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*ISSO NÃO É UM TEXTÃO*

Dissoluções no virtual
[Por: Yan S. Santos
yan.ssantos27@gmail.com
em: 03/12/2018]

Talvez por preguiça, falta de interesse, ou pressa, você, leitor(a), não queira ler esse texto e role o
feed direto para a próxima postagem. Provavelmente, você já clicou no “ler mais” e, ao ver o “tamanho”
do texto, desistiu de o ler por completo. E deve ter pensado: porque não um meme? Um “tweet” simples?
Não tenho tempo para ler um texto desse tamanho! Caro(a) leitor(a) se você pensou nessas coisas, e quer
rolar para a próxima postagem, esse texto é sobre você! Não desista dele tão rápido, pois, vamos tentar
costurar algumas das “dissoluções no virtual”, que aflige o homo digitalis.
Se você, leitor(a), passa mais tempo acessando as mídias digitais (como o Facebook, Twitter,
Instagram, Whatsapp) que qualquer outro conteúdo online, você é um(a) homo digitalis. O filósofo coreano
fixado na Alemanha Byung-Chul Han, nomeou de homo digitalis nossa geração hiper-conectada
virtualmente. Geração composta por indivíduos singularizados que, como nó na web, formam um enxame
digital1. Das diversas perspectivas do “enxame digital”, a fadiga da informação, talvez seja a mais relevante
para esse texto. Em suma, a quantidade excessiva de informações, e sua característica e desejo de se tornar
viral, infectam, por meio de um verdadeiro contágio, os(as) usuários(as) das mídias digitais – nos deixando
esgotados! Saiba, usuário(a) que o(a) principal transmissor(a) dos vírus de informação é você! Quando, ao
passar do dedo, na touchscreen do seu smartphone, você passa de uma pessoa à outra, de uma postagem à
outra, podendo, ao descartar ou curtir o que foi compartilhado, infectar-afetar aquele indivíduo.
O principal sintoma de que você foi infectado-afetado (ou infectou-afetou) é o sentimento de
positividade quando alguém reage à sua postagem. Por muito tempo o Facebook seguiu o padrão do “curtir”
como única reação possível. O excesso de positividade, diante da ecrã (tela) do mundo virtual, impede que
os(as) usuários(as) tenham qualquer tratamento ao vírus da informação. “Sem dor, sem negatividade do
outro, no excesso de positividade, nenhuma experiência é possível”, disse Byung-Chul Han, e sem
experiência não há aprendizado-tratamento. A mídia digital, ambiente principal de proliferação do enxame
digital, é na verdade, uma mídia de afetos.
O gênero humano, no início do século XX, soube utilizar agentes bioquímicos como armas de
guerra – ato tão atroz que foi proibido após a Primeira Guerra Mundial pelo Protocolo de Genebra de 1925,
o uso de gases asfixiantes e venenosos. Em pleno século XXI, mais que afetar a biologia dos indivíduos
caminhamos para a infecção-afetação da psiquê dos sujeitos. Quando, no menu pós-moderno de pessoas
(aplicativos como o Tinder), você descarta alguém ou acontece o match, uma reação positiva afeta nossa
psiquê. O mesmo acontece quando qualquer postagem possui muitas curtidas, ou mesmo quando
determinada página possui vários(as) seguidores(as). Medimos o alcance, medimos a possibilidade de
infectar-afetar, medimos o possível acesso ao psiquê das pessoas. Você, que me acompanhou até aqui, já
deve estar cansado(a) de tanto ser taxado(a) como uma aedes aegypti (o famoso “mosquito da dengue”) do
mundo virtual. Mas, leitor(a), a questão é como tudo isso influencia no controle do enxame! no seu controle!
As informações viralizam, as postagens são incontáveis, você pode infectar-afetar alguém, ou ser
infectado(a)-afetado(a) fácil e intensamente. Você, decerto, por todos esses fatores, não se preocupa muito
com a informação. O conteúdo do que nos infecta-afeta não nos preocupa tanto, mesmo quem o fabrica não
está preocupado com isso, o importante é infectar-afetar. O importante é o contágio viral da postagem, da
informação, e quanto mais rápido se espalhar (por compartilhamento ou quantidade de curtidas), melhor!
