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Scripta Uniandrade, v. 15, n.

3 (2017)
Revista da Pós-Graduação em Letras – UNIANDRADE
Curitiba, Paraná, Brasil

“ELAS NARRAVAM COMO SOLDADOS. COMO


MULHERES”: A LITERATURA COMO ARQUIVO
EM A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER

LUA GILL DA CRUZ (DOUTORANDA)


Universidade Estadual de Campinas
Campinas, São Paulo, Brasil
(luagillc@gmail.com)

RESUMO: Diante de regimes violentos e das catástrofes do século XX, houve


uma série de tentativas de refletir e ressignificar o que era anteriormente
impensável. A própria condição de representação é colocada em xeque. A obra
de Svetlana Aleksiévitch, prêmio Nobel de Literatura de 2015, se insere na
busca de um novo gênero literário a partir de um esgarçamento dos gêneros
literários tradicionais, que não mais dão conta das exigências do novo tempo.
Como testemunha do testemunho, a partir de uma construção polifônica e
híbrida, as obras de Aleksiévitch se organizam através da escuta de entrevistas
realizadas sobre as temáticas das obras. A criação autoral, no entanto, não é
apagada, e se compõe como uma espécie de trabalho de arqueólogo, ou curador,
que busca a sua matéria nos vestígios e nos restos dos arquivos. A proposta
deste artigo é pensar essa nova forma de definir a literatura, bem como as
especificidades da inscrição, em A guerra não tem rosto de mulher.

Palavras-chave: Literatura contemporânea. Arquivo. Testemunho. Guerra.


Mulheres.

Artigo recebido em 30 set. 2017.


Aceito em 24 out. 2017.

CRUZ, Lua Gill da. “Elas narravam como soldados. Como mulheres”: a literatura como arquivo
em A guerra não tem rosto de mulher. Scripta Uniandrade, v. 15, n. 3 (2017), p. 103-125.
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“THEY'VE SPOKEN AS SOLDIERS. AS


WOMEN”: LITERATURE AS ARCHIVE IN
UNWOMANLY FACE OF WAR

ABSTRACT: In face of violent regimes and catastrophes in the 20th century,


there have been a series of attempts to reflect about and to resignify what was
previously considered unthinkable. The conditions of representation themselves
are put under scrutiny. Svetlana Aleksiévitch, Nobel Prize winner in Literature
in 2015, takes part in a pursuit for a new literary genre, following the exhaustion
of traditional literary genres, which are no longer capable of dealing with the
demands of the century. As witness to the testimony, from a polyphonic and
hybrid construction, Aleksiévitch's works are organized by listening to women’s
interviews on selected themes. The author's creativity, however, is not effaced,
and becomes a work akin to that of an archaeologist or curator, who seeks his
material in the vestiges and remains of the archive. This article reflects on these
new ways in which literature can be defined, as well as the specificities of
inscription in The Unwomanly Face of War.

KEY WORDS: Contemporary literature. Archive. Testimony. Women. War.

As guerras pertencem aos homens,


e assim também as lembranças de guerra. [...]
Além disso: mulheres não têm passado.
Ou não têm que ter algum.
É indelicado, quase indecente.
Ruth Klüger – Paisagens da memória

Em lugar de vida, vai sobrar literatura.


Svetlana Aleksiévitch – A guerra não tem rosto de mulher

CRUZ, Lua Gill da. “Elas narravam como soldados. Como mulheres”: a literatura como arquivo
em A guerra não tem rosto de mulher. Scripta Uniandrade, v. 15, n. 3 (2017), p. 103-125.
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No ano de 2015, a Academia Sueca concedeu o mais alto prêmio da


literatura para a escritora, jornalista e/ou historiadora oral Svetlana
Aleksiévitch, contrariando uma visão redutora de literatura e ampliando e
inscrevendo novas possibilidades de definição de gêneros literários1. A
Academia2, ao outorgar o prêmio à bielorrussa, a legitimou ao tratar de sua obra
como um novo gênero literário, a que chamou de “histórias das emoções”, ou
“história das almas3”, devido a seus “escritos polifônicos”, que são uma espécie
de (anti) “monumento4 do sofrimento e da coragem em nossos tempos”
(GESSEN, 2015). Sem perder de vista a qualidade lírica e a construção de uma
perspectiva diferenciada, a autora constitui suas obras a partir de entrevistas –
baseadas, ainda que não inteiramente, na metodologia da história oral – que
compõem a sua narrativa acerca de eventos históricos importantes no contexto
soviético. Os relatos dialogam entre si e com a voz da própria autora, a qual se
constrói também à medida que escuta.
A obra A guerra não tem rosto de mulher, publicada em 1985 – após uma
série de recusas por parte de editoras russas – e traduzida para o português
apenas em 2016, depois do prêmio literário, detém-se sobre o relato de mulheres
combatentes na Segunda Guerra Mundial. Ao invés de focar na história de
grandes heróis ou heroínas, o olhar e a escrita da bielorrussa voltam-se às vozes
comuns daquelas que foram pegas no centro da barbárie das circunstâncias da
guerra. Em paratexto inicial ao livro, um historiador relata à entrevistadora que
o total de mulheres combatentes pela União Soviética chegou a um milhão.
Ainda assim, as suas histórias, os seus relatos e os seus testemunhos são
apagados pela história oficial. Na língua dos homens e da Grande História não
cabem as lembranças femininas da guerra, como defende Ruth Klüger na sua
obra Paisagens da memória (2005), em que debate, entre outras questões, a

1 A tentativa de uma ampliação do conceito de literatura e a quem e ao que o Prêmio


Nobel se dirige foi corroborada no ano seguinte, em 2016, com sua atribuição ao músico
Bob Dylan. Tal fato não quer dizer, entretanto, que o prêmio não tenha se dedicado,
anteriormente, a premiar filósofos e historiadores como, por exemplo, Bertrand Russell,
Winston Churchill e Henri Bergson. Não obstante, nos últimos anos, o prêmio vinha
privilegiando produções tradicionalmente pertencentes ao cânone literário.
2 Não pretendo debater aqui, pelo escopo do artigo, as críticas necessárias ao sistema

de premiação literária nacional e internacional que, majoritariamente, privilegia os


mesmos grupos de escritores, provenientes dos mesmos lugares do mundo, ainda que
as considere extremamente relevantes.
3 Disponível em: http://www.newyorker.com/magazine/2015/10/26/the-memory-

keeper. Acesso em 2 junho de 2017.


4 Parece-me mais interessante a ideia de “antimonumento” defendida por Seligmann-

Silva, neste contexto, dado que o monumento se insere na tradição de comemoração de


vitórias bélicas, enquanto o antimonumento, opondo-se ao sentido heroico do primeiro,
se “desloca para um local de lembrança (na chave da admoestação) da violência e de
homenagem aos mortos” (SELIGMANN-SILVA, 2016, p. 50).

