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INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE

DEPARTAMENTO DE PSICANÁLISE

PSICOLOGIA DE MASSAS DO FASCISMO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Monografia de conclusão do curso

“Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma”

Autor: Breno Zúnica

Orientação: Maria Marta Azzolini

São Paulo

dezembro de 2018
PSICOLOGIA DE MASSAS DO FASCISMO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Escrevo este artigo num momento político e social conturbado, cuja conjuntura me
afeta como indivíduo, como agente político e como membro da sociedade brasileira. O
Brasil vem demonstrando e observando um crescente grau de intolerância e ódio, uma
tendência à autodestruição e à destruição do outro. A empatia é hoje artigo raro e a
violência transborda. É difícil, emocionalmente, escrever, de dentro do olho do furacão,
sobre tal contexto. Mas a noite é mais escura antes do amanhecer, e é a esperança em dias
melhores e a vontade de continuar a lutar por um mundo onde caibam muitos mundos que
me dá força para prosseguir. Fé cega e faca amolada.

INTRODUÇÃO

O Brasil acaba de eleger seu próximo presidente, que assumirá seu mandato no dia
1º de janeiro de 2019: Jair Bolsonaro. Candidato de extrema direita, se elegeu a partir da
insuflação das massas através de uma postura populista e um discurso de ódio e violência.
As massas responderam à altura: intolerância, racismo, misoginia, ameaças, agressões,
assassinatos. Naquela noite de 28 de outubro houve fogos na Guanabara, e pessoas não
saíram de casa, por medo do que lhes esperava nas ruas.

O presente artigo se propõe a analisar este fenômeno a partir de uma perspectiva


teórica psicanalítica, abordando para tanto conceitos fundamentais da psicanálise, como a
identificação, o narcisismo, o inconsciente, a dualidade pulsional de vida e morte, a íntima
relação entre a constituição do supereu e o Estado, a família e a luta de classes e,
sobretudo, a psicologia de massas. Politicamente, a partir de uma perspectiva antifascista.

Utilizo neste artigo nomenclaturas que criei em outro artigo (2017) - chamei de
1
nomeadores os membros dos grupos sociais que, dada sua posição social, econômica,
racial, de identidade de gênero, de orientação sexual, entre outras, na estrutura social
brasileira, participam, direta ou indiretamente, da constituição da ideologia hegemônica
(GRAMSCI, 1978; ALVES, 2010) que rege a identidade e a subjetividade do povo brasileiro.
2
Em contraposição, chamei de ​nomeados aqueles que não participam desse grupo
hegemônico, e que historicamente tiveram e ainda têm de lutar cotidianamente pelo direito
de ocupar o espaço, ter sua voz, sua identidade, seu desejo e seu direito à vida
reconhecidos e respeitados.

1
Preferi dar a este grupo o nome de ​nomeadores por diversas razões. Poderia tê-los chamado de classes
dominantes, opressores, ideologizadores, burguesia, preconceituosos, etc. Preferi não usar nenhuma dessas
nomenclaturas para não incorrer no risco de utilizar categorias que já possuem conceitos muito delineados, para
não cair num maniqueísmo que, por mais atraente que seja, não seria verdadeiro, para não colocar, por
consequência, o grupo que os antagoniza numa posição de “oprimidos” ou “dominados”, entre outras. Escolhi o
termo “nomeadores” pois acredito que não os coloca numa posição hierarquicamente superior a seus
antagonistas no que se refere a suas capacidades ou coloca estes últimos como vítimas, não os fragiliza.
Nomeadores porque, como agentes e como fruto do processo histórico que os levou à posição que ocupam em
nossa sociedade, costumam ser aqueles que detêm o poder de ditar o certo e o errado, o bonito e o feio, o
aceitável e o não aceitável. Eles nomeiam a sociedade conforme sua visão de como ela deve ser.
2
​Aqui, o termo “nomeados” segue caminho semelhante ao dos nomeadores. Os nomeadores foram assim
chamados pois detêm o privilégio de ditar as regras do jogo. Os nomeados receberam este termo não porque
não nomeiam as coisas – porque sim, nomeiam, criam, simbolizam, significam e ressignificam –, mas porque
são retratados na sociedade não segundo seus próprios parâmetros ou suas visões, mas segundo a visão que
os nomeadores têm deles​.
Brasil - Civilização ou Barbárie?

A história do Estado Brasileiro é uma história de intolerância e violência


(HOLLANDA, 2006). A fundação do país se deu a partir da invasão do território e
assassinato dos povos que aqui viviam há milhares de anos. A economia do país se
desenvolveu a partir do sequestro, exploração, estupro e tentativa de desumanização de
centenas de milhares de pessoas negras escravizadas. As mulheres no Brasil por séculos
ocuparam lugares subalternos nas relações familiares, trabalhistas, de cidadania, e tiveram
seus corpos e suas vidas tidas como mercadoria e propriedade dos homens, realidade que
persiste. Pessoas homossexuais e transgêneros foram e ainda são consideradas
pecadoras, criminosas, doentes, e castigadas por isso.

Nas últimas décadas, alguns temas passaram, ao menos na superfície, por um


avanço político em direção ao respeito à diversidade e à garantia do direito à vida digna.
Mulheres, negros, indígenas, pessoas não cisgênero e não heterossexuais, entre outros
grupos, conquistaram mais respeito e melhores condições sociais e materiais de vida. Nos
anos recentes, porém, se iniciou um retrocesso conservador no país (SOLANO, 2018), e
aquelas frágeis convenções sociais e direitos aparentemente adquiridos que vinham sendo
lentamente conquistados ao longo dos séculos se enfraqueceram e, em seu lugar,
emergiram novamente pensamentos e afetos ligados a uma forma de viver e se relacionar
extremamente intolerante. O Brasil vem caminhando no sentido de um crescente e cada vez
mais explícito avanço de pautas conservadoras na mídia, nas redes sociais e na ação
individual e coletiva de membros de sua sociedade, assim como de instituições públicas e
privadas e do próprio Estado.

