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Aulas de campo e as práticas educomunicativas: a sala de aula encontra a

realidade1

Andrea Pinheiro Paiva Cavalcante2


Cátia Luzia Oliveira da Silva3

Resumo: O presente trabalho discute as aulas de campo da disciplina


Educomunicação, do Curso Sistemas e Mídias Digitais (UFC), como práticas
significativas na formação de educomunicadores. As aulas de campo, inspiradas
nas aulas-passeio de Freinet (1998), são realizadas ao longo do semestre para
conhecer práticas educomunicativas no contexto escolar e em organizações não
governamentais e significam o momento em que a sala de aula se encontra com a
realidade, gerando trocas de conhecimentos entre os envolvidos. É possível aos
estudantes articular os conhecimentos teóricos com as experiências práticas,
fortalecendo a aprendizagem. Nesses encontros, além de conhecer as
experiências de comunicação desenvolvidas nessas instituições, os alunos têm a
oportunidade de ministrar oficinas para crianças e jovens, a partir da formação
recebida em sala de aula. Mediante questionário de avaliação de tais atividades
foi possível constatar que as aulas de campo são iniciativas significativas para a
compreensão da educomunicação como área de intervenção social e para a
formação do futuro profissional do curso de Sistemas e Mídias Digitais porque
possibilitaram aproximar o contexto universitário do contexto escolar,
contribuindo para o entendimento de que práticas dialógicas e participativas
favorecem novas formas de aprendizagem.

Palavras-Chave: Educomunicação. Aulas de campo. Aprendizagem.

Abstract: This paper discusses the field classes of the Educomunication course
of the Digital Systems and Media (UFC), as meaningful practice in developing
educommunicators professionally. The field classes, inspired by Freinet’s class
outing (1998), are held throughout the semester to meet educomunicative
practices in the school context and non-governmental organizations and
represent a moment when the classroom meets reality, generating knowledge
exchange among the participants. It is possible for students to articulate the
theoretical knowledge with practical experience, strengthening learning. In these
meetings, apart from understanding the communication experiences developed in
these institutions, the students have the opportunity to teach workshops for
children and young people from the training received in the classroom. Through
an evaluative questionnaire of such activities, it has been established that the
field classes are significant initiatives to understand the educational
communication as a social intervention area and for the career development of
the future professional of the Digital Systems and Media course because they
allowed bridging the university context and the school context, contributing to
the understanding that dialogic and participatory practices promote new ways of
learning.
Key words: Educational communication. Field classes. Learning.

1
Trabalho apresentado na Divisão Temática DTI 4 - Educomunicação do XIV Congresso Internacional
IBERCOM, na Universidade de São Paulo, São Paulo, de 29 de março a 02 de abril de 2015.
2
Doutora, Professora da Universidade Federal do Ceará, e-mail: andrea@virtual.ufc.br
3
Doutora, Professora da Universidade Federal do Ceará, e-mail: catia@virtual.ufc.br

1
Introdução
A disciplina de Educomunicação, criada em 2013, é optativa do Curso Sistemas e Mídias
Digitais (SMD) da Universidade Federal do Ceará, de natureza interdisciplinar, sendo
constituído por docentes de várias áreas do saber, especialmente das áreas de Computação,
Educação e Comunicação Social. Foi criado no Instituto UFC Virtual, espaço da
Universidade com larga experiência em Educação a Distância, sendo responsável pelos
cursos de graduação semipresenciais da Universidade Aberta do Brasil e reconhecido
como um dos mais eficazes centros de produção de material didático digital.

O curso possui duas áreas de concentração, Sistemas Multimídia e Mídias Digitais. Nos
semestres iniciais, os três primeiros, os alunos cursam conjuntamente as disciplinas
obrigatórias e a partir do quarto semestre, elegem as disciplinas de maior interesse entre as
duas áreas, definindo assim a sua trajetória de formação. Os itinerários formativos, como
são designados, compõem-se de um conjunto de disciplinas optativas que orientam a
formação do aluno em determinada área do conhecimento, como jogos digitais, sistemas
web e animação gráfica. A primeira oferta para ingresso de alunos se deu em 2010.
Atualmente são cerca de 300 alunos matriculados nos cursos diurno e noturno.

