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DEPARTAMENTO DE PSICANÁLISE
São Paulo
dezembro de 2018
PSICOLOGIA DE MASSAS DO FASCISMO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Escrevo este artigo num momento político e social conturbado, cuja conjuntura me
afeta como indivíduo, como agente político e como membro da sociedade brasileira. O
Brasil vem demonstrando e observando um crescente grau de intolerância e ódio, uma
tendência à autodestruição e à destruição do outro. A empatia é hoje artigo raro e a
violência transborda. É difícil, emocionalmente, escrever, de dentro do olho do furacão,
sobre tal contexto. Mas a noite é mais escura antes do amanhecer, e é a esperança em dias
melhores e a vontade de continuar a lutar por um mundo onde caibam muitos mundos que
me dá força para prosseguir. Fé cega e faca amolada.
INTRODUÇÃO
O Brasil acaba de eleger seu próximo presidente, que assumirá seu mandato no dia
1º de janeiro de 2019: Jair Bolsonaro. Candidato de extrema direita, se elegeu a partir da
insuflação das massas através de uma postura populista e um discurso de ódio e violência.
As massas responderam à altura: intolerância, racismo, misoginia, ameaças, agressões,
assassinatos. Naquela noite de 28 de outubro houve fogos na Guanabara, e pessoas não
saíram de casa, por medo do que lhes esperava nas ruas.
Utilizo neste artigo nomenclaturas que criei em outro artigo (2017) - chamei de
1
nomeadores os membros dos grupos sociais que, dada sua posição social, econômica,
racial, de identidade de gênero, de orientação sexual, entre outras, na estrutura social
brasileira, participam, direta ou indiretamente, da constituição da ideologia hegemônica
(GRAMSCI, 1978; ALVES, 2010) que rege a identidade e a subjetividade do povo brasileiro.
2
Em contraposição, chamei de nomeados aqueles que não participam desse grupo
hegemônico, e que historicamente tiveram e ainda têm de lutar cotidianamente pelo direito
de ocupar o espaço, ter sua voz, sua identidade, seu desejo e seu direito à vida
reconhecidos e respeitados.
1
Preferi dar a este grupo o nome de nomeadores por diversas razões. Poderia tê-los chamado de classes
dominantes, opressores, ideologizadores, burguesia, preconceituosos, etc. Preferi não usar nenhuma dessas
nomenclaturas para não incorrer no risco de utilizar categorias que já possuem conceitos muito delineados, para
não cair num maniqueísmo que, por mais atraente que seja, não seria verdadeiro, para não colocar, por
consequência, o grupo que os antagoniza numa posição de “oprimidos” ou “dominados”, entre outras. Escolhi o
termo “nomeadores” pois acredito que não os coloca numa posição hierarquicamente superior a seus
antagonistas no que se refere a suas capacidades ou coloca estes últimos como vítimas, não os fragiliza.
Nomeadores porque, como agentes e como fruto do processo histórico que os levou à posição que ocupam em
nossa sociedade, costumam ser aqueles que detêm o poder de ditar o certo e o errado, o bonito e o feio, o
aceitável e o não aceitável. Eles nomeiam a sociedade conforme sua visão de como ela deve ser.
2
Aqui, o termo “nomeados” segue caminho semelhante ao dos nomeadores. Os nomeadores foram assim
chamados pois detêm o privilégio de ditar as regras do jogo. Os nomeados receberam este termo não porque
não nomeiam as coisas – porque sim, nomeiam, criam, simbolizam, significam e ressignificam –, mas porque
são retratados na sociedade não segundo seus próprios parâmetros ou suas visões, mas segundo a visão que
os nomeadores têm deles.
Brasil - Civilização ou Barbárie?
Esse processo deve ser analisado sob uma perspectiva histórica, política e
psicológica. Tal conjuntura acontece, de forma semelhante, em diversos países ao redor do
mundo. Grandes conglomerados empresariais, que possuem como paradigma a noção de
que a circulação e acumulação do capital valem mais do que a vida, agem política e
economicamente buscando a privatização do mundo e a mercantilização das pessoas. Em
resposta à ascensão social e econômica dos nomeados emerge uma reação conservadora
dos nomeadores, amedrontados perante a perspectiva de perda do status quo, ameaçados
em seu lugar de privilégio, ofendidos ante a ideia de que mulheres, negros, indígenas, já
não aceitem ser oprimidos e subjugados em troca de um prato de arroz e feijão, estudem
nas mesmas universidades que seus filhos, viajem de avião. É nesse contexto de crise de
identidade das classes hegemônicas que, em 2018, o Brasil elegeu Jair Bolsonaro seu
presidente.
