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O multiculturalismo surgiu pela primeira vez como postura teórica por meio das
atividades do movimento de consciência negra na década de 1 960, sobretudo nos Esta
dos Unidos. A origem do nacionalismo negro remonta ao início do século XX e ao
surgimento do movimento de "volta para a África", inspirado em personalidades como
o ativista político jamaicano Marcus Garvey ( 1 8 87- 1940) . Mas foi nos anos 1 960 que
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a política negra ganhou maior notoriedade, com a ascensão das alas reformista e revolu
cionária do movimento. Sob o aspecto reformista, o movimento tomou a forma de uma
luta pelos direitos civis, que ganhou importância nacional nos Estados Unidos sob a
liderança de Martin Luther King (1 929- 1 968) . Essa estratégia da desobediência civil
não violenta foi rejeitada pelo movimento Black Power, que apoiava o separatismo negro
e promovia o uso da luta armada sob a liderança do Partido Panteras Negras, fundado
em 1 966. Já os Muçulmanos Negros (hoje a Nação do Islã) foram os que exerceram a
influência mais duradoura. Eles defendiam uma doutrina separatista baseada na ideia de
que os negros norte-americanos descendiam de uma antiga tribo muçulmana. Fundado
em 1 929, o movimento foi liderado durante mais de 40 anos por Elijah Mohammad
(1 897-1 975). Entre seus ativistas mais importantes nos anos 1 960 estava o líder negro
militante Malcolm X ( 1 925-1 965).
O final dos anos 1 960 e o início da década seguinte testemunharam uma crescente
assertividade política entre os grupos minoritários, às vezes expressa por meio de um
nacionalismo etnocultural em muitas partes da Europa ociden
tal e na América do Norte. Isso ficou mais evidente entre a
população de língua francesa do Quebec, no Canadá, mas tam
bém pôde ser visto na ascensão do nacionalismo escocês e galês no
Reino Unido, bem como no crescimento de movimentos separa
tistas na Catalunha e na região basca (Espanha), na Córsega
(França) e em Flandres (Bélgica). Também se verificou uma ten
dência à assertividade étnica entre os nativos americanos no Canadá e nos Estados
Unidos, entre os povos aborígenes da Austrália e os maoris da Nova Zelândia. O ponto
comum entre essas formas emergentes de política étnica era o desejo de contestar a mar
ginalização econômica e social e, por vezes, a opressão racial. Nesse sentido, a política
étnica era um veículo para a libertação política, e suas grandes adversárias eram a desvan
tagem estrutural e a desigualdade arraigada. Para os negros da América do Norte e da
Europa ocidental, por exemplo, o estabelecimento de uma identidade étnica proporcio
nava uma maneira de confrontar a cultura branca dominante que tradicionalmente
enfatizava sua inferioridade e exigia subserviência.
Além de proporcionar uma maior assertividade entre os grupos minoritários estabe
lecidos, a política multicultural também foi reforçada por novas tendências nas
migrações internacionais a partir de 1 945, o que ampliou de maneira significativa a
diversidade cultural em muitas sociedades. Os índices de imigração dispararam nesse
período, uma vez que os países ocidentais estavam recrutando trabalhadores estrangei
ros para ajudar no processo de reconstrução do pós-guerra. Em muitos casos, as rotas
das migrações eram traçadas pelas conexões entre os países europeus e suas antigas co
lônias. Assim, por exemplo, a maioria dos imigrantes que chegou ao Reino Unido nos
anos 1 950 e 1 960 veio das Índias Ocidentais e do subcontinente indiano, enquanto os
imigrantes da França eram oriundos em grande parte da Argélia, do Marrocos e da
Tunísia. No caso da Alemanha Ocidental, os imigrantes eram Gastarbeiter (trabalhado-
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s, as rotas militante - nos países ocidentais estimula algumas pessoas a especular se o famoso
"choque de civilizações", de Samuel Huntington ( 1 996), estaria acontecendo não só
entre as sociedades, como também dentro delas. Se por um lado os defensores do
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Pós-colonialismo
Os fundamentos das ideias do multiculturalismo foram estabelecidos pelas teorias pós
o extremis- -coloniais que surgiram com a derrocada dos impérios europeus, no início do período
pós-1 945. O nacionalismo negro que apareceu na década de 1960 pode ser considerado
uma manifestação do pós-colonialismo, assim como o próprio multiculturalismo pode ser
concebido como um de seus desdobramentos. A importância do pós-colonialismo foi que
ele procurou contestar e subverter as dimensões culturais do governo imperial por meio
do estabelecimento da legitimidade de ideias e correntes políticas não ocidentais e, por
vezes, antiocidentais.