É nesse contexto de conhecimento interdisciplinar que a disciplina Educomunicação


passou a integrar o fluxograma de matérias optativas do SMD, com a intenção de
contribuir com uma formação mais crítica, mais humanista e mais comprometida com as
demandas sociais, na perspectiva proposta por Boaventura de Souza Santos (2011), a de
constituição de um conhecimento pluriversitário ou como propõe Morin (2011), do
conhecimento complexo.

O presente trabalho se propõe a discutir as aulas de campo da disciplina Educomunicação,


como práticas significativas na formação de educomunicadores. Inspiradas nas aulas-
passeio de Freinet (1998), tais atividades são realizadas ao longo do semestre e visam
conhecer práticas educomunicativas no contexto escolar e em organizações não
governamentais, constituindo um encontro da sala de aula com a realidade, gerando trocas
de conhecimentos entre os envolvidos. O corpus teórico aproxima ainda Soares (2006),
Freire (1998) e Avena (2008) para refletir sobre as aulas de campo como espaços

2
formativos. Na próxima seção, apresentamos os conceitos de conhecimento complexo e
pluriversitário.

Formação universitária e compromisso social

Em contraposição a um conhecimento essencialmente disciplinar e hierarquizado, emerge


um conhecimento contextual e transdisciplinar, que Santos (2011) nomeia como
conhecimento pluversitário.

(...) é o resultado de uma partilha entre pesquisadores e utilizadores (...) e obriga a


um diálogo ou confronto com outros tipos de conhecimento, o que o torna
internamente mais heterogêneo e mais adequado a ser produzido em sistemas
abertos menos perenes e de organização menos rígida e hierárquica (Santos, 2011,
p.42).

Morin (2011), por sua vez, entende que está na ideia de complexidade a chave para a
ruptura com a fragmentação científica.

Devemos, pois, pensar o problema do ensino, considerando, por um lado, os efeitos


cada vez mais graves da compartimentação dos saberes e da incapacidade de
articulá-los, uns aos outros; por outro lado, considerando que a aptidão para
contextualizar e integrar é uma qualidade fundamental da mente humana, que
precisa ser desenvolvida e não atrofiada (Morin, 2011, p.16).

Contrapondo-se ao paradigma antes dominante, que defendia a ideia de que "conhecer


significa quantificar", Santos (2006) propõe a emergência do paradigma social, como
forma de superar a fragmentação da realidade proposta pela Modernidade. Santos (2006, p.
155) defende a ideia de que toda forma de conhecimento implica auto-conhecimento e
argumenta que a Modernidade ocidental se assentou na base de duas epistemologias por
ele denominadas “conhecimento-regulação” e “conhecimento-emancipação”4.

No contexto da modernidade ocidental, as possibilidades de emancipação foram reduzidas


em função das investidas do capitalismo, dando espaço para o crescimento do
conhecimento-regulação e, assim, a ciência moderna, antes uma forma de conhecimento,
se “converte no monopólio do conhecimento válido e vigoroso, consagrando a

4
Segundo o autor, “no conhecimento-regulação a ignorância é concebida como caos e o saber como ordem;
no conhecimento-emancipação, a ignorância é concebida como colonialismo e o saber como solidariedade”
(2006, p.155).

3
epistemologia positivista, em detrimento das epistemologias alternativas”. (SANTOS,
2006, p. 155).

No início do século XXI, pensar e promover a diversidade e pluralidade, para além


do capitalismo, e a globalização, para além da globalização neoliberal, exige que a
ciência moderna seja não negligenciada ou muito menos recusada, mas
reconfigurada numa constelação mais ampla de saberes onde coexista com práticas
de saberes não científicos que sobreviveram ao epistemicídio ou que, apesar de sua
invisibilidade epistemológica, têm emergido e florescido nas lutas contra a
desigualdade a discriminação, tenham ou não por referência um horizonte não
capitalista. (Santos, 2006, p. 155-156).

Em oposição à “monocultura do saber”, Santos (2006, p. 154) postula a necessidade de que


haja uma “articulação entre as estruturas do saber moderno/científico/ocidental e as
formações nativas/locais/tradicionais”, o que ele nomeia como “uma ecologia de saberes”,
porque argumenta, “o futuro encontra-se, assim, na encruzilhada dos saberes e das
tecnologias”.

Nessa mesma linha de entendimento, Morin fala em re-ligação de saberes de modo que
seja possível articular a cultura das humanidades e a cultura científica (2011, p.33),
favorecendo novas formas de pensar. “É nessa mentalidade que se deve investir, no
propósito de favorecer a inteligência geral, a aptidão para problematizar, a realização da
ligação dos conhecimentos” (p.32).

