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OPINIÃO

COLUNA

A “safada” que “abandonou” seu bebê


Como o mito da maternidade demoniza as mulheres ainda hoje e as
reduz a mães desnaturadas ou criminosas, só toleradas se forem
consideradas “loucas”
ELIANE BRUM

12 OUT 2015 - 16:20 CEST

Nos últimos dias, o Brasil elegeu uma nova vilã para lançar na fogueira do
moralismo. Sandra Maria dos Santos Queiroz, 37 anos, é uma nordestina de
Vitória da Conquista, na Bahia, que migrou para São Paulo para trabalhar como
empregada doméstica. No domingo, 4 de outubro, Sandra pariu sozinha,
escondida no banheiro anexo ao quarto de empregada, a sua terceira criança. O
primeiro, um garoto de 17 anos, é criado por parentes na Bahia. A segunda, uma
menina de três anos, vive com ela na casa dos patrões, no bairro nobre de
Higienópolis. Sandra escondeu a gravidez por nove meses e passou por todas as
dores do parto, que tanto atemorizam as mulheres, sem fazer alarde. Cortou ela
mesma o cordão umbilical. Amamentou a criança, embrulhou-a, colocou-a não
em qualquer sacola, mas numa bem chique – “Au Pied de Cochon”, nome de um
restaurante tradicional de Paris –, o que diz muito. Deixou-a embaixo de uma
árvore, diante de um prédio. Escondeu-se e ficou esperando até ter certeza de
que o bebê seria encontrado. Neste momento, outro empregado da vizinhança, o
zelador Francisco de Assis Marinho, migrante da Paraíba, estranhou a sacola,
levantou-a, pelo peso concluiu que era roupa, e deixou-a cair. O bebê chorou.
Francisco chamou a polícia, sonhou com adotar a menina, afirmou que sentiu
amor imediato pela criança. No drama de Higienópolis, emergem dos bastidores
da cena cotidiana do bairro dois personagens em geral invisíveis: o zelador e a
doméstica. Ele tornou-se o herói. Ela, a mãe desnaturada.

“Safada” é o termo que outro trabalhador das zonas cinzentas, um segurança,


escolhe para se referir à Sandra, como conta a repórter Camila Moraes, num
texto imprescindível. “Por que você abandonou a criança?”, gritavam jornalistas,
quando ela foi detida pela polícia. No Brasil, “abandonar” um bebê é crime punido
com até três anos de prisão, pena que pode aumentar em um terço quando é a
mãe ou outro parente próximo que consuma o ato. Sandra foi flagrada por
câmeras de segurança instaladas para detectar estranhos ao bairro. Ela foi
identificada, levada para a delegacia e exposta. Depois, liberada para esperar a
sentença. O bebê foi levado a um hospital, já teve alta e pode ser colocado para
adoção.

Neste enredo da vida real, Francisco, o zelador, encarna o lado virtuoso do


homem que não fecundou, mas quer se tornar pai. E, assim, apaga a ausência
eloquente do homem pelo qual quase ninguém pergunta, aquele que é tão
responsável pela gravidez quanto Sandra. Ela, Sandra, só pode ser transformada
em vilã por ser vítima do mito da maternidade.

Nos últimos anos, o Brasil viu crescer um movimento forte, criativo e solidário, de
defesa e resgate do parto natural e humanizado, para que a mulher recupere o
protagonismo no nascimento das crianças, sequestrado pela autoridade médica
no país campeão mundial de cesarianas. Também há um movimento forte e bem
mais antigo, nascido junto com os vários feminismos, pela descriminalização do
aborto.

Defender o protagonismo das mulheres no parto e defender a


descriminalização do aborto fala do mesmo direito: o de
autonomia sobre o próprio corpo

No Brasil, o aborto só é permitido em três casos: gravidez resultante de estupro,


risco de morte para a mulher e gestação de feto anencefálico, uma anomalia
incompatível com a vida. Na prática, o aborto obedece à lógica do apartheid racial
e social que rege o cotidiano do país: é acessível às mulheres que podem pagar
por ele em clínicas seguras e vetado para as mulheres que não podem pagar por
ele, as mais pobres, a maioria delas negras e jovens, que dependem do Sistema
Único de Saúde (SUS). Estas se submetem a charlatões e a condições perigosas,
ou apelam para expedientes solitários e desesperados. Muitas morrem na
tentativa de interromper a gestação de uma criança que não querem ou não
podem ter, fazendo do aborto a quinta causa de morte materna no país. A
criminalização do aborto é, na prática, uma máquina estatal de produzir
cadáveres femininos. E também órfãos, já que parte destas mulheres têm outros
filhos esperando-as em casa. Pesquisas mostram que a morte da mãe multiplica
as fragilidades e acentua a miséria, condenando a família que restou.

