25.
que os conceitos imaginativos desenvolvidos aqui representam algo vivo em re-
lação ao que está sendo desenvolvido alhures. Se tiverem assimilado o que é
vivo nesses conceitos imaginativos, não terão passado es­t es quinze dias em vão.
O que hoje em dia pesa tanto em nossas almas é o fato de exis­tirem enormes
obstáculos para as pessoas ad­quirirem uma visão desimpedida do que é necessário ao
saneamento dos muitos danos da civilização. Fala-se muito do que deveria ser feito;
porém existe pouca vontade de mergulhar na realidade e haurir dela própria os dizeres
sobre o que fazer. De fato, afastamo-nos gradativamente da esfera da verdade, do verda-
deiro direito oriundo da natureza humana e da­quilo que deve desenvolver-se no homem
caso ele queira ter algum valor para seus contemporâneos — ou seja, afas­tamo-nos da
prática da vida; saímos da palavra verdadeira para entrar no palavreado, saímos do
26.
senso de direito para entrar no convencional, e saímos da prática da vida para en­trar na
mera rotina de vida. E não conseguiremos sair dessa tríplice falsidade — o palavreado,
a convenção e a rotina — se não de­senvolvermos a vontade de mergulhar nas coisas,
prestando atenção à maneira como estão realmente estruturadas. Só assim nós, como
pessoas que querem observar tais assun­tos pelo lado do estudo, encontraremos a pos-
sibilidade de fa­zer-nos entender. Hoje em dia existe no mundo muita coisa que, como
palavreado de agitação, causa terrível dano por existirem tão poucas pessoas imbuídas
da firme vontade de aprofundar-se nas realidades.
Por isso, meus caros amigos, causou-me profunda satisfa­ção o fato de haverem
chegado até aqui, empenhando-se durante quinze dias em examinar a fundo, junto co-
migo, o campo da Eco­nomia. Agradeço-lhes de coração sua boa vontade. Posso expressar
27. este agradecimento por acreditar saber o que significa o fato de justamente os atuais
estudantes acadêmicos no campo da Economia poderem contri­buir enormemente para
o saneamento de nossa vida cultural, para a reconstrução da vida da humanidade .
E devemos empenhar-nos já para que a Economia não permaneça apenas teórica,
mas evidencie-se ela mesma como valor econômico, de modo que o que economizamos
em trabalho possa, de fato, ser empregado frutiferamente pelos que o economizam para
28. nós, em proveito do progresso da humanidade. Acredito que os Senhores, ao decidirem
vir até aqui, tenham tido plena consciência da importante missão do economista; e te-
rei grande satisfação se tiverem sido estimulados, em sua vontade, pelo conteúdo que,
embora de ma­neira insuficiente, pudemos desenvolver.
Espero que tenhamos nova oportunidade de aprofundar mais esses assuntos.
Notas e bibliografia

As presentes notas, bem como as referências bibliográficas, foram preparadas por Christopher
H. Budd, tradutor/editor da versão inglesa de 1993 intitulada Economics (New Economy Publica-
tions, Sussex). Sua publicação nesta edição brasileira deve-se à pertinência de seus comentários e
esclarecimentos diante da realidade econômica universal de hoje, após decorridos mais de setenta
anos desde a realização do curso ministrado por Rudolf Steiner. Algumas supressões de trechos
foram efetuadas (caracterizadas aqui como [...]) e inúmeras notas foram inteiramente excluídas,
devido à relação dos respectivos textos exclusivamente com a referida edição inglesa (que inclui dois
prefácios e também as discussões realizadas após seis das presentes conferências). Por outro lado,
inserções de nossa autoria (também entre [ ]) se fizeram necessárias, para melhor subsidiar o leitor.

Primeira conferência
1. Schmoller, Gustav von. 1838-1917, economista.
2. Roscher, Wilhelm. 1817-1894, economista.
3. Beaconsfield, Earl of; Benjamin Disraeli. 1804-1881, escritor e estadista inglês.
4. Richter, Eugen. 1838-1906, político liberal.
5. Lacher, Eduard. 1829-1884, político liberal.
6. Brentano, Lugo. 1844-1931, economista alemão.
7. Aqui e no próximo parágrafo, Steiner refere-se à sociologia que ele desejava introduzir, baseada na dinâmica latente entre os
domínios cultural, econômico e político da sociedade — o que ele chamava de trimembração da vida social. Traduzidas, as deno-
minações podem variar — trimembração da ordem social, estado trimembrado, comunidade tridimensionada —, mas qualquer
que seja o nome usado, fala-se de um novo paradigma, em consonância com a linha que a evolução social da humanidade segue,
mas que ainda permanece irreconhecível. As pessoas continuam presas às sociologias que se preocupam com as existências
nacionais separadas — tornadas obsoletas pelo advento de uma economia global única. [A teoria social de Steiner encontra-se
formulada em Die Kernpunkte der sozialen Frage (Os pontos centrais da questão social), GA 23. 6ª ed. Dornach, Rudolf Steiner
Verlag, 1976. Veja também a versão inglesa Towards Social Renewal, Londres, Rudolf Steiner Press, 1977.]
8. Os leitores podem entender melhor o que Steiner tinha em mente consultando seus comentários sobre John Maynard Keynes e
seu livro intitulado The Economic Consequences of the Peace. Ver Steiner on Keynes, New Economy Publications, set./out. 1992.
9. É interessante notar, nesta colocação que Isaac Newton, sistematizador da teoria do espectro luminoso, era também um alto
cargo do Royal Mint da Inglaterra [N.T.: A ‘Casa da Moeda’ inglesa]. Estava diretamente envolvido, por isso mesmo, na forma
e condução da vida econômica de seu tempo.
10. Adam Smith. 1723-1790. Mais conhecido pelo seu Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, 1776.