O pós-colonialismo assumiu várias formas. Por exemplo, Gandhi propôs uma filoso
fia política que amalgamou o nacionalismo indiano com a ética da não violência e da
abnegação que, no fundo, tem suas raízes no hinduísmo. Já Franz Fanon ( 1 925- 1961),
teórico revolucionário francês nascido na Martinica, deu ênfase às relações entre a luta
anticolonialista e a violência. Sua teoria do imperialismo enfatizou a dimensão psicoló
gica da submissão colonial. Segundo Fanon (1 965), a descolonização não era um mero
s da política processo político, e sim um processo por meio do qual uma nova "espécie" de homem é
específicas de criada. Ele argumentou que apenas a experiência catártica tem a força necessária para
de assegurar a viabilizar essa regeneração psicopolítica.
Em Orientalismo ( Orientalism, [ 1 978] 2003), por vezes consi
eurocentrismo�
derado o texto mais influente do pós-colonialismo, Edward Said réfere•se a valores e
desenvolveu uma crítica ao eurocentrismo. O orientalismo res teorias extraído.s da
cultura.\!uropéia e
salta o quanto a hegemonia cultural e política do Ocidente foi aplicados a oútros
imposta ao restante do mundo - em particular ao Oriente - por grupos e povos,
implicando uma
meio de estereótipos ilusórios cuidadosamente planejados que perspectiva
menosprezam e degradam os povos e a cultura não ocidentais. tendenciosa e
deturpada.
Exemplos desses estereótipos incluem ideias como o "Oriente
misterioso", o "chinês inescrutável" e o "turco lascivo".
supostos bene O pós-colonialismo contribuiu para o multiculturalismo emergente de duas ma
o. Todavia, o neiras importantes. Primeiro, ele desafiou a visão de mundo predominantemente
política em si. eurocêntrica, uma vez que tentou dar aos países em desenvolvimento uma voz polí
tica própria, à parte das pretensões universalistas das ideologias ocidentais, como
contrário, uma o liberalismo. Isso não só possibilitou que as religiões, ideias e filosofias não ociden
a do equilíbrio tais fossem levadas mais a sério, como também estimulou uma reavaliação mais ampla
. Ainda assim, do pensamento político. Em especial, possibilitou que as ideias ocidentais e não oci
dentais - por exemplo, as teorias políticas liberais e as teorias islâmicas - fossem
também consideradas legítimas na manifestação de tradições, valores e aspirações de
suas próprias comunidades. Segundo, o pós-colonialismo destacou a importância
política da cultura, ao focar especificamente o legado cultural do governo colonial.
Se há um estímulo para que as pessoas vejam uma cultura imposta como opressora e
degradante, elas são levadas a buscar a emancipação por meio da redescoberta de sua
cultura "nativa".
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Líder político e espiritual indiano (chama co, deu ao movimento pela independência
do Mahatma, "Grande Alma"). Advogado for da Índia uma enorme a utoridade moral e
mado no Reino Unido, Gandhi elaborou sua serviu de modelo p a ra ativistas de d i reitos
filosofia política enquanto trabalhava na Áfri civis que vieram depois, inclusive M a rtin
ca do Sul, onde organizou protestos contra a Luther King. Derivada do h i n d u ís m o, a filo
discriminação. Quando voltou à Índia, em sofia política de Gandhi se baseia no pres
1 91 5, tornou-se líder do movimento naciona suposto de que o u niverso é regu l a d o pela
lista e fez constantes campanhas pela inde primazia da verdade, ou satya. Como a hu
pendência, que acabou sendo conquistada m a n idade é, "em última i n stância, u n a': o
em 1 947. Gandhi foi assassinado em 1 948 por amor, a consideração e a preocup a ção para
u m fanático hindu, tornando-se vítima da com os demais são a base natural d a s rela
violência cruel entre hindus e muçulmanos ções h u ma nas. Quando lhe perg u ntaram o
que se seguiu à independência. que achava da civil ização ocidenta l, G a n d h i
Sua ética da não violência - ou satyagra d e u a célebre resposta de q u e "seria u m a
ha , reforçada por seu estil o de vida ascéti-
- b o a ideia''.
