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ISSN 1413-389X Trends in Psychology / Temas em Psicologia – Março 2017, Vol.

25, nº 1, 29-40
DOI: 10.9788/TP2017.1-03Pt

Modelos Teóricos em Psicossomática Psicanalítica:


Uma Revisão

Maíra Bittar Galdi1


Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho,
Bauru, SP, Brasil
Érico Bruno Viana Campos
Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho,
Bauru, SP, Brasil

Resumo
Este artigo é um estudo teórico da literatura psicanalítica sobre o tema da psicossomática que tem por
objetivo revisar os modelos de abordagem desse fenômeno buscando a compreensão de suas diferenças
e similitudes em termos de fundamentação teórica. Os resultados apontam para duas maneiras distintas
de ver as doenças psicossomáticas, ligadas a duas tradições em psicanálise. Na vertente francesa, ligada
mais ou menos diretamente à perspectiva lacaniana, cujas principais referências foram Jacques Alain-
-Miller e Pierre Marty, o fenômeno não constitui um deslocamento representacional, mas sim uma falha
nos processos de simbolização. Em uma segunda vertente, que congrega a Escola Psicossomática de
Chicago até autores franceses não lacanianos, cujas principais referências foram Joyce McDougall e
Christophe Dejours, o fenômeno psicossomático é compreendido em uma linha divergente, relacionan-
do a formação do sintoma a conflitos inconscientes que são simbolizados na doença, mas em uma forma
de simbolização mais precária em relação ao modelo da histeria. Apesar das divergências, entende-se
que há conciliação quanto aos princípios na direção do tratamento, que consiste em definir um sentido
para o sintoma, não por meio do resgate de uma fantasia inconsciente como no modelo clássico da his-
teria, e sim construindo um sentido onde não havia encadeamento histórico-narrativo.
Palavras-chave: Psicanálise, psicossomática, somatização, simbolização.

Theoretical Models in Psychosomatic Psychoanalysis: A Review

Abstract
This article is a theoretical study of the psychoanalytic literature on the subject of psychosomatic that
aims to review the approach models this phenomenon seeking to understand their differences and simi-
larities in terms of theoretical basis. The results point to two different ways of looking at psychosomatic
illnesses. In the French side, linked more or less directly to the Lacan perspective, the main references
were Jacques-Alain Miller and Pierre Marty, the phenomenon is not a representational shift, but a failure
in symbolization processes. In a second aspect, which brings together from the Psychosomatic School
of Chicago to French authors not Lacanian, the main references were Joyce McDougall and Christophe
Dejours, the psychosomatic phenomenon is understood in a divergent line, relating the formation of the

1
Endereço para correspondência: Rua Christiano Pagani, 8-51, Apto 53ª, Bairro Jardim Auri Verde, Bauru, SP,
Brasil 17047-144. Fone: (14) 3204-8979/(14)98111-6015. E-mail: mah.bg@hotmail.com
Este trabalho é fruto da pesquisa de iniciação científica “Fundamentos da Psicossomática Psicanalítica”,
desenvolvida pela primeira autora e orientada pelo segundo autor no programa de Iniciação sem Bolsa da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP (PIBIC-ISB).
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symptom the unconscious conflicts. They are symbolized in the disease, but in a more precarious form
of symbolization from the model of hysteria. Despite the differences, it is understood that no compro-
mise on the principles towards the treatment, which is to define a meaning for the symptom, not by the
rescue of an unconscious fantasy as in the classic model of hysteria, but building a sense where there
was no historical narrative thread.
Keywords: Psychoanalysis, psychosomatic, somatization, symbolization.

Modelos Teóricos en Psicosomática Psicoanalítica: Una Revisión

Resumen
Este artículo es un estudio teórico de la literatura psicoanalítica sobre el tema de psicosomática que
tiene como objetivo revisar los modelos de aproximación a este fenómeno que tratan de comprender sus
diferencias y similitudes. Los resultados apuntan a dos formas diferentes: En el lado francés, vinculado
más o menos directamente a la perspectiva Lacaniana, las referencias principales fueron Jacques-Alain
Miller y Pierre Marty, el fenómeno no es un cambio de representación, pero un fallo en los procesos de
simbolización. En un segundo aspecto, que reúne en la Escuela Psicosomática de Chicago a los autores
franceses no Lacanianos, las referencias principales fueron Joyce McDougall y Christophe Dejours, el
fenómeno psicosomático se entiende en una línea divergente, relativa a la formación del síntoma los
conflictos inconscientes Ellos están simbolizadas en la enfermedad, pero en una forma más precaria del
modelo de la histeria. A pesar de las diferencias, se entiende que hay compromiso en los principios hacia
el tratamiento, que consiste en definir un significado para el síntoma, no por el rescate de una fantasía
inconsciente como en el modelo clásico de la histeria, pero la construcción de un sentido en que no había
ningún hilo narrativo histórico.
Palabras clave: Psicoanálisis, psicosomática, somatización, simbolización.

