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HISTÓRIA DAS AMÉRICAS EM DEBATE: A MÚSICA NA RESISTÊNCIA À

ESCRAVIDÃO NAS COLÔNIAS ESPANHOLAS E INGLESAS

Giovana Eloá Mantovani Mulza


Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Resumo: No que se refere à História das Américas, as formas de resistência à


dominação europeia assumiram formas variadas no vasto continente americano. As
distinções estruturais dos sistemas coloniais implantados na localidade não impediram
a escravidão em se tornar a forma preponderante de mão de obra na produção de
bens e gêneros naturais. Fosse através do aprisionamento de povos nativos
historicamente presentes naqueles territórios ou através de comunidades trazidas do
continente africano, o não-europeu era concebido como criatura inferior e, portanto,
apta aos trabalhos ditos como vulgares. No decorrer dos séculos que comporam a
escravidão nas Américas, os povos indígenas e as comunidades africanas
encontraram formas de resistência que se manifestaram frequentemente de forma
implícita, assumindo a forma de uma resistência mascarada. Nesse trabalho,
buscaremos compreender o papel da música como uma ferramenta de resistência nas
Américas, empregando os conceitos de infrapolítica e de “tática” de Michel de Certeau
(1998). Entre os indígenas submetidos compulsoriamente ao sistema colonial
espanhol, as músicas acabavam por desempenhar a função de preservação,
constituindo uma forma de resistência diante das tentativas de imposição de modelos
comportamentais pelos europeus. No que se refere aos africanos, deslocados do
continente-mãe e trazidos também para as Américas inglesas, os spirituals estiveram
presentes nas lavouras, sendo cantados na língua inglesa e repleta de heranças do
cristianismo europeu. Desde já, destacamos que as músicas consistiram em formas
importantes de resistência frente à dominação europeia, reforçando o ideal de que os
escravos não foram agentes passivos do sistema colonial na História das Américas.

Palavras-chave: Resistência cultural; Música; História das Américas.


Financiamento: Capes

Introdução
A história dos mecanismos de conquista e colonização do amplo continente
americano suscitou debates seculares nas instituições produtoras de conhecimento.
A dominação europeia nesse novo continente – protagonizada sobretudo pelos reinos
da Espanha e da Inglaterra – constituiu um tema muito discutido desde o século XV.
A multiplicidade dos sistemas políticos e econômicos ali implantados acabou por dotar
a história americana de pluralidades, aquando da própria historiografia falar da
existência de Américas, no plural, em detrimento de uma realidade uniforme e
homogênea. No entanto, fosse sob o aspecto de uma extensão do reino metropolitano
ou como um refúgio de outsiders europeus – suscitando o termo de Norbert Elias
(2000) –, a colonização das Américas contou com a mão de obra escrava, ora
fornecida pelos habitantes locais, ora “importada” do continente africano.
Vinculada a mecanismos institucionais ou culturais, a dominação de povos e o
trabalho escravo integrou a história americana. Embora remeta ao ínterim pré-
colombiano e anteceda o contato intercontinental, a escravidão foi maximizada e teve
seus impactos amplificados a partir dos séculos XV e XVI, tornando-se a principal
força de trabalho em grande parte do continente e modelando as relações sociais,
econômicas e culturais. A escravidão, portanto, consistiu em uma instituição
integrante da história americana, cujo estudo se torna preeminente nas análises
acerca da conquista e colonização do Novo Mundo. Tal constatação perdura mesmo
diante dos múltiplos sistemas políticos implantados pelas distintas metrópoles
europeias, historicamente diversas em suas constituições culturais.