Esse processo deve ser analisado sob uma perspectiva histórica, política e
psicológica. Tal conjuntura acontece, de forma semelhante, em diversos países ao redor do
mundo. Grandes conglomerados empresariais, que possuem como paradigma a noção de
que a circulação e acumulação do capital valem mais do que a vida, agem política e
economicamente buscando a privatização do mundo e a mercantilização das pessoas. Em
resposta à ascensão social e econômica dos nomeados emerge uma reação conservadora
dos nomeadores, amedrontados perante a perspectiva de perda do ​status quo​, ameaçados
em seu lugar de privilégio, ofendidos ante a ideia de que mulheres, negros, indígenas, já
não aceitem ser oprimidos e subjugados em troca de um prato de arroz e feijão, estudem
nas mesmas universidades que seus filhos, viajem de avião. É nesse contexto de crise de
identidade das classes hegemônicas que, em 2018, o Brasil elegeu Jair Bolsonaro seu
presidente.

A candidatura de Jair Bolsonaro baseou-se fundamentalmente na propagação do


ódio, através de um discurso fascista contra pautas sociais e grupos historicamente
fragilizados. Aproveitou-se também do sentimento antipetista que já vinha sendo alimentado
há anos - para o qual o candidato havia contribuído significativamente -, e alargou tal
sentimento a ponto de nele fazer caber toda e qualquer pauta conservadora. Seu discurso
carecia de argumentos racionais, baseando-se, ao invés disso, na defesa genérica da
tradição, família e propriedade, da moral e dos bons costumes, e atacando os setores mais
à esquerda da política e as pautas identitárias, acusando-os de atentar contra tais valores.

Momentos em que o tema da identidade é trazido à pauta com muita frequência


tendem a ser momentos em que se está em uma crise de identidade – das identidade
hegemônicas –, sendo mais provável ainda que aconteça também durante momentos de
crise econômica e social (WOODWARD, 2009). A crise de identidade se dá, segundo
Woodward, quando os “processos históricos que, aparentemente, sustentavam a fixação de
certas identidades, estão entrando em colapso e novas identidades estão sendo forjadas,
muitas vezes por meio da luta e da contestação política” (2009, p. 39), e aponta que vem
sendo visível o aumento de crises de identidade ao redor do mundo, graças à emergência
dos chamados “novos movimentos sociais” – movimentos que têm por pauta questões
referentes à luta por direitos e pelo fim de estruturas de opressão baseados na identidade,
como movimentos feministas, indígenas, negros, LGBTQIA+.

No mesmo sentido, Silva (2009), afirma que:

A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua
definição - discursiva e linguística - está sujeita a vetores de força, a relações de
poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem
harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas.
[...] Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa mais ampla por outros
recursos simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a
enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais,
assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais.

Woodward (2009) nos explica que, para que esse processo de assunção de uma
posição-de-sujeito opere na subjetividade dos indivíduos, é preciso que esses discursos
sejam eficientes, e relaciona essa eficiência aos conceitos de citacionalidade3,
performatividade4, ao fato de serem definidas a partir de estruturas narrativas e discursivas
e de fazerem parte de uma disputa de poder. Tal eficiência e amplitude de difusão se dão
em parte, como apontou Einstein em carta a Freud (1932), graças ao fato de que “a minoria,
a classe dominante atual, possui as escolas, a imprensa e, geralmente, também a Igreja,
sob seu poderio. Isto possibilita organizar e dominar as emoções das massas e torná-las
instrumento da mesma minoria”. Eu acrescentaria à lista de Einstein a polícia, o monopólio
sobre os meios de produção e o próprio Estado.

Adorno (1951), ao analisar a propaganda fascista alemã do período nazista, aponta


que, quanto à sua forma: “o enfoque dos agitadores é verdadeiramente sistemático e se
baseia em um conjunto-padrão, rigidamente delimitado, de ‘expedientes’” e “a reiteração
constante e a escassez de idéias são os ingredientes indispensáveis de toda a técnica”;
quanto ao seu conteúdo: a “ausência de um programa positivo e de qualquer coisa que ele
possa ‘dar’ mas, também, da paradoxal prevalência da negação e da ameaça que nele se
encontra”; quanto à figura do líder fascista: o “conceito de ‘pequeno grande homem’, da
pessoa que sugere ao mesmo tempo onipotência e a idéia de que ele é apenas mais um na
multidão”, e; quanto a seus métodos e objetivos: que a “psicologia do fascismo é em sua
maior parte produto de manipulação: o que é visto ingenuamente como irracionalidade
‘natural’ das massas é produzido por técnicas calculadas racionalmente”. Todos os
elementos apontados por Adorno podem ser observados na propaganda bolsonarista. Ao
falar do nazismo, Adorno poderia também estar falando do Brasil contemporâneo.

Quanto à efetividade do discurso fascista na absorção pelos indivíduos, porém,


diferentemente de Woodward e Silva, Adorno utiliza uma chave de interpretação
psicanalítica, a partir da leitura da obra de Freud, ​Psicologia das massas e análise do eu
(1921). Ele afirma que “as predisposições psicológicas não são a causa real do fascismo;
acontece antes de o fascismo definir uma área psicológica que pode ser explorada com
sucesso pelas forças que o promovem por razões de interesse próprio totalmente

3
​é somente através da possibilidade de repetição dos atos discursivos que os mesmos podem adquirir a força
necessária para transformar ou manter identidades
4
se trata menos de “ser” e mais de “tornar-se” (BUTLER, 1999 ​apud S​ ILVA, 2009)
não-psicológicas”. São essas predisposições psicológicas que Freud, assim como outros
autores (ADORNO, 1951; REICH, 1933; ROZITCHNER, 1989) abordam, direta ou
indiretamente, para compreender o fenômeno da transformação dos indivíduos em massas
e da utilização dessas mesmas predisposições por líderes despóticos para dominá-las.

Tratarei agora de examinar diversas noções da teoria psicanalítica para buscar


compreender o fenômeno da absorção da ideologia fascista entre as massas brasileiras na
atualidade.