No século XIX, o surgimento dos casos de que fogem totalmente à consciência, e é por meio
histeria fez emergir questões capciosas para o dessas leis que Freud desvendou o mecanismo
projeto da medicina científica e naturalista. Em conversivo que havia por trás dos sintomas his-
um contexto histórico onde a razão e o culto à téricos. A conversão foi descrita por Freud como
consciência imperavam, os sintomas como pa- um mecanismo inconsciente, presente na matriz
ralisias e inibições que não tinham seu corres- clínica da neurose histérica, em que a pulsão
pondente orgânico intrigavam e se colocavam ligada a uma ideia é recalcada e convertida em
como um desafio para a época, o que permitiu representantes ideativos do próprio corpo. Mas
que outras ciências, que não se encerravam na não se trata, aqui, do corpo biológico, e sim do
lógica positivista, lançassem as diretrizes de um corpo erógeno, dotado de uma anatomia imagi-
arcabouço teórico que pudesse dar conta dessa nária, que subverte o corpo real, de tal forma que
realidade. Nesse sentido, no contexto dos estu- a ordem erógena se constitui como um duplo da
dos sobre a histeria de Freud e Breuer (1895), ordem biológica a partir da superfície corporal
o conceito de Inconsciente vai sendo delineado, (Leclaire, 1979/1992). O corpo erógeno é aquele
bem como as técnicas e os métodos que permi- que tem, em sua anatomia imaginária, fantasias
tem sua investigação, levando à composição de sexuais específicas que, de alguma maneira, es-
uma nova ciência: a Psicanálise, constituída por tão interligadas a um órgão correspondente. É,
um objeto e um método específicos. portanto, um corpo desejante, que supera o de-
Inicialmente investigado através da técnica terminismo biológico: os órgãos não são utili-
da hipnose, o Inconsciente foi descoberto como zados somente para satisfazer as necessidades
possuindo suas próprias leis de funcionamento de sobrevivência, como ocorre com os animais,
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mas também satisfazem, expressam e evocam outra vertente considera apenas alguns tipos de
desejos, e é nisso que o homem se diferencia dos doenças sendo psicossomáticas, o que retoma as
animais: ele tem pulsões e não instintos. discussões dualistas – já que, sob essa perspec-
Porém, o corpo erógeno não nasce com o tiva, existem doenças que englobam a psique e
ser humano. Para que ele exista e se desenvolva outras não (Mello & Burd, 2010). Com relação
é necessário um outro alguém que o invista se- a esta última vertente, vemos que mesmo com
xualmente, ou seja, que deseje, que imagine uma a ruptura com a medicina na qual a Psicanálise
história, que direcione seu olhar para o corpo. surgiu, em alguns aspectos elas ainda se aproxi-
Todo esse processo não é simples - vai desde a mam, tal como a descrição e categorização des-
etapa do narcisismo primário até as etapas poste- sas doenças correlacionando-as com conflitos
riores de construção da sexualidade – e sempre, inconscientes específicos realizada pela Escola
por alguns infortúnios da vida a que todos estão de Chicago (Casetto, 2006).
sujeitos, pode ser interrompido, se desorganizar Dessa forma, o limite tênue entre processos
ou regredir para fases anteriores do desenvolvi- fisiológicos e psicológicos é novamente proble-
mento. O corpo erógeno também é passível de matizado com a reinserção da psicanálise nas
falhas. O investimento libidinal nele nunca é questões do real do corpo. Dessa investigação
uniforme: pode-se investir demais em uma re- surge a noção de que, para além das fantasias que
gião – como na histeria - ou falhar em outra – são simbolizadas em uma anatomia imaginária,
como se supõe que aconteça no fenômeno psi- o corpo biológico também pode servir de escoa-
cossomático – e essa questão também é fruto de douro para fantasias não nomeadas e até mesmo
algumas divergências teóricas no campo. de suporte para simbolizações precárias, ou seja,
Sendo assim, a psicanálise, em sua desco- modalidades mais arcaicas de representação do
berta e na investigação do mecanismo de conver- que aquelas consideradas no modelo neurótico
são abalou os pilares do racionalismo cartesiano, clássico. No entanto, as diferentes vertentes das
rompendo definitivamente com a medicina com escolas psicanalíticas se dividem quanto à natu-
a introdução do conceito de corpo erógeno, inau- reza específica desse fenômeno, trazendo con-
gurando uma nova forma de saber: o Inconscien- vergências e divergências entre si.
te. É por essa razão que falar em Psicossomática Os principais pontos de discussão residem
em Psicanálise revela-se uma questão espinho- nas elucidações sobre uma entidade clínica pre-
sa. Como teorizar sobre aquilo que ela própria sente ou não nos casos dos fenômenos psicosso-
negou, em sua origem, como campo de saber? máticos, a inexistência ou não de uma articula-
Ao mesmo tempo em que essa negação do corpo ção simbólica na doença e, por fim, a dificuldade
real a definiu em sua ruptura com o positivismo, com que a psicanálise se encontra, até os dias
agora a divide e se coloca enquanto desafio con- atuais, de descrever metapsicologicamente esse
temporâneo – visto que, atualmente, o mal estar tipo de fenômeno. Para tanto, serão estudados
psíquico tem suas mais variadas expressões no alguns dos principais teóricos envolvidos nessa
corpo biológico. problemática: Franz Alexander - líder da Esco-
Mas o que é a Psicossomática? Também la Psicossomática de Chicago, Pierre Marty - do
essa questão se apresenta de forma difusa. Mes- Instituto de Psicossomática de Paris (IPSO), Ja-
mo na medicina vemos divergências quanto a cques Alain Miller, Joyce McDougall e Christo-
sua definição. Uma vertente da medicina de in- phe Dejours.
fluência hipocrática tem na psicossomática uma
filosofia, uma visão de homem e de mundo no Caracterização
qual corpo e mente não se dividem. Tudo abran-
ge Psiquê e Soma, ou seja, tanto a saúde como A psicanálise, no geral, considera doença
a doença fazem parte de processos mentais e psicossomática todo fenômeno que não se res-
somáticos que são unificados e que formam a tringe apenas às explicações biológicas médicas,
totalidade que é o ser humano. Por outro lado, mas que insiste em aparecer, permanecer e que
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também não se enquadra nos sintomas de neu- de apatia, aumentando a frequência de doenças e
roses clássicas. É um diagnóstico, portanto, por acidentes psicossomáticos.
exclusão, e também por isso que surgiram tantos Na última fase de sua obra, Marty de preo-
rumores - principalmente de autores próximos a cupou em formular uma classificação nosoló-
Lacan - se não estaríamos diante de uma nova gica da psicossomática, segundo categorias
matriz clínica que não as clássicas neuroses, psi- diferentes com relação à capacidade de mentali-
coses e perversões. zação. Elas seriam mais inferiores em relação à
Desse grupo de pensadores, Pierre Marty é capacidade de simbolização que os neuróticos,
o mais representativo dessa linha de pensamen- psicóticos e perversos: “Inicialmente chamou-
to. Líder do Instituto de Psicossomática de Paris -as de neurose de comportamento e neuroses de
(IPSO), sua obra se divide em, basicamente, três caráter, e depois subdividiu as últimas em neu-
períodos. No primeiro, mais biologicista, des- rose mal mentalizada, neurose de mentalização
crevendo o processo de desorganização psicos- incerta e neuroses bem mentalizadas” (Casetto,
somática como resultado de uma tensão entre os 2006, p. 12).
Instintos de Vida e os Instintos de Morte. Estes Talvez por uma influência de sua fase bio-
teriam uma fonte somática, e a morte não era o logicista, Vieira (1997) aponta que, para Marty,
fim, mas sim a consequência desse desequilíbrio a doença psicossomática não tem o papel que a
biológico, diferentemente do que afirmavam os pulsão de morte tem para Freud, pois seu ob-
lacanianos e os outros membros do instituto. jetivo final não é a morte, pelo contrário: pode
Sendo assim, as desorganizações atingiam, pri- ser uma defesa que, impedindo desorganizações
meiro, as áreas do corpo erógeno, com o intui- mais severas, opera para assegurar a integridade
to de proteger o corpo contra desorganizações do organismo. Pouco a pouco, os conceitos de
maiores, até que o psiquismo se reestabeleça. mentalização e pensamento operatório foram
Caso a desorganização seja mais grave, o cor- se sobrepujando em relação a outros aspectos
po essencialmente biológico também é atingido, teóricos de sua jornada - como os conceitos de
podendo causar a morte. O psiquismo, segundo depressão essencial - e até mesmo sobre a fase
ele, é evolutivamente mais recente que os pontos mais voltada para a descrição biologicistas. Sua
somáticos (Casetto, 2006), e, por isso mesmo, contribuição teórica é bastante marcada pelo
o primeiro a ser atingido na decorrência de um destaque na carência de simbolizações do psi-
trauma. quismo nos pacientes psicossomáticos, e esse
A segunda parte de seu trabalho foi voltada aspecto será retomado, aprofundado e problema-
para uma construção teórica mais psicanalítica, tizado por todos os outros autores posteriores.
com a introdução dos conceitos chaves de sua Outra grande vertente na Psicossomática
obra: mentalização, pensamento operatório e Psicanalítica foi a Escola de Chicago, lidera-
depressão essencial. Para ele, uma baixa capaci- da por Franz Alexander. Ela limita as doenças