A disciplina de Educomunicação assume, pois, esse desafio de, articular as questões dos
campos da comunicação e da educação, na perspectiva do conhecimento complexo e
pluriversitário.

No tópico a seguir apresentamos a disciplina de Educomunicação, seus objetivos e alguns


aspectos da ementa, cuja fundamentação teórica tem matriz no pensamento latino-
americano.

A Educomunicação no SMD

Temas relativos às áreas da Comunicação e Educação têm sido estudados por diferentes
cursos e disciplinas na Universidade Federal do Ceará (UFC). Entretanto, foi somente no
âmbito do Curso Sistemas Mídias Digitais, que a primeira disciplina denominada
“Educomunicação” foi criada com carga horária de 64 h/a, sendo 32 h/a teóricas e 32 h/a
4
práticas. A iniciativa de criar a disciplina partiu de duas docentes do curso com trajetórias
profissionais e acadêmicas ligadas a esse campo e que atuam juntas desde a concepção da
proposta de trabalho, a cada semestre, até a realização das aulas.

A importância da oferta da disciplina de Educomunicação para o referido curso justifica-se


pelo fato de o profissional de Sistemas e Mídias Digitais necessitar transitar em várias
áreas (educação formal, não formal, informal), devendo saber transcender a
instrumentalidade técnica, promovendo a conversão da comunicação em processo
educativo, primando por valores tais como a democracia, a dialogicidade, a livre expressão
comunicativa, a gestão compartilhada dos meios de comunicação. Esses são valores que
devem estar presentes na formação desse profissional, e também futuro educomunicador,
para sua atuação nos processos educomunicativos, sejam eles na área educacional ou não.
Entre os objetivos da disciplina estão a abordagem acerca dos fundamentos
epistemológicos da inter-relação entre comunicação e educação, aspectos históricos do
campo, além do desenvolvimento de conhecimentos básicos sobre mídia e educação e a
teoria das mediações. Procurando oferecer ao aluno uma formação básica sólida na área da
Educomunicação, são apresentados na disciplina, ainda, conteúdos que tratam das
contribuições norte-americana, europeia e latino-americana, ao campo da
Educomunicação, com ênfase nesta última, e sobre a aproximação da Educomunicação
com os movimentos sociais e populares.

De natureza teórico-prática, o plano de trabalho da disciplina procura, em sua metodologia,


refletir os valores intrínsecos da Educomunicação, ao desenvolver conhecimentos,
habilidades e competências ao longo do semestre que permitam ao aluno exercitar os
fundamentos estudados. Dentre as várias oportunidades para trabalhos diversificados
durante o semestre, constam as rodas de conversa, oficinas, seminários, aulas de campo,
relatos de experiência.

Assim, na prática da condução das atividades, a cada unidade temática corresponde a


leitura e discussão de um corpus teórico, que por sua vez é trabalhado em cenários práticos
e reais, seja por meio de oficinas, seja por meio de aulas de campo. Já foram ofertadas
(pelas próprias docentes, pelos alunos ou por convidados), por exemplo, oficinas de
podcasting, stop motion, contos digitais e fanzines. Com a capacitação em cada oficina, o

5
aluno então desenvolve uma produção relacionada ao que aprendeu, seja individualmente
ou em grupo. O objetivo das oficinas não é somente conferir capacitação técnica ao aluno,
mas proporcionar-lhe uma oportunidade de reflexão crítica e ainda de expressão das suas
subjetividades. Ao criar seu próprio fanzine, conto digital etc, o aluno também é chamado
à reflexão para a aplicação educomunicativa do que desenvolveu em cenários educativos
reais.

A fundamentação teórica da disciplina toma como base o pensamento latino-americano


com as contribuições de Paulo Freire (1988) para quem a aprendizagem está baseada no
diálogo, na troca de saberes e na possibilidade de aprender a “ler o mundo para transformá-
lo” (FREIRE,1988), de Kaplún (2014) que entende que “educar é sempre comunicar” e
que “toda educação é um processo de comunicação” , de Bordenave (1984) e sua
“pedagogia da problematização” cuja ênfase está no processo, mais do que nos conteúdos e
nos resultados, para que o sujeito aprenda a aprender.

