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S
Kierkegaard
Afasia e Linguagem:
Em um primeiro tempo, denominado de pré-psicanalítico, a partir de suas observações clínicas,
Freud se dedica ao estudo sobre a afasia, cuja origem vem do grego phanai, “falar”, phasis, “palavra” e o
prefixo negativo “a”, significando, portanto, nos limites da literalidade, “incapacidade para a fala”.
Seria, no entanto, possível ausentar-se a linguagem de entre os humanos? O presente tópico se
propõe a responder a problemática entre afasia e linguagem.
A obra de Freud sobre as afasias de 1891, é fundamental levar em alta conta visto tratar-se, como
é de todos cediço, de um estudo precursor das pesquisas dos linguistas do século XX.
Nessa obra, Freud, além de criticar as teorias existentes à época, desenvolveu sua teoria sobre o
aparelho da linguagem, indo de encontro às chamadas patologias da linguagem, ressaltando que tais
distúrbios ocorreriam também em pessoas ditas “normais”.
A patologia, portanto, associada aos fenômenos da linguagem não somente decorreria de lesões
cerebrais, como também, estaria atrelada ao cansaço ou outra circunstância qualquer de ordem
emocional.
O que é pacífico em Freud é a recusa de patologização absoluta da afasia, devendo ser o discurso
afásico considerado, principalmente, como a subversão do discurso bem-formado (NASSIF, citado por
Roza).
Em inúmeras passagens do texto sobre a Afasia, encontra-se a afirmação de que o aparelho de
linguagem, posteriormente, denominado aparelho psíquico, não está pronto quando do nascimento
humano, sendo algo que será construído pela aprendizagem.
Assim, a linguagem se adquire e o aparelho de linguagem se constrói, não sendo,
consequentemente, a primeira, uma herança genética, porém, cultural e que por essa razão terá que ser
aprendida; e o segundo, ou seja, o aparelho, não consiste meramente em uma estrutura dada, definitiva,
pela natureza, e, sim, em elementos que vão sendo formados e aprimorados na articulação com outros
aparelhos de linguagem.
Freud denominou de parafasia — literalmente, mudança de palavra —, o que ocorre quando há
uma troca de palavras, a substituição de uma palavra adequada por uma inadequada, porém mantendo
com a outra uma certa relação: lápis por pena; troca de p por b.
Tal ocorrência, longe de ser circunscrita em um âmbito topológico, cunhada de lesão cerebral, é
concebida por Freud como sendo efeito de um mau funcionamento do aparelho de linguagem, e se trata
de uma eventualidade possível a qualquer ser humano.
De resto, ele concebeu a parafasia como um resíduo, um resto de linguagem, algo que se repete
como resíduo da inscrição de traços mnêmicos (FREUD, citado por Roza).
Repetição e linguagem:
O que faz com que haja a repetição? Por que repetimos? O que se repete no ato da repetição?
No princípio era a Palavra...
A repetição se dá simultaneamente à criação pela linguagem.
Há na sequência descritiva decorrente do dizer divino, algo no “entre-dito” que se repete: a
temporalidade.
No poema citado acima de Paulo Leminsk, o que importa para o nosso discurso é a expressão
“até esse erro aprender”, o que nos remete a Lacan quando, em seu texto a “Subversão do sujeito e a
dialética do desejo no inconsciente freudiano”, ele afirma que verdade e saber são categorias que se
autoexcluem, uma vez que a verdade, opostamente, à tradição filosófica, não é condição de avaliação do
saber, encontrando-se em outro lugar.
Portanto, para Lacan, hão há saber que seja transpassado por uma verdade, há um saber e trata-
se, preponderantemente, de “um saber que não sabe que sabe”. Há o saber. E o lugar da verdade não é
no saber. Ela está em outro lugar. De maneira tal que tanto o erro quanto a verdade constituem saberes.
Há, também, segundo Lacan, fala plena e fala vazia. Sobre isso, todavia, apenas um parêntese para
destacar que, na Psicanálise, fica suspenso todo o juízo moral.
Dessa forma, pode-se aludir à repetição enquanto saber do insabível. O que se repete, ou seja,
qual o objeto da repetição, subsume-se às leis do significante: a metáfora/substituição e a
metonímia/deslocamento. O sujeito não pode saber, considerando que a Tiquê/sorte/fortuna/destino
se encarrega da verdade de seu corpo, nos termos da declaração freudiana: “A anatomia é o destino. ”
Não há, por conseguinte, escolha entre ser e não-ser. Não há ser. Há nada. Lacanianamente, há um
pedaço de carne. Relevante, lembrar que, segundo registra Houaiss, nada, em latim tardio, quer dizer
“coisa-nascida”. O que há é a disformidade. Há a niilidade. Há a escuridade. Há o silêncio. Há a solitude.
Em Freud, portanto, a repetição se impõe, não como uma necessidade que, mediada pelo
significante, se transmudaria em demanda, onde, por sua vez, o desejo se instalaria, indefinidamente,
sem nenhuma conformação. Tal e qual um autômaton, o caminho do homem se repete, impulsionado
pela pulsão de morte.
Vale trazer à memória que Tiquê/Necessidade e Autômaton/Acaso são categorias aristotélicas
subvertidas por Lacan, lembrando que, inobstante associadas ambas ao Acaso, a Tiquê pressupõe uma
causa oculta atribuída pelos gregos a uma entidade divina, enquanto Autômaton — "aquilo que se move
por si mesmo”/espontaneidade — vincula-se ao incausado, é propriamente o acidental, o Acaso. Em
Lacan, só a título de lembrança, não tendo o propósito de desenvolver o tema, a Tiquê traduzir-se-ia
como “encontro do real”, acrescentando tratar-se do inassimilável, e o Autômaton, encontrar-se-ia na
dimensão do Simbólico. Para Lacan, pois, a Tiquê não mais é definida como a necessidade, algo
predeterminado, contudo, como algo que se repete – aquilo que se produz como por acaso —, e o
Autômaton passa a ser concebido não mais por sua excepcionalidade de acaso, todavia, em função da
insistência dos signos.
Do erro
nosso destino é o erro outra vez de vez em vez
sempre o mesmo faz o sentido
de novo e do acerto © Débora Tavares
Referências:
FREUD, Sigmund. (1914). "Recordar, repetir e elaborar ". Tradução e notas de Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia da Letras, 2010, v. X, 193 p.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Afasias. 1. ed. Rio de janeiro: Zahar, 2014.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2009.
Bíblia. Português. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. São Paulo:
Sociedade Bíblica do Brasil, 2000.
LACAN, Jacques. (191). Escritos. (1966). Digitalizado para PDF em fevereiro de 2017. Subversão
do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, VII cap., 793 p. Tradução de Vera
Ribeiro. Jorge Zahar ed., 1998.
ROUDINESCO, Elisabeth, 1944. Dicionário de psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro. Zahar, 1998.
LACAN, J. Tiquê e Autômaton, V cap., 59 p. O seminário, livro 11. Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise. Reimpressão de 2008. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.