Édipo e Civilização

Em ​Totem e Tabu (1913), Freud nos apresenta um mito de criação da civilização,


segundo o qual esta teria surgido de um pacto social entre irmãos após o assassinato de
seu pai, seguido por um banquete de seu corpo. Esse parricídio teria acontecido há muito
tempo, quando a organização social dos indivíduos humanos se resumia a pequenos
grupos familiares liderados por um homem déspota, que utilizava de sua força para manter
o monopólio da dominação sobre as mulheres do grupo ao mesmo tempo em que
expulsava os homens, potenciais ameaças à sua posição de poder. Em determinado
momento, porém, um grupo de seus filhos, cansados de serem subjugados e oprimidos por
seu pai, e desejosos das mulheres a cujo acesso lhes era por ele proibido,
assassinaram-no, pondo fim àquele ciclo de dominação. Receosos, porém, de que um
dentre eles viesse a assumir o posto daquele pai recentemente tirado de cena, os irmãos,
coletivamente, concordam em estabelecer um pacto, simbolizado na figura do ​totem – que
substituiria simbolicamente o pai, de cujo assassinato agora se sentiam culpados – que
visaria a impossibilitação da criação de novos regimes despóticos entre eles, baseado em
duas premissas – ​tabus –: a proibição do incesto e do parricídio. A partir de então dar-se-ia
a transformação da organização social humana, de clãs familiares para, ao longo do tempo,
a civilização que conhecemos.

Freud utilizará o mito da horda primeva para subsidiar histórica e filogeneticamente o


surgimento, no processo de constituição do aparelho psíquico, do Complexo de Édipo - a
“representação inconsciente pela qual se exprime o desejo sexual ou amoroso da criança
pelo genitor do sexo oposto e sua hostilidade para com o genitor do mesmo sexo. Essa
representação pode inverter-se e exprimir o amor pelo genitor do mesmo sexo e o ódio pelo
do sexo oposto” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 166).

Freud (1905; 1908; 1925) afirma que, no decorrer da infância, a criança, em suas
investigações sexuais, perceberia que existe uma diferença anatômica entre as crianças
nascidas do gênero masculino e as do gênero feminino. Essas pesquisas gerariam
questionamentos que, eventualmente, levariam-nas a elaborar a fantasia de castração:

“o menino teme a castração como realização de uma ameaça paterna [ou materna]
em resposta às suas atividades sexuais [o desejo sexual por um de seus pais],
surgindo daí uma intensa angústia de castração. Na menina, a ausência do pênis é
sentida como um dano sofrido que ela procura negar, compensar ou reparar"
(LAPLANCHE & PONTALIS, 2001, p. 73).

O Complexo de Édipo, portanto, surgiria a partir do desejo sexual da criança por um


de seus pais, ao mesmo tempo que do medo e hostilidade para com o outro pai/mãe. A
saída do Édipo representaria uma renovação do pacto totêmico: a proibição do incesto,
através da renúncia pulsional sexual pelo pai/mãe, e; a proibição do parricídio/matricídio,
através da renúncia da pulsão de agressividade. Essas renúncias pulsionais seriam, porém,
a verdadeira castração. O pai primevo não renunciava a nenhuma pulsão, não conhecia
limites para a satisfação de seus desejos sexuais e de agressividade, não era castrado - a
castração atingiria seus filhos, a partir do pacto totêmico. A castração representaria o
mecanismo civilizador por excelência, pois se oporia aos dois maiores obstáculos da
civilização: a) a tendência do ser humano a unir-se libidinalmente apenas com seus pares
sexuais, e; b) a agressividade do ser humano, que tende a ocasionar a ruptura do tecido
social. A civilização, portanto, deve ser construída sobre as renúncias pulsionais, e para
tanto serve-se do complexo de castração e do supereu. A vida numa civilização que impõe
a renúncia pulsional a seus indivíduos é, para Freud, o motivo do mal estar da civilização.

Supereu e Civilização

Vimos que a condição para a vida em civilização é a renúncia pulsional, e que esta
se dá a partir da auto-observação, censura e punição realizada pelo supereu, e que este,
em articulação com a civilização, é o agente causador do mal estar (FREUD, 1930). Freud
já levava em consideração a dimensão histórica da constituição do supereu, quando nos
ensinava que não serão nossos pais que introjetaremos em nós mesmos, mas o seu
supereu, que por sua vez foi constituído não pelos seus pais, mas pelo supereu daqueles e,
dessa forma, poderíamos remontar a uma ancestralidade do supereu, transmitida de
geração em geração.

Mas se Freud abriu o caminho para a percepção histórica do aparelho psíquico,


Reich (1933) e Rozitchner (1989) aprofundarão o debate, qualificando a historicidade da
civilização e do indivíduo e a relação de interação mútua entre estes.

“não é, portanto, uma questão de cultura, mas de ordem social. Estuda-se a história
da repressão sexual e a etiologia do recalcamento sexual e conclui-se que ela não
surge com o começo do desenvolvimento cultural; ou seja, a repressão e o
recalcamento não são os pressupostos do desenvolvimento cultural. Só bem mais
tarde, com o estabelecimento de um patriarcado autoritário e com o início das
divisões de classe, é que surgiu a repressão da sexualidade. É nesse estágio que os
interesses sexuais gerais começam a atender aos interesses econômicos de uma
minoria; isto assumiu uma forma organizada na família e no casamento patriarcais“
(REICH, 1933, p. 44)

O ser humano é um ser histórico por excelência, agente transformador e


simultaneamente determinado por seu tempo histórico. Ao trazer a questão da dimensão
histórica da constituição do aparelho psíquico, Reich aponta para a única solução possível:
o aparelho psíquico constitui-se influenciado pela civilização, e diferentes civilizações,
diferentes ordens sociais, produzirão diferentes efeitos sobre ele. Mais do que isso, Reich
aponta que “o que acontece é que cada ordem social cria nas massas que a compõem as
estruturas de que ela necessita para atingir seus objetivos fundamentais” (1933, p. 40).

Rozitchner demonstrará como já existia em Freud o gérmen da compreensão de


como a relação entre supereu e sociedade é uma relação de interação mútua, em que
ambos são influenciados e influenciam um ao outro. Apresenta o supereu como a instância
responsável por nos adequar psiquicamente para a vida em sociedade ao mesmo tempo
em que molda a sociedade. Mas mais do que isso, creio que a mais importante contribuição
de Rozitchner para o debate em questão é a demonstração de como a sociedade e o
Estado se aproveitam da estrutura do nosso aparelho psíquico para nos manter sujeitos a
suas normas.

