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Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; 60 pp.

EDUARDO DULLO

É freqüente lermos, na literatura antropo- lacuna. Levar a sério o discurso nativo e ao me-
lógica, textos que não informam a idade dos nos tentar não constituir uma relação de po-
nativos. As pesquisas (em geral) são feitas com der em relação de sentido signi�ca, neste caso,
adultos, o que pode ser interpretado como apreender o mundo social a partir da constru-
conseqüência da importância que nossa socie- ção simbólica das crianças, fazendo desta ex-
dade confere a esta faixa etária, em detrimen- periência peculiar uma diferença qualitativa ao
to de outros períodos – a velhice e a infância invés de quantitativa.
– como locus de produção de signi�cados e Seu texto preocupa-se, desde o início (e re-
re�exões acerca da vida social. Tornado claro tomando a discussão ao �nal), em esclarecer a
desde o início pela autora, o debate sobre uma particularidade da Antropologia, diferencian-
Antropologia da criança trata de uma revisão de do-a dos mais antigos estudantes do tema: psi-
conceitos fundamentais que, originando-se na cólogos, psicanalistas e pedagogos. Assim, além
década de 1960, estende-se às teorias contem- de uma “antropologia da criança”, a autora nos
porâneas, articulando uma revisão da noção expõe sua visão do que caracteriza uma pesqui-
de pessoa e da criação de uma antropologia da sa da disciplina. Não é na metodologia de co-
cognição. É frente a este complexo debate que leta de dados que reside a especi�cidade, mas
opto por situar a importante contribuição que no cuidado com a contextualização e com os
este pequeno livro (como de praxe da coleção, “pressupostos analíticos e no arcabouço concei-
60 páginas) apresenta. tual” (:48). Com isto em mente, ela lembra que
O convite para escrever este número da co- “não podemos falar de crianças de um povo in-
leção “Passo a Passo”, baseou-se em sua compe- dígena sem entender como esse povo pensa o
tente – apesar de relativamente breve e recente que é ser criança e sem entender o lugar que
– produção e na (não tão breve assim, 12 anos) elas ocupam naquela sociedade – e o mesmo
pesquisa com crianças dentre os Kayapó-Xi- vale para as crianças nas escolas de uma metró-
krin do Bacajá. Por tratar, em sua dissertação pole” (:9).
de mestrado, sobre a concepção de infância e Sua introdução é, portanto, mais que um
aprendizado nesse contexto, traz numerosas preâmbulo para a discussão bibliográ�ca que
contribuições sintetizadas (o que não quer vem em seguida; é a assunção de uma postura
dizer, necessariamente, simpli�cadas) a partir teórico-metodológica com a qual irá debater
dessa experiência etnográ�ca. com autores e escolas. Nesse sentido, importa-
Esse terreno da disciplina só recentemente se em realçar a distinção entre nature e nurture
foi visto com a adequada sistematização, ainda realizada por Margareth Mead na tentativa de
em curso, que evita a de�nição pela negativa. entendimento da parcela cabível à natureza e
Uma das principais proposições que a exposi- à cultura no comportamento dos não-adultos
ção de Clarice Cohn visa é a de suprimir essa (tendo os norte-americanos como contraponto).

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


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Apesar de reconhecer a importância dos traba- cultura), demonstra que a especi�cidade de um