Segunda conferência
11. Steiner usa a palavra ‘natureza’ onde a economia clássica diz ‘terra’, deixando o leitor com um enigma pela frente. Prendendo-nos
rigidamente a ‘natureza’, corremos o risco de ficar perdidos entre os conceitos vagos das economias ‘alternativas’, visto que
‘natureza’, nestes tempos ecológicos [...], está mais próxima de ‘paisagem’ do que de uma ‘categoria econômica’. [Em minha
tradução inglesa] eu sempre prefiro usar ‘terra’ onde Steiner usa ‘natureza’, numa tentativa de enfatizar a necessidade de
aprofundarmos o nosso entendimento dos conceitos tradicionais de economia. O que importa mais é chegar a um termo mais
profundo, estritamente econômico como ‘terra’ do que procurar expressões aparentemente mais fáceis de serem compreendidas.
A mesma coisa pode ser dita a respeito de ‘trabalho’ e ‘capital’. Se aprofundarmos, em economia pura, o significado dado a estes
termos, conseguiremos transcender os confins estreitos do pensamento econômico materialista, que poucas vezes é puramente
econômico, compreendendo frequentemente conceitos sobre a vida econômica que em si mesmos têm um caráter mais jurídico
ou ético do que econômico propriamente dito. No processo, evitaremos a outra armadilha do economista de hoje — a de abstrata-
132 Rudolf Steiner

mente esticar o universo da linguagem da economia tradicional, inventando outras categorias, como, por exemplo, ‘informação’.
A realidade é uma de três categorias — terra, trabalho e capital — às quais qualquer extrapolação ou simplificação sempre se
volta. Também se poderia argumentar que terra, trabalho e capital traduzem-se melhor por ‘natureza-homem-espírito’, e que
estaríamos sendo mais fiéis ao que Steiner tinha em mente. Foi o que tentei fazer em meu livro Prelude in Economics (New
Economy Publications, 1979). No entanto, e no contexto da língua inglesa, o resultado não se encaixa perfeitamente, como
acontece no universo econômico. No fim, resolvi usar ‘terra’ e ‘natureza’ combinados, usando-os separadamente ou enquanto
sinônimos, de acordo com o que eu pensava seria a necessidade do leitor, mantendo presente em minha mente que se tratava
de uma obra sobre economia e que se pressupunha algum esforço de sua parte para superar dificuldades! Não faço apologia de
qualquer embaraço que resulte deste tipo de tratamento do tema. Na verdade, este problema oferece por excelência o tipo de
exercício que Steiner tanto queria — o de afiar o pensamento econômico.
12. A expressão usada por Steiner consta [como na presente edição brasileira] normalmente no singular — ‘um bem’. [...] ‘Bens’,
significando — na tese defendida por Steiner — produtos da natureza modificados pelo trabalho, não são propriamente ‘um
bem’. A palavra lógica seria ‘produto elaborado’ — mas ela é um pouco restritiva. Na maioria das ocorrências usei [na tradução
inglesa] o plural ‘bens’ ou a inábil tentativa ‘produto elaborado’, como seria próprio do texto. [...] A terminologia da Ciência
Econômica é afetada o tempo todo pelo fato de, no mundo real, referir-se a um império que paira num plano superior ou que,
por outras palavras, encontra-se subentendido em suas contrapartes físicas. Por exemplo, embora todos tenhamos visto o preço
de algo marcado numa etiqueta, quem já viu ou pôde tocar um preço físico?! A necessidade de pensar concretamente nos termos
deste império subentendido é reforçada pelo uso ocasional que fiz [no inglês] de ‘um bem’. A meta é, mais do que referir-se à
sua existência física, dar conta de seu significado econômico.
13. Nesta passagem, e ao longo de todo este tratado, Steiner usa a palavra Arbeit. Pode ser traduzida, claro, por ‘trabalho’ [como na
edição brasileira], mas na versão inglesa foi adotado e mantido o termo econômico tradicional ‘mão de obra’. Uma vez assumido
isto, podemos entender o uso específico da palavra ‘mão de obra’: aquele tipo de trabalho particularmente associado ao esforço
manual. É realmente difícil usar o termo ‘mão de obra’ num sentido mais amplo e genérico — como referindo-se a todo tipo de
atividade econômica que o ser humano pode realizar, desde aquele físico e rústico, necessário ao trabalho na terra, na caça, na
mineração de carvão ou na produção de coisas, até ao intangível — mas não por isso menos econômico — trabalho de um pro-
fessor ou de um artista ou, sem dúvida, de um empreendedor realizando uma intuição. É um dos grandes desafios da moderna
economia encontrar um conceito para o esforço humano que expresse corretamente como, no direcionamento de um trabalho
físico pesado, é preciso um caráter manual (mão de obra), enquanto que no direcionamento mental ou de processos interiores
torna-se rarefeito e quase que inexistente, como por exemplo quando um inventor concebe pela primeira vez um novo projeto.
Nas conferências que se seguem, Steiner deposita grande esperança neste polo intangível do trabalho, usando frequentemente
a expressão ‘trabalho espiritual’. [...] A concepção de Steiner da vida econômica está centrada numa sequência que abrange
desde a caça até o ensino, passando sucessivamente pela agricultura e pela manufatura, sucessão esta em que as realizações
humanas se afastam da terra e se aproximam dos aspectos menos rústicos da vida econômica, como a atividade cultural. Neste
processo de abstração, quanto mais rarefeita se torna a conexão com o mundo material (representado pela terra), mais livre
está das restrições dessa mesma terra, e mais autossuficiente se torna por sua própria intangibilidade. Um empreendimento,
por exemplo, depende, para seu pleno sucesso, da imaginação e do nous — o termo grego para inteligência e bom senso — da
pessoa que o leva a efeito. O ‘fator pensamento positivo’ — para usar o jargão atual — e fenômenos similares dependem de coisas
invisíveis como confiança e expectativa. Embora uma tradução literal tivesse adotado ‘trabalho espiritual’, penso que oferece
conotações com a linguagem de nossos dias que na verdade contradiz aquilo que Steiner tinha em mente. [...] [Na presente
edição brasileira optou-se, em vários trechos, ora por ‘atividade cultural ou espiritual’, ora por ‘atividade intelectual’, de acordo
com a pertinência da opção, já que a palavra alemã geistige (espiritual) abriga toda uma gama de significados envolvendo não
só espírito propriamente dito, mas também cultura, mente, intelecto (v. tb. nota 14).]
14. Mais uma vez o termo alemão Geist não é facilmente traduzível. [...] ‘Espírito’, conforme o usa Steiner, é uma estenografia
para tudo aquilo que surge no ser humano por ser ele um ser pensante com muitos e variados talentos e capacidades a serem
desenvolvidos. O conjunto desta atividade e seus resultados constrói sua vida espiritual.
15. ‘Renda’ é aqui usada em seu significado econômico estrito, o valor que emerge da terra. Este sentido econômico paira acima do
outro, mais usual, normalmente entendido como as relações entre locatário-locador e o dinheiro pago pelo uso de um imóvel.
Os dois sentidos não são sinônimos, e qualquer economista que mereça esse nome saberá ver a diferença!

