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Fnlllklin Leopoldo c Silva

BERGSON ""
INTUI AO E I

DISCURSO FlLOSOFICO

COLEç..íO
i Filosofia
j.f.J ~
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FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA


COLEÇÃO FILOSOFIA

1. Para ler a Femmumologia do 17. Justiça de quem? Q;uzl


Espírito, 2' ed. racionalidade?
Paulo Meneses Alasdair MacIntyre f'" ~'- c

2. A vereda trágica do Grande 18. O grau zero do conhecimento


Sertão: Veredas Ivan Domingues _/
Sonia M. V. Andrade 19. Maquiavel republicano
3. Escritos de filosofia I Newton Bignotto
Henrique C. de Lima Vaz 20. Moral e histúria em John ÚJcke
4. Marx e a natureza em O Capital Edgar J. Jorge Filho
Rodrigo A P. Duarte 21. Estudos de filosofia da cultura
5. Marxismo e liberdade Regis de Morais
Luiz Bicca 22. Antropologia Filosófica II
6. Filosofia e violência Henrique C. de Lima Vaz
Marcelo Perine
7. A cultura do simu/ncro
Hygina B. de Melo
23. Evidência e verdade no sistema
cartesiano
Raul Landim Filho
BERGSON
8. Escritos de filosofia II: Ética e 24. Arte e verdade
cultura, 2' ed. . Maria José Rago Campos INTUIÇÃO E DISCURSO FILOSÓFICO
Henrique C. de Lima Vaz 25. Descartes e sua concepção de
9. Filosofia do mundo homem
Filippo Selvagi Jordino Marques
!O. O conceito de religião em Hegel 26. Ética e sociabiliMde
Marcelo F. de Aquino Manfredo A de Oliveira
11. Filosofia e método no segundo 27. A gênese do antologia
Wittgenstein fundomental de M. Heidegger
Werner Spaniol João A A Mac Dowell
12. A filosofia na crise do 28. Ética e racionalidade moderna
rnoderniMde Manfredo A de Oliveira
Manfredo A Oliveira 29. Mímeses e racionaliMde
13. Filosofia política Rodrigo Antonio de Paiva Duarte
Eric Weil 30. Trabalho e riquezn na
14. O caminho poético de Parmêni.des Fenomenologia do Espírito
Marcelo Pimenta Marques de Hegel
15. Antropologia filosófica I, 3' ed. José Henrique Santos

~
Henrique C. de Lima Vaz 31. Bergson: intuição e discurso
16. Religião e histúria em Kant filosófico
Francisco J. Herrero Franklin Leopoldo e Silva E~ú,..,.,
FILOSOFIA I

Coleção dirigida pela Faculdade de Rlosofia do Centro de Estudos INmCE


Superiores da Companhia de Jesus
Diretor: Marcelo F. Aquino, SJ
Co-Diretores: Henrique C. Uma Vaz, SJ e Danilo Mondoni, SJ
Instituto Santo Inácio
Av. Cristiano Guimarães, 2127 (planaltp)
31720·300 - Belo Horizonte, MG

Abreviaturas das obras de Bergson .............................................. 7


Silva, Franklin Leopoldo e
Bergson: intuição e discurso filosófico/
INTRODUÇÃO
Franklin Leopoldo e Silva. - São Paulo: Loyola,
A LINGUAGEM DA FILOSOFIA
1994. - (Coleção filosofia; 31)
1 ........................................................................................................ 9
Bibliografia.
2 ...................................................................................................... .. 15
ISBN 85·15·00984-6
3 ....................................................................................................... . 21
1. Bergson, Henri, 1859·1941 - Crítica e interpretação 2.
Intuição 3. Metodologia 4. Tempo l. Título. I!. Série.
I
4-1518 CDD-143 INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO
Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia e Método (I) ............................................................... 29
1. Bergsonismo: Filosofia 143 2. Filosofia e Método (11) .............................................................. 39
3. Crítica do Método Filosófico (I) .............................................. 50
4. Crítica do Método Filosófico (lI) ............................................. 61
5. Crítica do Método Filosófico (III) ............................................ 73
6. Crítica da Idéia Geral- O contorno exteríor da intuição ...... 84
7. Filosofia e Metáfora (I) ............................................................. 95
Edições Loyola 8. Filosofia e Metáfora (11) ............................................................ 105
Rua 1822 n2 347 - lpiranga
04216-000 São Paulo - SP
Caixa Postal 42.335
04299-970 São Paulo - SP II
({) (011) 914·1922 ETAPA CRíTICA DA REINSTAURAÇÃO DO OBJETO
Fax., (011) 63-4275 DA FILOSOFIA: EXAME DE TEORIAS TRADICIONAIS DO TEMPO
Todos os direitos reseroados. Nenhuma parte desta obra
pode ser reprodUZida ou transmitida por qualquer forma e/
1. O problema da duração psicológica ....................................... 117
ou quaisquer meios (eletrónico, ou mecânico, incluindo 2. A segmentação da temporalidade. O exemplo aristotélico.. 123
fotocópia e gravação) ou arquiooda em qualquer sistema ou 3. Temporalidade formal............................................................. 139
banco de dados sem permissão escrita da Editora. 4. Duração, descontinuidade e determinação ........................... 147
ISBN, 85-15-00984-6 5. Temporalidade e causalidade ................................................. 156
6. Crítica do a priori temporal..................................................... 163
© EDiÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1994
7. Tempo e conceito ..................................................................... 171 I

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r
III
INTUIÇÃO E EXPRESSÃO ABREVIATURAS DAS OBRAS DE BERGSON
A QUESTÃO DA PRESENÇA DE ELEMENTOS
ROMÃNTICOS NO PENSAMENTO DE BERGSON
L A crise do "gênero" conceitual ............................................... . 185
2. A dimensão da reflexão real .................................................... . 199
3. Pensamento e reflexividade .................................................... . 2ll
D.1. = Essai sur les Données Immédiates de la Conscience,
PU F, Paris, 1970
4. Exterioridade e aporia da reflexão ........................................ .. 225
5. Consciência e movimento da interioridade .......................... . 238 M.M. = Matiere et Mémoire, PUF, Paris, 1968
6. A cisão da totalidade: diferença e virtualidade ..................... . 249 E.C. = L'Évolution Créatrice, PUF, Paris, 1969
7. A Vida como produção absolutamente criadora .................. . 265 P.M. = La Pensée et le Mouvant, PUF, Paris, 1969
8. Intuição, reflexão e interioridade ........................................... . 277 L'Énergie Spirituelle, PUF, Paris, 1967
9. A Interioridade em si ............................................................... . 289
E.S. =
10. Intuição e expressão: a tensão do significado ....................... . 302 D.S. = Les Deux Sources de la Morale et de la Religion, PUF,
11. Emoção e verdade: a indeterminação significativa .............. . 313
o Paris, 1967
12. Ser e significar: a intimidade criadora .................................. .. 325 Le Rire = Le Rire, Essai sur le Comique, PUF, Paris, 1950

As citações são feitas das seguintes maneiras:


CONCLUSÃO
I) Ex: Bergson, H., P.M.-120
O comentário da criação ................................................................ 337
2) Ex: E.C.-98
3) As traduções dos textos de Bergson, quando citadas, referem-
BIBLIOGRAFIA -se sempre à edição da Abril Cultural (Pensadores), São Pau-
I. Obras de Bergson ..................................................................... 353 lo, 1979.
11. Obras de Bergson traduzidas para o português ..................... 353 Neste caso é feita a menção Abril em seguida ao número da
111. Comenta dores de Bergson e outras obras .............................. 353 página.
Ex: P.M.-87 Abril ou Bergson, H .. P.M.-96 Abril
.. _ _ .y-~,."= -
Por vezes, a referência traz o título do ensaio que está sendo
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Qual é a linguagem da Filosofia? Se tomarmos esta pergunta como


critério orientador para uma leitura da obra bergsoniana, chegare-
,o "" f\.4 ~~s H, íOr;. (<.C~,>= /) mos ao final do percurso sem encontrar uma resposta efetiva. Esta
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ausência decorre do caráter que Bergson atribui à linguagem: produ-
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to da inteligência concebida como faculdade instrumental. A inteli-
gência é o meio de que a natureza nos dotou para triunfar sobre a
matéria e organizar o mundo da perspectiva das necessidades hu-
manas. A intenção pragmática define, pois, a inteligência, que é no
\ homem O sucedâneo do instinto. No entanto, a possibilidade de re-
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conhecermos na inteligência o seu caráter utilitário toma-a significa-
r:~- tivamente diferente do instinto, regido pela espontaneidade e auto-
ç;,. -':1 '-'-' matismo, ou seja, pela imediatidade. O caráter mediato da inteligên-
cia, o espaço que se abre para o homem entre a representação e a
ação, revela-se no intento fabricador da inteligência, na sua vocação
", . ., >-" ç::..- t-- \' ';;.. -.:/.....
para fabricar instrumentos que sirvam para fabricar outros instru-
mentos, permitindo assim o aperfeiçoamento e a variabilidade das
formas de ação sobre a matéria. Esta mediação que se revela na re-
presentação das condições de possibilidade do agir é o que permite
à inteligência refletir sobre si mesma: a filosofia nasce desta suspeita
da interioridade. Originalmente, entretanto, a inteligência confunde-
-se com a atividade. "( ... ) ela se manifesta por uma atividade que é
um prelúdio à arte mecânica e por uma linguagem que anuncia a
ciência" (P.M.-84). O alcance do pragmatismo da inteligência se
manifesta no entrelaçamento originário entre técnica e ciência: "Uma
mecânica a princípio grosseira suscita uma matemática ainda im-
precisa: esta, tomando-se científica e fazendo então surgir em tomo
dela as outras ciências, aperfeiçoa indefinidamente a arte mecânica"
(P.M.-84). A atividade inteligente recobre pois tanto a técnica de ma-
nipulação da matéria como as teorias cientificas que visam conhecê-la.

9
r INTRODUÇÃO A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

Há também uma relação de complementaridade entre estas duas dos significados com os quais a ciência vai moldando as teorias so-
manifestações da inteligência. Ao mesmo tempo em que a ciência bre a realidade. Mas entre as duas existe a passagem do "vago" ao
surge a partir da instrumentalidade técnica, esta se aperfeiçoa pro- "nítido", o que se mostra na progressiva consolidação do caráter exato
gressivamente por via de uma ampliação do conhecimento da maté- da linguagem teórica. A linguagem, originariamente um meio "de
ria e dos meios de agir sobre ela. Por isto, no plano da gênese, há estabelecer uma comunicação em vista de uma cooperação" (P .M.-
uma relação estreita entre arte mecânica e matemática. A matemá- 86), acaba por tornar-se um sistema de signos precisos, pelo simples
tica é o desdobramento teórico da ação mecânica: seu surgimento progresso na direção do aprofundamento da índole matemática da
provoca por outro lado o nascimento das outras ciências que, en- ciência. A variabilidade dos significados lingüísticos se deve ao cará-
quanto produtos da atividade da inteligência, estão também estrei- ter convencional das palavras, que não deve ser confundido com o
tamente relacionadas com a arte mecânica, ou com a técnica em caráter convencional da linguagem. "Cada palavra de nossa língua é
sentido geral. Há portanto duas direções paralelas da atividade inte- efetivamente convencional, mas a linguagem não é uma convenção,
ligente: técnica e ciência; a relação constante entre estes dois planos e é tão natural ao homem falar quanto andar" (P.M.-86). A mobilida-
da inteligência revela a unidade da forma que é caracteristica da racio- de dos significados e o caráter convencional das palavras estão ins-
nalidade instrumental. "Ciência e arte nos introduzem assim na intimi- critos na mediação que caracteriza a atividade inteligente, isto é, na
dade de uma matéria que uma pensa e outra manipula" (P.M.-84). invenção dos meios pelos quais se exerce a racionalidade instrumen-
tal. Entre a oscilação total do significado e a precisão dos signos da
Devemos observar que a proximidade entre mecânica e mate-
linguagem teórica está o processo de consolidação pragmática dos
mática tem em Bergson um profundo significado, e insere-se na
significados, tendo em vista os critérios de comunicação e coopera-
compreensão do eixo critico do pensamento bergsoniano. Com efei-
ção que regem a sociabilidade. O convencionalismo e a pragmatici-
to, como teremos oportunidade de explicitar mais adiante, o objeto
dade contribuem para realizar a tendência à fixidez dos significados.
da ação mecânica é o fisico-inerte, a matéria considerada na sua
Isto se deve ao fato de que as palavras em princípio necessitam cor-
configuração espacial. A matemática, como desdobramento teórico
responder ao recorte que a percepção e a inteligência operam no
da ação mecânica, pensa o seu objeto como espacial e inerte. Aí está
real. Para que este recorte cumpra a função de assegurar um relacio-
portanto uma conseqüência da relação sujeito-objeto na modalida-
namento estável com o real, é preciso que corresponda à identifica-
de da inteligência que repercutirá no plano ontológico, quando a
ção de propriedades que permitam o pronto reconhecimento das
estrutura desta relação for tomada pela filosofia clássica como tese
virtualidades de ação, ou seja, à ordem da realidade. É assim que a
metafísica. Não apenas a técnica encerra a matematicidade como
linguagem adquire um caráter diretamente instrumental: "prescre-
princípio constitutivo de ação material como também as ciências se
ve", isto é, faz apelo à ação imediata; ou "descreve", assinala coisas
modelarão sobre a matematicidade ao visarem teoricamente à maté-
ou propriedades com vistas à ação iminente (P.M.-86). A origem da
ria que já lhes é dada como objeto da técnica. Existe uma relação de
consolidação dos significados e da cristalização das palavras está pois
continuidade que faz com que o "pressentimento da matéria", está-
na necessidade prática de convenção. Uma vez recortado o real e
gio vago da objetividade da inteligência, se prolongue no delinea-
identificadas as coisas e propriedades, a palavra será a mesma sem-
mento nítido da materialidade operado pela matemática e pelas ciên-
pre que a ação requerida for a mesma. É portanto a atividade que
cias que surgem "em torno dela". Esta postura diante da realidade,
determina a cristalização convencional dos significados. Quando a
tradicionalmente tomada como a única relação possível entre sujeito
linguagem teórica superar as oscilações imediatamente presentes no
e objeto, constitui no entanto um modo de atenção, que mais tarde
universo da práxis, ela prolongará esta tendência à fixidez e à unifor-
caracterizaremos como intencionalidade pragmática: a atenção que
o espírito presta à matéria (P.M.-85). midade, chegando à elaboração de um sistema de signos precisos.
Esta fixação dos significados não tem a ver apenas com as palavras,
Na gênese descrita por Bergson, a ação está para a técnica assim mas também com as idéias. Uma vez que o recorte da realidade é
como a linguagem está para a ciência. À variabilidade dos meios para elaborado pela percepção e pela inteligência, haverá sempre um dis-
se atingir um objetivo no campo da ação corresponde a mobilidade curso "mental" que corresponderá a este recorte. Por isto tanto as

10 II

J
INTRODUÇÃO A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

palavras como as idéias têm origem na esfera da atividade: o homem cia; ao mesmo tempo, institui como objeto privilegiado a hipóstase
pensa em virtude das necessidades do seu agir. da tendência à fIXação do significado, própria da inteligência: a For-
ma ou Essência são vistas pela filosofia como o ideal ou o paradigma
A mobilidade dos significados, figura lingüística da mediação da
do pensamento e da linguagem, que estariam, doravante, em condi-
atividade inteligente, faz com que se conserve entretanto um
ções de organizar suas estruturas a partir da realidade definitiva-
interstício em que é possível que se insira a negação da instrumen-
mente articulada no mundo das idéias. A dialética é a tentativa de
talidade da linguagem. O espaço de reflexão que se instaura entre a
fazer com que o resultado do discurso reproduza, tanto quanto pos-
representação e a ação, entre a percepção e a nomeação das coisas
sível, a articulação das formas eternas. Com este procedimento a
possibilita a gênese dos significados não diretamente utilitários. Este
inteligência projeta no plano do absoluto a sua função unificadora,
espaço de reflexão não é outra coisa senão a franja instintiva/intui-
originalmente de caráter prático.
tiva que rodeia a inteligência, sobre a qual nos estenderemos mais
adiante. Foi este resíduo intuitivo que "deu nascimento à poesia, A origem da Metafísica está assim associada à objetivação platô-
depois à prosa, e converteu em instrumentos de arte as palavras que nica da exigência intelectual de fixação de sentido. Esta relação de
antes eram apenas sinais: foi sobretudo através dos gregos que este continuidade entre o pragmatismo da inteligência e as característi-
milagre se realizou" (P.M.-87). Este suplemento significativo não cas da especulação filosófica determinou a feição da linguagem da
muda, contudo, a estrutura da linguagem e não revoga seu caráter filosofia. Na raiz desta atitude está a recusa da oscilação do significa-
instrumental: apenas tira proveito da mobilidade originária das sig- do e da mobilidade dos signos. Mas estas duas recusas podem ser
nificações. Tal uso da linguagem redunda em eleger como virtude o vistas como subsidiárias da adoção dos critérios de objetividade da
caráter vago que possuem as palavras antes de serem adaptadas à inteligência. Isto significa que o discurso filosófico se constitui no
racionalidade instrumental nos planos da ação e da ciência. Esta interior da esfera da atividade, a mesma que já englobava os discur-
adaptação deriva de outra, mais geral, do espírito à matéria. Ora, sos do senso comum e da ciência. É claro que os discursos da ciência
diante da importância vital e social da racionalidade instrumental, o e da filosofia não estão diretamente submetidos às mesmas injunções
discurso da arte não se põe com a força de um paradigma. Assim, a que pesam sobre o discurso do senso comum, preso imediatamente
essência intelectual da linguagem prevalece quando da constituição aos requisitos da ação. Como diz Bergson, ciência e filosofia são for-
do discurso filosófico na Grécia. Foi portanto o recorte da linguagem mas de "pensamento solitário", ao passo que a organização das ações
comum, aquele elaborado sob o critério da atividade prática, que se vincula-se às formas sociais de pensamento (P.M.-88). Ainda assim,
ofereceu primeiramente como base para a invenção do discurso filo- a linguagem continua expressando o pensamento solitário nas for-
sófico. "Um Platão, um Aristóteles adotam o recorte da realidade que mas do pensamento "em comum", uma vez que esta modalidade de
encontram já pronto na linguagem: 'dialética', dialegein, dialegestai, expressão é constitutiva da linguagem. Como a ciência é o desdobra-
significa ao mesmo tempo 'diálogo' e 'distribuição'; uma dialética mento teórico da ação e visa em última análise ao aperfeiçoamento
como a de Platão era ao mesmo tempo uma conversação em que se de suas condições de possibilidade, esta continuidade não trai a
procurava o acordo sobre o sentido de uma palavra e uma repartição vocação do pensamento cientifico. No caso da filosofia, entretanto,
das coisas segundo as indicações da linguagem" (P.M.-88). O acordo os parâmetros de expressão e as regras de constituição do discurso
e a distribuição do sentido aparecem portanto como a maneira pró- estarão em oposição com o objeto. A situação da filosofia em sua
pria que tem o discurso filosófico para chegar à verdade. Esta é en- origem determina pois a questão, nunca convenientemente tratada
tendida portanto como a fixação de significados e a filosofia, ao lado no pensamento tradicional, da adequação entre o conteúdo e os
da ciência e do senso comum, aparece como mais uma atividade meios de expressão. Todos os problemas e impasses do pensamento
destinada a superar a mobilidade dos significados. Isto determina a filosófico derivam desta relação, que entretanto nunca foi pensada
forma do discurso filosófico e ao mesmo tempo institui o culto da em si mesma, pois, para Bergson, salvo algumas intuições que fica-
Forma como característica do pensamento filosófico. Quanto à sua ram por desenvolver, a filosofia nunca questionou com rigor e radi-
forma, o discurso filosófico aparece como articulado pela inteligên- calidade os critérios da objetividade da inteligência e, conseqüente-

12 13
INTRODUÇÃO A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

mente, nunca duvidou seriamente de sua linguagem. O resultado avaliar o teor expressivo do discurso filosófico constituído na tradi-
disto é que a consolidação histórica desta linguagem acabou inver- ção e pensar o problema da adequação entre o poder expressivo ·e o
tendo a relação natural entre linguagem e pensamento. A exigência conteúdo a ser expresso quando tematizamos o objeto da filosofia na
de se chegar a conceitos, etapa lógica da fixação de significados, faz sua diferença específica. A objetividade da inteligência, pela sua ín-
com que pensemos já a partir de conceitos. Tanto isto é verdadeiro dole compatível com o espacial e o fisico-inerte, privilegia natural-
que a inteligência, na sua acepção geral, pode ser definida como a mente a atenção à materialidade. A adaptação das palaVras à expres-
"faculdade de organizar 'razoavelmente' os conceitos e manejar con- são da articulação espacial é a principal questão que se apresenta
venientemente as palavras" (P.M.-89). A crítica filosófica é um exem- para a crítica do discurso filosófico.
plo deste pensamento que parte dos conceitos para chegar aos con-
ceitos, isto é, que trabalha unicamente com o exame das possibilida-
des de articulação conceitual, sem questionar a gênese dos conceitos 2
e sua adequação à realidade que deveriam representar. Nisto a filo-
sofia é encorajada pela definição de inteligência em sentido estrito, Essa adaptação é natural e deriva do convencionalismo das pa-
"função matemática do espírito" (P.M.-89J, especializada no conhe- lavras. Comunicação e cooperação são as coordenadas pelas quais a
cimento teórico da matéria. linguagem se insere na práxis. Sendo a linguagem o instrumento mais
imediato da inteligência, nela devem desenhar-se as características
O fascínio que a tendência para a fixação do sentido exerce sobre que definem a inteligência como a faculdade de sobrevivência, isto
o saber filosófico tem a ver com a vocação profunda da percepção e é, de adaptação. Por isto os signos que constituem a linguagem terão
da inteligência para a estabilidade. Com efeito, enquanto faculdades as duas virtudes práticas que os farão combinar-se com a espacial i-
que governam o relacionamento prático com o mundo, percepção e dade: descontinuidade e articulação. A primeira destas característi-
inteligência devem cumprir primordialmente funções sociais e vi- cas faz com que a função designativa das palavras se amolde a um
tais; nada mais natural do que inserir neste relacionamento o grau mundo de coisas distintas e distribuídas espacialmente. A segunda
de uniformidade e de estabilidade necessário ao bom desempenho assegura a possibilidade de relacionar estas mesmas coisas sem que
das ações e do trabalho em comum, garantindo assim os beneficios elas percam a identidade de elementos distintos e situados conven-
da inserção de todos os individuos na sociabilidade que lhes garante cionalmente. Assim constituídos, os elementos e a forma do discurso
a realização dos objetivos práticos. O equilíbrio assim conseguido cumprem uma dupla função: representam de maneira estável o
define a situação natural do homem no mundo. Quando o espírito mundo da consciência empírica, permitindo distinguir com nitidez
volta sua atenção para questões desvinculadas desta situação natu- as possibilidades de ação que melhor correspondam às exigências de
ral, manifesta-se a tendência de estender ao exame destas questões integração entre o individuo e o seu meio; asseguram ao pensamen-
as formas de pensamento já empregadas na esfera da práxis. Isto to um meio de situar-se com eficiência e economia diante da com-
significa, mais ou menos indiretamente, assumir a continuidade entre plexidade do mundo externo, uma vez que possui nas palavras um
a percepção, a ciência e a filosofia, como se a diferença entre estas acervo confiável de marcas suscetíveis de identificação intersubjeti-
três formas de contato com a realidade fosse apenas de grau de com- va. É a tentativa de fazer desta segurança prática a característica por
plexidade. O que está em questão, na verdade, é a essência da atitu- excelência da especulação filosófica que leva a metafisica a recusar,
de filosófica, da qual decorreria a constituição da linguagem da filo- desde sua origem, a mobilidade do significado. Tal mobilidade con-
sofia. É preciso portanto que a crítica das filosofias supere a dimen- vive, originariamente, com o convencionalismo das palavras. A críti-
são do remanejamento conceitual e interrogue a própria diferença ca deste desequilíbrio semântico faz com que a filosofia se afirme
que deveria existir entre a objetividade da inteligência e a filosofia. primeiramente como correção do discurso e fixação do sentido. Com
Para que isto seja feito é preciso que se examine o que Bergson de- isto a orientação do pensamento fica estreitamente ligada à catego-
nomina de maneira geral o simbolismo da linguagem e o propósito rização da linguagem. A determinação do sentido conceitual passa a
platônico de superar a mobilidade dos significados. Isto permitirá ser o caminho para encontrar a verdade. Uma vez definida a Iingua-

14 15

j
INTRODUÇÃO A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

gem da filosofia no interior do gênero conceitual. fica predetermina- constatação de caráter crítico é solidário de uma proposta positiva
da toda e qualquer investigação acerca do método filosófico. Mais do de teoria do conhecimento a1icerçada na intuição. Esta é portanto o
que isto. fica pré-delineado o próprio objeto da filosofia. uma vez motivo originário que orienta a crítica do discurso. O pensamento.
que a projeção da atividade de fixação de sentido faz com que este atendendo às prerrogativas da inteligência. recusa a intuição e faz da
objeto seja doravante procurado na esfera do imóvel e do imutável. análise do espaço uma figuração do conhecimento da duração. A
à qual corresponde o sentido definitivamente fixado. linguagem na qual se exprime o conhecimento filosófico da realida-
de é. pois. uma linguagem figurada. É necessário no entanto esclare-
Há portanto uma correlação de forças na determinação da signi- cer pelo menos dois aspectos dessa afirmação. Num certo sentido.
ficação no interior do discurso filosófico. O fundamento da recusa da
toda linguagem é figurada pelo próprio caráter convencional das
mobilidade dos significados se encontra no nível da práxis e é origi- palavras e. em Bergson. como veremos na última parte deste traba-
nariamente uma atitude prática. Por outro lado. o telas da constitui- lho. as próprias idéias já são o pensamento figurado. Na verdade. a
ção do discurso filosófico é o estabelecimento de significações abso- expressão linguagem figurada pressupõe uma referência a algo oposto
lutamente unívocas. Esta univocidade total corresponde ao anelo fi-
à descontinuidade e articulação das figuras. Onde situar este refe-
losófico do encontro do objeto na sua forma eterna e imutável. Como rente? A própria percepção já nos oferece um mundo recortado. partes
vimos antes. práxis e teoria confluem para o mesmo objetivo; ape- dispostas para a articulação. A inteligência completa este trabalho.
nas. no plano do discurso teórico. ficam eliminados os obstáculos sobretudo no nível da simbolização. De maneira que. quando avalia-
que são inerentes às ambigüidades propriamente constitutivas das mos o poder designativo das palavras. não basta. no contexto berg-
significações no nível da ação. Pensamento. linguagem e ação exer- soniano. referirmo-nos à generalidade imanente aos nomes. como.
cem assim uma cumplicidade que tem sua origem profunda na te- por exemplo. em Locke. A designação é simbólica não apenas por
leologia vital que governa o comportamento do homem. Entre o agrupar coisas ou feixes de percepção sob uma única palavra. mas
pensamento e a ação. a constituição dos significados na linguagem também por figurar espacialmente (descontínua e articuladamente)
cumpre um papel mediador que tradicionalmente tem encorajado a algo que em si é continuidade e fluência. Para a inteligência. as pa-
visão do pensamento no interior das coordenadas da objetividade de lavras não remetem ao fluxo da duração. mas a algo que lhes é de
inteligência. A atividade mediadora da linguagem se exerce em dupla certa forma homogêneo. posto que também de índole espacial. tam-
direção: ao mesmo tempo em que expressam os pensamentos. as bém descontínuo e articulado. Entre as palavras e as coisas. para a
palavras os realimentam. configurando assim uma espécie de círculo inteligência. existe a comunidade da forma. Por isso a filosofia pôde
conceitual que corresponde ao objetivo natural da fixação de senti- acreditar que o caminho da formalização leva à realidade em si. aos
do. A crítica estrutural não pode romper esse círculo; somente a crí- arquétipos das coisas. que SÓ poderiam ser formas puras. ou então
tica genética pode proceder a uma arqueologia da atividade concei- conceitos que. enquanto formas lógicas. realizam a vocação formal
tual e dispor o pensamento para uma avaliação da adequação entre que o pensamento crê detectar na aparência do devir. Esta vocação
expressão conceitual e realidade. no plano do pensamento filosófico. lógica já se encontra no nível das próprias idéias enquanto formas de
Por isto o método filosófico é inseparável de uma crítica desta espé- pensamento. Não é evidentemente sob este aspecto que Bergson
cie. que se concretiza positivamente numa teoria da vida. É esta a afirma que a linguagem da filosofia é figurada. Sendo a inteligência.
única maneira de percebermos por que a linguagem teórica desem- com suas formas de apreensão do devir. já uma figuração. a lingua-
boca no simbolismo conceitual. O simbolismo conceitual é um sub- gem figurada da filosofia deve ser remetida a um estrato mais pro-
produto do simbolismo da linguagem. A crítica da linguagem da fi- fundo. aquém da inteligência e das formas intelectuais. Esta referên-
losofia deve interrogar primeiramente a estrutura desta atividade cia verdadeiramente ontológica da linguagem é que nos permite fa-
simbólica. lar em simbolismo. não no simples sentido de generalização. mas no
Uma das teses fundamentais do pensamento de Bergson é que a sentido mais fundamental de heterogeneidade entre símbolo e sim-
linguagem da filosofia desfigura o objeto filosófico. E o faz porque bolizado. A crítica da linguagem da filosofia passa pela constatação
traduz num discurso formalizado o fluxo da duração. O sentido desta de que o meio de expressão é de natureza diversa do conteúdo a ser

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INTRODUÇÃO A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

expresso. Sendo a linguagem essencialmente intelectual, isto é, apta comunidade da índole espacial que liga as palavras e as coisas. O
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para expressar primordialmente (ou mesmo exclusivamente) con- teor representativo das palavras deriva de que aquilo que elas repre-
teúdos de índole espacial, o fluxo da duração, enquanto oposto à sentam já foi filtrado pela percepção e pela inteligência. A intencio-
articulação espacial, não pode ser expresso por palavras. Não há nalidade dos signos lingüísticos é solidária do fato de que a conven-
nenhuma comunidade entre conteúdo e expressão. Quando Bergson ção que lhes deu origem provém da atitude natural da consciência
fala em simbolismo da linguagem devemos pois entender uma empírica diante do mundo estruturado em termos perceptivos e in-
desnaturação completa daquilo que deveria ser o significado. Há uma telectuais. Num certo sentido, o impasse com que se defrontou Les-/.
distância que a princípio parece ser intransponível entre o objeto da sing, segundo Todorov, retrata uma realidade: a linguagem imita,
filosofia e a sua linguagem. mas os signos são arbitrários. Como pode o arbitrário imitar a natu-
reza?' Em termos bergsonianos, a explicação adviria de que é a inte-
Entre a espacialidade e a temporalidade a diferença é de nature- ligência a função estruturadora dos signos e é ela que delimita o cam-
za: a filosofia de Bergson começa por esta constatação, quando reco- po onde se articularão significante e significado. É no interior deste
nhece nos dados imediatos da consciência algo que a Psicologia ja- campo já simbólico que se vão constituir as relações simbólicas, por
mais poderia exprimir quantitativamente. Mas, podemos perguntar, assim dizer, de segunda ordem, ligando a realidade da inteligência
não é próprio da expressão simbólica que o significante remeta a algo aos signos da inteligência que a exprimem. Lessing procura diferen-
de natureza diversa dele mesmo? Poderíamos colocar a questão nes- ciar os signos da pintura dos signos da poesia argumentando que os
tes termos se, para Bergson, o caminho que vai do pensamento à primeiros se justapõem no espaço e os segundos se sucedem no tem-
linguagem não tivesse também uma direção contrária e tão determi- po: "Se é incontestável que os signos devem ter uma relação natural
nante quanto a primeira. Isto é, se o conceito não fosse tanto o re- e simples com o objeto significado, então os signos justapostos não
sultado quanto igualmente o ponto de partida - se os meios de podem exprimir senão objetos justapostos ou compostos de elemen-
expressão não determinassem por sua vez o pensamento. Mas, como tos justapostos, do mesmo modo que os signos sucessivos não po-
já vimos, o fascínio da articulação espacial faz com que as palavras dem traduzir senão objetos sucessivos'''. Mas o que nos autoriza a
determinem o pensamento, ao menos no plano da inteligência. Isto afirmar que as cores numa pintura se justapõem, ao passo que as
significa que não podemos identificar verdadeiramente o outro na palavras num poema se sucedem? Se pensarmos em termos de su-
relação símbolo/simbolizado. É como se o significado estivesse dado, gestão significativa, ambas as coisas podem ocorrer tanto num qua-
avant la lettre, nas condições de possibilidade de expressão dos sig- dro como numa composição poética. Aliás, seria próprio do caráter
nificantes. Se pudéssemos introduzir aqui a noção de motivação como arbitrário dos signos poder exprimir tanto uma coisa como outra. Em
tipo de relação entre significante e significado, diríamos que, no qual dos dois casos estariam exprimindo a realidade? Se a represen-
quadro de uma linguagem essencialmente intelectual, os signos e a tação visa ao conhecimento, a resposta a esta última pergunta seria
articulação entre eles são motivados pela natureza espacial que a importante posto que decidiria acerca da autenticidade da expres-
inteligência confere às palavras e ao discurso. Da mesma maneira, se são. No contexto bergsoniano, haveria que decidir se alguma dessas
nos referirmos à imitação para explicar a mesma relação, teremos de duas expressões simbólicas é fiel ao conteúdo que deve ser expresso
dizer que as palavras imitam não as coisas, ou cada coisa a que se no discurso filosófico. Ora, sendo as palavras produtos da inteligên-
referem, mas a descontinuidade e o ritmo dos elementos da percep- cia, padecem da confusão, própria a esta faculdade, entre justaposi-
ção. Se é bem verdade, como afirma Todorov referindo-se aDubos ção e sucessão, pois para a inteligência sucessão é justaposição no
e a outros autores do século XVIII, que já não podemos reconhecer tempo, considerado como meio vazio homogêneo. Assim, não é nem
na linguagem a motivação efetiva que estaria na origem das pala- nos elementos simbólicos, nem na sua articulação num discurso que
vras', poderíamos dizer que em Bergson tal motivação situa-se na

2. Todorov, T., ob. cit., p. 148.


L Todorov, T .. Teorias do Símbolo. Edições 70, Lisboa, 1979, p. 144. 3. Lessing, Laocoon. citado in Todorov, T., ob. cit., p. 148.

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INTRODUÇÃO A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

deveremos procurar a expressão da realidade, se a consideramos mensão interior da linguagem repercute de maneira drástica na cons-
como devir, se seu ser originário consiste no fluir. tituição da linguagem da filosofia, pois, para Bergson, a especulação
filosófica segue a direção oposta da intencionalidade pragmática da
A inteligência é um instrumento natural de interpretação do consciência. Se a relação entre significante e significado se estrutura
mundo. Isto significa que nosso contato com a realidade é natural- inteiramente no plano da exterioridade, como poderia a linguagem
mente mediado por esquemas intelectuais que constituem as chaves expressar a qualidade interna do real, objeto da filosofia? Dito de
de leitura da exterioridade. Com elas procuramos no mundo exterior maneira mais direta, que tipo de discurso pode propor à filosofia
as formas que correspondem às categorias próprias de nossa inteli- uma teoria do conhecimento que busca o encontro entre o pensa-
gência. Na medida em que isto requer nossa atenção voltada para a mento e o objeto na modalidade da intuição?
exterioridade, somos em conseqüência levados a adaptar a relação
que mantemos conosco mesmos, com nossa interioridade, à dinâmi- A questão da linguagem da filosofia pode ser colocada como a da
ca das solicitações externas. Nos códigos da tradição filosófica, o su- possibilidade de se encontrar o símbolo filosófico. A oposição entre
jeito não poderia representar a autêntica interioridade pelo simples inteligência e intuição traz evidentemente como conseqüência a re-
fato de que isto fugiria aos requisitos da relação com o mundo da cusa, por parte da filosofia, do símbolo conceitual. Mas este símbolo
consciência pragmática. A representação da interioridade é, então, representa apenas a vocação natural da linguagem levada a um limi-
habitualmente, apenas o lado subjetivo da construção intelectual do te extremo, o da linguagem teórica. Não há como retirar de qualquer
mundo prático ou a intencionalidade pragmática. A consciência in- discurso a característica simbólica intrínseca à linguagem, posto que
telectual nos põe na exterioridade porque esta é o meio em que o já é intrínseca ao próprio pensamento no plano da inteligência. O
conjunto de nossas ações constitui um Eu que encontra nelas o seu compromisso entre a discursividade e o símbolo, constituído no pla-
sentido. Assim, a subjetividade que se estrutura em termos de inte- no exterior da linguagem, impede que o discurso filosófico venha a
ligência é a representação externa da interioridade. O caráter natural possuir, em princípio, qualquer teor de expressividade, pois para isto
. da interpretação intelectual do mundo faz com que a totalidade do seria preciso que o exterior expressasse o interior, ou que a tradução
real, aí incluída a consciência, seja dada em termos de exterioridade. do tempo em espaço guardasse alguma autenticidade. De que ma-
Somos por natureza exteriores a nós mesmos para que não haja neira se pode, então, falar de uma relação entre intuição e discurso
heterogeneidade na nossa relação com o mundo. Ora, isto nos per- filosófico?
mite compreender que o sentido de nossa apreensão de toda e qual-
quer realidade, seja ele em termos de percepção, seja de linguagem,
tenha na exterioridade a sua chave principal. Por isso, como já assi- 3
nalamos aqui, a margem de reflexão que a inteligência se dá para
projetar-se no exterior serve apenas como impulso necessário para que O convencionalismo das palavras faz com que o teor simbólico
a subjetividade se situe fora de si. Eis por que não se pode dizer aqui, da linguagem seja governado em princípio pelas necessidades práti-
como em Leibniz, que existe uma reciprocidade expressiva entre in- cas. A linguagem deve descrever situações e prescrever ações. Se nos
terioridade e exterioridade. No plano da inteligência, esta oposição é remetemos à distinção de Todorov entre signos arbitrários e motiva-
ilusória e a harmonia não se constitui através da interexpressão dos dos, procurando pensá-la no contexto bergsoniano, poderemos che-
opostos, mas de uma homogeneidade fundamental entre o que nos gar à seguinte situação. Sendo as palavras convencionais, toda desig-
habituamos a denominar interioridade e exterioridade. Isto nos nação é arbitrária. Neste sentido, o simbolismo da linguagem se fun-
mostra que o sentido das palavras está primordialmente a serviço da da na arbitrariedade, já que não é possível descobrir para a maior
expressão da exterioridade e que nas palavras não se projeta o espí- parte das palavras nenhuma relação natural com aquilo que ela sim-
rito naquilo que intimamente o definiria. Assim, a carga significativa boliza. De outro lado, sendo a linguagem natural, este simbolismo é
das palavras está originariamente vinculada às virtudes práticas da governado pelas necessidades práticas e, neste plano, os signos são
linguagem. A impossibilidade de encontrar, em princípio, uma di- motivados por tais necessidades. São os caracteres descritivo e pres-

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A LINGUAGEM DA FILOSOFIA
INTRODUÇÃO

critivo da linguagem que motivam a cunhagem das significações, expressivo que une as coisas e as palavras a outro vinculo que ligaria
embora cada uma delas seja arbitrária quando focalizada sob o pris- as palavras à subjetividade: a expressão subjetiva da inteligência ain-
ma da relação palavra/ coisa ou palavra/ ação. O caráter de símbolo da não está totalmente liberada das necessidades práticas, pois con-
arbitrário das palavras exprime-se para Bergson principalmente atra- tinua prevalecendo o regime da necessidade quando a inteligência
vés de seu poder de generalidade significativa. Isto se explica pelo trabalha com seu próprio excedente de significação. Isto significa
objetivo que possui no filósofo a análise da linguagem: a crítica da apenas que, como é evidente, no domínio da inteligência não se
conceitualização. Interessa-nos sobretudo notar que o símbolo pode supera a instrumentalidade da linguagem.
ser visto ao mesmo tempo sob dois aspectos: arbitrário (convencio- Uma vez que a linguagem da filosofia implicaria tal superação,
nal) e natural (necessário). Pois se cada signo é arbitrário, é da natu- devemos buscar algumas indicações desta possibilidade em Berg-
reza da linguagem simbolizar. Ora, se o sentido de cada palavra é sono Se nos remetemos a alguns aspectos da semi ótica agostiniana,
arbitrariamente estabelecido, não existe o que se poderia chamar de tal como é exposta por Todorov"', vemos que a relação entre os signos
sentido próprio como o grau zero da significação. Qualquer palavra e as coisas pode ser pensada em dois contextos: o da significação ou
é metafórica e, portanto, qualquer palavra é um conceito em poten- designação e o da comunicação. "Numa palavra, tudo o que é perce-
cial. A linguagem se define como ato metafórico e é, de alguma bido, não pelo ouvido, mas pelo espírito, e que o espírito guarda em
maneira, a intenção deste ato que vai servir para distinguir as fun- si próprio, chama-se dizível, exprimível. Quando a palavra sai da boca,
ções da linguagem. não em relação a ela, mas porque significa qualquer coisa, chama-se
dictio, expressão.'" Há algo de comum ao processo de significação e
Como a linguagem se define pela instrumentalidade, o ato meta- de designação e ao de comunicação: é o sentido, que, por assim di-
fórico possui em princípio o telos da fixação de sentido. Dentro des- zer, opera de maneira diferente em cada um dos casos. No plano do
tes limites, a expressão é o que resulta da intersecção entre sociabi- dizível ou do exprimível, o sentido é concebido e vivido, e em segui-
lidade e comunicação. Nesta perspectiva, a função comunicativa, da enunciado e compreendido. No plano da expressão, o sentido
dividida em descrição e prescrição, é a única função da linguagem. pertence à palavra independentemente de sua enunciação. A relação
No plano reflexivo, ao constatarmos que a expressão comunicativa entre os dois contextos é, no entanto, mais complexa do que pode
de ordem utilitária não esgota as possibilidades do dizível, vemos parecer à primeira vista já que, para Santo Agostinho, a designação
então aparecer uma diferença entre o dizível e o exprimível que pode vir a tornar-se um instrumento de comunicação, o que se torna
permitirá pensar o símbolo num horizonte maior do que o da instru- visível quando inserimos a linguagem no contexto da sociabilidade.
mentalidade. É a função fabuladora da inteligência, mencionada no "Não podendo o homem construir uma sociedade sólida sem o re-
Deux Sources e que abordaremos na última parte deste trabalho, que curso à palavra, pela qual ele, de certo modo, transmite a sua alma
permitirá pensar este outro estatuto do símbolo. Nele, a motivação e os seus pensamentos aos outros, a razão compreendeu que era
expressiva já não será simplesmente a nomeação e a ordenação das necessário dar nomes às coisas, ou seja, certos sons dotados de sig-
coisas na esfera da intencionalidade pragmática, mas a subjetivida- nificação, para que, já que não se podia perceber sensivelmente o
de, parcialmente desligada do caráter mais imediato das necessida- espírito, os homens se servissem, para unir as suas almas, dos sen-
des práticas, atuará como fonte de estabelecimento de significações. tidos como intérpretes'." Cremos que se pode mostrar que a concep-
Esta reflexão de inteligência, que é ainda apenas uma suspeita de ção bergsoniana da relação entre linguagem e expressão pode ser
interioridade, sem a dimensão metafisica do acesso à Presença, pres- vista como derivada da limitação da teoria agostiniana implícita nes-
supõe no entanto uma mobilidade dos significados ou um excedente te texto. Com efeito, a construção da sociabilidade pressupõe, para
de significação, que já extravasam o âmbito da pura instrumentali-
dade. No entanto, trata-se apenas da dimensão subjetiva da objeti-
vidade de inteligência: não é ainda a dimensão em que a reflexão, ao 4. Todorov, T., ob. cit., pp. 33 55.
coincidir com a intuição, se dará como expressão da Totalidade ou 5. Todorov, T., ob. cit., p. 34.
da temporalidade subjetiv%bjetiva. Não se trata de opor o vinculo 6. Santo Agostinho, Sobre a Ordem, citado in Todorov, T., oh. cit .. p. 35.

