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dossiê cibercultura

QUEM MEDIA A CULTURA DO SHUFFLE?


CIBERCULTURA, MÍDIAS E CENAS MUSICAIS*
Simone Pereira de Sá **

Resumo A bstract

O trabalho discute algumas premissas para a abor- This paper discuss some issues about cyberculture
dagem das práticas culturais da cibercultura, practices focusing the notions of desintermediation
problematizando o enfoque corrente sobre as no- e decentralization. To understand the entertainment
ções de desintermediação e de descentralização. industry and musical practices is necessary to leave
Para se compreender as transformações da indús- behind solid definitions about cyberculture and deal
tria do entretenimento e especialmente das práticas with the mediation and the media dynamics.
musicais, torna-se necessário discutir alguns pres-
supostos do debate.

Palavras-chave Key Words


Cibercultura - práticas musicais - mediação Cyberculture - Musical Practices - Mediation

A Apple popularizou o estilo shuffle, com namente no noticiário, chamando a atenção para a
seu IPod de mesmo nome (...) Do que se revolução que a Internet introduziu na indústria
trata? É aquela função que permite a um do entretenimento. No universo da música, espe-
aparelho tocar, aleatoriamente, diversas cialmente, o cenário, para bem ou para mal, é di-
músicas de um disco. No caso do IPod, agnosticado como de crise da indústria fonográfica
isso significa pular de um artista para o a partir do crescimento de fenômenos como pira-
outro, de um estilo para o outro, assim taria, trocas de arquivos sonoros pela Internet,
quase sem perceber (Carlos Albuquerque estúdios caseiros, podcasting, crescimento das
- Blog do Rio Fanzine - www.oglo gravadoras independentes, download de música
bo.com.br/cultura). em celulares, etc. A constatação, recebida com
perplexidade pelos empresários mais ortodoxos e
confirmada em declarações tais como as acima
O CD já é passado. Talvez ninguém no futuro reproduzidas, pode ser sintetizada no fato de que
precise downloadar nada. As músicas e nunca se consumiu tanta música como hoje. En-
filmes e textos vão estar facilmente tretanto, as multinacionais do setor registram nú-
disponíveis via sistemas de transmissão sem meros decrescentes de vendas de discos1 atribu-
fio em qualquer lugar. E talvez ninguém se indo às novas tecnologias da comunicação e à
interesse mais por música como conhecemos cibercultura grande parcela da responsabilidade
hoje, e sim por jogos sonoros, onde todos por estes prejuízos.
participarão de remixagens eternas do que Além disto, não por acaso, a música
até hoje já foi produzido. eletrônica ganhou destaque como expressão cul-
(Hermano Vianna para o Suplemento tural a partir de sua articulação com o universo da
Megazine - O Globo - 25 abril de 2006). cibercultura. Esta associação se dá por diversas
razões, onde se destacam suas práticas de
Bandas que fazem sucesso graças a sampleamento baseadas no recorte e colagem de
downloads, blogs que revelam escritores, filmes informações; a utilização da Internet para a pro-
que viram cult na rede antes de estrear são al- dução-circulação-consumo e também pelo seu
guns dos exemplos que aparecem quase cotidia- discurso de apelo contracultural, utilizado para sua