A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua
definição - discursiva e linguística - está sujeita a vetores de força, a relações de
poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem
harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas.
[...] Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa mais ampla por outros
recursos simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a
enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais,
assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais.
Woodward (2009) nos explica que, para que esse processo de assunção de uma
posição-de-sujeito opere na subjetividade dos indivíduos, é preciso que esses discursos
sejam eficientes, e relaciona essa eficiência aos conceitos de citacionalidade3,
performatividade4, ao fato de serem definidas a partir de estruturas narrativas e discursivas
e de fazerem parte de uma disputa de poder. Tal eficiência e amplitude de difusão se dão
em parte, como apontou Einstein em carta a Freud (1932), graças ao fato de que “a minoria,
a classe dominante atual, possui as escolas, a imprensa e, geralmente, também a Igreja,
sob seu poderio. Isto possibilita organizar e dominar as emoções das massas e torná-las
instrumento da mesma minoria”. Eu acrescentaria à lista de Einstein a polícia, o monopólio
sobre os meios de produção e o próprio Estado.
3
é somente através da possibilidade de repetição dos atos discursivos que os mesmos podem adquirir a força
necessária para transformar ou manter identidades
4
se trata menos de “ser” e mais de “tornar-se” (BUTLER, 1999 apud S ILVA, 2009)
não-psicológicas”. São essas predisposições psicológicas que Freud, assim como outros
autores (ADORNO, 1951; REICH, 1933; ROZITCHNER, 1989) abordam, direta ou
indiretamente, para compreender o fenômeno da transformação dos indivíduos em massas
e da utilização dessas mesmas predisposições por líderes despóticos para dominá-las.
Édipo e Civilização
Freud (1905; 1908; 1925) afirma que, no decorrer da infância, a criança, em suas
investigações sexuais, perceberia que existe uma diferença anatômica entre as crianças
nascidas do gênero masculino e as do gênero feminino. Essas pesquisas gerariam
questionamentos que, eventualmente, levariam-nas a elaborar a fantasia de castração:
“o menino teme a castração como realização de uma ameaça paterna [ou materna]
em resposta às suas atividades sexuais [o desejo sexual por um de seus pais],
surgindo daí uma intensa angústia de castração. Na menina, a ausência do pênis é
sentida como um dano sofrido que ela procura negar, compensar ou reparar"
(LAPLANCHE & PONTALIS, 2001, p. 73).
Supereu e Civilização
Vimos que a condição para a vida em civilização é a renúncia pulsional, e que esta
se dá a partir da auto-observação, censura e punição realizada pelo supereu, e que este,
em articulação com a civilização, é o agente causador do mal estar (FREUD, 1930). Freud
já levava em consideração a dimensão histórica da constituição do supereu, quando nos
ensinava que não serão nossos pais que introjetaremos em nós mesmos, mas o seu
supereu, que por sua vez foi constituído não pelos seus pais, mas pelo supereu daqueles e,
dessa forma, poderíamos remontar a uma ancestralidade do supereu, transmitida de
geração em geração.
“não é, portanto, uma questão de cultura, mas de ordem social. Estuda-se a história
da repressão sexual e a etiologia do recalcamento sexual e conclui-se que ela não
surge com o começo do desenvolvimento cultural; ou seja, a repressão e o
recalcamento não são os pressupostos do desenvolvimento cultural. Só bem mais
tarde, com o estabelecimento de um patriarcado autoritário e com o início das
divisões de classe, é que surgiu a repressão da sexualidade. É nesse estágio que os
interesses sexuais gerais começam a atender aos interesses econômicos de uma
minoria; isto assumiu uma forma organizada na família e no casamento patriarcais“
(REICH, 1933, p. 44)
“É precisamente essa agressão, que agora por culpa dirigimos contra nós mesmos, a
que o sistema exterior aproveita para manter-nos obedientes a ele: utiliza para
dominação de nossa própria força. Para dizê-lo de outra maneira: o sistema não
utiliza só o poder de sua força para dominar-nos, mas também as forças dos próprios
dominados. [...] Freud descobre que o repressor não está somente fora do aparato
psíquico, no aparato do Estado, ou da economia, ou do exército, ou no aparato da
religião. Nos diz que se há repressão também deve ser buscada ali onde formamos
sistema com ela: na forma como está organizada nossa própria subjetividade. Que
eu mesmo, que o sujeito mesmo enquanto eu, é o lugar da repressão: que eu sou,
para mim mesmo, o repressor.” (ROZITCHNER, 1989, p. 31 e 36)
Rozitchner toma como ponto de partida a relação entre o supereu e o Estado para, a
partir daí, retroceder até o momento anterior à constituição do supereu. É interessante notar
que sua narrativa se dá retroativamente, do momento em que já somos ‘castrados’,
adequados à ‘normalidade’, para aquele imediatamente anterior a este: o duelo edípico.