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rp;
INTRODUc;AO A LINGUAGEM DA FIWSOFIA

Bergson, que os atos de significação ou designação se dêem total- gem, de a expressão vir a incorporar o exprimível. Neste sentido, o
mente subordinados ao contexto de comunicação, pois só assim a exprimível, os atos de designação e significação em si mesmos reve-
linguagem servirá como instrumento da práxis social. Para que uma lam tão-somente a possibilidade da metáfora como ato, e não ape-
tal subordinação ocorra, e para que se tome útil dar nomes às coisas, nas como consolidação pragmática de significação. Recuperar o ato
é preciso que a comunicação entre as "almas", de que fala Santo designativo para aquém de seu telos natural, isto é, antes que o mo-
Agostinho, se dê num regime de exterioridade, em que o sentido vimento de significação se consuma na fixação de sentido, é a única
esteja vinculado apenas à função comunicativa. A interpretação dos possibilidade de expressão metafórica da intuição. Mas na medida
pensamentos se guia, neste caso, pelo critério seguro da referência em que há expressão há significado: o método da filosofia (como
material como fundadora de sentido. Neste regime se estabelece a mostraremos na primeira parte) deve procurar um meio de evitar a
fixação de sentido e o ato metafórico de designação se cristaliza em cristalização metafórica (o conceito), pela conservação do movimen-
termos unívocos. No entanto, se assim se realiza a vocação própria da to de significação, substituindo, através da multiplicidade metafóri-
linguagem, a comunicação não esgota todas as possibilidades da desig- ca, o significado pela direção de significação. É neste sentido, mais
nação: prova-o a fabulação, que faz oscilar a fixação de sentido já no primitivo mas também, de certa forma, mais dramático, que a lin-
próprio âmbito da inteligência. Esta possibilidade "suplementar" de guagem da filosofia deve procurar recuperar a radicalidade intencio-
designação e de significação que a linguagem guarda na instância da nal do ato de designação: quando a intenção ainda não se compro-
subjetividade corresponde a certa defasagem entre o exprimível e a meteu com o telos a que está naturalmente dirigida. A grande dificul-
expressão, entre o dizível e o dito. Já vimos que, quando a inteligência dade, senão o impasse do método filosófico na instância do discurso,
reflete, a expressão efetiva mostra-se como um recorte do exprimível, consiste em ter de capturar a linguagem antes que ela se tome, ple-
o que deriva da arbitrariedade das palavras e da mobilidade primiti- namente, ela mesma.
va dos significados. Ora, assim como a intuição (conforme pretende- Ora, se a linguagem plenamente realizada no seu teor natural
mos mostrar) encontra a gênese de sua efetividade como meio de consiste na designação instrumental, a linguagem incompletamente
conhecimento no espaço aberto pela reflexão de inteligência, que no realizada consistirá na designação não instrumental. Dito de outra
entanto ainda é apenas uma interioridade externa, assim também a forma: se a linguagem realiza seu telos natural relativo à instrumen-
possibilidade da linguagem filosófica enquanto expressão da intui- talidade quando os atos de designação e de significação se dão no
ção aparece quando a mobilidade dos significados no nível dos atos
regime da exterioridade, a tentativa de superação da instrumentali-
de designação tomados em si mesmos pode ser vista a partir do as- dade só poderá consistir em impedir que tal instrumentalidade se
pecto criador, isto é, a partir da possibilidade de atos metafóricos consolide a partir da intencionalidade pragmática da inteligência,
totalmente independentes do critério instrumental da linguagem. A fazendo com que a linguagem se detenha no seu movimento: fazen-
constituição da linguagem da filosofia depende de a linguagem trair do com que a interioridade deixe de ser apenas o impulso inicial
sua vocação pragmática. A linguagem da filosofia só pode se consti- para que os atos de designação se realizem na exterioridade e tome-
tuir contra a linguagem tomada em seu sentido próprio. -se o campo em que os atos metafóricos exprimam-se como tais, o
É preciso, no entanto, prevenir um equívoco. O que comenta- que significa um início de expressão da interioridade. Esta deixa de
mos acerca da relação entre o exprimível e a expressão não deve ser ser um impulso a favor da exterioridade para tomar-se um impulso
entendido como diferença apenas de grau entre as duas instâncias. na direção de si, movimento antinatural de interiorização. Somente
Pois seria trair o bergsonismo acreditar que a expressão no seu nível desta forma a conjunção entre intuição e reflexão pode apontar para
pragmático é apenas um recorte quantitativo das possibilidades do alguma possibilidade de expressão. Por isto a arte, principalmente a
exprimível. A expressão não é apenas o empobrecimento do expri- IiterJ!.t~úsica, pode ser tomada como paradigma da filosofia:
mível: é sua realização possível. O fato de que a linguagem da filoso- nela o telas da expressão não é a fixação do sentido unívoco, mas sim
fia só possa ser pensada num registro em que a linguagem atuaria o movimento da subjetividade e da totalidade - da Realidade -
contra si mesma exprime a impossibilidade, constitutiva da lingua- surpreendido e capturado no registro de sua transição.

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INTRODUÇÃO
A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

o gênero conceitual é o que menos convém à linguagem da filo· qüência metodológica: a incompatibilidade entre discurso e tempo-
sofia porque nele a consolidação dos significados se dá à custa do ralidade, ou a impossibilidade de expressão da temporalidade.
esquecimento da origem da designação, o ato metafórico no seu Entendemos no entanto que, para Bergson, tal impossibilidade
movimento de nomeação. Ocorre então a oposição entre a expressão não faz calar a filosofia. À recusa do gênero conceitual corresponde
cristalizada e o conteúdo fluente. A inaptidão do conceito deriva de a tentativa de constituir a linguagem da filosofia sobre o fundamento
sua índole contrária ao objeto da filosofia. Daí a estreita vinculação da sugestão significativa, que metodologicamente se exprime na
entre o problema do método e o problema da linguagem. Na primei- multiplicidade confluente das metáforas. A linguagem pode sugerir
ra parte deste trabalho, tentaremos acompanhar o movimento de aquilo que não lhe cabe expressar. O fato de que a expressão refere-
recusa da precisão conceitual (exatidão) que em Bergson é uma etapa -se, no discurso filosófico, a algo que, por inteiro, ela não poderia
importante da reflexão metodológica. Num primeiro momento, a conter significativamente nos levou a procurar na idéia romântica de
crítica do conceito parece basear-se apenas na sua generalidade, o expressão do infinito no finito elementos que permitissem pensar,
que poderia nos levar a entender que Bergson recusa o conceito no registro bergsoniano, a relação altamente problemática entre o
porque este não alcança o individual na sua singularidade'. Mas esta inefável e a sua expressão. Desta maneira repropusemos a questão
característica na verdade apenas indica a imprecisão do conceito: se central de nosso trabalho, a relação entre intuição e discurso filosó-
por um lado é verdade que este não exprime o individual, por outro fico em Bergson. Mas é preciso atentar para o fato de que a presença
lado ele não exprime tampouco a totalidade entendida como movi- de elementos românticos no pensamento de Bergson, tema da ter-
mento. Isto se explica: a duração aparece como um movimento sin- ceira parte de nosso trabalho, apresenta-se como a configuração de
gular na medida em que não é um movimento que possa ser defini- uma questão e não como a proposta de uma solução para o proble-
do pela simultaneidade das suas "partes". A sucessão orgânica da ma da relação entre intuição e discurso filosófico. Acreditamos que
temporalidade torna este movimento, na sua generalidade, tão ine- alguns aspectos teóricos do Romantismo nos auxiliam a encontrar
fável quanto o individual. A singularidade aparece assim como uma termos em que o problema pode ser proposto de forma mais clara e
propriedade da totalidade, e tal propriedade só pode ser autentica- talvez com um alcance mais amplo; mas não cremos que isto permi-
mente compreendida quando tomamos o objeto da filosofia na uni- ta resolver a questão. Por guia, senão por consolo, ouçamos as pala-
dade radical da sua singularidade: a temporalidade. O interstício entre vras de Bergson: "Mas a verdade é que se trata, em filosofia e mesmo
o conceito e a coisa, que configura a "folga" do conhecimento e que alhures, de encontrar o problema e conseqüentemente de apresentá-
aparece como um dos principais obstáculos metodológicos, deve ser -lo, mais do que de resolvê-lo" (P.M.-51).
fundamentalmente compreendido como a recusa da coincidência,
da simpatia em sentido próprio, inerente ao conceito. A lógica do
conhecimento de inteligência, que na linguagem se expressa no gê-
nero conceitual, é conseqüência da "opção" ontológico-natural que
se deu na origem do processo evolutivo: a recusa da intuiçâo. A se-
gunda parte deste trabalho tentará indicar a via bergsoniana de reins-
tauração do objeto da filosofia, mas o faremos incompletamente, isto
é, atendo-nos apenas à etapa crítica da reinstauração deste objeto,
que se configura como a avaliação de algumas teorias tradicionais do
tempo. Esta via negativa escolhida para a abordagem da questão do
Tempo como objeto da filosofia deriva diretamente de uma conse-

7. Acerca deste problema cf. Pariente, J. c.. Le Langageet 1'Individuel, Armand Colin.
Paris, 1973, Capítulo I.

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- I I
INTmçAO E METOnO FILOSOFICO

1. FILOSOFIA E MÉTODO (I)

Talvez não haja maior lugar-comum do que dizer que o método


se constitui tendo em vista o conhecimento verdadeiro. Mas a gene-
ralidade de uma afirmação como esta encerra certos problemas que
podem ganhar alguma nitidez se procurarmos aprofundar o aparen-
te lugar-comum. A preocupação bergsoniana com o método filosó-
fico passa certamente pelo questionamento das relações entre as
condições metódicas do conhecimento e as respostas filosóficas aos
problemas que historicamente se propõem aos vários autores. Este
questionamento não se refere apenas ao percurso da reflexão neces-
sário para solucionar o problema. mas envolve também um exame
das condições em que um problema é apresentado. Talvez mais im-
portante que a elaboração da solução seja a elaboração da própria
pergunta. Veremos que grande parte da reflexão bergsoniana no que
ela tem de positivo. de tético. está intimamente vinculada ã rejeição
de certas formas de posição de problemas e mesmo à rejeição pura
e simples de problemas considerados importantes na tradição filosó-
fica. Já aqui portanto se insinua uma característica na concepção
bergsoniana de método: método é algo que se vincula primordial-
mente à elaboração de questões. Diríamos que o peso da originalida-
de desta perspectiva é muito pequeno; que a atitude socrática de
interrogação. que a dialética platônica. que a depuração psicológica
e intelectual de um Descartes ou que a visão das relações entre sen-
sibilidade e intelecto em Kant são indubitavelmente procedimentos
metódicos de formulação de questões. na medida em que cada uma
dessas perspectivas institui a interrogação e lhe desenha o contexto.
Poderíamos até dizer que a própria rejeição de problemas aparece
como eixo da reflexão ou como resultado principal no caso de Kant.
na medida em que a delimitação do conhecimento teórico exclui a
problemática metafísica do universo da objetividade. Mas precisa-

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I - INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 1. FILOSOFIA E MfTODO (I)

mente as razões da exclusão, no caso de Kant, mostram que ela se por Bergson, logo de início, o critério cõmodo da experiência como
assenta na separação de dois termos, cada um dos quais aceitos na fator de distinção. A experiência, a mostração, é critério de conheci-
sua sedimentação tradicional- e o que será verdadeiramente rejei- mento válido, não de demarcação entre ciência e metafísica, pois as
tado será a continuidade característica do conhecimento dos vários duas devem apelar para a experiência e se constituir através dela'.
graus de ser no saber clássico. É contra esta maneira de entender Na verdade, veremos que a própria noção de experiência será repen-
ciência e filosofia - separação que retira seu próprio sentido da união sada e alargada para que possa cumprir esta função. Por outro lado,
que ela questiona - que se constrói o método bergsoniano. A rejei- em que pese a dissolução da separação tradicional. outra separação
ção de problemas - que é parte integrante do método - não se será instituída e é esta que vai definir as características metódicas
fundamenta numa separação de .. esferas" de conhecimento. Os pro- das duas partes do saber. Será através dela que a intuição será erigida
blemas dissolvidos na perspectiva metódica bergsoniana não o são como método de conhecimento na metafísica. A própria separação
por fazerem parte de uma região do saber interditada ao conheci- constitui portanto uma questão a ser resolvida e talvez guarde uma
mento teórico. Não existem problemas que se situariam além de anterioridade lógica em relação às questões particulares no interior
determinada fronteira do saber e que seriam em bloco definidos como dos dois tipos de conhecimento. É difícil solucionar esta questão de
inacessíveis à teoria. Os problemas são dissolvidos cada um na posi- maneira separada do problema da precedência da metafísica, do
ção de sua singularidade exatamente porque não subsistem como problema tradicional da hierarquia dos graus de conhecimento. São
insolúveis enquanto plano racional vedado à abordagem teórica. freqüentes e incisivas as afirmações de Bergson acerca do equívoco
Neste sentido negativo não existiria em Bergson separação entre o que existe em atribuir precedência ao saber metafísico no sentido de
objetivo e o não objetivo que respeitasse a configuração dada dos que este iria "mais além" do que a ciência no conhecimento da mesma
problemas no campo teórico e no campo metafisico, tal como se dá realidade. Ele insiste em que cada uma - ciência e metafísica _
em Kant. O que existe, e o que constitui característica essencial do atinge igual certeza e objetividade em seus respectivos domínios. O
método, é a consideração de cada questão na sua singularidade sem problema da instituição da separação entre metafísica e ciência é
que ela seja situada e pensada num contexto - instituído a priori - paralelo à diferenciação ontológica dos dois domínios'. Ainda assim,
de certa classe de conhecimentos possíveis'. respeitada (tanto quanto possa ser - veremos que isto constitui
problema) a especificidade de cada um dos campos do saber, a dife-
Ora, sendo assim, é impossível não deixar de notar que - pelo renciação ontológica imporá que se pense ao menos o problema da
menos em princípio - se dissolve também a distinção entre meta- precedência lógica - ou de direito - da metafísica. Na verdade o
física e ciência. Se os dois diferentes contextos herdados da tradição caráter incisivo das afirmações concernentes à igualdade de direitos,
não são mais respeitados, talvez se perca também com isto a pos- à certeza e à objetividade visa, polemicamente, de um lado à concep-
sibilidade de alojar as questões segundo critérios - de continuidade ção clássica da hierarquização que repousa na continuidade e que dá
ou de separação - que assegurem a pertença das questões ao cam- à metafísica um estatuto teórico mais elevado em grau do que a ciên-
po científico ou ao campo metafísico. Inclusive por nos ser negado cia - e que aparece na questão do fundamento; e de outro lado à
concepção kantiana da separação que confere apenas ao conheci-
1. É neste sentido que o esforço reflexivo bergsoniano não é solidário de uma con-
trapartida em que a positividade estaria ausente. Não existe o plano dos problemas
insolúveis que a razão se obstina em propor, como em Kant. O exorcismo dos proble- 2. "A verdade é que uma existência só pode ser dada numa experiência. Esta expe-
mas se configura verdadeiramente como dissolução. Não há problema formulado riência se chamará visão ou contato, percepção exterior em geral, se se trata de um
positivamente que não possa ser resolvido por uma adequada abordagem metodoló- objeto material; ela tomará o nome de intuição quando se tratar do espírito" (P.M.-
gica. Os problemas dos quais a positividade estaria ausente são os que se referem ao 126).
não ser- a uma concepção negativa do significado do vir-a-ser. "Este esforço exor· 3. "Para resumir, queremos uma diferença de método, não admitimos uma diferen-
cizará alguns fantasmas de problemas que obcecam o metafísico, isto é, cada um de ça de valor entre metafísica e ciência" (P.M.-122).
nós. Falo desses problemas angustiantes e insolúveis que não dizem respeito ao que "Quer dizer que ciência e metafísica se diferenciarão pelo objeto e pelo método, mas
é, que se referem mais ao que não é" (P.M.-134). se comunicarão na experiência" (P.M.-123).

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mento científico o estatuto de teoria. Visando estas concepções, ter a prerrogativa tradicional da generalidade da forma de conheci-
Bergson propõe-se criticar na verdade a unidade do método que é mento é por sua vez solidária da visão aguda do problema da ade-
correlata da unidade do saber. Da mesma forma que para os clássi- quação. A concepção da verdade como adequação entre sujeito e
cos existe um único método modelado sobre um único paradigma (a objeto é fundada, segundo Heidegger, na identificação platônica entre
matemática), para Kant a exclusão da metafísica do campo teórico é a verdade e a idéia e se explicita tanto mais fortemente na História
decorrente da delimitação do alcance do método transcendental. A da Filosofia quanto mais se concebe a busca e o encontro da verdade
metafísica não pode possuir um método porque a inversão coperni- como processo do intelecto, que a partir de Aristóteles se toma o lugar
cana fundamenta apenas o método que tenha como correlato o uni- dos inteligíveis e, portanto, a região da verdade. Isto atinge o ponto
verso fenomênico e o conhecimento relativo. De modo que a ausên- culminante na concepção cartesiana da instituição da adequação a
cia de método científico na metafísica é o preço da posição do abso- partir da elucidação subjetiva das essências no plano das idéias en-
luto como objeto e correlativamente o triunfo do método no conhe- quanto conteúdos do Ego cogito. Na medida em que esta adequação
cimento teórico é solidário da relatividade do conhecimento. De qual- submete-se, na filosofia moderna, ao menos, a um método de desco-
quer maneira, o pressuposto é que um único método é possível, já berta da verdade que se funda na reflexão entendida como elucidação
que não pode haver dois tipos diversos de conhecimento objetivo, o das essências a partir de condições subjetivas (o fundamento é o Ego
que equivaleria à presença de duas verdades no conhecimento. A Cogito), tais condições de apreensão de conteúdos verdadeiros são
separação bergsoniana dos domínios de conhecimento com igual inseparáveis das condições gerais de representação, através das quais
direito à certeza rompe, pois, com o paradigma clássico e com o as coisas adquirem estatuto de objeto e se dispõem para o conheci-
idealismo critico, na medida em que este restringe o alcance do pa- mento. Somente assim a diversidade do real, submetida à identidade
radigma em vez de substituí-lo, através da delimitação do campo da res extensa, pode vir a submeter-se à identidade fundante da res
teórico 4 • cogitans. Daí a unidade de método e a unidade do saber. A adequa-
ção é efetuada através da abstração, que em Descartes consiste na
Entretanto, podemos falar também de delimitação em Bergson, geometrização do mundo exterior. Para Bergson esta operação é re-
na medida em que a precisão metódica é efetivamente alcançada dutora: identifica o diverso em benefício da universalidade e unifor-
pelo dimensionamento rigoroso das condições de conhecimento do midade do conceito como símbolo. O resultado é o conhecimento
objeto a conhecer (P.M.-IOI). Esta delimitação, porém, não é efeti- simbólico. Daí a necessidade de reformular a adequação na direção
vada a priori em relação à forma do conhecimento, não tem o cará- inversa da universalidade e da uniformidade simbólicas para a ob-
ter de elucidação de possibilidades 16gicas de objetividade, mas é a tenção do conhecimento reaf'.
tentativa - aparentemente paradoxal - de singularizar o conceito,
através do trabalho de aderência, de fazer aderir o modo de conhecer Na concepção bergsoniana do método supõe-se, pois, que a ver-
àquilo que é conhecido. Esta singularização do conceito, que deve dade do conhecimento depende da adequação entendida como cer-
servir para o conhecimento em geral, torna-se no limite a indistinção ta homologia entre condições do conhecimento e objeto a conhecer.
entre sujeito e objeto, na medida em que a intuição no seu pleno Isto faz com que o correlato ontológico do método passe a ser con-
sentido é pura coincidência com o que é intuído". A recusa de man- siderado de maneira diferente da filosofia tradicional. Adequação não
significará mais certa correlação entre a forma do conhecimento (seja

4. "A metafísica não é superior à ciência positiva; ela não vem, depois da ciência,
considerar o mesmo objeto e obter um conhecimento mais alto. Supor entre elas esta s. A adequação foi tradicionalmente pensada, no caso da metafísica, como o acordo
relação. como faz a maior parte dos filósofos, é ser infiel a uma e a outra: à ciência entre intelecto e conceito; excluída por prinCÍpio a experiência da gênese do conceito,
condenando-a à relatividade; à metafísica, tornando-a um conhecimento hipotético e este se tomará necessariamente vazio, pois o vazio é a única ligação que se estabelece
vago, já que a ciência terá necessariamente conhecido o objeto, antecipadamente, de diretamente entre a idéia e o geral. Daí Bergson qualificar a metafísica tradicional de
maneira precisa e certa" (P.M.-123). "extrato fixo, seco, vazio, um sistema de idéias gerais e abstratas", transfiguração
4a. Pariente, J. c., Le Langage et l'Individue!, A. ColiD, Paris, 1973. indevida das camadas superficiais de uma experiência mal compreendida (P.M.-IOS).

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I - INTUIÇÃO E MÉTODO FIlOSÓFICO 1. FILOSOFIA E MÉTODO (I)

ela real como em Platão e Aristóteles ou lógica como em Kant) e a medida em que Bergson nele vê a prerrogativa da forma e a separa-
estrutura do objeto, não importa se dependente ou não do sujeito. A ção entre forma e conteúdo.
adequação inscreve-se na perspectiva da precisão, tal como já vi- Mas é também pela via do primado do objeto que se pode con-
mos, e se configura pela aderência do conceito ao objeto, na pers- siderar a constituição da perspectiva metódica bergsoniana. Corro-
pectiva da singularidade do conceito. É desnecessário refutar qual- boram isto em primeiro lugar a gênese explícita dos temas no desen-
quer acusação de nominalismo que pudesse eventualmente ser feita volvimento da obra e, em segundo lugar, afirmações do próprio Berg-
a partir do 10 parágrafo da 1a Introdução, porque aí Bergson afirma sono Quanto ao nascimento dos temas, é interessante observar que
que a explicação científica preenche os requisitos de aderência no no lo livro, Essai sur les Données Immédiates de la conscience, a inte-
que se refere precisamente à explicação de um fato ou de um con- rioridade não é explicitamente tematizada como instância noética,
junto de fatos. A explicação científica, pelo menos enquanto ela não mas como fluxo objetivo e desenrolar temporal que o método da
se transfigura em doutrina (e aí ela deixa de ser científica e passa a Psicologia não consegue apreender. A elucidação incide sobre a tem-
ser a metafísica implícita do cientista), não padece dos vicios da poralidade como essência do psíquico, mas nada é dito sobre o co-
generalidade'. São as teorias filosófícas, as quais, embora concernen- nhecimento da interioridade através dela mesma. Em Matiere et
tes aos fatos, não se constituem de forma aderente aos fatos, que Mémoire, a critica do paralelismo psicofísico e do associacionismo
possuem este vicio na medida em que a amplitude e a extrapolação leva à redescoberta da autonomia do espírito, mas a intuição não é
são tidas como características da explicação filosófica. Nesse senti- explicitamente tematizada como faculdade ou possibilidade. Estes
do, a ciência pode ser um modelo para a filosofia na exata medida dois livros representam a descoberta da duração como estofo da
em que a própria filosofia (com seus vicios tradicionais) já não tiver realidade espiritual e material, ou seja, à descoberta de um objeto
sido por sua vez tomada como modelo. A adequação não pode ser que até então esteve em contradição com os métodos aplicados para
pensada a partir da perspectiva da generalidade formal ou de síntese conhecê-lo. Serão as análises do instinto e da inteligência que abri-
esquemática, pois nestes casos o conhecimento fícaria dependente rão O campo de possibilidade para um tipo de conhecimento distinto
de pressupostos que condicionam inelutavelmente a simbolização. do intelectual, e essas análises são realizadas na Evolução Criadora.
A Introdução à MetaFzsica desenvolverá explicitamente o tema da
O método deve constituir, pois, maneiras de apreensão do real intuição e questionará o método vinculado à intuição e ao conheci-
por via da adequação entre o conhecimento e o seu objeto sem pas- mento metafísico. Quanto às afirmações de Bergson, só temos de
sar pela generalização e pela universalização formais. Historicamen- nos referir ao texto tão freqüentemente citado da carta a Hoffding',
te, se procuramos em que apoiar ou de onde derivar esta atitude no qual Bergson esclarece a precedência do tema da duração sobre
filosófica, a tarefa pode ser desconcertante. Pois se aparentemente o da intuição e no qual é posta como "deformante" uma interpreta-
esta perspectiva signifíca maior peso para o lado noemático do co- ção de sua filosofia que não leve em conta esta precedência. A dura-
nhecimento, primado do correlato ontológico e ausência de consci- ção é considerada" o centro da doutrina", não só no sentido de ori-
ência constituinte, o modelo do realismo aristotélico no entanto não gem do movimento da reflexão, mas também como lugar de conflu-
satisfaz, uma vez que aí também o conhecimento se constitui a partir ência das diversas trajetórias que este movimento realiza: "O ponto
da categorização, existências formais que consubstanciam a realida- de onde parti e para onde constantemente voltei". Ora, a duração é
de empírica, e a partir de dualismos arquetípicos que tipificam o primeiramente o objeto: é o campo noemático que vai provocar a
percurso da realidade (potência/ato - matéria/forma). De modo que inflexão metódica da reflexão cujo resultado será a instauração da
o conteúdo crítico a partir do qual se vai constituir a perspectiva
metódica bergsoniana não põe em xeque apenas a filosofia moder-
na, dita da representação, mas também o pensamento antigo, na 7. Carta a H. Hõffding - Apêndice do livro de Hõffding sobre Bergson. "No meu
entender, qualquer resumo dos meus pontos de vista os deformará no seu conjunto
e os exporá, por isto mesmo, a muitas objeções, se não se coloca primeiramente e não
volta sempre àquilo que considero como o centro de minha doutrina: a intuição da
duração."

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6. P.M.-IO!.

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I - INTUIÇÃO E MFrODO FILOSÓFICO 1. FILOSOFIA E MÉTODO (I)

intuição como método filosófico. Justifica-se portanto a explicitação necessidade das condições de representação que esquematizam e sim-
relativamente tardia da intuição e a problematização do método vin- bolizam o real desde a estrutura dos sentidos até a "estrutura do
culada a ela. São os impasses decorrentes da inadequação, verdade entendimento". A inteligência tem como função paralisar o devir, e
última da adequação tal como foi tradicionalmente concebida. Como a estrutura da linguagem é, neste sentido, o seu ptoduto mais acaba-
se configura em linhas gerais este impasse? O início da 1a Introdução do (simbolização). A simbolização da ciência, necessária e até válida,
P.M. nos revela alguma coisa neste sentido. tem atrás de si a simbolização da metafísica, que não deveria e não
1) Imprecisão das teorias filosóficas, quando contrapostas à ex- poderia ser simbólica. Mas isto se explica na medida em que o inte-
plicação científica. Vastidão e generalidade que captam um vazio, lecto é o órgão da explicação científica e da especulação metafísica.
não um objeto, na medida em que visam ao objeto em geral, a partir Encontramos aqui o fundamento naturalista da obsessão da unida-
de condições de representação e de conceptualização marcadas por de de método e da unidade do saber (P.M.-103).
pressupostos formais'. O impasse assim definido nos seus elementos desenha o hori-
2) Inadequação entre filosofia da evolução e paradigma matemá- zonte da problemática do método. Percebe-se que a "descoberta" da
tico (o caso Spencer). Tal inadequação deriva precisamente de que a duração se constitui como motor da reflexão que se ordenará em
adequação entre conhecimento e objeto em Spencer continua pas- reflexão sobre o método de conhecimento filosófico. Mas as conse-
sando pelo paradigma matemático. A abstração aparece como con- qüências vão bem mais longe. "Ele (o entendimento) desvia o olhar
seqüência necessária: "Ele ainda procurava um ponto de apoio em da transição" (P.M.-103): a conjugação da "estrutura do entendimen-
generalidades vagas" (P.M.-I01). to" com a origem histórica da especulação metafísica propõe ao filó-
3) Causa da inadequação: uma filosofia da evolução tem de pen- sofo o problema das relações entre a destinação da inteligência e a
sar o tempo. " ... o tempo real, que desempenha papel de destaque liberdade da reflexão. A crítica da percepção e da linguagem, que
em toda filosofia da evolução, escapa às matemáticas" (id.). Conse- deveria realizar ou ser a condição de realização da reflexão livre do
qüentemente esta filosofia da evolução, tributária do paradigma espírito, acaba tornando-se a vítima da sua presa: pois esta crítica
matemático, não atinge o substrato do seu objeto. Não se trata ape- chega a resultados tais que acaba por hipostasiar numa imobilidade
nas de considerar o tempo como uma das "idéias últimas da mecâ- perfeita e absoluta a imobilidade relativa ou o início de imobilidade da
nica", o que Spencer poderia ter feito. Ainda assim o tempo real percepção e da linguagem. A crítica da plurivocidade, da contradição
permaneceria fora do horizonte especulativo, pois é exatamente o aparente da chamada desordem do devir no nível da percepção não
tempo enquanto idéia última da mecânica que não se compõe com leva ao questionamento da simbolização do devir, mas a um apro-
uma filosofia do devir. fundamento consciente desta simbolização'. O método nasce sob a
égide da prerrogativa do universal. O método irá se constituir na
4) O "erro" de Spencer não é acidental, é constitutivo do movi- direção do senso comum, não contra ele. "... se ciência e senso co-
mento da especulação que se guia pelo paradigma da verdade mate- mum estão de acordo, ... se a inteligência espontânea ou refletida
mática, ou seja, constitutivo da metafisica que consubstancia na Idéia descarta o tempo real ... " (P.M.-I03). O método irá sistematizar este
o devir real. O erro de Spencer ilustra apenas um movimento que desvio do olhar em relação à transição. Ela não será objeto de teoria
tem sua origem na instauração platônica da metafísica. ou, quando muito, fornecerá os materiais que, somente depois de
5) A instauração platônica da metafísica e principalmente o de- transfigurados em algo que já não é a transição, constituirão objeto
senvolvimento aristotélico da Filosofia das Formas respondem a uma de teoria. O pensamento só se relacionará com o movente no nível
da aparência. No nível da verdade ou da essência ele se relacionará
8. "Os sistemas filosóficos não se ajustam à realidade em qúe vivemos. São demasia-
damente vastos (... ) um verdadeiro sistema é um conjunto de concepções tão abstra-
tas e, conseqüentemente, tão vastas, que nele caberiam todos os possíveis e mesmo 9. "Tratam a sucessão como uma coexistência falhada e a duração como uma priva-
o impossível, ao lado do real" (P.M.-lOl). ção de eternidade- (P.M.-IOS).

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r I- INTUIÇAO E MtrOOO FILOSÓFICO 2. FILOSOFIA E MÉTODO (lI)

com Formas. Por trás do questionamento filosófico permanece o ftm- desta conjuntura teórica que a filosofia de Bergson pode se dar ao
do inquestionado: a unicidade e a imobilidade do Ser. Então - e direito de considerar problemas filosóficos como falsos problemas e
aqui chegamos às conseqüências que vão mais além do que uma de recusar a insolubilidade e o caráter antinómico pela via da recusa
simples modificação de postura metodológica - a reinstauração de colocar os problemas (P.M.-I041l05).
bergsoniana da questão do método inclui o questionamento dos
próprios atributos tradicionais do ser e do sentido fundamental a O ponto de partida do método aparece como sendo então a cons-
que nos remetemos quando dizemos que uma coisa "é". "A metafí- tatação do fundamento - a um tempo irreal e necessário - da con-
sica nasceu no dia em que Zenão de Eléia assinalou as contradições cepção negativa do tempo e da salvação dos fenõmenos pela subtra-
inerentes ao movimento e à mudança (... ) Ultrapassar, contornar, ção dos mesmos à temporalidade. Mas o ponto de partida do méto-
por um trabalho intelectual mais e mais sutil, essas dificuldades le- do é também a constatação de que o correlato ontológico, por ser
vantadas pela representação intelectual do movimento e da mudan- objetivo, não é estranho ao sujeito. Está no sujeito, ou antes, o sujei-
ça, tal foi o principal esforço dos filósofos antigos e modernos" (P.M.- to está nele. O resultado da crítica das teorias psicológicas não é
104). Tal foi também o grande pressuposto da constituição do méto- principalmente mostrar a inadequação das teorias e dos métodos, é
do filosófico. Dada a incompatibilidade entre Ser e Temporalidade, descobrir a duração, e descobri-Ia primeiramente na interioridade,
tal perspectiva metódica só podia resultar na representação do tem- na esfera do psíquico. Tal descoberta oferece a possibilidade de
po como obstáculo ao pleno conhecimento. "Nenhum (filósofo) mostrar o objeto real de um método possível e constitui a primeira
buscou, com referência ao tempo, atributos positivos" (P.M.-105). O exigência da reinstauração do método filosófico, reinstauração a ser
tempo introduz falha na plenitude do ser. Ora, o trabalho da reflexão feita em razão da elucidação, em nós e fora de nós, do significado
bergsoniana pode ser definido como um caminho na direção da iden- verdadeiro do ser: durar, passar, devir (P.M.-102).
tificação entre o ser e o tempo. Nada é, mas tudo devém ou se faz. É
neste sentido, talvez bem mais radical do que se poderia supor a
princípio, que se deve entender a ênfase no objeto ou a prerrogativa 2. FILOSOFIA E MÉTODO (lI)
ontológica inclusa na reinstauração do método filosófico.
A prerrogativa do objeto que vimos ser característica da perspec-
Mas se o(s) método(s) filosófico(s) tradicional(is) é elaborado em tiva metódica aparentemente choca-se com as afirmações de Berg-
razão de um inquestionado que são os atributos do ser, é o próprio son segundo as quais o objeto da metafisica é o espírito, ou princi-
conjunto da problemática filosófica que se vê assim comprometido palmente o espírito e com a descoberta da duração na interiorida-
com este sentido fundamental da especulação. Os problemas antes de". No entanto, e levando em conta o que já dissemos acerca do
de serem resolvidos são formulados a partir de um método e de um caráter objetivo da apreensão da temporalidade da consciência, o
horizonte de especulação que já supõem este sentido. Por isto - e fato de a interioridade se dispor primeiramente para a abordagem da
aqui reencontramos a questão inicial - a reinstauração do método, duração tem um significado metodológico. A interioridade em prin-
com tudo O que já vimos que ela implica, traz consigo também a cípio se põe como uma direção entre outras, e o trabalho da reflexão
necessidade de reposicionar os problemas, de reformulá-Ios e mes- em Evolução Criadora mostra que a duração pode ser metodicamen-
mo de rejeitar aqueles que só têm significado no interior daquela te reencontrada fora do sujeito. O estudo da duração no nível da
direção especulativa que se trata de criticar e superar lO• É a partir interioridade aparece então primeiramente como uma "escolha" do

10. Os atributos tradicionais do ser podem ser vistos como um invólucro inerte de
uma realidade viva. Neste sentido, pensar o ser "Seria o mesmo que dissertar sobre o mas' insolúveis não ficarão na película? Eles não diziam respeito nem ao movimento,
invólucro donde sairá a borboleta e pretender que a borboleta. voando, transforman- nem à mudança, nem ao tempo, mas somente ao invólucro conceitual com o qual
do-se. vivendo, tenha a sua razão de ser e sua perfeição na imutabilidade daquela falsamente os confundíamos ou os tomávamos por equivalente" (P.M.-lOS).
película. Afastemos, ao contrário. o invólucro. Ubertemos a crisálida. Restituamos ao 11. "Assinalamos, pois, à metafísica um objeto limitado, principalmente o espírito,
movimento sua mobilidade, à mudança sua fluidez. Quem sabe se 'os grandes proble- e um método especial, antes de tudo, a intuição" (P.M.-1l7),
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r I- INTUIÇÃO E MtrODO FILOSÓFICO 2. Fn.osoFIA E MÉTODO (11)
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filósofol2. o método será primeiramente aplicado ao problema da a partir deste paradigma, possa apreender teoricamente aquilo que o
liberdade e os resultados mostrarão que o próprio problema só existe romancista apreende na intersecção do imaginário com o reaJl'.
em função de uma concepção espacializante do "fluxo da vida inte- Seja como for, e em que pese a diferença fundamental em rela-
rior". Trata-se de um exemplo de dissolução de problema de que ção a Descartes, a que aludimos há pouco, a instauração do método,
falávamos mais atrás. É no plano da interioridade que se desenhará, na medida em que se dá também contra a tese geral kantiana da
primeiramente, a possibilidade da experiência do imediato. Mas se- relatividade e do caráter mediato do conhecimento, traz em si, como
rão apenas razões puramente fortuitas de escolha que determinaram componente importante, algo que se encontra inserido nos preceitos
que a interioridade fosse o plano em que o método de início se apli- cartesianos: a depuração do espírito em relação aos hábitos e aos
caria? Na verdade existe uma outra razão de cunho mais teórico e preconceitos. São estes os responsáveis pela formação dos falsos pro-
que se liga à face polêmica da construção do método. Diante da blemas no decorrer da história do pensamento, bem como pelo en-
aceitação praticamente universal, na época, da tese kantiana da re- caminhamento tortuoso das soluções dos verdadeiros. Neste sentido
latividade do conhecimento, Bergson crê encontrar pelo menos um o fato de que o ensaio metódico tenha sido primeiramente efetuado
ponto em que a apreensão do objeto escapa à relatividade: "Resulta- sobre a interioridade porque o problema a ser examinado era a ques-
va de nossa análise (... ) que ao menos uma parte da realidade, nossa tão da liberdade revela entre outras coisas que a descoberta da du-
pessoa, pode ser atingida em sua pureza natural" (P.M.-Ill). Seria ração psicológica condiciona a reposição da questão do método na
dificil entender tal resultado como completamente inesperado: na filosofia, uma vez que é esta descoberta que mostrará o caráter arti-
verdade, entre os sistemas materiais e o universo mental, uma dis- ficial do "problema da liberdade". Tal problema é exemplo típico da
tinção, estabelecida pelo próprio "senso comum" (E.S. 83-84), já faz solidariedade que existe entre os hábitos mentais e os pré-juízos his-
entrever, ao menos como questão, a diferença que será metodica- tóricos e o método filosófico tradicional. O problema só existe por-
mente tematizada e que resultará na constatação de que a relação que determinados pressupostos estabelecem, de maneira prévia à
que se pode notar entre as duas instãncias é bem diferente de um consideração dos fatos, a forma como o objeto psicológico se apre-
paralelismo estrito. Diríamos que não é ingênua e fortuita, a partir sentará no contexto metodológico de abordagem. No caso, conside-
daí, a escolha da duração interna para campo do primeiro ensaio rar os fatos significa considerar a experiência interna de maneira
metodológico. É desnecessário que se diga que isto não significa o independente dos pressupostos formais. "Esta observação interna é
primado do sujeito à maneira cartesiana: quando muito se pode di- falseada pelos hábitos que adquirimos" (P.M.-Ill). Impõe-se pois,
zer, repetimos, que se trata de um ponto de partida metodológico como tarefa metódica, o despojamento dos hábitos e preconceitos.
sem a implicação metafisica que o ponto de partida do sujeito possui Isto não significa, como em Descartes, a recusa pura e simples da
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em Descartes. Conquanto não seja absolutamente fortuita, a escolha ciência. Significa antes uma compreensão aprofundada do modo de
corresponde plenamente à acepção de direção metódica. De resto, proceder da ciência e da vinculação deste procedimento à estrutura
esta direção já se encontrava prefigurada no trabalho do romancista da inteligência, causa dos "erros" constitutivos de que falamos ante-
;:~l
que "sob a pressão da necessidade" se vê como que obrigado a res- ;
tituir à vida interior a fluidez que a ciência se recusa a ver. A direção 13. P.M.-IU: "O romancista e o moralista não tinham avançado, nessa direção, mais
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~~,
em que vai O romancista aponta para o concreto e o individual: trata- longe que o filósofo? Talvez; mas apenas parcialmente, sob a pressão da necessidade,
-se de, sem perder de vista esta concretude e a nitidez das diferenças é que haviam transposto o obstáculo; nenhum deles se tinha proposto a ir metodica- '11
i::
singulares, tentar estabelecer "condições gerais" para que a filosofia, mente 'em busca do tempo perdido"'. 'I
Seria o caso de se perguntar se não é possível pensar em Bergson a substituição do
paradigma matematizante da fllosofia tradicional pelo paradigma da arte, o que é
I:
:1;1
coisa totalmente diversa da acusação, já feita, de esteticização da filosofia. Ainda isto
12. P.M.-llO: "Tal foi a direção que assumimos. Muitas outras se abriram diante de suporia que o método se constrói sobre algum paradigma, o que é questionável. De
nós, a partir do centro em que nos havíamos instalado para nos apossar da duração qualquer modo, o trabalho que o artista realiza relativamente à flexibilização inven-
pura. Entretanto preferimos aquela, porque havíamos escolhido primeiramente, para tiva da linguagem é algo a ser considerado na questão da expressão metafórica da
experimentar nosso método, o problema da liberdade". intuição.

