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Tradução preliminar de Messias Basques – SEM REVISÃO. NÃO CITAR EM OUTRAS PUBLICAÇÕES.

Texto disponibilizado para uso em aula. Curso de Extensão Vozes Negras na Antropologia, UNILAB, 2021.

Dr. Jean PRICE-MARS [1876-1969]


médico, etnógrafo, diplomata, estadista,
filósofo, ensaísta e escritor haitiano

Sobrevivências africanas e o dinamismo da cultura


negra através do Atlântico.
em Présence Africaine, 1956/3 (N° VIII-IX-X), pp. 272-280.

21 DE SETEMBRO, às 15 horas.

É evidente que a profanação mais hedionda que manchou a face da terra foi
o tráfico de escravos. E quando se considera que esta abominação foi perpetrada du-
rante séculos pelas nações europeias mais orgulhosas de seu padrão de civilização –
França, Inglaterra, Holanda, Espanha, Portugal, etc. –, o crime parece ainda mais
odioso e execrável. Não restam dúvidas de que esse crime foi camuflado com pre-
textos humanitários e altamente espirituais. Foi sob a embriaguez das chamadas cru-
zadas contra o paganismo, sob o fervor de uma campanha contra a idolatria, que se
tentou justificar o que era o empreendimento econômico mais impiedoso. Pois se há
um fato não menos óbvio, e que há muito foi trazido à luz como uma banalidade
esmagadora, é que o prodigioso impulso para a conquista e escravização das massas
negras nada mais foi do que a submissão passiva das potências europeias à pressão
da necessidade econômica, o que as obrigou a substituir a improdutiva força de tra-
balho ameríndia por uma força de trabalho mais robusta e, ao mesmo tempo, mais
resistente, mais maleável, a fim de extrair o máximo lucro da riqueza agrícola e in-
dustrial das terras americanas recém-descobertas. Assim, o tráfico começou nas pri-
meiras décadas dos anos 1600.
Lembramos que os primeiros elementos da imigração negra foram enviados
às Antilhas, primeiro a São Cristóvão, depois a São Domingos.
Na França, Colbert estabeleceu a portaria em 1664. Desde então, o tráfico
aumentou gradualmente de tal forma que, com o passar dos anos, o comércio de gado
humano intensificou-se até que, no final do século XVIII, 30 a 35.000 unidades eram
transportadas anualmente da África para a América.
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Assim era o processo do tráfico de escravos entre a metrópole francesa e suas


colônias do outro lado do Atlântico, entre as quais São Domingos ocupava a primeira
posição pela extensão de suas terras e pela riqueza de sua exploração.
Mas praticamente todos os assentamentos coloniais na América tropical per-
tencentes às outras potências europeias – tanto os das ilhas quanto os do continente
– que foram impulsionados pelos mesmos imperativos de exploração em busca de
um retorno mais produtivo do trabalho, recorreram aos mesmos estratagemas do trá-
fico de escravos para que o cultivo da cana-de-açúcar, do tabaco e do algodão em-
preendido pelos ingleses, espanhóis, portugueses e holandeses levasse à maior pros-
peridade em suas respectivas colônias.
Assim, seguiu-se que, entre os séculos XVII e XVIII, a população servil do
Novo Mundo, composta de negros africanos, havia aumentado para mais de um mi-
lhão nos Estados Unidos em 1800, para um milhão e seiscentas mil almas no Brasil
em 1798, e para 600 mil em São Domingos em 1789. Mas já na época da emancipa-
ção dos negros nos Estados Unidos, ou seja, em cerca de sessenta anos, o aumento
da população servil havia atingido um total de 4.500.000 almas. Se acrescentarmos
a esses números os das outras Antilhas e os dos outros países da América Central e
do Sul, provavelmente teremos mais de uma dúzia de milhões de escravos negros no
Novo Mundo no início do século XIX. De fato, sempre foi difícil determinar o nú-
mero exato desta parte da população espalhada pelas diversas regiões da América. É
por isso que nos últimos 50 ou 60 anos foram apresentados apenas números aproxi-
mados. Só podemos utilizá-los com certas reservas. Em primeiro lugar, os dados es-
tatísticos eram em sua maioria inexistentes e, mesmo quando existiam, eram na mai-
oria das vezes distorcidos sistematicamente por considerações subjetivas de prestígio
e até vergonha, pois dizia-se que a maior parte das comunidades eram completamente
caucasianas, negando-se descaradamente a mestiçagem de um grande número de
seus habitantes. Entretanto, é um fato que a difusão do elemento negro ou negroide
se espalhou por toda a América – de norte a sul, de leste a oeste. Em quantidades
mais densas nos estados do sul dos Estados Unidos da América do Norte que fazem
fronteira com o Atlântico, no Arquipélago das Antilhas, especialmente na parte oci-
dental da ilha do Haiti, e no Brasil na América do Sul.
De acordo com uma estatística publicada em 1900 por Sir. Harry H. Johnston
em seu notável livro O negro no novo mundo, o número total da população negra ou
negroide no novo mundo era então de 24.591.000. Quarenta anos depois, em 1940,
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Angel Rosenblatt em La Población indígena de América desde 1492 hasta la actua-