Mas aqui não observado enquanto um duelo entre a criança e um pai/mãe rival, mas sim
um duelo entre o desejo, a liberdade, a rebeldia da criança, e o processo que busca,
através da ameaça e da castração, tolher-lhe sua natureza pulsional. O autor demonstra
como o processo de castração, o processo civilizatório, é “uma luta de morte” para a
criança, e de como, sendo uma “saída em falso”, não consegue alcançar plenamente seu
objetivo: o indivíduo é vencido pela força civilizatória, mas seu desejo é tão forte e tão
constitucional que, apesar de vencido, não é destruído, vai se refugiar no inconsciente, e
durante toda a vida do indivíduo a luta entre pulsão e civilização perdurará, com aquele
constantemente tentando emergir, vencer as forças internas e externas que o reprimem.
“tendem para a redução completa das tensões, isto é, tendem a reconduzir o ser vivo
ao estado anorgânico. Voltadas inicialmente para o interior e tendendo à
autodestruição, as pulsões de morte seriam secundariamente dirigidas para o
exterior, manifestando-se então sob a forma de pulsão de agressão ou de destruição”
Identificação
Psicologia de Massas
Em Psicologia das massas e análise do eu (1921), Freud “tenta descobrir quais são
as forças psicológicas que resultam na transformação do indivíduo em massa.” (ADORNO,
1951, p. 4). Para tanto, o autor levanta três perguntas fundamentais: “O que é, então, um
‘grupo’? Como adquire ele a capacidade de exercer influência tão decisiva sobre a vida
mental do indivíduo? E qual é a natureza da alteração mental que ele força no indivíduo?”
(p. 46). Destaco a seguir algumas das noções elaboradas por Freud que acredito que se
mostrarão mais importantes para o desenvolvimento do argumento deste artigo.
O autor define como grupo, para fins de sua análise, “uma multidão de pessoas que
se organizaram em grupo, numa ocasião determinada, para um intuito definido” (1921, p.
45). Divide os grupos por seu caráter: efêmero - “que algum interesse passageiro
apressadamente aglomerou a partir de diversos tipos de indivíduos”, ou; estável - “em que a
humanidade passa a sua vida e que se acham corporificados nas instituições da
sociedade”. Distingue-os: o grupo estável possui os aspectos que eram característicos do
indivíduo, o grupo efêmero faz com que o indivíduo perca sua distintividade. Explicita que as
“massas”, a que se refere o título de sua obra, são grupos de caráter efêmero. A seguir, cito
algumas das características elencadas por Freud, a partir da leitura de Le Bon, em
Psicologia das massas e análise do eu, quanto aos grupos de caráter efêmero.
“Um grupo é impulsivo, mutável e irritável. É levado quase que exclusivamente por
seu inconsciente [...] Um grupo é extremamente crédulo e aberto à influência; não
possui faculdade crítica e o improvável não existe para ele [...] Os sentimentos de um
grupo são sempre muito simples e muito exagerados, de maneira que não conhece a
dúvida nem a incerteza [...] Ele vai diretamente a extremos; se uma suspeita é
expressa, ela instantaneamente se modifica numa certeza incontrovertível; um traço
de antipatia se transforma em ódio furioso [...] Inclinado como é a todos os extremos,
um grupo só pode ser excitado por um estímulo excessivo. Quem quer que deseje
produzir efeito sobre ele, não necessita de nenhuma ordem lógica em seus
argumentos; deve pintar nas cores mais fortes, deve exagerar e repetir a mesma
coisa diversas vezes [...] um grupo é tão intolerante quanto obediente à autoridade.