dade de mentalização, ou seja, de metabolização psicossomáticas em sete perturbações clássicas:
de traumas através dos símbolos, leva o sujeito asma brônquica, úlcera gástrica, artrite reuma-
à chamada depressão essencial. A depressão es- toide, retocolite ulcerativa, dermatoses, tireoto-
sencial é caracterizada por uma depressão sem xicoses e hipertensão. Diferentemente do que
objeto específico, muito diferente do luto, por ocorre com a histeria, Volich (2000) aponta que
exemplo, que geralmente tem o componente da Alexander não considera o fenômeno como uma
perda do objeto com seu desinvestimento libi- solução de compromisso, ou seja, o fenômeno
dinal conseguinte. A desvitalização psíquica da não é uma tentativa de cura e solução do confli-
depressão essencial não tem seu correspondente to psíquico. Para ele, Alexander desenvolveu a
no investimento em pensamentos suicidas ou de- noção de constelação psicodinâmica específica
preciadores - como ocorre nos casos de depres- para tentar explicar a origem da doença. Nela,
são clássica. Há um desinvestimento maciço em propõe que certos conflitos internos estão direta-
tudo, não se tratando tanto de tristeza, mas sim mente relacionados a reações emocionais especí-
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ficas, cada uma correspondendo a cada conflito, O fenômeno não está inserido em uma es-
embora a relação estabelecida entre as emoções trutura de linguagem, mas também não está
e as doenças não seja causal. completamente fora dela, caracterizando-se por
Essas duas grandes escolas desempenha- um fenômeno limite. Isso quer dizer que, embo-
ram um papel muito importante, tanto na práti- ra haja alguns aspectos da linguagem presente,
ca como na construção de uma teoria psicana- seus mecanismos de formação ainda não são
lítica sobre as doenças psicossomáticas. Foram claros para ele, por pertencerem a uma simbo-
elas que construíram um corpo teórico no qual lização muito mais arcaica, fora do campo das
os psicanalistas posteriores se apoiaram, modi- neuroses. Embora Miller reconhecesse que o fe-
ficaram e problematizaram essas construções, nômeno não esteja restrito somente a um tipo de
contribuindo para o avanço dos conhecimentos personalidade, isso não obteve muito destaque
nesse assunto relativamente recente. Em discus- em sua concepção teórica, que foi inteiramente
sões posteriores, encontramos importantes refe- desenvolvida sob a noção de uma estruturação
renciais teóricos em Jacques-Alain Miller, Joyce psíquica específica que, por apresentar dificul-
McDougall e Christophe Dejours. dades nos processos simbólicos, apresentava a
Até então, as construções teóricas sobre a somatização como consequência.
psicossomática psicanalítica não consideravam Não houve maiores esclarecimentos sobre o
a possibilidade do desenvolvimento de doenças que pode levar a uma saída psicossomática, psi-
psicossomáticas em outras estruturas subjeti- cótica ou autista, visto que, para Miller (1987),
vas que não as que funcionam no modo opera- essas estruturas são muito próximas. Além dis-
tório. Sobre esse ponto, Miller (1987) chega a so, não fica explicito o porquê de uma falha na
considerar a existência do fenômeno em outras simbolização em alguma área circunscrita não
estruturas subjetivas, porém, não deixa de teori- pode ter o retorno em delírio ou uma passagem
zar sobre uma possível subjetivação própria do ao ato. O que é percebido é que esses fenômenos
psicossomático. apresentam muita semelhança com as psicoses,
Segundo esse autor, o psicossomático pode tanto em seus mecanismos, quanto na estrutura
ser uma estruturação muito primitiva, próxima familiar. A carência de simbolização, o fato de
da psicose e da debilidade mental. Ele deixa não ter sido idealizado e representado por um
muito evidente a relação de oposição do fenô- significante pelos pais, são comuns a essas duas
meno psicossomático ao sintoma histérico. A estruturas, resultando em uma lacuna nas repos-
diferença que se dá, precisamente, reside no fato tas que poderiam existir sobre a escolha por uma
de que, diferentemente do que ocorre no fenô- saída ou outra.
meno, o sintoma conversivo não incide no cor- Joyce McDougall, de certa forma, supera
po real (biológico), mas sim no corpo erógeno essas elucidações teóricas, ao reconhecer que
(imaginário). O sintoma, segundo ele, reside no não existe uma estrutura subjetiva própria dos
campo das neuroses, obedecendo a uma estru- fenômenos psicossomáticos. Além disso, em
tura de linguagem subjacente, que opera através seu livro Teatros do Corpo (McDougall, 1996)
dos processos da metáfora e do deslocamento, a autora aborda a somatização como todo tipo
sendo, portanto, carregado de significados in- de passagem ao ato, que inclui o uso de substân-
conscientes, o que, segundo ele, não ocorre nos cias, o aumento da vulnerabilidade aos acidentes
fenômenos psicossomáticos. corporais e as falhas do sistema imunológico.
Certamente, é crucial, essencial, distinguir Para denominar esse mecanismo muito fre-
o sintoma, especialmente o histérico, e o fe- quentes nos somatizadores, no qual o afeto não
nômeno psicossomático, precisamente nisso é pensado, McDougall (1996) criou o termo de-
que esta relação ao Outro é constitutiva do safetação. O afeto é um conceito limite, assim
sintoma histérico, o que de nenhum modo é como é o de pulsão, estando entre o somático e
o caso do fenômeno psicossomático, se ele o psíquico. O estado de desafetação consiste, ba-
existe. (Miller, 1987, p. 89) sicamente, em uma incapacidade de refletir so-
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bre as emoções vividas intensamente. O fato de mites corporais. Esses medos primitivos deixam
essas pessoas vivenciarem emoções fortes não em qualquer indivíduo vestígios psíquicos que
é tão prejudicado, embora haja constantemente estão ligados aos temores de todo bebê, que são,
uma tentativa de fuga dessas vivências. Mas a em grande parte, resolvidos na fase fálico-edi-
capacidade de nomeação, diferenciação e refle- piana. Mas quando não resolvidas e a angústia
xão sobre seus estados afetivos mais intensos é psicótica domina o quadro clínico, não estamos
quase nula. Além da projeção dos afetos, a desa- mais diante de uma problemática histérica, em-
fetação consiste em um mecanismo que também bora os pacientes somatizadores também não
projeta a representação para o exterior. Nesse sejam psicóticos. “Talvez estejamos na posição
ponto, McDougall afirma um novo destino para de perguntar-nos se muitas organizações neuró-
os afetos, o repúdio para fora do ego, a acrescen- ticas, histéricas e obsessivas não são, no fundo,
tar nos três já existentes (deslocamento, conver- construídas a partir de um núcleo psicótico”
são, transformação em angústia). Ao afeto que (McDougall, 1996, p. 21).
foi ejetado em sua parte psíquica, resta somente Muito se fala, nos textos revisados, sobre
se exprimir através de sua dimensão orgânica, a etiologia das doenças psicossomáticas. Joyce
como na primeira infância, reduzindo, assim, a McDougall, nesse ponto, não difere muito com
mensagem do psiquismo a um funcionamento relação aos outros autores. A organização fami-
não verbal. liar agressiva e sua consequente pobreza mental
À primeira vista, há algumas semelhanças que abrem caminho para uma doença são fato-
com o pensamento operatório descrito pelo Ins- res citados em praticamente todas as obras. Mas
tituto de Psicossomática de Paris, principalmen- pouco é dito sobre os mecanismos metapsicoló-
te com relação a ruptura do sistema consciente/ gicos existentes nela. Apesar de a autora ter cria-
inconsciente, resultando em um funcionamento do um novo conceito, o da desafetação, pouco se
psíquico pragmático e muito concreto. Porém, entende sobre sua especificidade. A desafetação
no caso do pensamento operatório, há também - se definindo pelo repúdio para fora do ego -
uma incapacidade de vivenciar essas emoções, o é um mecanismo semelhante ao dos psicóticos,
que pode ocorrer na desafetação, mas não cons- que utilizam a foraclusão – termo utilizado pela
titui necessariamente uma regra. escola lacaniana - ou a projeção – termo próprio
Há certa semelhança entre os mecanismos da escola inglesa. A autora ressalta a dimensão
de desafetação, foraclusão e projeção, visto que afetiva que é repudiada, talvez essa seja a dife-
são mecanismos brutais de extirpação de afetos rença com relação á foraclusão, que ejeta somen-
e representações. As diferenças residem no fato te a representação, sem a carga afetiva. Pouco
de que na projeção, o conteúdo de uma pulsão é é dito, também, sobre a formação da doença a
suprimida e deformada, retornando ao conscien- partir desse mecanismo, somente uma passagem
te como uma representação ligada a um objeto breve que afirma que quando a dimensão psíqui-
externo. Na desafetação é o afeto que é repu- ca do afeto é repudiada, a dimensão orgânica se
diado, sem retorno sobre um objeto externo ou expressa. Além disso, ela afirma que a desafe-
alucinatório. Seu destino é ser escoado pela via tação não tem um retorno em forma de delírio,
somática. Na projeção, portanto, a representação como tem a foraclusão ou a projeção. Se, na de-
não é totalmente lançada para fora do psiquismo, safetação, toda cadeia representativa é destruída,
já que algumas representações permanecem no como explicar seu retorno no corpo sob uma for-
objeto externo. Na desafetação toda cadeia re- ma precária de simbolização? Também perdura,
