Você está na página 1de 64

ISSN 1518-2541

Volume 3, Número 1 (2002)


NOTA

Esta edição reproduz os artigos publicados na primeira série da Revista


Hélade. Originalmente, a maioria dos artigos estava disponível no corpo
do antigo site, em formato HTML. Como essa prática editorial caiu em
desuso, iniciamos um movimento de reedição tanto para o resgate da
memória do periódico quanto para sua adequação ao formato atualmente
praticado. Observa-se, contudo, que os trabalhos foram reproduzidos
sem qualquer intervenção em termos de conteúdo, permanecendo, desta
forma, regidos pela norma ortográfica então vigente e pelas perspecti-
vas dos autores à época da redação. Também mantivemos as informações
pessoais inalteradas, a despeito de eventuais mudanças de titulação ou
filiação institucional que possam ter ocorrido ao longo desses anos. O
mesmo se aplica às informações relativas aos conselhos, indicados em
cada edição tal como foram compostos à época.

Atenciosamente,
Os Editores
Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade
http://www.historia.uff.br/nereida/

Conselho Diretor

Alexandre Carneiro Cerqueira Lima


Adriene Baron Tacla
Maria Regina Candido

Conselho Editorial

Ana Teresa Marques Gonçalves


Ciro Flammarion Cardoso
Haiganuch Sarian
José Antonio Dabdab Trabulsi
Maria Manuela Ramos Souza Silva
Neyde Theml
Norma Musco Mendes
Roland Étienne

Conselho Consultivo

André Leonardo Chevitarese


Gabriele Cornelli
Maria da Graça Schalcher
Pedro Paulo Funari
Sílvia Damasceno
SUMÁRIO

EDITORIAL
Trabalhar em Equipe (6)
Maria Regina Cândido

ARTIGOS
Os egípcios antigos e o mar
Vermelho: navegação, exotismo e
maravilhas (7)
Ciro Flamarion Santana Cardoso

Privacidade da Vida Feminina na


Pólis dos Atenienses (17)
Fábio de Souza Lessa

Magia do katádesmos: téchne do


saber-fazer (26)
Maria Regina Candido

Paulo de Tarso e o Judaísmo no


contexto dos estudos sobre o
fenômeno do helenismo (36)
Monica Selvatici

Homossexualidade e Política nas


comédias de Aristófanes (46)
Rachel Correia Lima Reis
EDITORIAL
Trabalhar em Equipe
Maria Regina Candido

Cada vez mais constatamos que o trabalho O projeto Archai se propõe operar compa-
isolado do pesquisador em uma biblioteca ou rativamente uma visão histórica das origens do
em seu escritório com a companhia somente de pensamento ocidental, procurando sinais de
seu computador é uma tendência a ser supe- uma pluralidade de vertentes, problemas, figu-
rada. O trabalho em equipe, ou seja, o estudo ras e definições.
de um determinado objeto de pesquisa por di- As fontes “pré-platônicas” nos mostram a
ferentes profissionais proporciona uma melhor doutrina pitagórica como uma complexa amál-
compreensão do mesmo. O olhar de um histo- gama de simbologia numérica, doutrinas sobre
riador não é o mesmo de um arqueólogo, en- a imortalidade da psyché, e regras de vida as-
tretanto ambos podem trocar idéias e informa- cética. Tudo isso com um forte toque oriental:
ções. A interdisciplinaridade - o diálogo entre as matemática babilônica, éthos da sabedoria ira-
disciplinas - permite o enriquecimento de uma niana e doutrina da metempsicose indiana.
pesquisa. Devemos lembrar das palavras do his- Duas leituras do pitagorismo (e assim das
toriador francês Lucien Febvre ao pregar que a origens da filosofia antiga) parecem se confron-
história isolada era uma abstração. Febvre con- tar neste caso: de um lado, uma interpretação
vidava nós historiadores a trabalhar em equipe da vida mística ou religiosa e da atividade filosó-
(laboratórios/ centros de pesquisa) e buscar o fica como intrinsecamente distintas por formas
diálogo com outros profissionais.1 e linguagens e, de outro, uma compreensão das
O Projeto Archai tem como objetivo esta- duas formas de expressão como reciprocamen-
belecer o contato entre História e Filosofia. O te implicadas na sabedoria grega antiga.
projeto é coordenado pelo Dr. Gabriele Cornelli A tradição pitagórica é, por tudo isso, talvez
(UNIMEP-UMESP) e conta com a participação o caso em que mais se torna evidente a neces-
dos professores Dr. André Leonardo Chevitarese sidade de uma revisão hermenêutica da historia
(UFRJ, vice-coordenador)) e Dra Maria Regina das origens da filosofia e de pensamento oci-
Candido (UERJ-Pesquisadora)), além de discen- dental em geral. Daí, a necessidade de se criar
tes de graduação que estão trabalhando as suas um espaço de discussão entre filósofos e his-
monografias e iniciações científicas no interior toriadores para poder compreender a difusão e
do Grupo Archai. a aceitação/ recusa da doutrina pitagórica em
Atenas e outras póleis, principalmente no perío-
1
FEBVRE, L. Combats pour l’Histoire. Paris: Armand Colin, 1992 do clássico (V e IV séculos a. C.).
(1952)

6 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
Os egípcios antigos e o mar

ARTIGOS
Vermelho: navegação, exotismo
e maravilhas
Ciro Flamarion Santana Cardoso
Prof. Titular Dr. de História Antiga do Departamento de História da Universidade
Federal Fluminense (UFF)

Resumo: Desde o início de sua menção em documen-


Este texto discute um tema relativo à história das tos egípcios, o país africano de Punt neles apa-
relações internacionais do antigo Egito: as expedi- rece como uma região fabulosa de onde pro-
ções enviadas esporadicamente pelo governo egíp-
cio a um território africano que os egípcios antigos vêm maravilhas, além de ser, em si, maravilhosa
denominavam Punt. As principais fontes tratadas e incrivelmente rica.
são “O conto do náufrago”, uma obra ficcional do Data do III milênio a.C. um curioso episódio
Reino Médio, e as inscrições e a iconografia do tem-
plo da rainha Hatshepsut em Deir el-Bahri que se re- em que o rei Pepi II (2246-2152 a.C.), da VI di-
ferem a sua expedição ao país de Punt. Aborda-se a nastia, que na época tinha dez ou onze anos,
controvérsia acerca de como se efetuava a viagem a informado de que o funcionário Herkhuf, que
Punt e da localização dessa região, sendo a posição partira em missão meridional, vinha de volta
por mim defendida contrária àquela de Alessandra
Nibbi e Claude Vandersleyen. ao Egito trazendo um anão (talvez um pigmeu)
bailarino “semelhante ao pigmeu (...) trazido de
Palavras-Chave: Egiptologia, Punt, Mar Vermelho.
Punt na época (do rei) Isési”, ordenou que se
Abstract: enviasse a Herkhuf, ainda viajando, uma carta,
This text discusses a subject pertaining to the ditada pessoalmente pelo monarca infantil, na
history of the international relationships of ancient qual recomendava que cuidasse muito bem do
Egypt: the expeditions sent from time to time by
the Egiptian government to an African territory the anão bailarino, para que este chegasse “vivo,
ancient Egyptians named Pwnt. The main sources próspero e saudável” à corte de Mênfis. A car-
discussed are “The shipwrecked sailor”, a Middle ta dizia, entre outras coisas: “Minha Majestade
Kingdom tale, and the eighteenth dynasty’s inscrip- deseja ver este pigmeu mais do que todas as
tions and iconography of queen Hatshepsut’s temple
at Deir el-Bahri referred to her expedition to Pwnt. maravilhas de Punt!”1
The controversy about how Pwnt was reached and No presente texto, nossa finalidade é estu-
where it was located is discussed, and the position dar a navegação dos egípcios no mar Vermelho,
here advanced runs contrary to that of Alessandra
Nibbi and Claude Vandersleyen.. com atenção especial à região (de localização
Keywords: Egyptology, Pwnt, Red Sea. e extensão provavelmente variáveis no tempo,
como logo verificaremos) que chamavam de
1
Inscrição na tumba de Herkhuf em Assuã, apud VERCOUT-
TER, Jean. L’Égypte et la vallée du Nil. 1. Des origines à la fin de
l’Ancien Empire 12000-2000 av. J.-C. Paris: Presses Universitaires
de France, 1992, p. 334. Segundo Vercoutter (Ibidem, p. 141),
o pigmeu ou anão bailarino deve ter sido obtido por Herkhuf,
não diretamente em Punt mas, sim, indiretamente, na região
sudanesa de Yam.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 7


volume 2 | 2001
pwnt, “Punt”, no relativo ao II milênio a.C. As especial não se dispondo localmente de plantas
bases principais de nossas observações serão capazes de prover tábuas de grandes dimensões,
dois documentos: 1) uma obra de ficção do iní- os barcos antigos de madeira que sobreviveram
cio do período considerado (século XX a.C.), co- e podem ser estudados confirmam uma enor-

ARTIGOS
nhecida como o “Conto do Náufrago” ou “A ilha me perícia dos artesãos egípcios ao construírem
da serpente”; 2) a inscrição da rainha-faraó Hat- eventualmente peças grandes das embarcações
shepsut em seu templo de Deir el-Bahri relativa (em especial o casco) usando como matéria-pri-
a uma expedição histórica a Punt, documento ma tábuas de pequenas dimensões habilmente
datado do século XV a.C. Não nos limitaremos reunidas. O mesmo se nota em representações
aos aspectos conhecidos da navegação e das incluídas na decoração de tumbas, sobretudo
trocas efetuadas com o país de Punt, atestadas naquela, do Reino Médio, de Khnumhotep em
(intermitentemente) por mais de um milênio, Beni Hassan, e, para o Reino Novo, na de Huy
entre o século XXV e o século XII a.C.: também (vice-rei da Núbia sob Tutankhamon, no século
observaremos as representações egípcias acer- XIV a.C.), em Tebas: tal método, aliás, foi tam-
ca desse país, qualificado de “terra divina”, do bém descrito por Heródoto, no que diz respeito
qual se tinha uma visão favorável - ao contrá- ao Egito, muito mais tarde, em meados do sécu-
rio do que acontecia, por exemplo, com a Ásia lo V a.C..4 Desde cedo, entretanto, importou-se
ocidental - e ao qual se atribuíam características madeira de melhor qualidade da Ásia ocidental,
maravilhosas e fabulosa riqueza. derivada de árvores capazes de proporcionar
tábuas de grandes dimensões: madeira de pi-
Os meios de ação: barcos e nho e de cedro principalmente. Assim, o grande
portos egípcios nas rotas do barco fluvial de Amon-Ra era construído e pos-
mar Vermelho no II milênio a.C. teriormente consertado, no Reino Novo, com
Os antigos egípcios dispunham de dois tipos madeira importada de Biblos, porto situado na
básicos de embarcações, respectivamente fei- região que, após os ataques dos “povos do mar”
tas de papiro e de madeira. Embora as expedi- ao Oriente Próximo (por volta de 1200 a.C.),
ções Ra I e Ra II, planejadas e chefiadas por Thor passaria a ser conhecida como Fenícia.5
Heyerdahl, tenham mostrado em 1969-1970 Na costa oeste da península do Sinai, banha-
que barcos de papiro semelhantes àqueles de da pelo Golfo de Suez, acharam-se restos de
que dispunha o Egito da Antigüidade faraôni- dois pequenos portos egípcios do Reino Médio
ca são capazes de atravessar o Atlântico, eram na baía de El Markha. Ao que parece, do Sinai é
barcos de madeira aqueles usados sob os faraós que partiam, no III milênio a.C., as expedições
para a navegação marítima: não há dado antigo marítimas em direção a Punt. Mais tarde, com
algum que permita afirmar o emprego, com tal a crescente proeminência de Tebas, passou-se
finalidade, de barcos feitos de papiro.2 Sendo o a proceder de outro modo: de Coptos, pouco
país pobre em árvores e portanto em madeira - ao norte de Tebas, as expedições tomavam o
as árvores mais características eram o sicômoro, rumo leste, atravessando o estéril Wadi Ham-
a acácia e a perséia (mimusops Schimperi)3 -, em mamat em direção ao Mar Vermelho. A política
do Reino Médio a respeito foi, como também
2
PARTRIDGE, Robert. Transport in ancient Egypt. London: Rubi-
con Press, 1996, p. 54.
em outros casos, abrir poços no deserto e ga-
3
Ver KEES, Hermann. Ancient Egypt. A cultural topography.
rantir etapas intermediárias. Na costa oeste do
Trad. de Ian F. D. Morrow. Chicago-London: The University of Mar Vermelho, nas proximidades de Mersa Ga-
Chicago Press, 1977, pp. 78-80. A respeito das espécies identi-
ficadas como tendo originado a madeira (local ou importada)
empregada em objetos egípcios - mas trata-se de uma lista que 4
VINSON, Steven. Egyptian boats and ships. Princes Risborough
deixa totalmente de lado os barcos -, bem como no relativo às (Buckinghamshire): Shire Publications, 1994, pp. 34-36.
técnicas e ferramentas de que dispunham os antigos egípcios
para o trabalho da madeira, ver LUCAS, Alfred. Ancient Egyptian 5
SOUROUZIAN, Hourig. “La ‘belle fête d’Opet’ ou la barque
materials and industries. Quarta ed. revista e aumentada por J. d’Amon-Rê”. In: JOURET, Rose-Marie (org.). Thèbes 1250 av. J.-C.
R. Harris. London: Histories & Mysteries of Man, 1962, pp. 429- Ramsès II et le rêve du pouvoir absolu. Paris: Autrement, 1990,
456. pp. 154-159.

8 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
wasis, na saída do Hammamat, estava o porto do Náufrago”, dá as dimensões de um barco ne-
egípcio. Aí se construíam os barcos, sendo a las empregado. A unidade de medida utilizada
madeira carregada do vale do Nilo até o porto. no texto é o cúbito, que no antigo Egito tinha
Uma hipótese alternativa é a do transporte por 52,30 centímetros. Assim, o barco descrito pela

ARTIGOS
terra dos barcos prontos, de Coptos até o mar primeira vez nas linhas 25-26 do mencionado
Vermelho, através do já mencionado vale seco, documento tinha quase 63 m de comprimento
desmantelando-os para depois montá-los outra e quase 21 m de largura, ao que parece o tama-
vez no litoral, na volta tornando a desarmá-los nho dos maiores barcos marítimos egípcios da
para seu transporte por terra a Coptos e o re- época. Quanto à inscrição de Hatshepsut, nossa
embarque. Isto implicaria também, tanto na ida outra fonte mais importante, aparece acompa-
quanto na volta, transportar por terra - median- nhada de ilustrações, incluindo a da frota utili-
te uma caravana de muares - todo o carrega- zada na viagem. A interpretação dessas figuras
mento dessas embarcações.6 Em qualquer caso, parece ser a que segue. Na hipótese de ser o
de Mersa Gawasis é que se empreendia a via- Punt da época localizado na Somália, a nave-
gem por mar, seja em direção ao Sinai, seja em gação para lá, indo em direção ao sul no mar
direção ao país de Punt. Esta última designação, Vermelho, seria relativamente fácil com o uso
sob o Reino Médio, aplicava-se possivelmente a das velas, devido ao vento constante que sopra
uma parte da costa ocidental do Mar Vermelho, do norte ao longo de praticamente todo o ano.
de Suakim até Massaua, bem como às ilhas pró- Pela mesma razão, entretanto, a viagem de vol-
ximas. Só mais tarde, segundo parece, o nome ta seria difícil e dependeria de remar cerca de
“Punt” se estendeu a regiões mais meridionais 800 km no sentido sul-norte. Assim, tais barcos
- talvez a Somália - e, segundo alguns, também
são estreitos e parecem bem menos pesados do
ao extremo sul da Arábia.7 A verdade é que a lo-
que as embarcações egípcias que navegavam no
calização exata de Punt continua sendo assunto
Mediterrâneo mais ou menos na mesma época
controverso. A única maneira de tentar locali-
(das quais há uma boa reprodução pictórica na
zar tal região é por meio de uma interpretação
tumba de Kenamon, do século XIV a.C.). Outra
das figurações contidas nos relevos que acom-
razão de seu aspecto, que lembra em certos
panham a inscrição de Hatshepsut em Deir el-
pontos o de barcos feitos em tempos muito pos-
-Bahri e de alguns textos, isto é, dos dados pic-
teriores para competir em velocidade, poderia
tóricos ou escritos egípcios que se refiram à sua
ser uma busca necessária de rapidez, mais do
fauna e flora, bem como aos seus habitantes, às
características destes e a suas edificações. Com que de capacidade de carga, causada pela es-
base exatamente nesses mesmos dados, há opi- cassez de pontos para abastecimento de água
niões que, em lugar da Somália, favorecem, seja ao longo da árida costa a percorrer, pelo qual
a costa sudeste do Sudão, seja a Eritréia, como as dificuldades da viagem seriam, na verdade,
zona mais provável para a localização de Punt.8 semelhantes às das expedições a regiões desér-
ticas.9
No caso específico das viagens no mar Ver-
melho, nossa primeira fonte central, o “Conto A controvérsia egiptológica
acerca de Punt
6
PARTRIDGE, Robert . Op.cit., p. 61.
O que se disse acima, mesmo contendo já al-
7
LEFEBVRE, Gustave. Romans et contes égyptiens de l’époque
pharaonique. Paris: Adrien Maisonneuve, 1976, p. 30; ROTHEN- guns pontos controversos, representa as opini-
BERG, Beno et al. Sinai. Pharaohs, miners, pilgrims and soldiers. ões que aceito, isto é: que Punt fosse uma região
Washington-New York: Joseph J. Binns, 1979, pp. 137-171; VAL-
BELLE, Dominique. Les neuf arcs. L’Égyptien et les étrangers de costeira do nordeste da África; e que os egípcios
la Préhistoire à la conquête d’Alexandre. Paris: Armand Colin, a atingissem ordinariamente, no II milênio a.C.,
1990, capítulo II. Alguns autores acham que os egípcios chega-
ram a ter um segundo e até mesmo um terceiro porto na costa por meio de expedições que navegassem, na
do mar Vermelho: cf. MANLEY, Bill. The Penguin historical atlas
of ancient Egypt. London: Penguin, 1996, pp. 74-75. 9
VINSON, Steve. Op.cit., p. 40; SÄVE-SÖDERBERGH, Torgny. The
8
SHAW, Ian e NICHOLSON, Paul. The dictionary of ancient Egypt. navy of the eighteenth egyptian dynasty. Uppsala-Leipzig: A.-B.
New York: Harry N. Abrams, 1995, pp. 231-232. Lundequiststka Bokhandeln-Otto Harrassowitz, 1946, p. 16.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 9


volume 2 | 2001
ida, no rio Nilo, em seguida fizessem a travessia Nilo correndo para o mar”!)13
terrestre até o mar Vermelho, no qual seriam Os argumentos dessa corrente não conven-
de novo embarcadas até o que talvez configu- ceram os egiptólogos, como mostram as opini-
rasse, no país puntita, um ou mais empórios ou, ões mais recentes sobre a localização de Punt.14

ARTIGOS
mesmo, algo próximo ao conceito polanyiano É que o esquema Nilo-Wadi Hammamat-mar
de port of trade10 - havendo a possibilidade de Vermelho parece repousar sobre bases sólidas e
interpretar algumas cenas dos relevos de Deir estar, mesmo, representado pictoricamente em
el-Bahri como indicativas dos procedimentos sua etapa terrestre de transporte por muares
daquilo que os antropólogos chamam de “co- (que falta nos relevos de Hatshepsut) na tumba
mércio silencioso”.11 tebana número 89, de Amenemés (da época de
Desde 1968, entretanto, outra opinião veio Thutmés IV); além de que o Papiro Harris (como
desafiar a que já expusemos: a afirmação de ser reconhece com certo embaraço Vandersleyen,
Punt uma zona sudanesa interior e não costei- embora ainda aqui teime na defesa de seu es-
ra, à qual os antigos egípcios chegassem nave- quema) descreve indubitavelmente, na época
gando rumo ao sul no rio Nilo e, em seguida, de Ramsés III, o desembarque de mercadorias
trilhando um caminho terrestre (ou, segundo vindas de Punt, seu transporte terrestre por as-
outros, viajando o tempo todo por via fluvial). nos e homens e a seguir seu reembarque em
Entre os defensores mais intransigentes desta navios diferentes.15
nova tese contam-se Claude Vandersleyen e
uma incansável iconoclasta, Alessandra Nibbi.12 O ‘Conto do Náufrago’
Os seguidores dessa postura acreditam - ao con- O Conto do náufrago nos é conhecido atra-
trário da imensa maioria dos egiptólogos - que vés de um único manuscrito, o Papiro São Pe-
a palavra composta uadj-ur, ou “o grande ver- tersburgo 1115 do Museu do Ermitage. Não
de”, que é o termo habitual em Médio Egípcio se sabe em que circunstâncias chegou a esse
para “mar” (sendo ym uma designação tardia, museu. Trata-se de um papiro de 3,8 metros de
pouco atestada em Médio Egípcio, comum em comprimento, em excelente estado de conser-
Neo-Egípcio), longe de significar “mar”, referir- vação, contendo 189 linhas (136 verticais e 53
-se-ia a uma região situada junto ao rio Nilo. (De horizontais). Descoberto no museu pelo egiptó-
passagem, seria interessante saber como tradu- logo russo W. Golenischeff, este anunciou sua
ziriam esses autores a comparação egípcia, bem existência em 1881, publicando-o, porém, só
atestada, mi hapy her seta re uadj-ur, “como o muito posteriormente (1913). O papiro é atual-
mente conservado em Moscou.16

10
Cf. REVERE, Robert B. “ ‘Tierra de nadie’: los puertos comer-
13
Cf. HANNIG, Rainer. Grosses Handwörtebuch Ägyptisch-Deuts-
ciales del Mediterráneo oriental”. In: POLANYI, Karl et alii (org.). ch (2800-950 v. Chr.). Mainz: Phillip von Zabern, 1995, p. 179
(verbete wAD-wr ).
Comercio y mercado en los imperios antiguos. Trad. de Alberto
Nicolás. Barcelona: Labor, 1976, pp. 87-110. Apoiamos a opinião 14
Por exemplo: POTTS, D. T. “Distant shores: ancient Near Eas-
que vê em Punt “uma região bastante vasta da qual os egípcios tern trade with South Asia and Northeast Africa”. In: SASSON,
freqüentavam somente empórios à margem do mar Vermelho Jack M. et alii (org.). Civilizations of the ancient Near East. New
cujas localizações foram variáveis segundo a época” (VALBELLE, York-London: Charles Scribner-Macmillan-Simon & Schuster,
Dominique. Op.cit., p. 60). 1995. 4 vols. Volume III, pp. 1451-1463 (pp. 1459-1460 para
Punt).
11
Ver ZAYED, Abd el Hamid (com a colaboração de DEVISSE, J.). 15
VANDERSLEYEN, Claude. Op.cit., pp. 605-606. Ver a reprodu-
“Relations de l’Égypte avec le reste de l’Afrique”. In: MOKHTAR, ção do relevo da tumba número 89 de Tebas em SÄVE-SÖDER-
G. (org.). Afrique ancienne. Paris: Jeune Afrique-Stock-UNESCO, BERGH, Torgny. Op.cit., p. 25 (Figura 7).
1980, pp. 133-152 (pp. 144-148 para Punt especificamente).
Col. “Histoire générale de l’Afrique”, vol. II; O’CONNOR, David.
16
Ver o texto egípcio anotado em: BLACKMAN, Aylward M.
“New Kingdom and Third Intermediate Period, 1552-664 BC”. Middle-Egyptian stories. Bruxelles: Fondation Reine Élisabe-
th, 1972, pp. 41-48. Uma publicação recente contendo o tex-
In: TRIGGER, Bruce et alii. Ancient Egypt. A social history. Cam- to hieroglífico, transcrição fonética, tradução e comentários é:
bridge: Cambridge University Press, 1983, pp. 183-278 (sobre LE GUILLOUX, Patrice. Le conte du Naufragé (Papyrus Ermitage
Punt especificamente, pp. 270-271). 1115). Angers: Association Angevine d’Égyptologie “Isis”, 1996.
No presente escrito, as citações deste documento basear-se-ão
12
VANDERSLEYEN, Claude. L’Égypte et la vallée du Nil, 2. De la em minha própria tradução, publicada com o texto hieroglífico
fin de l’Ancien Empire à la fin du Nouvel Empire. Paris: Presses e a transcrição fonética em: CARDOSO, Ciro Flamarion. “Escrita,
Universitaires de France, 1995, pp. 65-66, 257-258 e passim; NI- sistema canônico e literatura no antigo Egito”. In: BAKOS, Mar-
BBI, Alessandra. “A note on the Lexikon entry: Meer”. Göttinger garet e POZZER, Katia Maria Paim (org.). III Jornada de estudos
Miszellen (Göttingen). 58, 1982, pp. 53-58. do Oriente antigo. Línguas, escritas e imaginários. Porto Alegre:

10 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
As características do próprio papiro e as da Período Intermediário, os egípcios encontraram
linguagem - um Médio Egípcio literário mas com maiores dificuldades, no Reino Médio, do que
fortes marcas do estilo oral narrativo - remetem durante o Reino Antigo para o controle da re-
o documento ao início do Reino Médio, prova- gião, devido ao surgimento do reino de Kerma,

ARTIGOS
velmente ao século XX a.C. O contexto também ao sul da segunda catarata. A política seguida
apoiaria tal localização temporal: após o aban- foi construir fortes que vigiassem a navegação
dono das expedições de troca e mineração en- e enviassem patrulhas às regiões próximas ao
viadas a países estrangeiros pelos faraós duran- rio. Mas, no período em que surge A ilha da ser-
te o Primeiro Período Intermediário, no fim da pente, tal política está ainda em seus inícios: o
XI dinastia e no início da seguinte, reunificado Egito controla Uauat, o norte da Núbia, mas só
o Egito sob o chamado Reino Médio, foram re- esporadicamente se faz presente mais ao sul.18
tomadas tais expedições, inclusive às minas do Quanto a uma expedição anterior narrada
Sinai, à Núbia (Uauat, Kush) e ao país de Punt, pelo protagonista, que uma tempestade tirara
que constituem, como veremos, as três referên- do curso que seguia, diz-se que ia em direção
cias geográficas contidas no texto.17 “à mina do soberano” (linhas 23-24, também li-
Ao iniciar-se o conto, uma expedição egípcia, nhas 89-90) por mar. Como o acesso às minas
navegando no Nilo em direção ao norte, chega do deserto Arábico e da Núbia se fazia pelo rio e
ao limite meridional do Egito: a primeira catara- a seguir por terra, trata-se quase certamente de
ta, onde se situava a cidade de Abw ou Elefan- viagem pelo Mar Vermelho em direção à Penín-
tina: sula do Sinai. A reconstituição dos acontecimen-
tos ficcionais seria a seguinte: uma vez iniciada
[2-7:] “Eis que chegamos ao lar! O malho foi
a travessia em direção ao Sinai, uma tempesta-
tomado, a estaca de amarração foi fincada, a
corda de proa, jogada a terra. Faz-se uma ação de tirou o barco do curso e depois o destruiu,
de graças, louva-se o deus. Cada homem está morrendo todos os que estavam a bordo, sal-
abraçando o seu companheiro. A nossa tripu- vo o protagonista que, agarrado a uma prancha
lação voltou sã e salva.” destacada do barco destruído, foi jogado pelo
Logo depois se menciona que o barco que mar numa ilha do país de Punt:
transporta o protagonista e o comandante da [23-41:] “Eu me dirigia à mina do Soberano.
expedição, antes de atracar em território egíp- Desci ao mar num barco de cento e vinte cú-
cio, havia ultrapassado o limite da Núbia seten- bitos de comprimento e quarenta cúbitos de
trional (Uauat para os egípcios) e passado pela largura. Havia a bordo cento e vinte marinhei-
ros, do escol do Egito. Vigiassem eles o céu,
ilha de Senmut - atualmente Biggeh -, imedia-
vigiassem eles a terra, o seu coração era mais
tamente ao sul de Assuã, ou seja, da primeira corajoso do que (o dos) leões. Eles previam o
catarata do Nilo. A implicação é tratar-se de vento tempestuoso antes que acontecesse,
uma expedição que retorna, seja de Uauat, seja, uma procela antes que ocorresse.
mais ao sul (entre a segunda e a quarta cata-
ratas), do país de Kush propriamente dito; ou, “Desencadeou-se o vento de tempestade
ainda, de alguma escaramuça punitiva contra quando estávamos em (alto) mar, antes que
pudéssemos chegar a terra. Ao levantar-se, o
os povos da estepe sudanesa, Medjau para os
vento fazia um rugido incessante: e lá estava
egípcios. Ao retomarem a mineração de ouro uma vaga de oito cúbitos! Foi uma prancha
no alto vale do Nilo e nos desertos adjacentes, que a procurou em meu proveito. Então o bar-
ao sul do Egito, bem como o tráfico de produtos co morreu. Dos que estavam a bordo, nenhum
núbios, após a interrupção ocorrida no Primeiro
18
LECLANT, Jean. “Egypt in Nubia during the Old, Middle, and
New Kingdoms”. In: Africa in Antiquity. I. The essays. New York:
Editora da PUC-RS, 1998, pp. 95-144 (o Conto do Náufrago, se-
guido de notas e análise, encontra-se nas pp. 110-141). The Brooklyn Museum, 1978, pp. 62-73; LALOUETTE, Claire.
Thèbes ou la naissance d’un empire. Paris: Fayard, 1986, pp. 65-
17
Ver LEFEBVRE, Gustave. Op.cit., pp. 29-32. 67.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 11


volume 2 | 2001
restou. Eu fui levado a uma ilha por uma onda pintura negra para os olhos, caudas de girafa,
do mar.” grandes torrões de incenso, presas de elefan-
te, cães de caça, macacos, babuínos - (enfim,)
Como a seguir fica claro que a ilha a que che- coisas preciosas de todo tipo.”
gou o náufrago estava situada no país de Punt,

ARTIGOS
aqui temos mais um argumento a favor da hi- Documentos há que mencionam como mer-
pótese, que estamos seguindo, de ser tal país cadorias puntitas também o ouro, o marfim e
atingido pelos egípcios por mar: como imaginar, escravos, sendo possível, porém, que Punt fun-
numa navegação no rio Nilo, uma tempestade cionasse, quanto a tais mercadorias, só como
do tipo descrito, com ondas de mais de quatro intermediário, recebendo-as de outras regiões
metros de altura? Trata-se de um conto fantás- e repassando-as aos egípcios. Além das expedi-
ções egípcias a Punt, há alguns dados que mos-
tico, sem dúvida; mas, neste tipo de literatura,
tram os homens do “país divino” vindo, por sua
detalhes corriqueiros são acumulados no relati-
vez, realizar trocas na costa egípcia do mar Ver-
vo ao que constitui a parte do texto não referida
melho. 19
àquilo que transcende a experiência habitual,
exatamente para tornar crível também a parte Voltando ao nosso conto, passado algum
fantástica quando esta fizer por fim sua apari- tempo um barco egípcio chega à ilha e acolhe
ção. o náufrago, fazendo a viagem de volta à capital
egípcia da época, Itji-tauí. Tal viagem deve ter
A ilha descrita no conto é a antecessora dos
ocorrido por mar até o porto do Mar Vermelho,
diversos países fantásticos da literatura, de que
em seguida por terra até o Nilo em Coptos, de
constitui o exemplo conservado mais antigo. A novo em barco, navegando Nilo abaixo até a
serpente ou dragão que ali vivia define-a como “Residência” faraônica, isto é, a capital dinásti-
“ilha do Ka”, termo, este último, que levaria a ca de Itji-tauí, na entrada do Fayum (linhas 154-
duas possíveis traduções: algo como “ilha do 156, 166, 169-174): o tempo de viagem total,
Espírito”, sendo o ka um componente habitual- dois meses (linha 174), é razoável para a nave-
mente invisível da personalidade dos homens e gação da época mais a etapa terrestre; o conto
dos deuses; ou, como ka também significa “ri- não entra em detalhes, entretanto, acerca do
queza”, poderia ser “ilha da Fortuna” a tradução trajeto mar-terra-rio que teria de ser cumprido
adequada. A ilha em questão caracteriza-se por para se chegar à Residência real.
mágica abundância, mesmo estando desabita-
Note-se, por fim, que a aparência e os atribu-
da (a não ser por uma espécie de dragão): tos da serpente ou dragão que habitava a ilha a
[47-52:] “Achei lá figos, uvas, toda espécie de que chegou o náufrago são típicos da descrição
legumes úteis; havia lá frutos de sicômoro egípcia de entes divinos: corpo com incrustação
com e sem entalhe e pepinos que pareciam de ouro e partes de lápis-lazúli (linhas 62-68),
cultivados (lit. feitos); havia lá peixes e aves; capacidade de adivinhar as razões dos aconteci-
nada havia que não houvesse naquele lugar mentos e prever o futuro (linhas 113-125, 132-
(lit. inexistente aquilo que não estivesse den- 136, 149-150, 153-154, 159, 167-169). Trata-
tro dela, i.e. da ilha).”
-se de um deus limitado, no entanto, incapaz
Esta abundância se coaduna com a idealiza- de prever e evitar certos eventos que o afetam
ção pelos egípcios das características de Punt mais de perto, como a queda da estrela que in-
(região onde, na linha 152, verifica-se estar situ- cendeia os seus semelhantes (linhas 126-132).
ada tal ilha maravilhosa): linhas 47-52, 114-116, A atitude do náufrago a seu respeito é paralela
151-153. Eis aqui o carregamento que de lá le- à que se devia assumir diante do faraó também
vou o protagonista - um carregamento típico do divino, isto é, a prosternação (linhas 67-68, 81-
comércio egípcio com Punt: 82, 87-88, 136-138, 161-162, 166-167); ou ain-
da mais religiosa, com a promessa de oferendas
[162-166:]“...mirra, azeite sagrado, láuda-
no, canela, árvores de especiarias, perfume,
19
SÄVE-SÖDERBERGH, Torgny. Op.cit., pp. 22-25.