A América, secularmente isolada do restante do globo, havia tido uma história
distinta e livre de grandes influências externas. Assim, foi uma complexa interação de
fatores internos que, no alvorecer do século XVI, deu muitas formas às diversas
sociedades indígenas: estados altamente estruturados, senhorias mais ou menos
estáveis, tribos e grupos seminômades ou nômades (WACHTEL, 2018). Seria nesse
mundo notoriamente autossuficiente que um amplo impacto brutal e sem precedentes
ocorreria a partir da invasão dos homens europeus – os quais comungavam de uma
realidade profundamente diferente. No que concerne ao processo de conquista e
colonização espanhola, a reação dos americanos nativos diante da invasão hispânica
teria variado consideravelmente: de ofertas de aliança a uma colaboração
parcialmente forçada, de uma resistência passiva a uma hostilidade permanente –
como apontam as obras de Bartolomé de Las Casas (BRUIT, 1995). No entanto, em
toda parte, a chegada desses homens causaria um amplo impacto e espanto, não
menos intenso entre os próprios conquistadores: “ambos os lados estavam
descobrindo uma nova raça de homem de cuja existência jamais haviam suspeitado.”
(WACHTEL, 2018, p. 195).
Embora muito se discorreu sobre o trauma da conquista espanhola – fosse
ressaltando sua importância para homologar uma efetiva mundialização do globo
(MARKS, 2007) ou para a criação de uma rede econômico-cultural concreta
(MCNEILL, MCNEILL, 2010) –, fato é que a chegada do europeu nos impérios pré-
colombianos causou uma desestruturação no modelo político, religioso e cultural
daqueles povos. Afinal, o governo espanhol, ao mesmo tempo em que fazia uso das
instituições nativas, realizava sua desintegração, deixando apenas estruturas parciais
que sobreviveriam fora do contexto coerente que lhes havia dado sentido. Assim, “As
consequências destrutivas da conquista afetaram as sociedades nativas em todos os
níveis: demográfico, econômico, social e ideológico.” (WATCHEL, 2018, p. 200). No
plano eclesiástico, por exemplo, muitas discussões foram feitas para compreender a
compatibilidade da “descoberta” do Novo Mundo com as palavras bíblicas (SANTOS,
NETO, 2011). Muitos dos interesses dos invasores consistiam na extração de
minérios, especialmente a prata e o ouro, muito apreciados na Europa e na China.
Para tanto, a mão de obra indígena desempenhou um importante papel na economia
extrativa implantada pela Coroa espanhola, ao longo de todo o período colonial e
ainda no alvorecer dos primeiros Estados Nacionais do século XIX.
Apesar do descenso demográfico dos indígenas ocasionado pela invasão e
colonização espanhola – as estimativas apontam para uma redução de 90% da
população nativa ainda no século XVI (WATCHEL, 2018) –, o trabalho escravo na
América espanhola foi composto majoritariamente pelos povos locais. O frade
dominicano Bartolomé de Las Casas (1484-1566) dedicou diversas obras ao
comportamento dos indígenas diante da conquista espanhola e suas observações
podem ser estendidas para grande parte do período de existência da escravização
dos nativos (BRUIT, 1995). Sob uma aparente insolência e preguiça, os nativos
submetidos ao sistema escravista buscavam formas de resistência aos mecanismos
institucionais de dominação que frequentemente se manifestavam de forma
mascarada e implícita. Dentre os modelos de resistência adotados pelos indígenas foi
a tentativa de manutenção dos códigos linguísticos e culturais frente às imposições
homogeneizantes da Coroa espanhola. Além da comunicação em dialetos locais,
muitos dos povos buscavam perpetuar seus costumes e valores através de ritos ou
canções, todos mascarados e infiltrados no sistema colonial.
A música como subterfúgio de resistência não se restringiu aos indígenas da
América espanhola. Embora com significados e contextos distintos, a música como
instrumento de resistência política e cultural esteve presente em outra porção do
continente americano: aquela dominada pela Inglaterra. É um consenso que a mão
de obra indígena desempenhou um papel menos determinante na economia agrícola
implantada nas chamadas Treze Colônias Inglesas – localizadas no leste do atual
território dos Estados Unidos –, onde o trabalho africano seria de maior
predominância. Os negros “importados” do continente africano teriam sido levados
majoritariamente à porção sul da área das Treze Colônias, sendo complementares à
mão de obra servil e livre. Para esses povos, submetidos ao tráfico intercontinental de
escravos, a língua e a cultura inglesa foram de maior receptividade quando
comparadas à adoção do espanhol pelos indígenas nas colônias hispânicas. Não
deve nos surpreender que as músicas cantadas pelos escravos africanos no território
inglês incorporassem elementos da religião cristã e fossem cantadas na língua
inglesa. Nesse contexto, os spirituals desempenharam um importante papel, não
somente por constituir um meio de expressão, mas sobretudo por seu conteúdo servir
de esperança aos negros e inspirá-los a uma resistência frente à dominação.