presentativa é excluída, sem retorno. aqui, a questão do porque o retorno não se dar
Quanto às angústias dominantes no quadro em forma de delírio.
das doenças psicossomáticas, essas estão muito Sobre os elementos que poderiam ser utili-
mais próximas das angústias psicóticas do que zados na construção de um sentido, pouco tam-
das histéricas. Basicamente, se referem á perda bém é dito. Sabemos que ele não se configura em
da identidade individual, sexual e à perda dos li- uma simbolização como ocorre na histeria, pois
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é muito mais arcaico, mas não sabemos do que A agressividade que não pôde ser represen-
dispomos para desvendá-lo. Sobre esse ponto, o tada ocorre a partir da clivagem do inconsciente
próximo autor acrescenta contribuições teóricas em inconsciente primário/secundário. O autor
muito importantes, se atendo na importância da retoma a hipótese freudiana, a de que o incons-
dimensão agressiva não representada presente ciente também é constituído por traços filoge-
na somatização, através de um mecanismo se- néticos, considerando o inconsciente primário
melhante, que ele denominou de clivagem do in- como sede dos traços herdados. Já o inconscien-
consciente. Além disso, o autor procura explicar te secundário, por sua vez, é aquele ligado às
e oferecer uma solução para as indagações que representações simbólicas. A pulsão de morte,
não foram respondidas pelos autores anteriores, portanto, impedida de ser representada pelo pré-
sobre a questão do elemento que diferiria entre -consciente, opera de forma destrutiva no corpo
uma saída psicossomática ou psicótica, baseado orgânico, através das doenças psicossomáticas.
na observação das diferenças entre os pais dos Dessa forma, o sujeito permanece desconheci-
psicóticos e os dos somatizadores. Porém, antes, do de sua própria violência. Buscando preservar
é necessário explicar alguns conceitos básicos de a aparente normalidade no vínculo social, essa
sua teoria, como sua própria definição de doen- violência não é atuada, mas sim dirigida contra
ças psicossomáticas, a noção de subversão libi- o próprio sujeito, que desfere um golpe incons-
dinal e de construção do corpo erógeno. ciente contra o próprio corpo em forma de so-
Dejours (1991) ressalta que, em sua con- matização. Dejours (1991) sugere que a própria
cepção, se existe um dualismo presente é aquele somatização pode ser simbolizadora de algum
entre o corpo erógeno e o corpo fisiológico, não aspecto perdido da história dessas pessoas. Essa
a partir de uma relação de oposição, mas sim é mais uma inovação no campo da psicossomá-
de superação do segundo sobre o primeiro. No tica psicanalítica, pois, até agora, nenhum autor
entanto, a construção do corpo erógeno nunca é havia citado a possibilidade de ver a somatiza-
completamente bem-sucedida, podendo ocorrer ção como um elemento facilitador que faz de-
falhas na convocação de algum órgão, ou tam- senrolar o processo da análise. A violência do
bém do desapoio da pulsão de alguma área, a analisando não é expressa concretamente. De
partir de algum traumatismo ocorrido na vida do forma mais sutil, ela é percebida mais no âm-
sujeito. É assim que a questão da escolha de ór- bito negativo: faltam palavras que signifiquem
gão é tratada: as áreas corporais que não foram suas experiências emocionais em seu discurso,
suficientemente subvertidas são facilmente atin- bem como expressões corporais e faciais mais
gidas nas somatizações. espontâneas e autênticas. Outro mecanismo de
Apesar da semelhança com a teoria de La- defesa é proposto na tentativa de explicar o pro-
can, no que se refere à questão da escolha de cesso de somatização: o de repressão dos afetos
órgão, há divergências entre as opiniões com re- agressivos. Esse mecanismo procura eliminar os
lação à origem da pulsão. Para Dejours (1991), afetos desde sua fonte, que, segundo o autor, é
a pulsão provém de uma fonte biológica, inata, biológica. Ele se diferencia do mecanismo do re-
enquanto que, para Lacan – e para os autores calcamento porque este opera somente sobre as
pós-lacanianos – a pulsão provém da linguagem, representações, em nível pré-consciente/incons-
mais especificamente de significantes que a mãe ciente, impedindo que as representações recal-
insere no bebê em seus primeiros meses de vida. cadas ultrapassem a barreira do inconsciente até
Após essa abordagem inicial sobre os pre- o pré-consciente. O consciente perde totalmente
ceitos básicos que orientam sua teoria, algumas o contato com o conteúdo recalcado, enquanto
questões mais específicas sobre a problemática que, na repressão, a representação aparece, por
das somatizações serão abordadas, como a ter- vezes, intacta ao consciente, podendo sumir logo
ceira tópica - ou tópica da clivagem – e a di- em seguida. Diferentemente do recalcamento, a
mensão agressiva não representada como a pro- repressão opera a nível consciente/pré-conscien-
blemática central das doenças psicossomáticas. te. Ela se opõe mais especificamente contra o
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desenvolvimento do afeto e não de elementos re- se dar nas áreas viscerais - como ocorre com
presentacionais. Portanto, vemos que o recalque as doenças psicossomáticas - se dá no cérebro,
opera mais a nível psíquico das representações, comprometendo as áreas referentes à cognição
enquanto que a repressão em um nível mais afe- e à linguagem, que são as funções mais compro-
tivo e corporal. metidas nos psicóticos.
A partir disso, o autor declara que interpre- Dejours (1991) e McDougall (1996) já ofe-
tar um sintoma psicossomático se trata, efetiva- recem um maior avanço na técnica, no sentido
mente, de interpretar a pulsão de morte. Esse é de que um trabalho interpretativo é arriscado,
um processo que procura vincular a pulsão de sendo, por isso, mais operativo, embora Dejours
morte com a pulsão de vida, esvaziando seu po- (1991) também considere a relevância da tera-
tencial traumático. As somatizações simboliza- pêutica de Marty, procedimento do qual deno-
doras devem ser identificadas, segundo o autor, minou pára-excitação. A escolha entre os dois
eliminando a hipótese de depressão essencial. procedimentos terapêuticos, segundo ele, de-
Portanto, ele considera toda a proposição teórica pende da disposição do analisando de enfrentar
do Instituto de Paris, mas faz uma diferenciação sua verdade. Do ponto de vista clínico, Dejours
entre os tipos de somatização: as desorganiza- (1991) oferece uma inovação, ao constatar que
ções progressivas são diferentes das somatiza- as somatizações ocorrem também em estruturas
ções simbolizadoras. Nas primeiras, a violência neuróticas de personalidade. No que se refere à
é parcialmente inibida, ao passo que na segunda, técnica, o autor também insere uma nova propo-
é reprimida maciçamente. O que é observado, sição, a de que as somatizações devem ser inter-
então, é que algumas somatizações abrem ca- pretadas através de seus conteúdos agressivos e
minho para revelar um conflito ou uma parte da mortíferos. Para ele, portanto, um sentido subja-
história do sujeito que permanecia oculta, a qual cente à doença pode ser desvendado, procurando
ele não entrava em contato, por ser uma história ligar a dimensão traumática da pulsão de morte
traumática. A partir disso, observava-se que o à libido.
decurso da análise, antes aparentemente conge-
lado, começava a se desenrolar, o que permite Discussão
também evocar a noção de “facilitação psicos-
somática” (Dejours, 1991, p. 28). Apesar de haver algumas divergências te-
As semelhanças encontradas com as rela- óricas, como já constatado, as opiniões acerca
ções mãe/bebê dos psicóticos também são mui- dos fenômenos psicossomáticos seguem certo
tas. Dejours (1991) ressalta que a diferença resi- padrão, no que se refere às características dos
de no fato de que os pais do psicótico procuram pacientes que apresentam esse tipo de problemá-
desviar os pensamentos dos filhos, criando um tica. Há consenso com relação à incapacidade de
pensamento alienado, não original. Os pais do simbolização presente nesses quadros clínicos,
psicossomático, entretanto, procuram destruir embora as teorias tenham seguido um movi-
qualquer tipo de pensamento que ele possa vir a mento de, no início, considerar a falta de sim-
ter, principalmente os de cunho sexual. Mas não bolização como sendo estruturante nesses casos,
é somente nesse aspecto que, na teoria de De- se desdobrando para a noção de que a essa falta
jours, essas psicopatologias passam a ser próxi- não é estruturante, mas sim circunscrita a alguns
mas: ele propõe uma hipótese de que as doenças pontos do discurso. Também perdura, de ma-
mentais, em especial as psicoses, sejam agrega- neira geral, a concordância com relação à falta
das às doenças psicossomáticas. Nesse ponto, o de afetividade, as referências à ausência de vida
autor leva em conta as descobertas das neuroci- onírica e fantasmática, além de uma extrema
ências, segundo a qual essas funções dependem concretude de pensamentos, concomitantemente
da montagem hereditária do sistema nervoso. a um estilo de vida extremamente pragmático.
Dessa forma, é pensado também que, no caso Todos esses fatores são elencados e denomina-
das psicoses, o desapoio da pulsão, ao invés de dos, pelos membros do Instituto de Psicossomá-
Modelos Teóricos em Psicossomática Psicanalítica: Uma Revisão. 37