Defender o protagonismo das mulheres no parto e defender o


MAIS INFORMAÇÕES
direito de as mulheres decidirem se querem ou não levar uma
Paraguai impede o
aborto de uma gestação adiante não é uma coisa e outra coisa. É a mesma
menina violada de 10 coisa, embora parte das militantes de um movimento e outro
anos
não encarem dessa forma. Trata-se do respeito à autonomia
Uma atriz da mulher sobre o seu corpo, hoje submetido pela autoridade
colombiana faz um
aborto e entra na
médica, no primeiro caso, pelo Estado, no segundo. E há que
mira da Justiça se dar um passo a mais se as mulheres contemporâneas
quiserem recuperar o controle sobre si mesmas: é preciso
Recém-nascida é
resgatada em lutar ao lado de Sandra – e de todas as Sandras – para que ela
tubulação de
não seja reduzida a uma pária social.
banheiro em Pequim

Irã debate duas leis


que reduzem a
Para isso, é preciso confrontar o mito da maternidade, que
mulher a “máquina esmaga as mulheres há tantos séculos. A ideia de que ser
de fazer bebês”
mãe é a realização suprema de qualquer mulher e de que nos
Denunciadas por tornamos mulheres mais completas ao vivermos a
abortos
experiência da maternidade é uma armadilha na qual algumas
O estupro nosso de de nós caem alegremente. Outras até mesmo se atiram. Ainda
cada dia
hoje, mulheres que não têm filhos são vistas por muitas de
suas contemporâneas esclarecidas como uma espécie de ser
pela metade. Ora histérica, ora frustrada. Para sempre incompleta. No mesmo
sentido, é preciso combater a ideia de que a maternidade é feliz. E feliz mesmo
quando é triste, o clássico clichê do “ser mãe é padecer no paraíso”. O lugar
mitificado dado à maternidade por uma série de razões históricas reduz mulheres
como Sandra a “safadas”, no jargão popular, a criminosas no Código Penal.

Também jornalistas agrediram Sandra com a pergunta supostamente legítima:


“Por que você abandonou a criança?”. Digo supostamente legítima porque o
verbo “abandonar” já revela um julgamento – e não um fato. E de imediato produz
um estigma, com grande repercussão no imaginário: o da mãe “abandonadora”.
Se foi abandono ou não, só a história de Sandra poderá mostrar. O fato é que ela
deixou a criança ao pé de uma árvore. Com o que sabemos, o mais provável é que
ela não abandonou o bebê. Ela talvez tenha dado a criança. E a mudança do verbo
– de “abandonar” para “dar” – pode mudar a interpretação do movimento feito
por Sandra.

Na medida das suas circunstâncias, desejando ficar anônima por medo de perder
o emprego, como ela diria depois, planejou deixar a criança num local visível, para
que fosse encontrada o mais rapidamente possível. E certificou-se de que isso
aconteceria. Conhecedora dos hábitos da vizinhança, Sandra sabia que alguém se
surpreenderia com a sacola junto a uma árvore. Como disse Francisco, o zelador
que resgatou o bebê: “Sei que domingo não é dia de coleta de lixo. Fiquei curioso
(com a sacola)”.

O gozo da mulher é sempre passível de punição

Sandra também sabe que domingo não é dia de coleta de lixo. E que a sacola
despertaria a curiosidade daqueles que precisam zelar pela limpeza diante dos
prédios, sob pena de perder seus empregos. Vale lembrar que a clássica cena de
filme de Hollywood, em que a mãe desesperada deixa o bebê na porta de uma
mansão, toca a campainha e esconde-se aos prantos para ter certeza de que seu
bebê ficará em boas mãos, não é possível na metrópole murada, o território de
cada um protegido por grades, alarmes e cercas eletrificadas. Sandra fez a versão
possível dessa cena, que no cinema desperta tanta compaixão e lágrimas pela
mulher, e na vida real apenas fúria e dedos em riste. Deixou a criança no melhor
lugar que podia, junto a uma árvore. E esperou.

