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Repetição

que é isto – a repetição?

CORPO FREUDIANO DO RIO DE JANEIRO– ESCOLA DE PSICANÁLISE –


NÚCLEO NOVA FRIBURGO
FORMAÇÃO BÁSICA EM PSICANÁLISE – QUARTO MÓDULO
QUE É ISTO — A REPETIÇÃO?

O conceito é uma indicação histórica


que não indica o presente,
como é próprio de um conceito,
porém, apenas o
historicamente terminado.

S
Kierkegaard

ervindo-me do questionamento heideggeriano na sua busca de encontrar o significado de


filosofia, obviamente não levando adiante essa indagação nos termos do próprio Heidegger, inicio o
presente texto indagando o que é a repetição segundo o encaminhamento freudiano, indubitavelmente,
sem me desviar da óptica lacaniana, o que seria mesmo impossível.
Assim, justificado está o tema deste trabalho.
Que é isto — a Repetição? Qual o conceito freudiano de Repetição?
Reportemo-nos, antes, por um instante, a um universo mítico, do era uma vez, enfim, do faz-de-
conta. Fazer de conta é divino!
Façamos de conta, pois, que habitamos um mundo sem linguagem. Que espécie de universo seria
esse?
No princípio, era o silêncio... Foi nesse silêncio que um citado profeta bíblico encontrou a Deus.
Por que essa digressão? Tão somente como ênfase que se opõe ao que a Psicanálise é. Lacan nos coloca
a impossibilidade de haver psicanálise nos termos de uma “quietude mental”, ou de uma “meditação
completa”. E faz menção aos chamados “estados de conhecimento” presentes desde Platão a fim de
alertar para o fato de que em Freud tais estados não exercem nenhuma função em sua práxis e acrescenta
ipsis literis: ele prefere a isso o discurso da histérica.
Nesse sentido, não há silêncio psicanalítico, porque a linguagem do Inconsciente é atemporal. A
psicanálise nada tem a ver com místicas, espiritualidades ou mesmo qualquer outra coisa que apenas
possa se esbarrar com essas categorias.
A ausência, pois, de linguagem nos transformaria em deuses. E por quê? Conforme registrado
em gênesis, em seu primeiro verso de seu primeiro capítulo, diz-se: Deus criou os céus e a terra. E em
outra passagem, se lê: “Sem discurso nem palavras ou sem linguagem ou fala, não se ouve a sua voz”.
É a linguagem pois que nos faz humanos. Acertadamente, definiu Lacan o homem como um ser
de linguagem. Somos uma construção linguística. Somos um significante-efeito de um significante-
princeps.

 Afasia e Linguagem:
Em um primeiro tempo, denominado de pré-psicanalítico, a partir de suas observações clínicas,
Freud se dedica ao estudo sobre a afasia, cuja origem vem do grego phanai, “falar”, phasis, “palavra” e o
prefixo negativo “a”, significando, portanto, nos limites da literalidade, “incapacidade para a fala”.
Seria, no entanto, possível ausentar-se a linguagem de entre os humanos? O presente tópico se
propõe a responder a problemática entre afasia e linguagem.
A obra de Freud sobre as afasias de 1891, é fundamental levar em alta conta visto tratar-se, como
é de todos cediço, de um estudo precursor das pesquisas dos linguistas do século XX.
Nessa obra, Freud, além de criticar as teorias existentes à época, desenvolveu sua teoria sobre o
aparelho da linguagem, indo de encontro às chamadas patologias da linguagem, ressaltando que tais
distúrbios ocorreriam também em pessoas ditas “normais”.
A patologia, portanto, associada aos fenômenos da linguagem não somente decorreria de lesões
cerebrais, como também, estaria atrelada ao cansaço ou outra circunstância qualquer de ordem
emocional.
O que é pacífico em Freud é a recusa de patologização absoluta da afasia, devendo ser o discurso
afásico considerado, principalmente, como a subversão do discurso bem-formado (NASSIF, citado por
Roza).
Em inúmeras passagens do texto sobre a Afasia, encontra-se a afirmação de que o aparelho de
linguagem, posteriormente, denominado aparelho psíquico, não está pronto quando do nascimento
humano, sendo algo que será construído pela aprendizagem.
Assim, a linguagem se adquire e o aparelho de linguagem se constrói, não sendo,
consequentemente, a primeira, uma herança genética, porém, cultural e que por essa razão terá que ser
aprendida; e o segundo, ou seja, o aparelho, não consiste meramente em uma estrutura dada, definitiva,
pela natureza, e, sim, em elementos que vão sendo formados e aprimorados na articulação com outros
aparelhos de linguagem.
Freud denominou de parafasia — literalmente, mudança de palavra —, o que ocorre quando há
uma troca de palavras, a substituição de uma palavra adequada por uma inadequada, porém mantendo
com a outra uma certa relação: lápis por pena; troca de p por b.
Tal ocorrência, longe de ser circunscrita em um âmbito topológico, cunhada de lesão cerebral, é
concebida por Freud como sendo efeito de um mau funcionamento do aparelho de linguagem, e se trata
de uma eventualidade possível a qualquer ser humano.
De resto, ele concebeu a parafasia como um resíduo, um resto de linguagem, algo que se repete
como resíduo da inscrição de traços mnêmicos (FREUD, citado por Roza).

