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REFLEXÃO / REFLECTION / REFLECIONE

A significação do público e do privado – A concepção clássica de


Rousseau e concepção moderna Habermas
The private and public meaning – Rousseau’s classic conception and Habermas’ modern conception
La significación del público y del privado – la concepción clásica de Rousseau y concepción moderna
Habermas

Marcelo Martins Eulálio RESUMO


Mestre em Políticas Públicas
Especialista em Direito Constitucional Trata-se de um artigo cujo propósito é apresentar um estudo comparativo entre a concepção e
Especialista em Bioética evolução das relações jurídicas de natureza pública e privada, consubstanciada no pensamento de
mmeulalio@yahoo.com.br Rousseau - na sua obra O contrato social-, e aquela preconizada por Habermas, na obra Mudança
estrutural da esfera pública. Em Rousseau, a ordem social funda-se em convenção e esta convenção
surge da necessidade de conservação do homem. A liberdade natural cede lugar para liberdade civil.
Da aquisição da liberdade civil decorrem a propriedade, a liberdade moral a igualdade e a noção
de público e privado. A relação entre soberano e corpo político é baseada no interesse público. O
público é a pólis, o coletivo, o corpo político. Habermas introduz outra noção de esfera pública, visto
como local de disputa entre os princípios divergentes de organização da sociabilidade. A esfera
pública é o lugar de deliberação e mediação entre a sociedade civil e o Poder Público. O setor pri-
vado é uma esfera pública de pessoas privadas. Compreende a sociedade civil. O Estado é o “poder
público”. Ele deve o atributo de ser público à sua tarefa de promover o bem público, o bem comum
a todos os cidadãos.
Descritores: Estado. Sociedade civil. Público. Privado.

ABSTRACT

This article aims at presenting a comparative study between the legal relations’ conception and
evolution in public and private nature, based on Rousseau-in his book The social contract, that ad-
vocated by Habermas, on the book The structural change of the public sphere. In Rousseau, the
social order bases on the convention and this one comes from the need for man’s conservation.
Liberty natural cedes place to civil liberties. From acquisition of civil liberty arising the property, the
moral equality, the liberty and the notion of public and private. The relation between sovereign and
body politic is based on the public interest. The public is the Polis, the collective, the body politic.
Habermas introduces another concept of public sphere as a place of dispute between the divergent
principles of sociability’s organization. The public sphere is the place of deliberation and mediation
between civil society and Public Authorities. The private sector is a public sphere of private persons.
Includes civil society. The State is the “public authority”. Its public attribute comes from its task of
promoting the public well being, the common one to all citizens.
Descriptors: State. Civil society. Public. Private.

RESUMEN

Se trata de un artículo cuyo propósito es presentar un estudio comparativo entre la concepción


y el desarrollo de las relaciones jurídicas de orden pública y privada, consubstanciada en el pen-
samiento de Rousseau- en su obra El contrato social-,y aquélla preconizada por Habermas, en la
obra Cambio estructural en la esfera pública. En Rousseau, el orden social se basa en convención y
esta convención surge de la necesidad de conservación del hombre. La libertad natural cede lugar
Submissão: 30/10/2009 a la libertad civil. De la adquisición de la libertad civil resultan la propiedad, la libertad moral, la
Aprovação: 30/11/2009 igualdad y la noción de público y privado. La relación entre soberano y cuerpo político es basada

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en el interés público. Lo público es la polis, lo colectivo, el cuerpo político. Rousseau inicia sua teoria afirmando que a ordem social é um direi-
Habermas introduce otra noción de esfera pública, vista como local de to sagrado, que não advém da natureza e funda-se em convenções. Rous-
disputa entre los principios divergentes de organización de la sociabilidad. seau remonta à mais antiga de todas as sociedades que é a família (pri-
La esfera pública es el lugar de deliberación y mediación entre la sociedad meiro modelo de sociedade política) e afirma que até mesmo esta só se
civil y el Poder Público. El sector privado es una esfera pública de personas mantém por convenção. Nesse sentido, sustenta Jean-Jacques Rousseau:
privadas. Abarca la sociedad civil. El Estado es el “poder público”. Él debe A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a da família. Ainda
el atributo de ser público a su tarea de promover el bien público, el bien assim, os filhos só permanecem ligados ao pai enquanto necessitam dele
para a própria conservação. Assim que essa necessidade cessa, dissolve-se
común a todos los ciudadanos. o vínculo natural. Isentos os filhos da obediência que deviam ao pai, isento
Descriptores: Estado, Sociedad civil, Público, Privado. o pai dos cuidados que devia aos filhos, voltam todos a ser igualmente inde-
pendentes. Se continuam unidos, já não é de maneira natural, mas voluntária,
e a própria família só se mantém por convenção (2006, p. 10).