Não é recente a aproximação entre os campos da Educação e da Comunicação. Soares


(2011), Belloni (2001, 2012), Melo e Tosta (2008), por exemplo, expressam experiências
em que esses campos se cruzam desde a década de 1960. Ramos (2001) inscreve a
experiência do Plan de Niño, conhecido como Plan DENI, como precursora do trabalho
envolvendo educação e cinema, quando em 1968, em Quito, através da exibição de filmes,
apresentava às crianças aspectos da linguagem audiovisual.

Belloni (2012) situa as experiências realizadas pelo Movimento de Educação de Base


(MEB), na década de 1960, como sendo de mídia-educação, em que o rádio era utilizado
na alfabetização em massa de jovens e adultos em vários estados do Brasil, notadamente
no Nordeste. Soares (2011) reporta-se à atuação da União Cristã Brasileira de
Comunicação (UCBC) na década de 1980, com o projeto Leitura Crítica da Comunicação
(LCC). Melo e Tosta (2008), por sua vez, consideram as experiências dos Centros
Populares de Cultura (CPC) e dos Movimentos de Cultura Popular (MCP) como
relacionadas ao contexto da Comunicação e Educação e mais próximas da Pedagogia de
Paulo Freire do que a da Educação formal.

O pensamento de Paulo Freire, para Martín-Barbero (2014, p. 18), constitui a primeira


teoria latino-americana de comunicação, porque tratou de práticas e processos
comunicativos essencialmente vinculados à dimensão da linguagem, que, por meio da

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palavra geradora, “tornou possível a geração de novos sentidos [...] instaurando o espaço
da comunicação”.

Setton (2011, p. 7, 8), por sua vez, introduz na discussão o componente da cultura. Para ela
as mídias precisam ser consideradas “como matrizes de cultura porque atuam enquanto
agentes sociais da educação”.

[...] as culturas, entre elas a cultura das mídias, devem ser vistas enquanto
processo; devem ser vistas nos atos de produção, nos atos que envolvem a
divulgação e nos atos de promoção das mensagens, bem como nos atos de
recepção daquilo que é produzido. [...] A cultura não se reduziria aos
objetos, símbolos morais ou bens materiais de uma sociedade, mas se
apresentaria também como resultado das diferenças de sentido ou diferenças
de usos entre os diversos indivíduos que a produzem e a consomem [...] A
cultura mediatiza uma ideia, um sistema de ideias, ela oferece um discurso
que cria os sentidos e as verdades. (SETTON, 2011, p. 19, 21, grifo nosso).

Afinal, educomunicação ou mídia-educação? O que designam esses termos e em que se


aproximam ou se diferenciam? Soares (2011) explica que a expressão Media Education ou
Media Literacy designa a recepção crítica das produções midiáticas e é comumente usada
na Europa e nos Estados Unidos, respectivamente.

Na América Latina, a expressão Educación para la Comunicación nomeou a maioria das


ações que se desenvolveram nesse campo e que estavam assentadas em uma pedagogia
dialógica e participativa de Educação popular nos moldes propostos por Freire. Foi na
América Latina que aconteceram as mais numerosas ações de Educação para Comunicação
e que depois se ampliaram para a produção midiática envolvendo especialmente crianças e
jovens, situando a perspectiva da Comunicação como um direito humano.

Para Soares (2011), o termo educomunicação passou a ser adotado para designar as
práticas não restritas ao âmbito da leitura crítica da mídia, mas que envolviam a produção
midiática em si, como os jornais e as rádios escolares, por exemplo.

O conceito educomunicação legitima-se com suporte em uma pesquisa realizada pelo


Núcleo de Comunicação e Educação, da Universidade de São Paulo (USP), com
participação de 12 países latino-americanos, ao concluir “que efetivamente um novo
campo do saber, absolutamente interdisciplinar” estava se constituindo (SOARES, 2011, p.
35).

7
Soares (2011, p. 44, grifo do autor), assim, nomeia o campo da educomunicação: “um
conjunto das ações inerentes ao planejamento, implementação e avaliação de processos,
programas e produtos destinados a criar e a fortalecer ecossistemas comunicativos”.

O sentido de ecossistema é para o autor “uma figura de linguagem para nomear um ideal
de relações, construído coletivamente, em dado espaço, em decorrência de uma decisão
estratégica de favorecer o diálogo social” (SOARES, 2011, p. 44) em oposição ao
entendimento de Martín-Barbero, que designa ecossistema como nova ambiência
proporcionada pelas tecnologias e na qual estamos todos compulsoriamente imersos.