 Repetição e linguagem:
O que faz com que haja a repetição? Por que repetimos? O que se repete no ato da repetição?
No princípio era a Palavra...
A repetição se dá simultaneamente à criação pela linguagem.
Há na sequência descritiva decorrente do dizer divino, algo no “entre-dito” que se repete: a
temporalidade.

“Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o primeiro dia.


Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o segundo dia.
Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o terceiro dia.
Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o quarto dia.
Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o quinto dia.
Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o sexto dia.”

Portanto, na condição de nossa temporalidade, ocorre a repetição.


É porque um dia fomos lançados na escuridão, sem forma e vazios e, posteriormente, cortados
pelo significante primário, não é possível ao homem uma criação ex-nihilo da linguagem e, sim, a repetição
desta: ex nihilo nihil fit.
Por outro lado, diversamente de Deus que, no sétimo dia, descansou, a humana repetição,
conforme Freud, é, em última instância, o encontro com a morte — o retorno ao inanimado, a volta ao
princípio.
Erra uma vez duas vezes até esse erro
nunca cometo o já cometo duas três aprender
mesmo erro quatro cinco seis que só o erro tem vez

No poema citado acima de Paulo Leminsk, o que importa para o nosso discurso é a expressão
“até esse erro aprender”, o que nos remete a Lacan quando, em seu texto a “Subversão do sujeito e a
dialética do desejo no inconsciente freudiano”, ele afirma que verdade e saber são categorias que se
autoexcluem, uma vez que a verdade, opostamente, à tradição filosófica, não é condição de avaliação do
saber, encontrando-se em outro lugar.
Portanto, para Lacan, hão há saber que seja transpassado por uma verdade, há um saber e trata-
se, preponderantemente, de “um saber que não sabe que sabe”. Há o saber. E o lugar da verdade não é
no saber. Ela está em outro lugar. De maneira tal que tanto o erro quanto a verdade constituem saberes.
Há, também, segundo Lacan, fala plena e fala vazia. Sobre isso, todavia, apenas um parêntese para
destacar que, na Psicanálise, fica suspenso todo o juízo moral.
Dessa forma, pode-se aludir à repetição enquanto saber do insabível. O que se repete, ou seja,
qual o objeto da repetição, subsume-se às leis do significante: a metáfora/substituição e a
metonímia/deslocamento. O sujeito não pode saber, considerando que a Tiquê/sorte/fortuna/destino
se encarrega da verdade de seu corpo, nos termos da declaração freudiana: “A anatomia é o destino. ”
Não há, por conseguinte, escolha entre ser e não-ser. Não há ser. Há nada. Lacanianamente, há um
pedaço de carne. Relevante, lembrar que, segundo registra Houaiss, nada, em latim tardio, quer dizer
“coisa-nascida”. O que há é a disformidade. Há a niilidade. Há a escuridade. Há o silêncio. Há a solitude.
Em Freud, portanto, a repetição se impõe, não como uma necessidade que, mediada pelo
significante, se transmudaria em demanda, onde, por sua vez, o desejo se instalaria, indefinidamente,
sem nenhuma conformação. Tal e qual um autômaton, o caminho do homem se repete, impulsionado
pela pulsão de morte.
Vale trazer à memória que Tiquê/Necessidade e Autômaton/Acaso são categorias aristotélicas
subvertidas por Lacan, lembrando que, inobstante associadas ambas ao Acaso, a Tiquê pressupõe uma
causa oculta atribuída pelos gregos a uma entidade divina, enquanto Autômaton — "aquilo que se move
por si mesmo”/espontaneidade — vincula-se ao incausado, é propriamente o acidental, o Acaso. Em
Lacan, só a título de lembrança, não tendo o propósito de desenvolver o tema, a Tiquê traduzir-se-ia
como “encontro do real”, acrescentando tratar-se do inassimilável, e o Autômaton, encontrar-se-ia na
dimensão do Simbólico. Para Lacan, pois, a Tiquê não mais é definida como a necessidade, algo
predeterminado, contudo, como algo que se repete – aquilo que se produz como por acaso —, e o
Autômaton passa a ser concebido não mais por sua excepcionalidade de acaso, todavia, em função da
insistência dos signos.