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auto-afirmação como uma subcultura underground comunicação um-todos, típica do modelo implan-
em oposição ao pop mainstream produzido e di- tado pela cultura de massa, deu lugar ao modelo
vulgado pelas mídias massivas. todos-todos que resulta da conexão generalizada
O argumento corrente para explicar o con- em rede, onde emissores e receptores, ou, no caso
junto destas transformações é o de que a comuni- da produção artística, artista e público se confun-
cação em rede constrói um novo modelo de pro- dem ou alternam papéis.
dução, distribuição e consumo cultural cuja ênfa- Neste modelo, a estrutura de comunicação
se é na relação direta entre produtores e consumi- em rede é entendida como fundando uma nova
dores, através da liberação do pólo da emissão. forma de relação social intrínseca e potencialmente
Descentralização e desintermediação são as pala- mais democrática e participativa. Sendo assim, o
vras-chave, que opõem um modelo centralizador, ciberespaço reconfigura e otimiza as interações
massivo, totalizador e por isto autoritário ao uni- sociais, criando um ambiente descentralizado e
verso aberto, não totalizável e por isto democráti- rizomático propício à troca, à reciprocidade, à
co das redes. criação de laços afetivos, onde relações mais de-
Não é meu objetivo negar as reconfigurações mocráticas se dão "naturalmente" a partir da pro-
em curso. Entretanto, este modelo explicativo dução e circulação da informação. Conseqüente-
tampouco me parece dar conta das complexas mente e/ou ao mesmo tempo, as sociedades ten-
relações entre tecnologias e cultura - a partir da deriam à conexão generalizada através das redes
própria concepção de cibercultura; nem das telemáticas, onde tudo e todos atuam no projeto
especificidades do também complexo universo das de construção da chamada inteligência coletiva
práticas culturais em curso. Primeiramente por (Lévy, 1993; 1999).
supor um modelo que ignora o papel dos filtros É assim que o autor pensa a cibercultura:
da informação, abolindo assim a discussão em como um movimento social. "Com seu líder (a
torno da importância crucial dos agentes media- juventude metropolitana escolarizada), suas pala-
dores de ordens diversas2, em prol da liberação vras de ordem (interconexão, criação de comuni-
do pólo da emissão e da relação direta entre pro- dades virtuais, inteligência coletiva) e suas aspira-
dutores e consumidores de música. Em segundo ções coerentes. Palavras de ordem, estas, que ao
por sugerir um modelo onde A Mídia (de massa) longo do desenvolvimento do argumento, trans-
se opõe à comunicação mediada por computador, formam-se em três leis ou princípios: o da cone-
com se tratassem de dois blocos monolíticos, xão, pois "para a cibercultura, a conexão é sem-
homogêneos e sem pontos de conexões e rela- pre preferível ao isolamento. A conexão é um bem
ções. em si." (1999;127); o da criação de comunidades
São estas questões que pretendo enfocar3. virtuais, vistas como as agregações sociais cos-
Meu argumento é o de que, para compreender- mopolitas, inclusivas e democráticas que são
mos em profundidade as transformações da in- motores de uma forma de "comunicação efetiva";
dústria do entretenimento e especialmente das prá- e o da inteligência coletiva - espécie de versão
ticas musicais, torna-se necessário discutir alguns digital da máxima durkheiminiana, onde o social é
pressupostos do debate, desnaturalizando algumas maior do que a soma das partes dos indivíduos.
definições correntes de cibercultura e buscando Pois, para Lévy, o que motiva as pessoas a se
compreender o papel dos mediadores e das mídias reunirem em comunidades virtuais é a criação do
neste processo. coletivo inteligente: "Mais imaginativo, mais rápi-
do, mais capaz de aprender e de inventar do que um
coletivo inteligentemente gerenciado" (1999; 130).
RETOMANDO A NOÇÃO DE CIBERCULTURA
A cibercultura é portanto, para o autor:
Sob a forte influência de Pierre Lévy, leitu-
ra obrigatória nas discussões sobre as novas A expressão da aspiração de construção de
tecnologias nos anos 90, difundiu-se entre nós o um laço social que não seria fundado nem
argumento de que a Internet constitui-se como sobre links territoriais, nem sobre relações
um novo ambiente, que tem dentre as suas princi- institucionais, nem relações de poder, mas
pais características a possibilidade de reversão dos sobre a reunião em torno de centros de in-
jogos de poder ligados à centralização das mídias teresses comuns, sobre o jogo,sobre o
massivas. A premissa, como sabido, é a de que a compartilhamento do saber, sobre a apren-