Soares (2011, p. 49) relaciona seis áreas de intervenção segundo as quais as práticas
educomunicativas estão situadas. O autor defende o argumento de que as áreas de
intervenção funcionam como “pontes lançadas entre os sujeitos sociais e o mundo da
mídia, do terceiro setor, da escola”.

A primeira delas, educação para a comunicação, tem ênfase na recepção, buscando


entender as implicações da atuação dos meios de comunicação. A expressão comunicativa
reconhece o potencial criativo das formas de manifestação artística como espaço de
comunicação. Aproxima-se da arte-educação. Já a mediação tecnológica na educação se
interessa pela presença e pelos usos criativos das Tecnologias de Informação e
Comunicação (TICs), bem como pela gestão democrática de seus recursos por crianças e
adolescentes. A pedagogia da comunicação relacionada ao ambiente escolar e a realização
de projetos que possibilitem o trabalho conjunto de professores e alunos. A gestão da
comunicação é dedicada à criação, execução de planos e projetos educomunicativos. Por
último, a reflexão epistemológica é responsável pela sistematização das experiências e é
dedicada ao estudo do que vem a ser educomunicativo (SOARES, 2011, p. 48).

Segundo Belloni (2012), o termo híbrido mídia-educação é legitimado pela Organização


das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) na Declaração de
Grünwald, de 1982, a qual recomendava programas de educação para as mídias e de
formação de educadores. O termo, explica, vem evoluindo. Se antes era considerado como
“formação para a apropriação e uso das mídias como ferramentas: pedagógicas para o
professor, de criação, expressão pessoal e participação política de todos os cidadãos”
(BELLONI, 2012, p. 47), atualmente precisa ser entendido em suas várias dimensões,
como a leitura crítica das mensagens em múltiplas telas, o uso pedagógico em situações de

8
aprendizagem, a dimensão da inclusão digital e a dimensão como meio de expressão, que
busca a participação de jovens (BELLONI, 2012, p. 52).

Na seção a seguir discutimos as aulas de campo da disciplina de Educomunicação como


espaços formativos.

Aulas de campo: a sala de aula encontra a realidade

As aulas de campo, inspiradas nas aulas-passeio ou aulas-descoberta de Freinet (1998) são


realizadas a cada semestre e tal qual propunha Freinet, são saídas “ao ar livre” para que os
estudantes descubram novos cenários e paisagens, estabeleçam contatos, percebam novas
possibilidades de aprendizagens.

No contexto da disciplina, as aulas de campo, que contam com o apoio institucional da


UFC por meio da concessão de diárias e transporte, se caracterizam por serem momentos
que implicam deslocamentos para outros territórios fora de Fortaleza, com distâncias que
variam entre 130 km e 600 km: viagens para o litoral de Trairi e para a região do Cariri, no
sul do estado com vistas a conhecer as práticas educomunicativas da Escola de Ensino
Fundamental e Médio Padre Rodolfo Ferreira da Cunha, na localidade de Canaan e da
Fundação Casa Grande, no município de Nova Olinda.

Sair das rotinas acadêmicas para ir ao encontro do outro, do desconhecido, do novo, um


convite para vivenciar o que Foucault (1997) nomeia como “el pensamiento del afuera”, no
sentido que a experiência favorece o movimento de colocar-se fora de si, para depois voltar
a encontrar-se no final (p.17).

Entendemos que tais aulas de campo constituem espaços ricos de formação, como propõe
Avena (2008): “A viagem é uma possibilidade de formação, é um espaço sócio-cultural de
construção do conhecimento, é um movimento multirreferencial. É, em síntese, um espaço
de aprendizagem multirreferencial privilegiado para a difusão do conhecimento” (2008,
p.93).

A viagem como espaço de formação, no sentido proposto por Avena (2008), se relaciona
ainda com o conceito de Educomunicação de Donizete Soares (2006, p.01), como sendo
um campo de pesquisa, de reflexão e de intervenção social (...) “um campo de ação
política, entendida como o lugar de encontro e debate da diversidade de posturas, das

9
diferenças e semelhanças, das aproximações e distanciamentos” (2006, p.04), com o qual
temos completa identificação.