O presente trabalho visará discorrer acerca da importância das músicas na
escravidão indígena nas colônias espanholas e na escravidão africana nas colônias
inglesas, destacando-as como mecanismos de resistência cultural e política. O texto
está estruturado em um tópico central responsável por aprofundar o debate, assim
como de uma conclusão.

A música, os índios, os negros e a resistência nas colônias espanhola e inglesa


Em A invenção do cotidiano (1998), Michel de Certeau conceituou o binômio
estratégia-tática, cujos significados, apesar de complementares, se contrapõe.
Segundo o autor, “O que distingue estas daquelas são os tipos de operações nesses
espaços que as estratégias são capazes de produzir, mapear e impor, ao passo que
as táticas só podem utilizá-los, manipular e alterar.” (CERTEAU, 1998, p. 92). Diante
de uma produção racionalizada e expansionista feita pelas estratégias institucionais,
posta-se uma produção totalmente diversa e astuta, caracterizada sob o conceito de
“consumo”, a qual é parte das táticas. As táticas, portanto, constituem na arte de
utilizar aquilo que é imposto, atuando como uma espécie de resistência inconsciente
diante dos mecanismos institucionais de dominação. Muitos desses comportamentos
de resistência fazem parte do campo da infrapolítica, visto que integram uma porção
não-institucional do sistema político. Tomando como parâmetro os conceitos
desenvolvidos por Michel de Certeau (1998) e o campo da infrapolítica, podemos
compreender a música indígena e a música negra enquanto táticas de resistência
frente os mecanismos institucionais de dominação impostos pelas Coroas europeias.
Tanto os nativos americanos quanto os negros africanos empregaram as canções
como ferramentas de resistência, ora tentando preservar a cultura tradicional, ora
oferecendo esperança e incitando a revoltas.
A música enquanto fonte para o conhecimento histórico não foi objeto de estudo
entre os historiadores há tanto tempo. Foi sobretudo através da Nova História que se
passou a cogitar o uso das canções para “pensar a sociedade e a história.”
(NAPOLITANO, 2002, p. 08). Além do estudo de sua própria musicalidade, o
historiador conta com um suporte metodológico para pensar através da música. Nessa
parte do trabalho, iremos buscar analisar o papel das músicas na sociedade colonial
da América espanhola e inglesa, mapeando sobretudo seus significados no sistema
escravista. Comecemos com as colônias hispânicas. Devido à multiplicidade de
tradições nativas existentes no território americano, iremos enfocar a cultura uitoto,
comungada pelos povos originários da região amazônica peruana e colombiana,
secularmente dominada pela Coroa espanhola.
O estudo das culturas indígenas foi muito prejudicado por uma tradicional
hierarquia existente entre escrita e oralidade. De fato, essa circunscrição do fenômeno
cultural à uma escrita alfabética acaba tendo como resultado uma invisibilidade das
diversas outras formas de escrita que não se manifestam unicamente em uma página,
mas através de suportes acústicos, visuais e táteis. Essa nova maneira de estudar as
tradições indígenas acaba por reconhecer a importância da oralidade e da
verbalização das culturas originárias, permitindo ao historiador ampliar seu campo de
fontes e adentrar no universo das músicas. É a partir desse arcabouço que podemos
analisar os cantos ritualísticos uitotos, grupo assentado na região colombiana do Gran
Caquetá (ALCOCER, 2015). As músicas entre os indígenas não devem ser vistas
apenas como elementos da tradição nativa, mas necessita ser estudada enquanto
uma reflexão em torno da experiência histórica desse povo aquando do contato com
os europeus. É evidente que o quadro das relações interétnicas entre europeus e
americanos que está imbrincado na vida dos uitotos alcança a realidade de outros
povos originários da América.