12 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
e a efetivação de um holocausto de ação de gra- século XI a.C.), Amon aparecerá como aquele
ças (linhas 139-148, 171-172). que faz crescer as árvores nas montanhas do
Líbano expressamente para que a madeira re-
A inscrição e as ilustrações sultante seja usada na construção e no conser-
relativas à expedição a Punt no

ARTIGOS
tos de sua barca sagrada fluvial, nesta ocasião
templo da rainha-faraó Hat- ele afirma, em forma análoga, garantir pesso-
shepsut em Deir el-Bahri (Tebas almente que os “Terraços do incenso” de Punt
ocidental) produzam tal substância indispensável ao culto
A documentação egípcia mais explícita sub- egípcio das divindades. O incenso é uma das
sistente acerca do país de Punt pode ser datada “maravilhas do país divino”.
de cerca de meio milênio após a época que viu Fazia já aproximadamente um milênio que
surgir o Conto do Náufrago: trata-se da inscri- expedições egípcias se dirigiam a Punt. Ainda
ção e dos relevos relativos à expedição puntita assim, Amon-Ra diz em seu oráculo, a respei-
ordenada por Hatshepsut (1473-1458 a.C.), gra- to desse país, que os egípcios “ignoram a sua
vados na parte sul do segundo pórtico da “Man- existência”, que “o país divino não fora pisado
são de milhões de anos” - um tipo de santuário previamente”. Amon diz a Hatshepsut, sua filha:
chamado outrora pelos egiptólogos de templo “Eu te dou Punt inteiro, até os limites do país di-
funerário - que a rainha-faraó mandou construir vino”. O texto dá a entender que os reis do pas-
em Deir el-Bahri. sado obtinham as maravilhas puntitas pagando
A inscrição pode ser dividida em cinco par- por elas, enquanto, no caso de Hatshepsut, os
tes: 1) panegírico régio; 2) decreto oracular de barbudos habitantes de Punt, “que não conhe-
Amon-Ra ordenando se realizasse a expedição; ciam as pessoas do Egito”, aclamarão a rainha-
3) decreto real no mesmo sentido; 4) descrição -faraó, enquanto os enviados desta se apropria-
da expedição a Punt; 5) recepção tebana da ex- rão à vontade das riquezas da região.
pedição em seu retorno e oferendas a Amon- A afirmação da prioridade absoluta do fa-
-Ra. Mais do que resumir as informações acerca raó que no momento estivesse no trono, ao
da expedição e da região visitada, queremos re- empreender ele alguma ação, era corrente nos
colher os dados que mostram como o país de documentos reais egípcios com a finalidade de
Punt era encarado ou caracterizado em círculos ressaltar o valor ímpar do empreendimento
oficiais egípcios no século XV a.C..20 presente. No entanto, em relação a Punt, ocor-
No decreto oracular, o deus Amon-Ra decla- re com muito maior insistência do que em ou-
ra sua propriedade sobre Punt: trata-se de “um tros casos, e em numerosos períodos, a noção
lugar de delícias” que Amon criara para si mes- de ser um país que os antigos egípcios desco-
mo com a finalidade de “refrescar seu coração”, nhecessem. Também no Conto do Náufrago,
bem como o da senhora de Punt, a deusa Há- por exemplo, o protagonista diz, ao terminar
thor. Em outra passagem, que descreve uma es- uma fala dirigida à serpente divina que encon-
tátua de Amon-Ra e da rainha que Hatshepsut trou numa ilha puntita, ser aquela “uma terra
mandou com a expedição para que fosse insta- distante, desconhecida dos homens” - entenda-
lada lá, menciona-se, de passagem, a “grande -se, dos homens do Egito (linha 148). Achamos,
Enéada que reside no país de Punt”, associan- portanto, que a referência insistente ao caráter
do assim aquele país meridional aos deuses desconhecido de Punt comporta algo específico
cosmogônicos primordiais de Heliópolis. Como a tal região.
bem mais tarde, no Relatório de Unamon (tex- Ao contrário da Ásia ocidental, acessível por
to que se refere a acontecimentos do início do terra do Egito mediante a travessia da parte
da península do Sinai que costeia o Mediter-
20
Todas as passagens e referências à inscrição puntita de Deir
râneo, podendo também ser atingida por mar
el-Bahri incluídas no nosso texto foram retiradas da tradução com relativa facilidade, pelo qual não eram
contida em: LALOUETTE, Claire. Op.cit., pp. 246-256.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 13


volume 2 | 2001
infreqüentes as viagens egípcias àquela região e transplantadas junto aos templos de Karnak e
de asiáticos ao Egito, Punt configurava-se como Deir el-Bahri), o empreendimento comportava
uma paragem remota, dificilmente acessível, vi- também, explicitamente, finalidades de explo-
sitada só esporadicamente, a longos intervalos, ração, já que o decreto real contém a passagem

ARTIGOS
por expedições de laboriosa organização, com a seguinte:
finalidade de obter determinados bens, típicos
de uma zona tropical. As viagens de navegan- “Minha Majestade ordenou, pois, que fosse
enviada (uma expedição) aos Terraços do in-
tes de Punt às costas egípcias do mar Vermelho
censo, que fossem abertas suas melhores ro-
eram, ao que tudo indica, ainda mais raras. Os tas, reconhecidos seus contornos e explorados
egípcios aparentemente tinham consciência de seus caminhos, de acordo com a ordem de
tal diferença em suas relações com cada uma meu pai Amon.”
das duas áreas mencionadas. O próprio fato de
Aparecem nos relevos cinco navios - planeja-
ser Punt mal conhecido - em conjunto com a
dos, já se mencionou, mais para serem velozes
total impossibilidade prática (logística) para os
do que para conterem carga muito pesada - mo-
egípcios, mesmo no auge do Império, de exer-
vidos a vela e a remo. O pessoal da expedição
cerem qualquer domínio sobre aquele país que
comportava majoritariamente remadores, um
fosse mais do que retórico, bem como, simetri-
número bem menor de tripulantes, uns pou-
camente, de os habitantes de lá ameaçarem de
cos soldados e um comandante cujo nome era
alguma forma o Egito e suas fronteiras - era o
Nehesy.
que permitia uma idealização do exotismo pun-
tita de forma quase sempre positiva, ao contrá- Punt é figurado como região tipicamente
rio de uma invariável tendência pejorativa dos africana, com tamareiras, sicômoros, palmei-
textos egípcios ao se referirem a alguma região ras, coqueiros e árvores de incenso; da fauna,
da Ásia ocidental (ou, analogamente, à Núbia aparecem por exemplo macacos, um pássaro,
ou Kush, que colindava com o Egito pelo sul e bois, uma girafa, um leopardo. As cabanas dos
era diretamente acessível pela navegação Nilo habitantes têm forma cônica e elevam-se sobre
acima).21 estacas; uma escada conduz à porta. Um dos
relevos, acompanhado de texto, mostra o en-
Após o decreto da rainha-faraó, o texto, do-
contro do comandante egípcio Nehesy e seus
ravante narrado na terceira pessoa, menciona
soldados - tendo à frente uma mesa baixa com
“os Terraços do incenso de Punt” como “lugar
as mercadorias trazidas do Egito para troca: co-
sagrado da delícia do coração”, tendo pouco an-
lares de ouro, miçangas, braceletes, uma espa-
tes reafirmado a noção de Amon-Ra como “go-
da - com o magro chefe de Punt, Parahu, sua
vernante de Punt, (o país) amado”.
gorda esposa Ity (que não apresenta esteato-
O que ensinam os documentos de Deir el- pigia - como se pretendeu às vezes - mas, sim,
-Bahri - texto escrito e iconografia - acerca da extrema obesidade e lordose), seus dois filhos
expedição e do próprio país de Punt? e uma filha, representando-se igualmente um
Em primeiro lugar, o decreto de Amon men- asno conduzido por três puntitas, destinado a
ciona duas vezes que a expedição a ser envia- transportar Ity. Aquela região e seus habitantes
da viajaria “por mar e por terra”, coisa também são, pois, figurados nos relevos acentuando-
afiançada depois numa fala atribuída a habi- -se voluntariamente o pitoresco, a alteridade.
tantes de Punt, o que confirma a rota Nilo-tra- Diante da cabana onde se alojava Nehesy, numa
vessia terrestre-mar Vermelho, assunto já tra- das cenas, acumulam-se produtos de Punt, en-
tado. Além de visar à importação de produtos quanto outros ainda estão sendo trazidos, na
tropicais (incluindo árvores de incenso a serem presença do chefe Parahu e de sua esposa. Jus-
tifica-se, assim, a interpretação possível dessas
21
Ver a este respeito: WIEDEMANN, Amanda Barbosa. A visão
egípcia sobre o “estrangeiro” na literatura do Reino Médio. Ni- cenas de troca como aludindo a um “comércio
terói: Universidade Federal Fluminense, 1994 (dissertação de silencioso”: os egípcios apresentam em bloco as
Mestrado).

14 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
mercadorias que trazem, os puntitas amontoam de Punt (entre eles, trinta e uma árvores vivas
as suas, até que se chegue a um acordo sobre as de incenso a serem transplantadas em Karnak)
proporções dos lotes respectivos de produtos e como também de bens provenientes de Kush,
a troca se efetue. O comandante Nehesy recep- incluindo gado e outros animais. A rainha-faraó

ARTIGOS
cionou os “grandes de Punt” oferecendo-lhes é representada medindo pessoalmente incen-
pão, cerveja, vinho, frutas - em suma, “todas as so para seu pai Amon-Ra, comprovando desse
coisas provenientes do País Amado (o Egito)” -, modo o que afirmara em seu decreto real, no
fazendo-o “conforme a instrução que havia sido qual havia declarado ser a finalidade precípua
dada no palácio real”. da expedição puntita a obtenção de preciosas
O carregamento que os barcos transporta- oferendas para o deus dinástico.
ram no retorno ao Egito é descrito assim: À guisa de conclusão: as
“Os navios estavam pesadamente carregados representações dos egípcios
com as maravilhas do país de Punt: todas as acerca do país de Punt no
essências odoríferas do país divino; montes contexto das suas
de incenso; árvores de incenso ainda verdes; representações gerais
ébano e marfim puro; ouro verde do país de sobre os países estrangeiros
Aamu; láudano e canela; mirra, incenso, pin-
tura negra (para os olhos); macacos, macacas Examine-se, adiante, o gráfico que elaborei
e cães; numerosas peles de panteras do sul; para resumir as representações egípcias básicas
pessoas com seus filhos.” sobre os países estrangeiros.
Já se viu anteriormente que nem todas es- As representações reunidas no gráfico em
tas mercadorias eram do próprio Punt: algumas questão dependem de outra, mais geral: a de
- como o ouro, o marfim e talvez os escravos - que o faraó, descendente em linha direta do
provinham de outras regiões africanas, agindo deus criador (e, eventualmente, hipóstase do
os puntitas como intermediários. mesmo), é dono de todo o universo, incluindo
Na chegada ao Egito, o texto e os relevos os países estrangeiros. No Reino Novo, Amon-
mostram - em cumprimento de uma passagem -Ra reivindica a posse específica de certas regi-
do decreto oracular de Amon - os grandes de ões (a qual torna extensiva ao rei do Egito, seu
Punt, em conjunto com núbios, oferecendo a filho): governante de Punt, ele lá faz crescer as
Hatshepsut o carregamento da expedição e árvores de incenso. Com isto, garante o culto a
bens provenientes de outros países meridio- todos os deuses egípcios, dos quais, segundo
nais como se fossem tributos, quando, na ver- a religião monárquica da época, é o rei; e, nas
dade, houve uma troca em Punt, como vimos, montanhas do Líbano, faz crescer a madeira
além de haver sido a expedição eminentemente que servirá à construção e ao conserto de seu
pacífica. A presença física em Tebas, naquela barco sagrado, rebocado no rio Nilo quando de
ocasião, de tais habitantes das regiões situadas certos festivais. As relações do Egito com Bi-
ao sul do Egito é altamente improvável. A afir- blos, por meio de cujo porto conseguia madeira
mação a respeito obedece simplesmente a uma do Líbano, eram antigas e estreitas, o que, sob
convenção segundo a qual as importações egíp- certo aspecto, dava a essa região asiática uma
cias efetuadas mediante expedições régias eram posição à parte no imaginário egípcio, até certo
sempre apresentadas ao público interno como ponto simétrica à que ocupava Punt. Simétrica
se fossem tributos e presentes, mesmo quando, - e, não, idêntica - porque em Biblos se constata
como no caso que analisamos, houvessem sido um grau importante de egipcianização, enquan-
obtidas mediante um processo de intercâmbio. to Punt é percebido fundamentalmente sob o
Hatshepsut dedicou a Amon-Ra de Karnak, à prisma da alteridade.
chegada da expedição, abundantes oferendas, Os puntitas submetem-se ao faraó, como to-
compostas não somente de produtos trazidos dos os estrangeiros, e - teoricamente em cer-

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 15


volume 2 | 2001
tas ocasiões, efetivamente em outras - enviam provavelmente fora representada como a deusa
embaixadores carregados de tributos e presen- Háthor, especialmente associada pelos egípcios
tes para o rei do Egito. Constituem, porém, um aos países estrangeiros, de que era a “senhora”.
caso especial: não se representa, verbalmente Se, em relação a Punt, ocorreu de parte dos

ARTIGOS
ou em imagens, o faraó massacrando gente de egípcios, a milênios de distância no tempo, algo
Punt, como ocorre com os demais povos estran- semelhante em termos gerais a algumas das
geiros que tinham relações com os egípcios; e primeiras representações européias acerca da
só muito excepcionalmente o país de Punt apa- América, que a davam como terra maravilho-
rece integrando os “Nove Arcos”, isto é, a lista sa, para sorte dos puntitas não houve qualquer
dos inimigos tradicionais do Egito pisoteados possibilidade de uma conquista efetiva de sua
pelo faraó (e a iconografia correspondente).22 região pelo Egito. Assim, contrariamente ao que
Em suma, as representações acerca de Punt aconteceu com as imagens paradisíacas dos eu-
raramente contêm elementos negativos. Trata- ropeus sobre a América, que foram efêmeras,
-se, acima de tudo, do “país divino”: uma região a visão de Punt como terra de fábula contendo
fabulosa, mirífica, até mesmo por ser só muito maravilhas pôde manter-se durante todo o pe-
ligeiramente conhecida (o que possibilita, a res- ríodo de mais de um milênio em que tal região
peito, visões mirabolantes), da qual vêm mara- e o Egito mantiveram contato na Antigüidade
vilhas para o Egito. faraônica.

Representações egípcias acerca dos países


estrangeiros durante o Reino Novo (segunda
metade do II milênio a.C.

(1) Representa as expedições pacíficas de troca,


eventualmente ordenadas por Amon mediante de-
cretos oraculares e confirmadas por decretos reais.
(2) Representa as expedições belicosas, quando
Amon entrega a cimitarra de guerra ao faraó.
***
A rainha Hatshepsut, na estátua de si mes-
ma e de seu pai Amon que enviou quando de
sua expedição para que a instalassem em Punt,

22
Ver uma rara exceção em: VANDERSLEYEN, Claude. Op.cit., pp.
500-501.

16 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
Privacidade da Vida Feminina na

ARTIGOS
Pólis dos Atenienses
Fábio de Souza Lessa
Prof. Dr. Adjunto de História Antiga do Departamento de História da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Resumo: Clássico – séculos V e IV a.C.. E ao mesmo tem-


Neste artigo temos por objetivo analisar as ativi- po que propúnhamos esta leitura acerca do es-
dades femininas desenvolvidas no espaço interno do paço de ação das esposas legítimas atenienses,
oîkos, explicitando algumas das formas de integra-
ção cívica das esposas à pólis e de constituição dos refutávamos parte considerável da produção
grupos informais femininos. Defendemos a hipótese historiográfica contemporânea, que insiste em
da participação cívica e ativa das esposas na pólis analisar o comportamento feminino sempre
dos atenienses no decorrer do Período Clássico. sob os parâmetros do modelo idealizado para
Palavras-Chave: Esposas. Oîkos, Atenas as esposas pela sociedade masculina e cons-
Résumé: tantemente reproduzido pela documentação
Cet article a pour but d’analyser les activités fémi- antiga. Tivemos por pretensão com este traba-
nines réalisés dans l’espace interne d’oîkos, exposant lho encontrar uma outra via da dinâmica sobre
les formes d’intégration civique des épouses dans la as relações estabelecidas entre os grupos fe-
pólis et de constitution des groupes informels. mininos, priorizando o das esposas legítimas e
Mots-clé: Épouses, Oîkos, Athènes “bem-nascidas”, e a pólis ateniense.
Quanto à questão do discurso idealizado
masculino, recuperamos as palavras de Pier-
re Brulé que, aos olhos dos gregos antigos, ter
nascido mulher diminuía as chances de deixar
uma marca na história e que as mulheres, ape-
sar de bastante numerosas na Grécia antiga, so-
frem de dois “problemas”: de serem mulheres
Este artigo representa parte dos resultados e escravas, mulheres e estrangeiras, mulheres e
da pesquisa que desenvolvemos para a conclu- excluídas do sistema social (Brulé, 2001: 9).
são do Curso de Doutorado em História Social
Sabíamos que, apesar deste discurso mas-
na UFRJ, sob a orientação da Professora Titular
culino idealizado que relegava as esposas legí-
Drª. Neyde Theml e cuja Tese, defendida em
timas ao gineceu, as caracterizando como pas-
2001, se intitula Mélissa Tecendo Redes Sociais
sivas e frágeis, elas conquistaram espaços de
entre os Atenienses.
atuação e criaram lugares próprios de validação
Durante toda a pesquisa defendemos a hipó- social feminina através do exercício das práti-
tese da participação cívica e ativa das esposas cas cotidianas que possibilitavam a constituição
na pólis dos atenienses no decorrer do Período de grupos informais. Partimos do princípio de

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 17


volume 2 | 2001
que a reciprocidade, a solidariedade e a amiza- Privacidade, cotidiano, intimidade da vida
de são alguns dos elementos de coesão interna são alguns dos conceitos bastante recorrentes
desses grupos femininos (Giner, 1996: 17 e 29; hoje na produção historiográfica, principalmen-
Konstan, 1997: 55). te nas pesquisas vinculadas à História Cultural.

ARTIGOS
Entendemos que, ao constituírem e parti- Mas o que entendemos como privacidade da
ciparem dos grupos informais, as esposas ate- vida feminina na Atenas Clássica?
nienses “bem-nascidas” – grupo social ao qual Privacidade da vida feminina, em nossa pes-
nos concentraremos neste artigo por possuir- quisa, se refere à todas as relações estabele-
mos uma maior quantidade de referências na cidas pelos grupos de esposas no interior do
documentação - apreendiam a sua identidade oîkos. Neste artigo, mais especificamente, às
e, ao mesmo tempo, visualizavam os seus pos- tarefas domésticas cotidianas.
síveis outros – as esposas pobres, as esposas de Na nossa interpretação, o oîkos, local tradi-
metécos, as concubinas, as cortesãs e, princi- cionalmente de reclusão feminina, será enten-
palmente, os grupos masculinos – isto é, a sua dido como o principal espaço privado para os
alteridade total. Dentre os vários elementos de gregos antigos, assumindo a concepção de uma
produção de identidade das esposas legítimas “região protegida da vida”, de relações de inti-
e “bem-nascidas” apontamos, no decorrer da midade familiar. De acordo com Aristóteles, o
pesquisa, o seu próprio status de esposa legí-
oîkos é constituído por uma família e por seus
tima, a sua associação com o espaço interno, a
agregados (ARISTÓTELES. Política. I, 1253b, 1-9).
concepção de filhos legítimos que seriam os fu-
turos cidadãos atenienses, o gerenciamento do Mas o oîkos, segundo Tucídides e ainda Aris-
oîkos, a fiação, a tecelagem, a colheita de frutas, tóteles, era uma unidade de reprodução da es-
os grupos cultuais dos quais participavam, os pécie, do patrimônio, da ordem político-religio-
grupos de amigas, a educação recebida, entre sa e da ideologia políade (ARISTÒTELES. Política.
outros. Porém, não queremos com isso afirmar I, 1253 a, 1-40; TUCÍDIDES. II. 37, 1-3 e II. 38,
que as mulheres na sociedade dos atenienses 1-2; Theml, 1998 A: 70).
constituíam uma homogeneidade. Ao contrário, Apesar do termo oîkos ser complexo e de
defendemos e demonstramos a sua heteroge- significar mais do que família, a historiografia
neidade. o tem comumente reduzido à família nuclear.
Aplicamos à pesquisa o instrumental ofe- Cheryl Anne Cox explica tal posição pelo fato
recido pela história de gênero. Neste sentido, da descrição de Xenofonte para oîkos continuar
trabalhamos com o aspecto relacional entre o reinando supremamente (Cox, 1998: 134). De
masculino e o feminino (Soihet, 1997: 101), e acordo com Xenofonte, o oîkos é uma unida-
entendemos que as suas diferenças são oriun- de de produção, de consumo e de reprodução,
das da organização social entre os sexos, da baseado na riqueza da terra e sendo a família
cultura, e não de um determinismo biológico. nuclear, sua parte integrante (XENOFONTE. Eco-
Dessa forma, entre gênero e sexo existe uma nômico. VII. 11 e 21).
fronteira: o primeiro diz respeito à cultura, en- Munidos desses referenciais conceituais,
quanto o segundo à natureza (Tilly, 1994:42; analisaremos as atividades femininas desenvol-
Yuval-Davis, 1997: 8-9) vidas no âmbito interno do oîkos, objetivando
Neste sentido, Pierre Brulé chama a atenção demonstrar algumas das formas de integração
para o fato de que as mulheres não se encon- cívica da esposa à pólis e da constituição dos
tram contudo sozinhas em cena e que a pesqui- grupos informais femininos. As imagens repre-
sa sobre o feminino nos informa evidentemente sentadas nos vasos áticos do Período Clássico
muito quando retornamos para os homens, so- contendo a tecelagem e a fiação como temáti-
bre a associação dos gêneros, sobre as socieda- cas serão a documentação para tal análise.
des onde elas vivem, a cultura onde elas estão A tecelagem, além de ser uma atividade vir-
imersas (Brulé, 2001: 10). tuosa para a esposa, se constituía em uma tarefa

18 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
que pressupunha, quase sempre, um grupo vinte do século passado, Pieter Herfst defende
para a sua realização; isto porque as esposas, a hipótese de que, na sociedade grega, a prepa-
exercendo tal atividade em conjunto, formavam ração da lã foi, principalmente, executada pe-
uma equipe eficiente, e com isso produziam las mulheres (Herfst, 1922: 18). Décadas mais

ARTIGOS
mais que se estivessem atuando em separado tarde, Sue Blundell defende tese semelhante ao
(Barber, 1992:108). E, em conjunto, elas certa- afirmar que, na Atenas clássica, a maioria dos
mente trocavam entre si informações sobre os tecidos eram manufaturados ainda pelas mu-
mais diversos assuntos, e se mantinham coesas lheres no interior do oîkos, e que a lã era o teci-
enquanto grupo. Sue Blundell enfatiza, indi- do mais comum (Blundell, 1998 A: 65).
retamente, a necessidade de um grupo para a Platão, visando demonstrar as especificida-
realização das atividades da tecelagem, ao afir- des culturais atenienses no que se refere à edu-
mar ser necessário um período de seis semanas cação de uma esposa, euforiza (valoriza) como
para uma mulher produzir material suficiente um costume em Atenas, a atuação feminina na
para a confecção de um péplos ou de um chitón administração do oîkos e o controle sobre toda
(Blundell, 1998 A: 65-66). Acreditamos que, no a tecelagem (PLATÃO. Leis. VII, 805 e).
decorrer deste período de convivência, estaria Xenofonte também euforiza os mesmos atri-
assegurado o processo de interação social entre butos. A participação feminina na administra-
as esposas e as demais mulheres do oîkos. ção do oîkos, quando Iscomâco afirma a Sócra-
Roger Brock enfatiza que o trabalho das mu- tes que “... minha mulher – gyné - é capaz de
lheres, feito no interior do grupo doméstico, cuidar pessoalmente das coisas de minha casa”
possuía também uma dimensão economica- (XENOFONTE. Econômico, VII, 3) e a sophía fe-
mente produtiva e que, neste sentido, sua área minina na arte da tecelagem, pois “... quando a
de destaque era a têxtil (Brock, 1994: 338). A lã – éria - chegar às tuas mãos, deves cuidar que
fiação e a tecelagem pressupunham, por parte tenham túnicas – himátia - os que delas pre-
das esposas, um domínio técnico e um saber cisam” (XENOFONTE. Econômico, VII, 36. Ver,
essencialmente femininos, independendo de também, VII, 6 e 21).
status social, sendo vistas pelos homens gregos A recorrência por parte das esposas aos gru-
como realizações femininas aprimoradas (Blun- pos de amizades garantiria a obtenção de ajuda
dell, 1998 B: 237). na realização de suas tarefas, demonstrando ser
Na Grécia clássica, a tecelagem e a fiação a amizade uma relação voluntária, igualitária e
ocupavam a maior parte do tempo das mulhe- recíproca.
res.1 De acordo com E.J.W. Barber, as esposas A arte de tecer e de fiar pressupunha toda
atenienses, diferentemente das cortesãs, pas- uma sophía e uma téchne femininas no manejo
savam suas vidas refugiadas no oîkos, tecendo e de uma série de instrumentos essenciais ao de-
fiando para as necessidades da família, com ou senvolvimento dessas atividades. Em geral, os
sem auxiliares (Barber, 1992: 104). Apesar de instrumentos de trabalho feminino eram leves,
discordarmos da idéia predominante acerca da portáteis e muito raramente fixos (Mactoux,
reclusão das esposas, defendemos a importân- 1994/95: 310), o que evidencia que as esposas,
cia da execução, por parte das próprias esposas para a realização de suas atividades domésticas,
atenienses do Período Clássico, das atividades não precisavam permanecer restritas a um de-
da tecelagem e da fiação. terminado espaço. E se existia, no mundo anti-
Em sua obra clássica sobre o “trabalho” fe- go grego, uma matéria inseparável da mulher,
minino na Grécia antiga e publicada nos anos esta era a lã. As atividades da tecelagem eram
singulares, por permitirem que a métis feminina
1
A tecelagem e a fiação eram, no mundo grego antigo, ativi-
dades femininas que não se restringiam somente ao grupo das – uma das principais armas das esposas – fosse
esposas legítimas e “bem-nascidas”. Defendemos a hipótese de revelada (Byl, 1991: 38, 41-42).
que tais atividades eram, para as esposas “bem-nascidas”, um
critério de virtude.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 19


volume 2 | 2001
A seguir, reproduziremos um grupo de ins- cardá-los, formação de um novelo e, em segui-
trumentos usados pelas esposas para a tecela- da, confecção das vestimentas (ARISTOPHANES.
gem e a fiação: um cesto para a lã – kálathos -, Lisístrata, vv. 574-85).3
um fuso de prata e um de madeira, e três pesos Existe um corpus significativo cujas imagens

ARTIGOS
para dar tensão ao fio.2 possuem, como temática, a fiação e a tecela-
gem. Dentre essas imagens selecionamos qua-
tro para analisarmos.
Na primeira imagem abaixo, pintada em um
lékythos4 de figuras negras, e atribuído ao pin-
tor Amásis, encontramos as etapas do processo
da tecelagem e da fiação, desde a pesagem da
lã até a confecção final do tecido.5

Figura 1

O tear vertical com pesos era outro instru-


mento imprescindível para a tecelagem e utili-
zado pelos grupos femininos, além de presen-
te em várias cenas de tecelagem representada
nos vasos gregos. De acordo com Barber, era o
tear tradicional na Europa e permitia a confec- Figura 2 A Figura 2 B
ção de peças de roupas medindo entre quatro e
seis pés – em torno de 30 cm - em cada direção As personagens, que se encontram engajadas
(Barber, 1992: 109-110). nas atividades da lã, foram representadas pelo
O manejo com a lã era laborioso e demo- pintor em etapas diferentes desse processo.
rado, envolvendo um número considerável de
processos. Este se iniciava com a separação da 3
“Primeiro seria preciso, como com a lã bruta, em um banho
lavar a gordura da cidade – póleõs -, sobre um leito expulsar
lã dentre as tosquiadas, em seguida era neces- sob golpes de varas os pelos ruins e abandonar os duros, e es-
sário lavá-la, desembaraçá-la, cardá-la, tingi-la, tes que se amontoam e formam tufos sobre os cargos cardá-los
um a um e arrancar-lhes as cabeças; em seguida cardar em um
fiá-la e, finalmente, a tecelagem de roupas no cesto a boa vontade comum, todos misturando; os metécos –
tear (Blundell, 1998 A: 65; Barber, 1992: 106; metoíkous -, algum estrangeiro que seja vosso amigo – phílos – e
alguém que tenha dívida com o tesouro, misturá-los também, e,
Herfst, 1922: 20-21; Pekridou-Gorecki, 1993: por Zeus, as cidades – póleis -, quantas desta terra são colônias,
13-22). distinguir que elas são para nós como novelos caídos ao chão
cada um por si; em seguida o fio de todos estes tendo tomado,
Na comédia Lisístrata, Aristófanes nos apre- traze-los aqui e reuni-los em um todo, e depois de formar um
senta as etapas do processo da tecelagem. novelo grande, dele então confeccionar um manto para o povo
– démõi (ARISTÒFANES. Lisístrata, vv. 574-85).
Através de uma analogia entre essa atividade 4
Vaso usado para óleos e ungüentos (Sparkes, 1991: 83).
tipicamente feminina e a administração da pó- 5
Localização: New York - The Metropolitan Museum of Art - inv.
lis, Lisístrata enumera as variadas fases da te- 31.11.10; proveniência: não fornecida; forma: lekythos; estilo:
celagem: lavagem da lã bruta, seleção dos fios, figuras negras; pintor: Amásis; data: 560-525. Consultar em:
Blundell, 1998 A: 66, fig. 17; Bothmer: s/d, pp. 186-87; Dela-
vaud-Roux, 1994: 95-96, fig. 32; Jenkins, 1990: 20-21, fig. 20;
2
Para os instrumentos da tecelagem e da fiação, consultar: Keuls, 1993: 108, fig. 93 a, b; Keuls, 1997: 384, fig. 16; Lissarra-
Jenkins, 1990: 20, fig. 19. gue, 1993: 252.