1 INTRODUÇÃO Com esse argumento Rousseau (2006, p.20), busca justificar a ne-
cessidade do pacto social para a existência perene da sociedade e questio-
O presente artigo tem como finalidade caracterizar a concepção na: o que legitima esta força capaz de unir as pessoas, ou por outras pala-
e evolução das relações jurídicas de natureza pública e privada, consubs- vras, o que legitima o poder? Rousseau enuncia o problema fundamental
tanciadas no pensamento de Rousseau - na sua obra O contrato social-, para o tipo ideal de Estado, cuja solução é fornecida pelo contrato social,
com aquela encetada por Habermas, na obra Mudança estrutural da esfera tal como está posto neste trecho: “[...] Encontrar uma forma de associação
pública. que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de
Rousseau procura delimitar o público e o privado com base nos cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos só obedeça, con-
fundamentos e objetivos do pacto social. Habermas, com o objetivo de tudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes”.
delimitar o que é público e o que é privado, parte da análise histórica e Na teoria rousseauniana o cidadão deve ceder sua liberdade natu-
sociológica do tipo “esfera pública burguesa”. A investigação de Habermas ral para a liberdade convencional. O que o homem perde pelo contrato
limita-se à estrutura e função do modelo liberal da esfera pública burgue- social é a liberdade natural e ganha a liberdade civil e a propriedade de
sa, à sua origem e evolução. Estiliza os elementos liberais da esfera pública tudo o que possui. A liberdade natural tem por limites apenas as forças
burguesa e suas transformações socioestatais. do indivíduo e a liberdade civil é limitada pela vontade geral. A alienação
É importante observar que os autores analisam as categorias “pu- deve ser total, sem reservas, de cada associado, com todos os seus direitos,
blico” e “privado” a partir de contextos históricos distintos. Rousseau, um a toda a comunidade. Sendo assim, a condição é igual para todos e nin-
dos principais filósofos do século XVIII, conhecido como “Século das Lu- guém tem interesse em torná-la onerosa para os demais.
zes”, nasceu em Genebra (Suíça), em 28 de junho de 1712. Rousseau tes- Então, para que o pacto social alcance seu desiderato, ceder à força
temunhou o período do movimento iluminista vivido em toda a Europa, é um ato de necessidade, e não de vontade. Para o contratualista, nenhum
que tinha por objetivo promover a luta da “razão” contra a autoridade do homem tem autoridade natural sobre seu semelhante. A força não produz
Antigo Regime. Essa luta teve como marco histórico a Revolução Francesa direito algum.
(1789), que deu início ao processo de ruptura com o regime autoritário Para Jean-Jacques Rousseau (2006), o que há de singular nessa alie-
do passado e abriu caminho para as Revoluções Burguesas do final do nação é que, aceitando os bens dos particulares, a comunidade, longe de
século XVIII ao século XIX. É nesse contexto histórico que Rousseau, em despojá-los, só faz assegurar-lhes a posse legítima, a propriedade, transfor-
O Contrato Social, procura delimitar o público e o privado com base nos mando a usurpação (típica da liberdade natural) num verdadeiro direito e
fundamentos e objetivos do pacto social. a função em propriedade (típica na associação – liberdade civil). O direito
Jürgen Habermas, sociólogo e filósofo alemão, nasceu em 18 de de cada particular sobre seus próprios bens está sempre subordinado ao
junho de 1929, na cidade de Düsseldorf, Alemanha. Habermas foi defensor direito da comunidade sobre todos, sem o que não teria solidez o vínculo
de ideias construtivas e emancipatórias do Iluminismo, privilegiando o uso social, nem força real o exercício da soberania. Essa formatação de Estado,
da razão e da lógica como instrumentos de superação. Tinha apenas 15 fundado num pacto legítimo, propicia o surgimento do Direito Público.
(quinze) anos quando a Alemanha perdeu a guerra para os Aliados em O Estado, perante seus membros, é senhor de todos os seus bens
1945. Ele serviu a Juventude Hitler e foi enviado para defender a frente pelo contrato social, que no Estado serve de base para todos os direitos.
ocidental durante os últimos meses de guerra. Seu pai foi simpatizante O ato de associação produz um corpo moral e coletivo. Essa pessoa pú-
do nazismo passivo. Os julgamentos de Nuremberg e os documentários blica (corpo político) é chamado por seus membros de Estado quando
alusivos aos crimes praticados em campos de concentração influenciaram passivo, soberano quando ativo e Potência quando comparado aos seus
sobremaneira o modo de pensar de Habermas. É um dos sociólogos e semelhantes. O ato de associação, para Rousseau, encerra um compro-
filósofos contemporâneos mais conhecidos do século XX. misso recíproco do público com os particulares (privado). Nessa linha de
raciocínio, afirma esse pensador clássico: “[...] cada indivíduo, contratando,
2 O PÚBLICO E O PRIVADO EM ROUSSEAU por assim dizer, consigo mesmo, acha-se comprometido numa dupla re-
lação, a saber: como membro do Estado em face dos particulares e como
O Contrato Social procura retratar a base de uma ordem política membro do Estado em face do soberano” (2006, p. 23).
legítima ao estabelecer as condições e possibilidades de um pacto que Cada indivíduo pode como homem, ter uma vontade particular
viabilize aos homens a troca da liberdade natural pela liberdade civil. A oposto ou diversa da vontade geral que tem como cidadão. Seu interesse
legitimação desse pacto assenta-se no princípio da igualdade das partes particular pode ser muito diferente do interesse comum. A passagem do
contratantes. estado de natureza ao estado civil produz no homem uma mudança con-