lidad declarou que este número tinha aumentado para 54.617.416 unidades.
Lamentamos não poder apresentar os números reais dos últimos 16 anos
(1940-1956), pois não temos nenhuma publicação convincente para prová-los. Pode-
se supor, entretanto, que se os três principais centros de demografia negra na América
somam, juntos, um número de 48 milhões de unidades – ou seja, respectivamente, os
Estados Unidos da América 15 milhões, o Brasil 19 milhões, o Arquipélago das An-
tilhas 14 milhões –, é evidente que a adição dos grupos negros que vivem nas outras
partes deste hemisfério elevaria o número total de negros na América a um número
que ultrapassaria 54 milhões de unidades.
De qualquer forma, decorre dos números acima mencionados que o número
de 54 milhões de negros na América neste século é suficientemente sugestivo para
nos permitir tirar algumas conclusões.
Esta afirmação, que não implica nenhuma imigração massiva de negros da
África ou da Ásia, denota a multiplicação demográfica de negros entre si e sua mis-
cigenação com os outros elementos básicos das populações americanas: brancos,
ameríndios e asiáticos. E estes fatos constituem o testemunho mais vivo da sobrevi-
vência antropo-biológica das massas negras levadas à escravidão no Novo Mundo.
Apesar do estigma ligado à servidão negra, apesar das barreiras legais e defesas que
proibiam o contato sexual entre brancos e negros, apesar do sistema de discriminação
racial que era a consequência imediata, apesar da atitude tola de negativismo e me-
galomania que é evidenciada em muitas comunidades americanas que sofrem de bo-
varismo coletivo, a miscigenação é o fato predominante e sempre prevaleceu na
América, apropriadamente chamada de caldeirão cultural. O número crescente de
homens de todas as tonalidades, a inumerável variedade resultante do cruzamento do
negro com os tipos caucasianos ou amarelos nas diversas regiões do Novo Mundo,
testemunham eloquentemente a mistura de raças em que o negro importado da África
participou no Hemisfério Ocidental. Como resultado, sua sobrevivência biológica
tornou-se o fator decisivo em sua influência cultural no ambiente americano. Isto é
o que veremos.

II
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Na época do tráfico de escravos e do estabelecimento do penoso regime de