lhos, posiciona-se na a�rmação: “Esses estudos sentimento de infância é característico da mo-
estão marcados pela cisão entre vida adulta e a dernidade ocidental, historicamente construí-
da criança, e remetem a uma idéia de imaturida- da, conforme o estudo clássico de Ariès. Faz,
de e desenvolvimento da personalidade madura” sempre, um belo contraponto com seus dados
(:15). O que vai de encontro à sua posição, por etnográ�cos, para esclarecer como não deve-
prever um “adulto ideal” como “�m último do mos incorrer no erro de ter como pressupos-
processo de desenvolvimento”. to a existência de momentos do curso da vida
Direciona, seqüencialmente, seu comen- em quaisquer contextos sociais. Após discorrer
tário para a tradição estrutural-funcionalista, brevemente sobre a formação da pessoa Xikrin
com inspiração em Radcli�e-Brown, para de- (e de tornar claro a importância disso para se
monstrar tanto a oposição destes aos primeiros, compreender a criança) mostra que a delimita-
norte-americanos, pela excessiva relação com a ção do curso da vida e da duração do período
psicologia, quanto pela primordial relevância em que se é criança é algo especí�co.
conferida ao processo de socialização dos indi- Na intenção de ver a criança como atuante,
víduos e práticas sociais. Não se satisfaz, apesar lança mão de exemplos retirados tanto de sua
disso, com a postura que prevê uma certa gama pesquisa como do trabalho de Maria Filome-
de papéis e condutas às quais devem os sujei- na Gregori sobre crianças “de rua”, mostrando
tos se adequar. Essa forma impede a apropria- como elas constroem uma identidade para si e
ção qualitativamente diferenciada que Clarice para os outros. Por �m, a criança produtora de
Cohn propõe: “a criança dos estudos estrutu- cultura é uma interlocução com a antropologia
ral-funcionalistas se vê relegada a protagonizar da cognição, exempli�cada com os trabalhos
um papel que não de�ne” (:16). da antropóloga britânica Christina Toren. No
Ao conceber o avanço da teoria antropológi- entender de Toren – corroborada por Cohn – o
ca a partir dos anos 1960, a autora coloca tanto estudo da criança torna-se importante por ela
a importância dos conceitos de agência, quanto expressar o que os adultos normalmente não
o de sociedade e cultura. Revê como importan- o fazem e por fazê-lo de forma distinta. Não
te o sistema de simbolização compartilhado, se trata de uma cisão absoluta entre o mundo
porém, não mais como existente previamente adulto e o da criança, mas de uma relativa au-
aos sujeitos, mas sendo por eles formado a par- tonomia, na qual as crianças não sabem menos,
tir de suas relações e interações. Essa capacidade e sim sabem outra coisa sobre o mundo.
de agência permite conceber as crianças como Não sendo uma área já bem desenvolvida e
criadoras de seu próprio sistema simbólico e vi- esmiuçada, convém lembrar que seu trabalho
são de mundo, e não mais como um depositário remete-se bastante a um tema que associamos
de papéis: “Ao contrário de seres incompletos, de imediato com a criança: a educação. Sua
treinando para a vida adulta, encenando papéis preocupação, nesse caso, é o de romper com
sociais enquanto são socializados ou adquirindo o chamado “Grande Divisor” entre sociedades
competências e formando sua personalidade so- ditas complexas e simples, primitivas ou tradi-
cial, passam a ter um papel ativo na de�nição de cionais. Uma das formas de impor a diferença
sua própria condição” (:21). entre as sociedades recai na educação formal e
Ao diferenciar três aspectos dos estudos so- escolarizada, em contraposição à tradição oral
bre a criança (a de�nição da condição social da e/ou informal. Por isso, a autora relembra – e
criança, como ator social e como produtora de nunca é demais – que “concepções do que é ser

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 247-249, 2006


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criança, do desenvolvimento e da capacidade de trabalhos realizados com as crianças “de cá”,


de aprender, devem ser entendidas de maneira como ela as chama. Não creio, contudo, que
interligada” (:40). isso diminua o mérito do livro. Pre�ro encarar
Se há algo a ser criticado em Antropologia a questão como proveniente do estímulo que
da criança, é o seu tamanho. O formato da o livro imprime no leitor, na sede de conhecer
coleção não permite que a autora explore de outras pesquisas sobre o tema.
modo satisfatório as demais articulações do Como espero ter esclarecido, o formato
tema, que �caram restritas a poucos parágra- introdutório que a coleção impõe não cau-
fos. É notável, por exemplo, como a temática sou uma simpli�cação dos argumentos. Sua
da educação emerge do texto como algo mais constante menção a trabalhos empíricos e
próximo ao cotidiano das crianças, enquanto as utilização de exemplos permite uma compre-
relações jurídicas (como no Estatuto da Crian- ensão mais completa do tema. Seu louvável
ça e do Adolescente), ou ao trabalho infantil poder de síntese pode, em parte, ser atribuí-
são mencionados de forma rápida, se tivermos do à sua experiência docente, permitindo-lhe
em mente o cuidado com o procedimento de escrever um texto claro, com frases curtas e
transmissão e aquisição de conhecimentos. sem redundâncias: acessível tanto aos leitores
Mais ainda: a ênfase em seu trabalho de cam- iniciantes quanto imperioso aos mais experi-
po ocupa boa parte do livro, em detrimento mentados.

autor Eduardo Dullo


Mestrando em Antropologia Social / MN-UFRJ

Recebido em 15/02/2006
Aceito para publicação em 19/05/2006

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 247-249, 2006

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