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em A guerra não tem rosto de mulher. Scripta Uniandrade, v. 15, n. 3 (2017), p. 103-125.
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sobrevivência aos campos de concentração nazistas e a dificuldade em dividir


as suas experiências e de outras sobreviventes, na condição de mulheres.
No primeiro capítulo da obra, intitulado “O ser humano é mais que a
guerra (Do diário do livro)”, a autora relata o processo de escrita, que se iniciou
com as entrevistas em 1978; a metodologia de trabalho; e os objetivos da obra
até a sua publicação tardia. Um dos personagens do capítulo é o censor:

“Isso é mentira! É uma calúnia contra nossos soldados, libertadores de meia


Europa. Contra nossos partisans. Nosso povo herói. Não precisamos de sua
pequena história, precisamos da grande história. A história da Vitória. Você não
ama nossos heróis! Não ama nossas grandes ideias. As ideias de Marx e Lênin”5.
(ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 36)

Ao se contrariar à matéria narrada, o censor exige que a autora se volte


à “grande história”, à “história da vitória”, ou seja, à historiografia tradicional.
Ao olhar para o esquecido e negligenciado, para o que o censor chama “sujeira
da guerra” ou para “a roupa íntima”, a obra recusa os “exemplos heroicos” tão
caros à União Soviética naquele momento. Como afirma um dos entrevistados,
essas pessoas faziam parte de “uma geração que acreditava que há coisas
maiores do que a vida humana. A pátria e a Grande Ideia. Bom, e Stálin
também” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 115).
Da parte das mulheres entrevistadas também se questiona a vontade de
voltar-se para o que não era visto, ao invés de observar os grandes nomes e
heróis, ou a “grande História”. Uma das entrevistadas pede à autora que procure
o seu marido, porque ele adora recordar “como se chamavam os generais, os
números das unidades” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 46). Ele lembra de “tudo
aquilo que importa” para a narrativa de guerra, enquanto ela só lembraria do
que aconteceu consigo mesma, a “sua guerra”, pequena, individual, subjetiva.
Nietzsche, em suas Considerações intempestivas, questiona o efeito
massacrante da relação do homem com o passado, diante do qual os homens
se sentem sobrecarregados e submissos ao que chama de “história antiquário”,
de maneira que não conseguem olhar para o futuro. O autor organiza o seu
argumento a partir da negação do historicismo, o qual não garante uma
preservação dos fatos passados e seria o responsável por um “abuso da história”
ou pela “febre histórica decoradora” (NIETZSCHE, 1976, p.103), o que
impossibilitaria uma resposta no presente. Ainda que entenda a importância de
um “certo conhecimento do passado”, na medida em que serve à vida, e valorize,
paradoxalmente, a necessidade de uma “história monumental”, para o filósofo,

5Quando as citações se referem a trechos das entrevistas, mantenho as aspas do livro,


de forma a diferi-las dos trechos de construção da própria narradora-autora.

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tal tipo de história, defendida pelo censor de Svetlana, “[...] engana-nos por meio
de um jogo de analogias, através de semelhança enganadora [que] arrasta o
homem corajoso para a temeridade e o entusiasta para o fanatismo”
(NIETZSCHE, 1976, p. 122). A importância e o elogio ao esquecimento, em
Nietzsche, baseiam-se “em retirar dos conteúdos da memória até que fielmente
preservados, os da formação histórica, a base da motivação e construir o agir,
com a vida e com o futuro, motivação nova e concorrente, a partir da qual deve
se organizar a memória” (WEINRICH, 2001, p. 183).
Walter Benjamin, leitor de Nietzsche, se debruçará em uma crítica
contundente ao historicismo – ou à “grande história” a que se refere o censor da
obra da bielorrussa – na sua obra, especialmente nas teses Sobre o conceito da
História, escritas em 1940, momento em que o filósofo se deparou, um pouco
antes de sua morte, com a experiência do horror e do estado de exceção. De
acordo com o filósofo alemão, a historiografia tradicional baseia-se na
perspectiva dos vencedores. Cabe, portanto, renunciar à lógica positivista de
uma “verdade histórica”, ou de uma cientificidade de “fatos históricos”, que nos
fazem crer em uma “imagem autêntica do passado”, pois estas são construídas
e baseadas nos discursos da classe dominante.
Nesse sentido, compete ao historiador (que aqui se refere também ao
sujeito revolucionário) “articular historicamente o passado” não de forma a
“conhecê-lo ‘como ele de fato foi’”, mas de maneira a “apropriar-se de uma
reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN,
1994c, p. 224). O método de “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN,
1994c, p. 225) refere-se à necessidade de articular os eventos históricos de
forma a buscar outras versões da história a partir dos seus restos, de suas
ruínas ou reminiscências, e a opor-se à regra da história de repetição inexorável
da violência e do amontoamento de “escombro sobre escombro”, ou seja, da
série de novas catástrofes que continuam a acontecer.
Benjamin reafirma a necessidade de uma contemplação crítica da
história que submeta a julgamento o que foi anteriormente silenciado e que
precisa ter voz, de forma a reverter e reavaliar “a contrapelo”, inclusive, todos
os documentos em que a nossa cultura se baseia, pois “nunca houve um
monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” e
as suas formas de transmissão tampouco são isentas. Assim como a autora
bielorrussa, que afirma procurar “não os grandes feitos e o heroísmo, mas aquilo
que é pequeno e humano” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p.17), Benjamin defende
uma reversão do olhar (e do ouvido) em direção às vozes antes apagadas e
oprimidas pela “locomotiva do progresso” capitalista. De acordo com Seligmann-
Silva (2009), o filósofo alemão, ao traduzir a frase acima para o francês, escreve
que todo o arcabouço cultural testemunha a barbárie, de forma que a própria
cultura, ou seja, a memória e o arquivo são também testemunhas do horror. A

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partir de tal ressignificação, não apenas o autor expande a forma de


interpretação dos monumentos e documentos, como também modifica os seus
critérios de avaliação e de conservação de arquivos, ou seja, passa a considerá-
los intimamente relacionados com modelos historiográficos e memorialísticos
que privilegiam a perspectiva dos vencedores.
Os documentos, ou os arquivos, foram centrais nos Estados totalitários
e autoritários – e contemporâneos – para a sustentação do historicismo e para
o “abuso da história” criticado por Nietzsche. De acordo com Derrida, em Mal
de arquivo: uma impressão freudiana (2001), a origem do conceito de arquivo
remete a Arkhê, ou seja, ao início, à origem, ao começo. Dirige-se, portanto, ao
arcaico e arqueológico, ou seja, ao processo de busca, de escavação, bem como
ao desejo de totalização, ainda que impossível. Seriam os arcontes os primeiros
guardiões, os quais não apenas guardavam e davam suporte físico. A eles, cabia
ainda função de guardar a lei, bem como interpretá-la, ou seja, legitimá-la. O
poder arcôntico tinha como função a “unificação, identificação, classificação”
bem como o “poder de consignação” (DERRIDA, 2001, p. 13-14). De acordo com
o filósofo franco-argelino, o poder político atua então no controle do arquivo e,
evidentemente, da memória. O arquivo funcionaria, nesse sentido, assim como
a historiografia positivista, como instrumento de dominação. Uma
democratização efetiva só poderia se dar a partir deste “critério essencial: a
participação e o acesso ao arquivo, à sua constituição e à sua interpretação”
(DERRIDA, 2001, p. 16). A interpretação e seleção dos arquivos, assim como o
inconsciente da psicanálise, funcionaria a partir de uma série de recalcamentos
que fazem com que se defina o que vai ser retido e mantido, de forma
extremamente incompleta.
O filósofo afirma ainda que “o arquivo tem lugar em lugar da falta
originária e estrutura da chamada memória. Não há arquivo sem um lugar de
consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade. Não
há arquivo sem exterior” (DERRIDA, 2001, p. 22, grifo do autor). O arquivo
trabalha, a priori, sempre contra si mesmo, e atua na ameaça da pulsão de
morte, ou seja, na possibilidade de esquecimento, de amnésia, pois “não haveria
certamente desejo de arquivo sem a finitude radical, sem a possibilidade de um
esquecimento que não se limita ao recalcamento” (DERRIDA, 2001, p. 32), isto
é, um esquecimento parcial é também sempre parte da seleção do arquivo. Há
um caráter lacunar inevitável pelo qual perpassa o esquecimento. A censura,
no texto de Aleksiévitch, atravessa a tentativa do regime totalitário de controle
do arquivo, ou seja, da documentação e do acesso a outras informações. Toda
inscrição do arquivo percorre não apenas a seleção, como também a
interpretação.
A perspectiva de Derrida, entretanto, não resume o arquivo ao
apagamento e à pulsão de morte, ou seja, à inevitabilidade da exclusão de dados