escravidão, ninguém poderia imaginar que o gado humano destinado ao trabalho ser-
vil, cujo único objetivo era prover a força motriz da exploração agrícola, seria envol-
vido em uma troca de serviços com seu dono. Entretanto, entre o bárbaro e o patrício,
nasceu um sistema de intercâmbio espiritual que sobreviveu à crueldade da escravi-
dão. Esta foi a linguagem usada por senhores e escravos em muitas colônias para que
se entendessem uns aos outros. Deve-se ressaltar que esta língua, chamada crioula, é
comum, apesar de certas variações, a todos os assentamentos ultramarinos coloniza-
dos pelos franceses nos séculos XVI e XVII, seja em São Domingos, Martinica, Gua-
dalupe, Guiana Francesa, Louisiana ou mesmo as Ilhas da Reunião no Oceano Ín-
dico. No entanto, nenhuma língua semelhante se espalhou nas comunidades coloni-
zadas pelo inglês e pelo espanhol ou mesmo pelo português. Somente na colônia
holandesa de Curaçau um processo semelhante - o papiamento - serviu como meio
de comunicação entre os colonos holandeses e seus escravos. Assim como o crioulo,
ele sobreviveu à era colonial e permaneceu como o vernáculo dos curaçaenses.
Quanto ao crioulo, é atualmente o veículo de pensamento para um conglomerado de
mais de 6 milhões de pessoas se contarmos o crioulo do Haiti, o das pequenas Anti-
lhas francesas, parte da Louisiana, Guiana Francesa e as ilhas da Reunião.
É uma verdadeira linguagem com todos os atributos de um organismo deste
tipo. Suas origens o ligam ao francês, do qual deriva por sua formação histórica. Mas
então surge uma pergunta sobre isto.
De onde vem a disparidade de abordagens linguísticas entre o grupo inglês e
espanhol, por um lado, e o grupo francês e holandês, por outro, na criação de uma
língua intermediária capaz de servir como veículo de pensamento entre esses vários
colonizadores e seus escravos?
Talvez fosse mais fácil para os africanos assimilar o mínimo de expressões
em inglês e espanhol para apreender o pensamento de seus mestres anglo-espanhóis
do que eles foram capazes de empregar no mesmo processo psicológico em relação
ao francês e ao holandês. Assim, engenhosamente, incluíram o vocabulário francês
ou holandês mais ou menos deformado no molde morfológico de certos dialetos da
África Ocidental. Assim, inventaram o crioulo e o papamiento. Esta é, pelo menos,
a teoria explicativa da formação do crioulo que prevalece entre os mais distintos lin-
guistas do Haiti, como o Sr. Charles Fernand Pressoir, que dedicou notórios estudos
comparativos entre o crioulo e certos dialetos africanos, notadamente o daomeano.
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Estes linguistas apontam que as formas gramaticais do crioulo são tão semelhantes,
em muitos aspectos, aos dialetos da África Ocidental que o contato espiritual entre
brancos e negros para a troca de suas ideias foi facilitado pela prontidão com que os
negros retiveram os vocábulos em francês que se adaptaram à morfologia das línguas
africanas. Deve-se notar que esta operação era imperativa, visto que se os mestres
não falavam nenhum dialeto africano, os africanos, por sua vez, não só não falavam
francês como muitas vezes não podiam compreender uns aos outros [devido à diver-
sidade de suas origens étnicas e dialetais]. Devemos então lembrar que esta foi a
manobra utilizada pelos comerciantes para vender os negros em tribos dispersas, a
fim de evitar qualquer indício de entendimento entre eles em vista de possíveis re-
voltas. A dupla necessidade de encontrar uma língua comum para todos fez aparecer
o crioulo.
Em qualquer caso, estudos da linguística comparativa do crioulo e dos diale-
tos africanos da África Ocidental permitem rejeitar a explicação estúpida e sem sen-
tido que informantes pouco sofisticados, como o Sr. Edward Larocque-Tincker,
ainda persistem em sustentar sobre a origem do crioulo. Assim, é surpreendente en-
contrar em um artigo publicado pela Revue de Paris, em abril de 1956, as seguintes
observações sobre as dificuldades fisiológicas que impediriam o escravo recém-che-
gado aos Estados Unidos de falar francês: "Seus lábios inchados", escreveu ele, "e
sua língua grossa tornavam impossível para ele pronunciar certas palavras ricas em
vogais em francês". Em sua boca, juge [juiz] tornou-se jige, tortue [tartaruga] - toti,
nuit [noite] - nuiti. Incapaz de rolar os erres, ele havia decidido “nunca se importar”
e dizia nego para negro, venda para vender.
Como ele não sabia ler nem escrever, a linguagem era para ele apenas uma
matéria de ouvido. Somente as sílabas tônicas das palavras o alcançavam e, assim
que pôde, ele nomeou as outros. "Chamar" tornou-se para ele chamá, "capaz" capai,
e "hoje" hoji.
Um conhecimento menos sumário dos estudos linguísticos dos dialetos afri-
canos e um apego menos feroz aos preconceitos absurdos sobre a má formação bio-
lógica do negro teriam ajudado o Sr. Laroque-Tinker a encontrar na fonética a ver-
dadeira explicação das transformações do francês, do século XVII, no crioulo inven-
tado quase ao mesmo tempo.
Entretanto, outra teoria sustentada pelo Sr. Jules Faine, um distinto linguista
do Haiti, diz que o crioulo deriva de antigos dialetos franceses ainda em uso no século
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XVII, na mesma época em que os marinheiros da Normandia, Bretanha, Picardia,