“É precisamente essa agressão, que agora por culpa dirigimos contra nós mesmos, a
que o sistema exterior aproveita para manter-nos obedientes a ele: utiliza para
dominação de nossa própria força. Para dizê-lo de outra maneira: o sistema não
utiliza só o poder de sua força para dominar-nos, mas também as forças dos próprios
dominados. [...] Freud descobre que o repressor não está somente fora do aparato
psíquico, no aparato do Estado, ou da economia, ou do exército, ou no aparato da
religião. Nos diz que se há repressão também deve ser buscada ali onde formamos
sistema com ela: na forma como está organizada nossa própria subjetividade. Que
eu mesmo, que o sujeito mesmo enquanto eu, é o lugar da repressão: que eu sou,
para mim mesmo, o repressor.” (ROZITCHNER, 1989, p. 31 e 36)

Rozitchner toma como ponto de partida a relação entre o supereu e o Estado para, a
partir daí, retroceder até o momento anterior à constituição do supereu. É interessante notar
que sua narrativa se dá retroativamente, do momento em que já somos ‘castrados’,
adequados à ‘normalidade’, para aquele imediatamente anterior a este: o duelo edípico.
Mas aqui não observado enquanto um duelo entre a criança e um pai/mãe rival, mas sim
um duelo entre o desejo, a liberdade, a rebeldia da criança, e o processo que busca,
através da ameaça e da castração, tolher-lhe sua natureza pulsional. O autor demonstra
como o processo de castração, o processo civilizatório, é “uma luta de morte” para a
criança, e de como, sendo uma “saída em falso”, não consegue alcançar plenamente seu
objetivo: o indivíduo é vencido pela força civilizatória, mas seu desejo é tão forte e tão
constitucional que, apesar de vencido, não é destruído, vai se refugiar no inconsciente, e
durante toda a vida do indivíduo a luta entre pulsão e civilização perdurará, com aquele
constantemente tentando emergir, vencer as forças internas e externas que o reprimem.

Eros, Morte e Civilização

Em ​Além do princípio do prazer (​ 1920), Freud apresenta uma renovação teórica na


psicanálise: a segunda teoria pulsional, a dualidade pulsional entre Vida e Morte. As
Pulsões de Vida, apresentadas sob o nome Eros, compreenderiam as pulsões sexuais e as
pulsões de autoconservação. Sobre a Pulsão de Morte, Roudinesco & Plon apontam que

“foi a partir da observação da compulsão à repetição que Freud pensou em teorizar


aquilo a que chamou pulsão de morte [...] essa compulsão leva o sujeito a se colocar
repetitivamente em situações dolorosas, réplicas de experiências antigas.[...] Freud
relacionou-a igualmente com a tendência destrutiva e autodestrutiva que havia
identificado em seus estudos sobre o masoquismo. O estabelecimento de uma
relação entre essas observações e a constatação de ordem filosófica de que a vida é
inevitavelmente precedida por um estado de não-vida conduziu Freud à hipótese de
que existe uma pulsão cuja finalidade, como ele a exprimiu no ​Esboço de psicanálise​,
‘é reconduzir o que está vivo ao estado inorgânico’. [...] Em 1937, Freud tornou a
afirmar, em ​“Análise terminável e interminável”,​ que a simples evocação do
masoquismo, das resistências terapêuticas ou da culpa neurótica bastava para
afirmar ‘a existência de um poder na vida anímica ao qual, com base em seus
objetivos, chamamos pulsão de agressão ou de destruição, e que derivamos da
originária pulsão de morte da matéria animada’.” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p.
631 a 632).
Do duelo edípico “bem sucedido” resulta a castração, o surgimento do supereu e o
refúgio dos desejos reprimidos no inconsciente, tanto os desejos eróticos como os desejos
hostis, de agressividade. Sobre a relação entre pulsão de morte e agressividade, Laplanche
e Pontalis (2001, p. 407) apontam que estas

“tendem para a redução completa das tensões, isto é, tendem a reconduzir o ser vivo
ao estado anorgânico. Voltadas inicialmente para o interior e tendendo à
autodestruição, as pulsões de morte seriam secundariamente dirigidas para o
exterior, manifestando-se então sob a forma de pulsão de agressão ou de destruição”

A agressividade é, portanto, uma das formas de manifestação da Pulsão de Morte,


quando esta é voltada não para o próprio indivíduo, mas para algo que lhe é exterior. Essa
faculdade de exteriorização da agressividade é considerada por Freud como uma
articulação entre Eros e Morte, na medida em que o movimento de exteriorização da
agressividade proporciona a destruição de algo que está fora do indivíduo para que essa
energia de agressividade não se volte contra ele mesmo, na forma de autodestruição. A
esse respeito, Albert Einstein (1932), em correspondência com Freud (1932), se questiona:

“como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um


entusiasmo extremado, a ponto de estes sacrificarem suas vidas? Pode haver
apenas uma resposta. É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e
destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge
apenas em circunstâncias anormais; é, contudo, relativamente fácil despertá-la e
elevá-la à potência de psicose coletiva.”

Aqui encontramos um aparente paradoxo. A pulsão de morte é inicialmente voltada


para o interior, tendendo à autodestruição do indivíduo, mas Eros promove sua
externalização, em forma de agressividade, visando a preservação da vida do indivíduo.
Porém a externalização da agressividade promovida por Eros é um dos principais
obstáculos à civilização, tendendo à sua destruição, o que vai no sentido contrário do
princípio de Eros, que promove a manutenção da civilização. A resposta para este aparente
paradoxo é apontada por Freud em ​Mal estar na civilização (1930): “é sempre possível unir
um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para
receberem as manifestações de sua agressividade.” (p. 72). A agressividade deverá ser
voltada para indivíduos que não façam parte do grupo ao qual o indivíduo esteja ligado.