Terceira conferência
16. Este uso da palavra ‘interesse’ é importante. Diz-se muitas vezes que esta ou aquela política é determinada ou contrariada pelos
‘interesses envolvidos’ de certas partes. No entanto todos nós agimos protegendo ou aumentando os nossos interesses econômicos.
Do ponto de vista social, o desafio da economia moderna é mostrar como os interesses econômicos podem ser contrastantes ou
conflitantes. Nesta passagem, Steiner dá o primeiro passo nesta direção, embora en passant .
Notas e bibliografia 133

Quarta conferência
17. Nesta conjuntura, é importante parar para pensar — pensar economicamente, é claro! Steiner usa duas palavras — Arbeitstei-
lung e Arbeits­glie­de­rung. A segunda não oferece tradução precisa — necessita da intermediação de uma imagem, como acontece
com todos os verdadeiros conceitos econômicos. Sem estes a Ciência Econômica cai em ideias mentais abstratas e meramente
intelectuais. Em nossa maneira comum de pensar, a imagem associada à ‘divisão do trabalho’ é aquela da produção em linha
de montagem na indústria moderna. Tende a ser a ideia de um desmembramento meramente físico do processo de trabalho,
separando-o em partes. Assim, em vez do carpinteiro de carroças, uma pessoa faz as rodas, outra os eixos e assim por diante.
Esta imagem não é incorreta, mas implica que a separação só é real porque é empreendida no mundo físico. É possível montar
uma carroça e fazer suas partes separadamente. Mas acautele-se ao transferir este aspecto atomizado da divisão do trabalho
dos produtos físicos para o aspecto social daqueles que realizam o trabalho. Os seres humanos envolvidos não devem ser vistos
no processo como se pudessem ser separados uns dos outros. Assim como as partes da carroça só têm sentido quando colocadas
todas juntas, da mesma forma a divisão do trabalho não deve fornecer desculpas para uma existência econômica atomizada.
O termo não significa divisão no sentido fragmentário e absoluto do mundo físico, mas sim o partilhar da responsabilidade de
uma tarefa em comum. Não podemos esquivar-nos facilmente ao fato de que o batismo deste processo ocorreu quando o foco
do pensamento econômico era ainda muito estreito. É um exemplo — e um muito fundamental — do problema que enfrentam
os economistas a necessidade de pensar com mais amplidão, de basear suas percepções em dados mais abrangentes do que
aqueles dados pelo aparecimento um tanto intempestivo do capitalismo industrial no estágio essencialmente agrário dos anos
passados.
18. Este termo, como logo a seguir ‘devedor’, está pensado num sentido econômico funcional, não-pejorativo.
19. A expressão de Steiner é geistige Schöpfer, ‘trabalhador espiritual’. [...]. Não quero atribuir maior valor do que aquele absolu-
tamente necessário ao termo ‘trabalhador espiritual’, pois em dois pontos acredito que este se distancie do tratamento geral
econômico que Steiner dá a seu trabalho. Primeiro, como já disse anteriormente, falta a ‘espiritual’ qualquer coisa de concreto e
de alguma maneira soa como que antieconômico, oposto à economia. Segundo, ‘trabalhador’ pertence por demais à síndrome da
fábrica, teoria de classes e ao cenário cada vez mais anacrônico do trabalho classista. Sem querer de maneira alguma negar ou
diminuir os reais problemas a que essas coisas se referem, o pensamento econômico de Steiner pretende ir além do capitalismo
que tanto maltrata as pessoas. Ele o faz precisamente por não construir com base nas ideias compreensíveis, mas não por isso
corretas, que evoluíram até tornar-se a perspectiva marxista.
20. [...] Estas expressões nos conduzem rápido demais à jurisprudência, por um lado, e, por outro, a uma profunda ‘falsa lei-
tura’ do que mais tarde Steiner batizou de ‘dinheiro de empréstimo’. Identificar ‘emprestar’ e ‘pedir emprestado’ — como
entendidos pela mente moderna, escolada nas práticas do sistema financeiro atual — com o conceito de Steiner de ‘dinhei-
ro de empréstimo’ tornou-se um grande obstáculo. A questão do sinônimo é logo a primeira — em si mesma um exemplo
do pensamento NÃO-econômico! — a alimentar sutilmente as alas de adeptos do pensamento de Steiner, impedindo que
as pessoas vejam e experimentem o tipo de capital e seus efeitos para onde Steiner, precisamente neste momento de sua
colocação, tenta a todo custo atrair a atenção. [Em minha versão inglesa] é usado delibe­ra­damente o termo ‘transferên-
cia’ para evitar uma confusão prematura entre a jurisprudência maquiada de economia e a economia propriamente dita.
21. Uma passagem que alguns sentirão como perigoso elitismo econômico, sugerindo, aparentemente, que o capital só deveria ir
para as mãos daqueles suficientemente inteligentes da sociedade. Mas não é isto que Steiner tem em mente. Para começar,
não diz capital como diria renda. Parte do princípio de que a sociedade manterá todo ser humano economicamente (embora não
necessariamente de maneira igual nem em medida idêntica) e que este é um assunto separado do uso que fazemos do capital.
Na verdade, partindo do princípio de que os rendimentos geralmente vêm do uso produtivo e útil do capital, Steiner diz simples-
mente que, vendo de maneira geral e falando do ponto de vista econômico, o capital da humanidade, se mal administrado, não
conseguirá dar a renda necessária à humanidade como um todo, mesmo que esses rendimentos sejam compartilhados. O fato
de o capitalismo não administrar o capital da maneira que Steiner sugere não pode ser alienado de sua crescente inabilidade
para financiar as verdadeiras necessidades humanas.
22. Alguns talvez prefiram dizer satélite, em vez de balão, porque os satélites hoje em dia são capazes de observar a terra como um todo. A
tecnologia está lado a lado com a realidade econômica do mundo como um todo, mas a economia ainda está um pouco atrás, presa àquele
tipo de pensamento queAdam Smith exemplifica. Esta falta de um tratamento global da vida econômica como parte da economia provoca
a grave e desconcertante consequência de estar ralentando a ideia do mundo como um grupo humano que partilha o mesmo bem comum.
Aausência de uma consciência assim significa que, pelo fato de as várias nações que predominaram na vida econômica no começo do século
XX não se terem juntado, quando tiveram oportunidade, para criar uma única economia global para o todo da comunidade humana, a ideia
que prevalece por trás da política, hoje, é que uma nação deve sobrepor-se às outras. Nossa vida social está permanentemente permeada por
uma fria tensão devido à ausência de um conhecimento da nossa economia mundial e à busca de uma hegemonia global. Psicologicamente,
pelo menos, vivemos num estado de conflito iminente — para sempre sob a ameaça de uma guerra mundial econômica e, certamente, para
sempre assistindo a expressões isoladas desta condição, em todo o mundo e por toda a história. Muito se cria em cima deste caráter não-
econômico e ideológico destes ‘pontos problemáticos’; mas retirem-se os mercados e o acesso à mão de obra barata, retire-se a viciosa
dependência da indústria de armas e os enormes dividendos ganhos por aqueles que financiam os combatentes, retirem-se os interesses de
monopólio das corporações transnacionais — e o que sobra? Certamente um precioso nada. Em termos ideológicos, a mais real ideologia de
nossoséculofoinãoasocialista,masaautodeterminação,aliberaçãonacionaleofimdocolonialismo.Mas,emtodocaso,estesatentadosaos
134 Rudolf Steiner

