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O PROJETO DE CPC E OUTRA OPORTUNIDADE PERDIDA

Tempos atrás, o portal do IBDFAM publicou um artigo de minha autoria, no qual


lancei um convite à reflexão sobre um ponto que, em meu sentir, representou
um oportunidade perdida pelo legislador do Projeto: a não atribuição de
capacidade postulatória às partes para a prática de atos na audiência de
mediação e conciliação a que se refere o art. 710 1.

Neste artigo, o convite se estende a outro ponto: a prisão do devedor de


alimentos.

Definitivamente, não se pode afirmar que esta espécie de prisão represente


uma questão imune a controvérsias no cenário jurídico nacional, pois não falta
quem questione a forma pela qual ela deva ser operacionalizada 2 e até a
necessidade de sua manutenção no sistema de direito positivo 3.

Nos Tribunais Superiores, no entanto, o posicionamento predominante é no


sentido de que ela comporta perfeito cabimento naquelas execuções
destinadas à arrecadação da verba correspondente às três últimas prestações
vencidas antes de seu ajuizamento, acrescidas das que se vencerem no curso
do processo, em conformidade com o Enunciado sumular n. 309 do STJ.

Não obstante, dúvidas costumam surgir a respeito do local e regime pelos


quais o devedor deva cumprir a medida de prisão, dada a omissão do CPC a
respeito. No Supremo Tribunal Federal, por exemplo, a orientação pelo regime
aberto parece prevalecer4, ao passo que no Superior Tribunal de Justiça o
entendimento predominante parece ser no sentido do cumprimento da prisão

1
http://www.ibdfam.org.br/artigos/969/O+novo+CPC+e+uma+oportunidade+perdida
2
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Processo Civil Brasileiro. 23. ed. rev. e atual. Rio
de Janeiro: Forense, 2005. p. 261; HERTEL, Daniel Roberto. A Execução da Prestação
de Alimentos e a Prisão Civil do Alimentante. Revista da EMERJ, v. 12, nº 46, 2009, p. 174.
3
MAIA, Roberto Serra da Silva.. Prisão Civil do devedor de alimentos: abolição. São Paulo: LTr
editora, 2013.
4
HC 77.527/MG, DJ de 16.04.04.
civil no regime fechado5, com a concessão de alguns benefícios assegurados
pela Lei de Execução Penal aos presos civis6.

Possivelmente encampando o posicionamento sustentado pelo STJ, o projeto


do CPC enuncia em seu artigo 542, que

Art. 542. No cumprimento de sentença que condena ao pagamento


de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixa
alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o
executado pessoalmente para, em três dias, pagar o débito, provar
que não o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo. Caso o
executado, nesse prazo, não efetue o pagamento, prove que o
efetuou ou apresente justificativa da impossibilidade de efetuá-lo, o
juiz mandará protestar o pronunciamento judicial, aplicando-se, no
que couber, o disposto no art. 531.
[...]
§ 2º Se o executado não pagar, ou não for aceita a justificação
apresentada, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento
judicial na forma do caput, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de um
a três meses.
§ 3º A prisão será cumprida em regime fechado, devendo o preso
ficar separado dos presos comuns.
§ 4º O cumprimento da pena não exime o executado do pagamento
das prestações vencidas e vincendas.
§ 5º Paga a prestação alimentícia, o juiz suspenderá o cumprimento
da ordem de prisão.
§ 6º O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o
que compreende até as três prestações anteriores ao ajuizamento da
execução e as que se vencerem no curso do processo. 7

O problema é que regime fechado é um dos regimes de cumprimento da pena


de reclusão, imposto por provimento condenatório transitado em julgado, cujo
cumprimento se efetiva em Penitenciária (LEP, art. 87) 8, e se baseia na maior
gravidade do crime a ele correspondente, na quantidade de pena aplicada no
caso concreto e nas circunstâncias judiciais que envolvem a pessoa do preso
(CPB, art. 33, §2º, "a"). Ademais, reclama a expedição de guias de
recolhimento para a execução da pena (LEP, art. 105) 9, permite remição de
5
HC 165.760/SC, DJe de 01.07.10; HC 16.824/SC, DJ de 07.03.05.
6
HC Nº 44.754/SP, DJ de 10.10.05: "Em regra, não se aplicam as normas da Lei de Execuções
Penais à prisão civil, vez que possuem fundamentos e natureza jurídica diversos. Em
homenagem às circunstâncias do caso concreto, é possível a concessão de prisão domiciliar
ao devedor de pensão alimentícia.
7
O Estatuto das Famílias segue, linhas gerais, o mesmo caminho em seu artigo 224, que
enuncia que: A prisão pode ser cumprida em regime semi-aberto ou fechado. Parágrafo único.
Em caso de decretação de nova prisão, o regime é o
fechado.
8
Art. 87. A penitenciária destina-se ao condenado à pena de reclusão, em regime fechado.
9
Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu
estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a
dias, por trabalho ou estudo do preso (LEP, art. 126) 10 e autoriza a progressão
para regime mais brando (LEP, art. 112)11.

Existiriam, ainda, diversas incompatibilidades entre os institutos, que só


recomendariam ainda mais o tratamento diferenciado a cada um deles.