tica de Paris, de pensamento operatório, na Es- portante exercido pelos pais na libidinização das
cola Psicossomática de Chicago, de Alexitimia, e áreas corporais, que, segundo ele, pode ser deci-
Joyce McDougall utiliza o mecanismo defensivo sivo entre uma eclosão psicótica ou uma eclosão
da desafetação para designar esses elementos ca- psicossomática.
racterísticos. Dejours não chega a criar um novo Com relação às discussões sobre a atribui-
conceito para denominar essas características da ção de um sentido simbólico sobre a doença e so-
personalidade, sendo que a ênfase de sua teoria bre os mecanismos metapsicológicos envolvidos
recai na hipótese da clivagem do inconsciente e nela, alguns avanços também foram alcançados
na dimensão da agressividade não representada. no desenrolar das teorias, como a construção de
Contudo, as incursões teóricas de autores pós um sentido sobre a doença, o que também ofere-
Lacanianos, como Miller, apontam para a con- ce um avanço na prática clínica - que se mostra,
sideração de outros mecanismos defensivos que dessa maneira, um pouco mais operativa. Além
possam coexistir com o de foraclusão, dando a disso, algumas descobertas importantes sobre a
ideia de que a foraclusão do Nome-do-Pai não dimensão agressiva presente nessa problemática
instaura a lógica geral de simbolização nos ca- possibilitou com que fossem criadas tentativas
sos psicossomáticos, como ocorre nos psicóti- mais esclarecedoras da metapsicologia envolvi-
cos, mas sim é um mecanismo circunscrito, que da no caso das somatizações, fato que é verifica-
pode coexistir com o recalque, a denegação, etc. do na proposição da terceira tópica de Dejours.
No entanto, ainda assim um perfil do paciente Sendo assim, apesar de, no início, a relação
psicossomático é mantido e este se encontra entre a incapacidade de simbolização e a eclosão
muito próximo do perfil do psicótico, o que pa- de uma doença corporal ter sido abordada de for-
rece permanecer uma opinião contraditória com ma mais direta, progressivamente foi observado
o restante da teoria, ou, ainda, que faltam mais a presença de mais elementos metapsicológicos
elementos teóricos para se pensar na ocorrência envolvidos nas somatizações - como o mecanis-
das somatizações no âmbito das subjetividades mo de desafetação e de clivagem das imagos, de
bem mentalizadas. As ideias de McDougall ca- McDougall, e da tópica da clivagem e da repres-
minham para a aproximação da psicossomática são da agressividade, de Dejours - que, de certa
com a histeria, concordando com a dimensão forma, problematizaram uma questão que apa-
simbólica, mas mais arcaica do que o sintoma, rentemente se apresentava de forma um pouco
que o fenômeno oferece. mais simplificada e direta.
A aproximação da psicossomática com a Com relação ao caminho percorrido pelas
psicose também é realizada por Dejours, mas discussões sobre o sentido do fenômeno psicos-
com a diferença de que, nesse caso, há a pro- somático, vemos que as discussões iniciais clás-
posição de tratar as doenças conhecidas como sicas da psicanálise, realizadas pelos membros
“mentais” em nossos dias atuais como doenças do Instituto de Psicossomática de Paris, cami-
psicossomáticas também, onde haveria o desa- nharam para questionar se o fenômeno chegaria
poio da pulsão, e, dessa forma, a vulnerabilidade a abarcar a estrutura de linguagem. Apesar dessa
para a pulsão de morte. Isso explicaria o porquê opinião também parecer ser a posição tomada
dos psicóticos e autistas serem prejudicados nas por Lacan, Miller não conclui a questão, oscilan-
funções de linguagem e cognição, enquanto que do entre as posições de afirmação da inexistência
seu sistema imunológico permanece extrema- de qualquer elemento simbólico contido nela ou
mente forte. Dejours oferece uma pista para uma admitindo a possibilidade de alguma inserção
melhor compreensão acerca das diferenças en- na linguagem, o que abriria a possibilidade para
contradas na saída psicótica e na psicossomática. classificá-lo como um fenômeno de borda, ou
Apesar das semelhanças elencadas entre ambas, seja, que está nos limites do universo simbólico.
vemos que existe a diferença com relação aos Entre os autores franceses, é apenas com a
destinos dos pensamentos dos pacientes na pri- introdução das ideias de Dejours que uma cons-
meira infância. Também é notável o papel im- trução de sentido sobre a lesão é proposta, mas,
38 Galdi, M. B., Campos, E. B. V.