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mas, também, à pulsão de vida e de conservação. Ao mesmo tempo que é


ameaçado, também guarda, pois pode igualmente ser repetido, reproduzido,
memorizado. Não se trata, portanto, de uma perspectiva em direção ao passado,
apenas, mas ao porvir do arquivo, ou seja, “trata-se do futuro [...] de uma
promessa e de uma responsabilidade para o amanhã” (DERRIDA, 2001, p. 50).
Ao mesmo tempo em que se tenta fechá-lo, na releitura se reinscreve e se repete:

A interpretação do arquivo [...] não pode esclarecer, ler, interpretar e estabelecer


seu objeto, isto é, uma herança dada, senão inscrevendo-se nele, isto é, abrindo-
se e enriquecendo-o bastante para então ocupar um lugar de pleno direito. [...]
Incorporando o saber que se demonstra sobre este tema, o arquivo aumenta,
cresce, ganha em auctoritas. Mas perde, no mesmo golpe, a autoridade absoluta
e metatextual que poderia almejar. Jamais se poderá objetivá-lo sem um resto.
O arquivista produz arquivo, e é por isso que o arquivo não se fecha jamais. Abre-
se a partir do futuro. (DERRIDA, 2001, p. 88)

O arquivo, de acordo com o filósofo, se organiza paradoxalmente como


passado e repetição, bem como possibilidade irredutível de futuro. O “mal de
arquivo” ao mesmo tempo que retém os fatos, que procura se estabelecer de
uma forma “ordenada”, ou “organizada”, tem uma potência que se reproduz, e
que se abre a futuras interpretações, e pode então permitir uma busca daquilo
que se anarquiva.
Pensar a questão dos arquivos, das coleções, dos museus, da burocracia,
de toda uma documentação que se coleciona e se organiza, bem como se
esconde, é imperativo para compreender a cultura na contemporaneidade. Mas
não cabe apenas apontar as contradições e os apagamentos, tão recorrentes,
dos arquivos do mal: é necessário que se “roube a chave” do arconte de forma a
democratizar e abrir, de forma crítica, os arquivos. Buscar, assim como defende
Benjamin, uma reestruturação crítica permeada e construída nos restos, nas
ruínas, nos vestígios, no que é escondido, para encontrar as inscrições da
“história dos vencidos”. Opondo-se, portanto, ao poder arcôntico, à ciência
arquivística – base também da historiografia tradicional – que carrega em si a
era do “mal de arquivo”, aqui se propõe a uma leitura do arquivo em uma
perspectiva que possa implodir um “grande arquivo central”, visando o
anarquivamento.
De acordo com Seligmann-Silva, no romantismo os artistas levantaram-
se contra “a ação da norma e sua tendência a reduzir tudo ao(s) arquivo(s) do
poder”, e se tornaram cada vez mais “anarquivadores, anarquizadores do
arquivo” (SELIGMANN-SILVA, 2014, p. 37). Por esse ângulo, as artes adotam a
noção de arquivo para si, e os artistas “vão embaralhar os arquivos, vão pôr em
questão as fronteiras, vão tentar abalar poderes, revelar segredos, reverter

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dicotomias, para as explodir” (SELIGMANN-SILVA, 2014, p. 38). Como


Benjamin preconiza, o intuito é anarquivar para, de forma crítica, como o anjo
da História, recolher as ruínas do passado.
Um ato de recriação permite uma ressignificação da história a partir de
um novo uso de arquivos. No caso da obra de Svetlana Aleksiévitch, por
exemplo, fica clara a necessidade, por parte do Estado totalitário e das
estruturas de poder, de estabelecer o que deve ser escondido e apagado. A
autora, entretanto, procura outra forma de contar a história, de democratizar o
arquivo, buscando o anarquivamento que a arte oferece como possibilidade
revolucionária.
Como o cronista de Benjamin, que “narra os acontecimentos sem
distinguir entre os grandes e os pequenos” (BENJAMIN, 1994c, p. 223) e que
considera que “nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido
para a história”, a bielorrussa afirma procurar “pelo pequeno grande ser
humano. Humilhado, pisoteado, ofendido” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 26).
Entendendo as infinidades de camadas e de leituras possíveis para o arquivo, a
escrita literária de A guerra não tem rosto de mulher (2016) perpassará uma
leitura das pistas, dos encobrimentos das narrativas das mulheres, de forma a
recompor e ressignificar o passado tão catastrófico, contrapondo-se a uma
“história monumental”. A narradora defende que:

O que quero ouvir dezenas de anos depois? [...] Busco outra coisa. Estou
reunindo algo que chamaria de conhecimento do espírito. Sigo as pistas da vida
interior, faço anotações da alma. [...] Estou escrevendo uma história dos
sentimentos... Uma história da alma. Não é a história da guerra ou do Estado, e
não é a hagiografia dos heróis, mas a história do pequeno ser humano arrancado
da vida comum e jogado na profundeza épica de um acontecimento enorme.
(ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 17)

“A HISTÓRIA RELATADA POR UMA TESTEMUNHA QUE NINGUÉM NOTOU”: A


OBRA DE SVETLANA ALEKSIÉVITCH

Depois do “século do trauma”, da “era das catástrofes”, ou da “era dos


extremos” e, diante do tamanho e da quantidade de momentos de barbárie,
houve uma série de tentativas de refletir e ressignificar o que era anteriormente
impensável. Márcio Seligmann-Silva (2000), a partir das reflexões de Benjamin,
apresenta a concepção de “história como trauma”, ou seja, o autor defende a
catástrofe e o choque como partes da própria estrutura dos processos sociais e
responsáveis pelo “corte da história no século XX”, ao contrário do paradigma
positivista e da noção de progresso evolutivo.