20 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
Interpretamos que, neste aspecto, os elemen- não só às suas escravas, mas principalmente aos
tos euforizados (valorizados) pelo artesão são membros femininos da sua família, às suas vi-
as atividades em equipe e a divisão do “traba- zinhas e, também, às suas amigas. Dividindo o
lho” feminino. Porém, mais do que os aspectos mesmo espaço por um período de tempo con-

ARTIGOS
técnicos do “trabalho”, o que reteve a atenção siderável e executando as mesmas atividades,
dos pintores foi a beleza dos gestos femininos as esposas tinham a possibilidade de trocarem
(Lissarrague, 1993: 253). impressões umas com as outras, de se informa-
No que se refere à apropriação do espaço, a rem, de consolidarem grupos de cooperação
cena parece se desenvolver em um mesmo qua- mútua e de philía.
dro espaço-temporal, isto é, há uma sincronia Ter toda a superfície de cada vaso e as ima-
entre as personagens no desenvolvimento das gens nela pintadas é uma necessidade para
suas atividades, que são concomitantes. A cena a análise da documentação imagética, pois o
se passa no interior, haja visto os instrumentos autor cria a mensagem de maneira global e
de trabalho e a mobília presentes na imagem. de acordo com a forma da superfície e dos es-
As personagens foram representadas em perfil quemas de composição conhecidos que dis-
e em um mesmo plano, com exceção daquela põem para executar o desenho (Bérard, 1983:
que se encontra curvada; estando os seus olha- 5-10). Para nós, a necessidade de se ter toda a
res voltados para o âmbito interno da cena, de- superfície pintada de um vaso está associada a
monstrando compenetração na execução das um domínio, por parte do pintor, acerca do co-
tarefas. nhecimento da superfície e do espaço os quais
De acordo com a imagem,6 a primeira etapa ele possui para enunciar a sua mensagem glo-
do processo de tecelagem consiste na pesagem bal. É através dos axiomas da matemática e da
da lã, que é retirada do kálathos. Podemos ob- geometria no plano, por exemplo, que tinham
servar a meticulosidade do pintor ao distinguir como termos hóros e péras - ambos os termos
a espessura dos fios tão bem quanto os tipos de significam limite - que permitem o estabeleci-
fusos – átraktoi – empregados. mento de presenças e ausências, isto é, o que
Outros elementos euforizados pelo pintor pertence e o que está fora do conjunto (Gardies,
na imagem são as atividades domésticas para a 1997: 31-34). Porém, no caso de não possuir-
manutenção do oîkos, a vida privada, a coope- mos toda a superfície pintada de um dado vaso,
ração entre as esposas, suas virtudes, a téchne a decodificação de seus signos se fará através
e a sophía femininas. da observação de um repertório comum de ele-
mentos oferecidos pelo conjunto do corpus da
Precisar qual o vínculo existente entre as
documentação imagética e pela temática a qual
personagens representadas na imagem é algo
ele se refere.
difícil, senão impossível. Defendemos a hipó-
tese de que as esposas, para desempenharem Com base neste pressuposto, passamos
o processo da fiação e da tecelagem, recorriam a interpretar a imagem pintada no friso do
lékythos, atribuído a Amásis. Temos, neste fri-
so, uma cena de dança em coro. Podemos nos
6
Duas personagens – localizadas à direita do tear – realizam a
etapa da pesagem da lã. Elas depositam a lã no prato direito da perguntar: qual é a mensagem que o pintor nos
balança, que é mantida pela primeira personagem. Esta opera- quer transmitir ao associar a tecelagem e a dan-
ção é supervisionada por uma terceira personagem que gesticu-
la com ambas as mãos. Entre esta última personagem e o tear ça? F. Lissarrague nos auxilia na resposta a esta
vertical estão representadas seis outras personagens divididas
em três pares. O grupo central possui duas mulheres dobran-
questão. Segundo o autor, essas duas ativida-
do a peça já concluída e colocando-a sobre o banco abaixo, en- des são complementares, pois com freqüência
quanto os dois pares paralelos demonstram mulheres tecendo.
A personagem sentada e a acompanhante oposta à ela utilizam
o imaginário grego assinalou analogias entre o
um fio mais grosso e empregam um fuso primitivo; elas puxam movimento no tear e o das dançarinas (Lissarra-
a lã do kálathos e de um monte no chão. Já a personagem em
pé, e também a mulher oposta a última fiandeira, faz uso de um gue, 1993: 252).
fuso padrão, na preparação de um fio muito fino.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 21


volume 2 | 2001
dos atenienses, os momentos essenciais da ati-
vidade feminina (Lissarrague, 1993: 252). Há
discussões quanto à identificação da persona-
gem sentada: esta personagem seria Athená

ARTIGOS
que receberia o péplos ou uma jovem recém
casada que recebe o véu. O mais provável é ser
esta personagem uma jovem que ainda está em
casa dos pais antes do cortejo nupcial e um coro
de jovens lembra este cortejo em dois momen-
tos: um mais lento e outro mais rápido, estando
os passos dependentes das mãos dadas (Dela-
vaud-Roux, 1994: 95; Calame, 1977: 137-138).
Nas duas próximas imagens estarão em des-
taque etapas específicas do processo da produ-
ção de fios de lã. Na primeira imagem8 pintada
em um oinochóe,9 atribuído ao pintor Brygos,
temos uma cena de fiação.10 Como na imagem
anterior, a personagem foi representada em
perfil e a cena é certamente de interior.

Figura 3

Outro aspecto a ser salientado, e que possui


uma conexão estreita com a dança, é a músi-
ca. As mulheres também cantavam para aliviar
a monotonia das tarefas cotidianas. Elas can-
tavam, por exemplo, enquanto trituravam ce-
reais, adormeciam os bebês, teciam e fiavam;
inclusive, as tecelãs possuíam suas próprias
canções. Segundo M.L. West, os gregos antigos
entenderam bem o valor da música como uma
auxiliar para a realização das atividades cotidia-
nas e para o movimento corporal (West, 1992:
Figura 4
27-28).
Nesta imagem7 nos encontramos frente a 8
No centro da imagem temos uma mulher de pé, segurando
uma conexão entre as temáticas da tecelagem, com a mão esquerda a roca - elakáte. O polegar e o dedo indi-
cador da mão direita seguram o fio – elákata - enquanto o fuso
dança e casamento. Esta relação revela, na visão – átraktos – gira de modo a puxá-lo para baixo. Observamos que
a ponta do fio foi amarrada a um peso, de modo a mantê-lo em
constante tensão. Percebemos, também, que a sua cabeça está
7
No centro da imagem vemos uma mulher sentada com véu, ligeiramente inclinada para a frente, estando seus olhos volta-
representando uma jovem recém casada. Atrás da personagem dos cuidadosamente para o fio, demonstrando compenetração
sentada, um homem e uma mulher seguidos por quatro mu- na execução da atividade (Williams, 1984: 94-95; Pedley, 1993:
lheres que se dão as mãos e executam um passo bastante vivo, 269).
o que pode ser atestado pela abertura das pernas das perso- 9
Usado para apanhar o vinho de uma kratér ou stamnos e des-
nagens. Diante da mesma personagem sentada, dois homens pejar em um kántharos ou na taça dos convivas (Sparkes, 1991:
– com idades diferenciadas, um mais velho e outro mais jovem 84).
- seguidos de quatro mulheres que também se dão as mãos e
executam passos mais calmos do que as anteriores (Delavaud- 10
Localização: The British Museum, London, inv. D 13; prove-
-Roux, 1994: 95; Calame, 1977: 137-138). De acordo com a niência: Locri; forma: oinochoe; estilo: fundo branco; pintor:
interpretação de D. von Bothmer, a mulher sentada seria uma Foundry; data: 490 a.C.. Consultar em: Barber, 1992: 105, fig.
deusa ou uma sacerdotisa (Bothmer, s/d: 186-187). 64; Jenkins, 1990: 22, fig. 22; Pedley, 1993: 271, fig. 8. 46.

22 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
Pelas vestimentas – chitón e himátion borda- Concordamos com F. Lissarrague que o gesto
do - e os adereços – brincos e pulseiras - utili- da segunda personagem representada na ima-
zados pela personagem que se encontra repre- gem denota uma preocupação estética (Lissar-
sentada no centro da imagem, e também pela rague, 1993: 253). Logo, além da atividade fe-

ARTIGOS
inscrição onde aparece o termo kalé, podemos minina da lã, também é euforizada pelo pintor a
concluir ser a personagem “bem-nascida”. Fica estética peculiar ao universo feminino. As ves-
claro a euforização por parte do pintor da fia- timentas das personagens – chitón plissado -, o
ção, atividade doméstica realizada no interior tipo de cabelo – preso com sakkós – e, ainda, a
do oîkos, e da téchne feminina para o desenvol- mobília e os instrumentos de trabalho presen-
vimento de tal tarefa. tes em cena, nos possibilita afirmar ser as per-
Na próxima imagem temos representada sonagens esposas legítimas e “bem-nascidas”.
uma personagem feminina executando uma Diferente da interpretação de F. Lissarrague,
téchne para a obtenção de um fio mais fino
Eva Keuls defende que o gesto se suspender
para a tecelagem.11 No medalhão desta taça de
uma das pontas do chitón, por parte da per-
Berlin temos uma cena interior.12 A presença
sonagem que se encontra de pé, pode ser en-
dos instrumentos de trabalho e da mobília do-
tendido como uma referência à retirada do véu
méstica nos permitem sustentar tal hipótese,
pela noiva – anakálypsis. Neste sentido, a ima-
enquanto no exterior desta mesma taça figura
um cortejo de convivas, adultos e barbados. gem representada nessa taça faz alusão a duas
Nesta taça, destinada ao banquete masculino, das tarefas de uma esposa: a atividade têxtil e
nos encontramos diante de uma organização ao sexo com o propósito de procriação (Keuls,
espacial: o universo feminino está representado 1997: 231-232).
no interior; enquanto o masculino, no exterior. Além das mulheres, os homens também pa-
Logo, mais uma vez nos deparamos com a bi- reciam ter uma grande consideração pela arte
polaridade interior/exterior ou privado/público. da tecelagem. Podemos pressupor que a ima-
Não nos esqueçamos de que a imagem se expri- gem de uma mulher tecendo teria, para um
me no espaço e aborda os problemas do espaço público masculino, significado em vários con-
(Frontisi-Ducroux & Lissarrague, 1998: 137). textos: a esposa virtuosa, devotada para o bem-
-estar da família e completamente atarefada
com o oîkos, mantendo-se distanciada do espa-
ço externo (Blundell, 1998 A: 67).
Na última imagem que selecionamos cuja te-
mática é o espaço interno do oîkos, mas preci-
samente o gineceu, recuperamos a convivência
em grupo feminina. Mas o universo temático
excede o da tecelagem. Nesta pýxis, provenien-
te de Atenas, os signos de privacidade são mais
Figura 5 evidentes: coluna, porta, espelho, mobília e ins-
11
Duas personagens femininas estão presentes em cena e foram trumentos de trabalho.13 Eva Keuls argumenta
representadas em perfil. À esquerda, temos uma personagem que o universo da tecelagem é freqüentemen-
sentada, estando com a perna direita descoberta e apoiando o
calcanhar em um pequeno cavalete. Ela está cardando a lã so- te reproduzido pelos pintores para recuperar a
bre o joelho. Freqüentemente, a perna era protegida para esta
atividade com um epínetron (Keuls, 1997: 231). Do kálathos co- vida cotidiana ateniense na Antigüidade (Keuls,
locado à sua frente, ela retira uma longa torcida de lã, que rola 1997: 232).
na tíbia para obter um fio mais fino. A segunda personagem, de
pé, não se encontra, momentaneamente, engajada na atividade
da fiação. Ela arruma o chitón e seu kálathos preocupação está
colocado sobre um banco à direita. O gesto dessa segunda per-
sonagem denota uma estética (Lissarrague, 1993: 253).
12
Localização: Berlin, Antikenmuseum Berlin, inv. F 2289; pro-
13
Localização: London, British Museum, inv. E 773; proveniên-
veniência: Vulci; forma: taça; estilo: figuras vermelhas; pintor: cia: Atenas; forma: pýxis; estilo: figuras vermelhas; pintor: Chi-
Douris; data: cerca de 490 a.C.. Consultar em: Keuls, 1997: 383, cago; data: cerca de 460 a.C.. Consultar em: Lissarrague, 1993:
fig. 14; Lissarrague, 1993: 253. 242.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 23


volume 2 | 2001
Concluindo, não podemos também deixar de
mencionar, assim como Marie-Madaleine Mac-
toux, que o papel social do “trabalho” das mu-
lheres livres se faz mais determinante do que

ARTIGOS
nos deixaram supor os indícios textuais. Certa-
Figura 6 mente, isto é o resultado da recusa masculina
em reconhecer a dimensão social do “trabalho”
As seis personagens estão agrupadas duas a feminino (Mactoux, 1994/95: 314). Aqui tive-
duas e representadas em perfil. Em sua maioria, mos por objetivo verificar a organização do es-
seus nomes são mitológicos. A comunicação es- paço social feminino a partir da participação das
tabelecida em cena se restringe às duplas, mas esposas nas tarefas cotidianas que pressupõem
as ações acontecem de forma concomitante.1 a reciprocidade e a formação de grupos.
A representação do kálathos servia como uma
chave pictórica para a oficina doméstica têxtil,
e provavelmente também carregava a conota-
ção simbólica da oficina e a continência regu-
larmente associadas à tecelagem (Keuls, 1997: BIBLIOGRAFIA
232). O perfume e o espelho, presentes na ima-
gem, nos remetem à relação de identidade e Documentação Textual
alteridade, mas a sua representação associada ARISTOPHANES. The Lysistrata, The Thesmopho-
à tecelagem é importante para argumentarmos riazusae, The Ecclesiazusae. Trad. B. Bickley Rogers.
a hipótese de que a vaidade e a sedução não se London: Harvard University Press, 1996, vol III.
encontram dissociadas do universo das esposas ARISTOTLE. Polítics. Trad. H. Rackham. Cambrid-
legítimas dos cidadãos atenienses. As referên- ge: The Loeb Classical Library, 1990.
cias à vaidade feminina não se encerram aqui; PLATO. The Laws. Trad. R.G. Bury. London:
isto porque, na imagem, ainda contamos com a William Heinemann, 2 vols., 1984.
representação de Cassandra, que está a compor THUCYDIDES. History of The Peloponnesian War.
Trad. C.F. Smith. London: William Heinemann, vol. 1
o seu chitón, e de Ifigênia a arrumar os cabelos
(1991); vol. 2 (1998); vol. 3 (1992); vol. 4 (1976).
com uma fita. Todos os signos presentes na ima-
XENOPHON. Oeconomicus. Trad. O.J. Todd. Lon-
gem – espelho, alábastros, coroa, fita e o ges- don: Harvard University Press, 1992.
to de Cassandra – pertencem à iconografia do
adorno feminino e às relações intimistas, cujo Bibliografia Instrumental e
o cenário era o gineceu. Certamente, as perso- Específica
nagens apresentadas nesta pýxis compõem um BARBER, E.J.W. “The Peplos of Athena”. IN: NEILS,
grupo de parentes ou de amigas. J. Goddess and Pólis: The Panathenaic Festival in
Ancient Athens. New Jersey: Princeton University
Consideramos a realização dessas atividades Press, 1992.
como uma das oportunidades para uma espo- BERARD, Cl. “Iconographie-Iconologie-Iconologi-
sa “bem-nascida” estabelecer códigos de fide- que”. IN: Étude de Lettres. Paris: 1983.
lidade pessoais, através das relações de philía, BLUNDELL, S. Women in Classical Athens. Lon-
como uma tática para a criação de um lugar so- don: Bristol Classical Press, 1998A.
cial feminino no interior da sociedade políade. ____________. “Women in Classical Athens”. IN:
SPARKES, B.A. Greek Civilization: An Introduction.
1
À direita, uma referência à tecelagem. Helena está sentada Blackwell, 1998 B.
a fiar lã diante de um cesto – kálathos. No mesmo espaço da BOTHMER, D. The Amasis Painter and His World.
tecelagem, temos a presença de um espelho e dos perfumes,
através do alábastros que a personagem Clitemnestra estende
New York: Thames and Hudson. S/d.
para Helena. Na próxima dupla temos uma personagem esten- BROCK, R. “The Labour of Women in Classical
dendo um cesto para Cassandra, que está a compor o seu chi- Athens”. IN: The Classical Quarterly. Oxford: Oxford
tón. À esquerda, Dánae retira uma coroa de um cofre e dirige-se
para a porta semi-aberta, que deixa entrever Ifigênia a arrumar
University Press, 1994, vol. XLIV.
os cabelos com uma fita (Lissarrague, 1993: 242).

24 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
BRULÉ. P. Les Femmes Grecques à l’Époque Clas- TILLY, Louise A. “Gênero, História das Mulheres e
sique. Paris: Hachette, 2001. História Social”. IN: Cadernos Pagu: desacordos, de-
BYL, S. “Le Stéréotype de la Femme Athénien- samores e diferenças. Campinas: PAGU/UNICAMP,
ne dans Lysistrata”. IN: Revue Belge de Philologie et 1994, v. 3.
d’Histoire. Bruxelles, Tome LXIX, 1991. WEST, M.L. Ancient Greek Music. Oxford: Claren-

ARTIGOS
CALAME, Cl. Les Choeurs de Jeunes Filles en Grèce don Press, 1992.
Archaique. Rome: Ed. Dell’ Ateneo & Bizzarri, 1977. WILLIAMS, D. “Women on Athenian Vases: Pro-
COX, C.A. Hosehold Interrests: Property, Mar- blems of Interpretation”. IN: CAMERON, A. & KUHRT,
riage Strategies and Family Dynamics in Ancient A. Images of Women in Antiquity. London and Syde-
Athens. Princeton: Princeton University Press, 1998. ney: Croom Helm, 1984.
DELAVAUD-ROUX, M.H. Les Danses Pacifiques en YUVAL-DAVIS, N. Gender & Nation. London: SAGE
Grece Antique. Provence: Université de Provance, Publications, 1997.
1994.
FRONTISI-DUCROUX, F. & LISSARRAGUE, F. “Sig-
ne, Objet, Support: Regard Privé, Regard Public”. IN:
Ktema. Strasbourg: nº. 23, 1998.
GARDIES, J-L. L’Organisation des Mathématiques
Grecques de Théétète à Archimède. Paris: J. Vrim,
1997.
GINER, J.C. La Amistad: Perspectiva Antropológi-
ca. Barcelona: Icaria, 1996.
HERFST, P. Le Travail de la Femme dans la Grèce
Ancienne. Utrecht: A. Oosthoek, 1922.
JENKINS, I. Greek and Roman Life. London: Bri-
tish Museum, 1990.
KEULS, E.C. Painter and Poet in Ancient Greece:
Iconography and the Literary Arts. Stuttgart and Lei-
pzig: B.G. Teubner, 1997.
__________. The Reign of the Phallus: Sexual Po-
litics in Ancient Athens. Califórnia: University of Cali-
fornia Press, 1993.
KONSTAN, D. Friendship in the Classical World.
Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
LISSARRAGUE, F. “A Figuração das Mulheres”. IN:
DUBY, G. & PERROT, M.(org.). História das Mulheres
no Ocidente. Trad. M.M.M. Silva. Porto: Afronta-
mento, v. I, 1993.
MACTOUX, M-M. “Autour du Travail au Féminin”.
IN: IN: Metis: Revue d’Anthropologie du Monde Grec
Ancien. Paris-Athènes, vol. IX-X, 1994-1995.
PEDLEY, J.G. Greek Art and Archaeology. London:
Laurence King, 1998.
PEKRIDOU-GORECKI, A. Come Vestivano I Greci.
Milano: Prima Edizione Gennaio, 1993.
SOIHET, R. “História, Mulheres, Gênero: Contri-
buições para um Debate”. IN: AGUIAR, N. Gênero e
Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Record / Rosa dos
Tempos, 1997.
SPARKES, B.A. Greek Pottery: An Introduction.
Manchester and New York: Manchester University
Press, 1991.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 25


volume 2 | 2001
ARTIGOS
Magia do katádesmos: téchne
do saber-fazer
Maria Regina Candido
Profa. Dra. de História Antiga do Departamento de História da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ)

Resumo: estudo de arqueólogos, antropólogos e filólo-


A magia pertence a uma zona ambígua, ele faz gos, porém, pouco analisado pelos historiado-
uso das tradições religiosas da polis, proclamando res. Ao comparamos as pesquisas provenientes
obter melhores resultados, principalmente quando
usada através das lâminas de chumbo. de profissionais das Ciências Humanas, consta-
tamos que os resultados das abordagens têm
Palavras-Chave: Magia, imprecação, ritos de morte.
contribuído para aumentar o conhecimento
Abstract: técnico sobre as finas lâminas de chumbo como
Nobody could imagine that the Athenian people o estabelecimento do período destas lâminas, a
wold be able to do the katádesmos’ magic. This ma- descrição minuciosa dos lugares em que foram
gic practice was made in curse tablets with binding
spells inscribed normally on thin metal, but the lead encontradas e informações sobre os artefatos
remained as a symbol which expressed the desire que as acompanhavam e a análise do texto que
to enlist supernatural aid in bringing another per- compõem a superfície do tablete resultando na
son, usually considered as na enemy, under control. elaboração de catálogos com quase todos os ka-
Mots-clé: Magic, katádesmos, curse.
tádesmoi descobertos até o momento.
Entretanto, como historiadores interessados
nas práticas sociais, percebemos a ausência de
uma explicação que nos permita compreender
o que teria levado Atenas, uma sociedade do ló-
gos, organizada com ênfase em preceitos tradi-
cionais, ritos dos ancestrais e na coesão cívica,
Este artigo é resultado da pesquisa de Dou-
promover as práticas individuais, estabelecer
torado que realizamos no Programa de Pós-Gra-
uma relação estreita com a morte e com o uso
duação em História Social (PPGHIS) da UFRJ sob
de maldições que visavam fazer mal ao inimigo?
orientação da Profa. Titular Dra. Neyde Theml.
Acreditamos que a análise do contexto social
O critério de originalidade de uma pesquisa
de Atenas nos possibilita elaborar possíveis ex-
não depende só da investigação de documento
plicações sobre a opção de prejudicar o inimigo
inédito, mas também da colocação de questões
a partir da maldição efetuada pela magia. Para
novas elaboradas a partir da documentação já
atingir nosso objetivo, delimitamos o princípio
existente. Seguindo este princípio nos propo-
da guerra do Peloponeso1 como marco inicial do
mos analisar as práticas mágicas dos atenienses
a partir dos tabletes de imprecação denomi- 1
Todas as datas são anteriores a Cristo (a. C.) salvo aquelas por
nados de katádesmoi que têm sido objeto de nós especificadas.

26 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
processo de transformação do comportamento baixo da terra (C.Faraone:1991,11). A palavra
dos atenienses em relação à morte. No século também tece aproximações com o termo ka-
seguinte, podemos delimitar indícios de diver- taduo que tem o sentido de afundar, enterrar,
sas mudanças e acentuados desvios que ratifi- ocultar. O termo katado integra o repertório

ARTIGOS
cam o processo de emergência dos interesses de maldição expressando o ato de cantar alto
individuais ta idía. Temos por suposição que visando conjurar alguém, enfeitiçar através de
a imprevisibilidade e a intercambialidade dos encantamentos. O termo latino defíxios2 parece
acontecimentos passaram a ser percebidos por ser a terminologia utilizada tanto pelos pesqui-
aqueles que os vivenciaram. Nesta dinâmica do sadores quanto pelos epigrafistas, arqueólo-
acontecer, a magia, que durante um tempo foi gos e antropólogos que, geralmente, usam-no
considerada como prática integrante dos ritos como sinônimo de tablete de maldição que tem
oficiais, tornou-se desviante por um certo perí- por fim fazer mal ao inimigo.
odo, porém, percebemos que ela retorna como Tornou-se tradição entre os pesquisadores
parte do cotidiano dos atenienses. Estes, que iniciarem a abordagem sobre as práticas da ma-
tinham seus comportamentos, crenças e as- gia partindo da análise tripartida de Sir James
pirações assegurados pela comunidade cívica, Frazer que estabeleceu a distinção entre ma-
defrontam-se com situações novas pelas quais gia, religião e ciência. Ciência foi definida como
a pólis não lhes garantia respostas efetivas às um conhecimento verificável através dos expe-
suas necessidades. rimentos; religião pertenceria a categoria do
A magia encontrada nos katádesmoi tem saber dogmático, cuja verdade era aceita sem
despertado o interesse dos pesquisadores nos verificação empírica pelo fato de basear-se na
últimos tempos, porém, com a ausência de uma crença e na fé; a magia seria considerada como
explicação que relacionasse o artefato arqueo- ciência bastarda ao oferecer um conhecimento
lógico ao contexto social que o produziu. Nossa operacional que controlava a natureza visando
proposta de análise nos leva a selecionar um atingir, sem intermediação, objetivos concretos
corpus de lâminas, cujas imprecações seriam (Versnel, 1991:178).
contra as atividades de comerciantes, as tes- Frazer pertenceu ao grupo de antropólogos
temunhas no tribunal e os rivais de relações britânicos do final séc. XIX, assim como Edward
amorosas. Consideramos interessante identifi- Taylor e E. Leach; e estabeleceu uma relação de
car as lâminas referentes às maldições contra os tensão entre magia e religião em que a magia
comerciantes por imprecação contra os ofícios seria uma religião mal entendida considerada
pelo fato de constatarmos que era a atividade superstição (Luck, 1995: 10). Defendia a seguin-
da forja ou de artesão, entre outras, que esta- te hipótese: a crença na magia nada mais era do
va sendo amaldiçoada nas lâminas de chumbo. que uma tentativa, ilusória e falsa de intervir na
As maldições visavam atingir tanto as atividades ordem do mundo. Segundo esta corrente antro-
de trocas e competição no mercado quanto as pológica, o homem primitivo, ignorante das leis
disputas efetivadas no tribunal. Optamos por da natureza e subjugado pela sua impotência
usar o termo imprecação contra os processos diante dela, atribuiria ao pensamento mágico
para indicar a especificidade das lâminas contra a capacidade de produzir sobre a realidade os
os envolvidos em demandas jurídicas decididas efeitos desejados (P.Monteiro,1986:5). O lugar
nos tribunais. As maldições denominadas por comum entre a magia e a religião seria o fato do
rivalidades amorosas, decidimos nomeá-las de
imprecação amorosa. 2
Defíxios é o termo latino de finas lâminas de chumbo que ti-
Em grego, os tabletes de imprecação são de- nha o sentido de fixar algo embaixo da terra. Os prefíxios de/
defíxios e kata/katádesmos sugerem um movimento de ligar
nominados de katasdesmoi e aparecem no dia- solidamente alguém no mundo subterrâneo. Estas lâminas de
leto ático como katadeo e tem por significado chumbo são de dimensão reduzida, algumas apresentam o for-
mato arredondado devido a ação da água que provoca o des-
amarrar, prender, imobilizar, atar alguém em- gaste de sua superfície, outras apresentam a peculiaridade de
serem atravessadas por estacas de ferro ou bronze.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 27


volume 2 | 2001
qual ambas fazem referências aos poderes e as do gado, nascimento de filhos sadios e o êxito
forças sobrenaturais. nos negócios.
Christoph Daxelmüller retomou, recente- A base da polaridade entre magia e religião
mente, esta discussão afirmando que tornou-se está na discussão do conceito de sociedade pri-

ARTIGOS
problemático analisar as práticas mágicas sob mitiva e sociedade avançada ou entre o pen-
a ótica de J.G.Frazer, ou seja, definir as práticas samento pré-científico e o científico. Segundo
mágicas como uma etapa preliminar da religião G.E.R.Lloyd esta discussão perpassou o século
e da ciência. Para o pesquisador, a teoria que se XIX e chegou ao século XX após um período
oculta nesta abordagem evolucionista da magia, de relativa latência, foi retomada pelos antro-
situa-se nas análises preconcebidas do século pólogos e filósofos da atualidade (G.E.R.Lloyd,
XIX e do uso de definições modernas para ca- 1990:14). A contribuição do debate foi modifi-
tegorizar antigos sistemas religiosos (Daxemül- car a nossa maneira de analisar os procedimen-
ler,1997:50). tos mágicos, passando a compreendê-los como
Estas abordagens nos permitem afirmar que práticas integrantes de sociedades distintas e,
o conjunto de fenômenos que estabelece rela- por conseguinte, a necessidade de apreendê-
ções com potências sobrenaturais, considerada -los através da relação de alteridade. Isto por-
fora do padrão estabelecido pelo saber vidente que as sociedades antigas ou contemporâneas,
se converte em ações de desvio. Estas, freqüen- simples ou complexas detêm a sua especifici-
temente, são identificadas como práticas má- dade na maneira de pensar, de agir diante de
gicas disforizadas, como podemos observar na fenômenos como as crenças, valores e tradição.
análise formulada W.J.Goode que mantém uma Lloyd acrescenta que o fato do pensamento
perspectiva agrária para abordar as práticas má- mágico integrar a religião de sociedades tradi-
gicas através do estabelecimento de critérios, cionais como a pólis de Atenas, inviabiliza as
os quais possibilitam distinguir a magia dos ritos afirmações dos seguidores de Frazer que par-
da religião oficial. Possivelmente a oposição en- tem do princípio de que a ciência suplantou
tre religião e magia está no fato das sociedades a magia na Grécia antiga e, como resultado, o
antigas, no caso a grega, acreditarem na ação pensamento racional ocupou o espaço do mito
eficaz e imediata da magia. Algumas destas prá- entre o VI e IV séculos. As afirmativas de Frazer
ticas mágicas faziam parte de ritos e cerimônias fazem parte de uma tradição que se consolidou
religiosas que visavam o benefício da coletivida- na história da Filosofia, que considera os pré-
de. De acordo com Carlos Espejo Muriel estas -socráticos da Jônia, definidos como os phusikoí
cerimônias constituem-se de rituais de purifica- do VI século, como os iniciadores do pensamen-
ção coletiva kathaírein. O rito de purificação ti- to filosófico grego e da especulação tipicamen-
nha a conotação de limpeza mágica, preparação te racional. Tal abordagem defende a crença no
para a inserção da nova colheita, dos primeiros triunfo da Razão sobre o Mito.
frutos definidos como a reafirmação da relação Compreendemos que esta vertente teórica
entre os homens e os deuses (C.E.Muriel, 1990: tem por fim analisar o pensamento especulati-
39). vo em Atenas, buscando determinar o impacto
Por outro lado, consideramos a magia gre- da religião com o pensamento científico e filo-
ga como atuante de zona ambígua pelo fato sófico no VI século. Devemos ressaltar que as
da apropriação tanto dos atributos dos deuses análises dos textos pré-socráticos e filosóficos
cultuados pela coletividade quanto dos ritos e nos indicam que, neste contexto social, o pen-
orações do culto na pólis. Logo, a magia tem samento e as crenças tradicionais não haviam
mostrado uma estreita relação com a religião desaparecido (G.R.Loyd, 1990:18). No território
da pólis tendo por fim objetivos sociais em be- ático a relação mito e razão tornaram-se, por
nefício da comunidade/koinonía como os rituais vezes, complementares como nos indicam as
mágicos para obter uma boa colheita, fertilidade reformas territoriais de Clístenes, que permitiu