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I- INTUIÇÃO E MÊTODO FILOSÓFICO
2. FIWSOFIA E MfTODQ (lD

riormente. O método supõe, pois, uma recuperação crítica da "figu- lativas que no seu conjunto configuram os preconceitos de que é
ra" e da "estrutura" do "invólucro" - palavras e conceitos -, que preciso despojar-se. A "descoberta" da duração interna põe-se assim
envolvem a realidade estudada", e que representam as "causas da como origem do questionamento histórico que vai redundar no es-
relatividade do nosso conhecimento". É o caso de se aplicar aqui a tabelecimento da ligação íntima, da continuidade existente entre as
frase de Berkeley que Bergson cita quando ilustra com este autor a formas históricas da especulação, as figuras de teoria e a estrutural
aplicação do método de recuperação da intuição filosófica: "Levan- destinação da inteligência humana.
tamos a poeira e lamentamo-nos depois de não mais enxergar" (P.M.-
62). O primeiro resultado do abandono dos preconceitos OCOrre quan- Por isto é que a crítica temática e a crítica histórica estão em
do somos levados a entender que o "fluxo de vida interior" como fato continuidade na raiz do método bergsoniano. Esta continuidade
é bem diferente do esquema que dele nos apresentam as teorias psi- baseia-se na analogia efetivamente estabelecida, ainda que não ex-
cológicas calcadas numa metafisica - explícita ou implícita - que plicitamente tematizada, entre senso comum, ciência e metafísica.
pressupõe a identificação do fluxo da vida da consciência à descon- Seguindo na mesma direção que a percepção, o conhecimento espe-
tinuidade de objetos no espaço. "Nossa pessoa nos aparece tal qual culativo se torna dependente da mesma estrutura no nível do pensa-
é 'em si' desde que abandonemos os hábitos contraídos para nossa mento. Por isso as teorias metafísicas têm como meta a perfectibili-
melhor comodidade" (P.M.-IH). Este primeiro resultado reveste-se dade do equívoco suposto na analogia que mencionamos. Nem sem-
de uma importância epistemológica que o torna quase paradigmático: pre, entretanto, manifesta-se o acordo entre o senso comum e a ciên-
"Mas não seria assim em relação a outras realidades, talvez mesmo cia. Por vezes a visão espontânea daquilo que é indicado pela reali-
em relação a todas?" (P.M.-HI). Esta probabilidade fundamenta-se dade aparente é contrariada pela interpretação científica dos fatos, e
na identificação dos hábitos como adquiridos, levando a ver que a isto devido à crença no valor maior de uma visão metódica que iria
relatividade e a mediatidade características do conhecimento não aos fundamentos da aparência. O preconceito de uma perspectiva
são essenciais, mas acidentais: não é o objeto que se impõe a nós generalizante que subordina os fatos em vez de ser por eles engen-
apenas numa fenomenalidade que esconde seu caráter "em si"; é a drada é por vezes a melhor definição das relações que realmente se
estrutura do conhecimento, enquanto dependente de hábitos adqui- estabelecem entre filosofia e ciência. O grande exemplo está na
ridos (embora fundamentados numa estrutura anterior da inteligên- maneira como se estabelecem as relações entre filosofia e ciência na
cia), que determina tal relatividade. Na medida em que conhecer formulação e resolução do problema clássico da relação entre a alma
significa organizar dados dispersos segundo uma "estrutura do en- e o corpo. O senso comum crê poder afirmar que o EU ultrapassa os
tendimento", tal prerrogativa da subjetividade vai resultar, para Berg- limites do corpo no espaço pela percepção e no tempo pela memória
son, numa deformação da realidade ls . Neste sentido o retorno às pró- e que isto indicaria uma diferença entre as duas instâncias e certa
prias coisas confunde-se com o abandono da atitude kantiana - autonomia da consciência. Contra esta aparência, determinadas teo-
algo mais do que a "superação" da filosofia de Kant. Na verdade o rias psicológicas afirmam o paralelismo estrito entre o cerebral e o
kantismo - como "filosofia geral" - gera atitudes teóricas e especu- mental, vendo na pretensa autonomia da consciência apenas uma
"fosforescência" que acompanharia o desenrolar dos estados cere-
brais. Para isto baseia-se na solidariedade observável entre o físico e
14. P.M.-lll: "É este o invólucro que é preciso recuperar para rasgá-lo. Mas só o o psíquico, na dependência observável do mental em relação ao ce- ,
recuperaremos considerando primeiramente sua figura e sua estrutura e, também, rebral, valendo-se dos fatos constatados na psicopatologia e, por outro
compreendendo sua destinação". Não é o caso, como em Descartes, de reinaugurar o lado, na lei de conservação de energia que interdita qualquer acrés-
saber: o que está constituído como ciência precisa, isto sim, ser compreendido a partir
de seus fundamentos históricos e naturais.
cimo de conteúdo real na passagem da causa ao efeito l '. O que Berg-
15. P.M.-1l2: "( ... ) tais hábitos, transportados para o domínio da especulação, nos son vai procurar diferenciar é o paralelismo afirmado como tese e o
mostram uma realidade deformada ou reformada, em todo caso 'organizada', mas
I
este arranjo não se impõe inelutavelmente a nós; ele vem de nós; se o fizemos, pode-
mos desfazê-lo; e entramos então em contato direto com a realidade". 16. A Alma e o Corpo, Abril, pp. 84.85.

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r I- INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO

paralelismo como resultado da observação dos fatos. No que respeita


2. FILOSOFIA E MÉTODO (11)

da que. neste plano. não haja como estabelecer esta duração da ma-
ao segundo ponto. é inquestionável a existência de uma solidarieda- neira como a ciência estabelece um fato. pois o sujeito. colado à sua
de entre o físico e o psíquico: "Nossa consciência se esvai se respira- própria fluidez. não tem como assumir a distância necessária para
mos clorofórmio; exalta-se se bebemos álcool ou café. Uma ligeira visar-se como objeto e ao mesmo tempo como fluxo absolutamente
intoxicação pode ocasionar perturbações profundas na inteligência. interno.
na sensibilidade e na vontade. Uma intoxicação durável. como as
deixadas pelas doenças infecciosas. produzirá a alienação" (A Alma 2) "( ... ) depois. retornando à superfície. seguir o movimento gra-
e o Corpo. Abril 84). Existe portanto uma relação; mas o paralelismo dual pelo qual a consciência se distende. se estende. prepara-se para
estrito não é a única maneira de concebê-la. Podemos também en- evoluir no espaço." Neste trajeto de retorno. o desaparecimento da
tender que a solidariedade observada não é suficiente para sustentar coincidência inicial corresponderia a uma fixação progressiva do
a tese do paralelismo: "Uma vestimenta é solidária do botão que a sustentáculo material da atividade consciente. através do qual pode-
prende; ela cai se arrancamos os botões; oscila se o botão se move; ríamos estabelecer mais nitidamente os contornos e os limites - o
rasga-se no caso de o botão ser demasiadamente pontudo; disto não alcance - da relação de solidariedade entre a consciência e a maté-
se segue que cada detalhe do botão corresponda a um detalhe da ria. Seria o processo de "materialização progressiva" da consciência
roupa. nem que o botão seja o equivalente da roupa" (A Alma e o visto de alguma forma a partir de sua gênese. A partir disto se teria
Corpo. Abril 86). Por que a observação da solidariedade transformou- uma "intuição vaga do que pode ser a inserção do espírito na maté-
-se em doutrina do paralelismo? A resposta nos indica um caso típi- ria". o que significa que. sob certo aspecto. compatibilizar a expe-
co da relação viciosa entre ciência e metafísica. riência interna com a observação externa é perder algo da exatidão
O que ocorre é simplesmente a ausência de uma teoria filosófica factual no sentido em que a ciência deve postulá-la. Isto é natural
da relação entre matéria e espírito que leve em conta os dados obser- que aconteça. uma vez que a experiência da interioridade busca a
vados pela ciência. Uma vez constatado que os fatos metodicamente coincidência com o "fluxo interior". que é totalmente diferente da
observados pela ciência levam a supor uma relação caberia. segundo articulação descontínua de elementos.
Bergson. à filosofia formular a teoria desta relação. Incorporando a 3) Mas por isto mesmo é necessário que a consideração rigorosa
experiência científica. deveria o filósofo cotejá-la com a experiência dos fatos. "corrigindo e completando o que a experiência interna
interna metodicamente desenvolvida e deste encontro surgiria um poderia ter de defeituoso ou de insuficiente". retifique o método de
"foco de luz" que conduziria o filósofo na interpretação dos fatos. de observação interior. Tal retificação é a contrapartida da correção
modo a que a teoria fosse formulada a partir de uma avaliação em interpretativa que a experiência interna proporciona em relação aos
que os dados de observação externa e a experiência interna seriam dados da observação exterior. Desse modo se atinge o equilíbrio entre
adequadamente balanceados (A Alma e o Corpo. Abril 87). O que a concretude factual e a experiência que a consciência pode ter de si
significa este dimensionamento equilibrado da observação externa e mesma. A concretude factual. por meio dessa retificação. assegura
da experiência interna? Exatamente o equilíbrio que o método filosó- que a generalidade e a perfectibilidade da teoria metafísica não se
fico deve procurar para proporcionar uma experiência integral da alienem necessariamente. como acontece na metafísica tradicional.
realidade: o equilíbrio entre "dois centros de observação" que pode- dos contornos efetivos da realidade. Por isto. assinala Bergson. uma
ríamos explicitar nas seguintes etapas metódicas: tal teoria metafísica teria o caráter aproximativo. que a filosofia tra-
1) "Exercitando-se na observação interior. o filósofo deveria des- dicionalmente recusou por acreditar que o definitivo e o absoluto
cer até o fundo de si mesmo" (... ). A observação interna. livre dos deveriam ser suas marcas.
preconceitos do relativismo. pode alcançar o EU na sua pureza na- O equilíbrio assim conseguido. se ele se efetua pelo dimensiona-
tural. na medida em que o sujeito coincide consigo mesmo. Neste mento recíproco entre os dois "centros de observação". não deixa
sentido a volta para si mesmo tem condições de reencontrar a cons- por isto de possuir um fundamento. algo do qual o conhecimento.
ciência no seu ritmo próprio. reencontrar a duração psicológica ain- fruto deste equilíbrio. tira sua feição própria. "( ... ) do interior teria
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r I- INTUIÇÃO E MtrOOO FILOSÓFICO

vindo o primeiro impulso, à visão interior teríamos pedido o princi-


2. FILOSOFIA E MtTODO (11)

a consciência era um reflexo dos movimentos materiais: a prerroga-


pal esclarecimento; (... )": a experiência interna não deixa de se colo- tiva do pensamento, constitutiva desses sistemas, levava-os a afir-
car como instância fundadora do novo conhecimento. Mas esta fun- mar que os movimentos mecânicos é que traduzem o pensamento.
damentação não significa que os fatos serão acomodados a uma Mas de qualquer modo o paralelismo estava estabelecido na sua for-
estrutura geral pré-formada no plano do pensamento puro. O que a ma, e o progresso científico aliado à ideologia mecanicista de um
experiência interna funda e dirige é a elaboração da visão equilibra- Helvetius ou de um Lamettrie 18 fizeram com que o século XIX, ado-
da que integrará o interior e o exterior. Há uma razão para que a tando a forma do paralelismo, resolvesse o problema alterando -
instância da interioridade gere o impulso de acontecimento: o pro- pela via da critica materialista da filosofia clássica operada no século
blema da relação entre alma e corpo é um problema filosófico. O XVIII - a ordem dos elementos da relação, de que resultou a con-
método de abordá-lo deve ser filosófico, mas a reinstauração bergso- cepção da consciência como reflexo dos movimentos materiais. O
niana do método supõe essencialmente que a filosofia integre na metafísico no qual o cientista se duplica quando erige a observação
reflexão os resultados da ciência. Esta será uma característica distin- de fatos singulares em doutrina geral encontra, pois, no metafísico
tiva da concepção bergsoniana da intuição como método da filosofia. materialista o seu semelhante, e este encontro concede às conclu-
É ela que permitirá que a teoria filosófica seja "flexível, perfectível, sões da observação externa a força probatória de uma teoria geral,
calcada no conjunto de fatos conhecidos" (A Alma e o Corpo, Abril 87). perfeita e acabada como são as da metafísica tradicional.
Pelo próprio fato de ser a questão um problema filosófico, a ciên- As considerações sobre o problema das relações entre a alma e o
cia "tinha o direito de esperar da filosofia" (ibid. 87) uma teoria. Mas corpo mostram-nos uma característica importante do método, ao
a Metafisica, incapaz de considerar metodicamente os fatos na sua mesmo tempo em que indicam uma concepção da metafisica bas-
realidade efetiva, dispondo apenas de esquemas gerais formulados a tante distinta da tradicional. As duas coisas são absolutamente soli-
priori, não estava evidentemente em condições de fornecer tal teo- dárias, na medida em que seria um contra-senso propor para a
ria. Como a ciência e o cientista não podem passar sem filosofia, a metafísica, concebida como ciência totalmente elaborada acima do
consideração metódica dos fatos que mostram a solidariedade entre plano factual, a incorporação crítica dos resultados que a ciência
a alma e o corpo transformou-se na doutrina do paralelismo. A ob- obtém no trabalho de observação dos fatos. As características da
servação exterior, não sendo retificada pela experiência interna, ofe- concepção bergsoniana de metafisica serão abordadas mais adiante.
receu à ciência a totalidade do material teórico. A direção para a qual Baste-nos por enquanto assinalar algo que será desenvolvido poste-
esta totalidade apontava era a mesma da metafísica cartesiana. Essa riormente: a solidariedade entre o metafisico materialista do século
coincidência tem, ela mesma, de resto, fundamentos metafísicos: o XVIII e o cientista positivo do século XIX é indicativa de uma conjun-
mecanicismo em Descartes não é apenas o método de conhecimen- ção, historicamente detectável, entre método filosófico e método
to da física, é também uma doutrina, segundo a qual tudo o que científico, ambos tributários das exigências formalizantes da inteli-
pode ser conhecido se submete ao paradigma matemático". O para- gência. Não deixa de ser interessante assinalar que é esta conjunção,
lelismo, como teoria metafísica, já estaria em Descartes, embora como esta quase coincidência de perspectivas gerais, o que verdadeiramente
problema irresolvido. Em Spinoza e em Leibniz ele aparece clara- impede uma relação positiva e construtiva entre filosofia e ciência. É
mente fundado em razões: identidade da substância ou harmonia por se adequar tão bem a ser o pano de fundo do paralelismo cien-
preestabelecida. É bem verdade que os clássicos não afirmavam que
18. A Alma e o Corpo, Abril 88-89: "De fato, através de todo o século XVIII podemos
seguir os traços desta simplificação progressiva da metafísica cartesiana. Na medida
17. A Alma eo Corpo. Abril 88: "As descobertas que se seguiram ao Renascimento- em que ela se estreita, mais se infiltra numa fisiologia que, naturalmente, encontra
principalmente as de Kepler e Galileu - haviam revelado a possibilidade de reduzir nela uma filosofia muito apropriada para lhe dar a confiança em si própria de que ela
os problemas astronômicos e físicos a problemas de mecânica. Daí derivou a idéia necessita. E é assim que filósofos como Lamettrie, Helvetius, Charles Bonnet, Cabanis,
geral de se representar a totalidade do universo material, inorganizado e organizado. cujas ligações com o cartesianismo são bem conhecidas, trouxeram para a ciência do

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como uma imensa máquina, submetida às leis matemáticas". século XIX o que ela poderia melhor utilizar da metafísica do século X\l11".

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I - INTUIÇAQ E MÉTODO FILOSÓFICO 2. FILOSOFIA E MÉTODO (11)

" tífico que o paralelismo como concepção metafísica não pode fun-
dar-se nos fatos. É por seguir os mesmos pressupostos metodológicos
realidades". Esta atitude deriva de um preconceito profundamente
arraigado no método filosófico tal como tem sido praticado: ques-
que ciência e filosofia se separam e que a filosofia se fecha no domí- tões singulares devem sempre ser vistas como derivadas, tanto no
nio das idéias abstratas. E é por ter por paradigma geral a atividade sentido de que devem ser tratadas depois, como no sentido de que a
altamente simbolizante desta metafísica abstrata que a ciência se vê solução delas dependeria da solução de questões mais gerais. A con-
impedida de fornecer à filosofia os fatos que esta poderia incorporar seqüência disto é que, no limite, haverá dedução geométrica, mas as
na sua reflexão. É ainda este talvez um reflexo tardio do preconceito questões serão tomadas não na sua efetividade, mas como elemen-
da unidade do saber: pelo fato de estabelecerem a continuidade pe- tos abstratos num contexto ordenado dedutivamente. A isto a filoso-
las extremidades, pelos resultados, é que filosofia e ciência se vêem fia muitas vezes chama "rigor". A preocupação com questões prévias
tão distanciadas no plano do desenvolvimento efetivo do trabalho de é uma inquietação lógica; a real inquietação filosófica manifesta-se
reflexão e de observação. Numa palavra, é porque não consideram o no ato de lançar-se diretamente aos problemas para, no decorrer de
verdadeiro elemento que é comum a ambas: a experiência, diferen- sua formulação e possível solução, experimentar em ato a força e o
temente metodizada em cada uma delas. Somente com o estabeleci- alcance do conhecimento. Mas, embora não haja "princípio" do qual
mento nítido da diferença metodológica é que ciência e filosofia po- se possa deduzir a solução de um problema filosófico, também não
derão compartilhar o campo da experiência integral da realidade 19. há nenhum fato particular cuja compreensão isolada traga em si esta
Resta-nos, do ponto de vista da elucidação das relações entre solução. Sendo assim, um balanço da experiência poderá nos mos-
filosofia e método no que concerne à pertinência dos fatos e dos trar direções metódicas que encaminhem o questionamento 2l • Qual
resultados científicos para o método filosófico, considerar uma no- delas escolher? Nenhuma delas permitirá a dedução da solução do
ção que nos permitirá compreender um pouco melhor como Berg- problema proposto; em cada uma há grupos de fatos particulares
son pensa a efetividade da presença do real enquanto metodicamen- cuja consideração aponta um determinado caminho para a reflexão.
te considerado pela filosofia: trata-se da noção de linhas de fatos. Conseqüentemente teremos de utilizar todas elas. Estamos, pois, em
Esta noção é importante dentro do método porque será através dela presença de variadas linhas de fatos, que constituem precisamente
que o filósofo oferecerá uma alternativa para o vicio fundamental os conteúdos concretos a serem direcionados pela reflexão para uma
da metafísica e a principal causa de sua imprecisão: a construção visão crescente da solução, não mais antecipada em possibilidades
sistemática. Seja entendendo esta construção como a elucidação formais ou em problemas prévios, mas encontrada na conjugação
transcendental das possibilidades de conhecimento com vistas à dos fatos e da reflexão. Com isto talvez se compreenda melhor o que
edificação de um sistema formal, seja entendendo-a como o ques- foi dito anteriormente acerca da retificação mútua que operam entre
tionamento prévio de problemas que, pela sua generalidade, ante- si os "dois centros de observação" externo e interno. A teoria filosó-
cedem as questões concretas, o filósofo procurará sempre primeira-
mente o nível das generalidades e possibilidades, para em seguida
passar, por descenso gradual ou mesmo dedutivamente, para as
20. "Freqüentemente, quando chega diante do problema da origem, da natureza e
do destino do homem, ele passa ao largo para se dirigir a questões que julga mais
importantes e das quais dependeria a solução daquelas: ele especula sobre a existên- "I
19. A crítica da unidade metodológica que tem como correlato ontológico a unidade cia em geral, sobre o possível e o real, sobre o tempo e o espaço, sobre a materialidade
do real é a base em que se assenta algo que em Bergson podemos denominar crítica e a espiritualidade; depois ele descende, de grau em grau, para a consciência e a vida
da noção de totalidade. Todas as manifestações a respeito do caráter simbólico da na essência das quais desejaria penetrar" (A Consciência e a Vida, Abril 70).
linguagem conceitual que escamoteia as diferenças podem convergir para esta crítica. 21. "Apenas, nas diversas regiões da experiência, creio perceber diferentes grupos de
A totalidade seria a suprema simbolização da realidade no sentido do desaparecimen~ fatos dos quais cada um, sem fornecer-nos o conhecimento desejado, mostra-nos
to de todas as diferenças qualitativas, tidas como latentes, provisórias, implícitas etc. uma direção para encontrá-lo (. .. ). Cada uma, tomada separadamente, nos conduzirá
Do ponto de vista do saber, a construção sistemática em filosofia é a adoção da pers- a uma conclusão simplesmente provável; mas todas juntas pela sua convergência nos
pectiva simbólica da totalidade. Idéia de totalidade e sistema filosófico estão em es-
treita consonância, como aparecerá plenamente nO idealismo alemão.
colocarão em presença de uma tal acumulação de pOSSibilidades que nos sentiremos,
espero, no caminho da certeza" (lbid. 70).
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r' I - INTUIÇÃO E MtrODO FILOSÓFICO 3. CRITICA DO MtrODO FlLOSOFICO (I)

fica será o resultado deste trabalho, e a sua feição final não estará o modelo da percepção, ou seja, supõe-se que uma extensão indefi-
prefigurada em nenhuma reflexão prévia. nida da percepção nos daria uma apreensão direta do ser em si e
Por outro lado, a investigação metodicamente conduzida desta veríamos a verdade com os olhos do espírito, tal como vemos os
maneira não permitirá que fatos venham a ser indiferentemente alo- objetos materiais diante de nós. Portanto a diferença entre percep-
jados retrospectivamente nos vazios de uma concepção demasiada- ção e pensamento provém da impossibilidade de realizar o ideal do
mente geral. A teoria filosófica não é aquela que tem a possibilidade conhecimento direto, perceptivo. Esta impossibilidade, que se veri-
de conter fatos ou de explicar fatos por esquema a priori; ela é mol- fica concretamente na insuficiência da percepção tal como é consta-
dada pelos fatos interpretados à luz da reflexão efetuada com a expe- tada pelo pensamento, gera a necessidade de retificar e complemen-
riência interna. O método filosófico não comporta a definição preli- tar a percepção através do raciocínio, da generalização, da abstração,
minar de seu objeto, pois o objeto visado na filosofia bergsoniana, a enfim leva-nos à necessidade de conceber aquilo que nossos sentidos
duração, não pode ser contido nos limites do esquema conceitual. A não nos podem dar satisfatoriamente. A atitude filosófica nasce da
teoria não realiza o objeto no plano do saber: ela tenta apreendê-lo constatação da insuficiência das faculdades de percepção (P.M.-145).
sem pressupor uma identificação entre ser e saber no plano do inte- A generalização e a concepção, que ela inclui, nascem da necessida-
ligível". Por isto a construção do método filosófico em Bergson con- de de fundamentar a percepção - e da constatação de que isto não
tém, por um lado, a crítica dos métodos filosóficos concebidos a partir pode ser feito no nível da própria percepção. Daí, no caso dos filó-
da identificação do objeto (a verdade) com os instrumentos intelec- sofos pré-socráticos a quem denominamos fisicos, a transformação
tuais de conhecimento, ou seja, a concepção da verdade na linha de de um dos elementos do mundo percebido em princípio das coisas
continuidade em relação à estrutura e à destinação do entendimen- percebidas. Parmênides, no entanto, veio a infletir decisivamente a
to. Os resultados históricos do método assim concebido vão sempre direção do pensamento quando mostrou que a própria idéia de trans-
na direção de uma hipertrofia do conceito. formação implicava uma concepção contraditória do ser. A partir daí
não se põde mais encontrar na esfera da percepção o fundamento
regulador da existência das coisas. Este fundamento passou a ser
3. CRÍTICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (I) procurado no domínio das condições absolutas de existência que se
tornaram então condições supra-sensíveis ou lógicas de compreensão
Já vimos mais atrás que crítica temática e crítica histórica não da ordem cósmica. A partir daí a concepção da ordem e da verdade
podem ser separadas em Bergson. É aqui o momento de explicitar e como condição da existência real criou a hierarquização que subor-
comprovar esta afirmação através de um exame da visão bergsonia- dina, no plano do conhecimento, a realidade à verdade'. Daí apare-
na do fundamento da atividade metafísica tradicional, em que se ceu como necessária a explicação das coisas através das idéias.
poderá, esperamos, verificar o encontro dos dois trajetos críticos.
Precisemos aliás que este fundamento, tal como vamos encontrá-lo Por aí se poderia ver que à medida que a filosofía adquire pro-
aqui, não tem propriamente o caráter positivo de fundação da verda- gressivamente consciência do método ou da necessidade de um mé-
de; é antes o motor da atitude filosófica naquilo em que ela procura todo para conhecer o fundamento das existências, ela vai também
retificar e completar o conhecimento do senso comum e da ciência. progressivamente constituindo um campo transcendente ou formal
O conhecimento, no que ele tem de mais elevado, é concebido sob como esfera própria do conhecimento filosófico. Como aquilo que
faz com que as coisas sejam é o efetivamente real, a realidade em si
passa a habitar a esfera do supra-sensível, restando para o plano do
22. Por isto Thibaudet acha "natural" que urna filosofia da duração não comporte
definições prévias. "Uma realidade que dura não pode estar realizada antes de ter
empírico "as sombras projetadas no tempo e no espaço pelas Idéias
durado, nem mesmo depois disso; ela realiza-se durando. Uma filosofia da duração imutáveis e eternas" (P.M.-146).
não poderia pois fornecer uma idéia, uma imagem. um sentimento da duração a não
ser por aproximações (, .. ) e sobretudo por um apelo à consciência, por uma convo-
cação para tomar contato com a duração interna (, .. )" rrhibaudet, Le Bergsonisme, 23. "Pode-se então conceber uma ordem, uma harmonia e mais generalizadarnente
edição N. R. F., 1923. p. 19). uma verdade que se toma assim uma realidade" (P.M.-145).

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I - INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 3. CRITICA DO MéTODO FILOSóFICO (I) ~
É assim que o método de conhecimento em Platão não procura- o objeto". Este segundo plano onde se busca o conhecimento não se
rá os meios de encontrar o princípio do mundo percebido no âmbito encontrará, ainda, de resto, fora do âmbito da sensação, uma vez
da própria realidade percebida, mas procederá a uma crítica da per- que consistirá na interpretação dela. O pensamento aí já está presen-
cepção". Dada a insuficiência e a contradição dos dados sensoriais te, e não apenas a consciência da sensação. A presença do pensa-
apreendidos efetivamente, não é possível identificar conhecimento e mento significa, por outro lado, mais do que pensar naquilo que
percepção. Assim Sócrates critica, no Teeteto, a primeira definição de percebo: significa relacionar percepções e portanto utilizar, já aqui,
ciência proposta pelo interlocutor. Esta critica repousa em primeiro algo não percebido para interpretar a percepção. A própria relação
lugar na identificação protagórica entre percepção privada e verda- da percepção com a existência da coisa já se enquadra numa ativida-
de, o que destrói a distinção entre conhecimento e ilusão; e em se- de deste tipo, pois é estabelecendo um complexo relacional baseado
gundo lugar na apreciação da tese heraclitiana: a fluidez do sensível na interpretação dos dados sensoriais que nos colocamos diante do
não permitiria o estabelecimento de padrões de percepção, conse- mundo exterior como diante de algo a que poderíamos chamar uma
qüentemente não possibilitaria o discernimento de coisas, o que, de estrutura, algo que configura propriamente a nossa experiência sen-
passagem, impede que associemos o conhecimento, mesmo no nível sível. A experiência sensível é a percepção de dados mais a avaliação
da crença, com a percepção, pois não haveria sequer percepção no de seu significado ou formulação de juízo. É o nível que Platão deno-
sentido de identificação de objeto sensível. No entanto, a percepção, mina doxa.
tal como Teeteto parece entendê-la a princípio, significaria certa per- A percepção pode justificar a doxa, mas será em outro plano que
manência de padrões estáveis no nível dos dados sensoriais. Se en- deveremos buscar a infalibilidade do conhecimento. Do ponto de
tendermos a doutrina heraclitiana como o enunciado de que as qua- vista bergsoniano, a constituição da esfera do conhecimento como
lidades sensíveis resultam da instabilidade, mas não são elas mesmas separada da percepção é talvez o dado mais importante. Pois isto
instáveis completamente, então permanece a possibilidade da crença significa que a filosofia não demarca apenas os limites da crença
no valor da percepção, crença baseada na configuração de padrões contraposta ao conhecimento verdadeiro, mas delimita também o
perceptivos dentro da instabilidade fundamental das coisas. Ora, este campo de investigação e o lugar onde se há de procurar a verdade".
heraclitismo menos radical praticamente se confunde com a crença A maneira como a percepção é considerada faz com que se busque
do senso comum na permanência, ao menos relativa, dos objetos e nela algo contrário à sua própria natureza, ou seja, a natureza da
de suas qualidades". Esta estabilidade relativa, no entanto, em nada verdade do objeto é passível de uma expectativa tal que o objeto
vai alterar a afirmação socrática de que a sensação não é conhecimen- verdadeiro já se prefigura como fora do domínio da percepção, ex-
to precisamente porque a refutação da sensação como conhecimento terna ou interna. É por isso que no Timeu (51-2) Platão assinala que
independe do maior ou menor grau de estabilidade. Sensação e co-
nhecimento são termos que se excluem por princípio: é a sensação
enquanto tal que não é aceita como conhecimento, o qual terá de ser
procurado em outro plano e definido como outra maneira de buscar 26. "Sua razão para recusar (a sensação) é essencialmente esta: o que os sentidos nos
fornecem, estritamente, não é mais do que sensação e não conhecemos coisa alguma
acerca do mundo apenas pela sensação, mas sim através da interpretação do seu
significado" (Crombie, ob. cit., p. 21).
24. "A pedra que a um homem parece quente, a outro parece fria. Assim s6 podemos 27. Nesse sentido, o argumento que Crombie relata como sendo a objeção que por
afirmar que ambos os juizos de percepção são verdadeiros se decidirmos que o que vezes se faz a Platão (e que de resto, Crombie considera insuficiente) aproxima·se
cada homem percebe é, para ele, privado; a pedra quente é percepção privada para o bastante da visão bergsoniana: "Platão assumiu que crer e conhecer seriam exercícios
primeiro homem, assim como a pedra fria para o outro (. .. ). Mas não podemos ter um de duas faculdades distintas, cada urna das quais com o seu objeto próprio. Conse·
número indefinido de pedras fisicas privadas no mesmo lugar e ao mesmo tempo. qüentemente, procurou uma faculdade infalível e os objetos em relação aos quais ela
Conseqüentemente a única maneira de tomar isto plausível é livrar·se da pedra física" plausivelmente se exerceria. U ma vez que nossas crenças acerca de coisas ordinárias
(I. M. Crombie, Análisis de las Doctrinas de PIatan, vol. 11- Teoría dei Conocimiento podem sempre estar equivocadas, terão de ser inventados objetos especiais que pos-
y de la Naturaleza - ed. Alianza, 1979, pp. 13-14). suam particular afinidade com a mente, como objetos do conhecimento" (Crombie,
25. Acerca disto cf. Crombie, ob. cit., pp. 18·19. ob. cit., p. 41).

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I - INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 3. CRITICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (I)
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o conhecimento plenamente racional tem por objeto universais que de que a noesis proporcionaria a visão intelectual direta. A imagem
existem por si e cuja compreensão independe da percepção sensorial, matemática difere da imagem simplesmente sensível por se dar no
da persuasão e da emoção. Isso precisamente porque o objeto do espaço abstrato ou no tempo abstrato; por isso as entidades matemá-
conhecimento pleno (epistéme) não está sujeito ao devir, e é captado ticas ocupam o lugar intermediário entre o conhecimento sensível e
pelo entendimento em termos de intuição intelectual (noesis). O que a noesis. Talvez seja possível dizer que a afirmação bergsoniana de
nos leva a concluir que não pode haver conhecimento, na plena que a especulação filosófica preenche a insuficiência da percepção
acepção do termo, em relação a coisas fisicas, mas somente uma que de fato é falha, mas que poderia ter uma extensão indefinida,
familiaridade com imagens (eikôn) que, em casos favoráveis, pode tem algo a ver com a equação que Platão estabelece no diagrama da
provocar uma crença confiável, uma vez que a imagem se baseia no linha: a doxa é o juízo baseado na percepção do devir; a noesis é a
objeto verdadeiro, sem que entretanto venhamos a possuí-lo intelec- visão da idéia. A noesis está para a doxa assim como a idéia está para
tualmente quando destacamos alguns dos aspectos fugidios da ima- o devir. Em princípio, portanto, e transfigurando a significação do
gem que fazemos dele. O diagrama da linha (Rep. 509 d ss) por sua termo, noesis não poderia ser a percepção pelo espírito da idéia? O
vez tende a mostrar que a analogia pela qual somos levados a enten- laborioso percurso dialético não tem por finalidade preencher a au-
der a relação entre dianoia e noesis baseia-se na relação - que Crom- sência de uma relação que deveria ser naturalmente direta, mas que
bie acredita acessível ao senso comum - entre eikasia e aesthesis somente logra sê-lo depois de depurar a percepção e a linguagem?
(imagens e coisas). Evidentemente a analogia só pode dizer respeito Ou seja, de suscitar outra percepção, a visão pura do ser?29 Já que a
à ordem de grandeza do conhecimento tomada abstratamente, pois insuficiência de nossa percepção não permite estendê-la no mesmo
não há nenhuma proporção real entre os termos: a relação que a sentido da visão, a concepção da idéia como fonte de inteligibilidade
aesthesis mantém com os objetos visíveis não é a mesma que o en- e consubstanciação do real fará com que o termo, ainda que ideal do
tendimento mantém com o inteligível (noesis-eidos), mas indica que conhecimento, seja a concepção da percepção direta do ser pelo es-
a relação de apreensão do real é o fundamento da analogia. Assim pírito. Com isso o conhecimento se desliga da imanência factual na
como a sombra é projetada pelo objeto, também o conhecimento qual o devir é identificado com a contradição, não preenchendo
hipotético no plano da dianoia é o reflexo matemático da intuição do portanto o requisito básico para ser objeto de conhecimento. Com
não-hipotético (anhipotetos). O inteligível matemático é objeto do isso se institui a distância entre epistéme e mundo físico, pela relação
conhecimento discursivo na modalidade em que este ignora o fun- necessária que se estabelece entre o devir e os limites da doxa. Por
damento último do seu objeto". A dianoia é o conhecimento que outro lado - e isto tem notáveis implicações metódicas, ao menos
toma por objeto, no plano inteligível, imagens inteligíveis de objetos do ponto de vista da crítica bergsoniana - o caráter intermediário
da matemática faz com que aquilo que está mais próximo da realida-
de em si sejam noções e não coisas. A matemática tem o caráter
28. "Sabes, imagino, que os que se aplicam à geometria, à aritmética Ou às ciências propedêutico que Platão lhe empresta precisamente porque a inteli-
deste gênero supõem o par e o ímpar, as figuras, três espécies de ângulos e outras
coisas da mesma família para cada pesquisa diferente; que tendo admitido estas coi~ gibilidade de que goza a coloca mais perto dos atributos positivos do
sas como se as conhecessem não se dignam dar as razões delas a si próprios ou a ser, unidade e imutabilidade. Isto faz com que a ciência no seu plano
outrem, julgando que são claras a todos; C,.)." (Rep. 510c. - tfad. de J. Guinsburg. dianoético já se mova nas coordenadas destes atributos e é este o
Difel, 1965, p. 100). fundamento longínquo a que retornarão os clássicos quando adota-
"Eu dizia, em conseqüência, que os objetos deste gênero são do domínio do inteli-
gível, mas que, para chegar a conhecê-los, a alma é forçada a recorrer a hipóteses; que rem o paradigma matemático de conhecimento. Isto fará com que
não procede então rumo a um princípio, porquanto não pode remontar além de suas todos os conceitos, inclusive os que servem eventualmente para o
hipóteses (... )." (Rep. 5lla. - trad. de J. Guinsburg, Difel, 1965, pp. 102·103).
"Compreende agora que entendo por segunda divisão do mundo inteligível a que a
II
própria razão atinge pelo poder da dialética, formulando hipóteses que ela não con- 29. "(. .. ) o que a essência é em relação à geração (devir), a inteligência o é em relação
sidera princípios, mas realmente hipóteses, isto é, pontos de partida e trampolins para à opinião (doxa), a ciência em relação à fé (pistis) e o conhecimento discursivo (dianoiaJ
elevar-se até o princípio universal que já não pressupõe condição alguma (".)." (Rep.
511b. - trad. de J. Guinsburg, Difel, 1965, p. 103).
em relação à imaginação (conjectura, eíkasia)" (Rep. 534a. - trad. de J. Guinsburg,
Difel, 1965, p. 133).
(
54 55
,L
. ....J
r I - INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO

conhecimento prático e ação do empírico. derivem de um substrato


3. CRITICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (I)

ca. a "confusão. natural ao espírito humano. entre uma idéia expli-


1
transcendente. ao menos na sua forma. ainda quando o filósofo crê cativa e um princípio agente" (P.M.-125. Abril). Esta confusão é em
construí-lo a partir dos fatos. grande parte responsável pelo "dogmatismo" da metafísica. princi-
A visão heideggeriana da instauração da metafísica pode nos for- palmente entre os modernos. Mas o fundamento se encontra no al-
necer alguns elementos para pensar o encerramento da verdade na vorecer da história da metafísica. pela restrição da experiência. ine-
Idéia. Do desvelamento à exatidão do olhar metodicamente dirigido vitável. segundo Bergson. no estágio em que a ciência se encontrava
à Idéia situada no plano supra-sensível. o trajeto que se cumpre é o então. O campo e o caráter formal dos conceitos. assim estabeleci-
da identificação da verdade com a Idéia. fundamento. doravante. do dos a priori. não fazem mais do que prolongar o convencionalismo .~

ser do ente. É no conhecimento como processo metódico que a verda- da linguagem. fundado em necessidades pragmáticas. A teoria platô-
de acontece. na exata medida em que houver homologia do logos. como nica das idéias se teria constituído assim em paradigma arquitetôni-
enunciado do conhecimento. ao Logos fundamento da aparição de todos co dos sistemas metafísicos e o princípio de explicação. colocado no
os entes30 • A verdade é aquilo que não pode ser procurado com "os topo do sistema. "abarcando teoricamente todas as coisas" recebe.
olhos do corpo". e a ascese compreendida nesta necessidade confere por transferência indevida. do deus da religião a característica ativa
ao olhar espiritual uma "excelência especial". Por isto o exercício dia- que este possui. criador e providencial. e assim "alguma coisa da
lético é formador no pleno sentido: a paideia é a noção correspondente adoração e do respeito que a humanidade dispensa a este deus passa
à nova concepção de verdade. aquilo que permite ao homem "liberar então ao princípio que decoramos com o seu nome. E daí vem. em
suas possibilidades" tendo em vista a realização do destino da alma grande parte. o dogmatismo da filosofia moderna" (P.M.-126a). Mas
como sujeito da contemplação. Esta posição do homem confere-lhe um o que pode ter de agente um princípio que é formulado e concebido
lugar central cujo fundamento só pode ser plenamente explicitado e a a partir da hipóstase da matemática. na medida em que os filósofos
justificação plenamente dada na realização do destino contemplativo". modernos. inspirados em Platão. concebem a metafísica como uma
A idéia é causa e fundamento: neste sentido ela se põe como a realiza- "matemática mais vasta"? (P.M.-125). No entanto. esta identificação ~
ção da essência da verdade que deixa então de se dar como processo de contribui para dotar o princípio de explicação última de caracterís-
aparecimento da essência no devir ou como desvelamento e manuten- ticas que lhe conferem a feição de fundamento em relação a todos os
ção daquilo que é desvelado. A Idéia é aquilo segundo o qual tudo o aspectos da realidade. bem além da esfera do saber teórico. Não é
que é possui o ser e de onde retira o valor". A transferência do fun- inútil lembrar a propósito que a Idéia do Bem desempenha papel
damento do ser para a Idéia traz consigo a designação deste funda- fundador em relação ao saber e à organização da vida. individual e
mento como a Origem. do ponto de vista teológico: a causa de todas coletiva. O racionalismo integral de Leibniz. totalidade formal e ma-
as coisas é to teion, o Divino33 , o ente máximo que irradia o ser. terial do saber consubstanciada no entendimento divino. razão infi-
nita da qual o Homem participa na escala da sua finitude. é um exem-
É interessante notar a confluência que pode ser estabelecida entre plo moderno que se inscreve na linhagem dessa elaboração totalizante
esta constatação e o que Bergson denomina. na história da metafísi- que caracteriza a metafísica. Teremos ocasião de mencionar a critica
que Bergson fará a respeito.
30. "A verdade não é mais, como não-velamento, o traço fundamental do ser em si Isto apenas vem em abono da afirmação de que a teoria filosó-
mesmo; porém, transformada em exatidão através de sua submissão à Idéia, torna-se
doravante o traço distintivo do conhecimento do ente" (Heidegger, La Doctrine de
fica tem como finalidade última instituir o seu objeto com um cará-
Platon sur la Vérité, Questions 11, trad. francesa Gallimard, Paris, 1968, p. 158). ter a tal ponto absoluto e estabelecer tais condições de conhecimen-
31. Id .• ibid .• pp. 160-161. to deste objeto que a metafísica se duplica ou se desdobra necessa-
32. "O que unicamente importa, o que é decisivo em primeiro lugar, não é saber riamente em teologia. É neste mesmo sentido que devemos conside-
quais idéias e quais valores são estabelecidos e aceitos, mas sim que, de maneira geral,
o real seja interpretado a partir de idéias, que de uma maneira geral o 'mundo' seja
rar porque as Idéias em Platão não possuem apenas o valor
sopesado a partir de 'valores'" (id., ibid., p. 162). conceptual. porque a necessidade lógica do anhipotetos recebe ime-
33. Id .. ibid., p. 160 diata e necessariamente o estatuto do ser na sua plenitude. Não resta

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56
li
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r I- INTUlçAQ E MÉTODO FILQSOFICO 3. CRITICA DO MÉTODO FlLOSÓFlCO (I) ~
dúvida de que a Idéia é, para nós, antes de mais nada a condição do tituição do olho do corpo pelo olho do espírito é o motivo fundamen-
pensar, o fundamento do conhecer, que ela possui e irradia a neces- tal do método que leva à contemplação". Para Bergson, as conse-
sidade lógica que faz com que a verdade a ela se identifique. Mas, qüências da ordenação da verdade àquilo que não é materialmente
precisamente, a verdade no seu mais alto grau consiste na contem- perceptível ou mesmo objeto de percepção interna (que embora "in-
plação da Idéia. Esta atividade teórica visa apenas a uma condição visível", está ainda subordinada ao devir) são de tal importância que
lógica ou visa também e primordialmente a uma realidade existente? a partir dela se estabelece a linha mestra do método filosófico em
O conhecimento em Platão ordena-se pelo ser, só tem sentido quan- geral".
do realiza a contemplação da realidade que efetivamente é. Por isso 1).
É importante destacar que o método assim concebido, da ma-
a teoria não pode visar apenas a uma condição lógica, ou realizar
condições lógicas: ela visa à realidade suprema. A Idéia não é concei- neira como Bergson o critica em Platão, tem a finalidade de nos afas-
to instrumental; é o ser no mais pleno sentido. Este sentido é o da tar da realidade "aparente" do devir para proporcionar-nos a visão,
unidade e imutabilidade. Não é apenas o conhecimento do real, im- tão direta quanto possível, do ser, na sua realidade efetiva que se
possível no nível do devir, que encaminha o entendimento para a configura como o repouso na unidade, imutabilidade e eternidade. A
Idéia. É a busca da Realidade, do ser, que move o dialético na direção faculdade que é procurada para além da percepção, o olhar do en-
do supra-sensível. A Idéia tem antes de mais nada valor ontológico e tendimento, teria então afinidade com os atributos do ser e permiti-
por isto é plenamente objeto de teoria, de contemplação. Contem- ria a contemplação". Tal afinidade, aliás, repousa principalmente
plando-a, vemos o ser e compreendemos a irradiação do ser. O co- sobre o pressuposto da unidade da natureza, unidade que o enten-
nhecimento é contemplação: na atividade teórica ver e compreender dimento encontra como um correlato de sua própria unidade. Isto
são o mesmo, portanto o estatuto lógico e a realidade ontológica da significa que o metafísico reencontrará laboriosamente aquilo que já
Idéia não podem ser separados. Nesse sentido é que devemos enten- supunha dado a priori, porque o que sustenta a relação do entendi-
der a Idéia como existência lógica: o logos se ordena ao ser, se iden- mento com o seu objeto, no caso, é a unidade implicitamente con-
tifica ao ser e o conhecimento tem por finalidade maior o transporte siderada como necessária para que haja conhecimento verdadeiro. É
que leva à visão da unidade indissolúvel da ordem necessária no desta forma que a dialética pode partir das articulações naturais da
conhecimento e na ação". Condição da contemplação é o despoja- linguagem, da estrutura pragmática do mundo para encontrar a es-
mento do sensível, do factual, para que o olhar da inteligência (naus) sência: porque a reflexão não é inversão de direção, mas continuida-
possa exercer-se na sua pureza. Não resta outro caminho para a dia- de de busca da unidade, que terminará por ser hipostasiada na idéia".
lética senão instituir-se como método de "fuga" do sensível. Com A análise da linguagem e da estrutura da percepção, se conduzida
isso realiza-se aquilo que a crítica de Bergson, vimos, aponta: quanto
mais a filosofia toma consciência do seu objeto, tanto mais o método
é entendido como modo ordenado de afastamento do devir. A subs- 35. "Os belos objetos deste mundo são vistos pelos olhos do corpo; da mesma ma-
neira, o belo ideal é visível aos olhos da alma" (Festugiêre, op. cit., p. 106, que remete
ao Banquete, 202 a 203, e que interpreta num mesmo sentido a alegoria da Caverna).
34. "( ... ) a theoria é, antes de tudo, apreensão do Ser verdadeiro. Ela nasce da neces- 36. "( ... ) todos, antigos e modernos, concordam em ver na filosofia uma substituição .~
sidade de saber com certeza. Todos os esforços anteriores do pensamento grego leva- do percept pelo concepl" (Bergson - P.M.-146).
vam Platão a considerar esta propriedade como a principal. Ele devia atribuir-se a 37. "E quem haveria de obter em sua maior pureza este resultado, senão aquele que
tarefa de discernir o Ser que, não -mudando em absoluto, é eminentemente o objeto usasse, no mais alto grau, para aproximar-se de cada um desses seres, unicamente o
da ciência. Como, a partir disto, poderia ele pensar em negar-lhe a existência? E como, seu pensamento, sem recorrer no ato de pensar nem à vista, nem ao ouvido, e liber-
se ele lhe concede a existência, não seria a theoria, absolutamente, ciência, ou melhor, tando-se do corpo inteiro, que perturba a alma e não deixa apreender a verdade (... )"
a única ciência?" (Festugiêre, Contemplation et Vie Contemplative selon Platon, Vrin, (Fédon. 65e - trad. ). Paleikat e). Cruz Costa. Globo, p. 88).
Paris, 1950. p. 104). 38. Cf. P. Trotignon, L'Idée de Vie chez Bergson etla Critique de la Métaphysique, PUF.
Festugiêre procura refutar tanto a teoria neokantiana que atribui apenas valor Paris, 1968, p. 405: "Donde o duplo movimento da dialética de Platão: a redução das
conceptual às Idéias como aquela que faz da Idéia do Bem objeto de contemplação designações práticas da coisa na linguagem a uma essência ideal, e a divisão das coisas
"estética" . dadas na prática em articulações naturais para o olhar teórico".