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siderável, substituindo em sua conduta o instinto pela justiça e conferindo concorrentes. Daí, a definição e constituição de um espaço público para
às suas ações a moralidade que antes lhes faltava (ROUSSEAU, 2006, p. 25). decidir sobre questões relativas à coletividade, do qual todos possam par-
O contrato social, em vez de destruir a “igualdade natural”, substitui ticipar, é a questão que permeia a obra de Jürgen Habermas. Este, através
por uma igualdade moral e legítima aquilo que a natureza poderia trazer de uma análise sociológica e histórica, procura definir a esfera pública bur-
de desigualdade física entre os homens e, podendo ser desiguais em força guesa como categoria social que emerge da sociedade capitalista. A aná-
ou em talento, todos se tornam iguais por convenção e direito (ROUSSE- lise desse pensador clássico centra-se no modelo da sociedade burguesa.
AU, 2006, p. 30). A vantagem da associação é a instituição de uma igualda- Habermas chama de públicos certos eventos quando eles, em
de formal (moral), garantida pela ordem jurídica e de valores. contraposição às sociedades fechadas, são acessíveis a qualquer um – as-
Só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado em conformida- sim como falamos de locais públicos ou de casas públicas. Mas já falar de
de com o objetivo de sua instituição, que é o bem comum. A oposição dos “prédios públicos” não significa apenas que todos têm acesso a eles; eles
interesses particulares torna necessário o estabelecimento das sociedades. nem sequer precisam estar liberados à frequentação pública; eles simples-
O vínculo social é formado pelo que há de comum nesses diferentes in- mente abrigam instituições do Estado e, como tais, são públicos. O Estado
teresses e é com base nesse interesse comum que a sociedade deve ser é o “poder público”. Ele deve o atributo de ser público à sua tarefa de pro-
governada. mover o bem público, o bem comum a todos os cidadãos.
A vontade geral tende sempre à utilidade pública. A vontade geral O termo “público” pode ainda ser empregado no sentido de “opi-
se refere ao interesse comum e a vontade de todos diz respeito ao interes- nião pública”. O sujeito dessa esfera pública é o público enquanto porta-
se privado (soma de vontades particulares) Se o pacto social estabelece a dor de opinião pública. A esfera pública se apresenta como uma esfera: o
igualdade entre os cidadãos, estes se comprometem sob as mesmas con- âmbito do que é setor público contrapõe-se ao privado. Muitas vezes ele
dições e devem gozar dos mesmos direitos. Todo ato autêntico da von- aparece simplesmente como a esfera da opinião pública que se contrapõe
tade geral obriga ou favorece igualmente todos os cidadãos. O soberano diretamente ao poder público. Conforme o caso, incluem-se entre os “ór-
conhece somente o corpo da nação e não distingue nenhum daqueles gãos da esfera pública” os órgãos estatais ou então os mídias que, como a
que a compõem. imprensa, servem para que o público se comunique (HARBERMAS, 2003,
No estado civil, todos os direitos são estabelecidos por uma ordem p. 14). Percebe-se, pois, nos exemplos citados por Habermas que o termo
jurídica, pois esta é uma condição da associação civil, devendo o corpo “público” ganha significações distintas.
político dispor de um órgão para enunciar a vontade geral. Somente esta Partindo de uma análise histórico-sociológica, constata Jurgen Ha-
obriga os particulares, e só se pode assegurar que uma vontade particular bermas que o termo “público”, significando aquilo que não é público, mas