28 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
ao cidadão adquirir a possibilidade de sua ex- na preparação de drogas mágicas4 visando qual-
pansão como pessoa,3 desarticulando os laços quer fim (E.R.Dodds,1988, passim). A análise
de sangue que o mantinha submetido ao gênos das ações das protagonistas nos levam a afirmar
e/ou oikía e a phratría e/ou tribo. que as práticas mágicas não defendiam, exclusi-

ARTIGOS
A iniciativa pessoal já estava nitidamente vamente, as relações do prazer, mas, um conhe-
em processo de formação na pólis no final do cimento, isto porque a magia era considerada
VI a.C. (J.P.Vernant,1988: 33), permitindo ao como um tipo de sophia, um saber, tendo em
cidadão fazer escolhas e ter opções. Este fe- vista que se sustentava através dos postulados
nômeno tem relação com a expansão econô- básicos que a fundamentava, como a lógica da
mica, a conquista do Mediterrâneo, o impulso contigüidade, da similaridade e do contraste
ao desenvolvimento do comércio e do artesa- (J.G.Frazer,1982; A. Bernand, 1991:passim).
nato (W.Burkert,1991:23). Atenas permitiu o De acordo com A. Jeffers, a relação entre
enriquecimento de outros setores econômi- magia e religião políade ainda permanece como
cos situados no espaço urbano que buscavam alvo de discussão para alguns pesquisadores.
a afirmação social através do uso da escrita e Alguns afirmam ser a magia uma superstição re-
da centralização dos cultos religiosos na área ligiosa ou vestígio de religiões antigas retido na
da ásty de Atenas, porém devemos acrescentar memória dos atenienses; outros defendem ser
que durante todo este período a ações coletivas uma degeneração e/ou corrupção da religião cí-
prevaleceram. vica (A.Jeffers,1996:1). Para nós, torna-se muito
A autonomização do cidadão acentua-se a difícil estabelecer uma diferença entre magia ,
partir do V a.C. tendo como um dos resultados religião e ciência para as sociedades tradicio-
a emergência do pensamento especulativo rela- nais, tendo em vista que o praticante da magia
cionado às crenças nos deuses políade. As refle- recorria aos deuses, aos ritos que integram os
xões filosóficas do VI e V a.C. buscavam explicar espaços consagrados pela religião oficial e co-
os fenômenos naturais afastados da vertente nheciam os resultados das ervas e raízes.
mítica e, por vezes, negavam alguns preceitos Por outro lado, havia ritos mágicos presen-
estabelecidos pela tradição da pólis dos áristoi. tes nas cerimônias religiosas oficiais, tais como
Tais constatações nos levam a pensar que os nos ritos fúnebres, no ritual da fertilidade, as-
cidadãos atenienses, que especulavam sobre os sim como no ritual de cura no Templo de Asklé-
saberes tradicionais, perceberam que os valores pio. Rituais que não eram nem secretos e nem
defendidos e sustentados pela coletividade cívi- proibidos, mas, eram práticas mágico-religiosas
ca já não desempenhavam uma efetiva satisfa- públicas em benefício da coletividade políade.
ção as suas crenças, aspirações e necessidades. Tais abordagens nos levam a concluir que de-
Para a análise da sociedade clássica grega, a vemos estabelecer outros critérios para definir
dicotomia entre práticas mágicas, ciência e o sa- as práticas da magia consideradas desviantes da
grado foi objeto de estudo de E.R. Dodd em Os religião políade.
gregos e o Irracional. Nessa obra o autor define Reafirmamos que a magia pertence a uma
a presença do irracional entre os helenos como zona ambígua. Ela faz uso das tradições religio-
uma forma específica de pensar a organização sas da pólis, proclamando obter melhores re-
do cosmos. Dodds acrescenta que as crenças e sultados que esta; e, por outro lado, devemos
as práticas mágicas integravam o universo dos acrescentar que nem os legisladores, nem os
helenos desde o período homérico através das sacerdotes e nem os filósofos conseguiram defi-
ações mágicas de Círce e Medéia, ambas pro- nir - de maneira precisa - quais eram as práticas
fundas conhecedoras no uso de raízes e ervas, religiosas proibidas e, dessa forma, estabelecer
3
Definimos pessoa como aquele ser dotado de vontade livre e
de responsabilidade para consigo e que decide viver na compa- 4
Para maiores esclarecimentos ver John Scarborough em The
nhia de outros segundo as normas e os valores definido por sua Pharmacology of Sacred Plants, Herbs, and Rotts; p. 138-160 In:
sociedade, ver M. Chaui. Convite a Filosofia. Ática,1998, p.117. Magika Hiera. FARAONE, Christoph.Oxford,1991.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 29


volume 2 | 2001
os limites entre religião e o que se definia como güentos, dos fluídos a serem ingeridos ou nos
sendo magia (G.Luck,1995:11). amuletos produzidos pelo magos.
De acordo com Versnel, o sociólogo E. Devemos ressaltar que tanto o solicitante
Durkheim definiu a magia como uma prática quanto o magos têm objetivos diferentes ao

ARTIGOS
imoral, anti-social e desviante pelo fato de suas executar a magia, a saber: o solicitante buscava,
ações visarem interesses pessoais e por não através das práticas mágicas, atender suas aspi-
ter um caráter positivo de coesão social e de rações individuais como, por exemplo, vencer o
solidariedade próprios da religião cívica (Vers- adversário através de uma disputa utilizando os
nel,1991:178). Partindo de tais considerações, recursos da maneira de fazer os katádesmoi e/
criam-se esteriótipos de serem as práticas má- ou eliminar o adversário interessado em preju-
gicas atitudes do desvio, uma ação que não per- dicá-lo. O solicitante exigia, por intermédio do
tencia às práticas políades. magos, que as potências sobrenaturais parali-
Entretanto, devemos ressaltar que a magia sassem as atividades dos oponentes, trazendo
tem a sua prática exercida por pelo menos dois um prejuízo ao ofício dos adversários na praça
indivíduos: o solicitante e o magos5 também de mercado ou no tribunal. Consideramos que
denominado de mýstês, detentor de um saber o solicitante exigia, por vezes, não só a parali-
específico que o permitia manter contato com sação das atividades do inimigo, mas, também
seres sobrenaturais. Ambos seriam integrantes a sua destruição total, ou seja, decretava a sua
da sociedade dos atenienses, cidadãos ou não morte por considerá-lo um obstáculo a ser re-
cidadão, o que nos permite afirmar que não movido.
agiam de maneira isolada. A magia era oculta O magos que aceitava praticar a magia do
e diferente do modelo que predominava na co- katádesmos, tinha por objetivo demonstrar o
munidade políade, apresentava especificidade seu saber e o seu poder, realizando com o uso
na maneira de usar, o que denotava ser uma das potências sobrenaturais o desejo do solici-
prática do desvio, porém, estava incrustada no tante. Somente através das práticas mágicas o
social pelo fato de pertencer ao pensamento e magos adquiria respeito e prestígio. Porém, ao
atitude de uma época, como as associações de atender o desejo de levar a morte ao inimigo do
cultos à divindades estrangeiras que interagiam solicitante, o magos adquiria a possibilidade de
com parte dos integrante da comunidade polí- ter a sua disposição mais um instrumento para
ade. fazer valer as práticas da magia dos katádesmoi,
Os praticantes da mageía detêm um conhe- aumentando assim o seu poder. Nos referimos
cimento e um poder, cuja ação só faz sentido a posse de mais uma alma errante - psyké de
porque mantém o conceito de eficácia. A crença um biathanatos6 ou de um aoroi. Reafirmamos
no seu poder existe pelo fato de sua força ser que a realização do desejo do solicitante con-
atribuída pela própria sociedade a qual está in- feria prestígio e aumentava o poder do magos,
serida (P.Monteiro,1986:60). A eficácia das prá- devido ao controle de mais um ser sobrenatural
ticas mágicas só existe quando sustentada por que, através de ritos e palavras mágicas, perma-
uma crença coletiva em seus benefícios efetu- neceria subordinado às suas ordens.
ados através das bebidas, das infusões, dos un-
6
Albrecht Dieterich - 1866-1908, lançou a idéia de reunir todos
5
De acordo com Heródoto, a palavra magia estaria relacionada os papiros com as imprecações em adição única, porém o tra-
ao termo magos definido como indivíduo pertencente à tribo balho só foi concluído pelo seu aluno Richard Wünsch e seguido
dos medas (Heródoto,I,101). O historiador acrescenta que os por Karl Preisendanz 1883-1968. Após a guerra e a morte de
magos, formadores de seitas secretas, prestavam serviços re- Preisendanz em 1968 uma segunda edição de textos foi pre-
ais. Eles teriam domínio no estabelecimento do contato com o parada pelo papirólogo Albert Heinrichs em 1973. Hans Dieter
sobrenatural, exercendo funções relacionadas à execução de sa- Betz, em 1985, produziu o catálogo The Greek Magical Papyri
crifícios para o envio de presságios favoráveis (Heródoto,VII,113 in translation. Outros pesquisadores integraram o quadro de
e 191), ritos fúnebres (Heródoto,VII,43), leituras de presságios expansão dos defixiones/katádesmoi catalogados, a saber: Au-
de acordo com os fenômenos naturais (Heródoto,VII,37) e a in- guste Audollent em 1904, E.G. Kagarow em 1918, E. Ziebarth
terpretação de sonhos (Heródoto,I,107). Através da análise da em 1934, G.W. Elderkin em 1936; W.Peek em 1941; D.R.Jordan
localização da tribo dos medos, o grego a situava em região es- em 1978 e 1985, e recentemente Maria del Amor Lópes Jimeno
trangeira e fora do espaço cívico e cultural dos heleno. em 1999.

30 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
Consideramos os katádesmoi como o domí- um modelo geral para adequar-se ao conjunto
nio da téchne do saber-fazer o que lhe era so- de práticas e ritos observados e analisados. Bus-
licitado. Os magoi, por vezes chamados de fei- camos explicar o significado das maneiras de
ticeiros, faziam uso deste conhecimento para usar e das maneiras de fazer a magia de um de-

ARTIGOS
representar e alterar a realidade que eles pró- terminado tempo, no caso, o período do V ao III8
prios haviam construído. No mundo mágico o e no território cívico dos atenienses. Acrescen-
objeto era substituído pela imagem; o ato de tamos ainda que não consideramos as práticas
proferir o nome substituía a pessoa e a voz era mágicas dos atenienses como sendo uma ope-
criadora porque detinha o poder de tornar pre- ração externa à organização políade, partimos
sente o que era invisível. Na ação mágica, ob- do princípio de que seus usuários apropriam-
jeto e símbolo se confundiam misteriosamente -se e manipulam os espaços e os ritos da pólis a
e apresentavam-se como um processo total de partir de dentro, dando-lhes um sentido inverso
transferência de poderes do ser e do fazer do ao estabelecido pela organização políade.
magos. Os praticantes da magia que faziam uso dos
O pensamento mágico, sendo integrante de katádesmoi não deixaram vestígios que nos
uma forma específica de conceber a organiza- permita identificar quem fala, porém, a análise
ção do universo, necessitava da formulação de do destes suportes de informação nos permite
outras abordagens, diferente das desenvolvidas apreender o que se fala e para quem se fala e
pela Antropologia do período de Frazer e das de quem se fala, a saber:
atuais análises descritivas das fórmulas mági- ~ quem fala: ausente
cas. Isto porque, tais abordagens suprimem a ~ o que se fala: seriam as motivações de como elimi-
voz dos praticantes da magia , e/ou constroem nar um concorrente em uma rivalidade de ativida-
lhe um outro significado. Neste sentido a ma- des de ofício ou amorosa; disputa jurídica empreen-
gia ocupa o lugar do outro, o diferente, o não dida antes do veredicto de um juiz e asc ompetições
esportivas e teatrais.
inteligível pela ordem estabelecida, torna-se a
prática do desvio, e como tal torna-se objeto de ~ para quem se fala: os deuses relacionados ao mun-
do dos mortos: Hermes, Hécate, Hades, Perséfone e
violência simbólica através da disforização (des- as potências sobrenaturais do mundo subterrâ-
valorização) de sua ação. neo: aoroi biathanatoi
Devemos apreender a magia como um fe- ~ de quem se fala: presença de nomes dos inimigos e
nômeno integrante à vida social de uma dada adversários a serem imprecados.
comunidade e buscar uma aproximação com O ateniense utiliza o espaço políade para vi-
o lugar e o significado da sua prática junto à ver, para fazer circular suas idéias, para criar re-
sociedade dos atenienses do período clássico. ferências e lugares de memória. Esse critério de
Acreditamos que esta pesquisa venha a contri- utilização de espaço pode ser empregado para
buir para ampliar o conhecimento da magia que dar conta das diferentes formas de apropriação
fazia uso do katádesmos para fazer mal ao ini- e fazer circular uma mensagem de acordo com
migo. Nossa abordagem situa a maneira de fa- o seguinte processo de comunicação, a saber:
zer7 dos katádesmoi como sendo uma operação
mágica presente no cotidiano dos atenienses. 8
Os katádesmoi apresentam a peculiaridade de escassez de
informações proveniente da documentação textual do perí-
Visamos construir a historicidade de um odo clássico. As finas lâminas de chumbo de acordo com os
tema antropológico. Para atingir este objetivo, antropólogos são classificadas em diferentes categorias como
a classificação sugerida por Christopher Faraone (que segue as
nos afastamos das abordagens que elaboram indicações de A.Audollent Defixionum Tabelae, Paris,1904) que
apresenta 4 categorias de imprecação, a saber: 1.rivalidade nas
competições teatrais e esportivas; 2. rivalidade amorosa; 3.
7
Maneira de fazer definida como formas específicas pelas quais imprecações judiciárias; 4.maldição comercial. As imprecações
os usuários da magia reapropriam-se do espaço consagrado judiciárias e comerciais são típicas do período clássico dos ate-
pela religião políade que tem por finalidade a coesão sócio- nienses, as amorosas pertencem ao final do IV século e mea-
-cultural de seus integrantes (M. de Certeau,1996,p.41). Os usu- dos do III séc. a.C. e as imprecações contra os atletas e atores
ários da magia manipulam os espaços do território cívico e seus tornam-se mais abundantes no final do III século e durante o II
respectivos ritos de maneira inversa e subversiva. d.C ( C.Faraone, 1991:10).

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 31


volume 2 | 2001
Emissor Mensagem Receptor mecanismos institucionais pelos quais a organi-
Poeta valores/ética publico diversificado
zação políade assegurava os seus valores e cren-
ças eram através da convocação do cidadão,
Orador denúncia cidadão ateniense
trazendo-o para participar das assembléias, dos
Arauto leis cidadão ateniense

ARTIGOS
tribunais, das festas públicas, em geral, das re-
Filósofo reflexão/saber cidadão qualificado
presentações teatrais e das cerimônias religio-
sas nos demoi. Estes mecanismos reforçam a
A magia dos katádesmoi articula o seu espa- autoridade e o poder daqueles que defendem a
ço no interior destes lugares sociais e organiza, manutenção da ordem política. Através do uso
silenciosamente, as maneiras de usar as pala- da língua oficial, eles detêm o poder de cons-
vras, os ritos, as orações através da apropria- trução do discurso legítimo onde revivem na
ção e inversão de sentido. Compreendemos os memória dos atenienses, os códigos, os valores
tabletes de imprecação como uma outra forma morais e as normas de conduta fundamentais à
de mensagem enviada às potências do mundo preservação da organização políade.
subterrâneo. Como mensagem de maldição, os A imposição da língua oficial faz parte da
tabletes de chumbo seguem o mesmo processo estratégia do poder político para definir e asse-
de comunicação definido acima: gurar o seu lugar de fala e a produção e repro-
dução de um domínio. Através de mecanismos
EMISSOR / MENSAGEM / RECEPTOR institucionais, o lugar de poder fazia reconhecer
junto à comunidade de cidadãos atenienses, os
discursos, cujo conteúdo tinha por objetivo fa-
MAGUS (EMISSOR)/ IMPRECAÇÃO (MENSA-
zer circular a sua definição de ordem e de re-
GEM)/ DEUSES CTÔNICOS (RECEPTOR)
presentação do mundo social.
Os mecanismos de manutenção da ordem
SOLICITANTE (EMISSOR)/ AÔROI -BIOTHÁNATOI contribuem para unificação social e política dos
(RECEPTOR) atenienses. O uso da língua oficial, a subordina-
ção aos mesmos deuses, as leis e a participação
Consideramos que a magia define-se como do cidadão nas festas públicas deixavam trans-
um poder e um saber. Um poder específico que parecer o estabelecimento de uma sociedade
necessita ser explicado pelo fato de fazer uso de una e isonômica. Falar o grego, mesmo conside-
determinados mecanismos políade que possibi- rando as variações regionais como o jônico e o
lita a circulação de sua mensagem e um saber ático, significa falar a língua oficial considerada
que ratifique a autoridade da sua fala. Para tal única e legítima, produzida e difundida por au-
objetivo, a magia apropria-se da língua oficial - tores com autoridade para escrever e divulgar
falada e escrita - dos helenos como veículo de os preceitos políade tais como os trágicos, os
comunicação prospectivo, isto é, a mensagem oradores e os políticos.
do katádesmos era escrita em finas lâminas de O ato de falar o grego tornara-se, também,
chumbo endereçada às potências do mundo um meio de fazer circular as informações e o
subterrâneo e só elas deveriam ter conheci- padrão de comportamento em diferentes situ-
mento de seu conteúdo, sendo suas informa- ações como as festas públicas das Panatenéias,
ções vedadas aos vivos. as representações teatrais e festas privadas
Tanto M. de Certeau quanto Pierre Bourdieu como os Simpósia.9 Atenas, definida como uma
(P.Bourdieu,1982:32) afirmam a existência de comunidade de cidadãos, tem a sua estrutura
um lugar de poder como um dos mecanismos
necessários que a língua legítima faz uso para 9
Para uma melhor informação sobre o tema ver: LIMA, A.C.C.
Cultura popular em Atenas no V século a. C. Hélade: Supl. I. Rio
se impor. Para as sociedades dos atenienses, os de Janeiro: Sette Letras, 2000.

32 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
de organização fundamentada no uso da língua conjunto de normas agia de forma a alterar o
comum entendida e praticada pelos atenienses processo do desvio. Tais valores definidos como
e seus agregados como os estrangeiros, os me- legítimos disforizam (desvalorizam) as crenças e
tecos e os escravos. Falar o grego tornava-se fa- práticas mágicas de fazer mal ao inimigo; estas

ARTIGOS
tor de comunicação social entre cidadãos e não são identificadas como sendo fora da ordem, o
cidadãos; considerada a forma única e legítima que justifica minimizar ou extinguir a sua fala e
de expressão. Entretanto, os autores com au- atuação no espaço social da pólis.
toridade para escrever e divulgar os preceitos O espaço social é o espaço das diferenças
políade, também fazem uso deste mesmo po- e nele se desenham lugares que tendem a se
der para tornar público a presença de transgres- constituir simbolicamente como espaço dos
sões, críticas, descontentamentos e desvios. estilos de vida, isto é, de grupos distintos ca-
Indicamos os Katádesmoi como práticas da ma- racterizados por atitudes e crenças diferentes
gia de fazer mal ao inimigo, cujas ações eram (P.Bourdieu,1982:144). O lugar definido pela
consideradas desviantes e fora da paideía dos ordem para atuar contra os inimigos era nos
atenienses, acrescida dos recursos das táticas, tribunais. Plutarco menciona o empenho dos
cujos lances tornam-se proporcionais às situ- atenienses junto aos processos de impiedade
ações. A astúcia - métis recorrente nos textos impetrados contra Aspásia e Fídias no V sec.
antigos, nos indica as diversas formas de mani- (Plutarco. Péricles,XXXII:1). Esta ação nos indi-
pulações internas à ordem estabelecida e que ca que qualquer comportamento realizado fora
atua em outro sentido social para aqueles que do padrão estabelecido configurava-se numa
conhecem esta linguagem. transgressão, num delito cívico e jurídico, pas-
Apesar das medidas estratégicas da ordem sível de punição por converter-se em ação fora
visando suprimir a sua ação, a magia de fazer da ordem. Partindo deste princípio, indicamos
mal ao inimigo ganhou terreno e se infiltrou no as práticas mágicas de imprecar um inimigo
espaço do outro, subverteu a ordem a partir de como um discurso estabelecido fora da or-
dentro. Deixa de ser uma ação complementar à dem, e parte dos atenienses, considerava que
religião da pólis para se configurar em uma prá- tal procedimento gerava impureza que poderia
tica oculta e com procedimentos específicos. despertar a ira dos deuses e trazer prejuízo para
Seus usuários faziam-na funcionar em outro re- a comunidade. Segundo Antifonte, o miasma
gistro não compreendido pela ordem políade. causado pela impureza produzia má colheita e
Esta capta a sua presença através das finas lâmi- fazia quebrar os negócios (Antifonte II,2b:11).
nas de chumbo, ou seja, os tabletes de impre- A pólis, através dos nómoi e dos heliastái, fazia
cação - porém, não decodifica o seu significado valer a ordem estabelecida, possuía estratégias
e a sua maneira de usar o que indica esta outra para fazer valer a díke, tornando a punição um
dimensão de sentido a circular na pólis. ato legal e legítimo.
A presença da magia como práticas sociais Os praticantes da magia que faziam uso dos
desviantes nos leva a questionar a homogenei- katádesmoi expressavam uma maneira distinta
dade da religião políade, mostrando que o uso de crer e de agir. Tal procedimento indica uma
da língua comum e dos mesmos deuses permitia outra maneira de pensar os espaços, gestos e
a formulação de diferentes maneiras de apre- rituais da pólis que correspondiam aos procedi-
ender e representar o mundo social. Os valores mentos das táticas dos usuários da magia em se
normatizados pela sociedade políade, de um apropriarem dos mecanismos políade alteran-
lado, agiam como estratégias da ordem sobre do-lhes o sentido. Os procedimentos mágicos
a comunidade de cidadãos e não cidadãos defi- dos katádesmoi indicam ser uma apropriação
nindo as maneiras de falar, de agir e de expres- astuciosa (M. de Certeau, 1996: 38) pelo fato
sar as suas crenças. Do outro lado, este mesmo de formar um deslocamento de sentido dando-

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 33


volume 2 | 2001
-lhes outro significado ininteligível para os de- materiais vazios de significação, cujo conceito
fensores da ordem estabelecida; silenciosa por passa a ser construído a partir da relação de
ser praticada às ocultas e de maneira prospec- oposição com os preceitos políade, mas, a sua
tiva (M.I.Finley,1991:129). Os katádesmoi eram força mantém-se devido a crença de seus usuá-

ARTIGOS
endereçados às potências do mundo dos mor- rios na sua eficácia. Aconselho aos interessados
tos, só elas deveriam ter conhecimento de seu em compreender magia de fazer mal ao inimi-
conteúdo e suas informações eram vedadas aos go, buscar as explicações sobre a sua prática
vivos. através do uso das finas lâminas de chumbo - os
As práticas mágicas que fazem uso de finas katádesmoi, que ainda estão na obscuridade,
lâminas de chumbo, por serem um outro pro- ou seja, pouco explorado pelos historiadores.
cedimento mágico, tornaram-se uma referência Indico ser fundamental a necessidade de anali-
estranha e alvo de críticas dos defensores da sar o contexto social de produção entre os ate-
ordem como os filósofos, os poetas e os ora- nienses na qual este fenômeno foi identificado
dores. Elas traçam trajetórias indeterminadas, pelas escavações arqueológicas.Consideramos
aparentemente desprovidas de sentido por não que a partir da guerra do Peloponeso, Atenas
serem coerentes com os preceitos da estrutu- tornara-se propícia aos desvios e inovações que
ra da pólis, nem com os espaços por ela cria- permitiram a emergência da crença nas práticas
dos e nem por onde se movimentavam (M. de mágicas e individuais que visavam prejudicar o
Certeau,1996:97).10 Os usuários da magia utili- inimigo pelo fato deste significar um obstáculo
zam frases ininteligíveis, indecodificáveis, pala- a ser transposto visando a realização do desejo
vras não reconhecidas e fora do vocabulário dos do solicitante.
atenienses, compreendidas por nós como uma
atitude de astúcia de seus usuários. Mas, para
alguns integrantes da pólis, entre eles citamos
Heródoto (Heródoto,II,50), as palavras não re- Bibliografia
conhecidas foram entendidas como sendo um
Documentação Epigráfica
indicativo de práticas mágicas estrangeiras, ou
ELDERKIN, G.W. Two Curse Inscriptions. Hespe-
seja, formada fora da paideía dos atenienses ou
ria. Athens: American School of Classical Studies at
dos helenos em geral. Athens, 1937, vol. VI, Athens, p.382-395.
A pólis consegue captar os objetos usados JORDAN,D.R.Defixiones from a well near the
pelas práticas mágicas que estão disseminados southwest corner of the Athenian Ágora. Hespe-
e dissimulados nos espaços físicos sacralizados ria, Athens:American School of Classical Studies as
Athens, 1985,vol. III, p.205-255.
pela religião políade. Entretanto, não consegue
apreender as suas formas e o seu conteúdo, ___________ A survey of Greek Defixiones not
included in the special Corpora, Greek Rome and
contabiliza o suporte utilizado e não as ma- Byzantine Studies, v.26, no1, 1985, p.151-197.
neiras de uso. O resultado, desta não compre- __________ Two Incribed lead tablets from a
ensão, transforma os tabletes de chumbo em well in Atenian Kerameikos. Miteilugen.Berlin:Gebr.
Mann Verlag,1980, band 95, p.225-239.
10
A análise do conteúdo dos katádesmoi e os espaços por onde
transitavam nos permite afirmar que o seu lugar de uso esta- ___________ Ekatikav. Glota. Göttingen: Vander-
va disseminado nos espaços consagrados pela religião cívica nhoeck & Ruprecht,1980, band LVIII, p.62-65.
de Atenas. Os espaços onde foram localizados os katádesmoi
ratifica esta nossa concepção de ser uma apropriação dispersa ___________ and Susan I. Rotroff. A curse in a
no território ateniense. Eles foram encontrados em locais como Chytridion: a contrubuition to study of Athenian
o fundo dos poços d’água situados na Ágora, no interior das Pyres. Hesperia. Athens: American School of Classi-
sepulturas, no cemitério do Cerâmico; nos leitos dos rios; em
profundas fendas situadas nos muros de santuários e templos
cal Studies at Athens, 1999, vol. 68:2, p.147-154.
de deuses ctônicos. A religião políade fazia uso de tais espaço LATTIMORE, R. Themes in Greek and Latin ephi-
visando promover a integração do cidadão à comunidade e di- taphs, Illinois Studies, 1942.
fundir os valores da pólis e os usuários da magia, para atender
aos interesses particulares.

34 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
PEEK, Werner, Inschriften Ostraka Fluchtafeln. _____________ Os Cíclopes e a Natureza. Clássi-
Berlin: Walter de Gruyter&CO,1941. ca. Araraquara: SBEC,1993, supl.3, pag. 145-150.
ROBERT, L. Épigraphie et Antiquités Grecques, in: CAREY, Christopher. Trials from Classical Athens.
Opera Minora Selecta, Amsterdan: Adolf M. Hakkert London&New York: Routledge, 1997.
Editeur, Tome VII, 1990, p.2-44.