58 59
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r I- INTUlÇAO E MtroOO FIWSúFICQ 4. CRfTlCA DO MtroDO FILOSÓFICO (lI)

pelo critério da busca da unidade, revelar-se-á certamente no potencial almejam o definitivo que muitas vezes não pode ser alcançado porque
de sua vocação analítica, mas é justamente esta vocação que a filosofia não depende apenas da operação do pensamento puro, depende da
deveria questionar, O movimento intelectual que põe os entes matemá- experiência. Conseqüentemente o que o pensamento puro pode forne-
ticos não deveria ser considerado como a direção da especulação; isto cer neste caso é o sistemático e o acabado, mas é também o
significa deixar-se levar por aquilo que Bergson denomina "matemática verossimilhante: concepção demasiadamente destacada do real.
natural" da inteligência e da qual a linguagem já é um produto. Assim
A compreensão da gênese da atitude filosófica é a pré-condição
a linguagem não pode ser considerada matriz do método filosófico,
necessária para entender-se a reflexão como devendo ser uma inver-
como acontece quando o filósofo prolonga a vocação da linguagem no
são. Uma rápida consideração (que prolongaremos mais adiante) do
estabelecimento das idéias gerais. Ela pode ser ponto de partida, mas
correlato objetivo da atitude filosófica pode nos ajudar a entender
exatamente para buscarmos o modo de nos colocar em contracorrente
isto. A "fuga" do sensível, a negação platônica da sensação como
em relação a ela, fazendo da reflexão uma inversão da marcha habitual
do pensamento". conhecimento provém da verificação do caráter contraditório da
mudança. Isto significa que percebemos a mudança e que, no nível
Há algo na gênese da atitude filosófica que faz com que a filoso- da doxa, intelectualizamos a mudança. Tratar-se-ia portanto de dei-
fia acabe sendo vitima daquilo que ela mais ardentemente deseja xar o universo da percepção que é o universo da mudança. Ora, diz-
evitar: a verossimilhança. Pois, para Bergson, a relação entre uma -nos Bergson, O equívoco fundamental aí é que o que percebemos e
concepção geral, uma idéia abstrata tida como explicativa, e a mul- entendemos a princípio não é a mudança. Pensemos na estabilidade
tiplicidade factual do devir é de verossimilhança. O afastamento relativa do devir que permite, através dos padrões de percepção,
metódico da diversidade sensível leva a isto. É neste sentido que se opinar sobre a mudança. É a esta estabilidade relativa, a essa série de
deve entender a critica da explicação filosófica feita no início da la estados que se sucedem que chamamos mudança. Mudança é, pois,
Introdução P.M. A compreensão da gênese da atitude filosófica, do um nome pelo qual designamos a série de estados, cada um dos
ponto de vista histórico e a partir dos fundamentos naturais (estru- quais relativamente estável. Não consideramos o processo que faz
tura da inteligência), deve levar-nos a ver na teoria filosófica tradi- com que um estado se transforme em outro, por isto separamos o
cional uma representação inadequada do real, marcada pela veros- tempo da mudança e dizemos que as coisas mudam no tempo, que
similhança. Uma teoria pode explicar os fatos ou pode representá-los entendemos como substrato divisível onde se alojam os diversos
ou exprimi-los. Em qualquer um desses três sentidos, ela pode ser estados de coisas (P.M.-156-7). Sendo assim, Zenão tem razão: o
tomada como verdadeira, desde que o que se espera dela não seja da movimento seria realmente algo contraditório, pois fundamentalmen-
ordem do definitivo e do absoluto. A hipótese transformista, por te "feito" de imobilidades relativas. Se a contradição é esta, os gregos
exemplo, não explica a evolução com a exatidão que poderíamos tiveram razão em supor que tal tipo de realidade não pode ser objeto
exigir da explicação científica estrita. Mas ela trabalha os fatos conhe- de ciência. Tiveram razão em procurar fora do devir assim concebido
cidos no sentido de nos dar uma visão aproximada da realidade: ela o lugar em que o ser fosse objeto de conhecimento. A tarefa que se
exprime aproximativamente o que os fatos indicam e assim nos pro- impõe a uma filosofia que deseja reformar o método é primeiramen-
porciona uma compreensão no nível da probabilidade. Ela não é por- te mostrar que o movimento é aparência quando consideramos a
tanto verossimilhante, conquanto não seja uma explicação exata (E.C.- sucessão de imobilidades relativas; mas que o movimento é a essên-
24). Em geral, as teorias filosóficas não se contentam com o provável cia quando o tomamos pelo que ele realmente é. Isto supõe a com-
porque o provável é da ordem dos fatos. Renunciando à probabilidade, preensão desmistificadora da inteligência e do inteligível.

Trotignon acha revelador, do ponto de vista da crítica bergsoniana. que no diagrama


da linha haja a mesma proporção entre o segmento dos mathérnata e o dos seres
4. CRÍTICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (-lI)
n
"vivos e fabricados • Isto mostraria em Platão a ilusão, denunciada por Bergson, de
uma adequação "natural" entre conteúdo e forma. A concessão que Aristóteles faz a Platão num trecho do De Ani-
39. Cf. Trotignon, op. cit., p. 406. ma pode ser tomada como uma provável base para a redução, que,
60 61
I
J
ri I - INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 4. CRITICA 00 MFrODO FILOSÓFICO (11)

em linhas gerais, Bergson opera, do aristotelismo ao platonismo 40 • verdadeira porque não há erro quando o sensível próprio é captado
Deixando de lado todos os problemas que esse texto suscita em ter- pelo órgão respectivo, assim também não pode haver erro quando o
mos da interpretação da Teoria das Idéias, interessa-nos ressaltar pensamento intuitivo capta o seu objeto, entre os quais se situam os
aqui que a semelhança estrita vista por Bergson entre os dois filóso- princípios. Existem, no ponto mais baixo e no ponto mais alto do
fos refere-se provavelmente à identificação aristotélica do intelecto conhecimento, duas operações que escapariam à discursividade41.
como lugar dos inteligíveis e lugar da verdade, o que adquire pleno Em relação a estas duas operações, não se pode falar em verdade e
sentido a partir da separação entre intelecto e sensação: o intelecto falsidade no sentido de juízo; mas também não se pode ver aí uma
tem a ver com a imagem (fantasma), que, embora vinculada à sen- indiferença: a apreensão direta é sempre verdadeira. Existiria portan-
sação, dela se distingue por não sofrer as mesmas determinações de to verdade antepredicativa, que se confunde no nível da intuição
tempo e lugar. É com esta imagem que o conhecimento discursivo se com a apreensão daquilo que não é composto, exatamente porque
relacionará primeiramente no nível da doxa (juízo sobre a sensação ajuizar é compor no pensamento segundo a composição na realida-
através da imagem) e em seguida no plano da epistéme, que tem por de. Conseqüentemente, um universal indivisível não é resultado de
objeto o universal, atingido por indução efetuada sobre as imagens. juízo (embora para se chegar a ele há de haver um processo intelec-
(Ressalve-se, neste resumo simplificado, a complicada questão da tual que envolve juízos)". Disto decorre algo a que a crítica bergso-
presença do universal na sensação, no sentido de que vejo primeiro niana deveria ser particularmente atenta: a verdade se dá no juízo
um homem, depois identificado como Cálias). pelo acordo entre o pensamento e a realidade, partindo dos dados
sensíveis e elevando-se ao universal; para isto a sensação em si mesma
O universal, portanto, é atingido pela via da indução, e partilha deve ser considerada infalível, pois do contrário não haveria base
os caracteres da discursividade. É o verdadeiro objeto do conheci- para indução. No entanto, ainda que infalível, a sensação é devir, hic
mento. No entanto os princípios da ciência possuem também a ca- et nunc; a ciência não pode se contentar com verdades estabelecidas
racterística de universalidade, são conhecimentos dos quais se deri- unicamente a partir do devir e estreitamente associadas ao fluxo
vam outros e são, na perspectiva de Aristóteles, mais certos do que os temporal dos fatos particulares. Ela necessita de verdades absoluta-
derivados. Deve-se, entretanto, notar que não se aplica a eles a mes- mente necessárias. Estas, Aristóteles não vai buscá-las no mundo das
ma forma predicativa dos conhecimentos objetivos. Não são pro- idéias, mas vai fazer com que as operações de conhecimento que
priamente resultados de um juízo, no sentido em que podemos dizer têm por objeto o devir dependam de critérios formais de unidade e
que um juízo compõe-se dos elementos ligados na proposição e da necessidade, não puramente lógicos, mas que traduzam unidade e
ligação como operação intelectual. É neste sentido que, parece, Aris- imutabilidade reais. Por isto o conhecimento, quando realiza plena-
tóteles estabelece a analogia entre intuição e sensação. O juízo não é mente a apreensão de essência, já se encontra distanciado da efeti-
efetuado sobre a sensação, mas sobre a imagem obtida a partir dela. vidade empírica".
Assim também o objeto da intuição não depende da forma predica- Esta distância do empírico não é apenas o resultado necessário
tiva, mas é captado diretamente. E assim como a sensação é sempre da abstração: ela está inscrita na própria maneira de entender o in-

40. Segundo Bergson, Aristóteles teria conservado os traços essenciais da Teoria das 41. "A intuição intelectual termina, pois, uma elaboração que parte necessariamente
Idéias e transmitido à posteridade, através de uma elaboração discursiva mais com- dos dados sensíveis; mas por outro lado, a intelecção, a intuição do Universal, possui
pleta, a noção de método como prolongamento retificador da percepção e da lingua- analogia com a sensação; e, como esta, ela é infalível. O pensamento discursivo, que
gem. Tal idéia do método filosófico e tal concepção do objeto da filosofia teria sido °
se exprime em juízos, pode ser verdadeiro ou falso, mas intelecto, quando apreende
"levada pelas asas do aristotelismo e do neoplatonismo" (P.M.-124) aos filósofos mo-
dernos. Cf. também o capo IV de Evolução Criadora. O trecho do De Anima a que nos
a essência ou qüididade, não pode laborar em erro, não mais que o sentido quando
se limita a reconhecer a qualidade que é seu objeto próprio" U. Moreau, Aristote et son
I
referimos é m, 4, 429 a 27-29. "Também devemos aprovar aqueles que sustentaram
ser a alma o lugar das idéias, com a ressalva, contudo, de que não se trata da alma
École, PUF, 1962, p. 178).
42. Cf. Met. 10, 1051b - 2455.
I
inteira, mas sim da alma intelectual, nem das em ato, mas sim das idéias em potência" Cf. também De Anima, 1II, 6, 430, 26ss., trad. Tricot, p. 189.
(Tr.d. Tricot, Vrin, 1959, p. 175). 43. J. Moreau, ob. cit., p. 180.

62 63
r
I- INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 4. CRiTICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (lI)

telecto como lugar da verdade porque lugar dos inteligíveis, das for- ção da sua fidelidade histórica - a afirmação bergsoniana de que o
mas. "( ... ) assim, o intelecto é forma das formas (... )"." A teoria filo- Primeiro Motor Imóvel é a condensação do Mundo das Idéias. Quan·
sófica se constitui assim pela cumplicidade necessária entre a ins- do pensamos o intelecto humano sob o prisma do intelecto divino,
tauração de um objeto cuja unidade e indivisibilidade tomam-no reconhecemos que a imanência das formas aos objetos de conheci-
alheio ao devir e a consideração de uma faculdade, dentre todas mento em Aristóteles pode ser considerada como processo de inte-
excelente, o intelecto que capta o objeto num processo de verdadeira ligibilização do devir, pois assim como os sentidos s6 apreendem
identificação: no ato de conhecimento, diz Aristóteles, o intelecto é o seus sensíveis próprios, também o intelecto contém em potência os
inteligível que ele conhece. Esta relação de identidade nada mais é inteligíveis, isto é, todo o conhecimento, na medida em que a
do que a realização plena, em ato, da comunidade de gênero que intelectualização plena das imagens sensíveis perfizer a predisposi-
deve existir no conhecimento. Dessa forma, o mais alto objeto de ção para que o intelecto conheça, assimile, exatamente aquilo que
teoria é aquele em que o ato de conhecer se dá plenamente em e por ele tem em potência: formas".
si mesmo: o Primeiro Motor, pensamento de si enquanto totalidade O processo de conhecimento, metodicamente conduzido, deve
em que virtualidade e realidade se identificam, autocontemplação guiar-se então pela neutralização formal do corruptível e elevar-se
que leva ao seu máximo limite o pensar-se do pensamento em ato, até o princípio das coisas corruptíveis, que é incorruptível. A fuga do
a percepção de si na plenitude do exercício intelectual. Pensar, por- devir ocorre, no caso, como a identificação do ser na qüididade que
tanto, o inteligível como seu objeto próprio é algo que aproxima o para o intelecto não é apenas noção, mas objeto real. Assim a reali-
intelecto humano da divindade, na medida em que a separação exis- dade efetiva a que se subordina o nível do quod es é estabelecida no
tente neste caso entre o intelecto e seu objeto é compensada pela nível do intelecto através da apagoge e, quando isto ocorre, o intelec-
unificação que se dá em termos do caráter inteligível, comum a su- to tem diante de si o ser do objeto". A humanidade de Calias é o ser
jeito e objeto. É importante frisar aqui que neste caso a intuição é ou de Calias, mesmo que esta humanidade seja sempre e somente de-
tende para a coincidência na medida em que o objeto de conheci- tectada como Calias, ou Sócrates etc. A anterioridade lógica da forma
mento, transfigurando-se em inteligível, participa do gênero intelec- é o fundamento da finalidade intelectual do conhecimento, e o inte-
tual. Em Platão era por uma ruptura dialética que o conhecimento lecto como o órgão da captação plena da forma é, verdadeiramente-
alcançava o seu objeto, a idéia, na medida em que o devir não pos- compreende-se então -, "forma das formas". Tudo isto representa
suía caráter inteligível próprio. Em Aristóteles, vemos estabelecer-se para Bergson, a coberto da imanência que diferencia Aristóteles de
um processo pelo qual as formas de inteligibilidade imanentes ao Platão, presença implícita do preceito que será a chave do método
devir conduzem o conhecimento à captação da unidade na apreen- cartesiano: a imediatidade pura da experiência é o próprio signo da
são dos indivisíveis. Não há, portanto, ruptura no sentido da busca sua incerteza. Certamente, como já vimos, a sensação em Aristóteles
imediata do transcendente; mas as mediações responsáveis pela traz em si sua própria certeza; mas a verdade da sensação provém da
consolidação intelectual das essências só adquirem sentido se reme- imanência da forma: portanto algo como uma pré-categorização do
tidas à finalidade da identificação do intelecto com o inteligível, e a devir deve estar incluído quando Aristóteles afirma que a sensação,
elaborada articulação do devir que opõe o realismo aristotélico ao como início do conhecimento, "é ela mesma, nous"". A forma impli-
idealismo objetivo de Platão deve ser considerada em [unção do re- cada na multiplicidade sensível não é, ainda, objeto intelectual, e I

sultado último do conhecimento - que não é apenas, aliás, resulta- não o é porque a própria forma, enquanto captada na materialidade I
do, mas que configura o ser do objeto da ciência na sua efetividade:
,,
1
a universalidade. Na medida em que o princípio do movimento, do ,

devir, consubstancia em si a identidade total do pensamento consigo 45. Cf. Seth Bernardete, Aristotle. De Anima, I1I, 3-5, in The Review of Metaphysics, 1 !
june, 1975, vol. XXVIII, No. 4: "Aquilo que é transparente para o noético deve ser ele •I
próprio, podemos entender - independentemente de uma avalia- ,
mesmo noético, pois do contrário interferiria com aquilo que transmite".
46. "(".) o puramente noético não é uma classe, mas um ser (... ). ~ (Seth Bernardete,
ob. cit., p. 616).

I
44. De Anima. m, 8, 432 a 2. Trad. Tricot, p. 197. 47. Ética Nicomaquéia, VI, 12, 1143 a 35·37.

64 65

lo .J
ri I- INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO
4. CRiTICA DO MÉTODO FILoSOFrCO (11)

do devir não se constitui ainda como - se assim podemos dizer - niano, a tradução da realidade efetiva do devir em unidade imutável
o inteligível pr6prio do intelecto. Mas, precisamente, esta expressão de essências logicamente estabelecidas. É a esta unidade assim ob-
soa bizarra porque, a rigor, o intelecto não tem inteligível pr6prio, ao tida que Bergson denomina "artificial" (P.M.-l13), assinalando a dis-
menos no sentido em que cada órgão é especializado na captação de tância em que se encontra o princípio explicativo daquilo que ele
uma qualidade sensível. A superioridade do conhecimento intelectual deveria explicar. Cabe então questionar o que há de comum entre o
deriva exatamente de que nele o objeto é captado na sua unidade, objeto do naus e a realidade dada esteticamente. O conhecimento
para além da variação qualitativa que o insere no devir. Por isto o objetivo pode ser visto como o tornar-se forma do composto formal
intelecto capta o ser do objeto e não um aspecto qualitativo. A ante- matéria. O conhecimento objetivo é o processo de tornar outro o
rioridade formal está bem marcada pelo fato de que o intelecto se objeto do devir, para que este outro possa identificar-se com o inte-
pensa a si mesmo em cada inteligível pensado. O despojamento do lecto. A noesis, no caso do homem, envolve a passagem da potência
aspecto estético é, pois, essencial à inteligíbilidade do objeto, e isto ao ato, daí o caráter discursivamente exaustivo do conhecimento, o
certamente é o aspecto que permite a Bergson assinalar que o preço que não é o caso da noesis divina. Mas não há dúvida de que a pre-
da inteligibilidade é a recusa da multiplicidade qualitativa, o que é o sença do noet6n à noesis, presença intemporal e não elaborada, é o
mesmo que a recusa do devir como meio em que se exerce o conhe- ideal contemplativo, realizado em Deus50 • O modelo da intuição in-
cimento. Nesta perspectiva, como fica a intuição enquanto entendi- clui, pois, essencialmente a permanente presença de um objeto que
da como faculdade de conhecimento direto? O que é conhecido di- não muda, que não está subordinado ao tempo, e todo o processo de
retamente é o inteligível, na medida em que a intuição é intelectual. conhecimento tende para a realização deste ideal. É seguramente
Esta captação direta, no entanto, é o resultado de um processo dis- por isso que Bergson não vê em Aristóteles grande diferença de Platão
cursivo que se inicia no trabalho intelectual sobre a imagem sensível. em termos da concepção do ideal de conhecimento: a variação esta-
A intuição só é possível porque o conteúdo da imagem foi de alguma ria nos elementos utilizados e na visão do trajeto que leva a este
maneira sublimado num conceito que, por definição, não se confun- ideal. O tornar-se outro do objeto do devir configura a distância que
de com nenhuma imagem, com nenhuma das qualidades através a teoria institui entre a racionalidade discursiva da inteligência e o
das quais o objeto foi primeiramente captado. Entendemos assim ser efetivo das coisas inscritas no devir, ilustrando, ainda uma vez, a
porque o princípio das coisas corruptíveis não pode ser ele próprio crítica contida na l ' Introdução P.M., referente ã generalidade da
corruptível. É certo que, contra Platão, para Aristóteles a ciência é explicação distanciada do objeto original. Mas precisamente esta
saber acerca do mundo no plano do devir e não no plano da imuta- distância deriva de que o objeto inscrito no devir não é entendido
bilidade. Mas na medida em que o desenrolar dos fenômenos apa- como origem do conhecimento, a não ser "para n6s", ou do ponto de
renta a contradição, o fisico deve ser conhecido não enquanto puro vista da cronologia efetiva do processo de conhecimento. A verda-
processo físico de devir, mas enquanto este processo se subordina a deira origem, na "ordem do ser" é o intelecto, são as formas. A partir
um esquema causal e formal. desta dualidade a reflexão tem seu caminho traçado: ela deve reen-
Uma vez que o inteligível é a verdade da coisa, o intelecto, contrar a ordem do ser e para isto tem de partir da unidade, real ou
identificando-se com o inteligível, identifica-se com as coisas: "A ciên- logicamente. Partir da unidade só pode ser, neste caso, hipostasiar
cia em ato é idêntica ao seu objeto"". Esta identificação, entretanto, uma unidade artificial que contém em si virtualmente toda a articu-
é operada pelo intelecto. É o método de conhecimento que permite lação formal da experiência (E.C.-197-8). Esta unidade convive com
tal identificação, na medida em que este método existe em função do a multiplicidade desde que esta seja organizada segundo critérios de
conhecimento do universal". Isto significa, do ponto de vista bergso- unidade. Para Bergson, é esta a função dos gêneros em Aristóteles. O
sentido de cada gênero está na "generalidade dos gêneros", na uni-

48. De Anima, 111, 5. 430 a 19-20.


49. "C,.) o nousnão se identifica tanto às coisas quanto as identifica a si. suscitando-
50. Acerca disto cf. as indicações de F. E. Peters, Termos Filosóficos Gregos (léxico -
.lhes a explicitação própria." (Jean-Lue Marion, L'Ontologie Crise de Descartes, Vrin,
histórico), Gulbenkian, 1974, p. 163.
1975, p. 49).

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I
rI
4. CRfTlCA DO MÉTODO FILOSÓFICO (11)
I- INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO

dade que sustenta metafísica e logicamente o "sistema de gêneros" slVels ao intuitus1"2 Em outras palavras, não seria possível ver no
em que se constitui a realidade". Neste sentido, é claro que tanto as objeto do intuitus, tal como Descartes parece defini-lo, algo assim
unidades relativas aos gêneros como a Unidade máxima são tidas como o dado, ou pelo menos bem mais próximo do dado que em
como objeto de contato do intelecto. Mas, sobretudo em Aristóteles, Aristóteles? É o problema da relação entre intuição e dado inteligível
o processo discursivo que eleva a multiplicidade dos particulares à que assim se apresenta. Vimos que no caso de Aristóteles a intuição
unidade do geral trairia, para Bergson, a continuidade entre os con- é a contemplação da verdade no seu mais pleno sentido, o que nos
ceitos e o Conceito, entre as formas e a Forma Pura. Portanto a in- autoriza a dizer que o processo metódico que faz o conhecimento
elevar-se da sensação à intuição contém nas suas etapas indícios dessa
tuição se inscreve, na realidade, num processo discursivo e o fato de
verdade total. Assim a sensação é verdadeira no sentido de que cap-
ela ser o acabamento deste processo não a coloca inteiramente de
tamos qualidades sensíveis tais como são em si mesmas enquanto
fora dele. O que se procura na intuição é o princípio, telas do conhe- qualidades sujeitas à mutação constante; o juízo sobre estas qualida-
cimento e gerador da realidade. A razão encontra, portanto, aquilo des enquanto imagens transmitidas pela imaginação ao intelecto
que o seu próprio método a fez colocar a priori como horizonte da também é verdadeiro, na medida em que reúne os aspectos qualita-
busca da verdade: a unidade do ser que se espelha na unidade do tivos e os dispõe para a apreensão unitária do intelecto; mas a ver-
saber, com a ressalva eventual de que a unidade do saber permanece dade plena é a apreensão intelectual da unidade essencial. O proces-
por vezes um fím inalcançável. Mas seja qual for o grau em que o so é, já o dissemos, teleológico e tem um sentido positivo: o resultado
absoluto pode ser atingido e conhecido, isto em nada altera a tarefa não seria possível se não existissem as etapas, o trajeto do ser ao
da especulação e a constituição da objetividade. As exigências orde- conhecer, a partir da apreensão do dado sensível. Ora, o início da
nadoras do Absoluto se refletem no processo de conhecimento des- Regra m, aI' parte do Discurso do Método, e aI' Meditação contêm
de que este Absoluto seja posto, ainda que como ideal inatingível, indicações das etapas metódicas que levam ao estabelecimento da
intermitentemente pensado ou como idéia reguladora. intuição como representação clara e distinta e índice de objetivida-
de. Só que em Descartes esse processo tem um sentido preponde-
ii A identificação intuitiva entre intelecto e inteligível consiste, pois,
rantemente negativo, já que signifíca a eliminação ou o afastamento
de um lado na posição da unidade geradora de ser e razão do devir dos obstáculos que impedem a representação clara e distintaS'. Como
experiência e de outro na faculdade intelectiva que, operando ativa-
mente, traz a si o objeto e o posiciona como noetón, objeto do inte-
lecto e que Bergson compreende na linhagem dos eide platônicos. 52. "Por intuição entendo não o testemunho instável dos sentidos. nem o juízo en-
Tanto em Platão como em Aristóteles, a distância lógica e a depura- ganoso da imaginação que opera composições sem valor, mas uma representação que
é própria da inteligência pura e atenta, representação tão fácil e tão distinta que não
ção do mundo sensível caracterizam a dignidade do conhecimento subsiste nenhuma dúvida acerca do que aí se compreende; ou então, o que vem a dar
intelectual e sobretudo intuitivo, dignidade incompatível com o mo- no mesmo, uma representação inacessível à dúvida, fato de uma inteligência pura e
vimento e a mudança qualitativa. atenta, que nasce unicamente da luz da razão, e que, por ser mais simples, é mais
certa que a dedução; (... )." (Descartes, Régles, 1Il, ed. Alquié, I Garnier, 1963, p. 87).
Ora, à primeira vista, não é essa distância anulada quando Des- Descartes enumera exemplos de objetos da intuição e complementa: "E outras coi-
cartes aparentemente transforma a elevação epistemológica do naus sas semelhantes, que são bem mais numerosas do que nota maior parte das pessoas,
por não se dignarem a voltar o espírito para coisas tão fáceis" (id. ibid., p. 87).
I
em intuitus ou simples visão do que se apresenta a um espírito aten- 53. O estabelecimento da dúvida metódica na 1a Meditação é a atribuição do caráter
" to como claro e distinto? E, ainda mais, acrescentando que na verda- negativo à sensação e à percepção; a dúvida acerca da matemática completa a etapa I
de há muito mais coisas do que supomos a princípio que são aces- lógica de dissolução metódica do início tradicional do processo de conhecimento. Os I
parágrafos da Regra III constituem a atribuição do caráter negativo à história do saber.
A falta de distinção metódica entre o falso e o verdadeiro invalida o apelo à história
II
51. "A realidade tornando-se assim um sistema de gêneros, é à generalidade dos
gêneros (isto é, em suma, à generalidade expressiva da ordem vital) que deveria se
remeter a generalidade das leis" (Bergson, E.C., p. 229).
do saber como critério da busca do verdadeiro. É a etapa histórica da dissolução
metódica do fundamento tradicional do filosofar. Não deixa de ser interessante com-
parar a 1a etapa com a ascese platônica tal como é descrita no Fédon. Cf. Ao Marquês
de NewCastle, Abril/1648, dI. em Brunschvicg, Le Progrés ... , p. 144.
;
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68

J
I - INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 4. CRíTICA DO MÉTODO FILOSóFICO (11)

agora a representação terá de buscar seu fundamento no ato do intuição opera sobre aquilo que é imediatamente presente a uma
sujeito representante, desaparece a confiança na infalibilidade da sen- consciência atenta; ou - retificação importante - sobre aquilo que
sação e a constituição do fundamento material do conhecimento pode ser imediatamente presente a uma consciência metodicamente
passará pela análise das condições subjetivas de representação. Mas atenta. A imediatidade do dado em Descartes supõe a depuração me-
aqui a precaução metódica não vai instituir distância entre sensação tódica que a "inspeção do espírito" realiza, e aquilo que é objeto de
(dado) e intuição (intelecção de essência) precisamente porque a intuição deve a sua condição de "facilidade" à "simplicidade" com
crítica das condições de representação permite que a intuição clara que se apresenta, simplicidade esta que não é nada mais do que o
e distinta, quando ocorre, ocorra imediatamenté". A imediatez aqui preenchimento dos requisitos de condição de inteligibilidade. Sendo
provém de que a intuição deve exercer-se sobre as coisas "mais sim- assim, podemos dizer, em termos bergsonianos, que a intuição vista
ples e mais fáceis". Mas que coisas são estas? "Ainsi, chacun peut voir desta maneira em nada se opõe à discursividade da inteligência, antes
par intuition qu'il existe, qu'il pense, que le triangle est delimité par realiza mais completamente o ideal de conhecimento intelectual na
trois lignes seulement, la sphére par une seule surface, e autres choses medida em que abarca numa visão as ligações pelas quais o conhe-
semblables, qui sont bien plus nombreuses qui ne le remarquent la cimento se compõé". Aliás, a ligação estreita entre intuição e dedu-
plupart des gens, parce qu'ils dédaignent de tourner leur esprit vers ção, clara no texto da Regra m, corrobora explicitamente o caráter
des choses si faciles" (R. m, Alquié, I, 87). Existência, pensamento, discursivo da intuição 57 •
entidades matemáticas: os exemplos de Descartes não devem ser
tomados inocentemente; relembremos as condições da representa- Tal caráter fica talvez ainda mais patente quando nos remetemos
ção e o encontro daquela que possui em si o sinal da certeza. Veri- aos objetos da intuição. Com efeito, não existe uma única espécie de
ficaremos que existência e pensamento, ou a existência do pensa- objetos da intuição: além das naturezas simples, como existência e
mento é a intuição do princípio da ciência na ordem das razões. E pensamento, as naturezas complexas e as séries também são correlatos
que a inteligibilidade do pensamento em relação a si próprio é a do intuitus. Quando digo que o triãngulo é objeto de intuição, no
inteligibilidade matemática, caracterizada pela simplicidade e dis- sentido em que compreendo imediatamente, clara e distintamente
tinção, pelo que só pode ser posta em dúvida artificialmente. Cons- sua natureza, não quero dizer que ele seja uma natureza absoluta-
tituem-se então os objetos acerca dos quais não há razão de dúvida: mente simples. Na intelecção do triãngulo está contida a intelecção
o pensamento e o seu conteúdo mais imediato, a matemática. Que da linha, da extensão, do número três; todas as relações de grandeza
tipo de objetos são esses? Relembremos que a certeza do cogito atin- entre os lados e os ângulos, a relação da área com as linhas que a
ge o pensamento como essência, não a variabilidade dos modos que limitam, etc. Todos estes conhecimentos são de direito anteriores ao
supõe a singularidade da percepção, da imaginação e do sentimento conhecimento do triângulo, mas isto não impede que eu saiba ime-
como esferas modais distintas. A intuição do próprio pensamento é diatamente, clara e distintamente o que é um triângulo. O triângulo é,
condição real de qualquer representação; mas como o cogito é para- pois, natureza composta, mas é conhecido intuitivamente da mesma
digma de certeza, esta condição é também/armaI. Ora, o pensamen- maneira que as naturezas simples58. Quanto às séries, o problema é o de
to não é uma coisa; ele é intuído quando subtraído ao devir das encontrar o elemento simples relativamente à série, isto é, a sim-
imagens que preenchem os diferentes modos de representação. A plicidade relativa que decorre da posição que o elemento ocupa na
verdade experimentada no cogito é a da reflexão na sua pureza e na série. Se classifico os individuos em espécie, esta será uma noção sim-
sua anterioridade: o mundo, tornado ausente no processo da dúvida,
está agora ainda mais longe como realidade formal". No entanto, a
56. Descartes, Régles. III, Alquié, p. 88.
57. Cf. a nota 1 da p. 89 da ed. Alquié onde J. Brunschvicg comenta essa caracterís-
54. Cf. Jean-Luc Marion, ob. cit., pp. 49-50. tica como constitutiva da noção cartesiana de intuição.
55. "( ... ) a ausência da 'coisa' como objeto facilita tanto mais a certeza, mesmo se 58. Cf. a este respeito Regra XII, onde Descartes afirma que a complexidade da en-
esta permanece puramente formal; pois uma certeza vazia (objeto = forma da expe- tidade triângulo não impede o conhecimento imediato, o qual, aliás, é feito sem que
riência) vale mais que a experiência incerta de um conteúdo real (objeto = coisa)" precisemos nem sequer nos dar conta dos conhecimentos anteriores aí implicados.
Uean-Luc Marion, ob. cit., p. 50). Ed. Alquié, pp. 148·149.

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I - INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 5. CRíTICA DO MÉTODO FILOSÓFICO CIII)

pies; se considero as espécies em relação ao gênero, este será o simples. intuitivo, o cogito, faz com que as condições formais da representa-
No caso destas noções é a ordem do conhecimento que determina a ção forneçam as coordenadas da reflexão. A busca do verdadeiro se
simplicidade, diferentemente de noções como existência e pensa- fará então dentro dos critérios que demarcam a clareza e a distinção
mento, que são como que simples "em si". É claro que o prossegui- como signos de inteligibilidade imediata. Como já tivemos ocasião
mento da análise proporcionaria a intuição dos elementos simples de observar, a experiência quando ocorre para além dos limites do
que compõem a natureza composta; mas não é sempre necessário unicamente inteligível provoca a incerteza. E assim é a abstração da
que levemos a análise até as últimas conseqüências para intuir". Este experiência que fará aparecer o dado enquanto inteligível para o
aliás será um dos aspectos que merecerá censura de Leibniz, quando intelecto, único juiz de evidência. A representação intelectual é o
ele opuser as exigências formais de análise ao intuicionismo cartesia-
no. Restar-nas-ia apenas lembrar, acerca deste problema, o papel da
campo da intuição. A intuição opera sobre conteúdos abstratos, daí
a validade imediata da matemática60 • Nesse sentido, a universalidade
1,
enumeração como preceito metódico. A enumeração está estritamen- do objeto da intuição passa a possuir um caráter quase exclusiva-
te vinculada à impossibilidade de manter longas séries simplesmen- mente lógico - o que não ocorria em Aristóteles -, e isto a despeito
te sob o domínio da intuição. Uma vez que a demonstração supõe de Descartes procurar sempre intuição de realidades: como a reali-
movimento do espírito (passagem de um termo a outro), a intuição dade é idéia clara e distinta, a intuição se põe como operadora de
aí não pode ser assimilada a uma visão estática, tem de englobar o certeza no âmbito da representação despojada de suas caracteristi-
dinamismo do percurso dedutivo. Mas este percurso tem por critério cas experienciais (perceptíveis). Dessa maneira, a intuição de realida-
de sua veracidade a intuição em cada uma das etapas. Quando a des é também estabelecimento de unidade intelectual no conheci-
série é longa, a memória tem de assegurar a lembrança das certezas mento mesmo que as realidades intuídas imediatamente num ato
intuitivas, e como a memória é falível, a enumeração de tempos a único sejam de direito decomponíveis pela análise.
tempos assegura a continuidade da evidência. É portanto porque a A inteligibilidade do que é dado ou apreendido na intuição seria
intuição das ligações não se sustenta indefinidamente que a enume- então a corroboração do que Bergson afirma acerca da concepção
ração é necessária. Assim podemos assimilar o processo dedutivo à como sucedâneo complementar da percepção. A incerteza própria
intuição de uma verdade, já que a enumeração compensa a falta de da esfera de percepção exige mais que a depuração do sensível en-
alcance da intuição (Regra XI, Alquié, pp. 131-2). De resto, Descartes quanto processo de constituição de essência. Exige que o ato de
diz que a intuição e a enumeração se auxiliam e se completam mu- apreensão de essência se realize de imediato no plano da idéia con-
tuamente, a ponto de poderem ser consideradas "uma só operação" cebida clara e distintamente.
(ibid.). Eis portanto a intuição indissoluvelmente mesclada ao movi-
mento dedutivo, ao "movimento contínuo do pensamento", à articu-
lação inteligível da representação. 5. CRÍTICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (Ill)
Há uma razão para tanto, que se refere ao problema dos dados
inteligíveis que mencionamos antes. O alcance formal do paradigma O mecanicismo cartesiano é, para Bergson, a sistematização e a
unificação metafisicas da modalidade relacional de conhecimento,
que a fisica de Galileu havia instaurado contra a articulação qualita-
tiva da realidade própria da fisica aristotélica. Nesta, os elementos se
59. Cf. Regra VI, onde as noções absolutamente simples e relativamente simples são
vistas na ordem do conhecimento e pelo valor metódico no encadeamento das razões.
compunham segundo os gêneros articuladores do real e constituíam
Por isto algumas coisas podem ser ditas mais absolutas ou mais relativas, dependendo assim uma ordem cujos princípios ou cujo Princípio, síntese inteligí-
do contexto. Cf. o comentário de J. Brunschvicg (p. 102, n. 1), que acentua o valor
puramente epistemológico e não metafísico do caráter absoluto dos termos do conhe-
cimento.
Cf. também Émile CalIot, Problemes du Cartésianisme, Gardet Editeur Annecy, 1956, 60. "A indiferença à própria coisa tomar-se-ia o preço da universal validade opera-
p.50. tória do intuitus (... )" (Jean-Luc Marion, ob. cit., p. 52).