Ao menos desde o século XVII, os povos que atualmente habitam a Amazônia
colombo-peruana inseriram-se em relações comerciais que acabam por vinculá-los ao
capital mercantil, participando de diversas maneiras na economia extrativa dedicada
ao Ocidente. De fato, desde o intercâmbio de bens de manufatura ocidental até as
grandes escravistas para fornecer mão de obra para as colônias espanhola,
holandesa, inglesa e francesa, os sucessivos auges econômicos dos uitotos estiveram
associados ao advento de epidemias de varíola, gripe e sarampo – quadro
compartilhado pelos povos situados por todo o território americano (ALCOCER, 2015).
E mais: a cultura uitoto convivia com intensa violência do exercício do controle social
e territorial, o que contribuiu para dizimar severamente os povos originários da região.
Além do massacre demográfico, as armas e os germes acabaram por auxiliar no
desaparecimento de aspectos da cultura e dos conhecimentos locais. Essa situação
deve ser relembrada quando nos propomos a estudar as músicas ritualísticas dos
uitotos.
Atualmente, se reconhece como etnia uitoto cerca de 6 mil povos ameríndios
localizados na Amazônia colombo-peruana. As incursões dos conquistadores
europeus ocasionaram uma certa dispersão inicial. Segundo Paulina Alcocer (2015),
os principais assentamentos atuais se localizam nos rios Igarapaná, Caraparaná, no
meio do Caquetá e em algumas localidades do Peru. No entanto, apesar da dispersão
espacial e da heterogeneidade linguística que os compõe, os povos uitotos
conformam uma mesma sociedade, compartilhando um mesmo complexo cerimonial
organizado em torno do consumo ritualístico da coca e do tabaco. Apesar do notório
etnocídio que acarretou no declínio da memória ritual e cultural do grupo, houve uma
tentativa em preservar os dialetos nativos e a estrutura de clãs. Nesse ponto, um
importante papel seria desempenhado pelas músicas, responsáveis por convergir
aspectos da cultura uitoto e cantadas na língua tradicional.
Muito do que a historiografia conhece sobre as músicas uitotos são resultado
de esforços de compiladores europeus – especialmente dos antropólogos. As
primeiras tentativas vieram do etnólogo alemão Konrad Theodor Preuss (1869-1938),
cujos livros acerca das canções e danças dos uitotos apareceram na Alemanha na
década de 1920 em dois volumes. Mas será somente na década de 1990 que as obras
de Preuss serão traduzidas ao espanhol, as quais coincidem com o advento dos
trabalhos de Fernando Urbina Rangel (1992; 2011) e Juan Álvaro Echeverri (1997).
Esses textos tentaram fixar as tradições culturais dos uitotos em uma escrita
alfabética, visando transcrever o que até então havia subsistido na sabedoria dos
anciãos. Ao relatar o papel da coca entre esses nativos, Rangel (2011) relata uma
conversa que teve com o Abuelo José García, no qual o indígena colombiano relembra
a secular tradição de cultivar a planta com as músicas: “Al sembrar se canta, se silba
para que la coca se ponga contenta. Al cantar se pone feliz porque presiente que se
va a hacer baile. Y así crece rápido. Esos cantos son las oraciones. ¡Como
antiguamente todo se hacía coqueando!” (GARCÍA apud RANGEL, 2011, p. 201).
Através das comunidades sobreviventes, os historiadores, antropólogos e
etnólogos conseguem acessar – mesmo que parcialmente – uma tradição cultural
também sobrevivente do processo de conquista europeia. São principalmente os
vestígios dos rituais que aparecem nos textos entonados pelos indígenas, que
ganham uma musicalidade proveniente de instrumentos locais (ALCOCER, 2015). O
cultivo e uso ritualístico da coca é o principal tema das canções. De fato, a
manutenção desse conhecimento mesmo depois de tantos séculos de contato com
uma cultura de imposições sociais e políticas é um fenômeno que não deixa de
surpreender aos pesquisadores. Mostra, como bem ressalta uma historiografia de
revisão, que os ameríndios não foram simples agentes passivos do processo de
dominação europeia, o que nos leva a contestar o próprio uso do termo “aculturação”.