po­vos do mundo no sentido de retirar seu lugar de direito na comunidade humana acabaram por entrar em conflito por causa da partilha de
recursos e mercados que implicavam. Na maioria dos casos, esses povos sacrificados — daAlgéria ao Vietnã — foram forçados pelo Ocidente
paradentrodasideiassocialistasporqueestaspareciamrealmenteexplicarasaçõesdoOcidente.Masestesocialismofoinasuamaiorparte
uma questão acidental e frequentemente ausente em seus resultados. O Ocidente, durante este sé­cu­lo, recusou a mudança do paradigma
que é responsável pela emergência, por todo os lados, de nações buscando deixar de ser colônias para sempre.

Quinta conferência
23. No sentido de crédito para financiar o que o indivíduo pode, a partir de suas capacidades, realizar.
24. Nota: esta discussão dos juros está dirigida ao empréstimo individual de dinheiro sob juros, sendo esta a forma mais comum
de os indivíduos passarem pela experiência de captar dinheiro dos outros. Este é um ponto em que esta experiência comum
e familiar tem hoje uma aplicabilidade genérica. Eu tenho as minhas dúvidas. Muitos indivíduos alcançam capital mediante
uma herança, poupança ou investimentos — ou seja, sentem-se seus pró­prios produtores e não pagam juros por esse capital.
Também os financiamentos corporativos — de longe o maior motor da vida econômica — são grandemente conduzidos com bases
no capital investido, onde o retorno não é uma porcentagem do capital independentemente de sua produtividade, mas uma
proporção de qualquer benefício derivado de seu uso — e isso só depois de cobrados os custos. Usando o exemplo dos juros nos
fundos privados, Steiner corre o risco de desviar a atenção do leitor da questão econômica que pretende colocar, por causa da
experiência próxima que se supõe que o leitor tenha muito presente. Também se deve notar que o exemplo de crédito pessoal se
refere à capitalização da produção ou do empreendimento, e não — como a prática moderna poderia supor — ao financiamento
de uma casa, compra de ações ou pagamento de dívidas.
25. ‘Com base em terras’ = crédito vinculado à terra. Pode ser usado para adquirir terra ou para garantir dinheiro usado para outros
fins. De qualquer maneira, o efeito econômico é que seu valor é alimentado pelo valor da terra, assim financiado ou aceite como
colateral.
26. Capitalização da terra. Segue-se uma tentativa de mostrar os cálculos a que Steiner se refere:
I) Suponha-se:
a) preço não-capitalizado da terra: 100,000
b) juros de 5% ao ano
c) prazo de 20 anos
Portanto:
Valor não-capitalizado da terra: 100,000
Juros: 100,000
Valor capital da terra: 200,000
II) Agora, supondo-se juros @ de 4% ao ano:
Valor não-capitalizado da terra: 120,000
Juros: 80,000
Valor capital da terra: 200,000
27. Embora não o diga, nesta passagem Steiner acaba com um dos principais propósitos da consciência não-econômica, capitalista
dos dias de hoje — na qual todos nós nos inscrevemos —, porque o ideal capitalista continua agarrado à noção de que o capital
pode ser acumulado sem haver preocupação com as consequências econômicas desse acumular. As pessoas não pensam — ou se o
fazem, esquecem rapidamente — que quando o capital não é trabalhado e utilizado no processo econômico com fins conscientes,
indiretamente perde valor, sob a ação de efeitos econômicos aparentemente periféricos; posto que vivemos numa era que devota
toda a sua energia a acumular capital, culpando ao mesmo tempo a economia pela desvalorização mais óbvia, real e séria que
esse mesmo acumular provoca. Quanto mais cedo nosso pensamento, para nada dizer das nossas ações, se preocupar com a
realidade econômica desde esta perspectiva, melhor todos estaremos. A solução para a desvalorização do capital acumulado é
com certeza não acumular mais! (A mesma coisa podemos dizer da insensatez de tentar manter o valor do dinheiro mediante
soluções artificiais.)
28. Esta é uma observação fundamental. Os reformistas da terra a quem Steiner se refere são pessoas como Henry George e
Damaschke, que perseguem a socialização da renda e dessa forma a tornam coerente com a vida econômica atual. Até onde
alcançam as teses de Steiner, embora o objetivo de tais empreendimentos seja louvável, o efeito econômico não é atingido.
Socializar a renda é transferir os ganhos que provêm da terra — seja ela saudável ou deficitária — da esfera privada para a
pública. Todos os tipos de dificuldades sociais estão presentes neste cenário, mas para os propósitos desta nota o ponto principal
é que, economicamente falando, a meta deveria ser, em primeiro lugar, prevenir o crescimento de rendas artificiais — ou seja,
as rendas que derivam da capitalização da terra. Isto, de qualquer maneira, é o fundo da agulha do pensamento econômico,
pelo qual muito poucos já passaram — se é que algum o fez!. Nesta sociedade de propriedades hipotecadas, qual é o sentido de
‘terra’? Onde começa e acaba? É o solo, que pode ser trabalhado por um fazendeiro, ou o subsolo, que ele não pode? Por outro
lado, o subsolo pode ser escavado para abrigar depois os alicerces de um prédio. ‘Terra’ é a terra física onde o prédio se apoia,
esquecendo-se seu substrato, ou é mais a área arrendada à qual um indivíduo tem direito exclusivo ou partilhado de uso, seja
pagando uma renda, seja simplesmente alugando, hipotecando ou arrendando? Exercitar nossa mente neste ponto — ou melhor,
Notas e bibliografia 135