está de acordo com a vontade geral depois de submetê-la aos sufrágios aquilo que é privado, tem origem grega:
livres do povo. O pacto social possibilita a criação de um estado apto a
intermediar os interesses divergentes (público e privado). [...] Na cidade-estado grega desenvolvida, a esfera da pólis que é comum aos
Todo Estado necessita de um governo, que é um corpo interme- cidadãos livres (koiné) é rigorosamente separada da esfera do oikos, que é
particular a cada indivíduo (idia). A vida pública bios politikos, não é, no en-
diário estabelecido entre os súditos e o soberano, para permitir mútua tanto, restrita a um local: o caráter público constitui-se na conversação (lekis),
correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da que também pode assumir a forma de conselho e de tribunal, bem como a
de práxis comunitária (práxis), seja na guerra, seja nos jogos guerreiros. (Para
liberdade, tanto civil, quanto política. Para Jean-Jacques Rousseau, o go- legislar, com freqüência são chamados estrangeiros; legislar não pertence aí
verno é em pequena escala o que o corpo político, que o encerra, é em propriamente às tarefas públicas). A ordenação política baseia-se, como se
sabe, na economia escravagista em forma patrimonial. Os cidadãos estão efe-
grande escala, conforme expressa a seguir: tivamente dispensados do trabalho produtivo; a participação na vida pública
depende, porém de sua autonomia privada como senhores da casa. A esfera
privada está ligada à casa não só pelo nome (grego); possuir bens móveis e
Sendo todos os cidadãos iguais pelo contrato social, todos podem prescrever dispor de força de trabalho tampouco constituem substitutivos para o poder
o que todos devem fazer, enquanto nenhum tem o direito de exigir que outro sobre a economia doméstico e a família, assim como, às avessas, pobreza e
faça o que ele mesmo não faz. Ora, é exatamente esse direito, indispensável não possuir escravos já seriam por si empecilhos no sentido de poder parti-
para fazer viver e mover o corpo político, que o soberano concede ao príncipe cipar na pólis: exílio, desapropriação e destruição da casa são uma só coisa.
quando institui o governo (2006, p. 117). A posição na pólis baseia-se, portanto, na posição de déspota doméstico:
sob o abrigo de sua dominação, faz-se a reprodução da vida, o trabalho dos
escravos, o serviço das mulheres, transcorrem o nascimento e a morte; o reino
Para Rousseau (2006), a obrigação do Estado para com a comuni- da necessidade e da transitoriedade permanece mergulhado nas sombras da
esfera privada. Contraposta a ela, destaca-se a esfera pública – e isso era mais
dade política identifica-se pela preservação da liberdade política pactuada que evidente para os gregos – como um reino da liberdade e da continuida-
(não a natural). Cabe ao conjunto de cidadãos (corpo político) preservar a de. Só à luz da esfera pública é que aquilo que é consegue aparecer, tudo se
torna visível a todos [...]. (2003, p. 15-16).
liberdade convencional. A convenção representa a base de toda autori-
dade legítima entre os homens e de que as relações jurídicas de caráter Registra ainda Habermas, mais adiante que
público originam-se de interesses particulares (privados). O governo é o
corpo intermediário entre esses interesses, os súditos e o soberano, que Esse modelo da esfera pública helênica, tal como ele nos foi estilizadamente
têm por função garantir a liberdade. E o tipo de governo que garanta essa transmitido pela interpretação que os gregos deram de si mesmos, partilha,
desde a Renascença, com todo o assim chamado “clássico”, de autêntica força
vontade geral é a democracia. normativa – até os nossos dias.[...]