As aulas de campo proporcionam reflexão, espaços de pesquisa e também de intervenção


social na medida em que os estudantes se preparam e em função de conhecimentos
construídos coletivamente no decorrer das aulas, compartilham seus saberes com os grupos
das instituições visitadas. Algumas vezes buscamos atender as necessidades de formação
das entidades e em outros momentos, elegemos de forma conjunta, temas de oficinas que
podem ser ministradas durante as aulas de campo, seja pelo interesse dos sujeitos
envolvidos, seja pela expertise em determinada área do saber, demonstrada pelos
estudantes.

Ao longo de três semestres foram realizadas quatro aulas de campo e na ocasião foram
ministradas oficinas de fanzine, podcasting, stop motion, contos digitais e sobre redes
sociais na educação. Em 2015.1 estão previstas duas viagens. Em abril, para a Fundação
Casa Grande, em Nova Olinda e em maio, para a Escola Padre Rodolfo Ferreira da Cunha.
Estão em fase de preparação as oficinas que serão oferecidas pelos estudantes às crianças e
jovens que atuam na Fundação Casa Grande, bem como aos demais estudantes do
município e cujas temáticas foram definidas: “Laboratório Criativo de Imagens”,
“Campanhas Educativas no Rádio”, “Acessibilidade em portais digitais: Web design e
linguagem de programação (CSS e XHTML)” e “Ensaios em Arte-educação”.

A equipe da Fundação Casa Grande gostou das propostas e considerando a necessidade de


organizar o amplo acervo deles de livros, DVDs, histórias em quadrinhos e CDs, solicitou
ainda oficina para uso do software Biblivre. Como não temos no grupo ninguém com
conhecimento nessa área, estamos em contato com professores do curso de
Biblioteconomia para indicar aluno ou docente que possa capacitar a equipe na utilização
do referido software.

A Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, fundada em 1992, é uma


organização não governamental cuja missão é “a formação educacional de crianças e
jovens protagonistas em gestão cultural por meio de seus programas: Memória,
Comunicação, Artes e Turismo” (s/d).

Na área da Memória, a instituição possui acervo arqueológico e mitológico da região


organizado para visitação no Memorial do Homem Kariri. A visita guiada é feita pelas

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crianças que aprenderam sobre as histórias dos povos indígenas que habitaram o lugar e
explicam com pertinência os achados da pesquisa arqueológica feita pela Fundação.

O programa de Comunicação reúne a emissora de rádio comunitária, a Casa Grande FM, a


série documental produzida semanalmente, “100 Canal”, a editora que produz jornal,
histórias em quadrinhos e outros materiais gráficos, o Teatro Violeta Arraes, que através de
parceria com o SESC, tem programação regular de espetáculos musicais e teatrais. Toda a
produção de conteúdo, desde a emissora de rádio até a série “100 Canal”, é integralmente
feita pelas crianças e adolescentes, que também se revezam na gestão dos referidos
espaços.

A Gibiteca, o Cineclube e a Biblioteca e o laboratório de música integram o programa de


Artes. Com grande acervo audiovisual, de livros e gibis, os espaços têm programação
frequente aberta aos moradores da cidade.

O Programa de Turismo é responsável por receber os visitantes que podem se hospedar nas
pousadas comunitárias mantidas pelos pais das crianças e jovens que atuam na Fundação,
bem como pela orientação sobre as atividades que podem ser realizadas na cidade de Nova
Olinda e na região do Cariri de maneira geral.

As crianças e jovens da Fundação Casa Grande também atuam na área de Educação


Patrimonial e têm produzido vasto material audiovisual sobre a cultura da região, como é o
caso da série SerTão Sonoro, com 30 programas sobre o Patrimônio Cultural Imaterial da
região do Cariri.

O contexto das aulas de campo que acontecem em Trairi é bem diverso, visto tratar-se de
uma instituição educacional. Na sala de aula os alunos vivenciam experiências de
educomunicação, tais como o Bioclick, projeto do ensino de Biologia que propõe a
observação da fauna e da flora do município litorâneo de Trairi, para além dos livros
didáticos e das aulas expositivas. Tal projeto consistiu na realização de concurso
fotográfico sobre o ecossistema local, através de registro fotográfico, por meio de telefone
celular, para publicação no perfil Rizoma do Canaan, o Facebook. Na rede social foi
possível interagir com os conteúdos publicados, ampliando assim, o diálogo antes restrito
ao espaço da sala de aula.