Diante da pergunta de por que abandonou o bebê, Sandra, tapando o rosto, disse:
“Por desespero”. É obrigatório escutar essa resposta. “Por desespero.” A
profundidade das circunstâncias de Sandra não são conhecidas. Mas é possível
compreender o pouco que se sabe: uma migrante nordestina trabalhando como
doméstica em São Paulo, com um filho adolescente criado longe dela, outra filha
pequena criada na casa dos patrões. Como ter um terceiro filho? Neste momento,
como o enredo é mais do que previsível, berram os de sempre, salivando seu ódio:
“Mas na hora de fazer gostou, né?”. O gozo da mulher é sempre passível de
punição. Há sempre uma sem-vergonhice embutida na sexualidade da mulher.
Afinal, na moralidade cristã, o sexo só pode ser justificado pela reprodução. E
assim, o “safada” usado pelo segurança para se referir à Sandra ganha também a
conotação sexual, já que ela não quis se tornar mãe daquela criança, esvaziando o
ato sexual de legitimidade moral e transformando-o numa “safadeza”.

Reconhecer a complexidade do ato de Sandra é reconhecer


que a maternidade não é a escolha de todas as mulheres

Reconhecer a complexidade do ato de Sandra não é tirar a responsabilidade de


Sandra. Esta seria apenas mais uma violência contra ela. Tratar como “incapaz”
ou como “louca” aquela que escolhe não ser mãe parece ser a única justificativa
aceitável para a sociedade. É isso ou o linchamento moral – e às vezes físico.
Como se a “safada” só pudesse ser parcialmente redimida ao ser convertida em
“doida”. E como se de “safada” a “doida” houvesse uma melhora de status.
Alternativas que respeitem a autonomia e a dignidade da mulher inexistem neste
caso, e isso deveria revoltar homens e mulheres dispostos ao pensamento.

Reconhecer a complexidade do ato de Sandra é reconhecer que a maternidade


pode não ser a escolha de todas. E pelas mais variadas razões, que deveriam
dizer respeito apenas àquelas que escolhem. Reconhecer a complexidade do ato
de Sandra é, principalmente, reconhecer que a maternidade pode ser
aterrorizante mesmo para aquelas que escolhem se tornar mães. Nesta época em
que tudo pode ser dito de forma testemunhal nas redes sociais, é hora de abrir a
temporada de relatos confessionais sobre o quanto a gravidez pode provocar
pavor mesmo para aquelas mulheres que sonharam com ela e a planejaram e têm
todas as condições materiais para criar seus filhos. Uma situação, é fundamental
lembrar, totalmente distante da realidade de Sandra, que não tinha nenhuma
dessas condições.

É preciso gritar que a gravidez pode ser uma experiência


aterrorizante
É preciso dizer, bem alto e com todas as palavras, que para muitas de nós,
mulheres, a criança crescendo no útero, alimentando-se de nós, é um alien. Esta
foi também a minha sensação ao engravidar e experimentar a gravidez. A frase
mais perfeita sobre o potencial de horror contido na experiência da maternidade é
expressado nessa frase da escritora francesa Colette Audry: “Uma nova pessoa
que entrou na sua vida sem vir de fora”. Pode ter algo mais aterrorizante do que
esse estranho íntimo que invade as suas entranhas desde dentro e cresce sem
parar e que um dia terá de sair dali? Eu só mudaria nessa frase a palavra
“pessoa”. Minha sensação, e a de outras mulheres com quem conversei, é de que
não temos a certeza de que é de fato uma pessoa. Pode ter qualquer forma esse
alienígena. E essa também é uma expectativa bastante assombradora sobre o
momento do parto.

Neste ponto, há outro tabu que precisamos quebrar com urgência. A de que a
mulher ama seu filho desde sempre e é mãe desde o momento da gestação. O ato
de engravidar e parir não torna uma mulher também uma mãe, nem torna a
criança que nasce um filho. Tanto a mãe quanto o filho se tornam – ou não. São
dois os nascimentos dessa história. Só um deles é certeza. Se haverá o segundo
parto, aquele em que nasce uma mãe e um filho, não se sabe. Lembro-me de que,
ao voltar para casa depois do parto, fiquei sozinha no meu quarto com a criança.
Eu olhei para ela, ela olhou para mim. Nós duas choramos. Eu me perguntava:
“quem é esta?”. Até hoje estou buscando a resposta, o que é fascinante. Naquela
indagação empreendi o longo e incompleto caminho que me tornou mãe – e que
tornou aquela menina minha filha.