ARTIGOS
CARTLEDGE, Paul . The Greeks : A Portrait of Self
_____________ Collections Froehner. Inscrip- and Others. New York and Oxford: Oxford University
tions Grecques. Paris: Editions des Bibliothèque Na- Press, 1993.
tionales, 1936. CASSIN , Barabara [ et allií]. Gregos, Bárbaros, Es-
SHEAR, T. Leslie An Athenian Maledictory inscri- trangeiros: A Cidade e seus Outros. Rio de Janeiro:
tion on lead. Hespéria, Athens: American School of Edições 34 , 1993.
Classical Studies as Athens, 1936.vol. V,.p.42-49. GAGER, John G. Curse Tablets and Binding Spells
__________.The Campain of 1933. Hesperia, from the Ancient World. Oxfrod: Oxford University
Athens: American School of Classical Studies as Press, 1992·
Athens Vol. IV, 1935, vol. IV, p324-325. GAILLARD-SEUX,P.Secrets des plantes et Magie
THOMPSON, Homer A Excavations in the Athe- chez les Romains. L’Histoire. Paris: 1998, nº 215·
nian Agora.1948 In: Hesperia. Athens: American GARLAND, Robert. Religion and the Greeks. Lon-
School of Classical Studies at Athens, 1949, vol. don: Bristol Classical Press, 1994.
XVIII:3, p.211-227
___________. The Piraeus. London: Duckworth
__________ Stoa and City Walls on the Pnyx. & CO.Ltd , 1987·
Hesperia: Athens: American School of Classical Stu-
___________. Introducing New Gods. London:
dies as Athens,1943, vol.XII, p.280-363.
G.Duckworth&Co., 1992·
YOUNG, Rodney S. Industrial District of Ancient
GARLAND, Yvon. Guerra e Economia na Grécia
Athens. Hesperia. Athens: American School of Clas-
Antiga. Campinas: Papirus, 1991.
sical Studies as Athens, 1951, vol. XX, p.220-227.
MARTIN,Thomas R. Ancient Greece: from prehis-
toric to Hellenistic times. Michigan: Ann Arbor, 1996.
Bibliografia Geral MAYHEW, Henry. Prostitutes:of Prostitution in
ancient states.Disponível na Internet via www.per-
BOURDIEU , P . O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL, seus.tufts.educ/. Arquivo consultado em 05/2001.
1989 .
MAZEL, J. As Metamorfoses de Eros: O Amor na
___________. A Economia das Trocas Lingüísti- Grécia Antiga. Trad. A.P. Danesi. São Paulo: Martins
cas: O que Falar quer Dizer. São Paulo: EDUSP, 1982. Fontes, 1988.
BURKE , Peter O Mundo como Teatro. Trad. Van- MEIER, Christian. De la Tragedie Grecque Comme
da Maria Anastácio. Lisboa: DIFEL,1992. Art Politique. Paris: Les Belles Lettres , 1991.
BURKERT , W. Religião Grega na Época Clássica e MIKALSON, J.D. Religion in Hellenistic Athens
Arcaica. Lisboa: Caloustre Gulbenkian, 1993. (1998). Disponível na Internet via www.rdg.ac.uk/
_____________ . Homonecans. The Anthropolo- classics . Arquivo consultado em 08/2000.
gy of Ancient Greek Sacrificial Ritual and Myth. Cali- MEYER, Marvin W. The Ancient Mysteries:A sour-
fornia and Berkeley,California Univerty Press, 1983 . cebook.New York:Harper&Row,1987.
____________. Antigos Cultos de Mistérios. trad, MOMIGLIANO, A. Os Limites da Helenização.
Denise Bottman. São Paulo: EdUSP, 1991. Trad. Claudia M.Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
____________ Causalité Religieuse:la faute, les MONTEIRO, Paula. Magia e Pensamento Mágico.
signes, les rites. METIS. Paris-Athènes:EHESS, 1994- São Paulo: Ática , 1986.
1995, vol.IX-X
____________. Le secret public et les mystères
dits privés. Ktema. Strasbourg: Université Marc Blo-
ch de Starsbourg,1998, nº23
CANDIDO,M.R. A Hybris de Fedra. Phoînix 1995.
Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995, p.131-136.
___________ Medéia: Ritos e Magia. Phoînix
1996. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996, p.229-234.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 35


volume 2 | 2001
ARTIGOS
Paulo de Tarso e o Judaísmo
no contexto dos estudos sobre
o fenômeno do helenismo
Monica Selvatici
Mestre em História Social pela UFRJ

Resumo: de culturas que se seguiu às conquistas de Ale-


Neste artigo, discutiremos o processo de heleni- xandre. Esta noção os antigos não reconhece-
zação dos judeus e do Judaísmo, dentro do recorte riam em seu tempo embora o verbo hellenízein
espaço-temporal do Mediterrâneo Oriental no sécu-
lo I d. C., com base na produção recente da historio- fosse já usado por Aristóteles para se referir ao
grafia sobre o tema. Uma vez apresentada tal dis- domínio/mestria da língua grega e o próprio
cussão, nós teremos instrumentos para questionar termo hellenismós (em sua forma nominal)
a abordagem que enxerga Paulo o apóstolo cristão dotado do mesmo sentido seja atribuído a Te-
como o resultado da interação, em termos genéri-
cos, entre o Judaísmo e a cultura helênica, ou ainda ofrastes, discípulo do filósofo (COLLINS & STER-
como um membro do Judaísmo helenístico na linha LING, 2001: 2). Além disso, o uso mais genérico
de Fílon de Alexandria. do termo para se referir à cultura e costumes
Palavras-Chave: Paulo de Tarso, Cristianismo, Juda- gregos ocorre pela primeira vez já no segun-
ísmo, Helenismo. do livro dos Macabeus, onde é afirmado que a
Abstract: construção do ginásio em Jerusalém pelo sumo
In this article, we intend to discuss the process of sacerdote Jasão levou a ‘um extremo de hele-
Hellenization of the Jews and Judaism based on what nismo’ (acmé tis hellenismou). O uso do termo
recent scholarship has produced about the subject. em 2Macabeus diz respeito especificamente à
Once such discussion is presented, we will have tools
for questioning the approach that establishes Paul noção da cultura grega como algo estranho ao
the Christian apostle as a result of the interaction Judaísmo. Segundo J. J. Collins e G. E. Sterling,
between Judaism and a Hellenistic culture or as a “este foi o significado da palavra ‘helenismo’
member of the Hellenistic Judaism of the Diaspora
like Philo of Alexandria.
até o trabalho de Droysen” (2001: 2).
Keywords: Paul of Tarsus, Christianity, Judaism, Hel- Não coincidentemente, o primeiro registro
lenism. conhecido da palavra ioudalismós também se
encontra em 2Macabeus. Tal como o ‘helenis-
mo’, este termo também se refere a uma cul-
tura e a um modo de vida e, dentro do texto,
representa o seu contraponto, de acordo com
Um estudo formal sobre o fenômeno do a formulação do autor antigo. Antes disso, o
‘helenismo’ começa em meados do século XIX, termo ioudaioi significara o ‘habitante da Ju-
quando o historiador alemão J. G. Droysen de- déia’, dizendo respeito também à questão da
fine, pela primeira vez, a época helenística em etnia. Por isso, os judeus na Diáspora recebiam,
termos eruditos e cunha o próprio termo ‘Helle- de igual maneira, a designação ioudaios, pois
nismus’. Este passava, então, a significar a fusão

36 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
eram identificados como um grupo étnico que Iluminismo para as massas do passado, o dom
se mantinha unido e reproduzia seus costumes do governo superior, adoção de uma língua
ancestrais. Pode-se perceber que, embora o comum (o grego koiné), estímulo econômico:
‘o fardo dos homens brancos’ europeus foi
termo ‘Judaísmo’ tenha sido cunhado no perí-
transferido para (...) os gregos e macedônios.

ARTIGOS
odo da dinastia dos hasmoneus, a questão de (1994: 171)
seu modo de vida particular já estava estabele-
cida muito antes desta época. Segundo aponta E assim em diante, o triunfo da cultura grega,
Collins (2001: 39), isto tem explicação no fato civilizando as populações “orientais” (entendi-
de que “a dimensão étnica tornou-se menos de- das de forma indiferenciada), após a vitória de
cisiva no período hasmoneu” em favor da idéia Alexandre, continuou a dominar muitos estudos
de cultura. acerca do helenismo. A conseqüência disso foi
Considerados os termos em questão e o seu a ignorância (com exceção da cultura e do pen-
aparecimento neste momento, torna-se possí- samento judaicos) das inúmeras sociedades e
vel para nós definir o conceito ‘cultura’ da for- tradições nativas que compreendiam os reinos
ma que melhor se aproxima da noção partilha- greco-macedônios. Além disso, criou-se a per-
da pelos judeus no final do período do Segundo cepção do mundo helenístico como um fenô-
Templo. Entendemos ‘cultura’, dentro deste meno relativamente unitário. Em suma, “mui-
contexto, como um modo de vida, um conjunto to da história helenística é fundamentalmente
de costumes ou práticas reproduzidas que iden- história colonialista”, resume a autora (1994:
tificam um grupo em relação a outro. Dentro 173). Um exemplo desta compreensão do mun-
deste modo de vida, está obviamente incluída a do helenístico (já no período romano) pode ser
esfera da religião que, sabemos, não se separa- encontrado no trabalho de Norbert Brox, que
va, para os judeus, dos outros aspectos da vida afirma que
social. Ao contrário, ela se mantinha relaciona- a cultura helenística em religião e pensamen-
da a eles na medida em que regulamentava a to (filosofia) marcava de forma unitária, por
maioria deles (porém não todos), e acima de cima das diferenças nacionais, étnicas e histó-
tudo, na medida em que lhes conferia sentido. rico-religiosas, quase todo o âmbito do impé-
rio. (1986: 41. O grifo é nosso)
De volta a Droysen, este compreendeu o
período helenístico em termos de um período Outro motivo mais importante (aliás, essen-
transitório. No seu entender, a pólis clássica, ao cial para nossa discussão) levou Droysen a com-
entrar em contato com o Oriente, perdeu sua preender a época helenística como um período
pureza e integridade e produziu estruturas po- de transição: segundo ele, nela aconteceu a
líticas helenísticas ‘enfraquecidas’. De igual ma- fusão entre elementos gregos (leia-se pagãos)
neira, faltava ainda a esta sociedade helenística e orientais (ou em outras palavras, judaicos so-
a potência militar característica dos romanos, mente) que constituíram a “avenida para o Cris-
que posteriormente dariam mostra de seu vigor tianismo” (apud ALCOCK, 1994: 171). É possível
ao submeter os reinos sucessores de Alexandre. entender agora porque apenas a cultura judai-
Percebe-se como por trás da formulação de ca recebeu destaque em meio às culturas e so-
Droysen reside a noção da história como uma ciedades dominadas pelas dinastias helênicas.
trajetória de sucessivos apogeus e declínios, e Droysen procurou explicar o fenômeno do Cris-
conseqüente a isso, está o evidente juízo de va- tianismo - entendido por ele como a bem suce-
lor negativo que o autor faz da época em ques- dida e forte Igreja cristã, que desde o século IV
tão. dominava o Ocidente - através de uma análise
Susan E. Alcock atenta para o fato de que esta teleológica simplista. Ele buscou na chamada
primeira abordagem foi colorida pelas crenças e cultura helênica e na tradição judaica as raízes,
comportamento imperialistas, típicos do século ou melhor, as sementes, que unidas (pela fusão)
XIX: resultariam no embrião do Cristianismo.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 37


volume 2 | 2001
A formulação elaborada por Droysen influen- na referida obra Judaism and Hellenism, Hengel
ciou muitos trabalhos acerca das ‘origens cris- propagou a tese de que, assim como o Judaís-
tãs’1 e do Judaísmo antigo, de tal modo que os mo da Diáspora de fala grega, o Judaísmo pa-
trabalhos que se atêm à relação entre a cultu- lestino (em Jerusalém, principalmente) desde o

ARTIGOS
ra helênica e a judaica são tão antigos quanto terceiro século a. C. - quando do domínio sobre
o próprio estudo da história judaica.2 A análise a região da dinastia dos Ptolomeus do Egito -
através do binômio Judaísmo/cultura helênica também pode ser chamado de Judaísmo hele-
permanece ainda hoje o enfoque principal dos nístico, “e que isto é ainda mais verdadeiro para
estudos sobre o Cristianismo antigo. O traba- a era romana desde Herodes” (HENGEL, 2001:
lho de Martin Hengel, autor da obra conside- 7). Para o autor (2001: 28), foi a partir da ‘cultura
rada um marco nos estudos sobre o processo judaico-helenística’ de Jerusalém que “emergiu
de helenização do Judaísmo palestino - Judaism um movimento judaico que, por fim, conquistou
and Hellenism - é tributário da interpretação de o Império Romano”: o Cristianismo.
Droysen, embora avance o argumento simplista Como podemos observar, Hengel se mantém
deste na medida em que dá continuidade ao es- na tradição de Droysen. No entanto, diferente-
tudo discutindo o “conflito entre o Judaísmo pa- mente da análise generalizante que este último
lestino e o espírito da idade helenística” (apud faz, Hengel atenta para o fato de que a cultura
COLLINS, 2001: 38). Este conflito fora suscitado helênica foi uma entidade com múltiplas inser-
pela reação dos Macabeus às medidas extremas ções sobre o Judaísmo. Tal constatação foi uma
adotadas por Antíoco IV Epifanes em Jerusalém das primeiras na historiografia do tema que,
(a proibição do culto judaico e a dedicação do desde então, tem se voltado para as especifici-
templo a um deus pagão, Zeus Olímpico) no dades que ficaram perdidas na análise de Droy-
século II a. C.. Desta forma, Hengel atenta para sen e seus seguidores.
a reação a tal crise na Judéia, “que quebrou o De fato, os trabalhos mais recentes têm
sincretismo, fixou o desenvolvimento intelectual como princípio a preocupação para com a des-
sobre a Torá [através do grupo farisaico] e evitou construção dos modelos binários pelos quais o
a crítica fundamental do culto e da lei”, segundo Ocidente categorizou as civilizações orientais.
as breves palavras de J. J. Collins (2001: 38). Por isso a historiografia atual acerca do tema
Ainda assim, Hengel afirma que “quando do ‘helenismo’ têm procurado apreciar o mo-
analisando o conceito de helenização, nós te- saico cultural complexo do mundo helenístico.
mos que distinguir entre componentes muito Segundo S. Alcock (1994: 173), a historiografia
diferentes” (apud BARCLAY, 1995: 93). Por isso, atual observa agora ter sido o impacto da con-
embora um movimento de reação tenha sido quista grega no Mediterrâneo oriental mais for-
suscitado, a cultura helenística não foi nem te em termos econômicos e demográficos do
completamente absorvida nem totalmente re- que propriamente culturais. Enfim, há segundo
jeitada na Palestina, aos olhos do autor. De fato, a autora uma nova preocupação em relação à
real composição da ‘sociedade helenística’ e a
1
Expressão comumente utilizada na historiografia de língua in-
glesa para designar o primeiro século de vida do Cristianismo. noção da inerente improbabilidade de uma fu-
Ver, por exemplo, a obra de Christopher Rowland, Christian Ori- são cultural profunda. Um estudo, dentro desta
gins. An account of the setting and character of the most impor-
tant messianic sect of judaism. linha, que procura minimizar a extensão da in-
2
Vide o trabalho de E. Bickerman, Der Gott der Makkabäer, pu- fluência grega sobre o Judaísmo é o de Edouard
blicado na Alemanha em 1937 e traduzido para o inglês em 1979 Will e Claude Orrieux (1986), que caracterizam
como The God of the Macabees. Este, segundo Levine (1998:
6), é pioneiro no que se refere ao estudo sobre o processo de o período entre Alexandre e Tito como o tempo
helenização na Palestina e sobre os judeus no período greco- em que apenas “uma minoria judaica conheceu
-romano. Bickerman se atém ao período da dinastia Selêucida
(século II a.C.) e ao papel-chave dos ‘helenizadores judeus’ nas a tentação helênica” (1986: 228) e destacam a
perseguições do soberano Antíoco IV Epifanes em 167 a.C. Este presença do movimento farisaico na Palestina,
estudo assinalou o surgimento de trabalhos posteriores, todos
relacionados à questão dos contatos e influências helenísticos afirmando que
sobre os judeus e o Judaísmo

38 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
desde a época pompeana (...) a união da maio- anterior à absorção de elementos3 e outra que
ria do povo judeu em torno desta ortodoxia viva privilegia as noções de interação, adoção pro-
[o farisaísmo] representa o resultado, fruto de
gressiva e síntese de elementos.4 A consciência
uma longa maturação, do enfrentamento cul-
tural entre o Judaísmo e o helenismo e a ver- destes dois prismas de análise - conflito ou con-

ARTIGOS
dadeira condição de sobrevida do judaísmo ... fluência - também já está presente no trabalho
(1986: 227) de Lee I. Levine (1998).5
Esta preocupação para com o resgate da di- Neste trabalho, Levine contraria a afirmação
versidade cultural do mundo mediterrâneo sob de Alcock de que o impacto da conquista grega
domínio helênico perpassa não somente os sobre o Mediterrâneo oriental não foi tão visível
trabalhos que se atêm ao período helenístico, em termos culturais. Seu estudo não se alinha
mas também aqueles que têm por objeto o im- ao quadro dos trabalhos dentro da teoria pós-
perialismo romano. Uma tendência forte dentre -colonial, mas obviamente tem o cuidado de
os estudos mais recentes acerca de regiões es- considerar os resultados obtidos pelas pesqui-
pecíficas do Mediterrâneo romano é a análise sas a partir desta perspectiva de análise. Com
empreendida dentro do contexto de uma teoria efeito, o autor discute os conceitos de helenis-
pós-colonial, que vem fazer frente a análises co- mo e helenização, definindo-os propositalmen-
lonialistas/imperialistas como a de Droysen. De- te de forma abrangente, em razão da questão
finindo o termo Imperium Populi Romani como por ele levantada de que o grau de influência
uma unidade apenas nos aspectos político, ad- helenística fora diferenciado segundo as regiões
ministrativo e jurídico, a teoria pós-colonial tem do Mediterrâneo oriental, os segmentos sociais
por objetivo principal enxergar o Império Roma- e considerando-se os planos material e reli-
no em suas diversidades locais. O procedimen- gioso (1998: 23). Assim, Levine afirma que, no
to utilizado é a análise do discurso colonial de que concerne à cultura material, os judeus fo-
modo a, dentre outros objetivos, desconstruir ram fortemente devedores e, em muitos casos,
“a definição dos modelos binários pelos quais o dependentes daquela produzida pela cultura
Ocidente categorizou os outros”, observa Nor- contemporânea reinante: “os judeus nunca se
ma M. Mendes (1999: 309). vangloriaram de tradição artística ou de arqui-
tetura própria (a não ser, talvez, por um limita-
Colocando em questão a natureza do discur-
do conjunto de símbolos que afloraram apenas
so ocidental sobre o Oriente, ou de forma mais
na antiguidade tardia)” (1998: 5).
geral, sobre o diferente, o outro, a historiografia
recente tem procurado resgatar as diversidades A análise de Levine parece bastante exage-
locais (dentro do quadro mais amplo dos impé- rada, mas serve para mostrar o quão importan-
rios helenístico e romano) e os diferentes níveis te foi o impacto da helenização sobre a cultura
de contato e trocas culturais estabelecidos. Não material das comunidades judaicas do Mediter-
se fala mais em fusão cultural e mesmo o termo râneo e também aquela na Palestina. Quanto
‘influência’ (ainda que ele sirva para descrever à língua, mais ainda pode ser dito, na medida
boa parte do processo) é agora preterido em em que se sabe que o grego era a língua fala-
favor da noção de trocas e interações entre cul- da pelos judeus na Diáspora, e sua influência na
turas.
Além disso, recentemente, Yaron Eliav (2000: 3
Um exemplo desta perspectiva seria o próprio trabalho de
Hengel, principalmente na questão da nobreza sacerdotal que
421) observou a existência de prismas diferen- rapidamente se adaptou aos padrões culturais do mundo hele-
tes denotando respectivas abordagens do en- nístico e passou a integrar o grupo helenizante no período ante-
rior à revolta dos Macabeus.
contro das culturas judaica e helênica - uma 4
Como Eliav propõe que seja seu estudo sobre a apropriação
abordagem que analisa este encontro a par- dos banhos romanos por parte dos judeus.
tir das noções de impacto/colisão e conflito 5
Que tem por título Judaism and Hellenism in Antiquity. Conflict
or Confluence?

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 39


volume 2 | 2001
Palestina pode ser mensurada pela quantidade também chega à conclusão de que não houve
de palavras gregas e também latinas que ultra- condições típicas para os judeus na Diáspora,
passa o número de 3000 na literatura rabínica mas na realidade, diversidade. Porém, fazendo
(LEVINE, 1998: 7). um contraponto ao argumento de Levine, Bar-

ARTIGOS
No entanto, em relação à esfera da religião clay afirma que perfis judaicos diferentes não
que, como sabemos, abarcava quase a totalida- representam necessariamente diferentes ‘juda-
de das práticas judaicas, Levine afirma que “há ísmos’, uma vez que o resultado de sua pesqui-
muito poucos casos de judeus abandonando sa é a identificação de um elo maior entre os
sua identidade religiosa e étnica de forma a in- judeus residentes em meio gentílico. A palavra
tegrar a sociedade greco-romana maior” (1998: que melhor define este elo é etnicidade, a com-
28). Na realidade, o autor, seguindo a linha de binação do aspecto do parentesco com aquele
Hengel, procura demonstrar a complexidade do do costume, a reprodução dos rituais ances-
fenômeno: ele enxerga uma multiplicidade de trais. Tal combinação de fatores é o que criava
respostas por parte dos judeus da Palestina e o sentido de identidade judaica nas cidades do
da Diáspora ao processo de helenização, e não Mediterrâneo nos períodos helenístico e roma-
apenas uma definida dicotomia, como outros no. Esses critérios também eram o que identifi-
trabalhos mais antigos costumam apontar.6 cava os judeus na percepção dos não-judeus.7
Entretanto, a consciência do fenômeno com- Além disso, Barclay afirma que mais impor-
plexo que foi o processo de helenização leva tante que os diferentes aspectos da helenização
Levine a enfatizar demais uma abordagem que é o significado e a importância atribuídos a eles
considere a diversidade de aspectos que inter- pelos diferentes grupos judaicos (1995: 93), e
ferem e denotam os diferentes graus de hele- que neste sentido, a distinção entre judeus da
nização dos judeus no Mediterrâneo oriental. Diáspora (onde eles compunham minoria) e ju-
Esses diferentes graus de helenização, aliados deus da Palestina (onde eram maioria) ainda se
à consideração da multiplicidade de leituras da faz pertinente. Concordamos com o argumento
Torá que havia no Judaísmo do século I d. C. - do autor em relação ao aspecto de uma forte
algo que fazia dele um complexo multifacetado identidade mantida entre os judeus na Diáspo-
- acabam por fazer o autor definir a religião não ra, em detrimento do conceito de diversos ‘ju-
como uma fé única, mas como um movimento daísmos’ de Levine, que parece só se aplicar ao
plural, isto é, enquanto diversos judaísmos. As- Judaísmo presente na Palestina.
sim, na Judéia, por exemplo, as diversas ‘esco- J. J. Collins (1997), conhecido por seu por-
las filosóficas’ (utilizando o termo preferido por menorizado trabalho de pesquisa sobre o Juda-
Josefo), que tinham interpretações e formas de ísmo helenístico da Diáspora, também analisa
leitura próprias do texto sagrado da Torá, cons- uma seleção de textos produzidos neste meio
tituiriam vários ‘judaísmos’. (como a ‘Carta de Aristeas’, os ‘Oráculos Sibili-
J. Barclay em seu estudo sobre os judeus na nos’, e as obras de Fílon de Alexandria). O au-
Diáspora mediterrânea (1995) e (1996) analisa tor conclui, de igual maneira, que as respostas
o pensamento e os valores veiculados nos tex- deste Judaísmo são várias conforme os assuntos
tos judaicos (dentre eles as epístolas de Paulo) em questão: a circuncisão, o culto ao templo,
produzidos na Diáspora helenística. Este autor os holocaustos (sacrifício de animais em louvor
a Deus), mas ao invés de enfatizar os laços de
identidade entre os judeus na Diáspora como
6
Esta dicotomia refere-se à noção de um Judaísmo amplamente
helenizado na Diáspora mediterrânea e outro ‘puro’ ou ‘imune’ faz Barclay, ele afirma que em linhas gerais o
a tal processo, de tendência totalmente rabínica, na Palestina.
O representante mais importante desta visão dentro da histo-
riografia de língua inglesa foi George Foot Moore, em sua obra 7
Vide os comentários de caráter negativo ou não acerca dos
de 1927, Judaism in the First Centuries of the Christian Era: The costumes e herança judaicos por parte dos diversos autores gre-
Age of the Tannaim. gos e latinos em M. Stern (1976).

40 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
que aproxima os textos analisados é a questão dos banquetes helenísticos na Palestina, adota
da apologia do Judaísmo em meio gentílico, e como critérios de análise conceitos ligeiramen-
a rejeição da idolatria pagã. Para Collins (1997: te diferentes: os conceitos de ‘assimilação’ (à
217), “a maioria dos textos (...) mostra um de- cultura dominante), ‘rejeição’ (desta cultura) e

ARTIGOS
sejo de partilhar e ser aceito nos estratos mais ‘acomodação’ a ela. Este terceiro conceito sig-
sofisticados filosoficamente da cultura helenísti- nifica, na definição da autora, a manutenção da
ca”. O autor privilegia, assim, esse aspecto uni- identidade e integridade cultural judaicas a par-
versalizante do Judaísmo da Diáspora (que, de tir da adoção de formas superficiais de heleni-
fato, existia) em detrimento do particularismo zação. Por formas superficiais de helenização a
praticado por ele (que Barclay enfatiza). autora compreende serem todas as adaptações
A questão atual nos estudos sobre a heleni- helenísticas exteriores à esfera do ritual reli-
zação do Judaísmo é a dos limites deste proces- gioso, como a língua, e mais superficialmente,
so, isto é, até onde ele chega, ou melhor, até o padrão de beleza e certas práticas sociais da
onde lhe é permitido chegar. O que denota as cultura dominante (1996: 440).
diferenças entre os estudos que compreendem J. J. Collins (2001) também acredita que os
esta nova tendência são mudanças nos critérios limites da helenização para o caso do Judaísmo
adotados para a análise do processo de hele- se expressam de melhor forma através da dis-
nização dos judeus, ou seja, diferentes taxono- tinção entre culto e cultura. O autor analisa o
mias. evento da revolta dos Macabeus e conclui que
Barclay (1995) e (1996) adota o que ele cha- esta só é deflagrada no momento em que An-
ma de os ‘três principais tipos de helenização’, tíoco IV Epifanes persegue a religião judaica,
ou seja, os conceitos de assimilação, acultura- proibindo a prática do culto ritual e obrigando
ção e acomodação dos judeus à cultura helêni- os judeus a fazerem sacrifícios aos ídolos. Tais
ca. O primeiro é entendido no sentido restrito medidas extremas foram a forma de punição de
de ‘integração social’, ou em outras palavras, Antíoco ao início de rebelião que a população
significa “tornar-se semelhante a seu vizinho” de Jerusalém promovera ao saber que o sumo
em termos das relações e práticas sociais (p. sacerdote ilegítimo Menelau usurpara o tesou-
93). Assim, os indivíduos (no caso, os judeus) ro do templo para pagar um tributo prometido
totalmente assimilados são aqueles completa- a ele. Por isso, para Collins, a revolta não tem
mente integrados à sociedade (maioria) em que antecedentes nas reformas helenísticas imple-
vivem e que, para tanto, abdicaram das práti- mentadas anteriormente em Jerusalém por Ja-
cas e costumes particulares de sua comunidade são. Ela é conseqüência da perseguição religiosa
(minoria). A segunda noção - aculturação -, tam- por parte do soberano selêucida. Neste sentido,
bém entendida em seu sentido restrito, refere- o autor defende a distinção entre culto e cultu-
-se “aos aspectos não-materiais, e especialmen- ra, na medida em que a insistência de separatis-
te, educacionais da exposição cultural”. Neste mo pelos judeus se fazia apenas nas questões
caso, o judeu totalmente aculturado é aquele relativas ao culto e à adoração. É necessário
que adquiriu os diversos “recursos da herança notificar que este autor tem uma concepção de
literária e linguística da cultura dominante” (p. ‘cultura’ diferente daquela que adotamos: ele
95). A terceira e última noção - acomodação - separa o aspecto da religião (culto e práticas ri-
diz respeito à forma “como os judeus utilizaram tuais) do resto das práticas sociais que, no seu
a aculturação que eles adquiriram, [ou seja,] ao entender, correspondem à cultura (literatura,
grau que eles permitiram que ela moldasse sua arquitetura, padrão de beleza, etc.).
compreensão de sua herança judaica” (p. 97). Como podemos verificar, em meio a tantas
Já Sandra R. Shimoff, em seu artigo sobre os e diversas abordagens do processo de hele-
limites da helenização a partir do estudo do caso nização dos judeus no Mediterrâneo oriental

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 41


volume 2 | 2001
(Palestina e Diáspora), um certo consenso é de tal Judaísmo (que compreenderia em si um
encontrado na historiografia atual no que se aspecto universalizante e, assim, pouco preso à
refere aos limites deste processo. A consciência obediência das leis rituais). Colocado de lado o
de que, assim como o helenismo, o Judaísmo aspecto notório de que os dois falavam o grego

ARTIGOS
foi uma entidade múltipla na qual nem todos e eram oriundos de importantes cidades hele-
os aspectos mantinham o mesmo grau de im- nizadas do Mediterrâneo Oriental - Tarso e Ale-
portância é quase universalmente partilhada. xandria -, tal comparação é levantada em razão
Os autores sabem atualmente que, em muitos da declaração de ambos de que a circuncisão
aspectos, como aqueles ligados à literatura ou não tinha importância. Paulo afirmava que para
à arquitetura, a adoção do estilo helenístico em adentrar a comunidade dos cristãos bastava a fé
nada prejudicava a sua identidade. Em relação a em Jesus como o Messias, o Cristo ressuscitado,
estas questões, “os judeus não eram obrigados e que a circuncisão verdadeira deveria ser aque-
a escolher entre sucumbir ou resistir”, na obser- la “do coração, segundo o espírito” (metáfora
vação perspicaz de Erich Gruen (apud COLLINS, que ele utiliza em Romanos 2, 29 para relacio-
2001: 40). nar a tradição de seus ancestrais ao pensamen-
A esfera da religião, especificamente, o culto to cristão que ele desenvolve). Já Fílon, num
e os rituais ancestrais, era outro assunto, proi- contexto diverso, acerca dos prosélitos (gentios
bido, sagrado. Nela, a resistência era necessária convertidos ao Judaísmo, conversão que se fa-
frente à imposição de práticas que violassem a zia através da circuncisão e talvez do batismo
tradição. A prática muito política e pouco reli- ritual) afirma, em Perguntas e Respostas sobre
giosa (se é que esta consideração pode ser feita) Êxodo II 2, que
de prestar culto aos deuses da pólis ou do esta- o que faz um prosélito não é a circuncisão,
do imperial sempre foi repudiada pelos judeus, já que os israelitas não foram circuncidados
que só podiam viver dentro do Império Roma- até que eles começassem a vagar no deserto;
no na medida em que detinham seu status le- o que interessa de fato é voltar-se para Deus
gal particular, conferido por César e ratificado para se chegar à salvação (apud GOODMAN,
1992: 63).
por Augusto: estavam isentos de tais cultos. Já
no início do período helenístico, o historiador Realmente, a semelhança do pensamento de
grego Hecateus de Abdera havia comentado a ambos, guardados os contextos específicos das
respeito deste particularismo praticado pelos declarações é grande. Entretanto, M. Goodman
judeus. Para ele, a observância das leis sepa- 8
ressalta o fato de que Fílon é extremamente
ratistas da Torá fazia do Judaísmo uma religião claro (por exemplo em De Mig. Ab. 89-93) ao
“de certa forma, anti-social e hostil a estranhos” afirmar que não acredita que todos os judeus
(apud COLLINS, 2001: 41). Ao que parece, esta homens não devam ser circuncidados. O filó-
impressão acerca dos judeus vigorou ao longo sofo judeu defende, ao contrário, a posição de
de todo o período helenístico e também ao lon- que todos (judeus ou não judeus) devem fazer
go do período romano. ou acreditar em algo específico de modo a se-
Discutidos os critérios utilizados pela histo- rem judeus e piedosos. Paulo, similarmente,
riografia atual para o processo de helenização tem um pré-requisito para aqueles que aden-
dos judeus e do Judaísmo, temos base para tram suas ekklesiai (assembléias/comunidades)
analisar o paralelo freqüentemente estabele- cristãs de maioria gentílica: nomeadamente, a
cido entre Paulo e Fílon de Alexandria. Ambos fé no Cristo. Tentando identificar um paralelo
judeus do século I, Paulo e Fílon são conside- entre o pensamento dos dois judeus em ques-
rados ainda hoje, por uma historiografia que tão, Goodman afirma que os sistemas criados
enxerga no Judaísmo da Diáspora helenística as
raízes do Cristianismo, duas figuras exemplares 8
Comunicação pessoal em e-mail datado de 07/2001.