Do erro
nosso destino é o erro outra vez de vez em vez
sempre o mesmo faz o sentido
de novo e do acerto © Débora Tavares

Porque a insistência no erro? Porque sempre o que se repete é o mesmo erro.

 Repetir — Recordar? Reproduzir? Retornar?


 Repetir não é recordar —
 Recordar é reproduzir, na forma de uma lembrança, uma experiência vivida; é um trazer
à memória o que se fez possível; através de uma leitura literal da palavra de trás para a
frente: dar cor ao passado”.
 Repetir não é reproduzir —
 Reproduzir é composta do prefixo latino “re” (movimento que se repete ou movimento
para trás), do prefixo latino “per + o” (preposição latina, movimento para a frente) e da
expressão “duzir” do verbo latim ducere (guiar, comandar, levar). Em razão da polissemia
da palavra reproduzir, faz-se necessário trazê-la para o âmbito aqui tratado em seu sentido
de retroação, cujo efeito, no entanto, reverbera para frente. Poder-se-ia pensar reproduzir
como um movimento de volta ao passado que sobre ele não atua, todavia, o faz atuante
no presente como passado. Reproduzir: “Olhando para trás e supostamente indo
adiante”.

 Repetir não é retornar —


 Repetir não é o retorno do mesmo, até porque este não se repete, pois em assim
ocorrendo, deixaria de ser o mesmo.
 Parafraseando Heráclito:
 Não se pode viver mais de uma vez a mesma situação.
 Parafraseando Hegel:
 Existem muitos mesmos no mesmo. Quando se registra o ato, seja consciente ou
inconscientemente, ele jamais retornará como o mesmo. Tanto o recordar quanto
o repetir são atos mediados, respectivamente, pela memória e pela ação. O
analisando não recorda em absoluto o que foi esquecido e recalcado. O
analisando atua/torna atual, repete em ato o esquecido e o recalcado, não
reproduzindo como lembrança. Exemplo: o analisando não se lembra de...,
porém repete na sua relação com o analista, ou o seu modo de ser ou o seu
fracasso ou os seus sentimentos, ad nauseam.
O substantivo Re-petição, por sua vez, compreende o prefixo latino re (movimento que se repete
ou movimento para trás) e a palavra “petição” que provém do verbo latim petere: pedir, buscar, solicitar.
A repetição seria, assim, um pedido nunca acolhido, uma demanda que insiste? Repetir — tornar
a pedir: “Quem não sabe pedir pede sempre porque pede mal.”