Para se tornar mãe e filho é preciso um segundo nascimento,


que pode acontecer ou não

No caso de Sandra e de tantas, por uma série de circunstâncias que se dão em


cada história – sempre única, singular e intransferível –, pode haver o ato da
gravidez e do parto sem que isso signifique tornar-se mãe e tornar-se filho. No
caso de Sandra e de tantas, poderá existir uma outra mulher que se tornará mãe
daquela criança e fará dela um filho, sem passar pela gravidez e pelo parto. Ou
haverá um homem que se tornará mãe daquela criança e fará dela um filho. A
maternidade não é prerrogativa exclusiva da mulher, nem tem nada a ver com
gênero. Às vezes, inclusive, é coletiva. Tudo o que NÃO precisamos neste
momento da história, e esse pode ser um alerta importante para muitas
militantes, é de supermães, competindo para ver quem é mais extraordinária do
que a outra. Supermãe é o superlativo que nos apequena a todas, a começar por
aquela que arrota sua competência na maternagem. Quando nos tornamos de
fato mães, somos todas condenadas apenas à imperfeição do possível.

O aumento do número de mulheres no cinema, na literatura e nas artes, assim


como no jornalismo, tem impactado no questionamento de mitos como o da
maternidade. É nesse contexto que se insere um filme muito delicado exibido no
Festival do Rio, no início de outubro, que estreará nos cinemas brasileiros em
novembro. Em Olmo e A Gaivota, um casal de atores do Théâtre du Soleil, Olivia
Corsini e Serge Nicolaï, representam a si mesmos na experiência da gravidez real
da atriz, enquanto é encenada a peça A Gaivota, do russo Anton Tchekhov. O
documentário é dirigido pela brasileira Petra Costa, do belíssimo Elena, e pela
dinamarquesa Lea Glob, com produção executiva de Tim Robbins.

(Alerta de spoiler: quem preferir assistir ao filme sem nada saber sobre ele, pule
os próximos três parágrafos e volte ao texto em seguida.)

Como a gravidez é de risco, Olivia precisa deixar a peça e o mundo do teatro, onde
ela e Serge viviam muito mais na pele de outros personagens do que na própria.
Olivia terá de fazer algo ainda mais arriscado do que representar a Arkádina da
peça de Tchekhov, não por acaso uma atriz com medo de envelhecer e perder o
lugar. Olivia terá de vestir o próprio corpo invadido por essa criatura
desconhecida e voraz. A certo momento, Olivia diz: “Todas as mulheres me dizem
que ah, a gravidez, que momento extraordinário, que momento maravilhoso... Só
se for depois”. Mais tarde, um dos seus dentes amolece. Uma amiga explica a ela,
com naturalidade acachapante, que é usual perder dentes durante a gestação,
“porque o bebê precisa de cálcio”. Olivia fica aterrorizada: “Como se fosse normal
perder pedaços...”. Ela sente que há um “alien” dentro dela, alimentando-se dela,
“impondo as regras do jogo”.
Entre Olivia e Serge, que continua no mundo em que sempre esteve, o corpo
habitado na maior parte do tempo apenas por personagens da ficção, a tensão é
crescente. Numa discussão, Olivia quer saber se a atriz que a substituiu é melhor
do que ela, porque afinal também há isso. Desde que engravidou, ela já não é nem
a atriz principal nem a mais jovem, mas aquela que envelhece e que não sabe se
haverá um lugar para ela depois do parto. Serge diz que está cansado e que cada
um deles tem seu própria cotidiano pesado: “Tenho o meu presente, e você tem o
seu”. Olivia retruca com um gesto: “Stop!”. E continua: “Meu presente é seu
também, mas só eu o carrego”.

“Há um alien dentro de mim. Meu presente é seu também, mas


só eu o carrego”

Olmo e A Gaivota é um filme precioso. Ao final sabemos o que todas as mulheres


intuem ao engravidar. Muito mais do que a sagração do feminino, a experiência da
maternidade é o sepultamento da mulher que existia antes. Haverá outra, que
ainda precisará saber quem é, mas não aquela. Todo nascimento de um filho é
também o nascimento de uma mãe – e a morte de uma das tantas mulheres que
somos ao longo de uma vida. Fascinante, sim. Assustador, também. O contrário
de fácil ou de simples.

Olivia tem a ver comigo, Sandra tem a ver comigo. Estamos todas implicadas
nesse mito da maternidade que nos esmaga e que lamentavelmente ajudamos a
reproduzir. Somos cúmplices de nossos algozes históricos quando chamamos
uma mulher como Sandra de “safada”, por ter escolhido não se tornar mãe da
forma desesperada e desesperadora que suas circunstâncias lhe permitiram.
Nem posso alcançar a solidão e o horror de Sandra parindo um bebê num
banheiro, escondida, cortando ela mesma o cordão umbilical, amamentando a
criança para poder entregá-la para ser adotada por quem dela poderia se tornar
mãe.

Para alcançarmos a dignidade, precisamos dizer o mais difícil. O muito mais


difícil: #SomosTodasSandra. Eu sou.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes
- o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus
Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email:
elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum

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