estruturar nossa própria economia de acordo com a solução ‘correta’ para este problema — é passar pelo fundo da agulha. É
uma necessidade do nosso tempo que as pessoas comecem a fazer justamente isto. (Ver também Rudolf Steiner, Sociology of
Land, New Economy Magazine, Set./Out. 1991.)
29. O trabalho de Steiner se apoiou amplamente no simples preceito de que o método da Ciência Natural, observa-
ção cuidadosa dos fenômenos externos, poderia ser aplicado aos fenômenos perceptíveis sem sentido aparente.
Enquanto o método poderia manter-se constante, o conteúdo e a natureza se modificariam. O método científi-
co aplicado ao mundo natural é Ciência Natural; aplicado ao mundo suprafísico, dá lugar à Ciência Espiritual.
30. Steiner fala da ideia de ‘associação’ em muitos contextos [...], mas também numa série de conferências intituladas O futuro
social [ed. brasileira em trad. de Heinz Wilda. São Paulo, Ed. Antroposófica, 1986]. Àqueles que desejem ver como o conceito de
economia associativa de Steiner se desenvolveu desde que estas conferências foram dadas, e como se relaciona com a economia
de mercado dos dias de hoje, seria interessante consultar Gaudenz Assenza, Beyond the Market, New Economy Publications,
1992.
31. [No sentido de ser] ‘independente’ ao invés de ‘livre’, porque o conceito de Steiner não é de libertação nem de conduta desconexa.
Não se trata de um laissez-faire, nem de uma ação autônoma que não reconhece limites a não ser quando obrigada a eles. O
conceito de liberdade de Steiner, quando aplicado ao capital, ao indíviduo/ser humano ou, como neste momento, à vida econômica
de maneira geral, não é separatista ou anárquico. Não importa como esteja o ser humano. Ele pertence a uma comunidade, e
liberdade não implica o presumir deste fato. Pelo mesmo princípio, o capital torna-se livre num certo ponto do processo eco-
nômico — isto é, alcança uma existência por direito próprio. Mas isto não o desculpa, remove ou aliena do processo econômico
como um todo. Muito pelo contrário. Sua independência nasce precisamente porque nesse momento ele pode desempenhar um
papel básico neste processo, como se desde a sua criação fosse essencialmente um efeito. Da mesma forma, a ideia de Steiner
de uma vida econômica autodirecionada, autônoma [...], não significa que haja uma vida econômica separada das considerações
gerais de poder e direito, cultura e política. Conduz à necessidade de redefinir o contexto político e cultural da vida econômica,
de maneira a poder desdobrar-se a seu próprio ritmo. Independência [...] não quer dizer incoerência ou conduta egoísta. Quer
dizer que quando alguma coisa é independente pode, à sua própria maneira e segundo sua própria natureza, contribuir com
alguma coisa nova para a sociedade, já que depende dessa sociedade para toda a sua existência.
32. Nos anos que mediaram desde 1922, o Estado cumpriu, é claro, muito de seu papel tirânico, tanto no sentido extremo soviético
quanto na sutil criação de empregos do mundo ocidental. Este processo foi acelerado por uma outra tirania — a do ‘mercado’.
Sem alguma coisa parecida com a visão de Steiner, a mão de obra é, com ou sem vontade, transferida, em nossos dias, de
acordo com as exigências da política pública ou do caráter errante do mercado. Neste processo, não é dada qualquer atenção
ao verdadeiro bem-estar da força de trabalho, nem os preços são estabilizados a longo prazo. Aqui se pode ver como os acon-
tecimentos se têm desenvolvido de maneira trágica, se comparados com o verdadeiro potencial que temos para resolvê-los.