42 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
por ambos são ‘universalistas’, pois ambos ado- Desta forma, nas palavras de Barclay (1995:
tam requisitos para a entrada na comunidade, 108), “muitas foram as tentativas sem suces-
que é potencialmente universalista. A diferença so de leitura da antropologia tão idiossincráti-
entre eles residiria, então, nos seus diferentes ca de Paulo como produto da helenização”. O

ARTIGOS
requisitos de entrada. universalismo cultural de Paulo se mostra um
Já Barclay (1995: 91) afirma que “a tendência universalismo de caráter negativo, invertido, na
em se criar paralelos em pensamento [de am- medida em que ele não submete as tradições
bos autores] tem sido exagerada” na medida judaicas às categorias morais e teológicas do
em que Paulo não faz uma leitura das Escritu- meio helênico, mas todas as culturas contem-
ras como faz Fílon, ou seja, utilizando a alegoria porâneas - judaica ou gentílica - com uma crítica
como meio para interpretar a história de Israel. que evidencia sua comum escravidão em rela-
E nem Fílon prega a integração social defendi- ção ao pecado. Citando Barclay uma última vez,
da por Paulo para suas comunidades. Muito ao pode-se dizer que o pensamento de Paulo “não
contrário, o filósofo judeu está profundamen- representa uma fusão cultural com os valores
te comprometido com sua comunidade judai- helenísticos9 “mas uma total reavaliação tanto
ca em Alexandria e é um grande defensor das da tradição judaica quanto da helenística a par-
Escrituras, acusando outros judeus de terem tir de um novo ponto, criado por sua cristologia”
interpretado ‘alegoricamente’ demais os pre- (1995: 109), resultado de sua crença em Jesus
ceitos da Lei (como a circuncisão) a ponto de como o Messias de Israel e das nações.
não mais segui-los. Como podemos observar, os Onde devemos, então, procurar as raízes do
paralelos entre o pensamento de ambos judeus pensamento sui generis elaborado por Paulo?
residentes na Diáspora param na questão da re- Como legítima representante e defensora da
produção das leis rituais. Fílon as disfarça num História, acredito que a helenização e a vida em
primeiro momento, porém as afirma na prática. meio helênico constituem apenas uma pequena
Paulo, ao contrário, as nega. parte dos fatores que determinaram/conforma-
Quando constatamos que os aspectos fun- ram a pregação e a teologia do tão freqüente-
damentais do parentesco e da reprodução das mente chamado ‘helenizador’ do Cristianismo.
práticas religiosas ancestrais eram o que manti- Diferentemente, penso que só através de um
nha a identidade judaica no Mediterrâneo, per- exame mais pormenorizado da formação judai-
cebemos o quanto Paulo foi um judeu diferente ca do apóstolo, do momento de sua conversão
dos demais. Ele leva ao extremo a sua pregação e de sua trajetória cristã (em seus embates com
da integração social (assimilação) entre judeus as comunidades judaicas do Mediterrâneo que
e gentios nos aspectos materiais (em relação viviam, por sua vez, momentos difíceis dentro
à negação da circuncisão, das leis dietéticas, do Império Romano), enfim, apenas através da
etc.); mas, por outro lado, não revela alto nível história de Paulo, é que se pode melhor com-
de aculturação em termos educacionais, nem preender a teologia cristã que ele desenvolve. E
procura acomodar a tradição judaica ao sistema é, com efeito, esta teologia tão peculiar aquela
de valores presente no meio cultural helênico. que fornecerá posteriormente as bases sobre as
Paulo não relê a tradição de seus pais através quais se construirá o edifício da ortodoxia den-
de “olhos helenísticos”, como fazem os judeus tro da Igreja cristã.
alegorizadores criticados por Fílon. Muito ao
contrário, ele mantém sua visão de mundo ba-
lizada pelas categorias judaicas escriturais, sus-
tentando a noção de que o mundo não judaico,
tal como ele é, corresponde ao lugar das trevas,
do vício e da idolatria e que suas comunidades
cristãs são, em sentido inverso, o verdadeiro lu-
gar da salvação.
9
Se os autores posteriores contribuíram para esta fusão, isto é
outra história.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 43


volume 2 | 2001
DOCUMENTAÇÃO E BIBLIOGRAFIA ____________. (1999) “Paul: From the Jewish
Point of View”, in: HORBURY, W., DAVIES, W. D. &
1. Textos antigos STURDY, J. The Cambridge History of Judaism, 3: The
Early Roman Period. Cambridge: Cambrigde Univer-
BÍBLIA DE JERUSALÉM. (1994) Novo Testamento. sity Press, pp. 679-730.

ARTIGOS
São Paulo: Paulus.
DUNN, J. D. G. (2001) “Diversity in Paul”, in: CO-
NESTLE-ALAND. (1993) Novum Testamentum HN-SHERBOK, D. & COURT, J. M. (eds.). Religious
Graece. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft. Diversity in the Graeco-Roman World. A Survey of
Recent Scholarship. New York: Sheffield Academic
Press, pp. 107-23.
2. Textos específicos.
ELIAV, Y. Z. (2000) “The Roman Bath as a Jewish
ALCOCK, S. E. (1994) “Breaking up the Hellenis- Institution: Another Look at the Encounter between
tic World: Survey and Society”, in: MORRIS, I. (ed.). Judaism and the Greco-Roman Culture”. Journal for
Classical Greece. Ancient Histories and Modern Ar- the Study of Judaism 31, pp. 416-54.
chaeologies. New York: Cambridge University Press,
GOODMAN, M. (1992) “Jewish Proselytizing in
pp. 171-190.
the First Century”, in: LIEU, J., NORTH, J. & RAJAK,
BARCLAY, J. M. G. (1995) “Paul among Diaspora T. The Jews among Pagans and Christians In the Ro-
Jews: Anomaly or Apostate?” Journal for the Study man Empire. London and New York: Routledge, pp.
of the New Testament 60, pp. 89-120. 53-78.
_______________. (1996) Jews in the Mediterra- GRUEN, E. S. (2001) “Jewish Perspectives on Gre-
nean Diaspora from Alexander to Trajan (323 BCE – ek Culture and Ethnicity”, in: COLLINS, J. J. & STER-
117 CE). Edinburgh: T. & T. Clark. LING, G. E. (ed.). Hellenism in the Land of Israel. No-
_______________. (1998) “Paul and Philo on tre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press,
Circumcision: Romans 2, 25-9 in Social and Cultural pp. 62-93.
Context”. New Testament Studies 44/4, pp. 536-56.
HENGEL, M. (1979) Acts and the History of Ear-
_______________. (2001) “Diaspora Judaism”, liest Christianity. London: SCM Press, pp. 35-126.
in: COHN-SHERBOK, D. & COURT, J. M. (eds.). Reli-
___________. (2001) “Judaism and Hellenism
gious Diversity in the Graeco-Roman World. A Sur-
Revisited”, in: COLLINS, J. J. & STERLING, G.E. Hel-
vey of Recent Scholarship. New York: Sheffield Aca-
lenism in the Land of Israel. Notre Dame, Indiana:
demic Press, pp. 47-64.
University of Notre Dame Press, pp. 6-37.
BROX, N. (1986) Historia de la Iglesia Primitiva.
Barcelona: Editorial Herder. JAEGER, W. (1991) Cristianismo Primitivo e Pai-
deia Grega. Lisboa: Edições 70, p. 13-65.
CHEVITARESE, A. L. (2000) “Interações Culturais
entre Gregos e Judeus nos Períodos Arcaico, Clássico LAMP, J. S. (1999) “Paul, the Law, Jews, and Genti-
e Helenístico”, in: CHEVITARESE, A. L., ARGÔLO, P. F. les: A Contextual and Exegetical Reading of Romans
& RIBEIRO, R. S. (orgs.). Sociedade e Religião na An- 2, 12-16”. Journal of the Evangelical Theological So-
tiguidade Oriental. Rio de Janeiro: Fábrica de Livros ciety 42/1, pp. 37-51.
– SENAI, pp. 112-29. LEVINE, L. I. (1998) Judaism and Hellenism in An-
COLLINS, J. J. (1997) “A Symbol of Otherness: Cir- tiquity – Conflict or Confluence? Seattle & London:
cumcision and Salvation in the First Century”, in: Se- University of Washington Press.
ers, Sibyls and Sages in Hellenistic-Roman Judaism. MENDES, N. M. (1999) “Romanização: Cultura
Leiden and New York: Brill, pp. 211-35. Imperial”. Phoînix. Rio de Janeiro: Sette Letras, pp.
____________. (2001) “Cult and Culture: The Li- 307-24.
mits os Hellenization in Judea”, in: COLLINS, J. J. & MÍGUEZ, N. O. (1995) “Paulo, o compromisso da
STERLING, G. E. (eds.). Hellenism in the Land of Isra- fé. Para uma ‘Vida de Paulo’”. RIBLA (20): Paulo de
el. Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Tarso – Militante da Fé. Petrópolis: Vozes, pp. 7-29.
Press, pp. 38-61. MOMIGLIANO, A. (1991) Os Limites da Heleniza-
COLLINS, J. J. & STERLING, G. E. (eds.). (2001) Hel- ção. A Interação Cultural das Civilizações Grega, Ro-
lenism in the Land of Israel. Notre Dame, Indiana: mana, Céltica, Judaica e Persa. Rio de Janeiro: Zahar.
University of Notre Dame Press.
ROWLAND, C. (1985) Christian Origins. An ac-
DAVIES, W. D. (1972) “Paul and Jewish Christia- count of the setting and character of the most im-
nity according to Cardinal Daniélou: a suggestion”, portant messianic sect of judaism. Cambridge: SPKC
in: Judéo-Christianisme. Recherches de Science Reli- Press.
gieuse. Paris: Éditions Beauchesne, pp. 69-79.

44 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
SHIMOFF, S. R. (1996) “Banquets: the Limits of
Hellenization”. Journal for the Study of Judaism 27,
pp. 441-52.
STERN, M. (1976) “The Jews in Greek and Latin
Literature”, in: SAFRAI, S. & STERN, M. The Jewish

ARTIGOS
People in the First Century. Historical Geography, Po-
litical History, Social, Cultural and Religious Life and
Institutions. Assen: Van Gorcum, vol. 2, pp. 1101-
159.
TCHERIKOVER, V. (1999) Hellenistic Civilization
and the Jews. Massachusetts: Hendrickson Publi-
shers, 2nd ed. (1st edition: 1959).
WILL, E & ORRIEUX, C. (1986) Ioudaïsmos-Hellè-
nismos: essai sur le judaïsme judéen à l’époque hel-
lénistique. Nancy: Presses Universitaires de Nancy,
pp.177-228.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 45


volume 2 | 2001
Homossexualidade e Política

ARTIGOS
nas comédias de Aristófanes
Rachel Correia Lima Reis
Mestre em História Social pela UFRJ

Resumo: portanto que se tratasse de uma relação entre


O poeta cômico Aristófanes se utiliza de metá- um jovem rapaz ainda sem barba, o erómenos,
foras sexuais, em especial a relação homossexual,
e um homem adulto, o erastés, e que esta re-
para condenar uma forma de governo democrático,
a demagogia.. lação estivesse voltada para a educação do jo-
Palavras-Chave: Homossexualidade, Democracia, vem, não sendo puramente sexual. Esta posi-
Aristófanes. ção tem sido defendido pela historiografia, que
Abstract: corrobora esta hipótese com base em vários
The comic poet Aristophanes criticize as homose- documentos, como os poetas líricos da época
xuality as demagogy like vicious morals behaviours, arcaica, que continuavam a ser lidos no período
because they have their basic on corruption and, clássico; as imagens dos vasos de cerâmica, tan-
then, they must be combated like harmful to demo-
cracy. to as de figuras negras do séc. VI a. C., quanto as
Keywords: Homosexuality, Democracy, Aristopha- de figuras vermelhas do séc. V a. C.; e algumas
nes das obras de Platão e Xenofonte do séc. IV a. C..
Todavia, no que se refere a Aristófanes as prá-
ticas homoeróticas são representadas desvalo-
rizadas, não só aquelas desconsideradas pelos
historiadores e pelos autores e pintores antigos,
As considerações apresentadas neste arti-
mas também as práticas valorizadas entre eras-
go fazem parte do terceiro capítulo de nossa
tés e erómenos.
Dissertação de Mestrado intitulada: Erastés,
erómenos e os Aristocratas Atenienses. Esta De modo a compreender esta perspectiva
dissertação foi defendida no Programa de Pós- aristofânica nos vincularemos a proposta de
-Graduação de História Social (PPGHIS) da UFRJ análise de Shutton Jr. (1992: 32-33) e Shapiro
sob orientação da Professora Titular Doutora (1992: 71-72). Sendo assim, procuraremos en-
Neyde Theml e apoio financeiro da Capes. tender as representações da homossexualidade
em Aristófanes inserindo-as em seu contexto
Em Aristófanes o que nos chamou a atenção
histórico, em que, a partir da ascensão da de-
foi o fato de o poeta cômico contrariar a visão
mocracia “radical”, os valores relacionados a
amplamente difundida de que a homossexua-
homossexualidade aparecem disforizados (des-
lidade era aceita e até mesmo valorizada pela
valorizados) demonstrando o acirramento dos
sociedade dos atenienses no período clássico,

46 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
conflitos políticos entre aristocratas e demo- com a transferência do tesouro da ilha de De-
cratas.1 As peças de Aristófanes, escritas poste- los para a acrópole de Atenas. Na disputa en-
riormente, por volta dos anos de 425-388 a.C. e tre os dois grupos de aristocratas, Címon pos-
que estavam voltadas para um público mais am- suía uma fortuna considerável e dispunha dela

ARTIGOS
plo, envolvendo toda a comunidade, têm como provendo o sustento de inúmeros membros de
tema central a heterossexualidade. A homosse- seu dêmos, inclusive deixando suas terras sem
xualidade, quando aparece, é representada de cercas para que qualquer um que desejasse pu-
forma desvalorizada (Shutton: 1992: 32-33). desse ir diariamente obter provisões. De modo
Se a comunidade política é formada por va- a contrapor-se a fortuna de Címon e como não
riados grupos políticos, iremos priorizar duas possuía igualdade de recursos, Péricles institui
facções aristocráticas rivais: os Alcmeônidas e a misthophoría, isto é, o pagamento pela par-
os Filaidas2, cada uma delas tendo a base que ticipação nos cargos públicos, conseguindo as-
legitima sua autoridade em valores distintos. sim um prestígio ainda maior que o de Címon
A primeira ligada ao dêmos e a outra ligada às (Aristóteles: Constituição de Atenas: XXVII 3-4).
phratríai. A liderança que ainda exercia a aristo- Este episódio entre Címon e Péricles deve ter
cracia em plena democracia começou a se mo- ocorrido por volta de 463 ou 461 a. C., após o
dificar a partir de alguns fatores ocorridos nos retorno de Címon para Atenas da Trácia e de Ta-
anos de 460 a.C.3 sos e do primeiro julgamento enfrentado pelo
De início, o que possibilitou a Péricles se aristocrata em 463 a. C. Os recursos necessários
contrapor ao poder e prestígio de Címon, foi a para o pagamento do misthós vieram do tesou-
fundação do “Império ateniense”, em 454 a. C., ro apropriado por Atenas da Liga de Delos. Se-
gundo Tucídides 460 talentos de tributos anuais
eram entregues pelos membros da Liga, en-
1
Sendo assim, a transformação dos valores, que ocorre, em
grande parte do tempo, mais ou menos gradualmente e sem quanto o tesouro permanecia na ilha de Delos
ser premeditada, produz a autoridade e também a destrói. Esse (História da guerra do Peloponeso: I 96). Depois
processo contínuo só pode ser explicado e compreendido se au-
toridade for vista na perspectiva da capacidade para elaboração da transferência do tesouro para a acrópole de
racional de aceitação ou adesão coletiva, já que o raciocínio é, Atenas em 454 a. C. o historiador grego cita um
pelo menos em parte, baseado em julgamentos de valor. Esses
julgamentos de valor, fenômenos subjetivos, não devem ser discurso de Péricles que nos fala de 600 talentos
confundidos com valores, que são fenômenos objetivos. A auto- anuais depositados pelos aliados no tesouro da
ridade depende dessa existência. A tradição é também um fator
de eficácia da autoridade. Uma tradição forte proporciona uma acrópole (História da guerra do Peloponeso: II
base firme para a autoridade. Mas se tal tradição for debilitada, 13). M. A. Levi (1991: 69) nos chama a atenção
a autoridade desintegra-se (Friedrich: 1974: 70). Daí a relação
entre a euforização das práticas culturais de um determinado que aparecem nas listas da acrópole 230 talen-
grupo social e a autoridade que este grupo visa legitimar. tos pagos em metais preciosos, o que abria para
2
A escolha dos Alcmeônidas e dos Filaidas recaiu na própria Atenas a possibilidade de uma política de gran-
abundância de referências sobre estas duas famílias que en-
contramos na documentação utilizada. Além disso, a atuação e des despesas, investimentos e “empregos”.
lutas políticas entre ambas nos pareceu relevante para a com-
preensão das modificações operadas a partir da ascensão da
O prestígio obtido por Péricles e pelos demo-
democracia “radical” e do modo como os valores relativos à ho- cratas junto a população ateniense mais pobre,
mossexualidade foram sendo transformados.
os thêtta, possibilitou outros dois golpes decisi-
3
Assim, a autoridade é o resultado de mudança nos valores e
o seu colapso resulta do desaparecimento deles pela escolha
vos contra a facção aristocrata, ou seja, o ostra-
coletiva de outros. Na transformação e substituição gradual de cismo de Címon em 461 a. C., como já vimos um
valores (e das crenças), a autoridade de certos homens ou gru-
pos é enfraquecida, enquanto a de outros é aumentada. Essas
dos maiores expoentes do grupo aristocrático,
mudanças raramente constituem um “abismo”, embora sob e a manobra de Efíaltes no sentido de diminuir
condições extraordinárias se possa verificar tal abismo, espe-
cialmente na forma de guerra ou de revolução (Friedrich: 1974:
o poder do Areópago (Aristóteles: Constituição
62). Mas o que significa ser leal para algo que está continua- de Atenas: XXV 1-4), órgão público com funções
mente mudando? O dado básico da política é o fato de que os
homens dão valor não só a sua vida física, mas também a sua
judiciárias e de vigilância da aplicação das leis
vida comunitária com todos os valores que ela implica e procura (nomophylaxía), exercidas de modo favorável
garantir. Essa vida não é necessariamente o valor mais elevado,
mas é o valor sem o qual não há possibilidade de tornar reais os
aos grandes proprietários de terra, os eupátri-
outros valores (Friedrich: 1974: 68). das, na medida em que seus membros eram

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 47


volume 2 | 2001
escolhidos somente no interior da categoria dos acontecimentos não sejam contemporâneos
eupátridas (Levi: 1991: 87-88). O objetivo de Efí- das peças de Aristófanes não se pode negar a
altes era não somente a diminuição do poder presença da censura e crítica das representa-
dos aristocratas, mas também o fortalecimento ções da homossexualidade, que já nos haviam

ARTIGOS
da assembléia popular, a Eklésia, pois as atribui- chamado a atenção Shutton Jr. (1992) e Shapi-
ções do Areópago passaram para a Eklésia.4 ro (1992) em relação a produção de vasos com
A instituição da misthophoría e as novas imagens sobre a homossexualidade, que foram
atribuições da Eklésia contribuíram para au- substituídas pelas imagens que valorizavam o
mentar a participação política dos thêtta, base papel da mulher cidadã, a partida do guerreiro
de apoio do poder dos Alcmeônidas, família da ou os ofícios.
qual faziam parte Clístenes e Péricles, ligados Resta-nos observar até que ponto esta nova
ao regime democrático. A democracia “radical” percepção da pederastia relacionada à demo-
representou, então, uma aliança entre dêmos e cracia irá afetar as obras de Aristófanes, sem
os Alcmeônidas, sustentada por uma troca de esquecer que a partir da época do poeta cômi-
interesses: o pagamento dos misthós para exer- co, após a morte de Péricles, começa a ganhar
cer funções públicas, ampliando desta forma a paulatinamente espaço outro grupo social, os
participação dos thêtta; que antes desta me- “oligarcas”, que têm presença marcante nas pe-
dida não possuíam tempo livre suficiente para ças de Aristófanes. São os novos ricos cuja ri-
participar dos cargos públicos, visto que neces- queza vinha não da propriedade da terra, mas
sitavam trabalhar para prover seus recursos di- de atividades como o comércio a longa distância
ários. A tomada do poder dos Alcmeônidas, em e o artesanato. Assim, buscaremos ao mesmo
detrimento dos Filaidas, na qual Címon estava tempo perceber os conflitos e acontecimentos
vinculado5 acirra as oposições. Embora estes contemporâneos na obra do poeta sobre as re-
presentações da homossexualidade.
4
Dentro deste quadro, a noção de dissensão tal como a entende De acordo com K. Dover (1994) o comedi-
C. Friedrich (1970) é fundamental. A comunidade, embora base-
ada em valores comuns, produz dissensões. Uma comunidade ógrafo tinha como finalidade provocar o riso,
onde não haja dissensão, que não contenha elemento algum de através da exposição do ridículo. A distinção
oposição radical aos compromissos da ordem implantada, incluin-
do os mitos, os símbolos e as utopias, não será uma comunidade entre o éros homossexual carnal, aquele dirigi-
na medida em que nunca acontece coisa alguma (Friedrich: 1970: do para o corpo, para a satisfação dos prazeres
112). Existe um perigo quando procuramos exagerar o que há de
comum nos valores, interesses e costumes. Se exagerarmos a or- físicos; e o éros espiritual ou puro, em que os as-
dem na estruturação e organização da comunidade, ela se torna
logo autoderrotada. Numa comunidade viva em que os propósi- pectos corporais ficam relegados a um segundo
tos se relacionam com os valores, interesses e costumes, sempre plano, visto que este tipo de amor interessa-se
haverá vigorosa dissensão ou conflitos (Friedrich: 1970:113). Em
meio às dissensões e conflitos de ambos os grupos aristocratas, sobretudo pela alma do menino, que podemos
cada um deles pretendia colocar os valores sobre os quais apoia- encontrar em alguns textos gregos de moralis-
vam sua autoridade como prioritários, visto que possibilitavam
o “bem comum”. Os Filaidas pretendiam a manutenção dos me- tas e filósofos, como Xenofonte e Platão, mas
canismos políticos pelos quais os áristoi conservavam o controle
do poder, como por exemplo o fato de os cargos das altas ma- não está presente nas comédias de Aristófanes.
gistraturas serem ocupados apenas por indivíduos advindos da Sem dúvida, o éros espiritual enaltecido por
aristocracia até meados do V século a. C.. Para tal, seus valores
expressavam que eram os áristoi que, por seu nascimento e sua Platão e Xenofonte é uma forma idealizada de
educação, estavam mais bem preparados para conduzir os negó- descrever as práticas homossexuais vivenciadas
cios (chrématoi) da pólis. Já os Alcmeônidas, com uma série de
reformas, conflitos e dissensões, contribuíram para mudança no pelos atenienses, o que podemos perceber ao
cenário político, com o estabelecimento de uma ordem democrá-
tica “radical”. confrontarmos suas descrições com aquelas fei-
5
Se não é possível mostrar que existe valores mais elevados do tas por Aristófanes, que seguindo as palavras de
que os outros, podemos dizer que há hierarquia de valores em Dover (1994: 206; 201), observa-se a “constante
determinadas sociedades. Esta hierarquia é conhecida pela socie-
dade e suas mudanças têm muito a ver com as mudanças na au- redução do éros homossexual aos termos físicos
toridade política. Isso pelo fato de que aquilo que é uma elabora- mais grosseiros”, sendo tratado “simplesmen-
ção racional eficaz numa constelação de valores poderá fracassar
em outra. Por isso, não há uma preferência universal por alguns te como um desejo de penetração anal”, como
valores quando se trata de homens organizados politicamente. As
contradições resultantes não só produzem muitos conflitos nas por exemplo quando o Velho nas As mulheres
comunidades políticas, mas também rivalidades no que se refe- que celebram as Tesmofórias (59-62) de Aristó-
re à autoridade. Pode acontecer que as pretensões à autoridade
poderão ser baseadas num bom raciocínio, nos valores comunais, fanes diz ao Escravo de Agatão que está apto a
sem serem conclusivas (Friedrich: 1974: 69).

48 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
penetrar seu pênis nele e em seu precioso poe- esses papéis voltados para o estímulo da sexu-
ta. Em Aristófanes o éros homossexual não é só alidade eram representados não por homens
encarado com servil aos prazeres do corpo, mas travestidos de mulheres, mas por mulheres es-
também como “mercenário”, uma vez que sus- cravas ou hetaíras7, prostitutas associadas ou ao

ARTIGOS
cetível a presentes, posição política influente e deleitoso e desejável ou, o mais comum, à “de-
qualquer espécie de troca de favores voltada a pravação, vício e corrupção” (Zweig: 1992: 77).
interesses específicos, com a “compra” da satis- Quanto ao relacionamento homossexual,
fação sexual por parte do erastés e a obtenção além de sua representação desqualificada, com
de ganhos materiais por parte do erómenos ambos os parceiros, tanto o erastés como o eró-
(Dover: 1993: 205). Não há aqui, conforme nas menos, sendo tratados como passivos, interes-
relações “nobres” de philía, uma relação desin- sados apenas na satisfação dos desejos sexuais
teressada. e em ganhos materiais, podemos observar que
Porém, concordamos com Bella Zweig (1992) a homossexualidade não foi o foco principal
que na comédia não estava em jogo apenas a de atenção de Aristófanes, acompanhando a
provocação do riso pela exposição do ridículo. tendência da cerâmica após 460 a. C., que cen-
O teatro inseria-se num contexto de celebração trava sua temática na heterossexualidade. Por
de Dionisos, deus ligado a rituais de fertilidade, exemplo, encontramos apenas uma referência
sexualidade e vida, por isso as comédias estão à homossexualidade em As Vespas (575-580),
repletas de cenas com linguagem sexual abu- Lysistrata (165), as Aves (138-145) e na Paz,
siva, insultos e obscenidades. Como nos diz a duas passagens (11; 724). Mas ao contrário das
autora sobre as relações heterossexuais, as mu- imagens na cerâmica, as comédias não ressal-
lheres eram tratadas nas comédias como meros tavam o papel das mulheres cidadãs. Há até
objetos sexuais dos homens, muitas das perso- em certo sentido uma equiparação como nos
nagens sendo apresentadas nuas, ou seminuas, chama a atenção B. Zweig (1992: 77) entre as
e mudas, como a jovem tocadora de flauta nas cidadãs e as hetaírai, ambas sendo suscetíveis
Vespas que Philocléon carrega junto de si no de serem abusadas sexualmente pelo homem,
cortejo público (1326 e seg.). Alexandre Lima de estarem à mercê de seu impulso sexual, elas
(2000: 66) nos chama a atenção que os pintores serviam para serem controladas e usadas pelos
do Cerâmico (dêmos de Atenas) não represen- homens.
taram, em seus vasos, mulheres nuas durante As peças de Aristófanes, escritas após a as-
os cortejos públicos (kômoi), mas Aristófanes censão da democracia “radical” de Péricles, não
explicita a falta de moderação (sophrosýne) de só apontam para a tendência a partir daí em
Philocléon. Neste sentido, como o objetivo do
comediógrafo não era somente expor o ridículo qual um certo conflito de valor seja decidido. Essa tendência
e o grotesco6, muitos estudiosos defendem que das comunidades políticas serem estruturadas ou organizadas
aumenta na proporção que elas crescem em tamanho e em
complexidade (Friedrich: 1970: 110-111). Com a instituição da
6
Como nos chama a atenção Monique Trédé (Le rire des anciens: misthophoría por Péricles e o esvaziamento das atribuições do
1998, 7-9), mesmo o que é tornado ridículo, de forma a provo- Areópago com Efialtes por volta de 460 a. C., o grupo dos áris-
car o riso, não é privado de senso, se pode rir de tudo, do amor, toi/anti-démoi sofre um sério revés. O aumento da participação
da guerra, da religião, da morte, da política; porque o riso de- e do poder popular possibilita aos pró-démoi, que haviam re-
pende do contexto, da perspectiva, do olhar, e sendo a própria alizado tais reformas, uma sólida base de sustentação de sua
caricatura e deformação, característica constante das comédias autoridade. Após esta divisão de autoridade entre o grupo dos
de Aristófanes, operada a partir da liberdade que se toma em aristocratas, o grupo democrata transfere os mecanismos de
relação ao real. Neste sentido, temos um dos pontos de vincu- decisão dos áristoi/anti-démoi para a Eklésia. Os valores aristo-
lação com a proposta de Carl J. Friedrich, da “(re)estruturação cráticos que tinham permanecido hegemônicos mesmo depois
dos valores” tradicionais ligados a homossexualidade em novos das reformas democráticas de Clístenes e o aumento do poder
valores democráticos. Na medida em que as comunidades polí- dos thêtta na marinha com Temístocles, juntamente com a con-
ticas se caracterizam por uma multiplicidade de propósitos, de servação da autoridade aristocrática, são reestruturados e reor-
metas, de objetivos e de projetos de ação coletiva, essa multipli- ganizados de acordo com os valores democráticos emergentes,
cidade levanta com freqüência o problema da prioridade. Para ligados a novos valores urbanos, artesanais e comerciais.
determinar essa prioridade é preciso que haja na comunidade
uma forma de procedimento para chegar a uma decisão, e isso, 7
Nem todos os pesquisadores concordam com esta tese de que
por sua vez, força a estruturação e a organização. Deve haver nas comédias alguns personagens femininos eram representa-
argumentos para como chegar a uma determinada decisão pela dos por mulheres e não por homens.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 49


volume 2 | 2001
censurar e criticar as representações do homo- da astý paravam e a vida passava a se centrar
erotismo, mas também sofriam em certa medi- em torno do teatro (Coulet: 1996: 71-72; 74).
da uma direção mais contundente da censura Este espaço aberto de licenciosidade permite a
democrática. Diferentemente dos diálogos so- liberação do riso, através da exposição do gro-

ARTIGOS
cráticos de Platão e Xenofonte citados anterior- tesco, da deformação, da caricatura, dos exces-
mente, as comédias não estavam voltadas para sos, da “depravação sexual”, do ridículo, mesmo
um público mais restrito formado por aristocra- porque o próprio riso supõe certa distorção em
tas antipáticos ao governo democrático, porém relação ao real (Trédé: 1998: 8-9). Dentro des-
para um amplo público no qual tomavam gran- ta perspectiva, como nos diz Dover, interessa a
de parte grupos mais heterogêneos da popula- comédia fazer rir a sua audiência, oferecendo-
ção, que se beneficiavam da democracia, além -lhes um momento de liberdade das restrições
de fazerem parte de uma festa pública oficial. impostas pelas leis, pela religião e convenções
Sem dúvida, este fato não impediu a crítica por sociais, com as personagens realizando feitos
parte do poeta das instituições democráticas; inacreditáveis e, neste processo, chegam a in-
dos “demagogos”, que conduziam a política não sultar, ludibriar e triunfar sobre homens polí-
de acordo com os interesses de toda a comuni- ticos e militares, intelectuais e até divindades.
dade, mas de seus interesses particulares; dos Porém, como pano de fundo de modo que a pla-
pagamentos dos misthoí, que levava os que ti- téia possa compreender uma piada, podemos
nham menos recursos a ocuparem cargos públi- detectar usos e costumes sociais (Dover: 1994:
cos mais voltados para a obtenção de seu sus- 26-27). Dentro das peças de comédia podemos
tento, sendo conduzidos pelos “demagogos”. constatar tanto a noção de cômico grotesco,
No entanto, concordamos com Finley (1963: que corresponde ao fantástico, ao imaginário a
92-93) que isto não significou que Aristófanes uma realidade diferente, próxima ao não senso,
fosse contra a democracia, pois se assim o fos- quanto a noção de cômico simples, que se refe-
se, tomando parte de um concurso em que os re aos laços que estreitam a peça com a reali-
jurados, escolhidos entre os simples cidadãos, dade cotidiana, e domina nos jogos de cena da
elegiam as melhores peças (Coulet: 1996: 75), o sátira, da paródia, das personagens zombadas
poeta cômico não teria ganho quatro primeiros e uma grande parte do cômico verbal (Thiercy:
prêmios, três segundos e um terceiro durante 1986: 14). Assim, desta forma, o riso não é to-
a sua carreia, constituindo aparentemente, se- talmente privado de senso (Trédé: 1998: 9), e
gundo Finley, o maior recorde da “comédia anti- neste contexto a crítica a vida política contem-
ga”, o que nos sugere que muitos de sua platéia porânea ganha sentido como sendo algo neces-
não o consideravam inimigo do povo ou da de- sário para o bom funcionamento da democracia
mocracia. Além disso, Finley ainda nos chama a (Coulet: 1996: 77), já que, para Aristófanes, a
atenção que apesar das críticas de Aristófanes, soberania do povo (dêmos) deveria se basear
as comédias eram representadas pela iniciativa na eubolía (prudência), eunomía (a boa ordem
do Estado, desde a escolha inicial das peças até fundamentada no respeito as leis), euphrosýne
a coroação do dramaturgo vencedor. (alegria, prazer), na parresía (liberdade de falar)
Havia uma certa licenciosidade para que a (Komornicka: 1997: 402) e em muitos casos,
comédia pudesse dirigir críticas à democracia. no seu entender, os políticos responsáveis pela
Esta permissão decorria do fato de as comédias vida pública agiam tomando como parâmetro a
inserirem-se numa festa em honra ao deus Dio- injustiça e a hýbris. Como o poeta mesmo diz, a
nisos, ligado a transgressão das normas e sub- sátira aos maus não é algo odioso, pois com ela
versão da ordem, e também por não se tratar se rende homenagem aos bons (Aristófanes: Os
de uma festa cotidiana, ao contrário, o dia-a- cavaleiros: 1274-1275).
-dia cedia lugar a estes grandes festivais cívico- Voltando a questão do público alvo, devemos
-religiosos que aconteciam até mesmo em pe- considerar que as comédias eram feitas e repre-
ríodos de guerra e de crise, diversas atividades sentadas por e para homens (Zweig: 1992: 75).