3 O PÚBLICO E PRIVADO EM HABERMAS Inicialmente, ao longo de toda a Idade Média, foram transmitidas as catego-
rias de público e de privado nas definições do Direito Romano: a esfera pú-
blica como res publica. É verdade que elas só passam a ter novamente uma
Jurgen Habermas tem como ponto de partida o surgimento do efetiva aplicação processual jurídica com o surgimento do Estado moderno e
com aquela esfera da sociedade civil separada dele: servem para a evidência
Estado moderno. De início, alerta para o fato de que o uso corrente de política, bem como para a institucionalização jurídica, em sentido específico,
“público” e “esfera pública” denuncia uma multiplicidade de significados de uma esfera pública burguesa. (Habermas, pgs. 16/17).

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Habermas entende que a precária tentativa de uma aplicação nas modo tal que ela mesma se torna parte do setor privado. O poder público
relações jurídicas da dominação feudal fundiária e de vassalagem fornece, concentrado nos Estados nacionais e territoriais eleva-se acima de uma
sem querer, indícios de que não existiu uma antítese entre esfera pública e sociedade privatizada. Essa esfera só evolui para uma esfera de autonomia
esfera privada, segundo o modelo clássico antigo (ou moderno). privada, à medida que se emancipa da regulamentação mercantilista.
Na sociedade feudal da alta Idade Média, a esfera pública como Como esfera privada, a sociedade só é colocada em questão quan-
setor próprio, separada de uma esfera privada, não pode ser comprovada do as próprias forças sociais conquistam competências de autoridade pú-
sociologicamente, ou seja, usando de critérios institucionais (HABERMAS, blica. A decomposição da esfera pública, ressalta Jürgen Habermas (2003),
2003, p. 19). Compreende Jurgen Habermas (2003, p. 17) que a auto- que é demonstrada na alteração de suas funções políticas, está fundada
ridade “privada” e “pública” fundem-se numa inseparável unidade, já que na mudança estrutural das relações entre esfera pública e setor privado.
ambas são a emanação de um único poder, ligadas aos bens fundiários e A centralização do poder governamental, que se tornou à mesma
que possam ser tratadas como direitos privados bem adquiridos. A esfe- época um problema para Marx e para Tocqueville, a rigor ainda não tocava
ra pública continua sendo, sempre ainda, um princípio organizacional de na relação que é constitutiva para o Estado de Direito burguês: a relação
nosso ordenamento político. entre setor público e setor privado. Só quando novas funções são acresci-
A esfera pública burguesa oferecerá o espaço para um tipo de “re- das ao Estado é que a barreira entre ele e a sociedade começa a balançar
presentatividade pública”. É o locus onde o homem tem visibilidade no (HARBERMAS, 2003, p. 173).
meio social. O público até então não representava o interesse comum e O Estado amplia suas atividades dentro das antigas funções de
coletivo contraposto ao interesse particular. Não se falava ainda em poder guardar a ordem. O Estado assume, além das atividades administrativas
público. O status de senhor fundiário, qualquer que seja a sua hierarquia, é habituais, inclusive prestações de serviço que até então eram deixadas à
em si neutro em relação aos critérios de “público” e “privado”(HARBERMAS, iniciativa privada. Amplia-se o setor dos serviços públicos “porque, com o
2003, p. 20). crescimento econômico, tornam-se efetivos fatores capazes de alterar a
A última configuração da representatividade pública, ao mesmo relação entre custos privados e custos sociais” (HARBERMAS, 2003, p. 176).
tempo reunida e tornada mais nítida na corte dos monarcas, já é uma es- Os setores sociais protegidos por intervenções, para Habermas,
pécie de reservado, em meio a uma sociedade que ia se separando do Es- devem ser rigorosamente diferenciados de uma esfera social apenas re-
tado. Só então é que, num sentido especificamente moderno, separam-se gulamentada pelo Estado – as próprias instituições privadas assumem em
esfera pública e esfera privada. (HARBERMAS, 2003, p. 23-24) grande parte um caráter semi-oficial.
A redução da representatividade pública que ocorre com a media-