etc., viajavam pelos mares em busca de aventura e comércio. Dessa maneira, eles
teriam sido os disseminadores de uma linguagem arcaica emprestada e adotada pelos
povos de sua clientela.
Qualquer que seja o julgamento que se possa fazer sobre qualquer uma das
teorias, cuja demonstração merece ser levada ao ponto de incontestabilidade por es-
tudos cada vez mais avançados dos dialetos africanos até que a prova seja justificada
ou invalidada, é necessário ressaltar que o crioulo contém, além de sua morfologia
africana, um grande número de vocábulos obviamente africanos que se encontram
praticamente inalterados no Haiti, bem como nas colônias francesas da América,
como também persistem no Brasil, Louisiana, Cuba, Guiana e mesmo em algumas
das colônias britânicas das Antilhas. Estes termos são especialmente comuns nos
campos culinário, agrícola, religioso e mágico. Infelizmente, nenhum lexicógrafo no
Haiti pensou, até agora, em catalogá-los como Fernando Ortiz fez para o espanhol
cubano ou Renato Mendonça para o português brasileiro. No entanto, citaremos al-
guns deles como exemplos:

Acassan: pasta alimentícia feita de farinha de milho, água e sal, muito popular
nas dietas dos camponeses haitianos.
Acra: pasta alimentícia feita de farinha de ervilha seca (vigna simensis) tem-
perada com pimenta.
Agogo! um grito de exclamação frequentemente proferido por seguidores de
Vodu durante cerimônias culturais.
Banza: instrumento musical de corda semelhante ao violino.
Baka: uma espécie de monstro anão usado por feiticeiros para fins mágicos
(lendas).
Bonda: nádegas.
Cachimbo: Um tubo de barro ou madeira preso a um cachimbo de barro usado
pelos camponeses para fumar.
Gongolo: Uma espécie de miriápode.
Gris-Gris: Um termo usado em ornitologia para descrever uma ave de rapina.
Gombo: planta comestível. (Hibiscus esculentus).
Marabout: Termo que designa uma variedade de cor usada como pigmento.
Samba: Termo de dança.
Tanga : Uma espécie de tanga usada para cobrir as partes sexuais de um ho-
mem ou de uma mulher.
Inhame: Tubérculo comestível (Dioscorca data).
Zombi: Uma pessoa cuja morte aparente o mágico teria causado para fazer
voltar à vida desencarnado como um autômato (lenda).

Salientamos que este vocabulário resumido e restrito é dado aqui apenas


como exemplo, uma vez que seria inadequado aumentar seu escopo, pois este não é
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nosso propósito. No entanto, é quase idêntico ao publicado por Renato Mendonça