Apesar de se referirem ao início da conquista europeia, os relatos escritos pelo próprio
Bartolomé de Las Casas evidenciam a ausência de passividade entre os povos
nativos, os quais acabavam por mascarar sua resistência até mesmo através da
preservação de sua língua ancestral. Era uma resistência manifesta na conservação,
muitas vezes vista como idolatria – como aponta Clementina Battcock (2015) em seu
estudo sobre os costumes de indígenas bolivianos.
No que concerne à colonização da Inglaterra nos territórios setentrionais do
continente americano, vemos uma realidade distinta. O papel do indígena na
constituição da cultura norte-americana permanece de menor proporção quando
comparado aos atuais Estados da América Latina. A própria história dos EUA acaba
por silenciar a presença dos nativos no território “descoberto” pelos europeus e sua
importância na constituição do país. Embora não se possa desconsiderar o papel dos
indígenas na construção da cultura estadunidense, os negros trazidos da África
acabaram por possuir um maior destaque na literatura historiográfica. De fato, desde
o começo de sua escravização, os africanos forçados a saírem de seu lar para o labor
à serviço dos europeus na América inglesa estavam cientes das contradições
inerentes a uma sociedade tão ardentemente comprometida com as ideias de uma
irmandade cristã e liberdade e, ainda assim, tão envolvida na inumana e imoral
instituição da escravatura. Mas, independentemente do quão confusos estivessem
seus captores sobre os assuntos da liberdade, aqueles mantidos em cativeiro tinham
clareza que seus direitos humanos à liberdade estavam sendo violados. Eles também
tinham clareza que eles mesmos teriam de assegurar sua liberdade, uma vez que
seus captores haviam miraculosamente conseguido excluir as pessoas de cor como
membros da raça humana (JONES, 2005).
As formas de resistência haviam começado no próprio navio negreiro, onde os
cativos africanos começaram sua luta ativa pela liberdade, expressa sobretudo em
forma de revoltas, escape e suicídio. Em coerência com as tradições africanas, eles
pontuavam suas ações com músicas – em que até mesmo as práticas de suicídio
vinham acompanhadas de “canções de triunfo”. A luta pela liberdade nos afro-
americanos se iniciava ainda no cativeiro africano, a partir de quando muitos escravos
reconheciam a importância do divino para sua liberdade. Afinal, no seu quadro de
referências derivado da África não havia nenhuma contradição entre esta fé absoluta
no divino e a concomitante suposição de responsabilidade pelas ações individuais e
coletivas (JONES, 2005). No decorrer do período da escravidão nas Treze Colônias
e, posteriormente, no recém constituído território dos EUA, a luta pela liberdade
tomava variadas formas: incêndios, insurreições, assassinatos, escapes,
sobrevivências culturais, suicídios ou simplesmente a vontade férrea de viver.
Combinando sua fé e esperança, aqueles ainda em cativeiro compuseram e adotaram
canções rítmicas e alegres, cheias de antecipação de liberdade: os spirituals. Por
exemplo, em uma de suas mais famosas canções, eles cantavam em júbilo:
O Senhor não libertou Daniel?
Libertou Daniel, libertou Daniel?
O Senhor não libertou Daniel?
Então porque não [libertar] todos os homens?
Ele livrou Daniel da cova dos leões,
Jonas da barriga da baleia,
E os jovens hebreus da fornalha ardente,
Então porque não [livrar] todos os homens?
(apud JONES, 2005, p. 03)
Fica claro nos spirituals a importância da religião cristã no espírito libertários
dos negros escravos, os quais viam seu futuro de liberdade como algo positivo. As
histórias do Antigo Testamento tinham um papel especial nas letras das canções,
posto que a história do povo hebreu havia se tornado sua história. Estas histórias
serviram como fonte principal para os spirituals, sublinhando o fato de que os africanos
escravizados não apenas desejavam liberdade, mas se identificavam mais fortemente
com figuras ativamente envolvidas e no fim vencedoras nas batalhas por liberdade
documentadas biblicamente. Além de fornecerem conforto e identificação coletiva, no
entanto, as letras dos spirituals eram veículos espirituais através dos quais os
africanos escravizados se transportavam para a efetiva experiência dos israelitas em
cativeiro, utilizando relatos bíblicos da vitória final para sustentar suas visões paralelas
de vitória na América (JONES, 2005).