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Diante de regimes violentos, a própria maneira de experienciar a


realidade, de acordo com o autor, perpassa o conceito psicanalítico do trauma,
na chave freudiana de leitura (FREUD, 2010; CARUTH 1996; 2000). A partir
das catástrofes do século XX, a própria condição de representação é colocada
em xeque, tanto no que diz respeito às formas e gêneros tradicionais da
literatura, quanto à tradição historiográfica. A impossibilidade – e a necessidade
– da narração é o elemento-chave da narração. O autor afirma: “com a nova
definição da realidade como catástrofe, a representação, vista na sua forma
tradicional, passou ela mesma, aos poucos, a ser tratada como impossível”
(SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 75).
O questionamento acerca de uma “verdade histórica” perpassa a
possibilidade de ler a cultura e a barbárie a partir do testemunho, do olhar das
vítimas, da subjetividade do sujeito; em suma, trata-se de uma literatura e uma
arte abertas a “ouvir”. A obra de Aleksiévitch, como os livros traduzidos para o
Brasil, A guerra não tem rosto de mulher, Vozes de Tchernóbil ou O fim do homem
soviético, entre outros, se insere nessa perspectiva através de um esgarçamento
dos gêneros literários tradicionais, que não mais dão conta das exigências do
novo tempo.
Perante a necessidade de um “novo gênero”, a autora, em seu diário de
escrita, conta que passou “muito tempo procurando... Com que palavras seria
possível transmitir o que escuto? Procurava um gênero que respondesse à forma
como vejo o mundo, como se estrutura meus olhos, meus ouvidos”
(ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 11). Ainda que o Prêmio Nobel tenha nomeado a
obra da bielorrussa como literatura, na descrição do seu site oficial6 a autora se
distancia de um conceito clássico de literatura na defesa de que, nestes tempos
tão multifacetados e diversos, o uso de documento na arte – ou seja, o que
chamei aqui de “anarquivo” –, tem se mostrado muito mais interessante frente
a uma produção artística que parecia impotente perante a catástrofe7. A autora
argumenta que: “O documento nos aproxima da realidade na medida em que
captura e preserva os originais. Depois de 20 anos de trabalho com materiais
documentais e da escrita de cinco livros baseados em tais materiais, eu declaro
que a arte falhou em entender muitas coisas sobre as pessoas”8. Ao mesmo

6 Disponível em: http://www.alexievich.info/indexEN.html. Acesso em: 20 jun. 2017.


7 A questão também perpassa as reflexões de Adorno, em uma de suas frases mais
conhecidas, “escrever um poema após Auschwitz é um ato de barbárie, e isso corrói até
mesmo o conhecimento de por que hoje se torna impossível escrever poemas” (ADORNO,
1998, p. 26), na qual o autor remete à incapacidade da arte diante da barbárie dos
campos de concentração, mas isso não quer dizer que considere a arte uma instância
impossível de ser realizada. Adorno aponta para a atrocidade do esquecimento e para o
fato de que, ainda que seja impossível a representação, é imprescindível que se faça.
8 “The document brings us closer to reality as it captures and preserves the originals.

After 20 years of work with documentary material and having written five books on their

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tempo, na obra literária, em um discurso ambíguo se pensado em contraponto


com a descrição do website, afirma: “em lugar de vida, vai sobrar literatura”
(ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 22), ou ainda, “tudo pode se transformar em
literatura” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 29). A defesa do discurso e da capacidade
do literário nas obras se contrapõem exatamente ao que preconiza, inicialmente,
na descrição de sua obra.
Na esteira da ambiguidade, que ora defende a primazia do documento
sobre a arte, ora apresenta o próprio texto como uma tentativa de inscrição
literária, há, na sua defesa, e, principalmente, na inscrição de suas obras, um
projeto literário claro e coeso: buscar no testemunho e na entrevista de outros e
outras a perspectiva daqueles e daquelas que não tiveram espaço na
historiografia oficial e tornar-se (ela mesma), no processo de escuta, testemunha
também. Ainda em seu website, defende que: “Eu escolhi um gênero no qual a
voz humana fala sobre si mesma. Pessoas reais falam nos meus livros sobre os
principais eventos da sua era [...] Juntas elas gravam verbalmente a história de
um país, a sua história comum, enquanto cada pessoa põe em palavras a
história da sua própria vida”9. Parte do micro, do individual, do sujeito, para
uma compreensão que não se pretende totalizante, mas que inscreve, sem fugir
de suas limitações, a história coletiva.
Como defende Benjamin, “quem pretende se aproximar do passado
soterrado deve agir como um homem que escava” (BENJAMIN, 1995, p. 227).
Nesse sentido, a autora busca, nas suas escavações arqueológicas das
entrevistas, respostas para a história e se torna uma “mulher-ouvido” – como
define no texto Vozes de Tchernóbil (2016b) ou na obra sobre as mulheres em
que constata que “vou escutando... Cada vez mais vou me transformando em
um grande ouvido, sempre voltado para a pessoa. ‘Leio’ a voz” (ALEKSIÉVITCH,
2016a, p. 16) – e/ou uma testemunha:

Eu também me transformo em testemunha. Testemunha daquilo que as pessoas


se lembram, e de como se lembram, do que querem falar, e do que tentam
esquecer ou afastar para o canto mais distante da memória. Fechar a cortina.
De como elas se desesperam na busca pelas palavras, e mesmo assim querem
reconstituir o que desapareceu, na esperança de que a distância permita captar
o sentido completo do passado. Ver e entender o que não viram e o que não
entenderam na época. (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 179)

basis I declare that art has failed to understand many things about people”
(ALEKSIÉVITCH, website). Tradução da autora.
9 “I chose a genre where human voices speak for themselves. Real people speak in my

books about the main events of the age […] Together they record verbally the history of
the country, their common history, while each person puts into words the story of
his/her life” (ALEKSIÉVITCH, website). Tradução da autora.

CRUZ, Lua Gill da. “Elas narravam como soldados. Como mulheres”: a literatura como arquivo
em A guerra não tem rosto de mulher. Scripta Uniandrade, v. 15, n. 3 (2017), p. 103-125.
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Scripta Uniandrade, v. 15, n. 3 (2017)
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De acordo com Dori Laub, há tipos distintos de testemunho – e aqui o


autor se refere ao contexto de pesquisa sobre a Shoah: “O nível de ser uma
testemunha para si mesmo dentro da experiência, o nível de ser a testemunha
do testemunho de outros, e o nível de ser a testemunha no processo de
testemunhar a si mesmo10” (LAUB, 1995, p. 61). Um primeiro nível estaria
relacionado à experiência do testemunho em si mesmo, como sobrevivente; o
segundo diz respeito a um envolvimento no processo de testemunho como
participante, não dos eventos em si, mas do próprio testemunho. Para o autor,
haveria nesse contexto, a possibilidade de um testemunho no sentido daquele
que está disposto a ouvir o horror do outro e também testemunhar esse horror.
Ainda que sejam perspectivas diferentes, o segundo nível apresenta uma
abertura para o ouvir e para dividir o fardo.
No caso do arquivo que constituiu em Yale, Fortunoff Video Archive for
Holocaust Testimonies, Laub discorre sobre a importância da figura do
entrevistador que se torna testemunha. O psicanalista afirma que:

Até certo ponto, o entrevistador-ouvinte assume para si a responsabilidade de


testemunhar o que anteriormente o narrador sentia que testemunhava sozinho
e, portanto, não podia testemunhar. É o encontro e o estar junto do sobrevivente
e do ouvinte que possibilita uma espécie de responsabilidade, a qual é a origem
da verdade que reemerge. (LAUB, 1995, p. 69)11

O testemunho só existe quando há quem escute. Tal noção também é


defendida por Jeanne Marie Gagnebin, que define a testemunha não como
aquela que esteve meramente presente, mas aquela que:

[...] Não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que
aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do
outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a
transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível,
somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo
infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente.
(GAGNEBIN, 2006, p. 57)

10 “The level of being a witness to oneself within the experience, the level of being a
witness to the testimonies of others, and the level of being a witness to the process of
witnessing itself”. Tradução da autora.
11 “To a certain extent, the interviewer-listener takes on the responsibility for bearing

witness that previously the narrator felt he bore alone, and therefore could not carry
out. It is the encounter and the coming together between survivor and listener, which
makes possible something like a responsibility is the source of reemerging truth.”
Tradução da autora.

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em A guerra não tem rosto de mulher. Scripta Uniandrade, v. 15, n. 3 (2017), p. 103-125.
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Como testemunha do testemunho, a partir de uma construção polifônica


e híbrida, em um misto de documento, história oral12, arquivo, ficção,
autobiografia, ou “literatura de arquivo"13, as obras de Aleksiévitch se
constroem através da escuta de entrevistas realizadas sobre as temáticas das
obras e se estruturam em capítulos coesos em unidades de ideias ou temporais.
A voz autoral, no entanto, não é de nenhuma forma apagada. Ainda que durante
as entrevistas pareça que se trate de monólogos, a autora insere a sua
perspectiva, majoritariamente, nas introduções aos capítulos, em conclusões
finais nas narrativas, ou ainda, nas interpelações das entrevistas. De outra
parte, o trabalho autoral funciona no sentido de um arqueólogo e de uma espécie
de um curador14, que busca nos tantos arquivos os participantes dos eventos
históricos, os seleciona, define as perguntas e o método de contato, reúne e cura
passagens e ainda as reorganiza em uma obra coesa. No caso da obra A guerra
não tem rosto de mulher, sobre a qual me detenho aqui, a autora passou sete
anos realizando as suas entrevistas, nos quais efetuou mais de quinhentos
encontros com mulheres que atuaram na guerra, seja em profissões como
tanquistas ou atiradoras, como também cozinheiras, lavadeiras, entre outras.
Os nomes das mulheres são sempre mantidos, ao final dos textos, de maneira
também a registrar a sua identidade no contexto da história da guerra.
A inscrição de tais memórias não se organiza num sentido de uma
hierarquização entre o oral e o escrito, ou o individual e o privado. Não existe,
necessariamente, uma valorização de uma das formas, mas a necessidade de
agrupá-las em um só documento, de forma a conceder força para o que era
inscrito apenas numa esfera familiar, muitas vezes também apagada. A
possibilidade de inserir na materialidade do livro, como uma compilação de

12 É importante dizer aqui que não há, ainda assim, uma defesa ou um compromisso
por parte da autora, ou da sua leitura crítica, com a metodologia da história oral, ainda
que se configure, assim como o campo da história, em uma mesma busca: colocar o
indivíduo e seu testemunho no centro da construção do discurso histórico acerca dos
eventos e fatos históricos.
13 Cf. denominação da recente obra de Euridice Figueiredo (2017) que procura debater

a literatura brasileira acerca da ditadura civil-militar, a partir do conceito de “literatura


como arquivo da ditadura”.
14 Um artigo recente de Luciene Azevedo (2017) reflete sobre o processo de “curadoria”

de obras da literatura contemporânea. A perspectiva é diferenciada aqui e se refere a


um processo de escrita relacionada ao próprio autor. O processo de curadoria poderia
se dar em três sentidos: 1) o autor contemporâneo atuar como um curador de arte, na
medida em que organiza uma narrativa sobre o próprio artista e sua obra; 2) quando o
autor atua como “agente literário” de si mesmo; 3) quando ainda organiza a sua obra a
partir da leitura e releitura de outras obras, numa operação de “colar e recortar”. É
importante salientar que, ainda que o conceito não remeta necessariamente à obra de
Svetlana, me parece que abre possibilidades de leitura para essa estrutura de gênero
literário tão única e particular.

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em A guerra não tem rosto de mulher. Scripta Uniandrade, v. 15, n. 3 (2017), p. 103-125.
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documentos, reabre as tensões dos arquivos e reinscreve experiências não


conhecidas na esfera macro. A escrita é aqui considerada, assim como a
tradição oral, como mais um “rastro” arquivístico não duradouro, ainda que
privilegiado, das marcas da existência humana (GAGNEBIN, 2006). O método
de inscrição de tal história no espaço da escrita se resume, de alguma forma,
da seguinte forma:

E a história? Ela está na rua. Na multidão. Acredito que em cada um de nós há


um pedacinho da história. [...] Juntos, estamos escrevendo o livro do tempo.
Cada um grita sua verdade. O pesadelo das nuances. E é preciso ouvir tudo isso
separadamente, dissolver-se em tudo isso e transformar-se em tudo isso. E, ao
mesmo tempo, não perder a si mesmo. Unir o discurso da rua e da literatura.
(ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 19)

Em A guerra não tem rosto de mulher (2016), há uma particularidade na


busca de uma “historia a contrapelo” que merece atenção: além de a história
oficial negar a possibilidade de outra inscrição, atenta às subjetividades, às
experiências pessoais de indivíduos comuns, exigindo que haja um foco nos
“heróis” ou na “vitória”, nega-se também, e principalmente, a perspectiva de
mulheres sobre a guerra. Valentina Ievdokímovna, uma das mensageiras
partisan entrevistadas, também conta que ao ficar sem o marido durante sete
anos, decidiu não contar a sua participação no combate e afirma que aprendeu
a se calar diante das perguntas sobre onde estava o seu marido, ou quem era o
pai de seu filho. Agora, só consegue falar “sussurrando...sobre... isso...
sussurrando... há quarenta e poucos anos” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 356), de
maneira que esqueceu (ou tentou esquecer) da guerra e de tudo o que carregou
dela.
Durante o seu percurso em busca de entrevistas, a autora encontra
homens que lutaram durante a guerra e que reconhecem o apagamento da
história das mulheres. Um deles afirma que “se formos lembrar a história, em
todos os tempos as mulheres russas não se limitaram a se despedir dos
maridos, irmãos e filhos, sofrer e esperar por eles” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p.
116), ainda assim, a sua colaboração não é contada. Já Zinaída Vassílievna,
uma das enfermeiras-instrutoras que presta depoimento, conta que, ao final da
guerra, ouviu de seu general que “a guerra aconteceu, vocês combateram. Agora
esqueçam. A guerra já foi” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 206). É interessante notar
que as figuras que inicialmente protegiam os arquivos eram os homens: os
arcontes. Cabia a eles a proteção e legitimidade do discurso da memória e da
história.
No primeiro capítulo a que me referi antes, sobre o “Diário da escrita”, a
autora se questiona sobre a necessidade de escrever mais um livro com a