Identificação

Identificação é o "processo psicológico pelo qual um sujeito assimila um aspecto,


uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o
modelo desse outro. A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de
identificações" (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001, p. 226), é "o processo central pelo qual o
sujeito se constitui e se transforma, assimilando ou se apropriando, em momentos-chave de
sua evolução, dos aspectos, atributos ou traços dos seres humanos que o cercam."
(ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 363). Freud (1921, p. 65) aponta que “a identificação é
conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra
pessoa. [...] esforça-se por moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto daquele
que foi tomado como modelo” e “de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma
vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio de introjeção do objeto no ego”.
Aqui se faz importante retomarmos o processo pelo qual a criança passa na fase
edipiana, particularmente quando do surgimento de sentimentos hostis para com seu rival.
Esse rival, que representa a ameaça de castração, é maior e mais poderoso do que a
criança. Vítima da ansiedade causada por sua fantasia,

“O único que é permitido à criança é um procedimento típico: a regressão a uma


forma anterior de relação com o mundo exterior, no caso a forma de identificação
mais regressiva, a oral. Aquela na qual a criança incluía o objeto dentro de si e este
aparecia formando parte dela, portanto aquela que abria um âmbito fantasiado dentro
de sua própria subjetividade onde ficava inscrito todo objeto. [...] Mediante a
identificação oral, a criança se identifica e se iguala com o repressor.”
(ROZITCHNER, 1989, p. 33 a 34)

Vemos aqui que a identificação surge na criança como um processo defensivo


contra a ameaça que em sua fantasia lhe é imposta. Através da introjeção do rival ela se
iguala com o repressor. Através da identificação com o rival ela “se transforma, total ou
parcialmente, segundo o modelo desse outro”. Este é o processo que dará origem ao
supereu no aparelho psíquico do infante. Se relembrarmos a narrativa mítica da horda
primeva, identificaremos que este momento representa o banquete totêmico, em que,
ameaçados pelo pai primevo em razão de seus desejos sexuais, seus filhos o assassinam e
o ingerem e, a partir de então, o pai assassinado tornar-se-á parte de si, como totem, como
supereu. A parte do pai/mãe que, ao ser introjetada pela criança, dará origem ao supereu é,
justamente, aquela face autoritária, punitiva, censora - e agora mais forte do que nunca,
porque onisciente, já que agindo de dentro dela. A parte de seus pais que a criança
relaciona aos cuidados, à alimentação, o carinho, leva-a a supervalorizá-los, colocá-los num
lugar de perfeição, idealizá-los. A identificação com esta face parental dará origem ao ​ideal
de eu,​ instância veiculada pelo supereu responsável por apontar para o indivíduo aquilo que
ele deve se tornar, baseado no modelo parental.

Psicologia de Massas

Em Psicologia das massas e análise do eu (1921), Freud “tenta descobrir quais são
as forças psicológicas que resultam na transformação do indivíduo em massa.” (ADORNO,
1951, p. 4). Para tanto, o autor levanta três perguntas fundamentais: “O que é, então, um
‘grupo’? Como adquire ele a capacidade de exercer influência tão decisiva sobre a vida
mental do indivíduo? E qual é a natureza da alteração mental que ele força no indivíduo?”
(p. 46). Destaco a seguir algumas das noções elaboradas por Freud que acredito que se
mostrarão mais importantes para o desenvolvimento do argumento deste artigo.

O autor define como grupo, para fins de sua análise, “uma multidão de pessoas que
se organizaram em grupo, numa ocasião determinada, para um intuito definido” (1921, p.
45). Divide os grupos por seu caráter: efêmero - “que algum interesse passageiro
apressadamente aglomerou a partir de diversos tipos de indivíduos”, ou; estável - “em que a
humanidade passa a sua vida e que se acham corporificados nas instituições da
sociedade”. Distingue-os: o grupo estável possui os aspectos que eram característicos do
indivíduo, o grupo efêmero faz com que o indivíduo perca sua distintividade. Explicita que as
“massas”, a que se refere o título de sua obra, são grupos de caráter efêmero. A seguir, cito
algumas das características elencadas por Freud, a partir da leitura de Le Bon, em
Psicologia das massas e análise do eu,​ quanto aos grupos de caráter efêmero.
“Um grupo é impulsivo, mutável e irritável. É levado quase que exclusivamente por
seu inconsciente [...] Um grupo é extremamente crédulo e aberto à influência; não
possui faculdade crítica e o improvável não existe para ele [...] Os sentimentos de um
grupo são sempre muito simples e muito exagerados, de maneira que não conhece a
dúvida nem a incerteza [...] Ele vai diretamente a extremos; se uma suspeita é
expressa, ela instantaneamente se modifica numa certeza incontrovertível; um traço
de antipatia se transforma em ódio furioso [...] Inclinado como é a todos os extremos,
um grupo só pode ser excitado por um estímulo excessivo. Quem quer que deseje
produzir efeito sobre ele, não necessita de nenhuma ordem lógica em seus
argumentos; deve pintar nas cores mais fortes, deve exagerar e repetir a mesma
coisa diversas vezes [...] um grupo é tão intolerante quanto obediente à autoridade.
Respeita a força e só ligeiramente pode ser influenciado pela bondade, que encara
simplesmente como uma forma de fraqueza. O que exige de seus heróis, é força ou
mesmo violência. Quer ser dirigido, oprimido e temer seus senhores [...]
Fundamentalmente, é inteiramente conservador e tem profunda aversão por todas as
inovações e progressos, e um respeito ilimitado pela tradição [...] os grupos nunca
ansiaram pela verdade. Exigem ilusões e não podem passar sem elas.
Constantemente dão ao que é irreal precedência sobre o real; são quase tão
intensamente influenciados pelo que é falso quanto pelo que é verdadeiro. Possuem
tendência evidente a não distinguir entre as duas coisas” (FREUD, 1921, p. 49 a 51)

Quanto à capacidade de exercer influência sobre os indivíduos, Freud explica que


esta se dá: a) por meio da identificação e da sugestão mútua entre os membros do grupo, e;
b) pela identificação entre os indivíduos do grupo e o líder ou ideia dominante. A
identificação entre os membros do grupo surge graças à “percepção de uma qualidade
comum partilhada”, uma “importante qualidade emocional comum”, que “reside na natureza
do laço com o líder” (FREUD, 1921, p. 67 a 68). Sobre esse laço, aponta que a figura do
líder pode também ser ocupada por uma ideia dominante, e que "o líder ou a idéia
dominante poderiam também, por assim dizer, ser negativos; o ódio contra uma
determinada pessoa ou instituição poderia funcionar exatamente da mesma maneira
unificadora e evocar o mesmo tipo de laços emocionais que a ligação positiva" (idem, p. 63).