Identidade e cultura
O multiculturalismo é uma forma de política identitária. Essa política procura
promover os interesses de grupos específicos da sociedade, em geral diante da injustiça
social real ou aparente, por meio do fortalecimento da conscientização de seus inte
grantes em relação à sua identidade coletiva e vivência comum. Nesse sentido, a
identidade relaciona o pessoal ao social e vê o indivíduo como que "inserido" em um
contexto cultural, social, institucional ou ideológico específico. Como tal, o multicul
turalismo está arraigado em uma visão essencialmente comunitária da natureza
humana, segundo a qual não é possível entender as pessoas "forà' da sociedade, mas
apenas quando moldadas intrinsecamente pelo contexto social, cultural etc. em que
elas vivem e se desenvolvem. Alguns teóricos do comunitarismo, como o escocês Alas
dair Maclntyre ( 1 9 8 1 ) e o americano Michael Sandel (1 982), criticam sobretudo o
individualismo liberal (veja na p. 4 1 do v. 1), vendo-o como a causa do atomismo. No
caso do filósofo canadense Charles Taylor ( 1 994), a defesa da "política do reconheci
mento" foi explicitamente concebida com base nas premissas comunitaristas sobre
identidade pessoal.
O multiculturalismo dá uma ênfase específica ao papel e à
importância da cultura, a qual, num sentido mais amplo, signi
fica o modo de vida de um povo. Sociólogos e antropólogos
tendem a distinguir "cultura" de "naturezà', pois a primeira
abrange aquilo que é transmitido de geração para geração por
meio da aprendizagem, e não por herança biológica. A importân-
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eia vital da cultura, do ponto de vista multiculturalista, é que ela molda os valores, as
regras e as premissas por meio dos quais a identidade individual é formada e o mundo
exterior adquire significado. O orgulho da própria cultura e, em especial, o reconheci
mento público - até mesmo a celebração - da própria identidade cultural faz que o
indivíduo perceba que tem raízes sociais e históricas. Em contrapartida, um sentimento
frágil ou fragmentado de identidade cultural faz a pessoa se sentir isolada e confusa. Em
sua manifestação extrema, isso pode resultar no que se chamou de "culturalismo", tal
como praticado por escritores como o filósofo político francês Montesquieu (1 689-
- 1 775) e o crítico alemão e "pai" do nacionalismo cultural Herder ( 1 744-1 803), que
caracteriza os seres humanos como criaturas definidas pela cultura.
Embora os multiculturalistas modernos raramente apoiem essa forma mais "crua'' de
determinismo cultural, o despontar do multiculturalismo reflete um movimento de
distanciamento do universalismo em direção ao particularismo, expressando uma ênfase
menor naquilo que as pessoas compartilham ou têm em comum, e maior no que é es
pecífico a cada grupo.
Essa preocupação com a cultura ajuda a explicar a importância
etnicidade:
que o multiculturalismo dá à etnicidade, à religião e ao idioma.
em reláç�o à um povo,
sentimento de lealdade
Etnicidade é um termo complexo, pois traz conotações raciais e
grÍJpo cultural oú área
culturais. A ideia, que pode ser tanto correta quanto incorreta, é territorial; rei.ativo niaiS:
a laços éulturais do que
que os integrantes de grupos étnicos descendem de ancestrais
rádais. . ·
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A religião tem especial relevância para grupos culturais com origem em países não
ocidentais, para quem a influência do secularismo é menos pronunciada. De fato,
nesses casos, a religião às vezes pode se tornar o traço que define a identidade cultural,
como ocorreu com alguns grupos muçulmanos em sociedades ocidentais. Porém, para
grupos como os quebequenses, no Canadá, os galeses, no Reino Unido, os bascos, na
Espanha e na França, e os flamengos, na Bélgica, a manutenção da característica cul
tural está intimamente ligada à preservação de seu idioma "nacional". O idioma é um
importante componente da identidade cultural porque ajuda a manter viva a literatu
ra tradicional, os mitos e as lendas, e também porque ajuda a moldar a maneira como
o mundo é visto e entendido.