A informação “crua” é servida assim mesmo, sem qualquer “cozimento”, não verte em conhecimento
apropriado. O que viraliza são informações cruas, prontas para o consumo, prontas para afetar aquele(a)
que passa o dedo, que curte, que compartilha, sem nem prestar atenção. Que se alimenta, mas, não tem
qualquer trabalho para digerir nada! Digerir, caro(a) leitor(a), pouco importa.
Foi Peter Burke, exímio historiador social do conhecimento, quem empregou a metáfora do
cru/cozido na relação informação/conhecimento. Ensinou, que desde o século XVI nossa relação com o
conhecimento modificou-se gradativamente, e mesmo com as alterações nas maneiras de “cozinhar” a
informação, a sociedade da Europa moderna, procurou superar o ceticismo crescente desde a invenção da
imprensa à difusão do conhecimento pela Enciclopédia de Diderot. A credulidade e a incredulidade
tornaram-se opostos complementares. Cada vez mais a credulidade foi sendo separada do conceito de
“crença” e a incredulidade do conceito de “ateísmo”, para algo mais amplo, ou seja, no que quer que não
fosse “crível”. A credulidade passou a figurar em questões de “interesse” ou até mesmo no “poder” de
determinado grupo em fazer de seu conhecimento algo “crível” (ou não)2.
E quando as informações passaram a ser usadas para o “controle” do público? No texto intitulado
“Manipulando a mídia: a visão de um historiador”, Peter Burke, discorreu sobre a manipulação midiática
tendo em vista os conceitos de pós-verdade (post-truth) e Fake News, para analisar a propaganda e seu
consequente gerenciamento de imagens e impressões ao longo do tempo. Para o historiador, os estudiosos
e teóricos fizeram alegações exageradas e descontroladas sobre ambos os conceitos, o de pós-verdade e o
de Fake News. Segundo Burke, seria necessário atentarmos para o conceito de “propaganda” e o de
“mentira”. O “gerenciamento de impressões” – processo descrito no caso de governantes como “auto-
representação coletiva do indivíduo” – pelo qual passou Louis XIV, na França, durante seu reinado, deu-
se, tanto através da figura habitual do herói, quanto pela manipulação da mídia e de seu público3, dotando-
o de características positivas, heroicas e divinas.
Quando o “crível” da manipulação é baseado na sua possibilidade de infectar-afetar? E, quando as
Fake News são usadas para desencorajar inclusive a discussão do tópico (Fake News) pela mídia? Usadas
para desacreditar das próprias mídias? As mídias digitais dissolvem as “classes sacerdotais” do
“conhecimento”, como os jornalistas4. A “era da pós-verdade” seria, portanto, apenas um fenômeno, ou
exemplo, da “era da psicopolítica digital” 5?
Peter Burke, talvez ainda acredite na possibilidade de sairmos da informação-crua para o
conhecimento-cozido. Mas, em meio ao “enxame digital”, não há tempo para cozinhar, e os(as)
cozinheiros(as) perderam seu status, sua importância e, quem sabe, sua função social – ao menos enquanto
o cenário continuar se construindo segundo essas premissas. A psicopolítica digital é a potencialidade de
controle do enxame digital, por meio das postagens virais, que infectam-afetam o homo digitalis. A
economia da psicopolítica digital dar-se através da Big Data.
A análise do Big Data dá a conhecer modelos de comportamento do homo digitalis, formando
prognósticos possíveis de como manipular você, o aedes aegypti do enxame digital. A data mining – ou
seja, a mineração de dados, por meio do qual os diversos aplicativos conquistam de seus(suas) usuários(as)
informações sobre seus comportamentos, gostos, opiniões, rotina e padrões de consumo – é a principal
ferramenta econômica da psicopolítica digital.