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dizagem cooperativa, sobre processos aber- gem estável (analógica) "presente por sua estáti-
tos de cooperação. (1999; 130). ca, pela persistência do seu suporte físico (pedra,
madeira, terracota, tela, papéis diversos)" - por
Contrapondo-se a este viés, apresenta-se uma estética do desaparecimento de uma imagem
um segundo enfoque que percebe a comunicação instável (digital) "presente por sua fuga e cuja per-
em rede como componente fundamental da sistência é somente retiniana, a do 'tempo de
sociedade de controle (Deleuze; 1992). No sensibilização' que escapa à nossa consciência
argumento de matriz foucaultiana, esta noção imediata, desde quando o limite dos 20
traduz o regime de poder das sociedades milissegundos for ultrapassado (...)" (1993; 27).
contemporâneas, caracterizando-se por uma Argumentando sempre em termos
intensificação de certas tendências disciplinares; espaciais, o autor preocupa-se com a obscenidade
ao mesmo tempo, que, por importantes deste novo olhar, cujos efeitos de superexposição
transformações em relação à sociedade industrial. acabam com os obstáculos físicos à comunicação
No breve artigo que inspira esta perspectiva, e produzem um mundo sem antípodas, sem faces
Deleuze encaminha o argumento: a lógica ocultas, transparente, sem limites - onde "o tato e
disciplinar, serial, descontínua, fechada, o contato cedem lugar ao impacto televisual"
esquadrinhada, geométrica, progressiva e analógica (1993; 14); e onde a interface - enquanto superfície
da sociedade industrial - traduzida no regime das de contato entre dois meios, substitui com
fábricas, escolas, prisões e hospitais dá lugar, após desvantagem as noções de superfície e de "face a
a Segunda Guerra mundial, a um outro regime de face" (1993; 39).
poder cuja lógica - organizada através de formas Afinados com esta visada dromocrática proposta
ultra-rápidas de controle ao ar livre - é contínua, por Virilio, pesquisadores brasileiros definem a
fluida, ondulatória, aberta, mutante, flexível, cibercultura como o principal elemento
infinitamente modulável. Regime de dominação, estruturante da sociedade contemporânea em seu
este, que tudo controla de forma sutil, hiper- funcionamento social, político e econômico. É o
capilarizada. caso de Trivinho (2003), por exemplo, para quem:
E se ao primeiro correspondem as
"máquinas energéticas, com o perigo passivo da Cibercultura nomeia a macroconfiguração
entropia e o perigo ativo da sabotagem"; as de época que, manifesta desde (pelo me-
sociedades de controle operam por máquinas de nos) as três últimas décadas, implica e ar-
uma terceira espécie: "máquinas de informática e ticula tanto o arranjamento societário ao
computadores, cujo perigo passivo é a nível da infra-estrutura tecnológica quanto
interferência, e o ativo, a pirataria e a introdução a atmosfera simbólica, imaginária e
de vírus." (p. 223). comportamental correspondente à fase da
Um outro autor que pode ser incluído no história do capitalismo organizada e per-
leque de influentes referências que traduzem a manentemente modulada a partir do, com
vertente crítica em relação às novas tecnologias é base no e através do processo extensivo e
Paul Virilio. Urbanista de formação, ele esboça nas irreversível de informatização das práticas
suas obras um vasto "tratado de dromocracia", e relações sócio-culturais, de virtualização
ou seja, uma reflexão que explora a relação entre dos objetos e corpos e de ciberespa-
velocidade e poder, criticando especificamente a cialização do território, em escala local,
tirania da velocidade produzida pelas tecnologias nacional e mundial (p.61).
de comunicação contemporâneas. Nas imagens
produzidas por estes meios ele percebe um novo Apesar do esforço desses estudiosos para
olhar, que implica obviamente em uma nova forma compreender as transformações que as tecnologias
de organizar o mundo. digitais têm promovido na vida econômica, política
Nesta, a perspectiva geométrica e social, ambas as visões, seja na visada utópica
instaurada no ocidente a partir da Renascença ou distópica, tendem a reificar e substantivar a
torna-se obsoleta; substituída por uma perspecti- cibercultura. Primeiramente por perceberem toda
va ondulatória - sinais transmitidos por onda - que expressão da cultura contemporânea como
privilegia a instantaneidade e a transmissão em encompassada pelas tecnologias digitais, confor-
tempo real (1993; 22). Aqui, ele percebe a substi- me explicita a citação acima.
tuição de uma estética da aparição de uma ima- Além disto, apesar de apostarem em di-