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I- INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 5. CRITICA DO MÉTODO FlLOSÓFJCO (III)

vel dos elementos, oferecia o paradigma do ato de intuição e do objeto "afirmava, contra seus predecessores imediatos, que o conhecimen-
da intuição. No universo relacional de Descartes, em que a evidência to não é inteiramente redutível aos termos intelectuais" ... (E.C.-357).
,i das ligações repousa na visibilidade delas para o espírito, não é pre- A recuperação do acordo entre forma e conteúdo poderia ter redun-
ciso existir um ser que necessariamente condense a realidade, como dado, em Kant, na consideração efetiva da realidade nos seus con-
a Idéia ou o Primeiro Motor; é preciso que exista um ser no qual tornos próprios; na possibilidade de adotar o ritmo factual da expe-
repouse a evidência das ligações intuitivas: tal é o Deus cartesiano. riência e então perceber a realidade material "por dentro", na coin-
Ou então um entendimento infinito pelo qual passe a sintaxe lógica cidência entre percepção e percebido. As relações da inteligência se
dos elementos que compõem o universo, a comunidade da raciona- produziriam então a partir desta coincidência: o conhecimento encon-
lidade assegurando a continuidade do saber humano e do saber di- traria suas limitações na luta contra a densidade da matéria, mas o
vino: é o Deus de Leibniz. Ou ainda a Razão e a Realidade identifi- conhecimento seria da própria coisa (E.C.-357). Matéria e espírito
cando-se na perfeição unitária da Substância suprema da qual ema- deixariam então de ser caracterizados, como nos clássicos, por uma
nam produtivamente os atributos e os modos que sao as articulações oposição contornada por um paralelismo ou uma harmonia; apare-
relativas do real: Deus de Spinoza. Em qualquer dessas três perspec- ceriam na relação de tensão que produz a especificidade da sua co-
tivas, ressalvadas as grandes diferenças e a originalidade de cada uma, existência. Mas para isto a filosofia teria de se instalar na matéria do
Bergson vê o saber como constituindo-se a partir de uma visão uni- conhecimento "por um esforço superior de intuição", para que a coin-
tária das relações. Sendo assim, a intuição é vista como o conheci- cidência com o ritmo da duração material se traduzisse nas relações
mento mais elevado na medida em que dá o fundamento das relações, objetivas. Tal esforço de intuição suporia, contudo, que se conside-
tanto do ponto de vista real quanto do ponto de vista lógico. O saber é rasse a matéria como não subordinada a esta faculdade de efetuar
considerado, no seu nível metafisico, como a intuição simples da Sim- relações que é o entendimento. Ora, mantendo a hierarquia clássica
plicidade fundadora da articulação do real. Ora, sendo a inteligência, e a prerrogativa da razão (da inteligência), Kant considerou a matéria
!! como "mais estreita" que a inteligência, ou, no máximo, "co extensiva"
para Bergson, a faculdade de efetuar relações, o saber concebido desta
il· forma fica suspenso à inteligência, no limite a uma inteligência infinita a ela. Conseqüentemente não pôde ver na coincidência entre inteli-
i
que possa ver instantaneamente a totalidade das relações (E.C.-356). gência e matéria uma possível gênese do conhecimento intelectual
I"
+ Esta modalidade de presença do absoluto na filosofia é que será
(E.C.-358). O acordo entre forma e conteúdo tornou-se então impo-
sição da forma a uma matéria indiferenciada: a forma passou a fazer
questionada por Kant, mas de uma maneira que, para Bergson, não as vezes do absoluto. Ainda mais: como esta matéria já é, enquanto
atinge a essência do modelo racional. Kant se contentará com um origem material do conhecimento, submetida às formas da sensibi-
fundamento lógico da relação, e para isto o entendimento humano, lidade, a coincidência com o ritmo das coisas torna-se impossível:
li· "
no seu sentido transcendental, será suficiente. A função unificadora tudo que tenho é uma matéria segunda, predisposta para as sínteses
das relações, uma vez buscada no âmbito do entendimento, relativi- do conhecimento. A camada da coisa-em-si sendo inatingível, as
zará o objeto das relações e o resultado da ciência. Esta relativização relações intelectuais só poderão redundar numa ciência relativa, uma
jl i:
,I ~
. ,. é solidária da alteridade da matéria do conhecimento, sobre a qual vez que já é na "atmosfera" intelectual ou formal que a matéria se dá
, ~ se exerce o poder lógico de relacionar. Ora, se por um lado esta mu- para o conhecimento. O dado não é inteligível, como em Descartes,
dança faz com que a crítica do dogmatismo seja na verdade uma mas sô aparece como dado em relação ao fundamento formal das
I: limitação do dogmatismo", por outro abre a possibilidade de que a relações que sobre ele serão operadas. Kant não teria questionado as
I!: "origem extra-intelectual" do conhecimento venha a constituir o pretensões cartesianas; tê-Ias-ia adaptado ao fundamento lógico do
fundamento da ligação efetiva entre conhecimento e realidade. Kant conhecimento concebido na medida do entendimento humano". A

61. "A crítica de Kant, considerada deste ponto de vista, consiste sobretudo em limi- 62. "Quero dizer que (Kant) aceitou sem discussão a idéia de uma ciência una, capaz I
tar o dogmatismo de seus predecessores, aceitando a concepção que tinham da ciên- de abarcar com a mesma força todas as partes do dado e de coordená-las num sistema
cia e reduzindo ao mínimo o que ela implicava de metafísica" (Bergson, E.C, p. 357). com igual solidez em todas as suas panes" (Bergson, E.c., p. 358).
I
74 75
IbWllfiêl
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _~.L_ _ _ _ _ _ _ _ _~= Setoria! de CiET'cms ~. .'. '. "i..~'·""'8"...r....""""
I- INTUIÇÃO E MÊTODO FILOSÓFICO 5. CRITICA DO MtrODO FILOSÓFICO (I1I)

medida do conhecimento, enquanto repousa materialmente no dado endido. Por isto, para Bergson, em Kant o conhecimento atinge ple-
extra-intelectual, é dada pela intuição sensível, origem externa do namente o estatuto simbólico, e quase dinamos que é consciente dele.
conhecimento. E só pode haver uma experiência, de um único tipo, A redução da objetividade à objetividade física é por sua vez solidária
porque só há intuição sensível, enquanto captação do dado, capta- da concepção, que Kant partilha com os clássicos, de que a intuição
ção que é, ao mesmo tempo, organização do dado pelas formas de intelectual, se existe, é intemporal. Sendo assim, e consistindo a crí-
percepção. Uma vez que só há intuição sensível, a inteligência, en- tica precisamente em mostrar a vacuidade de um conhecimento do
quanto fator de organização racional, se põe como ordenadora da qual está ausente a origem empírica, recuperar o objeto no nível da
experiência de conhecimento e a extensão do conhecimento é a ex- realidade empírica e temporal significa intuir sensivelmente o dado v.~
tensão do poder de relacionar intelectualmente. Não existe pois ma- originalmente material do conhecimento sob a forma da temporali-
neira de captar intelectualmente o fundamento ontológico do conhe- dade perceptiva: elementos dispersos como matéria de esquemati-
cimento no seu ser-em-s~3. zação e síntese intelectual. A dualidade do intuir e do pensar assegu-
A razão da recusa kantiana da intuição intelectual ilumina o modo ra, pois, a presença originária do dado infra-intelectual; mas não per-
de ser da filosofia kantiana (o seu "espírito") e também nos esclarece mite, por outro lado, que o objeto possa ser apreendido para além da
acerca do racionalismo que Kant, mais aparentemente do que real- rede categorial. O estigma da discursividade, que o entendimento
mente, combate. A intuição de elementos descontínuos na forma assume com a falsa modéstia de quem vê no fardo uma grandeza,
espacial e temporal é o fundamento material das relações intelec- restringe a verdade à descoberta daquilo que a própria razão insti-
tuais. Na medida em que esta forma impõe ao conhecimento um tuiu para ser descoberto. Assim o espírito se reencontra nas coisas,
caráter fenomênico, tais relações nunca poderão ultrapassar o ámbi- nunca em si mesmo. Para que ele se reencontrasse a si mesmo seria
to do relativo. Ora, se a matéria do conhecimento é o mesmo que a necessário considerar a possibilidade de um prolongamento da in-
forma sensível pela qual a percebemos, e se ela é sempre e por de- tuição da realidade física em intuição da realidade espiritual. Esta
finição exterior ao sujeito, a recuperação do objeto físico perdido por continuidade, que Bergson considera analogamente àquela que exis- ~

Descartes se faz ao preço da constituição do objeto em geral sobre as te entre o infravermelho e o ultravioleta, permitiria a superação do
características do objeto físico enquanto dado externo organizado conhecimento de cunho meramente intelectual, e este outro gênero
sensivelmente. O sujeito tem de ser exterior ao objeto para que este de conhecimento iniciar-se-ia com "uma tomada de posse do espí-
recupere a autonomia que o ponto de partida intelectual de Descar- rito por si mesmo" (E.C.-359).
tes lhe havia roubado, ainda que esta autonomia seja relativa. Por De modo que a posição de Kant o faz escolher entre a forma da
isto a intuição não é coincidência, simples captação, mas sim orga- temporalidade fenomênica e o intemporal, e o criticismo consiste
nização. E por isto também Kant não pode conceber nem intuição em optar pela primeira alternativa sem que haja um questionamento
interna enquanto coincidência consigo próprio, nem intuição intelec- do sentido da alternativa. Por isto o criticismo é falsamente modesto:
tual enquanto captação de objeto para além da articulação intelectu- ele substitui a eternidade metafisica pelo absoluto lógico, que cumpre
al. Assim a percepção da exterioridade é início de conhecimento, a mesma função daquela enquanto fundamentação do conhecimen-
~ mas a percepção da interioridade não o é. A intuição não pode ser to. A relatividade não é mais do que a posse completa da certeza" que
'0 identificação com o objeto, material ou inteligível. O conhecimento
ç não pode "instalar-se" nem na materialidade nem no inteligível. O
Ii: conteúdo tem de ser radicalmente estranho. E como a mediação que 64. "E, necessariamente, se toda experiência possível tem assim garantida sua entra-
., leva o dado dessa estranheza ao reduto lógico que lhe conferirá fami- da nos quadros rígidos e já constituídos do nosso entendimento, é porque (a menos
que suponhamos uma harmonia preestabelecida) nosso entendimento organiza ele
liaridade intelectual é a forma, SÓ o fenômeno externo pode ser apre-
próprio a natureza e nela se reencontra como num espelho. Donde a pOSSibilidade da
ciência, que deverá toda a sua eficácia à sua relatividade, e a impossibilidade da
metafísica, uma vez que esta só poderá parodiar, sobre fantasmas de coisas, o traba-
63. "Só existe para ele uma experiência, e a inteligência domina toda a sua extensão" lho de organização conceitual que a ciência efetua a sério sobre relações" (Bergson,
(Bergson, E.c., p. 358). P.M.-37 - Int. à Met. - ed. Abril).

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I- INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 5. CRITICA DO M8-0DO FILOSOFlCO (111)

dantes era remetida ao horizonte indefinido da perfeição divina. Mas riência. uma ruptura derivada do pressuposto de que verdade teórica
entre a eternidade inapreensível por uma intuição concebida como e devir são incompatíveis. Mas no caso de Kant não há resultados
supra-intelectual. porque concebida em continuidade com a certeza metafísicos: há a demonstração de que a metafísica é incompatível
intelectual. e a intuição sensível que erige em forma a priori a voca- com a objetividade. precisamente porque é incompatível com a ex-
ção geométrica da inteligência e o caráter sinótico da percepção. há periência. O objeto da crítica bergsoniana. no caso de Kant. não é
lugar para o conhecimento que se instala no devir e intui no tempo nem o fundamento da atitude especulativa. como nos antigos. nem
real. Foi esse meio-termo que os pressupostos racionalistas de Kant a concepção das relações entre intuição intelectual e realidade. como
o impediram de ver. Como o tempo não pode ser considerado ponto nos clássicos. mas sim a própria redefinição de saber teórico. pois é
de partida para a apreensão de objetos. mas apenas forma de ligação nela que se situa a impossibilidade da metafísica. O paradigma car-
entre objetos vistos sucessivamente. ele tem de ser ou metafisicamen- tesiano exigia. para o conhecimento. que o objeto externo se colo-
te dado como eternidade. ou logicamente dado como forma de sín- casse à altura da interioridade. e isto fazia com que o conhecimento
tese. E assim a neutralização metafisica do devir - intuição intelec- ficasse suspenso à idealidade objetiva. Kant exige que todo conheci-
tual enquanto visão do estático pelo estático - é substituída pela mento esteja à altura da exterioridade suspensa à idealidade trans-
neutralização lógico-formal do devir - organização relativa do dado cendental. Bergson critica ambas as posições em nome de uma con-
aparente. Em Kant. portanto. mostra-se mais claramente do que nas tinuidade entre interioridade e exterioridade. continuidade esta que
outras filosofias - mas talvez porque as outras filosofias mostram- não atribui a nenhum dos dois termos valor absolutamente fundante.
-se. sob tal aspecto. mais claramente em Kant - a negação da tem- Ocorre que a exclusão da coisa-em-si como não acessível à intuição em
poralidade implicada na noção tradicional de intuição. O fato de ser Kant provoca. juntamente com a hegemonia da objetividade física. a
a intuição sensível em Kant a base da construção do objeto revela impossibilidade da metafísica. Criticar o fundamento transcendental
plenamente que o conhecimento é tanto mais perfeito quanto mais do conhecimento é ao mesmo tempo refutar esta impossibilidade.
o objeto for subtraído ao tempo. E esta característica se toma para Apenas isto terá de ser feito levando em conta a justeza da crítica kan-
I Bergson ainda mais patente quando os pós-kantianos. para retomarem tiana à concepção e ao uso dogmático da intuição intelectual. E aqui é
à intuição intelectual e construírem o conhecimento a partir dela. o ponto exato a partir do qual se deve entender o que significa uma
r vêem-se compelidos a reconstruir o devir e o dinamismo temporal a filosofia escapar à crítica kantiana: "As doutrinas que possuem um fun-
do de intuição escapam à crítica kantiana na exata medida em que são
partir da base lógica da apreensão direta do Absoluto. A reconstituição
i:' do devir é a resposta da filosofia transcendental à impossibilidade. intuitivas; (... )" (P.M.-224/a. 38). A frase beira o truísmo. mas isto mes-
decretada por Kant. de remeter o devir à verdade de uma eternidade mo é que é significativo: significa que a crítica kantiana da intuição
real e absoluta. intelectual não esgotou todas as possibilidades desta intuição; correla-
tivamente. a crítica da metafísica como teoria é a crítica daquilo que
O sentido da crítica da filosofia kantiana. no que se refere ao historicamente foi visto sempre como o fundamento e as coordenadas
I; problema da intuição. é diferente daquele que norteia a crítica berg- da teoria nos seus resultados e no seu modo de efetivar-se. Reencontra-
"ro
'~
soniana dos sistemas pré-críticos. E isto porque a reflexão kantiana mos um motivo fundamental da crítica bergsoniana de Kant: este acei-
tem na sua gênese a tomada de consciência do caráter aporético da ta sem questionar que o ideal tradicional de conhecimento metafísico
• metafisica enquanto vinculada à intuição intelectual. disto resultan- esgota a possibilidade da metafísica; portanto a metafísica futura
1.1 r do a interdição da metafisica como conhecimento teórico. A crítica morre na explicitação dos seus prolegómenos6S • E por isto também a
'11
1
bergsoniana de Kant. a partir daí. não tem a função de mostrar os
paradoxos a que o pensamento chega devido a uma inadequação
metódica à experiência. mas visa antes de tudo restaurar a possibi- 65. "C .. ) se o conhecimento metafísico é o que Kant pretendeu que fosse, ele se
lidade da metafísica. No caso dos sistemas anteriores. tratava-se de reduz à igualdade de pOSSibilidades entre duas atitudes opostas do espírito diante de
todos os grandes problemas; suas manifestações são outras tantas opções arbitrárias,
mostrar que os resultados metafisicos obtidos por via da neutralização sempre efêmeras, entre duas soluções formuladas virtualmente desde toda a eternida-
do devir supunham uma relação equivocada entre intuição e expe- de: ela vive e morre de antinomias" (Bergson, P.M.-37 a - Int. à Met. - Abril).

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1- INTUlÇAo E MÉTODO FILOSÓFICO 5. CRiTICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (III)

restauração bergsoniana da possibilidade da metafisica é na verdade zam a representação de forma relativa. O principal resultado do exa-
uma reinstauração da metafisica. Esta reinstauração parte precisa- me kantiano das condições de representação foi mostrar a impossi-
mente da crítica da ruptura absoluta entre intuição sensível e intui- bilidade da intuição intelectual; este exame tem a sua origem refle-
ção intelectual. xiva na constatação do caráter antinômico da metafisica dogmática.
Mas Kant entende por metafisica precisamente esta modalidade do
Isto porque a experiência no seu sentido originário é experiência pensamento que resulta em antinomias. Sendo assim, alijou desta
integral; trata-se de encontrar esta origem para além ou aquém do modalidade de pensamento a verdade teórica e manteve as relações
significado pragmático que é a experiência organizada em função da efetuadas pelo entendimento no âmbito da garantia lógico-transcen-
percepção e da inteligência. Por isto a crítica da experiência em Kant dental. Ou seja, reduziu as pretensões de Platão àquelas de Galileu e
é vista por Bergson como uma elucidação das condições da repre- fez das condições gnosiológicas da fisica newtoniana a instância auto-
sentação pragmática, cuja transposição em teoria Kant herda, sem -suficiente do conhecimento, fazendo com que o problema do fun-
questionar, dos seus predecessores. A relatividade da apreensão in- damento, no nível da teoria, se resolvesse em termos da transcen-
telectual do mundo é legítima no plano pragmático, e neste sentido dentalidade do entendimento e não da transcendência divina. Mas
Kant tem razão em denunciar no dogmatismo a confusão entre O reduzir desta maneira o horizonte clássico, herdeiro de Platão, é real-
relativo e o absoluto. Mas precisamente a relatividade do conheci- mente criticar os fundamentos da pretensão de conhecer, ou é tor-
mento intelectual deveria ter alertado Kant para o caráter restrito nar esta pretensão compatível com o desmoronamento do sonho da
deste tipo de experiência, o que o teria levado a ver na discursividade mathesis universalis'r' A resposta a esta pergunta deve ser procurada
do entendimento uma modalidade de conhecimento e não a única não apenas na delimitação rígida da teoria na Analítica, mas também
possível. Assim ele não teria concebido a intuição intelectual como no exame dos mecanismos reguladores da ciência e no ideal arqui-
operação instantânea do entendimento, espécie de discursividade tetônico do saber descritos na Dialética. Em todo caso, não seria
condensada, mas tê-Ia-ia considerado como uma outra faculdade de talvez descrever de forma totalmente inexata o kantismo dizer que,
conhecimento. Por isto a crítica da inteligência como órgão especu- nele, o filósofo platoniza com os pés no chão e o olhar disciplinada-
lativo inclui a crítica do cri ti cismo como uma de suas mais acabadas mente posto na horizontalidade da expansão fragmentária do saber
figurações históricas. É apenas ilusoriamente que a apreensão da teórico, dispensando-se de afirmar teoricamente os pressupostos
estrutura da consciência transcendental nos fornece, definitivamen- transcendentes que ele transformou em condições transcendentais.
te esgotadas, as possibilidades de apreensão da verdade teórica66 , na "Modelar toda experiência possível em moldes preexistentes" (P.M.-
medida em que Kant desenvolve "até as últimas conseqüências", 37): tal é a definição bergsoniana de platonizar. E ela recobre então
r~
porém não questiona, a ilusão natural de que o conhecimento "pos- o inatismo, as disposições e as idealidades, ou seja, configura o eixo
sível" é articulação discursiva. da filosofia moderna, cujas diferenças internas não se instituíram
"
I: A relação que Bergson vê entre os clássicos e Kant é mais de nunca como rupturas com este pressuposto básico.
'IIr::: redução das pretensões do entendimento do que de crítica dessas Assim, como se vê, a interdição kantiana da metafisica é estrei-
I! pretensões. É bem verdade que o exame das condições de represen- tamente solidária da metafisica que Kant conserva em negativo. A
•" tação impede Kant de continuar se movendo no âmbito da matemá-
tica universal. O conhecimento não está mais suspenso ao realismo
lI! das idéias ou à completude real das relações; ele agora está depen- 67. «A matemática universal é o que se toma o mundo das idéias quando supomos
dente de "funções de unidade" lógico-transcendentais que organi- que a Idéia consiste numa relação e numa lei, e não mais numa coisa. Kant tomou por

li' realidade este sonho de alguns mósofos modernos; ainda mais, acreditou que todo
conhecimento científico seria apenas um fragmento separado, ou melhor, um sinal
Cf. M. Barthélemy~Madaule, Bergson Adversaire de Kant, PUF, 1966: "Kant está antecipador da matemática universal. A partir daí a principal tarefa da crítica consistia
no limiar de um mundo que perdeu o eterno e que ainda não conquistou o tem- em fundar esta matemática, isto é, em determinar o que deveria ser a inteligência e o
po" (p. 63). que deveria ser o objeto para que uma matemática ininterrupta pudesse ligá-los um ao
66. Cf. M. Barthélemy-Madaule, ob. cit., p. 85. outro" (Bergson, P.M.-36-7 - lnt. à Met. - Abril).

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I- INTUlçAO E MtroOO FILOSÓFICO 5. CRITICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (III)

impossibilidade da intuição intelectual é estreitamente solidária da perdeu o Mundo das Idéias na positividade da sua transcendência e
concepção do sujeito que intui e do objeto intuído, e o processo que, ainda sob o fascínio do que já não possui, trata de construir um
deconstruído nas três seções da Dialética tem o valor de crítica his- sucedâneo mais compatível com a presença de uma aparência que já
tórica mas não da desmistificação da gênese do conhecimento. Por não pode mais ser simplesmente superada. A atitude teórica não pode
isto a critica da intuição vale para a intuição de índole platonizante: mais se traduzir na visão direta, ainda que intermitente, da verdade
Kant não podia conceber outra, visto que para ele a índole platônica no plano supra-sensível, ou na referência a um objeto inteligível in-
é a essência da metafisica, como de todo conhecimento. Por isto ele tuitiva ou analiticamente estabelecido. A atitude teórica é uma cons-
acreditou estabelecer fundamentos mais sólidos para a ciência quan- trução racional que depende da atividade do entendimento; ela é
do a tornou consciente do seu platonismo e, assim, relativa, ao mes- elaboração, mais que contemplação. Se a filosofia de Kant exprime
mo tempo em que mostrava o caráter artificioso do conhecimento dessa maneira, no seu pleno sentido, o novo estatuto do sujeito pe-
metafísico que se quer não-relativo. A crítica kantiana da metafisica rante a natureza, se o sujeito é agora produtor e transformador e a
e do seu instrumento, a intuição intelectual, é o prolegômeno mais explicação do mundo uma elaboração construtiva na medida do
útil para entender-se a proposta bergsoniana de conhecimento me- sujeito, a verdade continua no entanto totalmente dependente da
tafisico e da intuição como oposta à inteligência. A visão do caráter subtração das representações do devir. Diz Bergson que Kant subs-
prévio e negativo dessa crítica nos deixa em condições de assimilar tituiu a condição necessária da verdade entre os clássicos pela condi-
melhor a especificidade e o alcance da deconstrução bergsoniana da ção suficiente de uma verdade concebida como elaboração humana
História da Filosofia na medida mesma em que tal deconstrução nos (E.C.-356). Mas se a verdade perdeu o lugar transcendente que ocu-
mostra o kantismo, no seu subsolo, fiel aos procedimentos cujos pava em relação ao intelecto humano, a transcendência em relação
resultados critica. E dessa forma pode parecer bem menos gratuita a ao devir permaneceu da mesma maneira: a verdade não é divina
afirmação de Bergson de que toda filosofia intuitiva escapa da crítica porque o homem a constitui, mas a relação do aparato transcenden-
kantiana na exata medida em que é intuitiva. Porque o que está ex- tal ao empírico repete a forma da transcendência, o lógico tendo de
presso nesta frase é que os sistemas históricos criticados por Kant alguma maneira assumido o lugar do teológico. Podemos por conse-
sujeitam-se à crítica na exata medida em que não são verdadeira- qüência falar de um sentido transcendente da verdade em Kant, se
mente intuitivos. A crítica kantiana atinge o alvo e destrói a metafi- com isso entendermos a desvinculação entre teoria e devir. A conti-
sica, mas há um secreto acordo que permite o combate: é precisa- nuidade que Bergson vê entre Kant e os seus predecessores fica sem
mente o inimigo colocar-se em posição favorável para o fogo das dúvida difícil de aceitar diante da interpretação mais corrente que vê
baterias da crítica. Uma filosofia que veja na intuição a alternativa no criticismo a instauração de uma forma de reflexão. Da perspecti-
para o conhecimento metafísico a partir de uma consideração gené- va bergsoniana, no entanto, esta mudança ilude pelo fato de que a
tica do conhecimento intelectual e de sua inadequação ao objeto crítica da metafisica histórica esconde a metafisica implícita na pró-
metafísico escapa ao confronto porque não se move no terreno co- pria definição de racionalidade, que Kant não questiona. É neste
mum: a discursividade, a índole platônica do conhecimento. sentido que a crítica aparece como redução: a destruição da metafí-
sica deixa subsistir o que de metafísica havia na própria estrutura da
É sintomático que o real na sua efetividade esteja ausente tanto relação sujeito-objeto, dimensionada por Kant aos limites da intui-
da parte positiva como da parte negativa do kantismo. Na metafisica ção sensível (E.C.-357).
não há material intuitivo com o qual possamos construir o conheci-
mento, aplicando a este material as formas do entendimento, como A reinstauração da intuição como instrumento da metafisica passa
ocorre na ciência. Isto significa que o conhecimento não é contato pela crítica genética da estrutura sujeito-objeto, porque é isto que vai
com a experiência, mas construção dela: Kant denuncia aqueles que nos impedir de continuar vendo na intuição a inteligibilidade perfei-
constroem apenas no nível da forma, sem a prévia apreensão do ta, que seria uma síntese orgânica de entendimento e percepção.
conteúdo. Essa meia-fidelidade ao real, expressa na dupla origem do Mas para que isto seja possível é necessário que não procuremos
conhecimento, é que, para Bergson, faz de Kant um platônico que mais a todo custo captar a substancialidade do real como coisa, ou
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I- INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO
6. CRITICA DA IDÉIA GERAL - O CONTORNO EXTERIOR DA INTUIÇÃO

objeto definitivamente estruturado diante do sujeito. É necessário de generalidade). A critica genética dará conta das duas perspectivas
que invertamos a maneira de pensar que vê na temporalidade o se questionar ao mesmo tempo o modo de operar da inteligência que
obstáculo maior para a objetividade. Trata-se de entender que o tem- resulta na generalização e a razão dela, tanto no plano da lógica
po não é condição prévia a ser tematizada pela reflexão transcen- como no nível da estrutura do real".
dental como forma de conhecimento: o conhecimento se dá no tem-
po e a objetividade (a verdade) tem de ser pensada como compatível A primeira questão é em que instância buscar o fundamento da
com o fluxo imanente do devir. A reflexão sobre o kantismo fornece,
pois, ainda que em contrapartida, uma visão do alcance que deverá
idéia geral. Se considerarmos a questão a partir unicamente do papel
que a idéia geral desempenha no conhecimento, ela aparecerá como
,I
ter a "inversão da marcha habitual do pensamento" que Bergson
proporá como condição para o exercício da intuição.
o próprio fundamento, ao menos no nível lógico. Mas se estender-
mos este questionamento até a razão do estatuto que possui a idéia 'I
geral, encontraremos a instância do que poderíamos chamar função
noética de generalização. A instância noética não é simplesmente, no
6. CRÍTICA DA IDÉIA GERAL - caso, a subjetividade que generaliza no sentido do ato mental da
O CONTORNO EXTERIOR DA INTUIÇÃO generalização. É a "faculdade de conceber ou de perceber generali-
dades" entendida como função psicológica que serve à apreensão da
A questão da organização como procedimento gnosiológico faz realidade tal como a inteligência e a percepção a estruturam. Isto sig-
com que o problema das idéias gerais se ponha "por ocasião de todo nifica que a representação enquanto apreensão subjetiva do real é
problema filosófico", na medida em que a estrutura do conhecimen- guiada por certos critérios cujos fundamentos não se encontram
to, para Bergson, é sempre pensada com referência à questão dos numa instância lógico-objetiva. Todas as faculdades psicológicas são
gêneros e das leis68 • A problemática das idéias gerais se confunde, em primeiro lugar faculdades do ser vivo, que servem portanto a um
num certo nível, com a própria questão do fundamento do conheci- desígnio natural: a manutenção deste ser em estado de interação
mento. Este cruzamento em Bergson constitui um tema critico den- satisfatória com o seu meio. O plano biológico, e não o lógico, é que
tro do problema do conhecimento: o pressuposto da generalização fornece a razão da presença em nós da faculdade de generalizar, que
como procedimento gnosiológico faz com que as idéias gerais adqui- portanto tem primeiramente uma função não-te6rica, encontrada
ram caráter fundante, na medida em que se põem como fatores de tanto no homem como em outros animais. A transposição da facul-
inteligibilidade do real. A crítica genética se dá então por tarefa a dade natural em ato puro do espírito oculta a totalidade orgânica do
elucidação do próprio fundamento da idéia geral. Este fundamento homem, a naturalização do espírito normalmente absorvido na
pode ser visto sob dois aspectos: ontológico e operatório. Do primei- matéria e exercendo primeiramente apenas funções necessárias à
ro ponto de vista, entende-se que, sendo a realidade constituída a interação entre o ser humano e o mundo que o rodeia. O vicio das
partir de um Princípio, o conhecimento retoma a ordem do serquan- teorias do conhecimento foi sempre o de estabelecer diretamente a
do estabelece real e logicamente as generalidades de que deriva o estrutura dos procedimentos gnosiológicos como se o espírito fosse
particular, ainda que este seja ponto de partida na ordem do conhe- separado ou separável do contexto material em que se encontra, das
cer. Do ponto de vista operatório, entende-se que a representação da necessidades inerentes ao ser vivo (P.M.-128, Abril). O fundamento,
realidade fundamenta-se na representação de generalidades que per- portanto, encontra-se no nível pragmático. A subjetividade lógica é
mite ao conhecimento estabelecer uma ordem tanto no sentido ho- transfiguração da estrutura prática de relacionamento com o real. O
rizontal (agrupamentos de individuos sob uma mesma representa- estabelecimento do fundamento nesta instância dissolve a pretensa
ção) como vertical (hierarquia das representações a partir do critério autonomia do ato de conhecer no nível da inteligência. Faz-nos ver

68. ~( ... ) a questão da origem e do valor das idéias gerais se põe por ocasião de todo 69. "mas a questão importante para o filósofo é saber através de sua operação, de-
problema fIlosófico, e reclama em cada caso uma solução particular" (Bergson, P.M.- vido a que razão, e sobretudo em virtude de que estrutura do real as coisas podem ser
128, Abril). assim agrupadas (... )" (Bergson, P.M.- 128, Abril).

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I- INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 6. CRfTlCA DA IDÉlA GERAL - o CONTORNO EXTERIOR DA INTUIÇÃO

também que não há sentido em atribuir diretamente à generalização de semelhanças como representação vivida (P.M.-129, Abril). A refle-
enquanto procedimento de ordenação do real algum fundamento xão e a intencionalidade não estão presentes neste plano da genera-
ontológico, a que este procedimento estaria ligado por identificação lização, já que ele é a instância originariamente produtora da gene-
ou adequação. É pela via do encontro do fundamento biológico das ralidade, e nesse nível tanto o homem como o animal vivenciam
formas de ordenação do real que Bergson vem a concordar com Kant idêntico processo. Entre esse nível e a idéia geral consciente existe a
acerca da relatividade da representação e da estruturação intelectual camada intermediária das generalizações, fruto do hábito, portanto
do mundo. Se são as "exigências fundamentais da vida" os critérios não praticadas sempre e totalmente de maneira intencional e refle-
da generalização como procedimento ordenador, cabe perguntar, em tida, na medida em que o hábito é um acréscimo do instinto.
relação ao problema do fundamento ontológico, pelo possível cará- Mas o que caracteriza verdadeiramente a generalização no caso
ter artificial da generalização. Cabe perguntar se as necessidades do homem é a função da consciência que realiza deliberadamente
vitais, critérios de articulação, correspondem à articulação da reali- extrações de semelhança na realidade como parte da articulação geral
dade em si. A faculdade de generalização, como todas as demais, não a que submetemos o que está no universo da percepção. A intencio-
existe gratuitamente; não existe apenas em função do luxo tardio do nalidade refletida se acrescenta então à base comum da generaliza-
conhecimento puro. É na sua instância originariamente pragmática ção. É importante notar que esta base comum são as necessidades
que devemos defini-la, se queremos traçar a gênese da apreensão do de sobrevivência que impõem uma relação utilitária com o real: o
mundo através das generalidades. A critica genética procura captar o real em si não fornece fundamento algum para a generalização. Por
seu objeto, metodicamente, numa instância anterior à sua aplicação isso o gênero é sempre artificial e instituído em função da interação
no conhecimento dito teórico. necessária entre percepção e ação70 • A artificialidade do gênero pos-
A gênese da idéia geral contém pelo menos dois momentos: 1) sibilita a liberdade de generalizar para além dos critérios estritamen-
extração automática de semelhanças; 2) idéia geral consciente. No te pragmáticos (P.M.-129, Abril). A finalidade da percepção prefigura
primeiro momento, constata-se que a generalização é característica a generalização: na verdade toda percepção é generalização nascen-
de todo ser vivo, mesmo os seres elementares e primitivos como o te. A generalização é primeiramente utilitária. A partir daí, da toma-
próprio tecido do ser vivo, porque ela é a atividade que permite que da de consciência do poder de generalizar, esta atividade se estende
o ser utilize os elementos do meio ambiente para sobreviver. Existe para muito além das coordenadas da intenção pragmática sujeito-
uma classificação e seleção dos materiais disponíveis à volta, e seu -mundo: ela se torna mecanismo de interação do sujeito com o ob-
critério é a satisfação de necessidades. Para que tal ocorra é neces- jeto, torna-se instrumento de conhecimento. Isto acontece ainda a
sário que haja um reconhecimento de propriedades comuns a várias partir da "identidade de reações" a diferentes estímulos que organiza
substâncias, o isolamento destas propriedades de outras no objeto e o plano de ação sobre a realidade. Esta identidade de reações é a
a assimilação daquelas a partir de um critério geral que as torna base sobre a qual se construirá o ideal de unidade do saber que vai
semelhantes em função de satisfazerem certas necessidades. Neste nortear a especulação, o que será feito através do procedimento a
caso, a total inerência do processo de generalização ao próprio pro- que Bergson chama introdução de semelhança. Este procedimento,
antes de ser um procedimento lógico, é algo que ocorre imediata-
cesso vital faz com que a generalização seja vivida e não pensada,
mente no nível da base biológica da generalização. O que nos leva a
uma vez que o animal não reflete sobre o próprio ato de abstrair nem
acentuar mais uma vez a autonomia deste processo em relação à
procura conscientemente realizá-lo. A representação da semelhança
realidade mesma e o caráter artificial da articulação assim praticada.
extraída provavelmente não se constitui numa representação inde-
pendente: ela se consome nos .elementos agrupados a partir dela.
Quando passamos ao homem, não constatamos outro processo de
70. "A semelhança entre coisas ou estados que declaramos perceber é, antes de mais
generalização; o que existe é o mesmo processo ao qual se acrescen- nada, a propriedade, comum a estes estados ou a estas coisas, de obter do nosso
tam a reflexão e a intencionalidade. Tanto é assim que, na origem da corpo a mesma relação, de fazê-lo esboçar a mesma atitude ou começar os mesmos
generalização encontramos, também no caso do homem, a extração movimentos." (Bergson, P.M.-129, Abril).

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I - INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 6. CRITICA DA IDJ!IA GERAL - o CONTORNO EXTERIOR DA INTUIÇAO

No nível do conhecimento dito "desinteressado", o procedimento de mas. sem dúvida. correspondem à essência das coisas" (P.M.-I30.
generalização passa a constituir a característica talvez mais marcan- Abril). Haveria. então. semelhanças inerentes às coisas? E seria a ge-
te da instância gnosiológica a que chamamos o sujeito. É aqui que neralização. no seu grau artificial, um prolongamento destas? Quan-
aparece o caráter propriamente espiritual da generalização. Enquan- do vimos a generalização como introdução de semelhanças desde o
to procedimento espontâneo, ela é atitude material: as reações, na nível mais primário de relacionamento com o meio até a mais elabo-
medida em que são movimentos ou esboços de movimentos, intro- rada teoria. julgamos ter encontrado o verdadeiro caráter da genera-
duzem no real semelhanças provenientes da identidade de reações, lização: a artificialidade, o fato de ser ela um ato que organiza o real.
e os hábitos criam quadros materiais em que se coordenam analogia É preciso esclarecer em que sentido se pode dizer que a considera-
de estímulos e identidade de reações. É claro que a linguagem de- ção de semelhanças. num certo nível. é um procedimento mais de
sempenha aí papel importante, na medida em que cristaliza a refe- acordo com as próprias coisas. E isto é tanto mais importante quanto
rência do comportamento ao real. Na linguagem estão os símbolos Bergson afirma que, de certa forma. as generalizações artificiais de-
que condensam a diversidade e que permitem que o real seja referi- pendem da constatação dessa espécie de semelhança que certas
do segundo a identidade de reações que provoca. Mas por ser uma coisas possuiriam naturalmente (P.M.-130, Abril).
referência geral, a palavra logo obscurece nela mesma a pluralidade Vimos mais atrás que. num certo sentido, tudo é diferente e. num
dos seus significados originários, e passamos a entender a multipli- outro, tudo é semelhante. O que nos permite dizer que as coisas são
cidade do que nela é referido quase como se fosse uma coisa, pas- semelhantes? Com relação aos seres organizados, primeiramente, é
sando a inexistir na prática a diferença entre a unidade do termo e a negligência da diferença que possibilita a introdução da semelhan-
a pluralidade do real. Esta independência da palavra é que a torna o ça e sua consideração como critério classificatório. E estamos bem à
quadro ideal no qual se insere a generalização refletida e deliberada. vontade para negligenciar diferenças porque a evolução trabalha len-
Quando a generalização se torna ato de reflexão, ela encontra um tamente, ao menos na escala do tempo humano. Esta lentidão per-
quadro espiritual pronto para abrigá-la: a palavra, cuja relação origi- mite que. com relativa facilidade. agrupemos os seres pela continui-
nariamente múltipla com as coisas já foi esquecida, e que assim se dade e deixemos de lado a transformação que. no entanto. incessan-
torna como que o conteúdo inteligível de um ato de pensamento temente ocorre7l • Como esta se dá de maneira lenta e nunca ao preço
(P.M.-130, Abril). É assim que o resultado da generalização aparece de um desaparecimento completo de propriedades, o surgimento do
não só como desvinculado do empírico, mas ainda como possuindo novo se torna de alguma maneira compatível com a manutenção do
força geradora, real ou logicamente, do devir. Todo particular apare- antigo. de modo que podemos sempre considerar características
ce como dependendo, implicitamente, de algo geral que o condiciona, comuns a seres diferentes. ou seja. considerar o que se mantém e não
que lhe confere realidade ou, ao menos, valor lógico de verdade. o que se transforma. É dessa maneira que nossas classificações. num
Assim, toda teoria do conhecimento que não considera a vinculação certo sentido, estarão fundadas na "realidade mesma" (P.M.-I3I.
entre o vital e o teórico, no plano da inteligência, está fadada a tomar Abril) na medida em que escolhermos para critério classificatório a
por origem algo que na verdade é produto. identidade parcial daquilo que, por outro lado. difere. Ora. se no
Mas se, na origem, coisas diferentes provocaram reações idênti- mundo dos seres vivos podemos considerar tais semelhanças. no nível
cas, é porque foi possível agrupá-las por semelhança e esta possibi- do inorganizado com muito maior razão aparecerá a identidade das
lidade se traduziu no resultado positivo, pragmaticamente falando,
do agrupamento assim feito. A introdução de semelhança é procedi- 71. "( ... ) a vida trabalha como se ela própria possuísse idéias gerais, de gênero e es-
mento válido no plano vital porque a natureza, de certa forma, per- pécie, como se ela seguisse planos de estruturas em número limitado, como se ela hou-
mite tal introdução. Não é por outra razão que a generalização é vesse instituído propriedades gerais, enfim, como se ela houvesse desejado, pelo duplo
primeiramente um ato espontâneo. É isto que leva Bergson a afir- efeito da transmissão hereditária (pelo que é inato) e da transformação mais ou menos
lenta, dispor os seres vivos em série hierárquica. ao longo de uma escala em que as
mar. contrariando aparentemente o caráter artificial da generaliza- semelhanças entre indivíduos são tanto mais numerosas quanto mais alto nos elevar-
ção anteriormente enunciado. que "entre estas semelhanças. algu- mos na escala" (Bergson, P.M.-130-1, Abril).