Na visita a Trairi, além de conhecer as atividades realizadas pelos professores


educomunicadores, os estudantes da Universidade Federal do Ceará são convidados a

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conhecer aspectos do meio ambiente local, como o mangue do Rio Mundaú, comprometido
devido às inúmeras fazendas de carnicicultura da região, bem como o engenho de cana de
açúcar onde se fabrica rapadura e outros produtos e ainda o trabalho da Associação de
Moradores de Canaan, que mantém uma emissora de rádio de alto-falantes, uma biblioteca
comunitária e oferece cursos gratuitos de informática.

Como forma de documentar tais vivências, os alunos da disciplina de Educomunicação


produzem memoriais, de caráter individual, em formato livre, em que registram os
momentos mais significativos das aulas de campo. O objetivo desse registro é valorizar a
expressão das subjetividades dos participantes, menosprezada, de forma geral, nos
contextos de aprendizagem, especialmente no âmbito da educação superior. Alguns alunos
optam pelo texto, em forma de relatório de campo, outros preferem produzir vídeos,
fotografias, relatos sonoros, fanzines, sites, álbuns no estilo scrapbook e até mesmo
fotonovelas.

Mediante questionário de avaliação de tais atividades foi possível constatar que as aulas de
campo são iniciativas significativas para a compreensão da educomunicação como área de
intervenção social e para a formação do futuro profissional do curso de Sistemas e Mídias
Digitais porque possibilitaram aproximar o contexto universitário do contexto escolar,
contribuindo para o entendimento de que práticas dialógicas e participativas favorecem
novas formas de aprendizagem.

Entre os depoimentos, o reconhecimento da aula de campo como encontro de saberes. “A


experiência como um todo foi bastante proveitosa. O contato com uma realidade diferente
da nossa e a oportunidade de contribuir com o conhecimento são os pontos altos dessa
empreitada”.

O entendimento do processo como em construção, bem como uma visão crítica da


atividade, também pode ser observada pelas respostas dos entrevistados. “Acho que é
necessário planejar melhor para que não seja uma simples exposição. Também é
importante conhecer o público para quem vai falar, de modo que o que vai ser dito,
buscando exemplos mais próximos à realidade dos alunos”.

A aula de campo como espaço de aprendizagem individual e coletiva também foi


comentado pelos entrevistados.

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A vivência foi muito importante para nossa formação como possíveis
educomunicadores. Lá tivemos a oportunidade de ver de perto e experimentar mais
do contexto educomunicacional que tanto temos lido a respeito em artigos e
discutido em nossas aulas. Foi muito gratificante participar do processo de
compartilhamento de conhecimentos. É como se agora nos sentíssemos um
pouquinho também responsáveis por aquele projeto. Em suma, foi uma experiência
que, com certeza, impactou a todos nós e sempre será lembrada como um exemplo
do que podemos fazer e um incentivo para irmos mais além (entrevistado 5).

Muitos alunos mencionaram ainda, que pela primeira vez em sua formação acadêmica,
saíram do espaço da Universidade e vivenciaram realidades distintas das que estão
familiarizados. Alguns consideraram gratificante a possibilidade de trocar experiências
com grupos de crianças e adolescentes de várias regiões do estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os depoimentos dos entrevistados indicam que as aulas de campo, de fato, se constituem
como espaços de formação multirreferencial, como defende Avena (2008). São
identificadas ainda como ações de intervenção social, no sentido de que pela troca de
conhecimentos, os saberes se interconectam, na perspectiva do conhecimento complexo de
Morin (2011). Fica evidenciado também, pelas respostas ao questionário, que pelo
encontro, todos os envolvidos são afetados, do ponto de vista das suas subjetividades.

Entende-se que tais vivências educomunicativas no ensino superior, discutidas de forma


preliminar no presente texto, ensejam uma melhor sistematização, de forma a contribuir
para a expansão de tais práticas no âmbito de outras instituições de ensino. Percebe-se
ainda que é necessário ampliar a interlocução com outros segmentos da sociedade no
sentido de oferecer aulas de campo em outros contextos e porque não, em outros estados
nordestinos, considerando a proximidade geográfica e a facilidade de deslocamento. Fica o
desafio.

REFERÊNCIAS
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significados e contribuições das viagens à (trans) formação de si. Tese (Doutorado em
Educação) – Faculdade de Edução, UFBA. Salvador. Recuperado em 20 de março, 2015, de:
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