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temática da guerra, diante de uma produção tão vasta. A sua resposta gira em
torno da nova perspectiva:

Mas... Foi escrito por homens e sobre homens, isso ficou claro na hora. Tudo o
que sabemos da guerra conhecemos por uma ‘voz masculina’. Somos todos
prisioneiros de representações e sensações ‘masculinas’ da guerra. Somos todos
prisioneiros de representações e sensações ‘masculinas’ da guerra. Das palavras
‘masculinas. Já as mulheres estão caladas. Ninguém, além de mim, fazia
perguntas para a minha avó. Para minha mãe. Até as que estiveram no front
estão caladas. Se de repente começam a lembrar, contam não a guerra
‘feminina’, mas a ‘masculina’. Seguem o cânone. (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 12)

Observa, ainda, por que as mulheres não conseguem contar a sua


história, achar um espaço de escuta: “Por que, depois de defender e ocupar seu
lugar em um mundo antes absolutamente masculino, as mulheres não
defenderam sua história? Suas palavras e sentimentos? Não deram crédito a si
mesmas” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 13). Dividir a história da guerra, a partir
de uma perspectiva de gênero, é a que se pretende o livro. Tornar-se testemunha
para uma:

História relatada por uma testemunha ou por um participante que ninguém


notou. Sim, é isso que me interessa, é isso que eu gostaria de transformar em
literatura. Mas se as pessoas que contavam não eram apenas testemunhas, menos
que tudo testemunhas: eram atores e criadores. (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 18)

Ainda que haja, na atualidade, uma mudança gradual e ainda tímida, as


mulheres foram e são suprimidas e esquecidas da história. Seu lugar, restrito
ao espaço privado, doméstico, do silêncio e da passividade, é desvalorizado no
contexto público. Não se trata, evidentemente, como defende Rago, de recuperar
os “grandes feitos” das mulheres, “inscrevendo-as disciplinadamente nos
espaços deixados em branco na Grande Narrativa Histórica, masculina e
branca” (RAGO, 2013, p. 15), mas: 1) questionar o espaço e o tipo de
representação feita pelos homens sobre as mulheres; e 2) como aponta a autora
bielorussa, inscrever outra história, outra narrativa, outra gramática mesmo,
no contexto público, de forma a mostrar uma produção de um discurso histórico
diferenciado, “capaz de criar novos conceitos e chamar atenção para campos de
problematização e para fontes documentais até então ignorados ou
subestimados” (RAGO, 2013, p. 18), para apontar as contradições de um
discurso falocêntrico, que privilegia a mantém a lógica patriarcal.
Com elas e por elas, a narradora, agora testemunha, também aprendeu
a questionar o discurso oficial e perceber que havia na história e no discurso da

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vitória dois rostos: “um maravilhoso, outro terrível, cheio de cicatrizes,


insuportável de olhar” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 43), e ainda muitos outros
que são descobertos à medida que narra(m).

“QUERO FALAR... FALAR! DESABAFAR!”: A NARRAÇÃO EM A GUERRA NÃO


TEM ROSTO DE MULHER

A volta dos soldados que regressaram da Primeira Guerra Mundial


suscitou um texto importante de Benjamin – assim como em Freud (2010) –
Experiência e pobreza (1994), no qual o filósofo debate o declínio da experiência
e o fim da narração tradicional. Além de mudos, os combatentes não voltavam
dos fronts mais ricos, “mas mais pobres em experiências partilháveis”
(BENJAMIN, 1994a, p. 86), apesar de tudo o que viveram na guerra. A
dificuldade centrava-se no fato de que as formas tradicionais de transmissão da
experiência como conversas, conselhos, provérbios e histórias transmitidas
entre gerações não mais encontravam espaço central na partilha. Dessa
maneira, a experiência no sentido pleno, coletiva, da tradição, capaz de
construir uma conexão entre o passado e presente, Erfahrung (experiência
coletiva), estaria em vias de extinção, enquanto permaneceria apenas a Erlebnis
(experiência vivida), a qual estaria relacionada à experiência particular, ou seja,
à sociabilidade do sujeito privado, isolado. Na leitura de Jeanne Marie
Gagnebin, “a única experiência que pode ser ensinada hoje é a de sua própria
impossibilidade, da interdição da partilha, da proibição da memória e dos
rastros até na ausência do túmulo” (GAGNEBIN, 2013, p. 61), e o que se
colocaria na tarefa de retomada do passado seria a realidade do sofrimento, que
não pode ser partilhada em experiências comunicáveis ou na forma da língua.
Também em O narrador (1994b), o crítico alemão retoma a questão da
mudez dos soldados para refletir sobre o desaparecimento do narrador na
história da civilização. Para Benjamin, o narrador deveria assemelhar-se ao
narrador oral, ou seja, à sabedoria que era passada de geração em geração, mas
estas narrativas, que antes tinham grande importância, não mais existem em
um contexto de mudança econômica e de ascensão do capitalismo. A narração
passa a se constituir entre cacos. De acordo com Gagnebin, este narrador “não
quer recolher os grandes feitos, deve muito mais apanhar tudo aquilo que é
deixado de lado como algo que não tem significação, algo que parece não ter
nem importância nem sentido, algo com o que a história oficial não sabe o que
fazer” (GAGNEBIN, 2006, p. 54). Seria, portanto, o papel do narrador, bem como
do historiador (assim como as considerações feitas a partir do texto Sobre o
conceito da história), recuperar o que a tradição e a história oficial não recordam,

CRUZ, Lua Gill da. “Elas narravam como soldados. Como mulheres”: a literatura como arquivo
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de maneira a honrar os mortos e o passado, isto é, apoderar-se das


reminiscências, do inenarrável.
Em Benjamin há uma exigência da memória de “salvar os mortos” que é
dificultada exatamente pelos motivos acima citados: o declínio da experiência,
o fim da narração e da possibilidade do lembrar (GAGNEBIN, 2006, p. 54). De
acordo com Gagnebin, a solução é, portanto, buscar na rememoração a
redenção do passado. Tal tarefa pressupõe:

[...] uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo que
se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para
dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve
direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração significa uma atenção
precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado
no presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas
também agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si,
visa à transformação do presente. (GAGNEBIN, 2006, p. 55)

Qual seria, dessa maneira, uma forma de narração que se construísse


exatamente no esquecido, no recalcado, no que não teve ainda direito às
palavras, mas que deve ser elaborado? A narração, nesse sentido, parece
apontar para outra forma de elaboração de maneira que a experiência
traumática possa, ainda que sob o signo da impossibilidade, ser contada e
dividida. A busca pela forma que corresponda à metodologia de Benjamin de
“escovar a história a contrapelo” se dá, para a autora bielorrussa, a partir da
busca, como afirmei anteriormente, de uma voz que durante mais de quarenta
anos não pôde contar e dividir as experiências traumáticas.
Na sua definição mais geral e em direto diálogo com o conceito cunhado
por Freud (2010), a contemporânea Cathy Caruth define o trauma como “a
resposta a um evento ou eventos violentos inesperados ou arrebatadores, que
não são inteiramente compreendidos quando acontecem, mas retornam mais
tarde em flashbacks, pesadelos e outros fenômenos repetitivos” (CARUTH, 2000,
p. 111). O evento permanece:

Não disponível para a consciência, mas intromete-se sempre na visão – [a


repetição] sugere, portanto, uma relação maior com o evento, que se estende
para além do que pode ser visto ou conhecido e que está intrinsecamente ligado
ao atraso e à incompreensão que permanece no centro desta forma repetitiva de
visão. (CARUTH, 1996, p. 92)

A experiência traumática traz consigo um paradoxo, de acordo com a


autora: ao mesmo tempo em que apresenta uma visão direta do evento, a qual

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pode fazer com que o traumatizado não consiga compreendê-lo, essa mesma
imediatez pode gerar um atraso. O trauma é, para Caruth (1996), portanto,
muito mais do que uma patologia ou uma ferida, mas um machucado que quer
contar a sua história, que grita, mas que não consegue, pois se trata de uma
verdade não disponível, seja para quem a viveu, seja para a possibilidade de
descrição através da linguagem, essa tão restrita e resistente frente ao
irrepresentável.
A balança entre a dificuldade do contar diante do indizível, do impossível
do contexto da guerra e a sua necessidade é central nas narrações das
mulheres. Em diversos trechos e em diferentes contextos e/ou profissões, as
entrevistadas reforçam a aporia do testemunho e a intraduzibilidade do trauma.
Os relatos perpassam as dificuldades do dizer, como, por exemplo, nos
seguintes trechos de diferentes mulheres combatentes: “Por onde começar...?”
(ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 121); “Por que fiquei viva? Para quê... Eu acho... Eu
entendo que foi para contar isso...” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 132); “Quero
encontrar as palavras... Como posso me expressar?” (ALEKSIÉVITCH, 2016a,
p. 153); “Posso passar muito tempo lembrando... Sem parar... Mas o que é o
mais importante?” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 184); “Eu? Eu não quero falar...
Apesar de que... Enfim... Não é possível falar isso...” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p.
61). Diante de tantos exemplos a partir dos relatos das mulheres, a própria
autora se questiona, na introdução de um de seus capítulos: “Será que é
possível falar sobre isso? O que transmitem nossas palavras e sentimentos? E
o que é indizível?” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 263).
No capítulo “Sobre o silêncio do horror e a beleza da criação” as
entrevistadas interpelam a autora para que ela escreva sobre o que não
conseguem dizer, descrever, mensurar. Diante de uma figura que escreve pedem
que a matéria narrada se torne menos dura, mais “representável” e mais bonita.
As combatentes Anastassia Ivánovna e Anna Kaliáguina procuram
respectivamente, em algum lugar, as palavras que lhes faltam:

“Será que encontro as palavras? Sobre como eu atirava eu posso contar. Sobre
como chorava, não. Isso continuará não dito. Sei de uma coisa: na guerra, o ser
humano se torna terrível e inconcebível. Como entendê-lo? Você é escritora.
Invente algo você mesmo. Algo bonito. Sem piolhos nem sujeira, sem vômito.
Sem cheiro de vodca e sangue. Que não seja tão terrível quanto a vida”.
(ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 259)

“Não sei... Não, eu entendo o que você está perguntando, mas minha língua não é
suficiente... Minha língua... Como descrever? [...] Em algum lugar, essas palavras
existem... é preciso um poeta... Como Dante”. (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 260)

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A dificuldade da narração é também linguística, pois expressa a dupla


impossibilidade do testemunho. Por um lado, afirma Agamben (2008, p. 48), a
língua deve ceder lugar a uma não-língua, pela falta de sentido do que apresenta
e, por outro lado, é da própria lacuna da língua humana conseguir testemunhar
o que não pode ser dito em língua alguma. O dizer só pode se dar a partir da
sua impossibilidade e/ou do fragmentário
De outra parte, muitas delas queriam dizer e não tinham quem as
ouvisse. A “mulher-ouvido” aparece como a interlocução possível para que se dê
a elaboração. A narradora relata que mesmo que chorem, gritem, sofram ao
dizer, tomem remédios inclusive para lidar com processo de testemunho, ainda
assim, “pedem: ‘Volte. Volte sem falta. Ficamos em silêncio por tanto tempo.
Quarenta anos em silêncio’” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 22). Outra mulher
finalmente grita: “Quero falar... Falar! Desabafar! Finalmente querem nos
escutar também. Passamos tanto tempo caladas, até em casa. Por dezenas de
anos [...] Ninguém me escutava. Então me calei... Que bom que você veio”
(ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 63).
Entre o tempo que transcorreu sem que pudessem contar, seja porque os
maridos não quisessem ouvir, ou porque foram instruídas a esconder esse
passado, ou ainda porque não queriam mesmo lembrar, a narração oscila entre
a memória e o esquecimento, entre o escondido e o que busca espaço, entre o
que grita e o que é encoberto, porque é exatamente aí que se centra o papel da
entrevistadora arqueóloga – assim como o psicanalista, como defende Freud –
na busca pelo inconsciente, pela possibilidade de acesso, através de vestígios,
das pistas (dos arquivos).
A necessidade de inscrição perpassa também a ciência, por parte delas e
da autora, de que se modificam à medida em que narram. São três tempos que
se intercruzam: voltam-se para quem foram, quem são e quem serão, ao final do
relato. Como afirma Judith Butler (2015), o sujeito “relata a si mesmo”, em um
modo tardio da própria história que se constitui em media res, ou seja, que revê
e faz possível que essa história seja contada, agora, em linguagem. Quarenta
anos depois, nessa construção, o ‘eu’ narrativo, diz a autora, se sobrepõe ao ‘eu’
da vida passada que se conta, e tal ‘eu’ narrativo contribui efetivamente com a
história toda vez que tenta falar, de forma que o relato seja sempre “parcial,
assombrado por algo para o qual não posso conceber uma história definitiva”
(BUTLER, 2015, p. 55). Aleksiévitch narra que é testemunha do processo em
que percebem “o que não viram e não entenderam na época. Lá. Examinam a si
mesmas, se reencontram de novo. Muitas vezes já são duas pessoas [...] A
pessoa durante a guerra e a pessoa depois da guerra” (ALEKSIÉVITCH, 2016a,
p. 179). Assustam-se com quem foram, com a habilidade de lidar com aspectos
da guerra que hoje não seriam capazes, com o que viveram e que no momento
não compreenderam. Os tempos se misturam e se reorganizam a partir da

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narração. O que era esquecido, diante do testemunho, reaparece, aos poucos,


como uma memória já diferente do que fora. Uma das entrevistadas se pergunta,
ao observar as fotos do momento da guerra: “Será que sou eu mesma?”
(ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 136). A narradora interpela:

As lembranças não são um relato apaixonado ou desapaixonado de uma


realidade que desapareceu, mas um renascimento do passado, quando o tempo
se volta para trás. Antes de mais nada, é uma criação. Ao contarem, as pessoas
criam, ‘escrevem’ sua vida. Acontece inclusive de ‘acrescentarem’ e
‘reescreverem’ passagens. (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 13)