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1- INTUIÇÃO E MÉTODO FlLOSOFlCO 6. CRíTICA DA IDÉIA GERAL - O CONTORNO EXTERIOR DA INTUIÇÃO

qualidades físicas e dos elementos que entram nas substâncias com- elementares: nossa ação seria impossível. Por isto a percepção con-
postas, quando não entre os próprios compostos. E isto ocorre na densa e generaliza: segundo Bergson, o progresso do conhecimento
medida em que o que importa aí é mais a relação dos elementos em da matéria nos seus elementos tende a demonstrar cada vez mais
presença do que as características intrínsecas de cada um. É certa que percebemos em geral, percebemos na escala da nossa duração e
relação entre o hidrogênio e o oxigênio que produz a água; o peso e não na escala das próprias coisas. A captação de determinada fre-
o calor são forças físicas que abstraímos facilmente da variedade de qüência é a "ordem de grandeza" da percepção: por meio dela ocor-
fenômenos em que aparecem. Mesmo uma qualidade como o ver- re a condensação dos eventos elementares que me fornece os obje-
melho pode ser considerada idêntica a si mesma nos vários objetos tos na consistência em que os percebo. A materialidade não é outra
em que aparece. O mesmo pode ocorrer com o som. E a extensão coisa senão o processo de realização de todas as freqüências possí-
como qualidade geométrica é sempre a mesma nas diversas configu- veis; a materialidade percebida é a captação da freqüência mais ade-
rações do espaço. De modo que, no plano estritamente físico, ultra- quada para a ação sobre o real. A identidade, no caso, é a captação
passamos rapidamente as semelhanças na direção da identidade sempre da mesma freqüência. A estrutura do mundo percebido é a
matemática. E na medida em que o ideal do conhecimento da ma- estrutura do mundo em si porque a freqüência captada é uma das
téria é a resolução do químico no físico e deste no matemático, a freqüências realizadas. Outras poderiam ser percebidas, formando
identidade numérica aparece como sendo o horizonte da generaliza- assim outros mundos percebidos. Trata-se de diferentes freqüências
ção (P.M.-131, Abril). numéricas que estão por trás de diferentes percepções qualitativas.
Existe uma "matemática imanente às coisas" que é responsável pela
Mas mesmo no plano dos eventos físicos considerados idênticos,
estrutura qualitativa específica da nossa percepção (P.M.-133, Abril).
é possível ver que esta identidade provém mais de nós do que das
coisas. Na verdade, tornamos possível esta identidade pela captação Uma vez elucidadas as generalidades de cunho biológico e físico,
seletiva, no nível da percepção, de qualidades idênticas em objetos ficamos em condições de entender as idéias gerais criadas propria-
ou eventos diversos. No caso do exemplo da cor, que não é outra mente pela especulação. Nestas o essencial é ainda o critério prag-
coisa senão condensação de freqüência, a identidade se dá porque mático: serão criadas idéias gerais que favoreçam a ação e a sociabi-
captamos sempre a mesma freqüência, entre as muitas que ocorrem, lidade. Elas são gêneros que definem o esquema geral de utensílios
nos diversos objetos com os quais se relaciona o fenômeno da cor. A e procedimentos elaborados a partir do interesse sociobiológico. Mas
nossa percepção recolhe essas freqüências, correspondentes a deter- a reflexão acaba por nos fornecer algo como a "idéia geral da idéia
minadas cores, porque são elas que permitem precisamente que geral". E com isso elaboramos idéias gerais no âmbito da especula-
percebamos a cor; e como perceber esta qualidade é uma forma de ção pura ou mesmo "gratuitamente". No entanto, o percurso crítico
identificar objetos, a estrutura perceptiva atua seletivamente no cam- mostra que a elevação e o desinteresse dessas idéias fundamentam-
po das freqüências, organizando a visão da forma mais conveniente -se na base biológica que vimos ser o estrato originário da generali-
para o reconhecimento e a ação. Lembremos que perceber é prepa- zação. O último tipo de idéias gerais que mencionamos não possui a
rar-se para agir. O critério da percepção é a ação sobre o objeto referência objetiva do ponto de vista biológico e físico, mas benefi-
percebido. A forma de perceber, que inclui a identidade de proprie- cia-se desta referência, e o caráter desinteressado que aparenta pos-
dades em objetos diversos, responde à necessidade pragmática de suir lhe dá um valor quase absoluto, valor este que não é mais do que
relacionamento satisfatório com as coisas". O real não pode dissol- a transfiguração do valor pragmático que a generalização originaria-
ver-se diante de nós na multiplicidade complexa dos seus eventos mente possui.
Para avaliar o papel que a generalização desempenhou ao longo
da história das teorias do conhecimento, Bergson nos remete a uma
72. "( ... ) é esta ação virtual que extrai da matéria nossas percepções reais, informa-
ções de que temos necessidade para nos guiar, condensações, num instante da nossa comparação entre Aristóteles e Galileu. Já vimos como para os anti-
duração, de milhares, de milhões, de trilhões de eventos, que se realizam na duração, gos a realidade podia ser compreendida como um sistema de gêne-
incrivelmente menos tensa, das coisas (... )" (Bergson, P.M.-132, Abril). ros que não é outra coisa senão a expressão da ordem natural. Assim

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I- INTUIÇÃO E MÉTODO FILQSOFICQ 6. CRITICA DA IDÉIA GERAL - O CONTORNO EXTERIOR DA INTUIÇÃO

a posição dos objetos nesta ordem é função do gênero a que perten- jetividade no nível da inteligência". A escala das necessidades huma-
cem". Assim a complexidade genérica é a contrapartida da conside- nas é a escala do tempo "lastreado de espacialidade" (E.C.-231) no
ração do objeto físico de maneira análoga ao ser vivo: em vez de qual toda a realidade aparece como o complexo relacional da reali-
relação temos famílias de objetos que se definem pelo gênero a que dade física percebida. É, portanto, necessário distinguir as duas or-
pertencem e cujo comportamento fisico se subordina ao que está dens, a física e a vital: não para reduzir a primeira à segunda no afã
definido no gênero. Se os antigos remetiam as leis aos gêneros, os de estabelecer uma totalidade única ou um objeto em geral, mas para
modernos remetem os gêneros às leis, de forma que a ordem natural criar condições de, vinculando a estrutura do conhecimento à evolu-
se torna um complexo de relações entre coisas ou entre fatos. O que ção da vida, coincidir, por um procedimento de engendramento pelo
subjaz às duas concepções é a idéia de uma ciência una e integral, pensamento, com o processo criador pelo qual a realidade se faz
que organiza o real ou em gêneros ou em leis. Apenas, quando o real enquanto geração de diferenças numa temporalidade heterogênea e
é organizado em leis - complexo de relações - e a posição dos fluente. Somos vitimas de uma ambigüidade inevitável quando fala-
objetos na ordem cósmica deixa de ser concebida em função da es- mos do tempo humano. A temporalidade na qual a inteligência se
sência que os vincula a um gênero, a ciência torna-se relativa, pois insere para satisfazer as necessidades humanas é um tempo criado
somente considera as posições dos objetos uns em relação aos ou- por ela mesma a partir da estruturação do real pela percepção. Mas
tros a partir de variáveis que definem a constância das relações. Uma a descoberta da especificidade da consciência é também o desvela-
vez esse tipo de conhecimento instaurado como único possível, a mento da temporalidade verdadeira, a princípio velada pela percep-
generalização efetuada na instância a que antes chamamos vital ou ção. De modo que o problema da origem do conhecimento deve ser
biológica será concebida também como relação de caracteres toma- considerado de duas maneiras. Há uma origem do conhecimento
dos como variáveis, o que introduz um elemento de convenção na
esfera da consideração do ser natural. Assim como os antigos iden-
que é a percepção: a partir dela prolongamos a vocação pragmática
do "eu superficial" e constituímos a subjetividade epistemológica que
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)
tificavam o fisico ao vital, os modernos reduzem o vital ao físico (E.c.- opera generalizações com a finalidade de estruturar simbolicamente ;.:
231). O pressuposto de uma única ordem faz com que o conheci- o real para que possamos implementar esquemas de ações sobre ele.
mento obedeça a um único tipo de generalização: complexidade Mas se a reflexão inverte esta projeção externa da subjetividade e
genérica ou complexidade de leis. capta a duração da consciência no nível do "eu profundo", encontra-
Tudo isto significa que, no limite, o conhecimento encontra o mos a coincidência do eu consigo próprio também como uma ori-
objeto feito: disto já se encarregou a instância sociobiológica, que é gem do conhecimento. A partir desta origem podemos considerar a
a origem da generalização. A reinstauração da metafísica supõe que duração psicológica na sua profundidade e especificidade como in-
descartemos este pensamento conceitual que parte de uma visão pré- dicação de uma outra forma de considerar o dado. Não mais O dado
-teórica do objeto. A filosofia, na medida em que não se quer mais organizado no âmbito pragmático da percepção e do intelecto, mas
um produto da vocação pragmática e discursiva da inteligência, pre- o dado imediato. A consciência é forma de acesso à temporalidade
cisa se dar o objeto de uma outra forma, de uma forma que não se originária. É O tempo que gera realidades. Coincidir com esta tempo-
subordine, enfim, às necessidades humanas que condicionam a ob- ralidade originária é adotar o "pensamento gerador" (P.M.-135) que
põe a reflexão no compasso do processo realizador. A primeira con-
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73. Por isto a física aristotélica está povoada de conceitos qualitativos tais como
movimento natural, movimento violento, alto, baixo, lugar natural etc., cada um deles 74. Esta filosofia (... ) desviar-se-á freqüentemente da visão social do objeto ufeito";
exprimindo uma certa delimitação genérica que nos dá a especificidade do objeto em ela nos convidará a participar em espírito do ato que o faz. Com efeito, é propriamen-
questão. "( ... ) a lei física em virtude da qual a pedra cai, exprime para ele (Aristóteles) te humano o trabalho de um pensamento individual que aceita, tal qual, sua inserção
que a pedra retoma o "lugar natural" de todas as pedras, isto é, a terra. A pedra, a seus no pensamento social, e que utiliza idéias preexistentes como outro utensílio forne-
olhos, não é totalmente pedra enquanto não se encontrar no seu lugar normal; reto- cido pela comunidade. Mas já existe qualquer coisa de quase divino no esforço, por
mando este lugar, ela visa se completar, como um ser que amadurece, e realizar assim mais insignificante que seja, de um espírito que se re-insere "no elã vital, gerador das
plenamente a essência do gênero pedra" (Bergson, E.C-229). sociedades que são geradoras de idéias" (Bergson, P.M.-133-4, Abril).

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I- INTUIÇÃO E M~TODO FIWSóFlCO 7. FILOSOFIA E METÂFORA (I)

seqüência desta reflexão invertida é ainda de ordem crítica: consiste 7. FILOSOFIA E METÁFORA (I)
em assinalar a presença de ilusões naturais na especulação. A gene-
ralização como posição de anterioridades lógicas que condicionam a o problema da simbolização como característica da apreensão
apreensão da ordem natural é uma dessas ilusões. A generalização inteligente do mundo constitui a base necessária para pensar a rela-
crescente termina por condicionar a apreensão do ser àquilo que ção entre método filosófico e imagem. Sendo o pressuposto do co-
não é: dessa maneira foi que surgiu a pergunta especulativa pela nhecimento analítico a divisão calcada no espaço e que possibilita
possibilidade da existência em geral que traz em si a resposta para- decomposição e recomposição conceituais, a questão do método fi-
doxal de que o ser foi como que extraído do nada (P.M.-134, Abril). losófico como possibilidade do conhecimento não simbólico nos
Como se a plenitude do ser precisasse de uma razão fora dela mes- envia à procura de procedimentos cognitivos que tendam a eliminar
ma, e que só pode então ser o nada, que assim ganha uma anterio- a mediação do conceito e proporcionar um conhecimento direto. A
ridade de direito em relação ao ser. Mas se abandonamos a busca de intuição é este conhecimento direto, mas o problema que se põe,
conceitos cada vez mais abrangentes e que nos conduzem ao nada precisamente porque a intuição é conhecimento, é o da expressão da
como à fonte do ser, se adotamos o pensamento gerador, vemos logo intuição. O conteúdo da intuição será expresso na linguagem e, por-
que somente o ser pode gerar o ser, num processo de transfiguração tanto, por meio do simbolismo característico dela". A partir daí sur-
qualitativa que ultrapassa qualquer possibilidade de conceitualizar, ge a contradição ou o impasse que provém da inadequação entre as
na medida em que conceitualizar é conferir ao ser a ordem do enten- formas de expressão e o conhecimento obtido por meio da intuição.
dimento e compreendê-lo na escala das prerrogativas pragmáticas O impasse põe em questão a própria especificidade do conhecimen-
da inteligência. to metafísico. Se a metafísica é a ciência que pretende dispensar os
Eis a razão pela qual o verdadeiro, na sua origem, tem de ser símbolos" e ao mesmo tempo a expressão do conhecimento metafí-
percebido intuitivamente. A intuição é a percepção espiritual que se sico é obrigatoriamente simbólica, a especificidade da metafísica fi-
caria talvez reduzida ao inefável. Neste caso não se poderia falar de j
dá depois que o espírito inverteu a "marcha habitual do pensamen-
to". Isto não significa alijar a inteligência definitivamente do proces- método. No entanto, para Bergson, a intuição é método filosófico e
so de conhecimento. A intuição é contato supra-intelectual; mas a a superação do simbolismo da linguagem não é simplesmente o
intermitência deste contato tem de ser compensada pelo contato mutismo do filósofo fechado na sua própria contemplação. Isto sig-
intelectual, por um procedimento analítico que, consciente da ativi- nifica que a expressão do conteúdo da intuição vai depender de uma
dade simbólica da inteligência, está também consciente da possibi-
lidade de superar o simbolismo".
reflete-se também numa certa inversão do trabalho da inteligência, o que não deixa
de representar um esforço violento e antinatural para ela: "( ... ) desde que percebemos
75. "Assim como o mergulhador vai tocar no fundo das águas os destroços que o intuitivamente o verdadeiro, nossa inteligência se apruma, se corrige, formula
aviador assinalou no alto, a inteligência, imersa no conceptual, verificará ponto por intelectualmente seu erro" (Bergson, P.M.-135). A formulação do erro é o reconheci-
ponto, por contato, analiticamente, o que já foi objeto de uma visão sintética e supra- mento da ilusão, que dá a possibilidade de superar a articulação simbólica. A partir
-intelectual. Sem uma advertência vinda de fora o pensamento de uma ilusão possível daí a inteligência pode desempenhar uma função positiva: "Ela recebeu a sugestão;
não teria nem mesmo aparecido, já que sua ilusão fazia parte de sua natureza" (Berg- ela fornece o controle". (id., ibid.).
son, P.M.-128, Abril). 76. "A intuição, aliás, somente será comunicada através da inteligência. Ela é mais
A metáfora aqui utilizada não nos deve fazer entender que a intuição seja um sobre- que idéia, ela deverá todavia, para lograr transmitir-se, cavalgar algumas idéias." (Berg-
vôo e uma visão distante do objeto. A intuição é forma de contato, mas este contato son, P.M.-122, Abril).
não é, enquanto intuição, análise do objeto; é visão direta do que o objeto é em si 77. A principal razão de ser da metafísica é uma ruptura com os símbolos." (P.M.-
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mesmo. Munida desta visão, ou exercendo-se a partir dela, a inteligência pode tomar 219 - A. In'. Met. - 35).
contato analítico com o objeto, porque o respaldo da intuição impedirá a inteligência Cf. Int. Met. - 15, Abril.
de articular o objeto unicamente segundo seus próprios critérios. Ao contrário, ela "Quando abordamos o mundo espiritual a imagem, se ela não faz mais do que su-
desarticulará aquilo que a percepção usual nos dá simbolicamente articulado. Isto gerir, pode dar-nos a visão direta, enquanto o termo abstrato, que é de origem espa-
significa que a inteligência não se opõe irredutivelmente à intuição, como uma coisa cial e que pretende exprimir, deixa-nos freqüentemente no domínio da metáfora"
se opõe à outra. O que há é uma oposição de direção: por isto a inversão da reflexão (Bergson, P.M.-128, Abril).

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I - INTulçAO E MÉTODO FILOSÓFICO 7. FILOSOFIA E METÁFORA (I)

tensão deliberadamente estabelecida no interior da linguagem. É quando a atividade simbólica cristaliza metáforas no sentido de re-
preciso lembrar que o conceito enquanto cristalização da atividade presentar espacialmente a realidade espiritual estamos no plano
simbólica representa a forma que assume tal atividade quando o negativo da simbolização (ibid.). Neste plano, a transposição é direta
interesse pragmático exige a fIxação da mobilidade. A imutabilidade e espontânea: a mobilidade fluente se fIxa nas caracterizações sim-
dos conceitos prende-se assim à necessidade de organizar de forma bólicas que escondem o ritmo da duração, e acreditamos "ter anali-
relativamente invariável o real e dispor de representações relativa- sado o espírito". Para que a metáfora sirva como meio de aproxima-
mente unívocas para efetuar referências cômodas ao mundo que nos ção direta da realidade é preciso que a imagem não cristalize um
rodeia. Mas a linguagem possui certa flexibilidade que faz com que signifIcado, mas sugira uma visão, que não é interpretação, mas con-
a cristalização conceitual não esgote o jogo simbólico. Já vimos que tato. Portanto, a imagem não vai figurar a realidade espiritual; ela vai
a arte do romancista e do poeta consiste em estabelecer dentro das conscientemente sugerir algo que sabemos situar-se para além da
regras fundamentais da linguagem um jogo simbólico em que a cris- imagem. É neste sentido que a metafísica tem algo a ver com a lite-
talização conceitual cede lugar à fluidez imagética que pretenderia ratura no sentido em que a entende Bergson, isto é, expressão ima-
nos fazer, na medida do possível, coincidir com a personagem para gética da fluidez do universo afetivo: assim como o escritor emprega
compreendermos por dentro a mobilidade dos sentimentos que cons- palavras para que não reparemos nas palavras em sua simples opa-
titui o ser de cada personagem e a trama das subjetividades aí envol- cidade, mas para que atravessemos as imagens na direção da coin-
vidas. O artista torce a linguagem, no limite com a fInalidade, diz cidência com a personagem e a trama, assim também o metafísico
Bergson, de nos fazer esquecer que ele emprega palavras. recorrerá às imagens para que o movimento metafórico que ele esta-
belece na linguagem provoque o espírito a captar no jogo imagético
Assim, é a própria capacidade de simbolizar, intrínseca à inteli- uma realidade situada mais além'''.
gência, que vai permitir de alguma forma a superação da cristaliza-
ção simbólica que constitui a precisão abstrata do conhecimento Infletir a linguagem no sentido do movimento, não da cristaliza-
analítico. Voltada para o esforço de traduzir o intraduzível, a inteli- ção, tal é a atitude que redunda no uso positivo do símbolo. SignifIca
gência se torna de alguma maneira consciente da "franja" intuitiva tornar a atividade simbólica consciente de si e a ponto de superar-
que a rodeia: procurará então vencer o obstáculo da linguagem com -se no movimento plural dos seus atos. Devemos provavelmente en-
a própria linguagem, construindo com os símbolos um análogo da tender o uso positivo da simbolização como uma recuperação da
fluidez que ela não pode exprimir diretamente (P.M.-122, Abril). As- metáfora como atividade de formar imagens: aqui o que conta é
sim, existe um uso negativo e um uso positivo do símbolo. A vocação menos o resultado enquanto representação fIxa e cristalizada do que
generalizadora e estabilizadora da inteligência faz ordinariamente do a possibilidade, continuamente atualizada, de representar metafori-
símbolo um instrumento de representação esquemática e redutora camente de maneira consciente e utilizando todos os recursos do
do processo movente que constitui a realidade. Isto atinge seu limite jogo imagético permitido pela linguagem, a fIm de sugerir no discur-
nas categorizações defInitivas pelas quais a filosofIa pretende inserir so aquilo que o próprio discurso, enquanto articulação, não compor-
a pluralidade em quadros absolutamente fIxos através dos quais se ta. Devemos ter em mente que a imagem, mesmo despojada da fIxi-
demarcam exatamente as signifIcações que o ser assume na repre- dez do conceito, não é representação adequada da intuição: tal re-
sentação. Nesse sentido o conhecimento teórico é uma atividade que presentação é impossível. Talvez a principal vantagem metodológica
tende para a imobilização e que só atinge seu pleno sentido quando da recusa da metáfora conceitual seja o abandono defInitivo da pre-
esta é realizada. E é justamente a fInalidade imobilizadora da ativi- tensão a uma adequação exata entre representação e realidade. Quan-
dade simbólica que deve ser proscrita no caso do conhecimento do Bergson diz que a imagem por vezes fala com propriedade sobre
metafísico, para que tal atividade se dê a partir das possibilidades
abertas à atividade simbólica quando a inteligência metaforiza a partir
77a. "Comparações e metáforas sugerirão aqui o que não poderemos chegar a expri-
do fundo intuitivo que se trata de revelar nas imagens. É preciso não mir. Não será um desvio, não faremos mais do que ir direto ao objetivo" (Bergson,
esquecer que o objeto da metafísica é "principalmente O espírito": P.M.-122. Abril).

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I - INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 7. FILOSOFIA E METÁFORA (I)

o objeto, isto não significa que a imagem torne o objeto presente ao a superamos. Mas isto é apenas mais uma prova da artificialidade de
espírito com os contornos nítidos de uma representação exata. A uma oposição completa entre inteligência e intuição. A possibilidade
maior propriedade da imagem significa no caso exatamente o aban- de superar a linguagem pela linguagem não é nada mais do que o
dono da ilusão da precisão abstrata pelo poder sugestivo da imagem. reflexo da franja intuitiva que rodeia a inteligência, e a linguagem,
A imagem, neste caso, não é verdadeiramente um símbolo, ao con- enquanto principal função da inteligência, está afetada pela ambi-
trário da representação conceitual (P.M.-17, Abril). Por não ser ver- güidade que faz com que a inteligência possa penetrar até certo ponto
dadeiramente um símbolo, a imagem não se substitui ao objeto. A no espírito e este espacializar-se, por sua vez, em vista da inserção
atividade metafórica é positiva quando nela não está implicitamente do homem como um todo na vida prática. O homem, diz Bergson,
presente a concepção de que a linguagem revela o ser. A linguagem traz em si a maneira de superar-se a si mesmo e a filosofia realiza
é, em si, apenas um instrumento opaco e convencional, cuja gênese essa superação, transcendendo a condição humana, não pela desar-
e constituição obedecem a critérios estritamente pragmáticos. Não ticulação da inteligência e da linguagem, mas pela consciência da
existe fundamento ontológico da significação, não existe nenhum gênese e da função de ambas. A reflexão se opera a partir desta cons-
tipo de relação entre as palavras e as coisas que originalmente vá ciência, o que significa que ela não se pode moldar sobre a esponta-
além da mera instrumentalização". E é o caráter apenas instrumen- neidade e a natureza da linguagem, pois então se ajustaria ao "sím-
tal que está presente na utilização positiva da metáfora, posto que bolo dos símbolos" que é o espaço, comprometendo desde então a
qualquer relação mais direta entre palavra e realidade é apenas uma possibilidade de pensar a duração (P.M.-24, Abril). É importante no-
ilusão que oculta a atividade simbólica da inteligência. tar que a reflexão filosófica não deve nutrir a ilusão de que se bene-
Vê-se então que a vocação generalizadora e imobilizadora da ficiaria com a reforma, o aperfeiçoamento, a purificação, a formali-
inteligência, e da linguagem enquanto sua principal função, é con- zação da linguagem. Não existe em Bergson a idéia de que uma "lín-
trariada pela reflexão quando esta utiliza a metáfora como a lingua- gua" suficientemente despojada das ambigüidades da linguagem
gem em movimento e não a linguagem como reveladora de estados natural pudesse promover ou facilitar a reflexão, tal como em Leib- .1

de coisas representados analiticamente nas palavras e nos concei- niz. Tampouco existe a idéia de que a dialética conceitual possa nos
tos 79 • Isto não poderia ocorrer se a linguagem não contivesse em si, conduzir a algum Logos originário. Qualquer tentativa de espelhar o
como que virtualmente, esta outra modalidade de inserção compre- ser na linguagem é mistificação por parte da inteligência e oculta-
ensiva das palavras na realidade. Assim O jogo metafórico livre da mento da única característica verdadeira da linguagem: ser obstácu-
fixação conceitual é possibilidade discursiva de intelecção do real lo à transparência da intuição80 • Entre a palavra e o real, a distância
que responde à exigência fundamental da reflexão filosófica: inver- é a do simbolismo irredutível.
são da marcha habitual do pensamento. Sem dúvida é aqui que re- Então como é possível dizer que a imagem permite um tipo de
pousa um dos fundamentos do método filosófico: na possibilidade acesso direto ao real? Simplesmente entendendo este caráter direto
de utilizar a linguagem contra ela mesma, contra a inteligência, mas de uma maneira totalmente diversa de uma adequação ou de uma
isso não deixa de apresentar alguns problemas, o principal dos quais revelação. Já vimos que tornar a atividade metafórica consciente de
é se devemos considerar aquela possibilidade discursiva como uma si é o primeiro passo para relativizar a aparente significação unívoca
riqueza da linguagem em si ou como uma violência que a reflexão do conceito que não é mais do que uma cristalização que obedece a
faz à linguagem. Afinal, a linguagem traz em si os meios pelos quais critérios pragmáticos. É o trabalho inicial da reflexão que vai questio-
nar a base real da significação. A utilização positiva das imagens não
remete em si mesma a uma valorização da linguagem como repre-
78. "Nada de análogo, em Bergson, ao sonho da Ursprache; a língua é um produto
opaco, que devemos compreender através de sua gênese, que não comporta nenhu-
ma mensagem destinaI do ser, mas sim a história contingente de uma cultura" (P.
Trotignon, L'[Me de vie ... p. 60l). 80. "A linguagem não será reveladora do ser mas o obstáculo que a fenomenologia
79. Cf. P. Trotignon, ob. cit., pp. 606-7. da percepção encontra (... )" (P. Trotignon, ob. cit., p. 601).

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I- INTUIÇÃO E MtrODO FILOSÓFICO 7. FILOSOFIA E METÁFORA. (I)

sentação do ser, mas sim a um outro uso das possibilidades metafó- Tal articulação precisa ser estabelecida na medida em que será
ricas, uso que se prende ao que se poderia chamar pluralidade con- ela que dará a especificidade da linguagem humana em termos de
vergente das imagensSl • Suscitar diferentes imagens que deverão in- mobilidade e extensão do significado e permitirá explicar através desta
dicar, não pelo conteúdo significativo de cada uma, mas pela conflu- caracteristica a importante função que a linguagem desempenha na
ência significativa do conteúdo de todas elas, um determinado ponto especulação. Originalmente, como já vimos, a linguagem possui uma
a partir do qual seria também possível conceber que elas divergem. função prática, já que ela é produto da inteligência, faculdade volta-
Isto significa que a perspectiva bergsoniana, ao contrário da tradicio- da principalmente para as finalidades práticas. Neste sentido a lin-
nal, adere à plurivocidade da linguagem como maneira de escapar da guagem se inscreve no âmbito da sociabilidade, que é a possibilida-
precisão abstrata da cristalização conceitual. A pluralidade de signi- de da ação conjunta ou dominação coletiva da realidade regrada pela
ficações encaminha a filosofia ao concreto. É preciso que esta plura- inteligência (E.C.-158). A cooperação exige comunicação, e mesmo
lidade seja convergente: ela o será na medida em que as diferentes entre os animais, principalmente entre aqueles cuja sobrevivência
imagens representarem tentativas de exprimir a mesma coisa. O ponto depende da ação do grupo, existe uma linguagem. Bergson parece
de convergência é também um núcleo a partir do qual as imagens não compactuar com a posição de Locke, por exemplo, que entende
divergem. Isto é necessário porque não há como escapar à índole que só podemos falar em linguagem quando a articulação dos sons
parcial do signo: este por natureza tende a isolar um aspecto da coisa, evoca idéia, isto é, sentido instituído convencionalmente, e menos
para depois generalizar o aspecto abstrafdo. É assim que trabalha a ainda com a posição de Leibniz, que faz derivar o sentido particular
imagem conceitual: " ... o conceito generaliza ao mesmo tempo que do termo de um gênero implícito no ato da constituição do signifi-
abstrai". No trabalho normal da inteligência, o aspecto abstraído cado". Uma sociedade de insetos possui linguagem na medida em
torna-se representativo da coisa: é o que se tem de evitar na utiliza- que as coisas com que a sobrevivência do grupo se relaciona são
ção da imagem no conhecimento metafisico. E a maneira de evitar é designadas por signos reconhecidos por todos. Mas a uniformidade,
variando as imagens para que, no jogo daquilo que elas retêm e imutabilidade, direcionamento único do relacionamento com o meio
daquilo que elas deixam de reter, se perceba a indicação de um ponto no caso dos insetos fazem com que o signo designe de forma única
de convergência. O próprio ponto de convergência não é, pois, obje- e aderente um objeto ou uma operação bem determinados. A ação a
to de representação "distinta": a indistinção representativa e a im- ser realizada está estreitamente ligada aos órgãos dos indivíduos, e a
possibilidade de designação tornam-se aqui indicativos de que nos divisão do trabalho é determinada pela natureza. No caso do ho-
acercamos de uma realidade por natureza avessa à precisão simbó- mem, existe a variação, a flexibilidade na fabricação dos instrumen-
lica. Para uma reflexão que inverte a marcha habitual do pensamen- tos com os quais se age sobre a natureza, ausência de rigidez na
to, a ausência de clareza e distinção torna-se índice de que a inteli- divisão do trabalho e aprendizado, já que o órgão de relacionamento
gência encontrou o limite de sua capacidade simbólica e que o pen- com o meio é a inteligência e não o instinto. A linguagem humana
samento encontra dificuldade em operar a tradução da mobilidade participa, assim, da relativa abertura e indefinição da inteligência,
viva em esquema relaciona!, do organizado em inorganizado, do razão pela qual os signos não são aderentes a coisas ou procedimen-
qualitativo em quantitativo. Neste limite é que a gênese e a história tos bem determinados, mas possuem margem de flutuação nos seus
da inteligência tornam-se, para a reflexão, pontos de partida para o significados (E.C.-159). Isto confere aos signos mobilidade e à ativi-
exercício da crítica genética, na medida em que possibilitam articu- dade simbólica certa liberdade de levar o signo de uma coisa a outra.
lar a estrutura e os resultados da linguagem com os seus fundamen- O campo de ação é indefinido, as formas de ação variáveis; a comu-
tos (E.C.-161). nicação precisa acompanhar essas caracteristicas e a linguagem ex-
pressar o caráter ilimitado das possibilidades de referência. Apesar
disso, os signos são em número finito; logo, a extrapolação como
81. "Nenhuma imagem substituirá a intuição da duração, mas muitas imagens
diversificadas, emprestadas a ordem de coisas muito diferentes, poderão, pela conver-
gência de sua ação, dirigir a consciência para o ponto preciso em que há certa intui-
ção a ser apreendida" (Bergson, Int. Met.-17, Abril). 82. Cf. Locke, Ensaio .... III, 1 e Leibniz, Novos Ensaios. m, 1,3.

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I - INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO
7. FILOSOFIA E METÁFORA (I)

extensão do significado vai realizar a liberdade da simbolização. Há Eis por que a mobilidade do signo enquanto caráter próprio da
que designar várias coisas, várias ordens de coisas e há que designar linguagem humana, ao mesmo tempo que permite que a linguagem
até a própria instância e o próprio processo gerador das designações. se ponha perante o infinito, encoraja também, através do paradigma
A característica principal da linguagem humana é, pois, que o signo significativo tomado pela reflexão, que esta se constitua nos moldes
se move entre várias coisas, primeiramente pela necessidade de de- articulatórios em que a inteligência se apropria do mundo pela lin-
signar com uma quantidade relativamente pequena de sinais uma guagem. E assim, quando a inteligência quer penetrar no espírito, ela
quantidade indefinida de coisas. Esta propriedade móvel do signo é penetra em si mesma e toma uma modalidade de exteriorização do
que dá a possibilidade da metáfora, pelas várias extensões e transfi- espírito pela totalidade e pelo núcleo da consciência. É a transposi-
gurações do significado que ela permite. ção do significado que permite que isto Ocorra. Se as palavras desig-
nassem com precisão absoluta as coisas na singularidade material de
Mas o signo não se move apenas de uma coisa para outra. Ele se
cada uma delas, de maneira estritamente determinada, não poderia
move também das coisas às idéias. Quando a linguagem deixa de se
haver transposição. Mas a flutuação do significado permite que a
relacionar no plano prático do interesse do sujeito pelas coisas que
linguagem, de função pragmática de nomeação e articulação do
o rodeiam e passa a designar meramente o que é pensado de forma
universo percebido, se transforme em instância originária das várias
mais ou menos independente da ação, ela passa a se ordenar na
modalidades do ser, inclusive do ser da vida e da consciência. A lin-
franja reflexiva da inteligência, passa a canalizar o suplemento de
guagem é pois poderoso instrumento para a extrapolação da inteli-
força que não é dispendido no relacionamento estritamente prag-
gência em órgão especulativo. O movimento do signo por entre as
mático com o mundo. A palavra deixa de ser apenas um instrumento coisas, que faz da atividade metafórica o modo pelo qual a finitude
de ordenação e identificação do que se dá no âmbito da percepção
da linguagem abarque o infinito - ou o indefinido -, que faz com
e passa, de alguma forma, a designar a si mesma. A inteligência, que
que possamos passar sempre do que sabemos para o que ignoramos
é o espírito presente a si apenas na justa medida em que isto é ne- através da extensão do significado, esse movimento, quando possibi-
cessário para estar presente fora de si, passa a atentar a si mesma e lita ao signo transpor as ordens de realidade - da matéria para o
de alguma maneira a voltar-se para dentro. É claro que a autonomia espírito, do espaço para a duração -, eSSe movimento, riqueza apa-
relativa dos significados, o fato de não serem totalmente aderentes a rente da linguagem, determina a falência da especulação, na medida
coisas bem determinadas, contribui enormemente para tanto (E.c.- em que reduz o objeto que pretende abarcar ao âmbito designativo
160). Da coisa enquanto percepção â coisa lembrada, da lembrança da linguagem: coisas, reificando dessa maneira o processo de dura-
à imagem indeterminada e desta à representação das possibilidades ção que não pode ser expresso na descontinuidade imobilizadora
de representação da coisa: assim o próprio ato de designar, de repre- das palavras e dos conceitos".
sentar, de significar se torna também objeto. A inteligência se desco-
bre para si mesma no nível interno das suas operações. É aqui que A liberdade da atividade simbólica não chega nunca, pois, a in-
se torna importante para a inteligência a ligação entre linguagem e verter a finalidade original da linguagem. A linguagem designa "coi-
idéias. É aqui que a exteriorização significativa pela qual o espírito se sas e somente coisas", de acordo com a vocação estabilizadora da
apropria do mundo através das palavras revela-se para a inteligência inteligência. Portanto a reflexão que nasce da mobilidade dos signos
como possuindo outra face e toda uma nova extensão de poder: a
interiorização significativa (ibid.). A consciência vai então tomar-se a
si mesma como objeto, mas como a reflexão aqui é uma interioriza- 83. "Originalmente ela (a inteligência) é adaptada à forma da matéria bruta. A pró-
pria linguagem, que lhe permitiu estender seu campo de operações, é feita para de-
ção da atividade de significar, a consciência que se toma a si própria signar coisas e somente coisas: é SOmente porque a palavra é móvel, porque ela cami-
como objeto é a inteligência e o objeto é um objeto da inteligência. nha de uma coisa a outra, que a inteligência devia cedo ou tarde tomá-la em caminho,
É um objeto constituído na instância da linguagem, um objeto que enquanto não estava ainda pousada sobre nada, para aplicá-la a um objeto que não
é uma coisa, e que, dissimulado até então, esperava o auxílio da palavra para passar
só será assimilado no âmbito da racionalidade se já estiver totalmen- da sombra à luz. Mas a palavra, ao recobrir este objeto. converteu-o também numa
te incorporado na significação ou substituído pelo seu signo. coisa." (Bergson, E.C.-16l).

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I - INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 8. FILOSOFIA E METÁFORA (11)

tomará a consciência como coisa e conceberá a duração sob o mo- determinado significado fora a partir do ato de abrir ou desvendar o
delo da articulação descontínua das palavras. A extensão das signifi- desconhecido. O que se trata de exprimir é algo com o qual o sujeito
cações não muda a origem do significado. A palavra tem na sua ori- coincide, e o conhecimento intuitivo é fazer passar à consciência esta
gem a finalidade pragmática de imobilizar o devir e de identificar coincidência. A intuição é reflexão na medida em que a consciência
diferenças. O movimento do signo está inscrito na economia da lin- se encontra - mas não simplesmente a si própria - em contato com
guagem como a designação de uma coisa pelo que ela não é: por isso o absoluto por comunicação simpática. Somos conscientes da dura-
nos permite passar do que conhecemos ao que ignoramos. A metá- ção quando pensamos na duração, mas não como um sujeito que
fora é, no nível pragmático, procedimento inevitável dado o caráter expressa um objeto significando-o para si mesmo, e sim como cons-
da inteligência e a peculiaridade da ação humana. Quando a metá- ciência da imersão numa totalidade que não pode ser, a rigor,
fora identifica significados em duas ordens diferentes de realidade, significada porque não pode ser assinalada ou designada por um ato
ela opera de maneira redutora: é o significado espacial - por assim exterior a ela mesma.
dizer o significado primitivo no nível da inteligência - que prevale-
Resta no entanto o problema de que fatalmente somos exteriores
ce. É este significado que permite, como já vimos, que o objeto apa-
à duração na exata medida em que somos em larga medida exterio-
reça clara e distintamente, isto é, como se fosse coisa. res a nós mesmos. O espírito se exterioriza, mesmo quando acredita
Como, então, apesar disso, se pode dizer que há um uso positivo refletir. A intermitente coincidência consigo mesmo na consciência
do símbolo e que a metáfora pode ser via de aproximação direta da afetiva dos estados psicológicos profundos é apenas mais um índice
realidade em si? Porque podemos utilizar o movimento do signo não da defasagem entre a expressão e o. estrato do nosso ser que comu-
como transposição, mas como variação indefinida dos significados nica mais intimamente com a totalidade. A questão da expressão
num processo que tende a dissolver a propriedade das palavras para como representação filosófica do absoluto passa por uma reavalia-
fazer com que a pluralidade dos sentidos, no jogo das suas aproxi- ção - em Bergson - da relação tradicional sujeito-objeto. Até que
mações e diferenças, indique a direção de um certo plano de ser em ponto a constituição das metáforas em que os significados se anulam
que a impossibilidade da clareza e distinção assinale o possível lugar em prol de uma direção supra-significativa, supra-objetiva não en-
da intuição. Note-se bem que se não houvesse o movimento do sig- volve também a dissolução do sujeito enquanto ato de constituir as
no isto não seria possível. Assim este caráter da linguagem nos leva metáforas e, assim, os significados que se entreanulam? A partir daqui
ao encontro da intuição desde que a intuição já seja de alguma ma- talvez a expressividade das metáforas assuma outra feição, na medi-
neira a origem vaga e indistinta que atrai as linhas de significações da em que elas somente exprimem algo ao anularem-se umas às
convergentes. Existe uma anterioridade da intuição sobre a lingua- outras.
gem e, assim, ir ao encontro da intuição através das imagens conver-
gentes é expressar aproximadamente uma intuição. Nesse sentido a
metáfora tem um lugar no método filosófico porque ela é a única 8. FILOSOFIA E METÁFORA (lI)
maneira em que a intuição se pode expressar em discurso, mas, re-
petimos, desde que a significação de cada imagem se dissolva na O estabelecimento do caráter pragmático da linguagem afasta a
multiplicidade das outras. filosofia bergsoniana dos dois caminhos que os séculos XVII e XVIII
Mesmo assim, o problema das relações entre intuição e expres- seguiram para compreender a linguagem e que são vistos por Cassirer
são está longe de ser resolvido. A própria ambigüidade do duplo tra- como percursos lógicos ou psicológicos. Talvez o confronto Leibnizl
jeto - ir da imagem à intuição é ir da intuição à imagem - serve Locke seja a melhor maneira de exemplificar esses dois caminhos e
para alertar-nos acerca da dificuldade de expressar um conhecimen- de verificar os diferentes procedimentos que o pensamento empirista
to com significações anteriores e exteriores à própria origem da sig- e a concepção racionalista empregam para elucidar o fenômeno da
nificação. Mas temos de convir que o termo expressão aqui não pode linguagem. Haveria, no entanto, algo de comum a estas duas pers-
ser tomado na sua literalidade, ou seja, como o ato de expor: pôr um pectivas: em ambas a linguagem é considerada, em relação ao conhe-

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I- INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO B. FILOSOFIA E METÁFORA (11)

cimento, como constituição e/ou expressão do saber teórico. O que cada uma seja vista em oposição a si mesma, negando-se ao mesmo
se explica: a vinculação entre linguagem e razão é vista como estrei- tempo em que se constitui. As imagens são símbolos dos quais o
ta, quer a linguagem seja considerada meio adequado de expressão significado não se cristaliza devido a um esforço reflexivo para impe-
do conhecimento racional, quer ela seja considerada como invólucro dir que este significado se transforme numa representação auto-su-
mais ou menos opaco das evidências teóricas. Dependendo da pers- ficiente. Mas ainda assim são símbolos.
pectiva assumida, a linguagem será considerada, do ponto de vista
do valor, com um maior peso positivo ou negativo, justamente por- E é de se notar que as imagens que devem suscitar a intuição são
que o critério é sempre o saber teórico e sua expressão". sempre concretas: novelo, elástico, cores ... Dir-se-ia mesmo que
quanto mais concreta for a imagem, mais eficientemente ela desem-
Até que ponto Bergson escapa dessa perspectiva? Já vimos que a penhará o seu papel. Como se o filósofo devesse mergulhar na
intuição, se é conhecimento, deve ser expressa na linguagem; vimos estratificação das coisas para aproximar-se da singularidade do pro-
também que esta expressão não pretende participar do caráter con- cesso. A razão disso parece ser a impossibilidade da transfiguração da
solidado que a expressão do conhecimento teórico tradicionalmente linguagem, de modo a torná-Ia transmissora da fluidez e do caráter
possui, em consonância com a vocação da linguagem. O único saber movente da realidade. Isso seria uma forma de estabelecer uma re-
que se pode chamar propriamente te6rico, a metafísica, deve, para se lação de alguma maneira afirmativa entre a linguagem e o real. Mas
constituir, rejeitar o estatuto simbólico da linguagem. Vimos que o parece que para Bergson esta relação é fundamentalmente negativa
meio para operar a rejeição é trocar a cristalização simbólica do con- e é essencial para a superação do simbolismo que a linguagem nun-
ceito pela expressividade mutável das imagens, que no movimento ca perca a sua característica de obstáculo. Isto pode explicar inclusi-
de flutuação dos seus significados fazem o espírito dirigir a atenção ve a própria concepção bergsoniana do conceito como cristalização
reflexiva para o ponto onde se poderá intuir uma realidade. Há por- simbólica. A supor, evidentemente, que exista outra concepção pos-
tanto uma diferença, senão uma oposição, entre símbolo e imagem. sível do conceito, tal como a que é aventada por H. Konratf'5. Esta
Mas não se pode, por outro lado, negar o caráter simbólico da ima- autora critica Bergson, mostrando que ele se mantém na perspectiva
gem' qualquer que ela seja. Há um problema a ser enfrentado no lógica tradicional da concepção do conceito, ou seja, a exclusão da
estabelecimento dessa diferença, e ele põe em questão o próprio ca- representação da individualidade. Se a formação do conceito é num
ráter expressivo das imagens. Na verdade, o problema surge do fato
certo momento inseparável da remissão dos traços do objeto a ca-
de que em Bergson a rejeição do símbolo convive com o uso da
racterísticas comuns que ele compartilha com outros objetos, este
metáfora como única possibilidade de expressão e de apreensão da
procedimento de classificação deve ser distinguido do conceito uma
intuição. Não é necessário insistir, mais do que já o fizemos, no ca-
vez formado e da maneira como ele se refere ao objeto que represen-
ráter negativo do símbolo que simplesmente se constitui em obe-
diência à vocação estabilizadora da inteligência. Notemos, a propó- ta. Supondo que o conceito nos forneça os atributos pelos quais re-
sito, que o tratamento diferenciado conferido à imagem não significa conhecemos um objeto, estes atributos permitem o reconhecimento
de forma alguma a recuperação de algum valor positivo do símbolo. "unívoco" (p. 65). isto é, são os elementos pelos quais o objeto se
As imagens são obstáculos que podemos contornar na medida em distingue de outro. Trata-se de outra concepção do processo de for-
que o ato deliberado de variação dos seus significados faz com que mação e do estatuto da metáfora. A metaforização, ao menos quan-

84. "Que a linguagem seja concebida como a obra imediata da razão e seu órgão 85. A respeito da formação do conceito, no caso do substantivo, diz H. Konrad:
indispensável, ou que a palavra apareça como um simples invólucro que nos oculta "Se os atributos possuem alguma coisa de comum com os atributos semelhantes de
os conteúdos fundamentais do conhecimento, as autênticas 'percepções originárias' outros objetos, eles possuem ao mesmo tempo uma nuance particular e individual
do espírito, o que se considera sempre como o objetivo da linguagem e corno aquilo que os caracteriza corno elementos de uma totalidade única: e, ademais, eles estão
que deve determinar seu valor positivo ou negativo é o saber teorético e a expressão em uma relação particular e única, ela também, com todos os outros elementos
deste saber" (E. Cassirer, Phil. des Formes Symboliques, capo I, p. 94. Trad. fr. Minuit, que fazem parte do mesmo objeto" (H. Konrad, Étude sur la métaphore, Vrin, Paris,
1972). 1958, p. 65).