No que se refere ao laço com o líder ou ideia dominante, Freud nos explica que este
se dá a partir de um processo de identificação e idealização, que resultaria na substituição
do ideal do eu do indivíduo pelo objeto - líder ou ideia dominante. Em ​Novas Conferências
Introdutórias Sobre Psicanálise (1933), porém, ele compreenderá que a substituição não se
dá no ideal do eu, mas sim quanto ao supereu, de forma que compreenderá tanto a
satisfação narcísica (1914) - posto que o supereu é o veículo do ideal do eu - quanto a
mudança total da instância repressora do aparelho psíquico.

“Em muitas formas de escolha amorosa, é fato evidente que o objeto serve de
sucedâneo para algum inatingido ideal do ego de nós mesmos. Nós o amamos por
causa das perfeições que nos esforçamos por conseguir para nosso próprio ego e que
agora gostaríamos de adquirir, dessa maneira indireta, como meio de satisfazer nosso
narcisismo” (FREUD, 1921, p. 70).

Por fim, sobre a natureza da transformação sofrida pelo indivíduo num grupo
efêmero, Freud (1921) nos aponta algumas dessas transformações: a perda da
distintividade em detrimento das qualidades e valores do grupo; “a crítica exercida por essa
instância silencia”; “a falta de piedade é levada até o diapasão do crime”; a dificuldade de
compreensão do que é real e do que não é, e;

“O resultado mais notável e também o mais importante da formação de um grupo é a


‘exaltação ou intensificação de emoção’ produzida em cada membro dele [...] num grupo
as emoções dos homens são excitadas até um grau que elas raramente ou nunca
atingem sob outras condições, e constitui experiência agradável para os interessados
entregar-se tão irrestritamente às suas paixões, e assim fundirem-se no grupo e
perderem o senso dos limites de sua individualidade”. (MCDOUGALL ​apud FREUD,
1921, p. 53)

O grupo, nos mostra Freud, é uma revivescência da horda primeva, e o líder ou ideia
dominante, uma revivescência do pai primevo. A tendência do indivíduo à união grupal em
torno de um líder despótico demonstra, entre outras coisas, um sentimento de desamparo
paterno, mas não quanto àquele pai que amamos e/ou com quem rivalizamos na fase
edipiana, senão com o pai primevo. Nesse sentido, fazer parte de um grupo liderado por um
líder despótico que revive o pai primevo é não mais sentir-se desamparado. Identificar-se
com um líder despótico é como identificar-se com o pai primevo. Substituir o supereu e o
ideal do eu por essa revivescência do pai primevo, que demonstra não renunciar a suas
pulsões, não ser castrado, é também sentir-se não castrado, gozar sem limites.

Civilização é Barbárie

Primeiramente, gostaria de retomar brevemente alguns pontos anteriormente


elaborados, para poder aplicá-los à questão ora abordada neste artigo.

No que se refere à historicidade do aparelho psíquico, à sua relação com o Estado,


o capital, a família patriarcal e outras instâncias de poder, à história do Brasil e ao momento
atual de emergência material e social dos nomeados, se levarmos em conta:

● que a constituição do aparelho psíquico e do próprio indivíduo se dá através de um


processo histórico (REICH, 1933; ROZITCHNER, 1989);
● que a história do Brasil (HOLLANDA, 2006) tem suas bases no racismo (GONZALEZ
& HASENBALG, 1982), machismo (MARTINS, 2014), homofobia (PRETES &
VIANNA, 2007), elitismo (DIAS, 1977), entre outras formas de intolerância
(SOLANO, 2018);
● que a ideologia hegemônica (GRAMSCI, 1978) foi e continua sendo construída pelos
nomeadores, grupo predominantemente composto por homens brancos
heterossexuais e de classe média ou ricos, que possuem o controle da mídia, das
escolas, das igrejas, do exército, dos meios de produção e do próprio Estado,
favorecendo a implantação de seu projeto ideológico mesmo entre os nomeados;
● que a continuidade dos privilégios dos nomeadores sobre os nomeados depende da
manutenção das desigualdades sociais, raciais, de gênero, orientação sexual, entre
outras;
● que o Estado, a família patriarcal, o capital, entre outras instâncias de poder,
aproveitam-se das estruturas despóticas do aparelho psíquico para reforçar sua
opressão sobre os indivíduos e moldá-los de forma a aceitarem as estruturas
despóticas exteriores;
● que os nomeados vêm conquistando, ainda que lentamente, melhores condições
sociais e materiais de vida;
● que os nomeados vêm tomando maior consciência da luta econômica, ideológica e
identitária em que estão, direta ou indiretamente, envolvidos, e estão se engajando
nessa luta; e
● que não apenas no Brasil, mas ao redor de todo o mundo, processos de
autoafirmação e de contestação da ordem social vigente têm sido duramente
reprimidos política, econômica e socialmente;
não será difícil enxergarmos sentido na hipótese de que esteja em curso uma agenda
política, ideológica, econômica e psicológica para promover retrocessos nas conquistas
sociais, com vistas à manutenção dos privilégios dos atuais detentores de poder na
sociedade brasileira, e que o Estado, a família patriarcal, o exército, as igrejas, a mídia,
sigam os exemplos fascistas da primeira metade do século XX estudados por Freud, Reich,
Rozitchner, entre outros, e se aproveitem das estruturas repressoras internas do nosso
aparelho psíquico, de nossos desejos reprimidos, de nossos ideais, para nos tornar
obedientes e adequados às formas de opressão, para jogar-nos uns contra os outros, para
manterem-se no lugar onde há tanto tempo estão, e do qual veem-se ameaçados de cair.