 O fenômeno da Repetição que Lacan assinala em seu seminário XI, como um


“desembrulhar”, um desdobrar-se infinito, é possível dar conta dele, a princípio, as suas
preliminares, com Freud, na forma de um re-fazer, um re-dizer, um re-pensar:
 Repetir: Ai, meu Deus, fiz isso de novo!
# Fazer de novo, não que signifique seja esse ato precedido por um “apagamento” do
existente, contudo, no sentido de perpetuamento do ato (manutenção do ato pela
repetição); um voltar a fazer o já feito, evidenciando um automatismo.
 Repetir: Ai, meu Deus, ele só fala nisso!
# Dizer de novo — o dito — na forma de um discurso vazio, uma espécie de verborragia.
Segundo Lacan, esse também seria o falso discurso.
 Repetir: Ai, meu Deus, ele só pensa naquilo!
# Pensar de novo, no sentido de mantença de uma ideia, embora se revista de inúmeras
representações, revelando uma obsessão.
A ação de repetir reverbera uma necessidade, um desejo, um pedido, uma demanda não
satisfeita... Repetência, etimologicamente, memória, lembrança, recordação.
Repetir é trazer de novo à memória o vivido, entretanto, como já exposto, “esse trazer à memória”
não se manifestaria como reprodução nem como recordação, muito menos, como lembrança. Repetir é
atuar — tornar em ato — o esquecido e o recalcado sem o saber. A repetição é a linguagem do inconsciente.
Tratar-se-ia de um dizer nas entrelinhas. Assim, o que importa nesse trazer não é o que foi
trazido/lembrado, porém, a memória em si, o ato mesmo de lembrar enquanto significante. Freud ao se
referir à histeria, declarou que é de reminiscências que se sofre. É no corpo, pois, que se inscreve a
memória, não na consciência.
Uma digressão: a memória — um tema complexo, objeto de inesgotáveis teorizações freudianas,
me reporta às Confissões de Santo Agostinho, pág. 245-247, quando, ao descrevê-la, lhe fazendo alusão
como “sinuosidades secretas e inefáveis”, afirma: “(...) jaz aí (na memória) tudo o que se lhes entregou e
depôs, se é que o esquecimento não absorveu e sepultou”. Poeticamente, Santo Agostinho fala da
rendição à memória, agora, comparada a vastos campos e palácios, dos objetos, enquanto imagens,
captados pelos sentidos, ou seja, das experiências vividas que atravessam o sujeito, deixando-lhe marcas
indeléveis.
Faz-se necessário salientar que Sigmund Freud estabeleceu desde o início de suas pesquisas os
conceitos de compulsão e repetição a fim de sustentar as suas descobertas sobre o inconsciente que, em
razão de ser um fenômeno indomesticável, constrange o sujeito a levar sempre adiante um passado —
atos, falas, pensamentos ou sonhos — cujas raízes modeladas no solo do sofrimento, tendem
perpetuamente a se reproduzir como espinhos e abrolhos.
A compulsão à repetição é o que, hipoteticamente, segundo Roudinesco, se coloca ao lado da
pulsão de morte.

Referências:
 FREUD, Sigmund. (1914). "Recordar, repetir e elaborar ". Tradução e notas de Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia da Letras, 2010, v. X, 193 p.
 GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Afasias. 1. ed. Rio de janeiro: Zahar, 2014.
 HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2009.
 Bíblia. Português. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. São Paulo:
Sociedade Bíblica do Brasil, 2000.
 LACAN, Jacques. (191). Escritos. (1966). Digitalizado para PDF em fevereiro de 2017. Subversão
do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, VII cap., 793 p. Tradução de Vera
Ribeiro. Jorge Zahar ed., 1998.
 ROUDINESCO, Elisabeth, 1944. Dicionário de psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro. Zahar, 1998.
 LACAN, J. Tiquê e Autômaton, V cap., 59 p. O seminário, livro 11. Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise. Reimpressão de 2008. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

A reprodução proibida – René Magritte – 1937 – Bélgica - A imagem da repetição

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