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I- INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 8. FILOSOFIA E METÁFORA (lI)

do redunda no conceito, seria atividade diferenciadora. Nesse senti- teligência, contribui poderosamente para velar a realidade que a fi-
do é necessário, segundo Konrad, operar uma distinção entre subs- losofia deveria apreender. De forma que dizer que a linguagem é o
tantivo e adjetivo no que se refere à formação da metáfora conceitual. grande obstáculo da metafisica significa também colocar o pensa-
O adjetivo seria genérico na exata medida em que exprime uma qua- mento diante de um impasse: somente a superação da linguagem
lidade presente em vários objetos. O mesmo não acontece, entretan- desvela a realidade; mas tal superação e tal desvelamento, se cons-
to, com o substantivo, cujos atributos conceituais retratariam a indi- tituem conhecimento, não podem prescindir da articulação da lin-
vidualidade do objeto86 • Mas ao mesmo tempo Konrad demonstra guagem, não apenas na expressão como também no próprio pensa-
entender o conteúdo significativo formado pelos atributos, isto é, a mento. E o impasse é tanto mais marcante quanto a intuição, en-
compreensão do conceito, como decorrente de relações específicas
quanto saber que se constitui contra a linguagem, deve se estabele-
que os atributos mantêm entre si, e seria esta relação que forneceria cer como método suscetível de levar a filosofia à verdade definitiva
a nuance própria do objeto simbolizado". É precisamente esta rela- que substituirá a querela verbal dos sistemas. A imagem, que como
ção de propriedades atributivas que se trata de evitar, para Bergson,
já vimos é parte integrante do procedimento metódico de aproxima-
pois é ela que confere ao conceito o caráter analítico. A totalidade é
ção da intuição, deve a partir do caráter concreto e particular do seu
singular e dada, e não problemática por definição, como parece en-
conteúdo, na contingência do que ela sugere e na amplitude signifi-
tender Konrad. Dessa forma, e lembrando a diferença que Bergson
cativa desta sugestão, levar o pensamento ao encontro desta outra
estabelece entre parte e expressão parcial, a totalidade do objeto não
é mais bem compreendida quando a fragmentamos pela análise. E
espécie de universalidade que a filosofia deve encontrar para além
precisamente na concepção da anterioridade do todo e do compro- do conceito.
metimento de sua singularidade quando o igualamos à recomposi- Não é possível contentarmo-nos com dizer que a proliferação
ção das suas partes é que repousa a oposição entre intuição e análise intencional das imagens concretas produz uma relação dinãmica
e a critica do conhecimento analítico enquanto simbólico. A pers- entre o pensamento e a linguagem de forma a superar a cristalização
pectiva bergsoniana se coloca de fora da consideração da metáfora simbólica. A expressividade da imagem e a sua contribuição para o
conceitual como estrutura complexa ligada a processos lógicos, elas- conhecimento metafísico aparecem a partir do risco envolvido na
sificatórios ou outros. O que é posto em questão é a atividade meta- significação de cada uma delas, na possibilidade sempre presente de
fórica enquanto tal, e não a melhor forma de compreender e elucidar tomarmos a imagem como algo mais do que uma indicação, coisa a
este processo, como parece ser o caso de Konrad. O mecanismo de que somos insistentemente convidados a fazer pelo próprio caráter
formação da metáfora, seja ele qual for, possui um caráter negativo denso das palavras, que nos leva quase irresistivelmente a crer que o
que advém do fato de a linguagem ser entendida fundamentalmente significado é o real que se encerra no significante. Por isso o impasse
como obstáculo. Diga-se de passagem que isto torna bastante com- de que falamos não diminui em nada quando operamos consciente-
plexa a tentativa de pensar, em Bergson, as relações entre natureza mente com a metáfora, quando fazemos da construção de todas elas
e cultura. Na perspectiva em que vemos esta relação mediada pela a desconstrução de cada uma. Resta, talvez, apenas pensar até o li-
inteligência, a consonância existente entre o desenvolvimento da mite possível a convivência conflituosa entre a verdade metafísica e
cultura e a sua expressão na linguagem revela o afastamento do ser
a linguagem que a expressa, na medida mesma em que o símbolo é
na exata medida em que a articulação lingüística do conhecimento
absolutamente necessário para a constituição do conhecimento
dito "verdadeiro", enquanto é elaborada no nível metafórico da in-
metafísico". Podemos dizer que este impasse é constituinte da filo-

86. H. Konrad, ob. cit., p. 66.


87. "( ... ) a compreensão de um conceito é formada de atributos que se encontram 88. Como diz A. Grappe, "Bergson acolhe magnificamente o símbolo na sua própria
numa relação diferente em cada caso, conforme o objeto que o conceito simboliza. metafisica, ao mesmo tempo em que denuncia nele o inimigo mortal do metafísico"
Estes atributos não têm um valor geral, mas uma nuance toda particular e individual" (A. Grappe, Bergson et le Symbole, Actes du 10°. Congres des Societés de Philosophie
(H. Konrad, ob. cit., p. 66). de Langue Française, BulJetin de la S. F. Ph. A. Colin, 1959, p. 125).

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sofia se entendermos que o conhecimento metafísico se instaura a de permanência nos seus significados 90• Chegamos então àquilo que
partir de uma antinomia entre a atividade filosófica e a linguagem. E deve ser o propósito fundamental do discurso filosófico: passar e
não só a filosofia de Bergson se constrói sobre esta antinomia, mas, desaparecer, como condição para que permaneça a atitude filosófica
segundo ele, toda a filosofia. Pois o que nos é dito na Intuição Filo- que ele nos sugeriu: a coincidência com o ritmo da duração. Não há
sófica é que todo sistema na complexidade da sua articulação não por que permanecerem significados fixos, se não há coisas fixas a
representa nada mais do que o filósofo na luta pela expressão, serem apreendidas e expressas. O significado solidifica a impressão:
driblando a estrutura cristalizada da linguagem para, esgotando-a no transforma-a em idéia na qual cremos depositado um fragmento do
próprio ato de sua assimilação, lograr transmitir algo que não pode real. É preciso exatamente que o discurso não solidifique a impres-
ser expresso em palavras, como se a totalidade do sistema não fosse são: é preciso que ele seja ocasião para que o espírito seja tocado
mais do que um longo, desesperado, incompleto circunlóquio para pelo que não é coisa e que não pode portanto tocá-lo como coisa,
suprir a impossibilidade da expressão direta. Todo autêntico filoso- mas apenas produzir a impressão da passagem e do movimento. É a
far é, consciente ou inconscientemente, lutar contra a linguagem. este propósito que deve estar sujeita a técnica da escolha e constitui-
Jeanne Hersch equaciona claramente esta problemática no seu sig- ção das imagens. Podemos dizer então que em larga medida o dis-
nificado histórico filosófico. Aqueles que tentaram encontrar o fun- curso filosófico deve se construir em benefício não daquilo que ele
damento do ser e da verdade na substância absoluta foram levados permitirá reter, mas daquilo que ele permitirá que sintamos passar,
a ver na articulação discursiva um suplemento inútil e desviante do levando o espírito a coincidir com cada um dos momentos que pas-
pensamento único que conteria em si a própria eternidade e cuja sam, mas principalmente com a impressão que deixa em nós a pró-
síntese expressiva não podia necessariamente ser encontrada. Aque- pria passagem. De uma maneira mais ou menos análoga ao poeta
les que, pelo contrário, viram na fluidez e no processo do devir o que quer transmitir não um estado de alma - essência imutável -
verdadeiro estofo da realidade, por sua vez, também fracassaram na mas a complexidade fluente da multiplicidade dos sentimentos que
tentativa de transpor esta fluidez para a articulação descontínua da transitam pela alma, sem que possamos dizer bem se sucessivamen-
linguagem, feita de átomos de significação cuja ligação nunca repro- te ou simultaneamente.
duz o entranhamento das coisas". Toda questão é aquela de saber se Seria fácil repetir, a partir daí, que Bergson é "impressionista" e
e como o pensamento pode habitar uma palavra. Ele certamente não que reproduz na filosofia esta tendência que no seu tempo se desen-
pode, para Bergson, habitar um conceito. A solidez da articulação volveu na música, literatura e pintura. Isto não nos adiantaria de
sistemática se revela vão artificio diante da mera suspeita do que se muito para compreender a questão da reinstauração da metafísica e
encontra para além do universo da significação. Sólida é a última da proposta metódica bergsoniana. Na verdade o que temos real-
coisa que a linguagem filosófica deve ser. A densidade das palavras mente de explicitar aqui são mais as condições de constituição de
deve ceder lugar ao ritmo do pensamento que salta de imagem em uma Simbólica que permitisse ao discurso filosófico cumprir a fun-
imagem e mesmo por entre as contradições, destruindo a plasticidade ção que acabamos de indicar. Pois o pensamento tem de se encarnar
racional com que tradicionalmente se tentou fazer com que a lingua- para que - a carne do seu signo uma vez desaparecida - ele possa
gem expressasse o pensamento. A palavra não reproduz movimento, permanecer vivo naquilo que o seu corpo sugeriu. A este respeito só
mas o estilo pode sugerir a mobilidade. Não são só as imagens de contamos com as poucas indicações de Bergson concernentes à cons-
que a expressão se constitui que sugerirão o que se quer exprimir, tituição das imagens. No entanto temos um referencial nítido: existe
mas o discurso enquanto tal deve ser uma metáfora do movimento. o objeto, existe algo de concreto a conhecer e é inclusive a demasia-
Para que o estilo do discurso sugira o movimento, ele deve ser cons-
tituído de forma a que as palavras percam qualquer solidez e sentido
90. "(O estilo) deve ser perfeitamente prosaico, se a prosa perfeita é bem aquela que
desaparece totalmente diante da coisa significada, assim que esteja cumprida sua
função de signo. A função da linguagem é aqui a de desaparecer" O. Hersch, ob. cit.,
89. J. Hersch, L'obstacle du Langage. p.217).

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I - INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 8. Fll.DSOF1A E METÁFORA (11)

da proximidade em que estamos dele que nos impede de abarcá-lo da parte de Nietzsche. O antropomorfismo seria, segundo ele, o pa-
corretamente. A possibilidade da intuição repousa na existência de radigma oculto de todo conhecimento. Aí está a razão profunda pela
algo a ser intuído, algo à frente do qual não estamos como O sujeito qual chegamos a acreditar que o conceito representa as coisas de
diante do objeto, mas algo no qual simplesmente estamos. O conhe- uma maneira mais originária do que a representação singular no
cimento sub specie durationis significa que a duração é aquilo em nível da impressão sensível". A crítica do conhecimento deve passar
que estamos imersos e é a tentativa de reconhecê-la como algo ex- fundamentalmente pela metaforização como atividade originária,
terior e estranho que nos impede de conhecê-la, na exata medida em desde o momento em que o intelecto humano passou a entender a
que conhecê-la seria apenas aceder a ela. O esforço da objetivação é, verdade como repouso do pensamento: o instinto de verdade não é
metodologicamente, o esforço da subjetivação. Ora, a linguagem, nada mais do que a necessidade de imobilizar o devir. Assim vemos
enquanto instrumento de objetivação, é precisamente aquilo que nos os seres como portadores de qualidades e cremos apreender o real
permite exteriorizar a duração tornando-a um conjunto de significa- quando projetamos a estrutura genérica do pensamento conceitual
dos estranhos ao sujeito, depositados na autonomia dos termos que e elaboramos as diversas metáforas pelas quais representamos o
utilizamos para retratá-la. Mas isso tem a ver com as condições de mundo. Nesse sentido a metáfora é uma reação vital em face da ins-
representação inerentes à condição humana. Não podemos inverter tabilidade das coisas. Sobre a reação vital construímos um discurso
completamente essas condições, daí a necessidade de uma estraté- que se quer autônomo do ponto de vista espiritual e reprodutor da
gia de representação simbólica para que os símbolos representados ordem natural. A metáfora é fundamentalmente uma escolha vital
de uma certa forma indiquem ao espírito a maneira de superar as sobre a qual vão se construir os ideais de racionalidade. A metáfora
condições de representação, já que filosofia - no diz Bergson na é metamorfose. Transformamos o real em algo condizente com as
Introdução à Metafisica - é superar a condição humana. A supera- condições que temos de apreendê-lo. O conhecimento é, no pleno
ção deve ser totalmente entendida como inversão. Por conseqüên- sentido, assimilação, uma vez que a inteligência apodera-se do mun-
cia, o discurso filosófico deve inverter a função habitual das palavras - do através da atividade de simbolização". A transformação do mundo
que é a permanência do significado - para recuperar aquilo que a em idéias é mais do que uma atividade interessada: é um ato de
linguagem sempre teve por função superar: a impressão imediata, devorar o mundo fazendo com que as coisas se impregnem nas pa-
aquém da instância em que o sujeito se torna operante, constituindo lavras até a completa identificação. "O método dos filósofos final-
por operação simbólica os significados cristalizados. É preciso en- mente se resume num jogo de rubricas" (Liv. Fil.-165). Desde a es-
tender bem que a impressão imediata não significa abandonar-se trutura da percepção, o fenômeno do conhecimento como assimi-
simplesmente à percepção. Esta está longe de nos colocar no plano lação e metaforização a partir de critérios humanos estabelece a ati-
do imediato: sua estrutura já é espontaneamente simbólica posto vidade teórica no interesse do homem. A objetividade não é nada
que esquemática. Além do mais, a mediação da linguagem impede mais do que a ilusão de que aquilo que estabelecemos em nós fica
desde sempre o contato imediato, pois desde sempre o homem é um estabelecido nas coisas. O conhecimento repousa numa profunda
animal que se comunica para sobreviver. A linguagem é por defini- recusa da exterioridade e numa espécie de terror de sair de si". Todo
ção a interposição do terceiro elemento na relação que o homem o conhecimento pode ser visto como a realização de significações
mantém com as coisas. E é nesta interposição que vai repousar a ver- indicadas pelas tendências da percepção. Este fundamento vital é

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dade, desde que a representação e a designação é que a constituem. que se transfigura, no limite, no pathos da veracidade. E a linguagem
se põe a serviço deste pathos quando o instinto de verdade é disci-
E nos autorizamos a entender dessa maneira a constituição do
plinado em vista da produção de conceitos. A ciência, que pode ser
conhecimento desde que supomos que a realidade explicita uma
estrutura e a natureza é a linguagem pela qual Deus nos fala. Assim
a ordem natural se guia pelas mesmas determinações genéricas do 91. Nietzsche, Livre du Philosophe, § 150, p. 141.
nosso pensamento. Esta homologia ou esta projeção da estrutura do 92. Id .• ibid., § 151.
pensamento simbólico na realidade foi objeto de profunda reflexão 93. Id., ibid .• § 144.

112 113
I - INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO 8. FILOSOFIA E METÁFORA (lI)

vista como a perfeita realização da linguagem, posto que nela as in- em torno do seu aperfeiçoamento, com vistas a torná-Ia um melhor
tuições desaparecem sob as palavras, sistematiza arquitetonicamen- instrumento de conhecimento. Mas a relação entre linguagem e co-
te a atividade metafórica construindo O que Nietzsche chama o nhecimento é exatamente o que deve ser posto em questão. Pois a
columbário dos conceitos, organizando e preenchendo com o mun- linguagem é instrumento de conhecimento apenas se o conhecimento
do empírico os diversos estágios da construção conceitual. Sepulcro for pensado a partir do pathos da veracidade, que é a constituição do
das intuições". sentido fundamentalmente estável e unitário do ser.
Mas - e aqui há um profundo encontro do pensamento de A crítica nietzschiana do conhecimento encontra a crítica gené-
Nietzsche com o de Bergson - a assimilação metafórica do real não tica de Bergson pelo menos em dois pontos: no método crítico e no
teria jamais produzido os frutos históricos e civilizatórios que produ- desvelamento do fundamento da atividade teórica. No método críti-
ziu se não acontecesse ao mesmo tempo o esquecimento da metáfo- co, em primeiro lugar porque a crítica de Nietzsche é genealógica,
ra, ou a cristalização simbólica da autonomia do conceito. O isto é, busca a origem das cristalizações simbólicas em que se cons-
antropomorfismo só é eficaz se não for consciente de si95 • É a igno- titui a atividade de conhecimento. Em segundo lugar, desvela o ins-
rância da origem, o esquecimento da atividade metafórica originária tinto de verdade como desejo de segurança perante a instabilidade
que faz da projeção antropomórfica a constituição da exterioridade do devir, segurança que se realiza na instituição do conceito como
e da objetividade. Que outra relação podemos conceber entre o ho- significado fundamental do ser e do conhecer. Em Bergson, como vi-
mem e as coisas senão a denominação e a representação que incor- mos, a critica é genética: busca os fundamentos dos procedimentos
pora o real no pensamento e na linguagem? Não é esta relação que ditos teóricos na esfera pragmática da sobrevivência. E também en-
motivou a própria definição do homem como animal racional e que contra tais fundamentos não no simples desejo de conhecer, mas na
elevou a consciência ao nível de pólo gerador de todas as significa- necessidade de coordenar inteligentemente a ação. Em ambos temos
ções que o mundo pode ter? E o sentido com que o ser aparece e é a dissolução dos significados pela remissão à origem dos mesmos, a
conhecido já não repousa desde sempre sobre o poder de instituir e atividade metafórica que projeta a estrutura da linguagem enquanto
projetar significações? Por isto, para Nietzsche, a definição do ho- produto humano na realidade exterior. No entanto, há uma diferença
mem como animal metafórico é o primeiro passo para a elucidação importante que diz respeito à questão do valor. Em Bergson a critica
da gênese do conhecimento enquanto constituição do lugar que o genética, ao constatar a origem dos procedimentos da inteligência, não
Homem ocupa perante as coisas. Esta mesma dificuldade em pensar vai argüir acerca da inadequação desses procedimentos em geral. A
a condição humana fora da atividade de denominação das coisas estrutura da inteligência e a estrutura da percepção cumprem uma
mostra a intensidade do recalque a partir do qual se constitui a pró- função natural e, dentro da esfera pragmática, não cabe questionar o
pria racionalidade. De fato, o conceito deve todo seu valor instru- valor do procedimento simbólico. Apenas quando tal procedimento é
mental e o pretenso caráter de espelho ontológico ao esquecimento transferido para a apreensão metafísica do real é que ele se torna ina-
de sua gênese metafórica, ao recalque da atividade originária. Reco- dequado. Ora, parece que em Nietzsche há um único critério para ava-
nhecer-se na razão como última instância definidora de si mesmo é liar os procedimentos de conhecimento e disso resulta que a inade-
instituir o próprio fundamento do ser do homem na modalidade da quação é vista em geral. O conhecimento, qualquer que seja ele, é
metáfora, visto que a razão é a metáfora do instinto estabilizador do produtor de ilusões, muitas vezes necessárias para o individuo e a
devir. sociedade, mas como não existe a separação de esferas pragmática e
Não é outro o motivo profundo pelo qual a linguagem foi sempre teórica, a atividade simbólica se transforma num fator constitutivo
pensada em relação ao conhecimento e a sua crítica sempre girou de inadequação entre o homem e as coisas. Assim a crítica de Nietzs-
che é dissolvente em relação ao saber em geral e não apenas em
relação à metafísica. O niilismo gerado pela paixão mórbida do con-
ceito compromete a existência em todas as suas instâncias: conheci-
94. Nietzsche, Sobre a verdade e a mentira no sentido extra moral, § 2, p. 193.

1
mento, valores morais, arte etc. Dir-se-ia que o Homem não tem
95. ld., ibid., p. 181.

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,
I - INTUIÇÀO E MtrODO FILOSÓFICO

como superar a sua condição de animal metafórico". Já em Bergson 11


a superação é possível, ao menos através da consciência do impasse
entre intuição e expressão, que faz com que a inelutabilidade do dis- I _
curso e o valor de um certo modelo de racionalidade possam, pelo
esforço de reflexão, vir a sofrer uma distorção tal que o homem pos- ETAPA CRITICA DA REINSTAURAÇAO DO
sa, mesmo através deles, vislumbrar a possibilidade de inserir-se re- OBJETO DA FILOSOFIA: EXAME DE TEORIAS
flexivamente na totalidade dinãmica e aceder à existência autêntica
sub specie durationis. TRADICIONAIS DO TEMPO

1. O PROBLEMA DA DURAÇÃO PSICOLÓGICA

A crítica bergsoniana das concepções tradicionais do tempo não


focaliza, num primeiro momento, nenhuma filosofia em particular.
Está antes voltada para certos resultados gerais, que nem sequer são
filosóficos em sentido estrito, mas que aparecem como procedimen-
tos padronizados do intelecto ou então como grandes resultados no
sentido de linhas mestras do pensamento que derivam desses proce-
dimentos. Talvez por isso possa causar certa estranheza - ao menos
à primeira leitura - um livro como Les Données Immediates de la
Conscience. Em primeiro lugar, por ser um livro de Psicologia que se
ocupa de Matemática - da gênese do número, por exemplo -; em
segundo lugar, por ser um livro que pretende realizar, de certa for-
ma, o projeto kantiano inscrito no título dos Prolegômenos a toda
metafísica futura que se queira constituir como ciência. Ou seja, por
pretender resolver um problema metafísico através dos dados de uma
psicologia mais verdadeira - mais atenta ao seu objeto imediato -
do que aquela que se pretende efetivamente como ciência. E até
mesmo ao "resolver" o problema pela demonstração de que, no limi-
te, ele não existe, a atitude bergsoniana espelha o kantismo. Espelhar
deve aqui ser entendido no sentido próprio, na medida em que, como
veremos, o trabalho bergsoniano reflete ao contrário a atitude kan-
tiana diante da filosofia. Em todo caso, e aprofundando um pouco as
razões da aludida estranheza, a crítica bergsoniana apresenta -se nos
0.1. como uma análise de conceitos que aparentemente, apenas, se
movem no interior da Psicologia. A análise dos conceitos e dos dados
96. Id.. ibid., p. 195. estritamente psicológicos tem como função abrir os horizontes para
116

.........
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11 - ETAPA CRITICA DA REINSTAURAÇÃO DO OBJETO DA FILOSOFIA 1. O PROBLEMA DA DURAÇÃO PSICOLóGICA

a reproblematização do tempo enquanto categoria metafísica funda- experiência, inclusive na experiência científica, não é viável sem um
mental. O entrecruzamento entre psicologia e metafísica já foi apon- trabalho profundo que consiste em repensar a ciência, e não apenas
tado como confusão, no sentido próprio, e é certamente uma inter- enquanto conjunto de procedimentos para fazer Teoria, mas enquan-
pretação como essa que contribui, entre outras, para os qualificati- to modo de construção de uma inteligibilidade que, em última aná-
vos de vita/ista ou de psicologista, que são por vezes atribuídos ao lise, deve referir-se às próprias coisas, à própria realidade que é con-
pensamento de Bergson. Entretanto não é preciso muito para mos- ceitualizada. Eis por que o uso dos dados científicos inscrito no mé-
trar que a amplitude da análise bergsoniana dos conceitos em 0.1. todo bergsoniano é sempre crítico: os resultados são reordenados e
deriva de causas mais profundas do que uma possível falta de defi- pensados em função de uma realidade que a ciência traduz necessa-
nição de limites entre os campos da psicologia e da metafísica. Antes riamente de maneira simbólica. Daí a extrapolação que se sente nos
de mais nada, seria o caso de considerar simplesmente o propósito textos em que Bergson tematiza os resultados científicos - o que
de 0.1. para verificarmos que a tarefa crítica de análise conceitual justificaria, do lado "cientificista", a acusação de que ele vai "além"
não pode ser separada do "problema da liberdade", objeto último da do que permitiriam esses mesmos resultados, ou então de que ele os
demonstração que se estabelece ao longo de toda a etapa crítica. O toma apenas por um lado, já que os mesmos resultados justificariam
objetivo é demonstrar que o problema da liberdade, tal como vem igualmente afirmações contrárias'.
sendo tradicionalmente equacionado, deriva de uma compreensão Seja como for, Bergson atravessa a ciência e, no caso que nos
inadequada da idéia de duração psicológica. Somos expressamente interessa aqui, a Psicologia, para reabrir a questão do tempo. Acom-
advertidos de que a tarefa critica que corresponde aos dois primeiros panhemos as grandes linhas de seu trabalho de interrogação do tem-
capítulos de 0.1. deve ser vista como introdução ao problema da po psicológico, que já é em parte a análise critica das concepções
liberdade, objeto do terceiro capítulo (O.I.-VlII). Vê--se que a crítica tradicionais de tempo. Como já mencionamos, ele não identifica
da Psicologia não é a finalidade última; passa-se por ela na direção interlocutores em particular. O que temos primeiramente em 0.1. é
do verdadeiro objetivo que é a abertura do pensamento para ques- a colocação de algumas dificuldades relativas à concepção de gran-
tionar o tempo - o que ultrapassa em muito o domínio da Psicolo- deza intensiva. "Admite-se ordinariamente" é a frase que introduz a
gia. Mas o leitor que se instalou na possível estranheza inicial de análise crítica (0.1.-1), e o pronome aqui certamente indica a Psico-
uma primeira leitura poderá ainda perguntar a que vem então a logia mais aceita no circuito oficial da ciência. Mas não seria inveros-
psicologia nisto tudo, e se terá de lhe reconhecer o direito à pergunta símil dizer que o que importa tanto ou mais que a ciência enquanto
uma vez que cerca de dois terços do livro abordam problemas de tal é a concepção filosófica geral que subjaz aos pressupostos da
psicologia até com relativo grau de especificidade técnica. A resposta ciência e que é a esta concepção geral que, podemos acreditar, este-
a tal pergunta, na verdade, demandaria em grande parte o exame do jam dirigidas as formulações de dificuldades tais como a assimilação
próprio método bergsoniano no que concerne ao reequacionamento da noção de grandeza à noção de intensidade na própria expressão
de problemas metafísicos a partir de uma restrição dos problemas a "grandeza intensiva", que se desdobra na possível contradição con-
formas acessíveis à experiência (evidentemente no sentido integral tida na idéia de uma quantidade inextensiva mas que se explica fi-
em que Bergson a entende). Dessa forma, não só a tarefa crítica, nalmente pela identificação entre intensidade e extensão virtual'. Esta
como também o trabalho positivo de reelaboração das noções, atra- explicação, que nos permite entender como se pode em psicologia
vessa a psicologia, inclusive numa dimensão bem mais ampla do falar ao mesmo tempo de intensidade e de grandeza, já abre por sua
que a perspectiva adotada em 0.1. e que a leitura de Matiêre et
Mémoire nos revelará. De forma semelhante a mesma questão se
repetirá a propósito do entrecruzamento entre Biologia e Ontologia 1. Cf. por exemplo, Fénart, Michel, Les Assertions Bergsoniennes, Vrin, Paris, 1936,
capo I.
em Évolution Créatrice. 2. "Na idéia de intensidade, e mesmo na palavra que a traduz, encontraremos a
imagem de uma contração presente e conseqüentemente de uma dilatação futura, a
Mas é claro também que isso representa apenas um lado da imagem de uma extensão virtual e, se assim se pode dizer, de um espaço comprimi-
questão. A redução de problemas metafísicos a formas acessíveis na do" (0.1.-3).

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11 - ETAPA CRíTICA DA REINSTAUAAÇÃO 00 OBJETO DA FILOSOFIA 1. O PROBLEMA DA DUAAÇÃO PSICOLÓGICA

vez a perspectiva crítica fundamental. pois através dela entendemos forma esses estados que se toma em primeiro lugar inadequado di-
também que tal assimilação se toma possível devido a uma outra. de zer que eles estão na alma: antes deveríamos dizer que eles são a
cunho mais fundamental e com carga significativa bem mais filosó- alma. Tão pequeno reparo de linguagem leva na verdade muito lon-
fica: a assimilação do tempo ao espaço. que faz com que desapareça ge: trocamos uma seqüência de unidades bem demarcadas no tem-
praticamente a diferença de natureza entre o extenso e o inextenso. po ou um estado psicológico que supomos capaz de crescer e dimi-
A explicitação deste procedimento se desdobra no exame das dife- nuir como grandeza por um progresso qualitativo em que as mudan-
rentes hipóteses explicativas que procuram fundamentar a mensura- ças são de natureza e onde não se pode medir a complexidade em
ção do estado psicológico como quantidade inextensa. Um percurso graus de grandeza. A heterogeneidade é a característica mais mar-
crítico relativamente longo mostrará o equívoco da comparação dos cante da vida psicológica. Portanto não é por composição de ele-
estados psicológicos em termos de mensuração. A começar pelo que mentos ou aumento de grau que passamos de um estado psicológico
deveria ser o mais óbvio: a dificuldade de medir os estados psicoló- a outro. O psiquismo inteiro se compromete na intensidade do esta-
gicos profundos. cuja ligação com movimentos fisicos e musculares do psicológico. Mas a linguagem nos engana na medida em que nos
concomitantes é mais dificil de estabelecer. É talvez o caso mais fa- leva a confundir o estado psicológico com a sua causa. e a separação
vorável à argumentação bergsoniana. Mas este início não significa nítida que operamos no mundo externo com os elementos que pre-
apenas a comodidade da argumentação. Há um significado intrínse- sumivelmente causam as vivências psicológicas. nós a repetimos
co na escolha dos estados psicológicos profundos para mostrar a indevidamente em relação aos estados internos. É claro que a ligação
impossibilidade da mensuração ou de toda e qualquer abordagem entre sentimento profundo e causa exterior é bem mais remota do que
de cunho fisicalista. O que se pretende mostrar é. também. e talvez a ligação entre sensação e causa exterior. Por isto Bergson analisa tam-
principalmente. que o Eu significa antes de tudo esses estados: eles bém esta modalidade de representação para completar o quadro crítico
é que são a marca do verdadeiramente humano. pois é por eles que deste momento inicial da investigação da duração psicológica.
nossa psique se distingue do complexo nervoso das demais criaturas.
Também aqui é possível mostrar que não há estrita correspon-
Portanto. se a Psicologia pretende o conhecimento do psiquismo
dência entre mensuração física e o que seria a mensuração psicoló-
humano. ela não o obterá através do nivelamento dos estados psico-
gica. supondo-se que ela fosse possível. Por ex.: a consciência do au-
lógicos profundos com a vida psicológica superficial - e tal
mento do esforço não é causada pela maior força de emissão. mas
nivelamento constitui a melhor maneira de se perder a especificida-
pela quantidade cada vez maior de músculos que se comprometem
de humana. Poderíamos argumentar talvez que a Psicologia não se
na operação. Também aqui há mudança qualitativa e complexidade
define propriamente como o estudo do homem - haja vista que a
crescente e não simples aumento de grau de intensidade (0.1.-18).
psicologia experimental utiliza de preferência organizações psíqui-
Há como que uma convergência de interesses por parte de toda a
cas menos complexas em suas experimentações. a fim de obter jus-
vida psíquica e mesmo por parte de todo o organismo. que eviden-
tamente o modo básico de funcionamento do psiquismo. a partir do
temente não é percebida enquanto tal. O que percebemos é o que a
qual poderíamos chegar à compreensão da vida psicológica do ho-
consciência nos faz perceber: localização num único ponto. exata-
mem. pela variação dos graus de complexidade. Mas no próprio
mente naquele em que é útil que se sinta localizado o esforço. a exem-
momento em que adota essa perspectiva. a Psicologia perde a qua-
plo do que acontece quando se levanta um peso. O mesmo ocorre
lidade específica do psiquismo humano (0.1.-5).
com a atenção voluntária. O que se pretende mostrar é que a Psico-
É possível que a classificação das representações nos prepare para logia se equivoca na maneira de considerar a multiplicidade de esta-
uma abordagem mais fiel da vida psíquica. Esta parece ser ao menos dos simples que estão presentes num estado psicológico complexo.
a esperança quando Bergson empreende uma análise dos sentimen- Não se questiona que haja estados simples; mas a multiplicidade por
tos. característica da vida psicológica "profunda". A própria descri- eles formada não é. como pensa a Psicologia. discreta e suscetível de
ção que a Psicologia faz costumeiramente do sentimento é equívoca. análise em elementos. mas sim uma multiplicidade de interpenetra-
As características de totalidade e interpenetração definem por tal ção que logo mais será chamada de multiplicidade qualitativa.

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.... -
11 - ETAPA CRíTICA DA REINSTAURAÇÃO DO OBJETO DA FILOSOFIA 2. A SEGMENTAÇÃO DA TEMPORALlDADE. O EXEMPLO ARISTOTÉLICO

Nos estados psicológicos analisados, existe provavelmente uma estados psicológicos como diferenças de grandeza. No mundo fisico,
multiplicidade de sensações simples. O problema está em se consi- é a abstração da qualidade que permite a mensuração, a qual é sem-
derar que o estado psicológico complexo é uma somatória de sensa- pre uma superposição ideal. Na Psicofísica, o que acontece é uma
ções ou uma sensação aumentada no seu grau de grandeza. Portanto tradução simbólica da qualidade em quantidade. De nada adianta
devemos nos voltar agora para o exame das sensações, divididas em distinguir entre grandezas extensiva e intensiva. A qualidade pura
afetivas (prazer ou dor) e representativas (denotam algo), se bem que não é atingida e assim se perde a verdadeira essência da multiplici-
esta distinção não deva ser tomada em caráter absoluto. O que se dade psicológica. A isso Bergson chama objetivação, pela linguagem,
verá aqui é que, ao contrário do que se poderia pensar, não há uma dos estados subjetivos (D.I.-52). E a idéia de grandeza, aplicada aos
ligação tão direta entre a sensação e sua causa exterior, como se a estados psicológicos, é esta objetivação simbólica. Seria preciso, en-
sensação fosse apenas, sempre e puramente o equivalente conscien- tão, procurar uma alternativa que nos fornecesse a imagem da mul-
te de uma modificação orgânica. Sem dúvida, existe esta ligação, mas tiplicidade interna dos estados psicológicos. Mas será buscando as
ela deve ser vista de forma diferente. Talvez não se tenha perguntado causas da representação quantitativa da vida psicológica que pode-
ainda por que existem sensações conscientes; porque não existe em remos melhor nos aproximar dessa imagem (que teria a função de
todos os casos simplesmente a passagem do estímulo à reação, como substituir o referencial do conceito), e que não forneceria, diga-se
aliás acontece em muitos seres organizados. A sensação consciente
desde já, uma representação nítida e bem delimitada da vida psíqui-
tem, digamos, um propósito: ela esboça uma reação futura que não
ca, mas que poderia, mais do que o faz a representação conceitual,
é simplesmente a reação automática que se seguiria a um estímulo.
Ela interrompe a reação automática'. Costumamos dizer que a sen- introduzir-nos na verdade da duração psicológica'.
sação é tanto mais intensa quanto maior é na verdade o número de
sensações que se vêm ajuntar à primeira. A sensação não aumenta,
ela muda: a questão refere-se à qualidade e não à quantidade. É 2. A SEGMENTAÇÃO DA TEMPORALIDADE.
claro que há uma correspondência com causas exteriores: a sensa- O EXEMPLO ARISTOTÉLICO
ção não aparece nem muda sem causa. Uma vez que as causas são
extensas e mensuráveis, associamos as variações da causa com a varia- O estudo das multiplicidades tem como objetivo definir o caráter
ção da sensação, ou seja, acreditamos que exista correspondência específico da multiplicidade psicológica, o que significa verificar de
entre quantidade de causa e quantidade de efeito (sensação). Esque- que modo os estados de consciência se relacionam uns com os ou-
cemos simplesmente que as sensações são inextensas e que sua varia- tros e qual a visão de totalidade que se pode ter da vida psíquica. Já
ção é qualitativa e ocorre de outra maneira, como Bergson mostra ao se viu de que maneira a Psicologia tende a considerar quantitativa-
analisar os exemplos do som e das notas musicais. Todo esse traba- mente tanto os estados psicológicos em si mesmos como as relações
lho consiste na reinterpretação de alguns experimentos típicos da que mantêm entre si, e de que maneira tais estados podem, no caso,
Psicologia, na reordenação de dados empíricos que se tornam obje- ser reduzidos a um número que os caracterize em termos de grande-
tos de uma nova atenção, o que leva ao estabelecimento de um re- za, os relacione enquanto unidades delimitadas e os torne adequa-
sultado que pode ser expresso como a diferença entre efeito fisico e dos à medida. Em tal sentido se procede, em D.I., ao estudo do nú-
efeito psicológico, distinção cujo alcance mais adiante se verá. mero: as implicações da teoria do número servirão de mais um ele-
mento para constituir o quadro no qual é pensada a multiplicidade
Há no entanto um postulado que, utilizado na Psicologia, possi-
bilita a mensuração: consiste em tomar a sucessão qualitativa dos