tização das autoridades estamentais, através dos senhores feudais cede [...] a partir da “esfera privada publicamente relevante da sociedade civil bur-
espaço a uma outra esfera, que é ligada à expressão esfera pública no sen- guesa constitui-se uma esfera social repolitizada, em que instituições esta-
tais e sociais se sintetizam em único complexo de funções que não é mais
tido moderno: a esfera do poder público. Esta se objetiva numa adminis- diferenciável. Essa nova interdependência de esferas até então separadas
tração permanente. Nesse sentido, “público” torna-se sinônimo de estatal; encontra a sua expressão jurídica na ruptura do sistema clássico do Direito
Privado (2003, p. 177).
o poderio senhorial transforma-se em “polícia”; as pessoas privadas sub-
metidas a ela enquanto destinatárias desse poder, constituem um público Na sociedade industrial organizada como Estado-social multipli-
(HARBERMAS, 2003, p. 31-32). cam-se relações e relacionamentos que não podem ser suficientemente
Ressalta Jurgen Habermas que bem ordenados em institutos quer do Direito Privado, quer do Direito Pú-
[...] As medidas administrativas passam a ser definidas cada vez mais por essa blico; obrigam, antes, a introduzir normas do assim chamado Direito Social
meta de impor o modo de produção capitalista. Em lugar dos privilégios das (HARBERMAS, 2003, p. 177).
corporações profissionais colocam-se os privilégios concedidos pelo monarca
e que transferem os ofícios existentes para a produção capitalista ou servem À medida que Estado e sociedade se interpenetram, a instituição
para criar novas manufaturas. (...). Como contrapeso à autoridade, constitui- da família strictu sensu se destaca dos processos de reprodução social: a
-se a sociedade civil burguesa. As atividades e relações de dependência que,
até então, estavam confinadas ao âmbito da economia doméstica, passam o esfera íntima, outrora centro da esfera privada de um modo geral, recua
limiar do orçamento doméstico e surgem à luz a esfera pública. (...) A atividade para a sua periferia à medida que esta se desprivatiza (HARBERMAS, 2003,
econômica privatizada precisa orientar-se por um intercâmbio mercantil mais
amplo, induzido e controlado publicamente; as condições econômicas, sob as p. 180).
quais elas ocorrem agora, estão fora dos limites da própria casa; são, pela pri- Com as grandes empresas cria-se uma espécie de organização do
meira vez, de interesse geral (2003, p. 32-33).
trabalho social frente à separação entre esfera privada e esfera pública:
É nesta esfera privada da sociedade que se tornou publicamente uma formação social neutra. As empresas industriais constroem moradias,
relevante o que Hanna Arendt pensa quando caracteriza, em contrapo- parques públicos, escolas, igrejas, bibliotecas, organizam concertos, ses-
sição à sociedade antiga, a relação moderna entre esfera pública e esfera sões de teatro, cursos de aperfeiçoamento etc. A esfera profissional evolui
privada mediante a formação do “social”. (HARBERMAS, 2003, p. 33) para um setor quase-público, frente a uma esfera privada reduzida à fa-
Junto com o moderno aparelho de Estado surgiu uma nova ca- mília (HARBERMAS, 2003, p. 183). Há o desmantelamento da autoridade
mada de “burgueses” que assume uma posição central no “público”. Esta paterna, registra Jurgen Habermas. Os membros individuais da família
camada “burguesa” é o autêntico sustentáculo do público (HARBERMAS, passam a ser socializados em maior escala por instâncias extrafamílias,
2003, p. 37). O público da esfera pública burguesa desenvolve-se especial- pela sociedade de modo imediato (2003, p. 186). Esse esvaziamento da
mente à medida que o interesse público na esfera privada da sociedade esfera familiar íntima encontra sua expressão arquitetônica na construção
burguesa não é mais percebido apenas pela autoridade, mas também é de casas e de cidades.
levada em consideração pelos súditos como sendo sua esfera própria. A perda da esfera privada e um acesso seguro à esfera pública são
Para Jurgen Habermas (2003, p. 169), a esfera pública burguesa hoje traços característicos do modo de morar e de viver urbanos, não im-
desenvolve-se no campo de tensões entre Estado e sociedade, mas de portando se as antigas formas de morar metropolitanas tenham sido taci-