50 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
A partir daí podemos compreender por que, historiadores no gynaikôn8, sendo preparadas
numa sociedade em que o homem tem um para o casamento, de modo que os homens não
status superior ao da mulher, as mulheres que tivessem acesso a elas, para garantir a reprodu-
aparecem nas comédias com voz ativa, como a ção saudável do herdeiro e do cidadão.

ARTIGOS
personagem Lysistrata, eram investidas de ca- Isto não ocorria, porém, com os grupos so-
racterísticas propriamente masculinas, e quan- ciais com menores recursos, aos quais estavam
do interpretam papeis sexuais são tomadas destinadas as peças de Aristófanes. O teatro
como puro objeto sexual dos homens (Zweig: era uma festividade aberta a todas os grupos
1992: 76-77). Todavia isto nos leva a questionar sociais,9 diferentemente do ambiente mais res-
por que havia uma desvalorização da relação trito dos banquetes aristocráticos, e a larga par-
homossexual, pois de acordo com uma vasta ticipação da população era garantida pelo preço
gama de estudos dedicados ao homossexualis- do teatro, de dois óbulos, bastante acessível, e
mo masculino helênico, trabalhos consagrados pelo fato de o Estado pagar a entrada para os
como os de Dover (1994), Foucault (1990), Mar- mais pobres (Coulet: 1996: 72). Para tais pesso-
rou (1990), entre outros, com base numa vasta as, por terem necessidade de trabalhar para ga-
análise documental, a relação erastés/eróme- nhar a vida, havia mais acesso às mulheres des-
nos quando dirigida para a educação do jovem tes grupos, que precisavam ajudar os maridos
era aceita e valorizada pela sociedade. As comé- e os pais com o orçamento familiar, muitas ve-
dias de Aristófanes, diferente das demais fontes zes se tornando vendedoras na agorá. Segundo
documentais sobre o assunto, como já dissemos Dover a segregação estrita das esposas, filhas,
tinha como receptores não só grupo de áristoi guardiães e viúvas de cidadãos atenienses só
que ainda se encontrava ligado a práticas cultu- era possível na medida em que o chefe e famí-
rais aristocratas, mas uma camada mais ampla lia fosse capaz de manter escravos em número
da população. A homossexualidade inserida nos suficiente para realizar todas as tarefas fora de
moldes da cultura aristocrática exigia que o par- casa. Por um lado, entre os homens adultos e
ceiro mais velho, o erastés, perseguisse o mais jovens pertencentes as camadas mais abasta-
jovem, enquanto o erómenos resistia as investi- das, as oportunidades para casos de amor com
das do erastés, até que ele pudesse provar o seu moças de seu próprio grupo social eram míni-
valor, que não está apenas interessado em satis- mas, e se eles quisessem gozar do triunfo da se-
fazer seus apetites sexuais, mas que sente uma dução, em vez da satisfação imperfeita do amor
verdadeira philía (amizade/amor) pelo amado e comprado, teriam de seduzir um menino. Por
que tem algo de bom para lhe ensinar. Esta re- outro lado, dentre os mais pobres a segregação
lação, portanto, estava voltada para a educação não poderia ser tão estrita, visto que as mulhe-
do futuro cidadão, que ainda não tinha seu sta- res freqüentemente precisavam ir ao mercado
tus formado e, por isso, podia desempenhar um
papel sexual até certo ponto considerado pas- 8
PARIS, P. e ROQUES, G.- Lexique des antiquitées grecques- Paris:
sivo em relação ao mais velho. Esta relação era Albert Fontemoing editer, 1909, p. 78. Lugar da casa reservado
honrosa para o erómenos, visto que ser cobiça- às mulheres, encontra-se atrás do andronîtes e compreendia:
uma sala comum de trabalho, o quarto do casal (thálamos), o
do por muitos erastés era sinal de seu valor e quarto das jovens moças (amphi thálamos), o quarto das escra-
poder ser iniciado sexualmente por um homem vas mulheres e o quarto dos dependentes. Mas as mulheres não
ficavam restritas ao gynaikôn, circulavam por outros aposentos
adulto era mais digno do que por uma mulher. da casa e na rua.
Os homens só tinham acesso as mulheres cida- 9 De acordo com Corinne Coulet (1996: 73), entre os especta-
dãs após o casamento, que ocorria por volta dos dores dos espetáculos teatrais estavam o conjunto dos cidadãos
homens, as mulherres, crianças, métoikoi e até escravos se seus
trinta anos de idade, pois o ideal para as mu- senhores fossem suficientemente generosos, estrangeiros de
lheres pertencentes ao grupo aristocrático era outras póleis, quando se trata das Grandes Dionisíacas. Embora
Platão cite o número de trinta mil espectadores para o teatro
ter uma vida mais reclusa no oîkos e para alguns de Dionisos de Atenas, Coulet (1996: 72) considera esta cifra
exagerada se levarmos em conta a estrutura do edifício do te-
atro, parecendo-lhe mais razoável pensar em algo em torno de
dezessete mil lugares.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 51


volume 2 | 2001
e vender seus produtos agrícolas ou artesanais, até mesmo a vida pública pode ser traduzida em
além de terem que trabalharem no campo (Do- termos de metáforas sexuais, expondo um cará-
ver: 1994: 208). Os homens não dispunham de ter quase mecânico do desejo, que se manifesta
tempo livre, a scholé dos áristoi, para que pu- tanto no corpo cômico, em que os atores levam

ARTIGOS
dessem ir ao ginásio, à palestra e aos banquetes, para a cena as marcas do sexo, quanto na utiliza-
onde os jovens eram encontrados reunidos e ção da linguagem grosseira livre. O que a comé-
cortejados. Ao mesmo tempo os rapazes, assim dia apresenta ao olhar é a imagem nua de um
como as moças, necessitavam trabalhar, e às ve- desejo físico, que é, por sua vez, uma resposta
zes até ao lado delas, não estando livres para se imediata à visão da beleza, descrita também em
dedicarem a tentativas de conquista e sedução termos crus. A sexualidade é então ligada a libe-
de rapazes, às vezes longas e demoradas, se o ralização de um inconsciente que pode se livrar
jovem envolvido em relacionamentos homos- das amarras das convenções no interior do qua-
sexuais desejasse assegurar o seu status para a dro de um utopia (Saïd: 1998: 68-69; 72). Den-
vida adulta. Como nos diz Dover, apaixonar-se e tro desta perspectiva, as mulheres são passivas,
perseguir o objeto desta paixão é um luxo, um controladas e usadas pelos homens; os homens
passatempo e investimento de esforço numa que se relacionam com mulheres ou com outros
atividade que, mesmo se bem sucedida, não homens não colocam freios para seu desejo se-
servirá em nada para vestir e alimentar o aman- xual. Sazanne Saïd (1998: 75-76) nos chamar
te (Dover: 1994: 209). Para o cidadão ateniense a atenção do fato de que este desejo físico é
comum envolver-se em casos de amor homos- indiferente, podendo se voltar para mulheres,
sexuais significava muitas vezes uma perda de homens ou prostitutos(as), não distingui entre
tempo que interessava mais a jovens ociosos amores permitidos e os interditos. Podemos,
(Dover: 1994: 210). As personagens principais entretanto, constatar que há diferença entre a
enfocadas nas comédias normalmente estavam relação homossexual e heterossexual no que se
de acordo com o público mais amplo das peças refere ao comportamento dos homens. No ho-
teatrais, não se tratavam somente de homens mossexualismo, tanto o erastés como o eróme-
pobres, mas também não eram exclusivamente nos são representados como passivos, até mes-
ricos, e a maior parte da audiência que Aristófa- mo caracterizados como mulheres, barbeados,
nes buscou expressar através de suas persona- vestidos como mulheres, submissos sexualmen-
gens era aquela que conhecia mais acerca das te. Nas relações nobres de homophilía, apesar
possibilidades heterossexuais oferecidas pela de o jovem ser penetrado no ato sexual, o coito
vida urbana ou rural (Dover: 1994: 209). ocorre entre as coxas do erómenos, o chamado
Nas comédias de Aristófanes percebemos sexo intercrural, ou seja, se o amado desempe-
que a sexualidade inseria-se dentro da necessi- nha o papel passivo por ser o penetrado, sua
dade de provocar o riso, e assim, de um modo passividade é compensada pelo fato do adulto,
geral, é enfocada de modo ridículo, grotesco, para levar a efeito o ato sexual, era aquele que
desmedido e depravado. De acordo com Sazan- precisava flexionar as pernas, o que poderia ser
ne Saïd, como o universo mostrado por Aristófa- interpretado como sinal de moleza do corpo,
nes se insere dentro do quadro de transgressão moleza esta característica daqueles que se com-
dos interditos do kômos e do culto dionisíaco de portam como fracos e passivos. Ao mesmo tem-
certos festivais, as regras que limitam de ordi- po, porque o jovem no sexo intercrural não de-
nário as regras sexuais são provisoriamente co- monstra sentir prazer ao ser penetrado, como se
locadas entre parênteses, reinando em suas co- estivesse gostando de ter um papel passivo. Nas
médias uma sexualidade em estado puro, sem peças de Aristófanes, ao contrário, o sexo é re-
inibições e sem regras, um amor “depravado” alizado principalmente por via anal, o que pres-
(tò erotikòn akólaston). O éros de Aristófanes é supõe a necessidade daquele que é penetrado
um festeiro, um adúltero, um pederasta. O riso em se curvar para aquele que penetra, desem-
nasce da própria onipresença da sexualidade, penhando um papel sexual totalmente passivo,

52 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
a medida que ele não só é o penetrado como com já vimos, em ascensão após a instauração
é aquele que se curva, e isto ocorre indiscrimi- de um ordem democrática mais “radical” com
nadamente seja com aqueles que deveriam re- Péricles.
presentar o papel de erastés, como no caso do Quem acaba sofrendo duramente as críticas

ARTIGOS
Velho nas As mulheres que celebram as Tesmo- dirigidas à homossexualidade é o lado passivo
fórias, que, vestido de mulher e representando da relação, o erómenos. Em suas comédias, o
o papel de mulher, estava prestes a ser pene- poeta cômico constantemente atribui a caracte-
trado por Eurípides, que é o mais jovem nesta rização de “prostituído” ao mais jovem dos par-
relação (1121-1125), seja entre aqueles que são ceiros. Um dos exemplos significativos em rela-
erómenos, o caso de Paz, em que o besouro que ção a tal postura foi a comédia Pluto (144-159),
se alimenta de fezes, prefere as fezes de um pai- em que a personagem Cárion apresenta os jo-
dós e do menino amado de Zeus, Ganymedes10, vens paîdás como aqueles que “se prostituem”
por estarem mais trituradas (11; 724), fazendo (pórnous), comparando-os com as hetaíras de
uma implícita referência ao sexo anal. Já nas Corinto, que oferecem o ânus (proktón) somen-
relações heterossexuais encenadas pelo poeta te aos mais ricos (ploúsios), que podem lhes re-
cômico, apesar de o homem ser desregrado no compensar (drán) com dinheiro (argýrion). Ele
seu desejo, ele não é representado nu, mudo, atinge com suas reprovações inclusive aqueles
como mero objeto sexual, mas seu papel é ati- que se pretendem bons (chrestoí) erómenoi,
vo, ele é aquele que penetra, que controla, que no caso dos que disfarçam seu mau comporta-
usa seu parceiro no ato sexual. Postura muito di- mento, “se prostituem” não por dinheiro (ar-
ferente, por exemplo, daquela apresentada por gýrion), mas por presentes, uns por cavalos de
Theógnis, autor ligado aos valores aristocráticos boa qualidade e outros por bons cães de caça.
que divulga e euforiza (valoriza) a pederastia. Segundo Dover (1994: 37-38) a associação com
Ele nos diz que apesar do amor por belos rapa- a prostituição se dá através da utilização do
zes submeter o homem a “escravizantes cons- vocabulário, de palavras derivadas de “pórne”,
trangimentos” (Theógnis: Poemas Elegíacos: II: “hetaíras”, comumente usadas para mulheres
1343), ele ainda assim é justificável na medida que aceitavam dinheiro em troca do corpo e
em que o próprio Zeus, “rei dos imortais, ama o do sexo; ou de verbos que designam “prosti-
belo Ganymedes” (Theógnis: Poemas Elegíacos: tuir, vender o corpo” como “proagogeúo”. Nes-
II: 1346). Daí se pode observar que embora a te caso, devemos considerar a problemática da
comédia não represente a ascensão da mulher “troca de favores” que ocorre entre erastés e
no que se refere ao homem, há a valorização do erómenos. Da mesma forma que na amizade-
homem nas relações heterossexuais em relação -hospitalidade (xenía), estudada por Gabriel
às homossexuais, pois ele é caracterizado como Herman (1989), as trocas de favores entre eras-
mais homem, mais viril, desempenhando uma tés e erómenos poderiam fazer estas relações
posição ativa. Assim, nas comédias ocorre a va- às vezes aparecerem como princípios antiéticos
lorização, ao menos no que toca à sexualidade, que estruturavam a dialética das rivalidades po-
de uma “cultura popular” que se encontrava, líticas. Segundo o autor, havia dois sistemas de
moral envolvidos que se chocavam: um arcaico
10
Neste caso, o mito de Ganymedes perdeu a sua justificação, o e pré-político, o outro proveniente da estrutura
seu papel explicativo e normativo, ou seja, em que os compor-
tamentos apresentados pelos deuses e heróis do mito devem
políade, e o conflito era sentido em termos da
ser repetidos e reproduzidos a fim de manterem a ordem do contraposição entre “velho e novo”, “individual
mundo. O papel do mito existe no interior de um quadro ideo-
lógico e religioso dado que o permite compreender e lhe dar a
e comunitário”, “moralidade e leis”, “amizade e
razão de ser. Se este quadro vem a se modificar, como foi o caso cidadania”. O que nos interessa neste momento
dos rituais de iniciação para a vida adulta ligados a homossexu-
alidade que o mito de Ganymedes visava representar, ao menos
para entendermos melhor a questão da “troca
no meio mais popular aos quais as comédias de Aristófanes se de favores” é a oposição entre “individual e co-
dedicavam, o mito perde sua justificação e sua função essencial,
subsistindo a sua estrutura narrativa, que cada qual interpreta
munitário” e entre “amizade e cidadania”. Isto
de acordo uma nova leitura (Christol: 1998: 21-22). porque a pederastia não somente fazia parte

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 53


volume 2 | 2001
de antigas relações entre os áristoi, em que ao Para compreendermos a ligação entre essas
menos temos notícias desde o período arcaico. questões, ressaltamos a afirmação de Gabriel
Individual por se tratar de um relacionamento Herman (1989) em que presente aparece como
de sexo e/ou amor/amizade entre dois indi- suborno, implica a noção de interesses da co-

ARTIGOS
víduos e não entre todo um grupo ou entre a munidade e a recusa a troca de presentes era
comunidade, o que não significa que isto tenha marca do bom cidadão; aquele que aceitava su-
impossibilitado ambos de participarem juntos borno atentava contra os interesses da comu-
em atividades de seu grupo, em que se inter- nidade. Neste sentido, segundo Neyde Theml
-relacionavam uns com os outros, por exem- (1998: 18-19), na pólis dos atenienses o que de-
plo, o envolvimento de amante e amado em veria prevalecer na concepção de uma ordem
simpósios aristocráticos. O jovem paîs Autólico política fundada no estado da díke não eram
é convidado para um simpósio, quando tem a especificamente os governantes e governados,
oportunidade de interagir com outros homens, mas a organização da totalidade da comunida-
por seu próprio amante, Cálias (Xenofonte: Sim- de cívica. Embora os atenienses da pólis tivesse
pósio: I 4). Mas esta marca de individualismo consciência de que o homem não se confun-
em certos casos ganha um toque desvalorizado. diam com o exercício e o poder das institui-
Jacqueline de Romilly (1995: 44) cita uma ane- ções, os cidadãos consideravam a política era
dota contada por Plutarco (Alcibiade: IV 5), em parte central de sua vida, ultrapassando outras
que o ciúme de Anytos o levou a acusar Sócra- formas de relação, como as relações domésti-
tes nos tribunais, com a conseqüente condena- cas, de parentela, de vizinhança, de amizade. A
ção à morte do filósofo, porque Anytos se sentiu identidade política representava a integração
desprezado por seu amado Alcebíades em prol da comunidade cívica, em contraposição às re-
de Sócrates. Por não serem relações essencial- lações individuais e de amizade. O bom cidadão
mente políticas, embora este fato não invalide deve ter a coragem de se expor ao perigo pela
os amantes de se envolverem em ações políti- grande maioria e até mesmo as inimizades pes-
cas, como foi o caso de Harmódios e Aristógiton soais não devem ser indiferentes aos interesses
(Ésquines: Contra Timarco: I 132; Tucídides: His- do Estado, pois só os que pensam nos interes-
tória da guerra do Peloponeso: I 20; VI 53-59) ses comuns (koinôn) são os que tornam a pólis
que, segundo outra anedota popular, livraram a grandiosa e livre (Andócides: Contra Alcebíades:
pólis dos atenienses da tirania de Hiparco para 1). Por isso, a solidariedade e a integração en-
defesa do amor que o tirano estava ameaçando, tre os cidadãos dependiam de tornar públicos
sendo, por isso, Harmódios considerado bem e políticos os seus negócios. A responsabilida-
amado em Os Acarnenses (1093). de da coisa pública e a consciência de exercer
Chegado a este ponto, vale assinalar algumas as funções políticas, em nome do conjunto da
observações sobre a questão da troca de presen- coletividade, eram a força motriz da legalidade,
tes e favores entre erastés e erómenos. Certos da legitimação da atividade política e da solida-
pesquisadores, como Dover (1994), levantaram riedade social. A pólis, como uma sociedade po-
a problemática do dar e receber que circunda as liticamente organizada, se constitui, para Neyde
trocas a partir da linha tênue que separa a pros- Theml (1998), com base no sentido de público,
tituição e homophilía, e desta forma distingue koinón, implicando a predominância dos inte-
as relações disforizadas das euforizadas. A acei- resses públicos em detrimento dos pessoais11.
tação de presentes aparece em determinados
11
Aristóteles, seguindo o raciocínio de que o homem é por natu-
documentos, como nas obras de Aristófanes, reza um ser político (Política: livro I, I 9), afirma que “na ordem
como um modo do mais velho obter a “compra” da natureza, o Estado se coloca antes da família e antes de cada
indivíduo, pois que o todo deve, forçosamente, ser colocado an-
dos prazeres corporais do erómenos. A atitude tes da parte” [...] “aquele que não pode viver em sociedade,
destes jovens em ceder ao erastés com base em ou que de nada precisa por bastar-se a si próprio, não faz parte
do Estado; é um bruto ou um deus. A natureza compele assim
presentes é considerada repugnante, como um todos os homens a se associarem.” (Aristóteles: Política: livro
ato de prostituição e mercenarismo. I, I 11).

54 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
Daí a troca de presentes e favores entre amigos Aristófanes em As Nuvens, em que a imoralida-
ser em muitos casos associada a relações de in- de dos prostituídos tem a ver com uma má edu-
teresse pessoal em prejuízo das relações comu- cação dos jovens.
nitárias. Em a Paz (11) e em Pluto de Aristófanes

ARTIGOS
Além das peças de Aristófanes, o discurso aquele que qualifica o menino de prostituído é
do orador Ésquines, Contra Timarco (I 29)12, se um escravo, neste caso a desqualificação do fu-
constitui um bom exemplo em que aceitar pre- turo cidadão é ainda mais violenta, por ser feita
sentes e dinheiro para satisfazer o desejo sexual por alguém de um status inferior, pertencente
foi, para a educação do futuro cidadão, o atual à camada social mais baixa da sociedade. Aris-
erómenos, não somente um ato de prostituição tóteles (Política: livro I, II 7) chama a atenção
(hetairései) do próprio corpo, como também para a concepção de “escravo” em oposição ao
uma ameaça de corrupção futura para a política homem livre, como aquele que não pertence
pública da pólis, visto que aquele que prostitui a si mesmo, mas a outro, que é por “natureza”
a si mesmo não hesitaria mais tarde em vender o seu senhor. Por ser uma coisa possuída, um
os interesses da pólis, e Ésquines (I 11) não dei- instrumento de uso, separado do corpo ao qual
xa de chamar a atenção para o valor da educa- pertence, o escravo e erómenos prostituído se
ção na formação de bons cidadãos13, como faz tornam semelhantes, ou melhor, a via da prosti-
tuição torna o erómenos análogo ao escravo. A
12
Ao longo de nossa pesquisa procuramos, utilizando o método identidade entre ambos forjada pela prostitui-
proposto por Umberto Eco (1995), estabelecer os possíveis víncu-
los com outros autores de época. Para Eco um texto está sujeito ção é o que possibilita ao poeta cômico colocar
a sofrer variadas interpretações, que se afastam das intenções personagens escravos falando pejorativamente
iniciais do autor. Cada texto é produzido não para um único desti-
natário mas para uma comunidade de leitores, o autor sabe que daquele hierarquicamente superior, destinado
esse texto será interpretado não segundo suas intenções porém
segundo uma complexa estratégia de interações que co-envolve a se tornar um homem livre e futuro cidadão.
também os leitores, juntamente com a competência destes em Esta semelhança entre o prostituído e o escravo
relação à língua como patrimônio social, sendo o patrimônio so-
cial não apenas um conjunto de regras gramaticais, mas também é descrita no caso de Timarco, que se envolve
as convenções culturais que aquela língua produziu e a história
das precedentes interpretações de muitos textos, entre os quais com um homem de condição servil, segundo
se inclui o texto que o leitor está lendo no momento (Eco: 1995: Ésquines, algo infame, desonroso e repugnante
84). Desta forma, um texto “aberto” continua, ainda assim, sen-
do um texto, e um texto pode suscitar uma infinidade de leituras para um cidadão, mas Timarco considera antes
sem, contudo, permitir uma leitura qualquer. É impossível dizer o dinheiro do que sua honra, se tornando por
qual a melhor interpretação de um texto, entretanto é possível
dizer quais as interpretações erradas. Assim, depois que um texto isso servil para e como um escravo (Contra Ti-
foi produzido, é possível fazê-lo dizer muitas coisas. Freqüente-
mente os textos dizem mais do que os seus autores pretendiam marco: I 54).
dizer. No entanto, é impossível fazê-lo dizer o que não diz (Eco:
1995: 81). Sendo assim, embora o destinatário possa elaborar Todavia, a identidade do erómenos com o
inúmeras hipóteses conflitantes, existem certos critérios “econô- escravo marca, por outro lado, a perda da liber-
micos” com base nos quais determinadas hipóteses serão mais
interessantes do que outras. Para convalidar sua hipótese, o des- dade e da cidadania que o erómenos poderia
tinatário deverá, no mínimo, adiantar conjecturas preliminares auferir enquanto cidadão. A noção de escravi-
sobre o possível remetente e sobre o possível período histórico
no qual o texto foi produzido. Isso nada tem a ver com uma pes- dão por “natureza” em Aristóteles, em que uns
quisa sobre a intenção do remetente, mas tem, sim, a ver com
uma pesquisa sobre o quadro cultural no qual se insere a mensa- nascem “naturalmente” para mandar e outros
gem (Eco: 1995). Baseando-se na diferença de contexto em que para obedecer (Política: livro I, II 8), resulta da
as obras de Theógnis e Aristófanes foram escritas, podemos com-
preender por que o primeiro apresenta a relação homossexual de distinção entre corpo e alma. A alma deve go-
modo valorizado, enquanto o segundo busca os traços negativos. vernar o corpo e os seus instintos, os que as-
A partir daí também podemos entender o que levou as represen-
tações euforizadas da homossexualidade passarem de um espaço sim procedem são destinados pela “natureza” à
público, para um espaço privado, no interior dos banquetes aris-
tocratas, como nas obras do século IV a. C. “Banquete” e “Simpó- autoridade. Os homens corrompidos, tais como
sio” de Platão e Xenofonte respectivamente, e as representações os erómenoi prostituídos, ou predispostos à
disforizadas passarem a um espaço público, como nas comédias
de Aristófanes. corrupção, nos quais o corpo governa o espíri-
13
Neste sentido, a educação das crianças e adolescentes não deve to, são viciados e desviados da natureza (Aris-
apenas ser voltada para interesses particulares, como também tóteles: Política: livro I: II 10). O exemplo de Ti-
para a formação de homens públicos (Ésquines: Contra Timarco:
I 7). Tal princípio está de acordo com os pressupostos expostos marco, simbolizando um erómenos prostituído,
acima por Neyde Theml (1998) em relação a pólis democrática,
acerca da oposição “público x privado”, diversamente dos valores foi representado durante a sua adolescência, se
aristocráticos que muitas vezes colocavam os interesses pessoais entregando aos prazeres desmedidos (hýbris),
e de grupo acima dos públicos democráticos.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 55


volume 2 | 2001
como a bebida em excesso e lutas de galo, pa- pode exercer nenhum cargo público, nenhuma
gos com o dinheiro dos outros (Ésquines: Con- magistratura (Ésquines: Contra Timarco: I 19) e,
tra Timarco: I 53; 58; 75). Mas, a obediência, no caso de Timarco, ele foi levado a julgamento
tanto quanto a autoridade, deve também ser por falar na assembléia depois de ter tido se-

ARTIGOS
parte do espírito do senhor, pois é esta medi- melhante conduta (Ésquines: Contra Timarco: I
da, esta harmonia, que permite o desenvolvi- 74). Aristóteles corrobora o ponto de vista do
mento da razão e da inteligência, assegurando orador Ésquines, ao afirmar que aquele que não
a obediência do corpo ao espírito. A igualdade é sóbrio e nem justo não poderá bem ordenar
de governar, de mandar e de autoridade en- e o viciado e vadio não cumprirá nenhum dos
tre “escravos e senhores”, “justos e desregra- seus deveres (Política: livro I: IV 10). Neste caso,
dos” seria, nestes termos, considerada funesta o riso provocado por esta situação é do tipo em
(Aristóteles: Política: livro I, II 9, 11). Quando é que voluntariamente se rechaça e rejeita o indi-
o próprio sujeito que realiza e sofre a ação “se víduo, excluindo-o do grupo dos cidadãos, dimi-
prostituir” (proagogeúon), como por exemplo nuindo seu status social e rebaixando sua timé
acontece nas Nuvens (979), de Aristófanes, e (Arnould: 1998: 13).
com Timarco, que faz tráfico “voluntário” de seu O indivíduo que assim procedesse durante
corpo (Ésquines: Contra Timarco: I 87), temos a sua juventude deveria até mesmo perder os
a redução do erómenos a uma situação degra- direitos da cidadania, pois da mesma maneira
dante, na medida em que a passividade neste que ele foi capaz de entregar o seu corpo a ou-
caso é total, um consentimento físico e moral, tro homem, se submetendo de livre vontade a
nos dando a idéia de que o jovem sente prazer uma condição inferior, humilhante e degradan-
ao ser passivo, uma ação vergonhosa, de acor- te, em prol de sua ganância material, ele não
do com Ésquines (Contra Timarco: I 2). Como teria força moral de repelir subornos que lhe
nos diz Dover (1994: 196; 198-199), Aristófanes oferecessem os inimigos da pólis, vindo a se
constantemente ainda reforça a idéia de pas- tornar, quando cidadão adulto, uma ameaça
sividade ao utilizar em suas comédias palavras para toda a comunidade políade. Timarco, que
tais como eurypróktos, que significa “ânus lar- vendeu seu próprio corpo por trocas materiais,
go” e katapýgon, em que a anatomia do ânus é não hesitaria em vender os interesses da pólis
modificada pelo hábito de sujeitar-se a penetra- aos seus inimigos (Ésquines: Contra Timarco: I
ção, que implica uma passividade submissa no 29). Neste caso, porém, nos parece que nova-
decurso do ato sexual. O poeta Agatão é chama- mente devemos considerar os distintos valores
do de katapýgon14 pelo Velho (As mulheres que e atitudes democratas e aristocratas, que con-
celebram as Thesmofórias: 200) e o seu aspecto trapõem os interesses públicos e privados. De
efeminado nos remete à sua passividade sexual. acordo com Gabriel Herman (1989), na esfera
Sua passividade, então, o transforma em escra- comunitária, ao contrário da esfera privada das
vo, em “propriedade de outro”, corrompido por relações entre aristocratas, o não aceitar pre-
presentes e dinheiro, torna sua alma escrava do sentes era uma das marcas do bom cidadão,
seu corpo, pela impossibilidade de resistir aos uma vez que significava colocar os interesses
prazeres, passividade essa que não pode mais comuns à frente dos pessoais, uma das mais im-
ser resgatada, como a passividade passageira portantes vitórias da comunidade políade sobre
de um estágio da vida como era considerada em o herói. O presente se transforma em suborno
relação aos erómenoi entre os aristocratas. As- (dorodókema)15 quando relacionado com a no-
sim, pelas suas qualidades morais incompatíveis ção de interesse da comunidade, por isso que
com as funções de cidadão, o prostituído não
15
Esta palavra, como chama a atenção G. Herman (1989), pode
ser usada no duplo sentido de “presente” ou “suborno”, bem
14
No dicionário a tradução para katapýgon é de “lascivo, sen- como o caso de outras palavras derivadas do mesmo radical:
sual” (Pereira: Dicionário grego-português e português- grego: dôron, dorodokía, doreá dórema, entre outras. As palavras que
308), enquanto Dover (1994: 198) nos chama a atenção de que normalmente aparecem em Aristófanes para designar suborno e
a palavra “pýgon” tem a mesma origem que “pygé”, que signi- corrupção são o verbo dorodokein e misthós (Oliveira: 1997: 491-
fica “nádegas”. 493).