Sobre pulsões, Édipo, civilização e mal estar, Freud nos ensina que os indivíduos
“normais” são “castrados”, tendo de renunciar à satisfação de suas pulsões sexuais e de
agressividade para poder conviver em sociedade, mas constantemente tendo de se haver
com essas mesmas pulsões lutando contra suas forças repressivas internas, causando-lhe
angústia, sentimento de culpa, sintomas neuróticos. Ele aponta que a tensão entre as
pulsões e as exigências do supereu e da civilização e a consequente renúncia pulsional são
as principais causas do mal estar dos indivíduos.

Sobre a formação de grupos, aprendemos que esse grupo é uma revivescência da


horda primeva e que a identificação entre os membros do grupo se dá pela percepção da
qualidade comum de se identificarem com um mesmo líder ou ideia dominante, pela sua
introjeção e substituição pelo ideal do eu e pelo supereu. Que esse processo permite aos
membros do grupo sentirem-se amparados, sentirem-se não castrados, sentirem-se
autorizados a exprimirem seus desejos antes reprimidos sem culpa, experimentarem um
gozo sem limites.

Aprendemos que a Morte que temos dentro de nós tende a nos destruir, mas que a
Vida, para nos preservar, nos leva a direcionar essa destruição para os outros. Que a Vida
une as pessoas, mas que essa união tem como pressuposto a separação, a divisão em
“nós” e “eles”, em “eu” e “outro”. Que “é sempre possível unir um considerável número de
pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de
sua agressividade.” (FREUD, 1930, p. 72).

Sigo agora minha exposição pela análise do cenário brasileiro contemporâneo à luz
do acima exposto, e partindo das perguntas que o próprio Freud se fez, quando da análise
da psicologia das massas, noventa e sete anos atrás. Minha tese é a de que, entre as
numerosas massas de brasileiros que apoiaram a candidatura de Jair Bolsonaro, muitos
indivíduos não coadunariam com seu discurso e todo o ódio presente nele, não estivessem
imersos em uma massa. Creio que trata-se de um exemplo prático do exposto por Freud,
Adorno, Reich e Rozitchner, de uma alteração mental no indivíduo, uma vez membro dessa
massa. Um fenômeno a ser compreendido psicanalítica e politicamente.

Primeiramente, acredito ser importante citar, nas palavras de Freud, algumas das
alterações mentais promovidas nesses indivíduos em razão de sua participação nesses
grupos, alterações que acredito que podem ser verificadas no comportamento dos grupos
de apoiadores de Jair Bolsonaro. Em seguida, analisarei cada uma dessas alterações
mentais citada sob uma perspectiva psicanalítica, à luz do acima exposto.

O indivíduo é “levado quase que exclusivamente por seu inconsciente”: aqui


encontramos uma manifestação do fenômeno da substituição do supereu pelo objeto, que
leva a uma mudança nos critérios de repressão dos desejos inconscientes, de forma que
muitos daqueles desejos que anteriormente seriam reprimidos pelo supereu agora
encontram livre passagem para sua manifestação. Quanto à mudança no ideal de eu, que é
veiculado pelo supereu, trata-se de um “magnífico festival para o ego, que mais uma vez
poderia então sentir-se satisfeito consigo próprio”.

No indivíduo, qualquer “traço de antipatia se transforma em ódio furioso”, ele “vai


diretamente a extremos”: novamente um exemplo de alteração mental proporcionada pela
substituição do supereu somada à natureza de busca de satisfação plena das pulsões. “Em
circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que
normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela [a agressividade] também se
manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a
consideração para com sua própria espécie é algo estranho.” (FREUD, 1930, p. 70 a 71).
Esta alteração mental, assim como aquela citada no parágrafo anterior, pode ser verificada
nas massas apoiadoras de Jair Bolsonaro através da verificação do ódio, intolerância e
agressividade manifestados por essas massas. Pessoas foram ameaçadas, agredidas e até
mesmo assassinadas por manifestarem-se contrárias aos discursos e práticas incentivadas
por nosso futuro presidente.

O indivíduo é “extremamente crédulo e aberto à influência”, “não possui faculdade


crítica”, “não conhece a dúvida nem a incerteza”: aqui encontramos outra manifestação de
fenômeno causado pela substituição do supereu pelo objeto. Conforme Freud (1921) nos
ensina, o supereu é também a instância responsável pela verificação da realidade, de forma
que “Não admira que o ego tome uma percepção por real, se a realidade dela é corroborada
pela instância mental que ordinariamente desempenha o dever de testar a realidade das
coisas” (FREUD, 1921, p. 72). Esta alteração mental pode ser verificada nas massas
apoiadoras de Jair Bolsonaro pelo fenômeno das ​fake news,​ em que, mesmo confrontadas
com dados oficiais contrários às suas crenças, milhares de pessoas acreditaram cegamente
em mentiras veiculadas via redes sociais ou aplicativos de mensagens.

O indivíduo é “tão intolerante quanto obediente à autoridade”: este exemplo de


alteração mental aponta para o duelo edípico, para a luta pela liberdade e autonomia da
criança frente à ameaça de castração, ao mesmo tempo que para o desamparo paterno que
lhe acomete após a fantasia de assassinato do pai. Como vimos acima, a identificação com
o líder despótico é, em alguma medida, uma identificação com o pai primevo. Esta alteração
mental pode ser verificada nas massas apoiadoras de Jair Bolsonaro pelo duplo fenômeno
do ódio à política institucional, pelo desejo da “nova política” - que de nova possui apenas o
nome -, e pela idealização e atribuição de uma onipotência do “mito” Bolsonaro, que seria o
único capaz de solucionar todas as mazelas do país.

O indivíduo é ”inteiramente conservador”: acredito que esta alteração mental pode


ser bem explicada à luz da substituição do ideal de eu pelo objeto de amor. O
conservadorismo do discurso de Jair Bolsonaro é um valor que aponta para a qualidade
moral do indivíduo e, uma vez substituído o ideal de eu por figura tão conservadora, os
ideais que o indivíduo busca alcançar visando a satisfação narcísica de seu ideal também
são substituídos, de forma que agora é o ser conservador que refletirá a sua qualidade
moral, trazendo-lhe grande bem estar, por acreditar estar “do lado dos bonzinhos”. Esta
alteração mental pode ser verificada nas massas apoiadoras de Jair Bolsonaro através da
análise de seu discurso, apoiado pelas massas, contrário a todo tipo de avanço ideológico e
fundamentado na defesa da “família tradicional”, da “moral”, dos “bons costumes”.