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tamente refuncionalizadas pelo desenvolvimento técnico-econômico ou de política/civil. Disso decorre a aquisição da liberdade civil, da proprie-
se, à base dessas experiências, tenham sido desenvolvidas novas formas dade e da liberdade moral e criação da igualdade. O público é a pólis, o
de habitação coletivas e suburbanas (HARBERMAS, 2003, p. 187). coletivo, o corpo político e a relação entre soberano e corpo político deve
Na mesma proporção em que a vida privada se torna pública, a ser baseada no interesse público. O Estado é apenas uma das manifesta-
esfera pública passa a assumir ela mesma formas de intimidade – ressur- ções desse coletivo. Pressuposto de existência desse corpo político é o ato
ge a grande família pré-burguesa. Nessa conjuntura, no lugar da esfera de associação e de renúncia, pelo homem, da sua liberdade natural para
pública literária surge o setor pseudo-público ou aparentemente privado a liberdade civil. E esse ato de associação implica no comprometimento
do consumismo cultural. A cultura burguesa não era mera ideologia. A es- entre o interesse público e o interesse particular. Cabe, pois, ao Estado in-
fera pública literária se torna uma porta aberta por onde entram as forças termediar esses interesses (público e privado).
sociais sustentadas pela esfera pública do consumismo cultural dos meios Habermas sustenta que a sociedade é a forma de vida conjunta em
de comunicação de massa, invadindo a intimidade familiar. A família per- que a independência do ser humano em relação a seu semelhante ocorre
de sua coesão literária e o salão burguês fica fora de moda. O mercado em função da própria sobrevivência. Reconhece o mesmo fundamento
de bens culturais assume novas funções na configuração mais ampla do preconizado por Rousseau no Contrato Social: encontrar uma forma de
mercado do lazer. A cultura de massas conforma-se às necessidades de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os
distração e diversão de grupos de consumidores com um nível de forma- bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos só obe-
ção relativamente baixo, ao invés de, inversamente, formar o público mais deça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes. O corpo
amplo numa cultura inata em sua substância (HARBERMAS, 2003, p. 195). político é indispensável para intermediar os interesses contrapostos.
A cultura se torna uma mercadoria. Enquanto para Rousseau a noção de público reside na pólis, no co-
A decadência da esfera pública literária se sintetiza nesse fenôme- letivo e no corpo político, noção esta que é consequência do pacto social,
no: o público fragmentado em minorias de especialistas que não pensam Habermas defende um conceito de esfera pública que decorre do surgi-
publicamente e uma grande massa de consumidores por meio de comu- mento e ascensão da burguesia. Essa esfera pública é vista como um local
nicação pública de massa (HARBERMAS, 2003, p. 2007). de disputa entre os princípios divergentes de organização da sociabilida-
O modelo da esfera pública burguesa contava com a separação de. A esfera pública se configura como o lugar de deliberação e mediação
rígida entre setor público e setor privado: a esfera pública das pessoas entre a sociedade civil e o Poder Público. Além disso, no setor privado,
privadas reunidas num público, que fazia a mediação entre o Estado e as também está abrangida a noção de “esfera pública”, pois ela é uma esfera
necessidades da sociedade, era computada ela mesma no setor privado. À pública de pessoas privadas. A esfera privada compreende a sociedade