Ainda que seja impossível determinar com qualquer certeza as datas de
composição de qualquer canção específica, não há questionamentos de que os
spirituals e outras canções eram usadas frequentemente como comunicação secreta
entre companheiros cativos ou entre cativos e pessoas da comunidade livre
[engajadas em movimentos abolicionistas] servindo para facilitar fugas ou revoltas.
Algumas canções chegavam a servir como mapas, apontando o caminho para rotas
que levavam a liberdade e segurança. A mais bem conhecida destas canções é
“Follow the Drinking Gourd”, que direcionava escravos fugitivos a continuarem
viajando em direção ao Big Dipper – nome dado ao conjunto formado pelas sete
estrelas mais brilhantes da constelação de Ursa Maior, que foi reconhecido por várias
civilizações diferentes:
Siga a cabaça!
Siga a cabaça,
Pois o velho homem está sempre esperando para carregar-te a
liberdade,
Se você seguir a cabaça.
Quando o sol voltar e as primeiras codornas chamarem,
Siga a cabaça,
Pois o velho homem está sempre esperando para carregar-te a
liberdade,
Se você seguir a cabaça.
(apud JONES, 2005, p. 07)
Claramente, africanos escravizados empregavam spirituals e outras canções
populares como comunicação codificada secreta anunciando planos de escape,
revoltas e reuniões clandestinas, ou torcendo por seus companheiros em batalha. Mas
seria um erro concluir que tal comunicação secreta fosse o único propósito da maioria
dos spirituals ou que a necessidade de comunicação secreta serviu de principal
motivação para suas criações. Canções como “Follow the Drinking Gourd” podem ter
servido ao objetivo primário de facilitar fugas seguras para os fugitivos. No entanto, é
provável que na grande maioria dos casos em que se empregavam os spirituals
instrumentalmente para propósitos políticos se tratasse de uma improvisação sobre
uma forma de arte já existente, não do objetivo primário de sua composição inicial. É
notável que “Follow the Drinking Gourd” e outras canções similares tenham tido uma
relativamente pequena vida ativa para além da circunstância histórica da escravidão.
É provável que tenha havido muitas canções como esta utilizadas para comunicação
secreta, mas a maior parte destas canções não sobreviveu para que pudéssemos
analisa-las. Spirituals profundamente religiosos, como “Go Down, Moses”, continuam,
mais de 130 anos após a emancipação, capturando o interesse e a atenção das
pessoas por todo o mundo. Claro, uma razão para a sobrevivência destes spirituals
sobre as canções mais esotéricas é que a natureza secreta de certas canções impedia
que seus sentidos fossem revelados a coletores e observadores, por motivos óbvios.
É impossível determinar a extensão do quanto este fenômeno esteve presente no
desaparecimento destas canções do repertório da história oral. A despeito disso,
podemos acreditar que uma razão adicional pela qual muitos spirituals sobreviveram
seria porque as inspirações originais por trás de suas criações derivavam de
experiências humanas profundamente significativas arquetipicamente, relevantes não
apenas para a específica circunstância da escravidão, mas também para mulheres e
homens lutando em questões de justiça, liberdade e integridade espiritual em todos
os tempos e lugares.
Considerações Finais
Ao longo desse trabalho, traçamos um estudo do papel das músicas em dois
contextos muitos distintos: nas colônias espanholas e inglesas. Apesar das distinções
culturais historicamente características destas duas realidades, a escravidão
enquanto importante forma de mão de obra foi um fenômeno característico na história
do continente americano. Fosse através do uso da mão de obra indígena ou dos
negros africanos, o trabalho escravo foi a base das plantações e das empresas
extrativas nas economias europeias implantadas no Novo Mundo. Nesse trabalho,
buscamos mostrar que, além das formas convencionais de resistência à escravidão,
a música atuou como um importante instrumento de resistência, sobretudo em seu
aspecto cultural, ora contribuindo na preservação da cultura dos povos nativos, ora
como esperança espiritual para os negros africanos.

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