Respeita a força e só ligeiramente pode ser influenciado pela bondade, que encara
simplesmente como uma forma de fraqueza. O que exige de seus heróis, é força ou
mesmo violência. Quer ser dirigido, oprimido e temer seus senhores [...]
Fundamentalmente, é inteiramente conservador e tem profunda aversão por todas as
inovações e progressos, e um respeito ilimitado pela tradição [...] os grupos nunca
ansiaram pela verdade. Exigem ilusões e não podem passar sem elas.
Constantemente dão ao que é irreal precedência sobre o real; são quase tão
intensamente influenciados pelo que é falso quanto pelo que é verdadeiro. Possuem
tendência evidente a não distinguir entre as duas coisas” (FREUD, 1921, p. 49 a 51)
No que se refere ao laço com o líder ou ideia dominante, Freud nos explica que este
se dá a partir de um processo de identificação e idealização, que resultaria na substituição
do ideal do eu do indivíduo pelo objeto - líder ou ideia dominante. Em Novas Conferências
Introdutórias Sobre Psicanálise (1933), porém, ele compreenderá que a substituição não se
dá no ideal do eu, mas sim quanto ao supereu, de forma que compreenderá tanto a
satisfação narcísica (1914) - posto que o supereu é o veículo do ideal do eu - quanto a
mudança total da instância repressora do aparelho psíquico.
“Em muitas formas de escolha amorosa, é fato evidente que o objeto serve de
sucedâneo para algum inatingido ideal do ego de nós mesmos. Nós o amamos por
causa das perfeições que nos esforçamos por conseguir para nosso próprio ego e que
agora gostaríamos de adquirir, dessa maneira indireta, como meio de satisfazer nosso
narcisismo” (FREUD, 1921, p. 70).
Por fim, sobre a natureza da transformação sofrida pelo indivíduo num grupo
efêmero, Freud (1921) nos aponta algumas dessas transformações: a perda da
distintividade em detrimento das qualidades e valores do grupo; “a crítica exercida por essa
instância silencia”; “a falta de piedade é levada até o diapasão do crime”; a dificuldade de
compreensão do que é real e do que não é, e;
O grupo, nos mostra Freud, é uma revivescência da horda primeva, e o líder ou ideia
dominante, uma revivescência do pai primevo. A tendência do indivíduo à união grupal em
torno de um líder despótico demonstra, entre outras coisas, um sentimento de desamparo
paterno, mas não quanto àquele pai que amamos e/ou com quem rivalizamos na fase
edipiana, senão com o pai primevo. Nesse sentido, fazer parte de um grupo liderado por um
líder despótico que revive o pai primevo é não mais sentir-se desamparado. Identificar-se
com um líder despótico é como identificar-se com o pai primevo. Substituir o supereu e o
ideal do eu por essa revivescência do pai primevo, que demonstra não renunciar a suas
pulsões, não ser castrado, é também sentir-se não castrado, gozar sem limites.
Civilização é Barbárie
Sobre pulsões, Édipo, civilização e mal estar, Freud nos ensina que os indivíduos
“normais” são “castrados”, tendo de renunciar à satisfação de suas pulsões sexuais e de
agressividade para poder conviver em sociedade, mas constantemente tendo de se haver
com essas mesmas pulsões lutando contra suas forças repressivas internas, causando-lhe
angústia, sentimento de culpa, sintomas neuróticos. Ele aponta que a tensão entre as
pulsões e as exigências do supereu e da civilização e a consequente renúncia pulsional são
as principais causas do mal estar dos indivíduos.
Aprendemos que a Morte que temos dentro de nós tende a nos destruir, mas que a
Vida, para nos preservar, nos leva a direcionar essa destruição para os outros. Que a Vida
une as pessoas, mas que essa união tem como pressuposto a separação, a divisão em
“nós” e “eles”, em “eu” e “outro”. Que “é sempre possível unir um considerável número de
pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de
sua agressividade.” (FREUD, 1930, p. 72).