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Multiculturalismo e política
Todas as formas de multiculturalismo apresentam uma visão política que alega con
ciliar a diversidade cultural com a coesão cívica. Entretanto, o multiculturalismo não é
uma doutrina simples no sentido de que não existe uma visão única estabelecida ou
convencionada de como uma sociedade multicultural deva funcionar. Na verdade, o
multiculturalismo é mais um exemplo de ideologia abrangente que se baseia em várias
outras correntes políticas e compreende uma série de posturas ideológicas. Os multicul
turalistas discordam sobre até que ponto devem defender formalmente a diversidade
cultural, e acerca de qual a melhor maneira de viabilizar a coesão cívica. Em suma, há
modelos conflitantes de multiculturalismo, e cada um oferece uma visão diferente do
equilíbrio adequado entre diversidade e unidade. Os três principais modelos de multi
culturalismo são:
• multiculturalismo liberal;
• multiculturalismo pluralista;
• multiculturalismo cosmopolita.
Multiculturalismo liberal
Há uma relação complexa e, sob muitos aspectos, ambivalente entre o liberalismo
e o multiculturalismo. Conforme será discutido em mais detalhes adiante, há quem
veja o liberalismo e o multiculturalismo como correntes políticas rivais, argumen
tando que o multiculturalismo ameaça valores liberais relevantes. Contudo, a partir
dos anos 1 970, os pensadores liberais passaram a levar a questão da diversidade cul
tural cada vez mais a sério e desenvolveram uma forma de multiculturalismo liberal.
O fundamento dele é o compromisso com a tolerância e o desejo de defender a
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Estado islâmico baseado na implantação da lei da charia e talvez tendam a proibir grupos
e movimentos que lutem por esse objetivo político. Assim, os grupos somente terão di
reito à tolerância e ao respeito se, por sua vez, estiverem preparados para tolerar e
respeitar os demais grupos.
Multiculturalismo pluralista
O pluralismo proporciona bases mais sólidas para uma política de diferenças do que
o liberalismo. Os liberais, como visto, apoiam a diversidade, mas apenas quando ela é
construída em uma estrutura de tolerância e autonomia pessoal. É nesse sentido que os
liberais "absolutizam" o liberalismo (Parekh, 2005). O filósofo
Isaiah Berlin (1 909-1 997), porém, foi além da tolerância liberal
ao adotar a ideia do pluralismo de valores. Em resumo, ele afir
ma que as pessoas nunca chegam a um consenso acerca dos
objetivos fundamentais da vida, j á que não é possível demonstrar
a superioridade de um sistema moral sobre outro. Como os valo
res entram em choque, as aflições humanas são inevitavelmente
caracterizadas pelo conflito moral. Desse ponto de vista, as cren
ças liberais ou ocidentais - como o apoio à liberdade pessoal, tolerância e democracia -
não têm autoridade moral maior do que as crenças não liberais e não ocidentais.
A postura de Berlin (1 969) implica uma forma de multiculturalismo do tipo "viva e
deixe viver'', ou o que foi chamado de política da indiferença. Entretanto, embora Berlin
se mantivesse um liberal, pois acreditava que apenas uma sociedade que respeita a liber
dade individual pode conter o pluralismo de valores, ele não conseguiu demonstrar
como crenças liberais e não liberais podem coexistir em harmonia na mesma sociedade.
Porém, uma vez que o liberalismo aceita o pluralismo moral, é difícil inseri-lo em uma
estrutura liberal. Para John Gray (1 995b), por exemplo, o pluralismo implica uma pos
tura "pós-liberal", em que valores, instituições e regimes liberais não são mais vistos
como detentores do monopólio da legitimidade.
Uma base alternativa ao multiculturalismo pluralista foi apresentada por Bhikhu
Parekh (2005). Para ele, a diversidade cultural é, no fundo, um reflexo da dialética ou
da ação recíproca entre a natureza humana e a cultura. Embora os seres humanos sejam
criaturas naturais que possuem uma estrutura física e mental derivada de uma espécie
comum, eles também têm uma constituição cultural, no sentido de que suas posturas,
comportamentos e modos de vida são moldados pelos grupos a que pertencem. O reco
nhecimento da complexidade da natureza humana e do fato de que qualquer cultura
manifesta apenas parte do que significa ser verdadeiramente humano fornece, assim, a
base para uma política de reconhecimento e, dessa maneira, para uma forma viável de
multiculturalismo.