Segundo Yuval Noah Harari, historiador e professor na Universidade Hebraica de Jerusalém, em
seu livro “21 lições para o século 21”, a Big Data, possui inúmeras potencialidades, dentre elas a de colher
informações tão minuciosas – se aliada à biotecnologia –, que poderá constatar doenças nas pessoas mais
rápida e efetivamente que prognósticos médicos convencionais. Yuval alertou, contudo, sobre o controle
dessas informações, pois, quem detiver os dados controlará o mundo. Harari participou, por exemplo, do
Google Talk’s para discutir as questões levantadas em seu recente livro, inclusive por questionar os limites
e possibilidades das tecnologias desenvolvidas pela empresa 6. Yuval ainda explicou o fato das Fake News
triunfarem, simplesmente, porque as pessoas preferem o poder à informação7.
Mas, se o Louis XIV foi um dos mais interessantes casos de “propaganda” (mesmo o termo sendo
anacrônico), qual a relevância desse caso para compreendermos a “era da pós-verdade” ou o “fenômeno
das Fake News”, principais questionamentos de Burke? Se quem detiver nossos dados poderá controlar o
mundo, qual o nosso papel, de aedes aegyptis do mundo virtual? E se o controle dos nossos dados já estiver
sendo utilizado, e questões relevantes como eleições presidenciais estiverem sendo resolvidas como uma
simples pesquisa de mercado? Segundo António Damásio, neurocientista, os afetos são profundamente
importantes para nossa tomada de decisão, nossas escolhas 8, então, nós do enxame digital estamos sendo
controlados(as)? Se questões como o uso de agrotóxicos na agricultura, da imigração, do aquecimento
global, etc., estiverem sendo testadas, quando ofertam ao enxame digital tais “produtos”, e a maneira como
o deixam aprazíveis, ao “nosso” “gosto”, definirá se ele infecta-afeta positivamente ou não? O infectar-
afetar positivo será apenas uma “fabricação”, uma “manipulação”, um marketing? Segundo Peter Burke, a
propagação vertiginosa das Fake News, ou “mentiras públicas”, nos faz repensar sobre a transformação da
esfera pública e da esfera privada promovida pelas mídias digitais. Tal transformação tem encorajado a
discussão do tópico na mídia, e a principal tarefa dos educadores seria, seguramente, o de mostrar aos
alunos(as) como construir detectores de Fake News para si mesmos, como uma nova e necessária forma de
conscientização.
Minhas questões, caro(a) leitor(a) que me acompanhou até aqui, são: e se a manipulação fizer o
enxame digital desacreditar dos educadores (“sacerdotes do conhecimento”)? Quem estará preparado para
lidar com a psicopolítica digital? Continuaremos sendo os aedes aegypti (ou homo digitalis, se você cansou
de ser “insultado(a)”) de um enxame facilmente manipulável pelo data mining das grandes empresas de big
data? A mídia digital, essa mídia de afetos, continuará com seu contágio num regime de 24/7 até nosso
esgotamento? Você ainda está lendo esse texto? Se sim, talvez reaja com raiva, tristeza, espanto, uma
curtida simples, ou vai amar esse texto; quem sabe até comente abaixo para complementar sua reação; se
compartilhar essa postagem, ela provavelmente viralize (ou não?), e tudo o que tentei alertar seja mais uma
dejeção, uma descarga, uma dissolução no virtual. Contudo, o que fazer? Passe o dedo para descartar, ou
digite e me diga.

1
HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. p. 37/49.
2
BURKE, Peter. Uma História Social do Conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro:
Zahar, 2003.
3
BURKE, Peter. Manipulating the media: a historian’s view. Revista Brasileira de História da Mídia.
Vol. 7. Nº 1. Jan./jun. 2018. Pp. 8-19. In.: http://www.ojs.ufpi.br/index.php/rbhm/article/view/7073/4274
(Último acesso em 2/12/2018).
4
HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.
5
Idem. p.: 134.
6 HARARI, Yuval Noah. “21 lessons for the 21st Century” – Talks Google. 11/10/2018.
https://www.youtube.com/watch?v=Bw9P_ZXWDJU (Último acesso em 2/12/2018).
7
HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
8
DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 3ªed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.

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