Estas são apenas algumas das alterações mentais que podem ser observadas nas
massas apoiadoras de Jair Bolsonaro, assim como apenas algumas das interpretações
psicanalíticas possíveis para as razões e os efeitos de tais alterações. Gostaria agora de
passar a uma análise de quais são as forças ​políticas que colaboram para a transformação
do indivíduo em massa.

Conforme já apontado anteriormente, acredito que existam grandes interesses dos


grupos hegemônicos na manipulação das massas para a eleição de Jair Bolsonaro. Através
da análise de seu programa de governo, de seus discursos e das alianças políticas
realizadas por seu partido, podemos elencar alguns desses grupos e seus interesses.
Apresentarei brevemente alguns destes grupos e interesses.

A bancada ruralista do Congresso Nacional, representantes tanto de interesses


particulares - grande parte destes deputados e senadores é composta de fazendeiros -
quanto de grandes empresas do ramo agropecuário, é um destes grupos. Jair Bolsonaro
manifestou diversas vezes que pretende desmantelar completamente a política indigenista
estatal e paralisar todos os processos de demarcação de terras indígenas, acusou
movimentos sociais rurais de terrorismo, insuflou fazendeiros a se armarem para
defenderem seu direito à propriedade. O futuro vice-presidente do Brasil, Hamilton Mourão,
é presidente do Clube Militar, incentivou abertamente que militares se candidatassem ao
maior número de vagas possível no poder legislativo e se manifestou ativamente a favor da
privatização da Petrobrás. Paulo Guedes, seu futuro ministro da economia, é banqueiro,
especulador no mercado de capitais, e se manifestou abertamente a favor da reforma
trabalhista, da reforma da previdência e da privatização de diversas empresas estatais.
Pesquisa do Ibope apontou que “Bolsonaro defende interesse de ricos e jovens”. O maior
doador individual para campanhas repassou 7 milhões de reais para campanhas políticas,
grande parte delas de membros da base de Bolsonaro. O futuro presidente já afirmou que
sua estratégia de política externa será o alinhamento com os Estados Unidos. Empresas
bancaram, ilegalmente, serviços de disparo automático de mensagens de whatsapp para
propaganda política de Jair Bolsonaro. O mercado financeiro se mostrou favorável à sua
eleição. Estes são apenas alguns dos interesses e interessados em sua eleição.

Outro ponto importante refere-se à questão de que a figura com quem as massas se
identificarão e colocarão no lugar de seu supereu, conforme já exposto, tanto pode ser um
líder quanto uma ideia dominante, e que essa ideia pode ser negativa. Creio que, no caso
analisado, não se trata apenas da identificação com Jair Bolsonaro, mas com todo um
sentimento e uma ideia chamada ​antipetismo.​ Grande parte do Brasil hoje crê que o Partido
dos Trabalhadores representa todos os campos mais à esquerda da política, muitos
acreditam que o projeto do PT é transformar o Brasil em um país comunista, e alguns creem
mesmo que tudo isso faz parte de um plano satanista de contaminação dos bons cristãos.
Essa ideia tem origem na Guerra Fria, quando o então presidente dos Estados Unidos,
Joseph McCarthy deu início a uma campanha a nível mundial de combate ao comunismo,
principalmente voltada aos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Atualmente
esse pensamento é revisitado por diversos partidos, veículos midiáticos, igrejas, entre
outros, atualizando a campanha anticomunista e relacionando-a a toda e qualquer pauta
relacionada a políticas sociais, identitárias, laicas, etc. Mesmo temas como direitos
humanos e combate à desigualdade social são colocadas no mesmo grande sentimento
antipetista, e vistas com maus olhos. É comum ouvir palavras de ordem como “coisa de
comunista”, “não vamos virar a Venezuela”, “minha bandeira jamais será vermelha”. E não
nos enganemos, houve e há corrupção nos governos petistas, e a gestão petista não foi
uma gestão de esquerda. Favoreceram, é verdade, as populações mais desassistidas como
nenhum outro governo jamais o tinha feito antes, mas foi um governo de conciliação de
classes.
Conclusões e Inconclusões

Concluo, portanto, minha exposição, apontando que o que possibilitou a eleição de


Jair Bolsonaro, a despeito e em razão de seu discurso fascista, foi um processo de
identificação das massas, que substituíram seu supereu e seu ideal de eu pela figura do
candidato, alterando dessa forma os critérios de repressão pulsional e de satisfação
narcísica, processo este que levou-as a uma condição de liberdade para externalizar e
satisfazer suas pulsões sem quaisquer restrições e a sentir a prazerosa sensação de um
gozo sem limites ao fazê-lo.

Creio, além disso, que os fatores que prepararam o terreno psicológico e político
para que a identificação com Jair Bolsonaro e seu discurso de ódio fosse possível foram: a
predisposição psicológica do ser humano à agressividade; a identidade e subjetividade do
brasileiro, permeadas de racismo, machismo, elitismo, homofobia, entre outras formas de
intolerância, identidade e subjetividade essas que são fruto de um processo de construção
ideológica arquitetado por grupos hegemônicos compostos por nomeadores visando a
manutenção do ​status quo​; a propagação por grupos hegemônicos e a identificação das
massas com o sentimento anticomunista macartista, atualizado no antipetismo e alargado
para compreender toda e qualquer pauta social; entre outros.

Não concluo, porém, este artigo, com mais certezas do que dúvidas. Estudar as
interfaces psicológicas do fascismo me levou a uma série de questionamentos, que
pretendo continuar a investigar futuramente. Qual lugar o sadismo e o masoquismo ocupam
no fascismo? Em que medida esta lógica, investigada numa escala macro, poderia ser
aplicada em escala micro, na família patriarcal, no local de trabalho, nos movimentos
sociais? E de que forma poderíamos ainda aplicar a mesma linha de pensamento para
investigar o fenômeno da identificação e da psicologia de massas na esquerda? Restam
muitas dúvidas, muitas incertezas. Às vezes resta o medo. Mas sobra fé. E faca amolada.
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