Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
2014 BernardoBrant
2014 BernardoBrant
2014 BernardoBrant
Tavares
Susana Mateus
Universidade do Porto
Palavras-chave: Gonçalo M. Tavares, O Reino, guerra, medo, angústia, escolha, incompletude, mecanismo,
limiar, fim do mundo
Abstract: When observing and reflecting on the behaviours of the characters in O Reino by Gonçalo M.
Tavares a link coming across as a warning is identifiable: the revisit of a landscape evocative of the
Holocaust and of war as a limit-situation echoes the juncture in which we move nowadays: at the constant
edge of an end of the world as we remain «badly placed» beings. It’s up to us to make the right choice.
Keywords: Gonçalo M. Tavares, O Reino, war, fear, anguish, choice, incompleteness, mechanism, edge, end
of the world
Todos os homens são lugares mal situados. […] Como diziam os gregos […] nascemos entre os
deuses e os animais, sendo que os deuses são completamente transparentes para si próprios e os
animais são completamente opacos para si próprios e nós temos uma abertura, um ponto de vista
inacabado que exige de si próprio respostas que é incapaz de produzir na maior parte das vezes.
(2014; transcrição nossa)
estávamos demasiado destruídos para ter verdadeiramente medo. Os poucos que ainda sabiam
julgar e sentir correctamente tiraram dos bombardeamentos nova força e esperança; os que a
fome não levara ainda à inércia definitiva aproveitaram frequentemente os momentos de pânico
geral para levar a cabo expedições duplamente temerárias (…) Mas a maioria suportou o novo
perigo e as novas dificuldades com idêntica indiferença: não se tratava de resignação consciente,
mas do torpor baço das feras domadas à pancada, que já não sentem dor. (2002: 131-132)
Não era um som orgânico. Nem orgânico bruto, nem orgânico inteligente, nem orgânico
intelectualmente humano. Que sons, afinal, eram aqueles – o da bala, o do gatilho a ser preparado,
o da granada? O de um certo som preto […] repetir exactamente o mesmo som com duas balas
diferentes. (Tavares 2011: 104-105)
Defendendo uma tese semelhante, Zigmunt Bauman escreve: “No ambiente líquido-
moderno, contudo, a luta contra os medos se tornou tarefa para a vida inteira, enquanto
os perigos que os deflagram […] passaram a ser considerados companhias permanentes
e indissociáveis da vida humana” (2008: 15).
Face ao medo agenciado por Lenz Buchmann, característico dos regimes
totalitários, e ao medo “constante” ou “líquido”, ao qual se referem Gonçalo M. Tavares e
Zigmunt Bauman, poderá o humano constituir um fim do mundo de seres mal situados
para o autor de O Reino? Retomemos as personagens da tetralogia.
Walser na sua acrasia, Klump a ceder a sua ética à terceira linguagem e Lenz
Buchmann que poderia ser descrito por estas palavras de Cioran em História e Utopia:
“aplicamos o melhor das nossas vigílias a esquartejar em pensamento os nossos
inimigos, a arrancar-lhes os olhos e as vísceras, a espremer-lhes e a esvaziar-lhes as
veias, a espezinhar e a esmagar cada um dos seus órgãos, ao mesmo tempo que por
caridade lhes deixamos o gozo do seu próprio esqueleto” (2014: 69). Estas personagens
e estes comportamentos parecem confirmar a tese de Thomas Hobbes, segundo a qual o
humano no seu estado natural devora o seu semelhante numa ânsia insaciável de poder,
como se lê em Leviathan: “So that in the first place, I put for a general inclination of all
Depois, foi a vez das fábricas da morte e todos passaram a morrer juntos: jovens e velhos, fracos e
fortes, doentes ou saudáveis; morriam não na qualidade de indivíduos, quer dizer, de homens e de
mulheres, de crianças ou de adultos […] mas reduzidos ao mínimo denominador comum da vida
orgânica, mergulhados no abismo mais sombrio e mais profundo da igualdade primeira. (2008:
141)