medida que o setor público se imbrica com o setor privado, esse modelo civil e o Estado o “poder público”. Daí o público ser sinônimo de estatal.
se torna inútil. Surge uma esfera social repolitizada. Neste setor interme- O Estado deve o atributo de ser público à sua tarefa de promover o bem
diário se interpenetram os setores estatizados da sociedade e os setores público, o bem comum a todos os cidadãos.
socializados do Estado sem a intermediação das pessoas privadas que Jurgen Habermas entende que a esfera pública continua sendo,
pensam politicamente (HARBERMAS, 2003, p. 208). sempre ainda, um princípio organizacional de nosso ordenamento políti-
A ocupação do espaço público político pela massa dos não-pro- co, posição que se aproxima da de Rousseau, para quem a esfera pública
prietários levou à imbricação de Estado e sociedade que retirou à esfera requer um corpo político, institucionalizado juridicamente. Desconside-
pública a sua antiga base, sem lhe dar uma nova. A integração do setor rando o aspecto organizacional do corpo político e sua natureza, para
público com o setor privado correspondia particularmente a uma desor- Habermas o público da esfera pública burguesa surge a partir do interesse
ganização da esfera pública que outrora intermediava o Estado com a so- público na esfera privada da sociedade burguesa, que não é mais percebi-
ciedade. Essa função mediadora passa do público para instituições, como do apenas pela autoridade, mas também é levada em consideração pelos
as associações, constituídas a partir da esfera privada ou, como os partidos, súditos como sendo sua esfera própria. Dessa noção, infere-se um ponto
a partir da esfera pública e que, internamente, exercem agora o poder e a convergente com a doutrina rousseauniana: o compromisso entre o pú-
distribuição do poder num jogo com o aparelho do Estado (HARBERMAS, blico e o privado. O poder público preconizado por Habermas tem o mes-
2003, p. 2009). mo papel que o governo de Rousseau, qual seja, o de mediatização, ente
A separação entre Estado e sociedade resta superada e o Estado intermediário entre os súditos e o soberano. Neste setor intermediário se
interfere na ordem social provendo, distribuindo e administrando. Daí, a interpenetram os setores estatizados da sociedade e os setores socializa-
generalidade da norma como princípio já não pode mais ser mantida sem dos do Estado sem a intermediação das pessoas privadas que pensam
reservas. politicamente.
Mas, para Habermas, na sociedade industrial organizada como
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Estado-social novas normas são introduzidas, normas do assim chamado
Direito Social e, consequência disso é que à medida que o setor público se
Para Jean-Jacques Rousseau, a ordem social funda-se em um pacto, imbrica com o setor privado, o modelo de separação rígida entre o público
com vistas à conservação da sociedade e, para isso, torna-se imprescindí- e o privado se torna inútil. Surge uma esfera social repolitizada e porque
vel que o homem renuncie sua liberdade natural em prol de uma liberda- não dizer potencialmente promíscua.

Revista Interdisciplinar NOVAFAPI, Teresina. v.3, n.1, p.43-48, Jan-Fev-Mar. 2010. 47


REFERÊNCIAS

HABBERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública: inves- ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: princípios do direito
tigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Trad. Flá- político. Trad. Antônio de Pádua Danesi. 4. ed. São Paulo: Martins
vio R. Kotche. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. Fontes, 2006.

48 Revista Interdisciplinar NOVAFAPI, Teresina. v.3, n.1, p. 43-48, Jan-Fev-Mar. 2010.

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