Como afirma Assman, as lembranças não nascem da vontade, ou de uma


técnica, mas aparecem em determinadas circunstâncias “camada por camada,
depositam-se uma escrita sobre a outra, em um misterioso palimpsesto do
espírito humano que faz do novo a sepultura do velho” (ASSMAN, 2011, p. 167).
A narradora percebe que há, no momento da entrevista, para além da
dificuldade do lembrar e do dizer, outro impedimento: o outro que assiste e que
julga. Diante dos maridos, familiares ou amigos que tentam controlar o relato,
especialmente homens, afirma, elas contam menos, se controlam, se
autocorrigem, pedem uma espécie de aval para o relato, “mais cauteloso em
relação do que manda o figurino” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 133). A verdade
pessoal, subjetiva é relegada à clandestinidade, ao apagamento, enquanto o que
permanece é a “verdade geral”, com o espírito e o cheiro de outros tempos e de
outras pessoas.
A negação de tal perspectiva muito tem a ver com o espaço relegado às
mulheres. Certamente a própria existência de mulheres na guerra questionava,
de forma contundente, os papéis de gênero. À medida em que as mulheres foram
para o combate, ocuparam os lugares destinados, na história, para os homens,
e deixaram de ser figurantes que apenas esperavam as figuras masculinas
voltarem para a casa. Diante de tal mudança, a própria organização e
estruturação dos exércitos tiveram de se modificar. O espaço da guerra
pertencia aos homens. A eles, os títulos, as medalhas, os grandes postos eram
dados. Mesmo o cotidiano mais banal: as roupas, inclusive íntimas, as botas, o
tamanho das armas, eram para eles estruturadas e pensadas. Ao pedir que
relatasse, uma das mulheres questiona a narradora: “E por que veio falar
comigo? Devia ir falar com meu marido, ele adora recordar” (ALEKSIÉVITCH,
2016a, p. 46). A titularidade da recordação e da narração pertence ao marido.
Durante o percurso em busca de uma entrevistada, a narradora conta de
um encontro no trem com soldados da Segunda Guerra que também se
questionavam sobre o foco escolhido: “O que foi, por acaso tem pouco homem
sobre quem escrever no seu livro?” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 117). São eles

CRUZ, Lua Gill da. “Elas narravam como soldados. Como mulheres”: a literatura como arquivo
em A guerra não tem rosto de mulher. Scripta Uniandrade, v. 15, n. 3 (2017), p. 103-125.
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também que, apesar de muito orgulhosos do trabalho e da importância das


mulheres na guerra, afirmam não conseguirem se casar com elas, suas colegas
de profissão, quando acabou a guerra.

“Quando a guerra acabou, elas ficaram terrivelmente indefesas. Minha esposa,


por exemplo, é uma mulher inteligente, mas tem uma visão negativa das
mulheres militares. [...] Depois da sujeira, depois dos piolhos, depois das
mortes... A gente queria algo bonito. Claro. Mulheres bonitas. [...] Tentávamos
esquecer a guerra. E também esquecíamos de nossas meninas”.
(ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 119)

É também nesse sentido que difere o relato das mulheres: as suas


experiências durante a guerra não correspondem àquela dos homens. O relato
da experiência perpassa o descobrimento da menstruação (e como lidar com ela
– ou com a falta dela) naquele contexto; a necessidade de se arrumarem,
cortarem os cabelos, se maquiarem; o contato e a lembrança do espaço de casa,
da família e, principalmente, da mãe; a relação com a gravidez e com os filhos
em um ambiente tão hostil; a paixão e o amor que, diferente do que se pode
imaginar, encontrou um espaço fértil para se propagar, apesar de toda a culpa;
a resistência em aspectos da vida cotidiana da guerra, e a despeito do seu não-
pertencimento inicial; a necessidade de reafirmação nas profissões tão
obviamente “masculinas”; e depois, claro, a solidão que carregam consigo
durante todos os anos de suas vidas perante o fardo da guerra e de terem sido
militares, como afirma uma delas, “agora vivo sozinha. Não tenho ninguém em
todo o mundo. Obrigada por ter vindo” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p. 293).
Ainda que este não seja o objetivo deste artigo, considero interessante
que as produções críticas sobre o livro se pautem e pensem, futuramente, sobre
a mediação entre a entrevistadora e entrevistadas e a necessidade de
questionamento de tal ato que, de alguma forma, também se estrutura a partir
da seleção dos arquivos e da leitura de um indivíduo sobre as histórias passadas
de outrem, ou seja, debater de que forma a mediação também se constitui como
uma espécie de apagamento, não só pela exclusão de material, como inclusive
do seu próprio processo de entrevista e de questionamento diante das mulheres,
o qual é majoritariamente retirado da transcrição. A própria narradora/autora
valoriza a busca de tais vozes e insere agradecimentos das mulheres diante de
sua empreitada, ao mesmo tempo em que discorre sobre a dificuldade de
escolha e de seleção, mas não problematiza o lugar daquelas – de fato –
silenciadas e a quem não se garante a publicidade no produto final da obra
literária. A posição aqui diz respeito ao valor e ao entendimento de que a
recordação e o processo de escuta e inscrição da escuta do outro carregam em
si uma força política essencial – ainda que limitados – diante de um presente

CRUZ, Lua Gill da. “Elas narravam como soldados. Como mulheres”: a literatura como arquivo
em A guerra não tem rosto de mulher. Scripta Uniandrade, v. 15, n. 3 (2017), p. 103-125.
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que se constrói como repetição do passado catastrófico. A possibilidade de uma


democratização – ainda que sutil – dos arquivos do mal se inscreve na literatura.
A escrita, como um meio de memória (ASSMAN, 2011), se mostra como uma
das possibilidades de inserção da história das minorias, essa tão negada e
apagada, em busca de um futuro diferente que se oponha à tradição e à herança
do passado, pois, assim como Benjamin e Nietzsche, Marx afirma que até o seu
momento histórico – e ouso dizer, o nosso –,

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a
fazem sob as circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se
defrontam diariamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas
as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente
quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que
jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens
conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado. (MARX, 1978, p. 329)

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LUA GILL DA CRUZ é doutoranda de Teoria e História Literária pela


Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), bolsista da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2017/06026-2,
e mestre pelo mesmo programa. Graduou-se em Letras Português/Francês e
suas respectivas literaturas pela Universidade Federal de Pelotas. Atua na área
de Literatura, com ênfase em literatura brasileira, literatura contemporânea e
literatura de testemunho. Publicou, entre outros, os artigos e capítulo "'O mal e
Alzheimer nacional': (in)justiça, história e literatura", na Revista Letrônica; "O
testemunho revisitado e literatura brasileira contemporânea", na Revista E-
scrita; e "Os silêncios na literatura pós-ditadura: a resistências das mulheres
guerrilheiras", no livro Mulheres e a literatura brasileira.

CRUZ, Lua Gill da. “Elas narravam como soldados. Como mulheres”: a literatura como arquivo
em A guerra não tem rosto de mulher. Scripta Uniandrade, v. 15, n. 3 (2017), p. 103-125.
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