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agnósticos que se opõem, ambas as abordagens remediatização e o percebem como característico
demarcam um mesmo ponto de partida que obs- da história da inovação tecnológica
curece a discussão mais detida sobre a questão Desta forma, para eles, toda nova mídia
tecnológica. Trata-se: 1) de uma ênfase na ruptu- é pensada e representada como, por um lado, em
ra do novo modelo com o anterior - o da cultura continuidade e por outro desafiando as tecnologias
de massa - ao qual a cibercultura se opõe em blo- em voga num determinado momento6.
co e por princípio, no caso de Lévy e dos desdo- A partir destas sucintas observações,
bramentos deleuzianos; ou 2) na proposta de per- reitero a sugestão de compreender o estudo da
ceber as tecnologias a partir de um modelo cibercultura não como a exploração de um
hegemônico, que atua em bloco, como um império admirável mundo novo mas sim como um contí-
tecno-midiático, não distinguindo entre diferentes nuo processo de inovação e reapropriação
mídias e suas apropriações também diversas, no tecnológica, cujas práticas - ambíguas, múltiplas
caso de Virilio e seus e plurais - remontam ao diálogo
interlocutores brasileiros. com boa parte da história das
Desta forma, por trás tecnologias da informação e da
de expressões impactantes tais comunicação.
como sociedade dromocrática Dito de outra forma,
ou sociedade de controle, por meu ponto de partida é a
exemplo, abre-se um caminho premissa de que o ciberespaço,
que nos revela muito pouco ao construir-se como espaço
sobre o contexto e as condi- comunicativo e engendrar o que
ções específicas de apropria- chamamos de cibercultura, o
ção tecnológica. faz a partir de apropriações
Em contraponto a sociais conflitantes e múltiplas
estas posições, gostaria pri- que não se explicam por um
meiramente de remeter a idéia modelo totalitário ou por leis
de cibercultura à noção de genéricas. E de que a opção
cultura, na tradição interpretativa da antropologia, metodológica por abordagens que privilegiem a
como um conjunto de valores, crenças, formas concretude das práticas ao invés das
de pensar de um grupo, entendidos na sua lógica potencialidades do meio é o caminho mais seguro
simbólica e sujeitos a tensões, negociações, dis- para se evitar os eventuais tropeços na direção
putas e enfrentamentos. Desta forma, a determinista, onde a tecnologia é pensada como
cibercultura não é um mundo acabado - para bem produzindo necessariamente certos efeitos, sejam
ou para mal; é antes o conjunto do emaranhado eles positivos ou negativos.
de códigos múltiplos e plurais, fruto de um cons- A aposta é portanto na idéia de que há
tante apropriar e refazer social através das redes que se discutir as implicações políticas, históricas
digitais, cujas "teias de significados" - conflituosas, e culturais das tecnologias diversamente
intrincadas, heterogêneas - cabe ao pesquisador articulados com os poderes, afetos e sociabilidades
desvendar, interpretar e traduzir4. (Geertz, 1998). através de uma aproximação antes de tudo
Além disto, inspirada por trabalhos da microscópica, local, atenta às apropriações e aos
perspectiva da Escola de Toronto, não gostaria de desvios do cotidiano. O que me leva a privilegiar
perder de vista a possibilidade de interpretar a os estudos de caso conduzidos a partir da prática
questão tecnológica a partir da dinâmica entre etnográfica7 como estratégia para lidar com as
meios, indagando como um meio - ou tecnologia premissas acima alinhadas.
- reconfigura experiências anteriores, tal como Longe de uma paixão gratuita pelo local
propõem Bolter & Grusin (2000) em Remediation5. ou pelo detalhe, a importância dos estudos de caso
A conhecida frase de McLuhan de que "o é a de que, só assim os megaconceitos "podem
conteúdo de um meio é sempre um meio anterior" adquirir toda a espécie de atualidade sensível que
é assim motor para que eles explorem a dinâmica possibilita pensar não apenas realista e concreta-
das mídias, onde a premissa é a de que um meio mente sobre eles, mas, o que é mais importante,
atua sempre em relação aos anteriores a partir de criativa e imaginativamente com eles. O que sig-
uma dupla lógica de conservação e ruptura. Os nifica que passamos a considerar a surpresa
autores denominam este processo como de advinda da fricção com o objeto como essencial à