diferentemente do sintoma histérico, que é inter- ceito limite de pulsão, ela se apegou muito mais
pretado através das fantasias eróticas recalcadas a teorizar sobre mecanismos psíquicos, care-
do sujeito, o fenômeno psicossomático deve ser cendo de explicações quando se depara com um
interpretado a partir das pulsões agressivas re- fenômeno tanto biológico quanto psíquico. Essa
primidas. No entanto, Dejours não é considerado dificuldade já foi apontada por Birman (2001)
um autor estritamente pós-lacaniano, permane- que considera que esse fato, muito mais do que
cendo desconhecidas as posições tomadas por ser traduzido por uma insuficiência teórica, foi
estes na atualidade. Já McDougall realiza uma estabelecido por um pacto entre a psicanálise e
aproximação com as ideias de Dejours, refor- a medicina, operando uma separação entre as
çando que a somatização se trata de uma história questões do psiquismo, que deve ser investiga-
oculta da vida do sujeito, que foi impossibilitada das pela primeira, e as questões do corpo, res-
de ser representada para ele próprio e para al- tritas somente à segunda. Essa cisão ocorreu na
guém. Por isso a necessidade de (re)construção emergência da psicanálise e seu questionamento
dessa história perdida, que daria sentido à so- das ciências positivistas, e deve ser revista nos
matização. Ainda assim, apesar de haver esses dias atuais, através de uma demanda da própria
avanços tanto no âmbito teórico quanto no clí- realidade psicossomática que vem aumentando
nico, as simbolizações dos fenômenos psicosso- nas clínicas.
máticos são muito mais arcaicas que as de um Por fim, há a necessidade, também, da con-
sintoma histérico, permanecendo uma certa difi- sideração de outros aspectos constitutivos do
culdade em seu desvendamento. fenômeno psicossomático que não apenas os
Sobre o movimento percorrido das cons- genéticos, inconscientes e aqueles construídos a
truções teóricas acerca de um sentido, Casetto partir das relações primitivas com os pais. Isso
(2006) observa: se refere a uma maior busca por respostas no âm-
. . . colocando-se estas diferenças em pers- bito da vida social dos sujeitos, pois, se as doen-
pectiva no tempo, detecta-se o que parece ças psicossomáticas vêm aumentando nos dias
ser um certo movimento (dialético): a soma- atuais, não haveria, na nossa sociedade contem-
tização transita de um modelo mais estrita- porânea, elementos presentes nos quais estariam
mente conversivo para a sua negação, e em contribuindo para um aumento do mal-estar psí-
seguida para um terceiro estado em que se quico expresso através do corpo?
apresenta como um horizonte de significa- A discussão se amplia para uma observação
ções ainda irrealizado. (p. 17) do próprio funcionamento de nossa sociedade
Apesar desses avanços no percurso trilha- atual, na qual as relações de trabalho refletiriam
do, uma teoria que explique todos os mecanis- apenas um aspecto de seu funcionamento. Os
mos metapsicológicos por trás das somatizações valores difundidos pelos meios sociais como o
ainda não foi alcançada. Talvez essa dificuldade individualismo, o consumismo e a competição
advenha da própria problemática – que se reve- estariam contribuindo para a construção de iden-
la em casos difíceis pela extrema neutralização tidades fragmentadas, despersonalizadas:
com que esses pacientes se apresentam na clíni- A questão seria: será que a sociedade ca-
ca – mas, ainda mais do que esse fato, sobrevém pitalista contemporânea, com seus valores
a constatação de que a doença psicossomática é supremos atrelados ao consumo, não estaria
um fenômeno que abarca tanto a dimensão bio- produzindo uma espécie de despersonaliza-
lógica quanto psíquica, sendo necessário, por ção que viria à reboque do fenômeno de mas-
isso, rever nossas concepções acerca da nature- sificação? Vivemos em uma cultura cujos
za da mente e do corpo, bem como o modo de imperativos favorecem o aparecimento da
interação que se dá entre essas duas instâncias. doença normótica? Fica aqui uma hipótese
Isso ficou muito claro na obra de Dejours a par- mais ampla, a ser trabalhada em outro mo-
tir de seu conceito de subversão libidinal, mas mento, de que o estilo de vida fragmentário
embora a psicanálise tenha inovado com o con- que nos oferece a sociedade contemporânea,
Modelos Teóricos em Psicossomática Psicanalítica: Uma Revisão. 39