56 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
os oradores áticos do V e IV século a. C. tentam isso, não havia em si punição contra quem se
freqüentemente ganhar a simpatia dos júris po- prostituía, apenas proibição de exercer a cida-
pulares contra seus rivais ao alegarem que os dania (Halperin: 1990: 98).
acusados aceitaram doreá contra o dêmos. Sendo assim, a troca de presentes e favores

ARTIGOS
A condenação do homossexual como pros- entre erastés e erómenos aparece em Aristófa-
tituído e passivo em Aristófanes pode ser mais nes mais próxima daquelas representações dis-
bem compreendida se nos detivermos na análi- forizadas, em que a troca sinaliza para o suborno
se proposta por David Halperin (1990) sobre a e o jovem é apresentado como sendo de “na-
relação entre a prostituição masculina e os valo- tureza servil e corrompida”, algo bem diferen-
res democráticos. Segundo o autor, a prostitui- te das representações imagéticas. Uma maior
ção de um cidadão é vista como outros atos que compatibilidade com a conduta exigida do ci-
levam à perda dos direitos à cidadania, ou seja, dadão poderia surgir, então, a partir da postura
a atimía. Isto porque a prostituição ultrapassa ativa do erastés, a tal ponto que Richard Sennet
a esfera da vida privada do indivíduo, já que o (1997: 46) interpretou o pronunciamento da
impede de cumprir com as obrigações para com oração fúnebre por Péricles (Tucídides: História
a comunidade (Halperin: 1990: 95). Os valores da guerra do Peloponeso: II 35–46), quando o
que serviam de base para o governo democrá- estadista buscou fazer com que os atenienses
tico estavam pautados, em teoria ao menos, sentissem orgulho de sua terra e trabalhassem
no sufrágio masculino universal. Neste sentido, para mantê-la e fazê-la crescer, como uma for-
embora houvessem disparidades econômicas ma de incitar os atenienses a se tornarem eras-
entre os cidadãos que não podemos deixar de tés da pólis.
considerar, todo cidadão homem era habilitado No entanto, a caracterização de prostituído
a participar em termos de igualdade frente a co- para o erómenos ganha feições mais nítidas
munidade, obedecendo suas regras. A transição pela caracterização do erastés, o outro lado
para a democracia “radical” requer uma série da relação, como corruptor. Enquanto em al-
de medidas destinadas a sustentar a dignidade guns casos Aristófanes representa os homens
e autonomia de todo cidadão homem, apesar adultos como efeminados16, portanto, também
da sua situação econômica. Entre as regulamen-
tações da democracia estavam os pressupostos 16
Podemos citar dois exemplos que Aristófanes nos apresenta
de que o cidadão não poderia ser escravizado de homens efeminados: Clístenes e Agatão. Clístenes aparece
em várias comédias. Em “Acarnenses” (118) ele está vestido
por dívida e que ele não podia ser torturado ou como eunuco, que por ser um homem castrado perde o símbolo
maltratado, como no caso dos escravos e es- máximo da virilidade e masculinidade. Nos “Cavaleiros” (1373-
1374) o Salsicheiro associa Clístenes ao meninos imberbes que
trangeiros, a pessoa do cidadão era inviolável. vadiam na praça (agorá). Esta passagem pode ser relacionada
a outra que é mostrada nas “Nuvens” (1054-1055), em que os
Estes crimes seriam não somente contra o cor- jovens que passam o tempo na agorá, discutindo ao em vez
po dos indivíduos, mas contra o corpo social e de se exercitarem nas palestras, que ficam vazias, são aqueles
criticados pelo Argumento Justo por serem “prostituídos”. Em
de acordo com este princípio de igualdade, isto outro trecho das “Nuvens” (135), as nuvens se transformam
era uma hýbris, usar um homem livre como es- em mulheres quando vêem Clístenes. Em “Lysistrata” (1092)
Clístenes é tomado como opção sexual enquanto as mulheres
cravo, um crime antidemocrático por excelência estão fazendo greve de sexo. Em “As mulheres que celebram
as Thesmofóriais” (574-581) lhe é permitido entrar numa festa
(Halperin: 1990: 96). O prostituto, por sua ser- exclusiva para as mulheres, as Thesmofóriais. Nas “Rãs” (45-50)
vilidade e ganância, se rebaixa da posição domi- Clístenes e seu filho, assim com Agatão em “As mulheres que
celebram as Thesmofóriais” (191), se depilam, uma característi-
nante de homem/cidadão/livre para a posição ca das mulheres, conforme aparece em “Assembléia das mulhe-
res”, barba (70) e sovacos espessos (62-64) eram características
inferior de receptivo no ato sexual se equipa- dos homens, enquanto a navalha, que pressupõe a depilação,
rando a mulher, ao escravo e estrangeiro, se tra- era parte do acessório das mulheres (65). Agatão ainda tem ou-
tras formas femininas, como por exemplo a pele clara (As mu-
ta neste caso de uma voluntária efeminização e lheres que celebram as Thesmofóriais: 191), ao passo que as
escravização (Halperin: 1990: 97). A contrapar- mulheres da “Assembléia das mulheres” (62-64), de modo a se
parecerem mais com os homens, se plantam ao sol para que sua
tida seria de que um homem para se tornar ho- pele fique bem morena. Porém, essas duas personagens não
são apenas representadas como mulheres, elas também são
mem e cidadão deveria ser ativo no ato sexual e colocadas como objeto sexual passivo: Agatão, tal como Clíste-
ser mestre do prazer (Halperin: 1990: 103). Por nes em as “Nuvens”, é relacionado a uma prostituta, Cirene (As
mulheres que celebram as Thesmofóriais: 98); em as “Rãs” (48)
Clístenes aparece como sendo “montado” por Dionisos.

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 57


volume 2 | 2001
passivos tanto quanto o erómenos prostituído, políticas, enquanto isso, o “demagogo” recebia
em outros casos em que o mais velho desem- rendimentos muito maiores (655-664; 666-679;
penha seu papal ativo, mais de acordo com sua 683-712). Esta mesma visão, de que após Péri-
idade, nem por isso há, no entanto, a valoriza- cles ocorre a ascensão dos “demagogos” que le-

ARTIGOS
ção do erastés, pois o amante, ávido pela ob- vam à “ruína” da pólis, está presente em outros
tenção do prazer com o menino, chega a ponto autores da época, como Tucídides na sua Histó-
de corrompê-lo a fim de atingir seu objetivo. As- ria da Guerra do Peloponeso (II, 66) e Aristóteles
sim, a visão apresentada por Aristófanes sobre (Constituição de Atenas: XXVIII 1; 3-4). Aristófa-
o erastés é diferente daquela de Richard Sennet nes traça um paralelo entre a relação dêmos/
(1997): como Hesesandro, um dos amantes de demagogo com a erómenos/erastés, já que, tal
Timarco, que prostitui um prostituído (Ésquines: como o erómenos, o dêmos é visto como sendo
Contra Timarco: I 70), Aristófanes se auto-elo- de “natureza passiva” por se deixar corromper
gia por não ter corrompido os jovens (paîdas) pelo erastés/demagogo; do mesmo modo que
(Aristófanes: Paz: 763). Da mesma forma que Timarco aceita submeter seu corpo a penetra-
podemos comparar a situação do erastés e eró- ção de outro homem por dinheiro; o dêmos de
menos, enquanto prostituído e corruptor, com Atenas aceita os miseráveis óbulos em troca de
o discurso de Ésquines acerca da situação de corroborar as propostas do demagogo, e neste
um cidadão que se prostituiu, outros indícios caso, ambos perdem a sua liberdade de agir, ca-
de identidade entre aqueles que se envolvem racterística própria do cidadão, numa troca de-
numa relação homossexual e os que se ligam sigual e não mésoi, tornando-os escravos e não
em comportamentos de suborno e corrupção, ísoi com seus parceiros. Um dos exemplos mais
não somente sexual, mas também político, po- significativos neste sentido foi o trecho de Os
dem ser encontrados na obra do poeta no que Cavaleiros (737) em que a personagem Dêmos,
se refere à crítica dirigida aos líderes demago- que é na verdade a representação figurada do
gos. próprio dêmos (povo) de Atenas, é comparada
Depois da morte de Péricles com a peste que aos erómenoi, que ao invés de escolherem os
assolou Atenas, têm-se a ascensão dos “dema- homens honestos (kaloús te kagathoí), não os
gogos”, termo que ganha um sentido pejorati- aceitando como amantes; preferindo os maus,
vo, considerados como políticos desonestos, assim como o dêmos prefere como líderes os
constantemente criticados nas peças de Aristó- sapateiros, mercadores de lanterna e de couro.
fanes, que enganavam e manipulavam o povo Muitas destas atividades eram exercidas pelos
para aprovar medidas que diziam respeito não que foram considerados demagogos na época,
aos interesses de toda a comunidade, mas sim sendo o próprio amante de Dêmos chamado de
aos seus interesses particulares, ou mesmo que Paphlagonio, que quer dizer “mercador de cou-
se deixavam levar pelos caprichos do dêmos. ro”. A associação entre a relação dêmos/dema-
Eram os chamados “novos ricos”, cuja riqueza gogo com a erómenos/erastés vai ainda além,
provinha não da propriedade da terra, como na medida em que, na mesma comédia, o cri-
no caso dos áristoi, mas de outras atividades ticado parceiro preferido por Dêmos é, como já
como o comércio e o artesanato. Como nos diz dissemos, Paphlagonio, que se trata na realida-
Francisco Oliveira (1997: 499), a demagogia era de do demagogo Cléon. A relação do povo ate-
definida em Aristófanes como primazia dos in- niense com seus dirigentes se traduz em termos
teresses particulares e em termos de manipu- de homossexualidade, o que, segundo Suzanne
lação política, o que nos remete à corrupção do Saïd (1998: 70), se explica em parte porque dê-
dêmos. Em As Vespas, Aristófanes nos dá um mos é uma palavra do gênero masculino. Em A
exemplo de crítica a esse tipo de político, Clé- Paz (11) de Aristófanes, os jovens prostituídos
on, que aumentou o pagamento do júri popular (paidòs hetairekótos) submetem-se sexualmen-
de um para três óbulos, de maneira a conquis- te aos seus parceiros, ao fazerem o sexo anal. O
tar o apoio do dêmos para as suas propostas Fedro (230 e-234 c) de Platão também associa

58 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
a tentativa do erastés de convencer seu eróme- aconselha ao jovem Fidípides que ele deve se
nos com uma atitude comum no meio político, abster de prazeres, inclusive de meninos, se qui-
ou seja, o uso da retórica pelos demagogos e ser se tornar corajoso e equilibrado (As Nuvens:
oradores, argumentada persuasivamente, para 1072). A postura ativa do erastés e do demago-

ARTIGOS
convencer o dêmos a aceitar suas propostas, le- go acaba por se anular, na medida em que am-
vando-se em consideração que não é sem senti- bos devem se submeter aos caprichos de seus
do que o erastés do diálogo de Platão em ques- pares se quiserem conquistar a sua preferência
tão se tratava de Lísias17, um conhecido orador com relação aos demais rivais. Da mesma forma
da época, e tanto Platão quanto Aristófanes fa- que o erastés se submete a vários tipos de hu-
zem crítica à retórica, pelo fato de muitas vezes milhações para conquistar seu erómenos, como
não apoiar argumentos verdadeiros18 e que não por exemplo descreve Theógnis (Poemas Elegí-
visavam o bem comum, mas apenas interesses acos: livro II: 1341-1344); o demagogo, como o
pessoais.19 caso mostrado por Aristófanes em Os Cavaleiros
De acordo com Dover (1994: 205) a suposi- (730-1250) da personagem Paphlagonio/Cléon,
ção da submissão homossexual por dinheiro é disputa com outro concorrente, o Salsicheiro, a
análoga a outra característica típica da comé- preferência de Dêmos e com isso tem de supor-
dia de Aristófanes, ou seja, a pressuposição tar todos os caprichos do Dêmos a fim de ob-
de que todos os que ocupam cargos públicos ter sua predileção e esta condição submetida
apropriam-se indevidamente dos bens públicos do demagogo é confirmada pelo próprio posto
e, conseqüentemente, a ausência de qualquer ocupado por ele na peça, a de um servo do Dê-
referência ao civismo, integridade e devoção ao mos. Desta forma, o riso que é evocado nestas
dever de cidadão por parte dos políticos existen- condições advém do ridículo em que erastés/
tes. Por isso, Dover (1994: 196; 200) nos chama demagogo se submetem, ao invés de se torna-
a atenção de que palavras como eurypróktos e rem os mestres da situação, pela sua posição de
katapýgon são freqüentemente utilizadas como ativo/líder de seus parceiros. Eles terminam por
forma de desqualificação para referirem-se tan- ficar numa situação de revés, de fracasso, não
to para homossexuais passivos, quanto para ho- têm mais domínio de seus movimentos, mas
mens envolvidos na vida pública, como no caso parecem joguetes de forças exteriores, ocor-
de As Nuvens (1085-1104), em que os “advoga- rendo, então, a inadaptação ao verdadeiro pa-
dos públicos” e oradores bem como os trágicos pel que eles deveriam desempenhar (Arnould:
e espectadores são designados de euryprókton. 1998: 14; 16). Vale dizer que este contra-senso
Na interação entre erómenos e erastés e entre é fundado sobre o costume e, por isso, toma va-
dêmos e demagogo, a troca de favores repre- lor edificante, ao se deslocar a partir do cômico,
senta, em Aristófanes, a submissão de um par- por denunciar uma advertência ou condenação,
ceiro a outro, já que um se torna dependente do nos remetendo para um exemplo moral sério
outro e ainda, devido ao comportamento desre- (Arnould: 1998: 16-17). O ridículo desta postura
grado que os caracteriza, tornam-se submetidos é mais bem delimitado e reforçado na medida
aos prazeres e escravos das vontades inferiores em que, em oposição a este modelo, temos o
do corpo. Daí, o Argumento Justo (díkaios lógos) ideal de herói cômico em Aristófanes que, se-
melhante ao Salsicheiro de Os cavaleiros, mes-
mo iniciando a história por baixo, sabe virar a
17
Lísias (440-380 a. C.), métoikos e orador, não é estranha a sua
presença num diálogo socrático, já que ele e Sócrates eram ami- situação a seu favor (Lamberterie: 1998: 33).
gos.
No entanto, os malefícios trazidos por esta
18
De acordo com a análise de Jesper Svenbro (1988: 233-234),
para Platão a escrita só seria boa se fosse controlada, isto é,
troca de favores não se constitui uma via de
testada e submetida à verdade. mão única, acarretando prejuízos também para
19
Esta mesma postura é encontrada entre outros autores, como o outro lado da relação, o erómenos ou dêmos,
Ésquines que nos diz que é preferível votar a favor de um orador
medíocre mas com habilidades na guerra e justo do que o con-
visto que eles terminam por ficar acostumados
trário (Contra Timarco: I 180-181). a ser atendidos em seus desejos sem que seja

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 59


volume 2 | 2001
preciso que façam algum esforço penoso, e le- garantir o seu status, deveria senão evitar qual-
vam uma vida se prostituindo para obter recur- quer ato sexual com outro homem, ao menos
sos, buscando apenas facilidades e prazeres e, se portar como uma presa difícil de seduzir; os
portanto, vícios e desregramento, ao invés de homens que não queriam perder tempo bus-

ARTIGOS
“trabalharem arduamente”. Como nos diz Do- cavam os prostituídos. Porém, de acordo com
ver (1994: 209), nas comédias de Aristófanes, Dover (1994: 203), em Aristófanes a diferencia-
chamar alguém de “trabalhador árduo” (ergá- ção entre prostituição e éros, importante para
tes) é um elogio (Os Acarnenses: 611).20 O Ar- a posição política e social daqueles envolvidos
gumento Justo (díkaios lógos) reclama que os em relações homossexuais, efetivamente era
jovens ficam tagarelando na Agorá enquanto as negada.
palestras ficam vazias (Aristófanes: As Nuvens: Esta relação de trocas de favores, de humi-
1055), onde eles deveriam estar treinando pe- lhação para receber benefícios fáceis fica bem
sadamente para tornarem o corpo mais forte e expressa em uma passagem de Os Cavaleiros
a alma mais corajosa, para lutarem na guerra, (1101-1116) em que Paphlagonio pede deses-
por exemplo.21 perado que Dêmos não o abandone; ele prome-
Aristófanes não se adequa na proposta de D. te lhe alimentar. Por seu turno, o Dêmos diz que
Halperin (1990: 90) no que se refere a afirmar entregará as rédeas da Pnyx a quem o melhor
que a prostituição era vergonhosa apenas para tratar; enquanto o coro afirma que o Dêmos
o prostituto e não para o cliente. A adulação adora ser lisonjeado e enganado. O poeta cô-
conduz a uma espécie de escravidão moral ao mico associa o político demagogo, como Cléon,
adulado, ao mesmo tempo que torna o adula- à prostituição, desregramento (Os Cavaleiros:
dor um parasita (Demont: 1997: 461). Embora 104; 880; 1054; 1400-1403) e ainda mais com
fosse o prostituto o atingido com a perda dos a covardia (Os Acarnenses: 659-664). Dover
direitos cívicos, a corrupção pela prostituição (1994: 197) chama a atenção que o ponto de
também é uma via dupla, atingindo não somen- vista adotado nas comédias de Aristófanes era
te o erómenos e o dêmos, na medida em que o freqüentemente dirigido ao cidadão de meia-
erastés quer receber os favores sexuais do eró- -idade cada vez mais ressentido com os jovens
menos facilmente, isto é, comprando-o ao invés que aparecem, enérgicos e desrespeitosos. Es-
de ter esforço penoso de conquistá-lo por seus ses jovens começam a dominar a assembléia e
bons feitos; o demagogo compra o dêmos com a serem eleitos para os postos administrativos
o trióbulo, para que então possa se apropriar do e militares. Este ressentimento se deve porque
tesouro público (Os Cavaleiros: 823). Por isso, esses jovens políticos continuam a se compor-
para cumprirem seus propósitos mútuos, o ora- tar na vida pública da mesma forma que na
dor Ésquines diz, por exemplo, que os libertinos privada, como erómenos prostituídos. Em Os
usam sem medida os jovens depravados (Con- Acarnenses Aristófanes mostra a personagem
tra Timarco: I 194). Como nos diz David Halperin Diceópolis chamando a todos de prostituídos
(1990: 94), como o jovem cidadão, se quisesse e invertidos (Os Acarnenses: 79) e se indigna
com o fato de jovens como Lamacos receberem
20
Sobre a associação entre suborno do dêmos pelo pagamento soldo para serem embaixadores ao passo que
do misthós para exercer as funções políticas, sem qualquer tra-
balho árduo, ver também Francisco Oliveira (1997: 493).
trabalhadores grisalhos nada recebem para lu-
21
Dentro da cidade, a agorá não era somente um centro religio-
tarem na guerra (Os Acarnenses: 610-620), e
so e comercial, mas também, no caso de uma pólis democrática afirma que deve haver mais respeito aos mais
como Atenas, um espaço eminentemente democrático, de de-
bate político, aberto a todos, freqüentado por muitos oradores
velhos, que não devem ser condenados por jo-
e sincofantas, quando desejavam ter uma certa audiência ou vens prostituídos e covardes (Os Acarnenses:
espalhar alguma calúnia. Por isso, Aristófanes, defensor do pe-
queno povo, tanto quanto Platão, que se posicionava favorável
701-716). Pois assim como Cléon e Lamacos,
a aristocracia, se mostravam críticos da agorá. A condenação da jovens como ele são covardemente sustenta-
discussão na agorá representou, desta forma, senão uma crítica
a democracia, uma crítica ao modo como a democracia vinha
dos no serviço (Os Acarnenses: 601). Em As Nu-
sendo conduzida (Coulet: 1996: 56-61). vens o poeta associa corrupção, prostituição e a

60 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
oratória, conforme já dissemos uma caracte- barbeado, com voz de mulher” (191 e seg.). Isto
rística marcada dos políticos demagogos: o Ra- por sua vez poderia fazer com que a opinião
ciocínio Injusto (ádikos lógos) aparece como pública se voltasse contra estas pessoas, po-
corruptor da juventude (927); defensor dos dendo acontecer que inimigos aproveitassem

ARTIGOS
prostituídos (1103) e representante da nova a ocasião propícia para abrir processo judicial
educação sofística, na qual um dos fundamentos de atimía contra tais indivíduos, como aconte-
é o ensinamento da oratória e da retórica (935). ceu no caso de Timarco, acusado pelo orador
Sobre este ponto, vale dizer que Ewen Bowie Ésquines (Contra Timarco). Desta forma, o riso
(1998: 54-55) contra-argumenta uma afirmação e a caricatura contribuiem para esvaziar o po-
de Dover, que diz que os sofistas não eram bem der e o prestígio daqueles que eram alvos des-
conhecidos do grande público que freqüenta- tes processos. Isto porque o cômico o reenvia o
va o teatro de Dionisos, isto porque os sofistas público, a sua própria cultura e a sociedade, a
eram profissionais que exigiam pagamento por presença destes grupos de identidade social. O
seus serviços e desta forma uma grande parte Cômico é um jogo de alternativas entre a solida-
da população não teria acesso ao que eles ensi- riedade –rir com e de exclusão –rir de, com isso,
navam. Para Bowie não haveria sentido Aristó- afasta do grande público, que eram destinadas
fanes demostrar tanta preocupação com o tipo as comédias, a homossexualidade e a demago-
de instrução que os sofistas passavam se eles gia. Isto ocorre ao fazer associações e genera-
não fossem suficientemente conhecidos, além lizações com práticas disforizadas, tais como a
de ser uma das marcas de Aristófanes colocar prostituição, a corrupção, a depravação, o vício,
em cena em suas comédias características co- o excesso, em suma, a ausência de moralidade.
nhecidas e reais das personalidades vivas que Por outro lado, com o desdém, a transgressão
ele parodiava, de modo que o público pudesse e a subversão, o rir reforça os grupos e marca
entender o que a comédia estava tratando e rir as identidades e as alteridades (Defays: 1996:
do fato encarado. 1, 6). A partir de um processo de descrédito e
Ao mesmo tempo, segundo nos parece, diminuição de determinadas personagens e
numa sociedade fundamentada nos princípios práticas, verifica-se a dificuldade em separar ou
de honra e vergonha como era a dos atenienses, estabelecer distinções entre moral e política e
a comédia era uma forma de controle da con- a prática do homoerotismo em meio aos ate-
duta dos cidadãos e políticos, principalmente nienses da época de Aristófanes (Oliveira: 1997:
os mais proeminentes, que muitas vezes eram 483) e esta moralidade passa muito pela ques-
áristoi. Eram estes aristocratas, devemos lem- tão do respeito às leis.
brar, que estavam ligados as práticas homosse- Sendo assim, de um lado o poeta trata os
xuais, e justamente pela posição proeminente novos ricos como “demagogos”, aqueles que se
que ocupavam, de proximidade com o poder e utilizam da força de persuasão de suas palavras
com os discursos que circulavam no interior da para convencer o povo “ignorante” de que seus
sociedade, que esses indivíduos deveriam ser interesses particulares constituem os interesses
mais vigiados, pois estavam mais suscetíveis a da maioria, o bem da pólis. Como nos chama
serem tentados a apoderarem-se do poder em a atenção Finley (1963: 68), é de se estranhar
prol, não da comunidade, mas de seus interes- que os políticos desonestos como os “demago-
ses particulares. Os indivíduos mais notórios da gos” só tenham aparecido, de acordo com os
sociedade que se recusassem a superar a posi- críticos antigos, depois da morte de Péricles. De
ção de erómenos eram alvo de ataques agressi- outro lado ao ridicularizar aqueles aristocratas
vos que os ridicularizavam, associando-os a po- que ainda se encontravam ligados às práticas
sição “passiva” propriamente feminina, como e costumes aristocratas, como no caso dos ho-
o caso do poeta trágico Agatão traçado nas As mossexuais na forma de efeminados, passivos e
mulheres que celebram as Tesmofórias, que é corruptíveis por bens materiais.
descrito por Eurípides como “belo, de pele clara,

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 61


volume 2 | 2001
Documentação e Bibliografia ______________- A política- Trad. de Nestor Sil-
veira Chaves- São Paulo, 7a ed., 1960, Col. Athena,
Documentos Série Biblioteca Clássica
ESCHINE- “Contre Timarque”- In: Discours- Paris:
Les Belles Lettres, 2a ed., 1952

ARTIGOS
ARISTOPHANE- Les acharniens- In: Aristophene-
PLATON- Phèdre- In: “Oeuvres complètes”- tome
tome I- Trad. de Hilaire Van Daele- Paris: Les Belles
IV- 3a partie- Trad. de Léon Robin- Paris: Les Belles
Lettres, 1948, Collection des Universités de France
Lettres, 4a ed., 1954
______________- Les cavaliers- In: Aristophene-
TUCÍDIDES- História da Guerra do Peloponeso-
tome I- Trad. de Hilaire Van Daele- Paris: Les Belles
Trad. Mário da G. Curi- Brasília, DF: Universidade de
Lettres, 1948, Collection des Universités de France
Brasília, 3ª edição, 1999.
______________- Les nuées- In: Aristophene-
tome I- Trad. de Hilaire Van Daele- Paris: Les Belles
Lettres, 1948, Collection des Universités de France Dicionários
______________- Les Guêpes- In: Aristophene-
BAILLY, A.- Dictionnaire Grec-Français- Paris: Ha-
tome II- Trad. de Hilaire Van Daele- Paris: Les Belles
chette, 1950
Lettres, 1948, Collection des Universités de France
PARIS, P. e ROQUES, G.- Lexique des antiquitées
______________- La Paix- In: Aristophene- tome
grecques- Paris: Albert Fontemoing editer, 1909, p.
II- Trad. de Hilaire Van Daele- Paris: Les Belles Let-
78.
tres, 1948, Collection des Universités de France
SEBASTIAN, Yarza- Dicionario griego- español-
______________- Les Oiseaux- In: Aristophene-
Barcelona: Editorial R. Sopena, 1972
tome III- Trad. de Hilaire Van Daele- Paris: Les Belles
Lettres, 1928, Collection des Universités de France
______________- Lysistrata- In: Aristophene- Bibliografia
tome III- Trad. de Hilaire Van Daele- Paris: Les Belles
Lettres, 1928, Collection des Universités de France ARNOULD, Dominique- “Le ridicule dans la litté-
ratue grecque archaïque et classique”- In: Le rire des
______________- Les Thesmophories- In: Aristo-
anciens- Org. M. Trédé et P. Hoffmann- Paris: Presses
phene- tome IV- Trad. de Hilaire Van Daele- Paris:
de L´École Normal Supérieure, 1998
Les Belles Lettres, 1946, Collection des Universités
de France BOWIE, Ewen- “Le portrait de Socrate dans les
Nuées d`Aristophane”- In: Le rire des anciens- Org.
______________- Les Grenouilles- In: Aristophe-
M. Trédé et P. Hoffmann- Paris: Presses de L´École
ne- tome IV- Trad. de Hilaire Van Daele- Paris: Les
Normal Supérieure, 1998
Belles Lettres, 1946, Collection des Universités de
France CANTARELLA, Eva- Bisexuality in the ancient
world- London/New Haven: Yale University Press,
______________- The plutus- Trad. de Benjamin
1992
B. Rogers- Cambridge, Massachusetts, London: Har-
vard University Press, 1999 CHRISTOL, Alain- “Lecture comique de mythes
oubliés”- In: Le rire des anciens- Org. M. Trédé et P.
ARISTOFANES- Las asambleístas- Trad. de Anto-
Hoffmann- Paris: Presses de L`École Normal Supé-
nio L. Eire- Barcelona: Bosch, 2ª edição, 1986, Col.
rieure, 1998
Erasmo: textos bilingües
COULET, Corinne- Communiquer en Grèce an-
ARISTÓFANES- As mulheres que celebram as Tes-
cienne: écrits, discours, information, voyages...- Pa-
mofórias- Trad. de Maria de Fátima S. Silva- Coim-
ris: Les Belles Lettres, 1996
bra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 2ª
edição, 1988, col. Textos Clássicos- 3 DEFAYS, Jean-Mar- Le comique- Paris: Seuil, 1996
______________- As nuvens- In: Sócrates- vol. II- DEMONT, Paul- “Aristophane, le citoyen tranquil-
São Paulo: Abril Cultural, 1972, col. Os Pensadores le et les singeries”- In: Aristophane: la langue, as
scène, la cité. Actes du colloque de Toulouse 17-19
______________- Pluto (a riqueza)- Trad. de
mars 1994- Paris: Levanti, 1997
Américo da C. Ramalho- Coimbra: Instituto Nacional
de Investigação Científica, 1982, Col. Textos Clássi- DOVER, K. J.- A homossexualidade na Grécia anti-
cos- 11 ga- São Paulo: Nova Alexandria, 1994
ARISTÓTELES- A constituição de Atenas- Trad. de ECO, Umberto- Os limites da interpretação- São
Francisco M. Pires- São Paulo: Hucitec, 1995. Paulo: Perspectiva, 1995.

62 Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga


volume 2 | 2001
FINLEY, Moses I.- - Os gregos antigos- Lisboa: Edi- THIERCY, Pascal Aristophane: fiction et dramatur-
ções 70, 1993 gie. Paris: Les Belles Lettres, 1986
FOUCAULT, Michel- História da sexualidade II- o TRÉDÉ, Monique- “Avant-propos”- In: Le rire des
uso dos prazeres- Rio de Janeiro: Graal, 7ª ed., 1994 anciens- Org. M. Trédé et P. Hoffmann- Paris: Presses
de L´École Normal Supérieure, 1998

ARTIGOS
FRIEDRICH, Carl J.- “A gênese da autoridade: va-
lor”- In: Tradição e autoridade em ciência Política- ZWEIG, Bella- “The mute nude female characters
Trad. Fernando de C. Ferro- Rio de Janeiro: Zahar, in Aristophanes`plays”- In: Pornography and Re-
1974, pp. 62-70 presentation in Greece & Rome- New York/Oxford:
FRIEDRICH, Carl J.- Uma introdução à teoria polí- Oxford University Press, 1992
tica- Trad. L. Xausa e L. Corção- Rio de Janeiro: Zahar,
1970
HALPERIN, David M.- One hundred years of ho-
mosexuality- London: Routledge, 1990
HERMAN, Gabriel- Ritualised friendship and the
Greek city- Cambridge: Cambridge University Press,
1989
KOMORNICKA, Anna M.- “Le pouvoir en question
dans les comèdis d`Aristophane”- In: Aristophane:
la langue, as scène, la cité. Actes du colloque de
Toulouse 17-19 mars 1994- Paris: Levanti, 1997, pp.
397-411
LAMBERTERIE, Charles de- “Aristophane, lecteur
d`Homère”- In: Le rire des anciens- Org. M. Trédé et
P. Hoffmann- Paris: Presses de L´École Normal Supé-
rieure, 1998
LEVI, Mario A.- Péricles: um homem, um regime,
uma cultura- Trad. Antonio A. B. de Lemos- Brasília,
DF: UnB, 1991
LIMA, A.C.C. Cultura popular em Atenas no V sé-
culo a. C. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2000.
OLIVEIRA, Francisco- “Tipologie de l’invective
politique chez Aristophane”- In: Aristophane: la lan-
gue, as scène, la cité. Actes du colloque de Toulouse
17-19 mars 1994- Paris: Levanti, 1997, pp. 481-505
SAÏD, Suzanne- “Sexe, amour et rire dans la co-
médie grecque”- In: Le rire des anciens- Org. M. Tré-
dé et P. Hoffmann- Paris: Presses de L`École Normal
Supérieure, 1998
SENNETT, Richard- Carne e pedra: o corpo e a ci-
vilização ocidental- Trad. de Marcos Aarão Reis- São
Paulo/Rio de Janeiro: Record, 1997
SHAPIRO, H.- “Éros in Love: Pederasty and Porno-
graphy in Greece”- In: Pornography and Represen-
tation in Greece & Rome- New York/Oxford: Oxford
University Press, 1992
SUTTON Jr., Robert- “Pornography and Persu-
asion on Attic Pottery”- In: Pornography and Re-
presentation in Greece & Rome- New York/Oxford:
Oxford University Press, 1992
THEML, Neyde- O público e o privado na Grécia
do VIII ao IV século a. C.: o modelo ateniense- Rio de
Janeiro: Sette Letras, 1998

Hélade - Revista Eletrônica de História Antiga 63


volume 2 | 2001
Imagem da Capa: Antalya Archaeological Museum. Red figure pottery with the face of a woman. Fotografia de Wolf-
gang Sauber. Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Antalya_Museum_-_Vase_Frauenkopf.
jpg?uselang=pt-br>. Creative Commons 3.0.

www.helade.uff.br

Você também pode gostar