Sexta conferência
33. Atenção, leitor! Como já foi dito na nota 20, ‘empréstimo’ aqui não é sinônimo de, por exemplo, empréstimo bancário. ‘Emprésti-
mo’ refere-se a uma categoria econômica num nível mais alto. Inclui, embora não seja sinônimo, esses tipos de empréstimos aos
quais estamos acostumados. ‘Empréstimo’ é um conceito de ordem, não um instrumento financeiro. Os empréstimos bancários
podem — e muitas vezes acontece — ter um caráter de não-empréstimo. Tornam-se doações quando perdoados, por exemplo;
e valores adquiridos quando o preço do empréstimo é tão grande quanto seu retorno — ou seja, quando os benefícios daquele
que toma emprestado se ressentem das cargas de juros excessivas, que retiram dele mais valor do que ele conseguiu produzir.
34. [Em minha tradução inglesa] alterei esta passagem [para “...deve ser colocado à disposição daqueles que produzem cultura no
lato sentido da palavra — aqueles que, como os professores, trabalham numa instituição cultural: escolas, teatros e similares”]
numa tentativa de deixar mais claro o que significa ‘instituição cultural livre’, um conceito que Steiner coloca sem maiores
introduções ou explicações.

Sétima conferência
35. Steiner fala de Handwerk. Poderia ser traduzido como arte ou artesanato, com seus correlatos artista e artesão. Uma tradução
econômica verdadeira, no entanto, é manufatura — uma criação humana de artefatos, independentemente de quanto tendam
mais ou menos para o lado artístico ou indus­trial. [Em inglês] opto por usar manufacture num sentido amplo e variado, para
marcar a progressão econômica da qual Steiner falava, desde os caçadores que simplesmente retiram o que a natureza dá —
embora a coleta já se aproxime da agricultura —, agricultores que trabalham extensivamente mas não produzem arte — no-
vamente esqueça toda e qualquer artificialidade introduzida pela engenharia genética de plantas e animais —, manufatores
que fazem coisas, os ‘ingredientes’ que se originam na terra mas que, na linguagem econômica, são produtos de trabalho e
inteligência, e assim por diante, até se chegar a, digamos, o padre ou o professor, cujo produto material é desprezível, mas cujo
efeito econômico é no entanto extraordinaria­mente real.
36. Vá com cuidado! ‘Emprestar’ pode conduzir a mente ao campo dos métodos atuais de transferência do uso do capital de uma
136 Rudolf Steiner

pessoa para outra. O que Steiner destaca é que o capital não é um bem a ser usado ou algo a ser possuído, mas uma realidade
que permanece. A questão é como fazer que este capital seja acessível ao indivíduo, de maneira a maximizar seu uso produtivo,
e como transferi-lo de um indivíduo a outro — no ‘mercado de capitais’, hoje, estas ações são deficientes e injustas; o capital é
emprestado por quem o pode emprestar. O que Steiner tinha em mente não pode ser totalmente compreendido até que se ima-
gine qual agente econômico estaria substituindo o mercado de capitais quando o capital emprestado assumisse a cor econômica
que Steiner lhe imaginava, e não a coloração do poder e da justiça que normalmente tem.
37. Steiner introduz o conceito da vontade humana como uma forma de aumentar a possibilidade de uso da atividade liberada.
Quer ele com isto dizer que a vontade humana não é condicionada unicamente pelo ambiente externo ao ser humano. É au-
tossuficiente, latentemente livre, e por isso capaz de seguir os requisitos de sua própria natureza e necessidades. Quanto mais
nos afastamos das atividades ligadas à terra e nos dirigimos rumo à atividade liberada, mais livre será a vontade que implica
esta atividade.
38. Steiner refere-se à inadequação econômica da Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial.

Oitava conferência
39. Isto não significa que o pensamento econômico nos induza à ideia de que uma associação econômica pode existir simplesmente
por ter esse nome. O nome pode rapidamente ser relacionado com um cartel. A questão é que são indispensáveis uma certa
linha de trabalho e uma certa meta geral, que podem ser chamadas de economia associativa. Chamar uma coisa de associação
não lhe confere o caráter que Steiner tinha em mente. No abstrato, o termo tem pouca utilidade quando separado do conceito
de unidade de que Steiner falava. A vida econômica dos nossos dias inclui certamente muitos fenômenos que justificadamente
poderiam fazer parte de uma economia associativa, mas que não usam tal denominação. (Ver Beyond the Market, New Economy
Publications, 1992.)
40. Steiner falava de tempos pré-‘mercado’.
41. No caso do produtor a demanda é uma demanda por dinheiro; no caso do consumidor, é uma demanda por produtos.
42. Pré-Keynes!

Nona conferência
43. Unruh, Hans Viktor von (1806-1886), político e escritor.
44. Siemens, Georg von (1839-1901) e Gwinner, Arthur von (1856-1931), ambos banqueiros.
45. Hilferding, Rudolf (1877-1943), financista e estadista.

Décima conferência
46. Forster, Friedrich Wilhelm (1869-1966), pedagogo e pacifista.
47. O espaço não permite uma abordagem mais ampla e completa desta ideia, com a qual, abertamente, a classe médica não con-
corda. No entanto, é uma observação fundamental da análise do ser humano que Steiner faz, e a analogia que proporciona para
o entendimento do organismo social humano é uma das que lhe são mais queridas.

Décima primeira conferência


48. Região da Gália e da Alemanha fundada por Clóvis e sob domínio dos reis francos de 500 a 752 d.C.
49. Isto, como é natural, não está relacionado com a filosofia política britânica, mas com o idealismo político que floresceu na Ale-
manha em meados do século XIX.
50. Eric Roll descreve a escola mercantilista como “uma fase da história da política econômica que contém uma série de medidas
econômicas destinadas a manter a unificação política e o poder nacional. A construção e o crescimento de estados-nações é co-
locada antes de qualquer outra coisa, e estratégias monetárias, protecionistas ou de outra natureza econômica são vistos como
meros instrumentos para aquele fim. A intervenção do Estado foi uma parte essencial da doutrina mercantilista. Aqueles que
eram responsáveis pelo governo aceitaram as noções mercantilistas e delinearam suas políticas de acordo com elas, porque
viram aí os meios de fortalecer os estados absolutistas tanto contra inimigos de fora quanto contra os de dentro, restos das
peculiaridades medievais”. (A History of Economic Thought, 5ª ed. Londres, Faber and Faber, 1992, p. 49.) Devemos acrescen-
tar que muitos daqueles que deram impulso às ideias mercantilistas eram também comerciantes capitalistas cujos interesses
dependiam da posterior aplicação e manutenção dessas ideias.
51. Hume, David (1711-1776), filósofo e estadista inglês.
Notas e bibliografia 137