afinal, em nada favorece aquilo que se pode bolização não é ausente, como é nos psicóticos,
chamar de uma boa mentalização. (Ferraz, mas também é de ordem mais arcaica do que
1997, p. 172) ocorre com os neuróticos.
Esse é um debate interessante e necessário Apesar de Dejours e McDougall terem re-
para a psicanálise, que oferece a possibilidade de conhecido o fenômeno para além desse tipo de
pensar a construção da subjetividade para além funcionamento psíquico, suas teorizações ainda
daquela estabelecida pelas relações familiares transitam nesse âmbito, com McDougall discor-
da primeira infância, buscando integrar, tam- rendo sobre a desafetação e Dejours sobre a re-
bém, aspectos atuais da vida do sujeito – tanto pressão da agressividade. Portanto, os mecanis-
relacionais como o sofrimento psíquico no tra- mos que estariam por trás das somatizações em
balho – caminhando, de modo mais amplo, para psiquismos com funcionamento mais neurótico
discussões do próprio contexto histórico e social ainda permanecem carente de explicações e elu-
na qual está inserido, o que é um fator importan- cidações metapsicológicas.
te, visto que estabelece maiores relações com o Com relação às dificuldades encontradas
meio externo e relacional, sem deixar de lado as no processo de pesquisa, estas residem na pró-
dinâmicas intrapsíquicas. pria dificuldade inerente ao tema, que pouco é
explorado pelos autores psicanalíticos, e, quan-
Considerações Finais do o fazem, realizam uma teoria voltada para o
negativo: a incapacidade simbólica desse tipo de
As discussões em psicossomática percorre- subjetivação é citada em todos os autores revisa-
ram um caminho que mantém certo padrão de dos, e, apesar de reconhecerem que as doenças
teorização, principalmente no que se refere aos psicossomáticas não estão restritas somente ao
sintomas e funcionamento psíquico, que nas des- modo operatório, os elementos também carecem
crições se caracterizam como um funcionamento para se pensar essa problemática fora desse âm-
concreto, pragmático, carente de símbolos e vida bito postulado por Pierre Marty. Além disso, os
onírica. Como vimos, em Miller e Pierre Mar- textos apresentados sobre esse tema muitas ve-
ty a ideia de uma estrutura de personalidade do zes são concisos e pouco didáticos em sua expla-
psicossomático é mais forte. As primeiras incur- nação. Nesse sentido, houve muita dificuldade
sões de Lacan não deixam muito claras se ele na carência de maiores explicações de alguns
concluiu sua opinião com relação a isso, já que conceitos e até mesmo de exemplos concretos
ele considerava que as doenças psicossomáticas para um melhor entendimento. Talvez no fundo
estariam no limite do analisável, por ser consi- a psicanálise ainda seja um pouco leiga quando
derado um fenômeno da ordem do real do cor- se trata do assunto da psicossomática e por isso
po. Talvez esse seja o motivo pelo qual ele não as obras revisadas caminham no mesmo sentido
incluiu o psicossomático em suas classificações de mecanismos gerais de explicação e descrição
de estruturas psíquicas. Ainda assim, fica implí- e carecem um pouco da contribuição de novos
cita a questão de um mecanismo estruturante de elementos para se pensar nessa problemática.
forclusão do Nome-do-Pai, que aproximaria o Nossas impressões caminham para a opi-
psicossomático do psicótico e do autista. Entre- nião de que as doenças psicossomáticas são
tanto, Miller afirma que o fenômeno psicosso- muito mais frequentes e muito menos restritas
mático é um fenômeno limite, porque adere em do que sugerem os autores tradicionais da psi-
alguns aspectos – ainda desconhecidos – à estru- cossomática psicanalítica. Talvez uma pista para
tura de linguagem. Seria o caso de considerar, já identificar a ocorrência de uma doença psicosso-
a partir de Lacan, a possibilidade em se pensar mática seja se ater em fatos desencadeadores da
no psicossomático como um arranjo limítrofe, lesão na vida do sujeito, o que diferiria de outras
visto que não se chegou a alcançar um funciona- doenças que sua etiologia possa ser atribuída a
mento neurótico, mas também foi ultrapassada causas mais orgânicas e menos psíquicas. Acre-
a organização psicótica? Pois é visto que a sim- ditamos ainda que as discussões acerca da de-
40 Galdi, M. B., Campos, E. B. V.