em seu livro A influencia Africana no português do Brasil, publicado no Rio de Ja-
neiro em 1934. Os mesmos termos são usados no mesmo sentido em português bra-
sileiro. Eles testemunham as sobrevivências africanas naquele país, assim como as
milhares de palavras coletadas por Fernando Ortiz em sua grande obra Glossário de
afronegrismos dão prova do trabalho feito pela fonética africana sobre o espanhol
cubano. Agora, é especialmente no campo das crenças religiosas e supersticiosas que
esta prova abunda nos meios americanos. É evidentemente mais ou menos marcado
de acordo com a importância demográfica do grupo negro. Por exemplo, no Haiti,
onde o culto vodu tem um número muito grande de crentes entre as massas populares
e camponesas, todo o olimpo do vodu toma emprestado seu vocabulário dos dialetos
africanos. Pode-se dizer que Dahomey, Nigéria e Congo têm sido os provedores da
língua sagrada de vodu como Roma proveu o latim ao catolicismo apostólico e ro-
mano. Seria enfadonho enumerar o volumoso vocabulário africano contido no ritua-
lismo de vodu. Basta ressaltar que o corpo sacerdotal deste culto - hougans, bocors
(sacerdotes), mambos (sacerdotisas) ougênikons, ounsis (dignitários hierárquicos do
culto), a cosmogonia e as divindades, o ritualismo e a orquestra, Lebga, Ogou, Da-
mballa ouêdo, Shango, Linglesou (divindades olímpicas), ounfô (altar), asen (cetro);
tambores, vêvê (sinais simbólicos), em suma, toda a morfologia de vodu deriva desta
costa ocidental da África. No entanto, foi influenciada pelo catolicismo romano, cuja
difusão prevalece na comunidade haitiana. Obviamente, como resultado de um con-
tato multissecular entre os dois cultos, tem havido um sincretismo de crenças popu-
lares que dá o tom sui generis da religião das massas haitianas. É aqui que ocorre o
processo de aculturação, em virtude do qual duas culturas em contato entre si tornam-
se tão interligadas que as trocas dão ao produto delas derivado um aspecto de novi-
dade interpretativa. A sutileza da operação neste caso consiste na transposição das
divindades católicas para o molde africano e a acomodação que se segue se revela na
dupla piedade dos fiéis aos dois cultos por uma curiosa harmonização das partes. O
mesmo fenômeno é encontrado nas comunidades negras dos países protestantes da
América sob diferentes aspectos. Nas chamadas cerimônias de avivamento, o Espí-
rito Santo (Holy Ghost) muitas vezes se encarna na pessoa dos fiéis durante as as-
sembleias de adoração ou no ritmo dos hinos, marcado pelo bater das mãos e dos
pés, numa cadência, uma espécie de transe coletivo toma conta de uma parte da con-
gregação que grita e dança (os gritos) no entusiasmo dos transportes extasiantes. Tais
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performances não deixam dúvidas na mente do etnógrafo que vê nelas um selo de