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formulação teórica, conceituando "dentro dos ca- 1) a dos aspectos cognitivos e das práticas soci-
sos" e não como ilustrações de uma hipótese ge- ais dos usuários; 2) das linguagens do meio,
nérica concebida de antemão. tecnologias envolvidas e suas formas de
estocagem da informação 3) dos aspectos políti-
co-institucionais envolvidos na produção-circula-
ção-recepção da informação através do meio 4)
Finalmente do contexto macro-econômico onde
se insere tal meio.
Estes eixos, por sua vez, traduzem o uni-
verso de instituições, tecnologias, usuários, práti-
cas e linguagens que em conjunto constituem o
meio e garantem sua estabilidade durante um pe-
ríodo determinado, até que novas práticas
reconfigurem as anteriores, explodindo seus usos
e tornando-os obsoletos9.
O ganho desta concepção em relação ao
modelo anterior é o de que, aqui, a dimensão
Vale ressaltar que esta postura não impli- tecnológica deve ser pensada sempre em articula-
ca numa recusa à teorização ou à crítica, mas sim ção com outras variáveis; e qualquer alteração de
na convicção de que "qualquer generalidade que um dos vetores altera todo o conjunto, com con-
se consegue alcançar surge da delicadeza de suas seqüências para a própria gramática do meio.
distinções e não da amplidão de suas abstrações" Um segundo ponto sobre a questão diz
(Geertz; 1978). Ou seja: sem abrir mão das respeito à articulação entre diferentes mídias e sua
formulações teóricas, busca-se menos "uma relação com as comunidades de gosto, cenas e
perfeição do consenso" do que um refinamento subculturas10. Mais uma vez, meu problema é
do debate através de observações localizadas. Esta com o argumento que reconhece a Internet como
é então a "especificidade complexa" dos estudos uma força isolada a promover transformações nos
de caso - sua circunstancialidade sendo antes sua
força, uma vez que permite-nos teorizar - entenda-
se, propor interpretações que continuem
defensáveis para novos fenômenos - sem perder
o contato com o real.

O SISTEMA DE MÍDIAS

Um segundo ponto a ser discutido é a


própria noção de mídia, uma vez que o modelo
estanque que opõe a comunicação de massa -
baseada no sistema centralizador um-todos - ao
sistema descentralizado todos-todos, como eu
disse, não me parece satisfatória para compreender
as sutilezas da relação acima explicitada por Bolter
e Grusin.
Desta forma, proponho como caminho
mais promissor para abordar a complexidade de
vetores atuantes na constituição de um meio de
comunicação compreendê-lo como "a estabilida-
de de um set de forças sociais e tecnológicas,
com funções claramente definidas durante um
período específico". Meio cuja gramática - en-
tendida como modo de funcionamento - define-
se a partir da articulação das seguintes variáveis:

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bólica entre eles - divergindo assim das análises a primeira define um grupo estável, cujo
que entendem as mídias como elementos alheios, envolvimento com a música toma a forma da
periféricos ou que adulteram as expressões da exploração de idiomas musicais enraizados geo-
cultura underground. gráfico-historicamente; a cena remete-se a um
Essa relação entre música e mídias de- grupo demarcado por um espaço cultural onde
monstra, entre outras coisas, que as práticas coexiste uma diversidade de práticas musicais que
subculturais contemporâneas - tais como a músi- interagem de formas múltiplas, através de dife-
ca eletrônica, por exemplo - não se colocam "fora" rentes trajetórias de troca e fertilização.
da esfera de influência da indústria cultural, mas Elaborando o argumento, Straw afirma que
sim em diálogo com ela, ainda que para confrontá- esta distinção ajuda-nos a identificar dois vetores
la. Isso é importante para afastar a noção de re- opostos: o primeiro trabalhando a favor da esta-
sistência cultural normalmente atribuída aos usu- bilização de uma tradição musical - como é o caso
ários da Internet, como se estivessem fora do cir- da comunidade do samba no Brasil, por exemplo;
cuito de produção-circulação-consumo. e o outro trabalhando no sentido da disrupção
das continuidades, buscando um diálogo cosmo-
polita e relativizador das raizes com o cenário in-
CENAS E GÊNEROS ternacional e que tem na mudança (e não na esta-
bilidade estilística) a referência mais importante.
Dentro desta discussão, caberia finalmen- Creio que o argumento nos permite com-
te destacar o papel das comunidades de gosto e preender as cenas como mais um dos mediado-
seus valores ou cenas construindo identidades e res deste processo, uma vez que as apropriações
definindo parâmetros para as apropriações genéricas ocorrem sempre no interior das cenas
tecnológicas. Pois, a importância dos julgamen- - ou seja, em contextos locais.
tos de valor é essencial à experiência estética do Frente a toda esta discussão, caberia
pop e por isto passamos horas a fio discutindo a então indagar como o gênero articula-se às cenas
qualidade de nossas bandas ou cantores favoritos para construir identidades, definindo as relações
(Frith; 1996). dos usuários com as tecnologias e orientando as
Dentro desta discussão, uma noção im- escolhas na Internet.
portante é a de gênero musical. Seja no momento Pois, conforme discuti anteriormente
em que estamos fazendo compras, como consu- (Sá; 2006), é fato que algumas cenas musicais
midores; seja na avaliação de uma nova banda, não se interessam pelo ecletismo, aproveitando
como críticos ou aficcionados, seja nos diversos as possibilidades de troca gratuita de música para
momentos em que temos que opinar e decidir so- baixar álbuns inteiros de seus ídolos para serem
bre gostos no universo da música, o rótulo por ouvidos nos I-pods e afins, tal como se estives-
gênero musical é uma orientação fundamental para sem ouvindo o disco (conforme Dantas;2005) -
nos guiar, uma vez que avaliamos a partir das ex- reforçando assim sua fidelidade a certa bandas e
pectativas e convenções de gênero. cantores.
Janotti Jr (2003) enfatiza o caráter medi- Neste caso, a conexão com um univer-
ador presente na noção de gênero, para quem es- so de escolhas musicais é utilizado para confir-
tes seriam "modos de mediação entre as estratégi- mar gostos previamente construídos a partir das
as produtivas e o sistema de recepção, supondo subculturas e dos gêneros musicais, mediando a
ao mesmo tempo regras econômicas - que envol- cultura shuffle. E, até mesmo no universo da
vem as relações de consumo; as regras semióticas música eletrônica, a discussão sobre os "limites"
- que abarcam as estratégias de produção de sen- da utilização tecnológica - que inclui a crítica ao
tido e as expressões comunicacionais do texto download de músicas na Internet, por exemplo -
musical e as regras técnicas e formais, tais como relaciona-se a valores e legitima o que é um bom
convenções de execução e habilidades que cada ou mal DJ.
gênero supõe. Estas breves observações me parecem
A noção de cena, por sua vez, também valiosas para nos afastarem definitivamente de
merece atenção.Ao discutir a questão das identi- uma história linear ou determinista das mídias e
dades musicais, Straw (1991) baseia-se em Shanks artefatos tecnológicos, que passe ao largo de sua
(1988) para propor uma oposição entre as noções relação com valores estéticos e culturais.
de comunidade musical e esta de cena. Enquanto Como conseqüência, apontam para pro-