Além do multiculturalismo pluralista, é possível identificar uma forma de multi
culturalismo "particularistà' . Os multiculturalistas particularistas enfatizam que a
diversidade cultural ocorre em um contexto de desigualdade de poder, em que de-
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terminados grupos costumam ter vantagens e privilégios que são negados aos demais
ocracia - grupos. O multiculturalismo particularista está claramente alinhado com as necessi
dades e interesses dos grupos marginalizados ou menos favorecidos. A tendência é
explicar o dilema desses grupos em termos da natureza corrupta ou corruptora da
cultura ocidental, de seus valores e modos de vida, que se supõem corrompidos pela
herança do colonialismo e do racialismo (veja na p. 222 do v. 1) ou associados a ideias
"poluentes", como materialismo e permissividade. Nesse contexto, a ênfase nas pecu
.liaridades culturais corresponde a uma forma de resistência política, uma recusa a
sucumbir à repressão ou à corrupção. Entretanto, essa ênfase na "pureza" cultural,
que pode chegar à relutância em estabelecer um intercâmbio cultural, gera preocupa
ções acerca das perspectivas para a coesão cívica: eventualmente, privilegia-se a
diversidade em detrimento da unidade. O multiculturalismo particularista pode, as
sim, ser um exemplo de "monoculturalismo plural" (Sen, 2006), em vez de uma
forma de multiculturalismo.
Multiculturalismo cosmopolita
O cosmopolitismo e o multiculturalismo podem ser considerados correntes ideológi
cas completamente distintas - até conflitantes. Se, por um lado, o cosmopolitismo
estimula as pessoas a adotar uma consciência global que enfatiza que a responsabilidade
étnica não deve ficar confinada às fronteiras nacionais, o multiculturalismo parece par
ticularizar as sensibilidades morais, concentrando-se em necessidades e interesses
específicos de determinado grupo cultural. No entanto, segundo teóricos como Jeremy
Waldron ( 1 995), o multiculturalismo pode ser efetivamente equiparado ao cosmopoli
tismo. Os multiculturalistas cosmopolitas endossam a diversidade cultural e a política
identitária, mas as veem como condições essencialmente transitórias numa reconstrução
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maior das sensibilidades e prioridades políticas. Essa postura celebra a diversidade com
base no que cada cultura pode ensinar às demais e em função das perspectivas para o
desenvolvimento pessoal que são oferecidas por um mundo de oportunidades e opções
culturais mais amplas. Isso resulta no chamado multiculturalismo "de escolha pessoal",
em que o intercâmbio cultural e a mistura cultural são indiscutivelmente estimulados.
Por exemplo, as pessoas podem comer comida italiana, praticar ioga, ouvir música afri
cana e se interessar por religiões do mundo todo.
A cultura, sob essa perspectiva, é fluida e reage a variações de acordo com as cir
cunstâncias sociais e as necessidades pessoais. Ela não é estática e historicamente
inserida, como os pluralistas ou os multiculturalistas particularistas argumentariam.
Assim, a sociedade multicultural é um "cadinho" de ideias, valores e tradições diferen
tes, e não um "mosaico cultural" de grupos étnicos e religiosos isolados. A postura
cosmopolita, em particular, adota o hibridismo. O benefício
dessa forma de multiculturalismo é que ela amplia a sensibilida
de moral e política, levando, em última instância, ao
surgimento da perspectiva de "mundo único" . Contudo, os
multiculturalistas de correntes rivais criticam a postura cosmo
polita porque ela enfatiza a unidade em detrimento da diversidade. Pode-se
argumentar que tratar a identidade cultural como uma questão de autodefinição e
estimular o hibridismo e a mistura cultural são atitudes que enfraquecem qualquer
sentimento genuíno de integração cultural.
O avanço das ideias e das políticas multiculturais acabou gerando muitas controvér
sias políticas. Junto com a conversão de pensadores liberais e outros pensadores
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discussão
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to a diversidade
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