influência africana sublimada.
Além disso, esta influência é crucial quando se trata de pequenos assenta-
mentos negros silvestres, que tiveram pouco ou nenhum contato prolongado com os
colonos da metrópole europeia, e que mantiveram uma certa autonomia secular. Eles
adquiriram o direito de preservar a fisionomia tribal inalterada dos países africanos.
Assim são revelados os modos e costumes dos Saramaka, Awka, Boni, e Djuka da
Guiana Holandesa. Essas tribos que habitam a densa floresta subequatorial da região
defenderam ferozmente seu direito de viver como bem entenderem, de acordo com
os tratados celebrados entre elas e o governo holandês, após longas e sangrentas re-
voltas contra a opressão colonial. Eles têm mantido intacto, através do tempo, o modo
de vida de seus ancestrais que foram levados à servidão deste lado do Atlântico. De
tal forma que, no momento atual, eles servem como testemunhas - como dizem em
termos laboratoriais - entre a aculturação de seus irmãos de raça colocados em outros
lugares do mesmo hemisfério sob condições diferentes entre os povos da cultura oci-
dental e o estoque primordial dos países africanos. Mas eles também têm os mesmos
temas folclóricos encontrados em Cuba, Haiti, Jamaica ou nos Estados Unidos. Esta
é mais uma prova de sua origem comum.
De fato, a presença africana é evidente em muitos outros aspectos da vida
americana.
A introdução em nossa dieta de especiarias como a pimenta, que acentuam o
sabor dos alimentos preparados no estilo europeu e que são peculiares à cozinha afri-
cana não pode ser negligenciada. Além disso, não devemos esquecer a marcada pro-
pensão para a poligamia camponesa que é habitual em algumas sociedades antilha-
nas. No Haiti, esta característica dos costumes é baseada em hábitos ancestrais pelos
quais o camponês cria ajudantes para o cultivo de seus campos através da prolifera-
ção de crianças. Ele multiplica as famílias, que são pontos de partida para a formação
e o recrutamento dessas associações temporárias e ocasionais de ajuda mútua cha-
madas combite, pelas quais ele reúne a mão-de-obra necessária para suas empresas
agrícolas. O fardo da vingança recai sobre os cooperadores. Parece que estes hábitos
são um legado africano.
Também foi observado que as ferramentas agrícolas na economia haitiana e
em sua expressão camponesa retiveram o tipo de enxada e faca que a sociologia
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classifica como símbolos de uma técnica rudimentar e que são comuns na África
Ocidental.
Seja como for, a África, neste lado do Atlântico como em qualquer outro,
inspirou um florescimento prodigioso das artes plásticas que abalou o mundo mo-
derno como uma revolução. Não é verdade que a pintura e a escultura encontraram
no realismo africano uma fonte fértil de renovação e frescor? Não é verdade que a
música tem aproveitado o poder emocional da alma negra para exalar em blues e nos
espirituais negros [estilo musical religioso dos negros do sul dos EUA] toda a pro-
fundidade inexplorada do sofrimento humano?
Não é verdade que o negro por estes meios se tornou o mensageiro de outro
evangelho, o da paciência e da esperança?
Mas se por acaso você precisa galvanizar sua energia decadente, se você tem
sede de movimento em resposta ao chamado de uma vida ardente e tumultuada, aqui
está o jazz, que lhe oferece o pânico mágico de sua orquestração polifônica e o en-
feitiçamento de seu poder evocativo. É negro.
Poderia ser um capricho do acaso, ou seria o momento de finalmente aparecer
um homem - Gilberto Freyre - filósofo e sociólogo brasileiro, apaixonado por estudos
1
e verdades, que, em um magnífico livro, Casa Grande e Senzala, ousou proclamar,
neste século XX, o que sua comunidade deve ao negro? Aqui estão os termos em que
ele presta homenagem à contribuição africana na formação do brasileiro:
“Todo brasileiro,” escreve ele, “mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma,
quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica
pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral,
do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A
influência direta, ou vaga e remota, do africano. Na ternura, na mímica excessiva, no
catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no
canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos
quase todos a marca da influência negra.”
Esta corajosa profissão de fé se move singularmente em um mundo onde
ainda ressoam os ecos dos ódios raciais, onde o valor humano do negro ainda é de-
batido pelo fanatismo imbecil dos racistas retardados. Ela se une à curiosa notação

1
Traduzido para o francês como Senhores e Escravos. Editora Gallimard.
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de C.G. Jung, relatada por Hermann de Keyserling em sua famosa obra “Psicanálise
da América.”
“O que também me impressionou foi a grande influência do negro, uma in-
fluência psicológica, é claro, não devida à miscigenação. O característico modo ame-
ricano de exteriorizar as próprias emoções, especialmente através da maneira de rir,
pode ser melhor estudado nas charges cômicas dos suplementos de seus jornais. O
modo de rir inimitável de Roosevelt pode ser encontrado em sua forma original no
American Negro. O peculiar modo de andar com as articulações relativamente soltas,
gingando e rebolando as ancas, tão frequentemente observado nas americanas, tam-
bém provém do negro. A música americana tirou sua inspiração principal do negro,
como aconteceu também com a dança. A expressão do sentimento religioso, os revi-
val meetings (os Holy Rollers e outras formas esquisitas) foram fortemente influen-
ciadas pelo negro. E a famosa ingenuidade americana, em sua forma charmosa e em
suas formas mais desagradáveis, facilmente pode ser comparada à puerilidade do
negro.”
E Keyserling retomando o tema para analisar seu conteúdo em profundidade,
detém-se na observação a seguir:
“Não há, portanto, nada de paradoxal em minha previsão de que as maiores
conquistas culturais da América podem muito bem ser devidas a seus filhos da raça
negra.”
Se 26 anos após esta profecia ter sido feita, ela ainda não foi cumprida, nada
altera seus fundamentos.
“O futuro é de Deus!”

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