52. Marx, Karl (1818-1883).


53. O radical em 1922 é hoje, obviamente, a norma.
54. Embora não seja colocado de forma tão direta, esta é claramente uma explicação clara do protecionismo — uma profilaxia para
o declínio, e não um estímulo ao crescimento.
55. E isto foi dito em 1922 — não em 1992!
56. Os fisiocratas — uma corrente de pensadores em Paris no século XVIII — sustinham que “a agricultura era verdadeiramente
o único setor produtivo da economia, e gerador de um ‘excedente’ sobre o qual tudo o mais dependia. A produção agrícola era
tida como única. Um agricultor podia plantar uma semente e dela colher mais tarde vinte. Um manufator, por outro lado, não
conseguiria registrar tal multiplicação do produto físico; ele basicamente alterava a forma do produto sobre o qual trabalhava”.
(A History of Economic Thought, W. J. Barber. Penguin Books, 1967, p. 19.)
57. Esta passagem lança uma luz sobre o que se está transformando num dos [...] maiores problemas [europeus] e em causa de um
grande potencial de instabilidade. A transferência do trabalho para trabalhadores ‘estrangeiros’ em lugares como a Alemanha
e a Suíça, a exigência de um tratado europeu que permitisse a livre circulação da mão de obra e as desesperadas circunstâncias
econômicas da Europa do Leste, são todos fatores que conduzem a tensões sociais extremamente profundas.
58. Note-se aqui que Steiner se refere estritamente à produção e consumo de comida. Pode dar a impressão de que aqueles que
produzem comida estão de certa forma atrás daqueles que não o fazem. Mas constata-se não ser este o caso logo ao perceber
que os produtores de comida também precisam de telefones, maquinária, educação, serviços de saúde e assim por diante. O
argumento de Steiner neste momento não é social, mas estritamente econômico.
59. É este fato que, por exemplo, financia atualmente os extensivos sistemas de saúde dos nossos dias. O problema econômico não
é a falta de abundância, mas a má e injusta distribuição da riqueza.

Décima segunda conferência


60. Spengler, Oswald (1880-1936), filósofo e historiador.
61. Conhecidos como ‘moeda provisória’ (scrip), estes esquemas foram tentados por diversas vezes durante este século, normalmente
em épocas de depressão econômica ou quando se tentam criar valores monetários localizados. Costumam ser muito eficientes
para estimular o câmbio, mas entram em conflito com o sistema bancário moderno. Todos, praticamente, acabaram em nada,
sendo suprimidos por meios legais ou ficando como experiências-piloto. Não provocaram em lugar algum qualquer efeito signi-
ficativo ou amplamente aplicável. Nem na consciência do tempo nem na maneira como a economia foi estruturada. Nos termos
de Steiner, correspondem a uma compra de dinheiro, embora lhes falte o fôlego da perspectiva — e, assim, o significado preciso
que ele dá ao termo. Não obstante, servem para demonstrar o caráter prático de tais coisas, mas também a verdadeira oposição
que encontram frente àqueles cujos interesses econômicos estão envolvidos nos sistemas financeiros atuais — por dependerem
seus lucros da manutenção dos difíceis problemas econômicos modernos, problemas com os quais estão diretamente relacionados.
62. Como consequência disto, é claro que todo o problema das balanças de pagamentos — que tanto influenciam nossas vidas
atualmente — cairá e será visto como é na realidade: um absurdo provocado pela irrealidade da economia dos estados-nações
independentes em tempos de economia mundial. Afinal, nós não nos preocupamos com folhas de pagamentos entre províncias
ou estados, departamentos ou cantões.
63. A questão das coisas encarecerem é sem dúvida o problema da inflação. Para Steiner, embora todos os governos devam ter como
objetivo libertar-se da inflação, sua persistência pode facilmente ser compreendida como uma maneira sutil de envelhecer o
dinheiro. Isto ilustra a visão de Steiner de que a natureza real da economia mundial acabará emergindo, porém de uma forma
caótica. Esse caos não se dá, no entanto, nos processos econômicos, mas na visão que nós temos dele e, consequentemente, na
maneira como nós o forçamos a se expressar.

Décima terceira conferência


64. Esta não é uma noção fantástica ou obscura. A cultura secular dos nossos dias — e certamente a ciência ‘amoral’ da economia
— não pode ser resolvida com um sermão. Mas o fenômeno a que se refere este exemplo clerical continua, assim mesmo, sendo
verdadeiro. Desde os programas “ouça música enquanto trabalha” do pós-guerra à atual transmissão permanente de música
popular nas fábricas, escritórios, prédios e em qualquer lugar de trabalho; das experiências da Volvo com o uso de cores e
pinturas no am­biente de trabalho até ao muito humilde estratagema de tomar o cafezinho, quem pode negar que o trabalho
físico em si mesmo não alimenta o ser humano? Se tudo o que ele fizer for trabalho físico, cansa-se e realiza-o cada vez pior.
Perde em produtividade, e assim os produtos encarecem. O objetivo de todas essas experiências é inspirar o ser humano, ou
pelo menos levá-lo a continuar. O trabalho manual perde eficiência quando não é alimentado culturalmente. O fim de semana,
o pagamento, as férias que se aproximam são, na verdade, instrumentos para nos fazerem seguir em frente. A verdade é que o
trabalho em si é insípido. É a cultura que se encontra nele que mantém ou aumenta a nossa produtividade, fazendo produtos
138 Rudolf Steiner