limitação das doenças psicossomáticas das não Ferraz, F. C. (1997). O mal-estar no trabalho. In R.
psicossomáticas deva ser revista, pois também M. Volich, Psicossoma: Psicossomática Psica-
é notório que a ocorrência de alguns traumas nalítica II. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
(luto, separação) desencadeie doenças orgânicas Leclaire, S. (1992) O corpo erógeno: Uma introdu-
e estas deveriam ser consideradas mais psicosso- ção à teoria do complexo de Édipo. São Paulo,
máticas do que aquelas que não comportam um SP: Escuta. (Original publicado em 1979)
acontecimento emocional desencadeador. Por McDougall, J. (1996). Teatros do corpo: O
fim, reiteramos sobre a importância de estabe- Psicossoma em psicanálise (2. ed.). São Paulo,
lecer um diálogo com os modos de subjetivação SP: Martins Fontes.
que vêm sendo produzidos em nossa sociedade, Mello, J., Filho, & Burd, M. (Eds.). (2010). Psicosso-
pois a própria psicanálise caminha para discus- mática hoje (2. ed.). Porto Alegre, RS: Artmed.
sões existentes entre o modo de produção capita- Miller, J.-A. (1987). Algumas reflexões sobre o fenô-
lista atual e o adoecimento no trabalho. meno psicossomático. In R. Wartel, Psicosso-
mática e Psicanálise (pp. 87-97). Rio de Janeiro,
Referências RJ: Jorge Zahar.
Vieira, W. de C. (1997). A psicossomática de Pierre
Birman, J. (2001). Corpos e formas de subjetivação Marty. In F. C. Ferraz & M. R. Volich, Psicos-
em Psicanálise. Estados Gerais de Psicaná- soma: Psicossomática Psicanalítica (pp. 15-22).
lise. Recuperado em http://egp.dreamhosters. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
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Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
Casetto, S. J. (2006). Sobre a importância de adoe-
cer: Uma visão em perspectiva da psicosso-
mática psicanalítica no século XX. Psychê, 10
(17), 1-22. Recuperado em http://pepsic.bvsalud.
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-11382006000100008&lng=es&nrm=iso
Dejours, C. (1991). Repressão e subversão em psi-
cossomática: Pesquisas psicanalíticas sobre o Recebido: 08/10/2015
corpo. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. Aceite final: 14/01/2016

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