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blemas na utilização naturalizada do termo
7
desintermediação, como se a cibercultura estives- Para esta discussão, ver Sá:2005, cap 1, especial-
mente a parte Praticando netnografias.
se instaurando uma relação direta entre produto-
res e consumidores desencarnados, abstratos, que 8
Encaminho esta proposta, aprofundando a discus-
fazem escolhas sem constrangimentos de qual- são em Sá:2005(b). A noção de meio e de gramática
quer ordem. Ao contrário, ela corrobora os estu- tem clara inspiração mcluhaniana, ainda que não
exatamente a mesma acepção do autor. Para uma
dos antropológicos sobre sociedades complexas, discussão da noção de meio e de gramática em
cuja premissa é a de que quanto maior a comple- McLuhan ver Pereira (2002). Vale observar ainda
xidade estrutural do ambiente, mais relevante é o que a noção de meio de comunicação é uma das no-
papel dos mediadores ao fazer pontes e criar va- ções polissêmicas do campo, admitindo inúmeras
definições. Para esta discussão ver: Martino (2000).
sos comunicantes dentro da estrutura social (Ve-
lho; 1994). 9
Para a discussão sobre as comunidades de gosto,
Fica claro então que as mediações po- ver Frith: 1996; para a noção de cena, ver Straw;
dem ser de outra ordem, mas continuam a valer 1991 e para a discussão e crítica da noção de
subcultura, ver Thornton: 1996 .
neste novo cenário, obrigando-nos a investigar a
forma como as escolhas são feitas e discutir o
peso maior ou menor das comunidades de gosto, REFERÊNCIAS
da noção de gênero e da crítica cultural, que pare-
ce estar vivendo um momento de intenso BOLTER, Jay David & GRUSIN, R. – Remediation :
florescimento na Internet. understanding new media. Massachussets. MIT Press,
Creio que as pistas aqui levantadas sejam 2000.
suficientes para que eu possa concluir este texto BRUNO, Fernanda & VAZ, Paulo – Agentes.com:
sugerindo a necessidade de estudos pontuais que cognição, delegação, distribuição. Niterói. Revista
respondam às questões em aberto e que levem Contracampo, n. 7, pág. 23 – 38. Universidade Federal
em consideração o fato de que a(s) tecnologia(s) Fluminense, segundo semestre de 2002.
propicia(m) ao mesmo tempo um ambiente no qual DANTAS, Danilo Fraga. MP3, a morte do álbum e o
pensamos e experimentamos a cultura, um con- sonho de liberdade da canção? Anais do V Enlepicc.
junto de técnicas para produção e consumo e um Salvador, BA. Novembro de 2005.
elemento discursivo importante para avaliarmos a
DELEUZE, Gille - DELEUZE, Gillles. Conversações.
nossa experiência, definindo ao mesmo tempo, RJ, Ed. 34, 1992.
no processo, o que os artefatos culturais podem
ou devem ser. FRITH, Simon – Performing rites. On the value of popu-
lar music. Harvard University Press, Cambridge,
Massachussets, 1996.
NOTAS GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio
de Janeiro. LTC Editora, 1989.
*Este trabalho é uma versão da apresentação realiza-
da no Congresso da ALAIC 2006. JANOTTI Jr, Jeder Silveira. Música popular ou música
pop? Trajetórias e Caminhos da Música na cultura
**Doutora em Comunicação e Cientista Social. Pro- mediática. V Enlepicc. Salvador, BA. Nov. 2005.
fessora do Programa de Pós-graduação em Comuni-
cação da Universidade Federal Fluminense, onde co- ___. À procura da batida perfeita: a importância do
ordena o LabCult – Laboratório de Cultura Urbana, gênero musical para a análise da música popular
Lazer e massiva. Revista Eco-Pós. Rio de Janeiro.Pós-Graduação
em Comunicação e Cultura. UFRJ. Vol. 6, n.2, 2003, p31-
6
Esta proposta é explicitada na sugestão do tetraedro 46.
de McLuhan: “We propose no underlying theory to
attack or defend, but rather a heuristic device, a set JOHNSON, Steven. Cultura da interface. Rio de Janei-
of four questions, which we call a tetrad. (...) The ro, Jorge Zahar, 2001.
tetrad was found by asking ; “What general,
verifiable (that is testable) statements can be made LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. São Pau-
about all media? We were surprised to find only lo. Editora 34, 1993.
four, here posed as questions: What does it enhance
or intensify? What does it render obsolete or ___. Cibercultura. São Paulo.Editora 34, 1999.
displace? What does it retrieve that was previously
obsolesced? What does it produce or become when MARTINO, Luis Carlos. Contribuições ao estudo dos
pressed to an extreme? “ (McLuhan, Marshall and meios de comunicação. Anais da Intercom.
Mc Luhan, Eric; 1988; 7).

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