Sigo agora minha exposição pela análise do cenário brasileiro contemporâneo à luz
do acima exposto, e partindo das perguntas que o próprio Freud se fez, quando da análise
da psicologia das massas, noventa e sete anos atrás. Minha tese é a de que, entre as
numerosas massas de brasileiros que apoiaram a candidatura de Jair Bolsonaro, muitos
indivíduos não coadunariam com seu discurso e todo o ódio presente nele, não estivessem
imersos em uma massa. Creio que trata-se de um exemplo prático do exposto por Freud,
Adorno, Reich e Rozitchner, de uma alteração mental no indivíduo, uma vez membro dessa
massa. Um fenômeno a ser compreendido psicanalítica e politicamente.
Primeiramente, acredito ser importante citar, nas palavras de Freud, algumas das
alterações mentais promovidas nesses indivíduos em razão de sua participação nesses
grupos, alterações que acredito que podem ser verificadas no comportamento dos grupos
de apoiadores de Jair Bolsonaro. Em seguida, analisarei cada uma dessas alterações
mentais citada sob uma perspectiva psicanalítica, à luz do acima exposto.
Estas são apenas algumas das alterações mentais que podem ser observadas nas
massas apoiadoras de Jair Bolsonaro, assim como apenas algumas das interpretações
psicanalíticas possíveis para as razões e os efeitos de tais alterações. Gostaria agora de
passar a uma análise de quais são as forças políticas que colaboram para a transformação
do indivíduo em massa.
Outro ponto importante refere-se à questão de que a figura com quem as massas se
identificarão e colocarão no lugar de seu supereu, conforme já exposto, tanto pode ser um
líder quanto uma ideia dominante, e que essa ideia pode ser negativa. Creio que, no caso
analisado, não se trata apenas da identificação com Jair Bolsonaro, mas com todo um
sentimento e uma ideia chamada antipetismo. Grande parte do Brasil hoje crê que o Partido
dos Trabalhadores representa todos os campos mais à esquerda da política, muitos
acreditam que o projeto do PT é transformar o Brasil em um país comunista, e alguns creem
mesmo que tudo isso faz parte de um plano satanista de contaminação dos bons cristãos.
Essa ideia tem origem na Guerra Fria, quando o então presidente dos Estados Unidos,
Joseph McCarthy deu início a uma campanha a nível mundial de combate ao comunismo,
principalmente voltada aos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Atualmente
esse pensamento é revisitado por diversos partidos, veículos midiáticos, igrejas, entre
outros, atualizando a campanha anticomunista e relacionando-a a toda e qualquer pauta
relacionada a políticas sociais, identitárias, laicas, etc. Mesmo temas como direitos
humanos e combate à desigualdade social são colocadas no mesmo grande sentimento
antipetista, e vistas com maus olhos. É comum ouvir palavras de ordem como “coisa de
comunista”, “não vamos virar a Venezuela”, “minha bandeira jamais será vermelha”. E não
nos enganemos, houve e há corrupção nos governos petistas, e a gestão petista não foi
uma gestão de esquerda. Favoreceram, é verdade, as populações mais desassistidas como
nenhum outro governo jamais o tinha feito antes, mas foi um governo de conciliação de
classes.
Conclusões e Inconclusões
Creio, além disso, que os fatores que prepararam o terreno psicológico e político
para que a identificação com Jair Bolsonaro e seu discurso de ódio fosse possível foram: a
predisposição psicológica do ser humano à agressividade; a identidade e subjetividade do
brasileiro, permeadas de racismo, machismo, elitismo, homofobia, entre outras formas de
intolerância, identidade e subjetividade essas que são fruto de um processo de construção
ideológica arquitetado por grupos hegemônicos compostos por nomeadores visando a
manutenção do status quo; a propagação por grupos hegemônicos e a identificação das
massas com o sentimento anticomunista macartista, atualizado no antipetismo e alargado
para compreender toda e qualquer pauta social; entre outros.
Não concluo, porém, este artigo, com mais certezas do que dúvidas. Estudar as
interfaces psicológicas do fascismo me levou a uma série de questionamentos, que
pretendo continuar a investigar futuramente. Qual lugar o sadismo e o masoquismo ocupam
no fascismo? Em que medida esta lógica, investigada numa escala macro, poderia ser
aplicada em escala micro, na família patriarcal, no local de trabalho, nos movimentos
sociais? E de que forma poderíamos ainda aplicar a mesma linha de pensamento para
investigar o fenômeno da identificação e da psicologia de massas na esquerda? Restam
muitas dúvidas, muitas incertezas. Às vezes resta o medo. Mas sobra fé. E faca amolada.
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