O mais curioso é que, enquanto o legislador do projeto do CPC pretende


instituir o regime em questão para todos os devedores de alimentos
custodiados, independentemente da averiguação de eventuais circunstâncias
judiciais que envolvam o inadimplemento, o direito penal vem buscando
alternativas menos severas de cumprimento de pena 12 até para os condenados
pela prática de crimes hediondos13.

E mais. Encarcerar um devedor de alimentos no regime fechado parece lhe


conferir, ao menos em tese, o direito à percepção do auxílio-reclusão previsto
no art. 116 dO dEC. 3048/99, que enuncia que "o auxílio-reclusão será devido,
nas mesmas condições da pensão por morte, aos dependentes do segurado
recolhido à prisão que não receber remuneração da empresa nem estiver em
gozo de auxílio-doença, aposentadoria ou abono de permanência em serviço,
desde que o seu último salário-de-contribuição seja inferior ou igual a R$
360,00 (trezentos e sessenta reais)" 14, pois o dispositivo legal, apesar de

execução.
10
Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir,
por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena.
11
Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a
transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver
cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento
carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a
progressão.
12
STJ, Súmula 269: É admissível a adoção do regime prisional semiaberto aos reincidentes
condenados a pena igual ou inferior a quatro anos se favoráveis as circunstâncias judiciais.
13
STF, Súmula Vinculante nº 26: Progressão de Regime no Cumprimento de Pena por Crime
Hediondo - Inconstitucionalidade - Requisitos do Benefício - Exame Criminológico: Para efeito
de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo
da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de
1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e
subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização
de exame criminológico.
14
Portaria MF 19/2014.
Art. 3º A partir de 1º de janeiro de 2014:
I - não terão valores inferiores a R$ 724,00 (setecentos e vinte e quatro reais), os benefícios:
a) de prestação continuada pagos pelo INSS correspondentes a aposentadorias, auxílio-
doença, auxílio-reclusão (valor global) e pensão por morte (valor global).
empregar o vocábulo "reclusão" não se refere a crime nem à esta modalidade
de privação de liberdade, mas tão somente ao fato objetivo de haver segurado
recolhido à prisão sob regime fechado ou semiaberto 15, o que poderia levar a
diversas interpretações, inclusive à acima sugerida que, por sua vez, conduziria
à absurda situação de o Estado acabar arcando com a dívida contraída pelo
alimentante negligente, na medida em que os beneficiários da quantia são os
dependentes do segurado, nos quais certamente se incluiria o credor
promovente da execução de alimentos16.

Os anuários estatísticos do IBGE, que já indicam números nada módicos de


concessão deste benefício, certamente iriam sofrer considerável crescimento
se fosse acolhido esse nada recomendável posicionamento 17.

Não se questionam a importância e a necessidade da manutenção da prisão


civil no ordenamento. Porém, o próprio local idealizado pelo legislador para o
recolhimento desses devedores reclama a existência de estabelecimentos
adequados, e, apenas em sua falta, o encaminhamento deles à Cadeia
Pública, para o cumprimento da prisão civil em seção especial (LEP, art. 201) 18,
daí porque estabelecer-se o regime fechado como único regime de
cumprimento de uma prisão civil, definitivamente, não parece ser a melhor
saída.

Digna de aplauso, por isso, a sensibilidade da Min. Nancy Andrighi no


julgamento do HC nº 104.454/RJ ainda nos idos de 2008 19, onde determinou
que o cumprimento da prisão civil pelo devedor de alimentos deveria seguir "os
moldes do regime fechado", mas, não o regime fechado propriamente dito,
15
§ 5º O auxílio-reclusão é devido, apenas, durante o período em que o segurado estiver
recolhido à prisão sob regime fechado ou semi-aberto.
16
Não se esqueça que a renda do preso, e não a dos beneficiários, é o parâmetro atualmente
eleito pelo STF para a concessão do auxílio. Neste sentido: RE 587.365 e RE 486.413.
17
Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2013/05/AEPS_2012.pdf
18
De acordo com o art. 103 da LEP, cada comarca terá, pelo menos uma cadeia pública a fim
de resguardar o interesse da Administração da Justiça Criminal e a permanência do preso em
local próximo ao seu meio social e familiar.
19
HC 104.454/RJ, DJe de 23.06.08: "A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de,
considerando que a finalidade da prisão civil é justamente coagir o devedor a honrar a
obrigação, determinar o seu cumprimento nos moldes do regime fechado, tão somente
admitindo a conversão para forma de cumprimento mais benéfica em hipóteses excepcionais,
nas quais não se amolda a presente."
tornando coerente a execução da medida coercitiva com sua finalidade de
forçar ao pagamento e não de reabilitar e ressocializar o devedor de alimentos.

Mas, para que potenciais conflitos de interpretação fossem evitados talvez


fosse mais sensato que o próprio legislador tomasse partido a respeito e
impusesse que a prisão civil não deveria se submeter a nenhum regime penal
de cumprimento, mas a algum estatuto jurídico próprio, ainda que em
parâmetros semelhantes aos de alguns regimes penais, dada sua natureza
coercitiva a distinguir por completo da modalidade de prisão pena.

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