mais baratos. Por isso se diz que a cultura salva o trabalho. A ideia, é claro, levada até aos estratagemas como o da ‘redução
da jornada de trabalho’, é uma manifestação do pensamento inspirado, da programação inteligente e assim por diante. E tudo
isto é corroborado pela existência do lazer, ao menos entre as populações que dele podem desfrutar. As referências de Steiner
podem parecer antiquadas — mesmo ele deixando claro que está falando dos costumes de uma aldeia ‘primitiva’ — mas suas
afirmações não perdem por isso validade nem por isso são refutadas. O fato continua: o valor econômico da atividade liberada
[ou seja, do trabalho intelectual] consiste no trabalho que poupou.
65. Nossa interpretação das teses de Steiner deve aqui ser muito cuidadosa. Simplisticamente, poder-se-ia pensar que com ‘trabalho
na terra’ ele se refere somente a trabalho agrícola. Pensar assim acarreta o risco de considerar o agricultor ou a comunidade
agrícola num estatuto de ‘caso especial’ que o colocará num posto diferenciado do resto da sociedade ou o desculpará das exi-
gências da vida econômica. Não acredito que nenhuma dessas interpretações, seja na teoria ou na prática, fosse a pretendida
por Steiner. Num nível mais técnico, sugerir a primazia da agricultura é, para Steiner, preferir a economia agrária ao moneta-
rismo, falar de trigo em vez de ouro. Não obstante a décima quarta conferência (ver nota 72), tudo o que ele diz ao longo destas
conferências contradiz esta interpretação. Steiner procura resolver o contraste entre o trigo e o ouro. Com essa finalidade, a
agricultura (a categoria econômica, não o agricultor) é vista por Steiner num contexto específico, fora do processo de troca como
tal — uma dádiva para este, na verdade. Pela mesma razão, a inteligência também é uma dádiva. Tratar a agricultura como
ela deveria ser tratada economicamente — isto é, como algo externo ao processo econômico — não é a mesma coisa que dar à
comunidade agrícola um status especial, que na verdade é um tipo de fisiocracia tardia (ver décima primeira conferência).

Décima quarta conferência


66. Atenção, leitor! É claro que existem atualmente estratégias que pretendem resolver determinados problemas econômicos dividindo
uma fazenda ou, digamos, uma floresta em pequenas áreas — cada uma vendida ou possuída por um indivíduo. Estes planos
podem parecer ser aquilo que Steiner tinha em mente. Mas serão? A visão da terra dividida entre todos os homens que dela
dependem é uma visão ideal. Carrega consigo uma série de outras noções quanto à forma como se tem a propriedade da terra,
o acesso ao capital, a locação dos meios de produção, etc. E é uma visão que remonta a épocas anteriores àquela da divisão do
trabalho. Devemos tomar distância desta base — precisamos fazer isso se estivermos querendo falar das circunstâncias atuais,
onde coisas mais sutis devem ser colocadas, algo menos rústico e evocativo dos dias passados — algo mais técnico, mais acorde
com a denominação do dinheiro, e uma retomada radical da propriedade da terra mais do que um mero remendo de coisas que,
no fim das contas, continuam a pertencer ao aspecto externo do capitalismo, mas não ao esquema mundial das coisas.
67. Não deixe esta nota passar em branco. Refere-se ao texto primordial de Aristóteles, o ‘avô da economia’ — avô porque os eco-
nomistas modernos tendem a se colocar dentro do período ‘científico’ — sobre economia. A julgar pela pouca importância que
é dada atualmente a Aristóteles, a economia tem bastante dificuldade em encontrar ancestrais na Antiguidade. No entanto,
mesmo que alguém não consiga ver o nascimento do pensamento econômico em tempos tão remotos, alguma deferência devemos
dar nesta nota a Aristóteles e às suas observações. Na Ética a Nicômaco (Livro 5, cap. 5), em especial, ele nos diz, da mesma
maneira que Steiner faz, por que “tudo ultimamente tem valor pelo consumo, isto é, pela demanda”. Até mesmo Marx se referiu
a esta passagem em O capital, embora eu tema que não tenha entendido, ou que alguém o tenha levado a apontar na direção
contrária. A relação entre o enfoque que Steiner dá à economia e a tese de Aristóteles é descrita em detalhes em Rudolf Steiner
and Aristotle, Fellow Economists, New Economy Publications.
68. Na nota 64 eu disse que Steiner defendia um padrão-trigo [ou padrão natural]! Disto continuo convencido. A economia fundada
na terra não implica um padrão-trigo, mas um continuum técnico na metamorfose do dinheiro, desde sua forma primitiva até
à sofisticação da qual fala Steiner. Reconheço existir quem possa dizer que desta forma contradigo Steiner, dizendo que ele
pretendia coisas das quais nunca falou. Deixo a cargo do leitor o julgamento, mas no meu entender as observações de Steiner,
no fim do curso, sobre a natureza da moeda — quando lidas literalmente — nem dão razão nem deixam de dar ao anterior
desenvolvimento da sua tese. Na Sexta Discussão*, quando indagado sobre as bases da moeda, ele não falou claramente da sua
natureza, mas sobre contabilidade. A questão é que a contabilidade (dinheiro) mundial precisa manter-se em contato com a
economia baseada na terra. A questão é como. Embora se tenda a pensar que trigo e ouro são opostos, como é que determina-
mos o valor do ouro? Ajudados pela onça de Troy, uma antiga medida que marca a equivalência entre uma onça de ouro e 480
gramas de trigo! Falei de tudo isto em Of Wheat and Gold (New Economy Publications, 1988), livro do qual falo aqui não para
promover suas vendas, mas porque através de suas páginas tentei dar um acabamento ao que para mim foi uma pouco feliz
conclusão da linha de pensamento de Steiner. Na verdade, suspeito que tenham sido considerações apressadas que Steiner,
caso tivesse tido tempo para isso, teria modificado e reescrito de maneira diferente. Como eu disse, fica a critério do leitor!

* Conforme mencionado no preâmbulo a estas notas, as discussões (em número de seis) realizadas após algumas confe-
rências não estão incluídas no presente volume. (N.E.)
Ilustrações

Figura 2

azul vermelho
vermelho roxo

Figura 1
valor 1 valor 2

Preço

capital
al
pi t o
do c ans um
co

Figura 4

espírito
natureza trabalho
capital
em
pre
r
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Figura3
a tra
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meios de
produção

espírito

Figura 5

me trabalho
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Figura 6

Figura 7

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