4. "A idéia de intensidade está pois situada no ponto de junção de duas correntes,
3. "A intensidade das sensações afetivas seria pois apenas a consciência de movi- das quais uma nos traz de fora a idéia de grandeza extensiva e outra vai buscar na
mentos voluntários que se iniciam, que de alguma maneira se esboçam nestes esta- profundidade da consciência, para trazê-la à superfície, a imagem de uma multiplici-
dos, e que teriam seguido seu curso se a natureza tivesse nos feito como autômatos dade interna. Resta saber em que consiste esta imagem: se ela se confunde com a do
e não como seres conscientes" (D.I.-26). número ou se dela difere radicalmente" (D.I.-54).
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11 - ETAPA CRfTlCA DA REINSTAURAÇÂO DO OBJETO DA FILOSOFIA 2. A SEGMENTAÇAO DA TEMPORAUDADE. O EXEMPLO ARISTOTÉUCO

psicológica - vale dizer, no qual é pensada a forma de as vivências do justapomos unidades para obter determinado número, acredita-
psíquicas transcorrerem no tempo. A teoria do número nos favorece- mos percorrer momentos da duração; mas na verdade contamos estes
rá a entrada no exame de alguns pontos da história da Filosofia, fa- momentos como se fossem pontos no espaço (0.1.-58). Kant teria
cilitando assim a identificação de leituras bergsonianas de alguns de aqui teorizado sobre o senso comum, o qual opera sempre e espon-
seus possíveis interlocutores no âmbito do problema do tempo. taneamente a partir da confusão entre duração e espaço na constru-
ção do número. A ambigüidade da própria noção de unidade entra
O número é definido como uma coleção de unidades idênticas, em larga medida nesta confusão. Pois podemos considerar a unida-
ou supostas como tal, o que é necessário para que possamos contá- de como indivisível enquanto elemento formador do número; mas
-las (0.1.-57). Considerar determinada quantidade e contar os ele- mesmo a unidade, quando objetivada, torna-se divisível enquanto
mentos aí existentes significa considerar - para efeito de contagem multiplicidade, quando mais não seja, ao menos por ter sido ela fru-
- como idênticas todas as unidades, negligenciando as diferenças to de um ato do espírito que consiste em unir: reencontramos ainda
existentes. O que não quer dizer que a quantidade se reduza a um aqui a idéia kantiana de síntese. Temos que a indivisibilidade da uni-
único elemento: pelo contrário, é a justaposição dos elementos su- dade é provisória: não a caracteriza em termos de ser, mesmo por-
cessivamente que está implicada na idéia de contar e é por aí que que o seu ser é de natureza espacial e, portanto, divisível. A simpli-
chego ao número. A operação de contar implica, pois, o espaço en- cidade com que os números se apresentam ao espírito é fruto de
quanto elemento no qual são justapostas as unidades. Somente as- uma ilusão criada a partir do hábito de manipular os números en-
sim posso ter a representação simultânea dos objetos contados e quanto simples, sem considerar a multiplicidade que está sempre
conseqüentemente chegar ao seu número. A intuição do espaço implícita neles. Guardemos a idéia de que as unidades são virtual-
acompanha sempre a idéia de número, mesmo quando este deixa de mente divisíveis: veremos como ela se encontra, segundo Bergson,
representar imediatamente uma coleção de objetos e se torna um nos fundamentos do quadro aristotélico da reflexão sobre o tempo,
símbolo abstrato. Não se pode deixar de referir a Kant o termo e, possibilitando a afirmação bergsoniana de que a filosofia ocidental a
provavelmente, a idéia de intuição utilizados nesse contexto. A intui- partir daí se moverá substancialmente nos limites de um equívoco
ção do espaço é o elemento no qual representamos o número, é o originário.
que nos permite representá-lo, portanto a condição de representa-
ção. Na Estética Transcendental, como se sabe, o espaço e o tempo Pode ser que o ato do espírito que nos faz pensar um número
são vistos como intuições puras, condições da representação, a qual seja algo simples; mas a objetivação imediata do que é pensado como
pode ser concreta, isto é, de objetos medidos ou contados, ou abstra- que reifica este número, tornando-o, ainda que unidade, infinita-
ta, referente a objetos puramente matemáticos. Na Geometria, a con- mente divisível. A objetividade se caracteriza pela decomposição, ao
dição transcendental seria o espaço, na Aritmética, o tempo. Em menos virtual. Somente através dela cremos atingir a nitidez que
Bergson, sem abordar por enquanto o problema do transcendental, deve caracterizar o plenamente conhecido. Neste sentido o indivisí-
o espaço é claramente colocado como condição das operações arit- vel estaria mais do lado do conhecimento confuso ou subjetivo (0.1.-
méticas. Isto levanta interessantes questões de relação entre a teoria 63). Tudo isto quer dizer que há uma solidariedade entre o senso
bergsoniana do número e a Estética Transcendental, que serão abor- comum e a ciência no que diz respeito à intuição do espaço como
dadas mais adiante. Limitando-nos por ora aos aspectos mais sim- condição de representação do número. Restará ver se a idéia de mul-
ples e diretos, o fato de Bergson entender que é o espaço e não o tiplicidade a que se chega a partir desta teoria do número é compa-
tempo a condição da aritmética já antecipa implicitamente algo da tível com a experiência direta do fluxo dos estados de consciência.
crítica bergsoniana da concepção kantiana de tempo: na verdade, Não há dúvida de que é uma determinada caracterização do movi-
Bergson tentará mostrar que em Kant a condição da aritmética é o mento dos estados mentais que está em jogo no estudo da especifi-
tempo espacializado. Aparentemente, diz Bergson, quando contamos, cidade da multiplicidade psicológica. A teoria bergsoniana do núme-
esta operação se dá no tempo, não entrando aí nenhuma represen- ro nos oferece a ocasião para abordar algumas questões fundamen-
tação relacionada com a extensão. Isto, no entanto, é ilusório: quan- tais da definição de tempo em Aristóteles e focalizar desta maneira a

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11 - ETAPA CRiTICA DA REINSTAURAÇÀQ DO OBJETO DA FILOSOFIA 2. A SEGMENTAÇÃO DA TEMPORAUDADE. O EXEMPLO ARISTOTÉLICO

análise bergsoniana do quadro fundador da reflexão sobre a tempo- télica, buscando exatamente encontrar um equilíbrio ou a manuten-
ralidade para a tradição ocidental. ção de uma tensão entre os aspectos citados acima. A partir da de-
finição aristotélica do tempo como o número do movimento segundo
A teoria bergsoniana do número nos remete a Aristóteles porque
o anterior e o posterior, é possível ver primeiramente quais são os
neste filósofo é bem estreita a ligação entre tempo, número e movi- elementos considerados por Aristóteles como fazendo parte da defi-
mento, a partir da definição aristotélica do tempo como o número do nição, e a reflexão aristotélica se moldará através da maneira de or-
movimento (Física, N, 11, 219b). O percurso da argumentação de ganizar estes diversos elementos. São eles:
Aristóteles não deixa de ser ilustrativo inclusive em relação às críticas
de Bergson à tradição. Mesmo que não se concorde inteiramente a) Movimento: porque é no movimento que identificamos a pas-
com elas, é possível reconhecer pelo menos a que problemas, na sagem do tempo. A mudança é uma experiência que revela o tempo.
teoria aristotélica, remetem as considerações de Bergson e, reorde- b) Duração: porque é na experiência psicológica da duração
nando a leitura bergsoniana dessa teoria, avaliar a importância de como mudança interna que temos o primeiro acesso à experiência
Aristóteles como interlocutor privilegiado no contexto das críticas de do tempo.
Bergson às concepções tradicionais do tempo. Apenas para nos situ-
ar perante o problema, podemos dizer que as interpretações sedi- c) Anterior/posterior: porque identificamos na passagem do tem-
mentadas durante a história da exegese aristotélica alinham-se prin- po as divisões - pelo menos virtuais - que nos permitem separar as
cipalmente segundo os dois aspectos de que se compõe a teoria aris- dimensões do tempo.
totélica e que poderíamos chamar, ainda que um tanto anacronica- d) Instante: porque apreendemos o tempo como realidade sin-
mente, de subjetivo e objetivo. O aspecto subjetivo diz respeito ao gular no ato de apreensão de sua passagem: o que foi, o que é, e o
ato do espírito presente na apropriação da realidade através do modo que será, e tal apreensão se dá na percepção do instante como espé-
temporal e o aspecto objetivo é aquele pelo qual o tempo está nas cie de unidade temporal.
coisas ou no movimento das coisas. É certamente na tensão ou no
equilíbrio entre estes dois aspectos que se deve procurar a autenti- e) Número: porque de certa maneira contamos o tempo através
cidade do pensamento aristotélico sobre o tempo. É verdade tam- de uma ordenação ou determinação dos instantes, que é uma enu-
bém que, em grande parte, as divergências de interpretação se ligam meração.
às diferentes atitudes filosóficas que os intérpretes tomam diante do f) Medida: porque tal enumeração tem como finalidade saber
texto original e que são conseqüência de suas próprias orientações. - com propósito teórico ou prático - o quanto e o como da passa-
Dubois' traça um quadro das possibilidades interpretativas que mais gem do tempo, a fim de que possamos representar a partir de dada
se destacaram recentemente, fazendo notar a relação das interpreta- referência o tempo enquanto modo de apreciação da realidade, visto
ções com as correntes filosóficas que influenciaram as respectivas que o tempo é parte de nossa representação cronológica.
leituras. Teríamos, por exemplo, a interpretação de Hamelin influen-
Trata-se de organizar esses elementos, o que será feito ao longo
ciada pelo idealismo kantiano; a de Moreau, em grande parte devida
dos capítulos em que Aristóteles desenvolve a teoria. Qual é o senti-
a Plotino e Agostinho; a de Carteron, comprometida com a filosofia
do do ser do tempo? Ou então: como o tempo se torna uma questão?
do próprio Bergson; a de Festugiere, que se move a partir do tomismo.
A questão do ser e da natureza do tempo toma assim a feição comum
Apesar da diversidade das interpretações, ou mesmo por causa a vários problemas tratados em Aristóteles: o exame crítico da expe-
dela, podemos traçar um percurso sumário da argumentação aristo- riência espontânea. Tal exame conduz a dificuldades ou aporias, as
quais configuram as linhas que deverão ser seguidas na elaboração
da teoria, que é a tentativa de solução das aporias.
5. Dubois, Jacques Mareei, l.e Temps et l'Instant selon Aristote, Desclée de Brouwer,
Paris, 1967. As considerações que fazemos neste item acerca da teoria aristotélica do
a) Como o que é composto por partes que não são (passado e
Tempo são totalmente calcadas neste livro. futuro) pode pretender ao ser?

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11 - ETAPA CRfTlCA 'DA REINSTAURAÇÃO DO OBJETO DA FILOSOFIA 2. A SEGMENTAÇÃO DA TEMPORALlDADE. o EXEMPLO ARISTOTÉLICO

b) Se uma coisa divisível é, suas partes devem ser. Isto não acon- de que existe um problema ontológico que fica no esquecimento,
tece com o tempo. mesmo que tal problema nem sequer tenha sido posto por Aristóteles.
c) Se o tempo não é composto de instantes (enquanto partes) Examinemos agora a aporia do instante. A importância dessa
como a realidade do instante funda a realidade do tempo? Essa ter- dificuldade - que se mostra na longa análise que lhe dedica Aristó-
ceira aporia parece mostrar-se a mais importante, tendo em vista o teles - está justificada na medida em que, como já vimos, é a relidade
desenvolvimento que receberá. do instante que funda a realidade do Tempo. O problema se toma,
pois, o de apreender inteligivelmente o instante. Em princípio há
Todavia, antes de examiná-Ia, convém deter-se num problema duas hipóteses:
que diz respeito à própria índole da interrogação aristotélica e que
pode ser levantado a partir de uma perspectiva heideggeriana de ques- a) O instante é sempre o mesmo: no entanto podemos argu-
tionamento. Trata-se da maneira como Aristóteles questiona o ser e mentar que, sendo o instante entendido também como limite, o tem-
a natureza do tempo, e, no desenvolvimento posterior da argumen- po é divisível e podemos considerar segmentos do tempo .- tempos
tação, parece ocupar-se unicamente com a questão da natureza e finitos - que comportariam pelo menos dois instantes, o começo e
mais ainda - com a natureza do tempo na representação que dele o fim. Dizer que o instante é sempre o mesmo equivaleria, pois, a
temos. Moreau, a partir de uma visão plotiniana, critica em Aristóte- negar a passagem do tempo (Fís. IV, 218a, ss.).
les o abandono do problema propriamente ontológico em beneficio b) O instante é sempre diferente: mas ainda não podemos dizer
do problema epistemológico - a função do tempo na representação quando cada instante desaparece para dar lugar ao seguinte, uma
do reaL A resposta, por um lado, pode ser bem mais simples do que vez que não podem coexistir. Tampouco se pode passar de um ins-
deixa entrever a pergunta. Podemos dizer que Aristóteles não tem de tante para outro, visto que o tempo é contínuo e infinitamente divi-
se preocupar com o problema ontológico porque ele não o propõe. sível, como a linha (Fís. IV, 218a, 11, ss.).
Sua pergunta pelo ser do tempo significa apenas a tentativa de escla-
recer aquilo que a experiência comum identifica como tempo. Tem A resolução do impasse da estrutura do instante configuraria o
isso que comumente chamamos de tempo uma existência real, ou quadro da teoria do tempo. O exame das soluções historicamente
seja, podemos definir realmente o tempo? É esse um procedimento anteriores, como é costume em Aristóteles, deixa um saldo positivo:
metodológico comum em Aristóteles: partir da definição nominal para a ligação entre tempo e movimento. Por exemplo, no Timeu o tempo
chegar à definição real (cf. Segundos Analíticos, B, I, 89b, 31-35). Ou é o movimento do universo. Aristóteles retém este dado para criticá-
ainda: na medida em que o ser se diz em vários sentidos, em qual -lo. A identificação entre tempo e movimento é apenas aparente por-
desses sentidos podemos dizer que o tempo é? O que significa situar que: a) o movimento está em cada coisa que se move e o tempo está
inteligivelmente as experiências que manifestam o tempo, justificá- em toda parte (Fís. IV, 218b, 10-13); b) movimento e mudança são
-Ias e dar conta ou razão de suas possíveis contradições ou aporias. mais rápidos ou mais lentos, o que não ocorre com o tempo que, pelo
Aristóteles não pergunta, pois, por que existe o tempo, no sentido em contrário, serve para medira lentidão ou a rapidez (Fís. IV, 218b, 13-18).
que Leibniz perguntará por que o ser e não antes o nada. A razão do Assim, por enquanto sabemos apenas que tempo e movimento,
existir do tempo ultrapassa a possibilidade de questionamento. Não embora estreitamente ligados, não se identificam. Aristóteles toma
há dúvida de que se pode dizer que Aristóteles se inscreve na aurora então outro dos elementos já enumerados como eixo de análise para
da tradição metafisica que significa - segundo Heidegger - a subs- reexaminar o problema: a experiência psicológica da duração, ou a
tituição da pergunta pelo ser pela pergunta pelo ente. A própria divi- análise do movimento interno. Note-se que a assimilação entre du-
são categorial visa de certa forma operacionalizar esta substituição ração e movimento (mudança) interno já oferece, do ponto de vista
que é de índole socrático-platônica. Aristóteles procura uma defini- bergsoniano, flanco para a crítica, embora tenhamos de examinar
ção - um conceito que permita explicar o tempo tal qual aparece à ainda a questão da originalidade do movimento temporaL Há que se
experiência e à reflexão sobre esta experiência. Isso não anula o fato atentar também para o problema da escala da medida do movimen-
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11 - ETAPA CRITICA DA REINSTAURAÇAO DO OBJETO DA FIWSOFIA 2. A SEGMENTAÇÃO DA TEMPORALlDADE. O EXEMPLO ARISTOTÉLICO

to, que é outro movimento (perfeito): movimento uniforme de um terior, numeramos o movimento segundo a sucessão, segundo o tem-
universo único - postulado cosmológico. Tal postulado entretanto po. Daí a definição aristotélica: o tempo é o número do movimento
precisa ser bem entendido: Moreau aponta para o fato de um movi- segundo o anterior/posterior (Fís. IV, 219 11 b 33-34).
mento medir outro, pois embora o tempo não seja o movimento das Os esclarecimentos que faz Aristóteles após o percurso que o
realidades naturais, ele seria movimento perfeito do primeiro céu. levou à definição nos darão oportunidade de abordar mais direta-
Enquanto representação, seria o movimento abstrato ou tempo mate- mente alguns aspectos da crítica bergsoniana. Tal crítica relaciona-
mático relacionado com a medida. Em contrapartida, Dubois assina- -se de perto com a teoria bergsoniana do número presente nos Da-
la dois aspectos: a) o tempo aristotélico, mesmo se confundido com dos Imediatos. Acreditamos que é ela que fornece os parâmetros ime-
o movimento do primeiro céu, não seria abstrato, pois o movimento diatos para a avaliação bergsoniana da teoria aristotélica.
do primeiro céu é uma realidade cosmológica efetiva; b) a medida
extensiva (grandeza) é o aspecto exterior do tempo, pois mesmo o A exposição da teoria do número tem como função fornecer um
movimento concreto do primeiro céu serve de referência para medir instrumento que deverá ajudar a compreensão da substituição do
o tempo. A escala de medida na verdade é a duração deste movimen- tempo pelo espaço que se opera na ciência e na filosofia; deve aju-
to privilegiado. dar-nos a pensar como se chega a esta substituição quando a refle-
xão sobre o tempo se desenvolve moldada pela reflexão sobre o es-
De qualquer forma, o reexame do problema se dá no âmbito da paço. Não há dúvida de que o problema ontológico está fortemente
duração interna como trabalho de interpretação da experiência ínti- presente nessa crítica: podemos mesmo dizer que a finalidade últi-
ma das mudanças subjetivas. Isto faz sentido na medida em que é a ma é a compreensão do ser do tempo por ele mesmo. A etapa do
consciência da mudança que nos revela o tempo. Dito de outra for- estudo da duração psicológica será a primeira dentre as necessárias
ma, é a diferença dos instantes que causa o fluxo do tempo. Tanto a para a construção de uma teoria positiva. A teoria do número permi-
identidade quanto a diferença dos instantes é função de um ato de te em primeiro lugar compreender como e por que a duração é pen-
espírito, ou seja, de uma determinação decorrente de que sentimos sada em termos de multiplicidade numérica, sendo uma das carac-
ou sofremos mudança. Perceber o tempo é ter sensação de movi- terísticas principais a divisibilidade que permite a decomposição e a
mento (ao menos interno) e determiná-lo por ato de espírito. Isto recomposição. É interessante notar que a divisibilidade se conserva
não supõe de forma alguma dependência real do tempo em relação virtual enquanto o espírito se fixa sobre os números separadamente;
à alma, como afirmaria uma interpretação idealista, por exemplo a é este um processo indivisível; mas, exatamente, o espírito se fixa
de Hamelin. Simplesmente, percepção do movimento e percepção sobre cada parte da multiplicidade, isola-a e a conserva para juntá-
do tempo se implicam mutuamente. Guardemos tal implicação e a -la a outras. Tal operação pode ser invertida, decompondo-se as par-
analogia que encerra, pois sobre este ponto incidirá com muita vee- tes sintetizadas. Isto, segundo Bergson, só pode ser feito com partes
mência a crítica bergsoniana. Os elementos que vimos até aqui per- do espaço, e por isto é com o espaço que se constrói o número (D.\.-
mitem que Aristóteles reformule criticamente a teoria do Timeu que 63). Devemos entender essa operação apenas como uma analogia?
identificava tempo e movimento. O tempo não é movimento mas é Apenas um procedimento que nos auxilia a compreender o tempo?
qualquer coisa do movimento, e resta saber o quê. Aqui se retoma a Certamente todos os que teorizaram sobre o tempo desta maneira
ordenação dos elementos citados anteriormente. O tempo é, no concordariam que se trata de uma analogia. A crítica de Bergson,
movimento, aquilo que está determinado pelo instante. O que está porém, não se contentaria com essa confissão. Pois primeiro é pre-
determinado pelo instante é a relação anterior/posterior do movi- ciso discernir as causas que tornam a analogia tão necessária e tão
mento. Determinar o anterior/posterior é, para Aristóteles, numerar constante; e em seguida se perguntar se a analogia não acaba por
o movimento: contar os instantes. O anterior/posterior, quando é suprimir um dos termos que a compõem, justamente o tempo, que
função de determinação pelo instante (sucessão) e não pelos pontos assim desaparece no próprio procedimento que deveria esclarecê-lo.
da extensão (justaposição), é passagem de tempo. Quando, por ato Isso nos remeteria sem dúvida às questões relativas à crítica da inte-
do espírito, determinamos tal passagem em termos de anterior /pos- ligência, que já consideramos. O fato é que a representação simbó-

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2. A SEGMENTAÇÃO DA TEMPORALlDAOE. O EXEMPLO ARISTOTÉLICO

lica dos estados de consciência em termos de multiplicidade numé- se dá o modo espacial da estrutura anterior/posterior parece pois
rica - resultado da analogia - significa ver os estados de consciên- fornecer o modelo para pensar a mesma estrutura no contínuo tem-
cia através da extensão, atribuindo-lhes propriedades que de fato poral. Mas o que é anterior/posterior em termos de movimento ex-
não possuem. A analogia portanto nos leva demasiado longe e é muito tenso? É posição. Na sucessão temporal, o anterior/posterior não
mais do que um procedimento auxiliar. Ela faz com que os estados poderia ser posição porque não há um conjunto de posições anterio-
de consciência apareçam para nós como extensos, o que significa a res e posteriores coexistentes no tempo, justamente porque o tempo
perda definitiva da essência do psíquico. O distanciamento entre é movimento de sucessão. Sendo assim, aquilo que permite ao mo-
símbolo e simbolizado faz com que o símbolo acabe por aparecer vimento, na sucessão, ser ordenado em termos de anterior/posterior
como a única realidade'. Assim, o caminho correto seria tentar isolar (pelos instantes) é o tempo. Portanto a estrutura anterior/posterior tem-
a consciência da extensão e tentar perceber o seu movimento inde- poral seria independente e original em relação ao movimento exten-
pendente da exterioridade. so. Dubois chega a dizer que este é na verdade o primeiro modelo
que permitirá ao próprio movimento ser ordenado em termos de
Como sabemos que Aristóteles desenvolve a reflexão sobre o anterior/posterior, apoiando-se em Fís. IV, 219 a 22-25: o tempo é
tempo em analogia com o movimento extenso, vamos identificar na aquilo que, uma vez dado o movimento, permite nele discernir o
argumentação aristotélica os passos da analogia para confrontar com anterior/posterior. Este ato do espírito de discernir ou de captar, no
a crítica de Bergson. Não há dúvida de que, ao menos num primeiro movimento, o anterior/posterior, é propriamente numerar no senti-
momento, a analogia é afirmada em termos tão fortes que se poderia do de Aristóteles: ordenar, por meio dos instantes, o antes e o depois.
até mesmo pensar numa redução. Aristóteles dá como característi- O instante tem pois uma função numerante que faz dele a unidade
cas que ligam tempo e movimento a continuidade e a extensão, re- temporal e, nesse sentido, é sempre o mesmo. A analogia se pode
duzindo em seguida a continuidade do movimento e do tempo à enunciar deste modo: assim como o móvel é idêntico enquanto se
extensão (Fís. IV, 219 a 12-13). Há pois analogia entre grandeza, mo- movimenta (ou não seria do mesmo movimento que estaríamos fa-
vimento e tempo. O sentido da analogia em Aristóteles não é o de lando), também o instante permanece idêntico e assegura a conti-
uma igualdade linear, nem o estabelecimento de relações de compa- nuidade do tempo. Além da analogia com o móvel há também a
ração simples, termo a termo. Para Aristóteles, a analogia significa analogia com o ponto. Este é fim e começo, une e divide. Isto é válido
igualdade de relações entre seres pertencentes a categorias diferen- também para o instante, mas com a diferença de que as partes da
tes, que são aproximados em razão de uma similitude profunda (Met., linha que o ponto divide existem em ato com ele, enquanto as partes
N, 1093 b 18). Assim, há analogia entre o tempo e o movimento do tempo que o instante divide não existem; somente o instante
porque, embora diferentes enquanto categorias, ambos têm relação presente existe em ato. Aristóteles parece fundamentar a diferença na
com o contínuo, cada qual no gênero que lhe corresponde: continui- impossibilidade de coexistência real dos instantes. No caso do ponto,
dade espacial e continuidade temporal. O contínuo é o fundamento é o contínuo espacial que funda a sua realidade. No caso do instante,
da analogia. Para Aristóteles todo contínuo supõe uma ordem, repre- é ele que funda a realidade temporal. Teria tal diferença um signifi-
sentada pela estrutura anterior/posterior. O contínuo temporal é cado suficientemente amplo e profundo para fundamentar a origi-
caracterizado pelo número, maneira de contar os instantes segundo nalidade do tempo? Aristóteles não deixa de afirmar que o tempo é
o anterior/posterior. Esta será a originalidade do contínuo temporal. um contínuo, assim como a linha. É nisso que se funda a analogia.
Mas o modelo de ordenação do contínuo é primeiramente extenso: Tempo e espaço são diferentes gêneros de contínuo. A analogia, lem-
o lugar é a primeira forma de identificação da ordem anterior/pos- bremos, se faz entre realidades pertencentes a gêneros diferentes,
terior (Fís. IV, 219 a 14-16). A extensão, enquanto contínuo em que que entretanto apresentam similitude profunda. Como a analogia
está no movimento, isto é, mais no móvel e no instante do que no
contínuo como base ou sustentáculo, ou ainda como diria Bergson,
6. "Se, para contar os fatos da consciência, devemos representá-los simbolicamente
no espaço, não é verossímil supor que esta representação simbólica modificará as enquanto "meio homogêneo", é preciso que se ressalte também que
condições normais de percepção interna?" (0.1.--67). o instante não é pensado como unidade que se adiciona a outra

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I unidade para constituir uma totalidade. Nesse sentido, o tempo não é uma totalidade que não tem partes enquanto não for dividido por
deve ser entendido nos termos de quantidade discreta. Devemos um ato do espírito que - quase se poderia dizer - cria as partes:
pensar que, assim como o móvel é aquilo que permite conhecer o então a parte da linha será um segmento da linha e a parte do tempo
movimento, o instante é aquilo que permite conhecer o tempo; qua- um segmento do tempo. Isto quer dizer que tanto a linha espacial
se como se fossem unidades lógicas. Dizer que o instante mede o como o tempo são potencialmente divisíveis em partes, mesmo que
tempo é algo que não precisa ser entendido em termos rigorosamen- não o sejam atualmente. Isto se aplica ao movimento e ao tempo. O
te matemáticos. O instante é medida, no sentido em que sua estru- movimento é uno; se o dividirmos ele será intermitente (Fís. IV, 263
tura retrata a realidade do tempo e assim ele serve de padrão ou a 23 sS). É a partir desta distinção entre a divisibilidade potencial e
parâmetro para o conhecimento do tempo. atual que Aristóteles refuta Zenão: o movimento do móvel tem de
atravessar a distância infinitamente divisível, só que esta divisibilidade
Aqui já podemos comparar os argumentos. Bergson salienta o não é atual e, por isso, o móvel supera a infinidade de pontos. O
fato de que a operação de contagem pressupõe a coexistência real ou contínuo é divisível potencialmente, não dividido atualmente.
virtual na medida em que implica simultaneidade, já que não seria
possível na pura duração. Real ou simbolicamente, fazemos coexistir Tal distinção faria com que o tempo concebido como contínuo
os elementos que são objeto de numeração ou contagem. Isto se escapasse da crítica bergsoniana? Lembremos que, segundo Berg-
aplica aos instantes da duração. Há que se supor coexistência virtual son, é exatamente por supor o tempo uma continuidade divisível
ou simbólica para que possamos contá-los como elementos estáveis da que esta concepção se presta a uma utilização teórica e prática. Esta
inteligibilidade que possuímos do mundo. Caso contrário nem haveria divisibilidade enquanto disposição para ser dividido é que torna o
sentido em supor o contínuo temporal. Tal contínuo é o "meio homo- tempo um conceito operacional do ponto de vista científico e
gêneo" em que se conservam - virtual ou simbolicamente - os instan- manipulável do ponto de vista prático. De forma que a distinção
tes. É claro que no caso do tempo é o espírito que conserva os instantes, entre divisão real e divisão virtual é simétrica à própria diferenciação
e é assim que a analogia se torna identificação intelectual do tempo entre tempo e espaço. Não os confundimos semanticamente, mas os
e espaço. A noção de continuidade, que tem como função funda- identificamos inconscientemente'. É preciso considerar também que
mentar a coexistência ou simultaneidade, assegura esta identifica- a identificação entre tempo e espaço carrega consigo uma implica-
ção. Esta se traduz por um ato do espírito que se dá a partir da con- ção que faz ressaltar muito bem a inadequação desta concepção de
cepção de um meio vazio homogêneo, que funda as diversas opera- tempo à duração psicológica: é a exterioridade recíproca. Se pensa-
ções com os instantes, todas a partir da virtual coexistência ou si- mos a organização de um conjunto como uma série de elementos
justapostos, nada nos impede de conceber maneiras inversas de re-
multaneidade (D.I.-70). É a partir desta concepção que organizamos
lação. Se concebemos a duração a partir de um modelo espacial,
a percepção do tempo, e será esta mesma concepção que tomará em
nada nos impede de considerar, por exemplo, que as vivências psi-
Kant a figura da forma a priori da intuição. Este meio vazio homogê-
cológicas se relacionam sucessivamente ou reversivamente, ao me-
neo é dado e nele, ou sobre ele, ocorrem as sensações e percepções
nos no plano da possibilidade teórica. Isso se deve ao fato de que, no
temporais. É o contínuo. Neste sentido, e levando-se em conta que
caso, as relações são puramente quantitativas, ou seja, não existe, na
é sobretudo um ato do espírito, não importa se os instantes não
organização do conjunto, uma qualidade que se confunda com a
coexistem realmente. É algo impossível da perspectiva do ser, mas é
própria organização dos elementos, porque não concebemos esta or-
também algo que tornamos possível da perspectiva do conhecer,
ganização como qualidade. Em outras palavras, a sucessão torna-se
quando fazemos repousar o conhecimento do tempo na relação dos apenas uma justaposição no tempo. Esta justaposição temporal é
instantes. O ato de relacionar implica o contínuo, a coexistência vir-
tual, o "meio homogêneo". Daí deriva toda a maneira peculiar de
interpretar o modo temporal da realidade. É certo, por exemplo, que 7. "Seria o caso de se perguntar se o tempo, concebido sob a forma de um meio
Aristóteles não admite partes do tempo, que seriam os instantes, assim homogêneo, não seria um conceito bastardo, proveniente da intromissão da idéia de
como não admite que os pontos sejam partes da linha. Um contínuo espaço no domínio da consciência pura" (D.I.-73).

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11 - ETAPA CRíTICA DA REINSTAURAÇÃO DO OBJETO DA FILOSOFIA 2. A SEGMENTAÇÃO DA TEMPORALlDADE. O EXEMPLO ARISTOTÉLICO

ordenada pelo antes/depois (a estrutura aristotélica anterior/posterior): os diferentes pontos de parada. O argumento de Zenão é apenas a
tal ordem supõe, para Bergson, a possibilidade teórica da simulta- radicalização dessa concepção, e não há como refutá-lo permane-
neidade virtual entre o antes e o depois. Por isso dizemos que há cendo na mesma perspectiva. É a confusão entre os atos de movi-
ordem na sucessão: comparamos os momentos da duração enquan- mento e o espaço que subjaz a estes atos, levada a extremo. Dividi-
to série que se projeta num contínuo homogêneo (0.1.-76), o que mos o ato de mover-se assim como dividimos o espaço no qual o
nos possibilita medir a duração, ou, como diz Bergson, contar os objeto se move (0.1.-83). O movimento se torna então apenas síntese
seus momentos sucessivos. Tal operação envolve certamente uma mental dos pontos de parada no percurso do objeto. Em suma, o
analogia. Mas não consideramos o tempo como análogo ao espaço movimento é considerado coisa, quando na verdade ele é um ato ou
apenas para contá-lo. Quando contamos os instantes do tempo já um progresso. Na medida em que é considerado coisa e transforma-
supomos uma série de pontos que se desenvolvem - se justapõem do numa seqüência de pontos real ou virtualmente simultâneos, o
- num contínuo, relacionando-se em termos de exterioridade recí- movimento também se torna uma relação de simultaneidades. Eis a
proca. É desta maneira que se estabelece uma relação entre o tempo gênese do movimento abstrato com o qual trabalha Zenão e com o
e o número, na medida em que o escoamento do tempo (dos instan- qual trabalham a matemática e a ciência: um movimento composto
tes) é pensado em termos de multiplicidade numérica. Não se leva de partes, infinitamente divisível tal como o espaço que separa Aquiles
em conta a qualidade que aparece na duração enquanto marca ca- da tartaruga; movimento que pode ser decomposto e recomposto.
racterística do fluxo temporal, cujo exemplo privilegiado é a melodia, Notamos portanto que a refutação bergsoniana do argumento eleático
organização qualitativa por excelência'. Na medida em que o tempo é diferente da refutação aristotélica, que consistia em distinguir in-
aparece como multiplicidade numérica, medir a duração significa finito em potência e infinito em ato, divisibilidade real e virtual (Fís.,
contar simultaneidades. Quando aplicamos este conceito de duração 239 b). Bergson não refuta logicamente Zenão, mas mostra que ele
à vida psicológica, formamos um conjunto suscetível de decomposi- não tem a concepção verdadeira do movimento real. E a refutação
ção e recomposição de elementos supostos simultâneos. A simulta- inclui até mesmo mostrar que, dentro da mesma concepção de mo-
neidade é a noção-chave nesta endosmose entre tempo e espaço. vimento, não há refutação possível, como assinala Theau'. Bergson
considera que esta concepção do tempo abstrato é substancialmente
Isto fica bem claro na consideração do movimento, sempre tra-
a mesma que vige na ciência (0.1.-86).
dicionalmente confundido com o espaço percorrido. Ou seja, a ope-
ração que consiste propriamente no ato de passar de uma posição a As implicações de tal atitude são profundas. A filosofia recuou
outra não é considerada, mas apenas as posições sucessivas que o diante do esforço necessário para pensar a duração, pois a duração
móvel vai ocupando no espaço. Posso considerar apenas as posições choca naturalmente o espírito. Tanto é verdade que a tendência
porque, supondo a trajetória do móvel infinitamente divisível, é cla- natural da inteligência é escamotear o tempo real, fixando o devir,
ro que ele estará sempre em alguma posição. O movimento se trans- estabilizando-o pela linguagem. Pensemos na filosofia grega: além
forma portanto numa relação entre posições. Não se considera a de Zenão, pensemos no platonismo e sobretudo no aristotelismo. O
mobilidade como ato de mover-se. É como se o objeto estivesse sem- recuo diante do devir está, para Bergson, na origem da Filosofia das
pre parado em alguma posição e o movimento fosse a relação entre Formas, que em Platão toma a figura da Teoria das Idéias. A noção
de eidos cumpre a função de estabilizar o real, apropriando-se de sua
essência, que é o momento tornado eterno, o instante que retrata a
8. "Se, enfim, conservo, junto à imagem da oscilação precedente (do pêndulo de um eternidade, escala para avaliar, em termos de degradação de ser, as
relógio). a lembrança da OSCilação que a precedeu, acontecerá, de duas coisas, uma:
ou justaporei as duas imagens, e recaímos então na nossa primeira hipótese; ou as
perceberei uma na outra, penetrando-se e organizando-se entre si como as notas de
uma melodia, de maneira a formar o que chamamos uma multiplicidade indistinta ou 9. "(. .. ) o pensamento matemático chega inevitavelmente aos mesmos impasses de
qualitativa, sem nenhuma semelhança com o número: teria assim uma imagem da Zenão de Eléia se requeremos dele um ensinamento metafísico sobre o movimento e
duração pura, mas também me teria desvencilhado completamente da idéia de meio sobre a duração" (Theau, Jean, La Critique Bergsonienne du Concept, PUF, Paris, 1968,
homogêneo ou de uma quantidade mensurável" (D.I.-78). p.46).

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II - ETAPA CRíTICA DA REINSTAURAÇÃO DO OBJETO DA FILOSOFIA 3. TEMPORAUDADE FORMAL

formas que desfilam no devir (E.C.-314). A partir daí segue-se o modo ciclos de mudança, a evolução, o progresso, a geração e a morte,
de representação do real em que este é descrito e julgado a partir de todas as figuras do movimento, déficit de ser. Aceder a esta verdade
uma eternidade imóvel. As conclusões a que chegaram os sistemas é libertar-se do espaço e do tempo, retroceder aquém das aporias do
gregos são quase necessárias a partir do pressuposto de recusa do instante para instalar-se na eternidade, instante único. Se substituí-
devir. A "inteligência sistemática" desenvolve espontaneamente ra- mos as Idéias por conceitos vemos que esta concepção implica con-
ciocínios que tendem a inserir estabilidade, fixidez, separação no devir siderar o físico como o lógico falhado ou degradado. Daí a necessida-
universal das coisas, a fim de obter pontos de referência numa rea- de, tão de índole socrática, de remeter o movimento a um conceito
lidade que é movimento. Nesse sentido pode-se dizer que ainda fi- que o explique, de tornar a pluralidade inteligível através de um
losofamos à maneira grega: não apenas porque conservamos os invariante colocado acima do espaço e do tempo. A ordem do mun-
mesmos problemas e refletimos no âmbito demarcado pela especu- do é a ordem lógica, que a realidade do devir perturba - e por isso
lação grega, mas também e principalmente porque conservamos a deve ser anulada para que voltemos ao plano da identificação entre
mesma atitude diante do real e porque nossa inteligência é presa do realidade e conceito. A necessidade de um mundo das Idéias ou de
mesmo desejo - que corresponde à sua função - de organizar o um quadro categorial como fonte de conceitos deriva da necessidade
devir em elementos descontínuos e estáveis. Isso tem tudo a ver com de ser o real explicado pelo lógico, daí a Idéia ser a realidade primei-
a linguagem: o pensamento é em larga medida moldado por ela, sua ra e, para Platão, dotada de plena realidade ontológica. Aristóteles,
estrutura e suas categorias demarcam o âmbito do pensamento e o embora tenha criticado o Mundo das Idéias, não pôde deixar de
esforço de conceitualização apenas prolonga sua tendência natural. constituir uma hipóstase talvez mais radical na Idéia das Idéias, o
Assim, a única maneira de dar conta do devir será considerando-o Deus aristotélico - Pensamento do Pensamento, "síntese de todos
uma diminuição de ser a partir do paradigma ontológico da imobi- os conceitos num único conceito" (E.C.-321). É assim que a própria
lidade, considerada como dadalO. O movimento no devir está pois ciência torna-se anterior à inteligência, geradora de coisas, ciência
desde logo definido como degradação de Formas puras. O mundo integral que o homem tenta laboriosamente e, no limite, em vão,
material oscila entre o ser e o nada, entre a verdade plena, da qual é reconstituir nos avatares da discursividade dialética. Todo saber se
aparência remota, e o vazio de ser, distância máxima em relação à resume na visão virtual de Deus. É essa virtualidade que abre a pers-
imutabilidade. A duração, olhada a partir da eternidade que consti-
pectiva da salvação pelo saber, da ascensão ao Uno, quando a tota-
tui por hipótese o padrão do ser, fica reduzida a uma realidade menor
lidade virtual se realiza vertendo-se cosmologicamente na processão
ou a uma aparência, pois o tempo, como diz Platão no Timeu, é a
da realidade desde o princípio absoluto até o puro nada. Bergson crê
"imagem móvel da eternidade" (E.C.-317). É de se notar que, sendo
encontrar essas conseqüências melhor expressas nos alexandrinos e
características do mundo material a duração no tempo e a extensão
no espaço, tempo e espaço não só participam da mesma avaliação em Plotino, e vê esse estilo de pensamento governado na sua decor-
negativa do ponto de vista ontológico, como também têm a mesma rência histórica por um postulado: "A posição de uma realidade im-
origem, pois acham-se sempre associados à carência que caracteriza plica a posição simultânea de todos os graus de realidade intermediá-
o mundo do devir (E.C.-318). Extensão e duração representam aqui- rios entre ela e o puro nada" (E.C.-323).
lo que deve ser superado para que nosso espírito aceda à verdade. O
movimento, de maneira análoga à temporalidade, é marca de seres 3. TEMPORALIDADE FORMAL
imperfeitos e degradados. Daí o esforço a que estamos condenados
para tentar atingir, a partir da matéria, as formas ideais que são a O exame bergsoniano da Filosofia das Formas de Platão e de
verdade do próprio mundo material. Há então que superar todos os Aristóteles tem uma importância que ultrapassa a de uma mera in-
terpretação das concepções de tempo e movimento na filosofia an-
10. "No fundo da filosofia antiga, vigora necessariamente este postulado: há mais no
tiga, na medida em que Bergson crê poder afirmar que a filosofia
imóvel que no movente, e passamos, por via de diminUição ou de atenuação, da moderna, muito embora tenha tido o propósito de mudar radical-
imobilidade para o devir" (E.C.-315). mente tal visão, permaneceu presa dos mesmos pressupostos, devi-
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'I 11 - ETAPA CRíTlo. DA REJNSTAURAÇÃO DO OBJETO DA FILOSOFIA
3. TEMPORAUDADE FORMAL

do ao movimento natural da inteligência que coincide com as con- quanto preenchidos pelo próprio ato de mover-se. Isto absolutamente
clusões gerais da filosofia grega. Assim, continuou a época moderna não significa que não haja diferença entre o pensamento grego e a
filosofando à maneira grega por conservar diante do real a mesma ciência moderna. Existem diferenças profundas, mas que marcam
atitude da especulação antiga, que de resto é aquela assumida pela não só a continuidade da mesma atitude básica da inteligência dian-
inteligência já no nível da vida prática. Sendo assim, o desenvolvi- te das coisas, como também servem para aprofundar tal atitude,
mento histórico das linhas mestras do pensamento apresenta para constituindo-se essas diferenças em maneiras de ordenar a estrutura
Bergson uma continuidade que não é apenas fruto de uma perene simbólica representativa do mundo sob novos critérios e numa nova
retomada dos temas que obcecam o espírito humano, mas que pro- linguagem, mas que permitem manter a integridade da destinação
vém de ter sido sempre a especulação entendida como um prolon- prática da ciência enquanto produto da inteligência.
gamento da abordagem do real pela inteligência". É portanto no
mesmo âmbito que se movem o pensamento antigo e a ciência Tais diferenças exprimem-se primeiramente no fato de que a ciên-
moderna, da qual Bergson procura alinhar os aspectos fundamentais cia moderna abandona a consideração dos momentos privilegiados,
a fim de mostrar o substrato "biológico" (inteligência) que nos forne- que retratariam a essência do objeto ou dos estados do mundo, e
ce a chave para apreender o sentido profundo dos procedimentos de passa a visar ao objeto em qualquer momento, podendo a descrição
que se serve a ciência para conhecer o mundo. É, portanto, através do estado de coisa que se quer conhecer recair sobre não importa
de uma visão histórica das teorias do conhecimento, uma continui- que momento da duração do objeto. A indiferenciação lembra-nos a
dade que provém de algo mais do que a herança dos temas e a per- distinção que se costuma fazer quando se diz que a física aristotélica
petuação dos procedimentos que nos é dada. Trata-se de colocar é qualitativa e a ciência moderna procede operando relações de quan-
esta visão histórica lado a lado com os aspectos fundamentais do tidade. Não é nessa linha, ao menos de forma mais direta, que se
processo de conhecimento discursivo, para que vejamos de maneira encaminha a reflexão bergsoniana. O que se procura mostrar é que
nítida a continuidade dos aspectos fundamentais, bem como a causa a ciência moderna substituiu uma descrição por conceito~ diferencia-
dessa continuidade que está, ela mesma, fora da história. Dentre esses dos que procuravam dar conta dos principais aspectos definidores
aspectos, o principal é sem dúvida o que liga estreitamente a ciência do objeto e do comportamento do objeto por uma abordagem
à prática, fazendo daquela um tipo de conhecimento profundamen- relacional que não considera momentos essenciais na própria medi-
te "interessado" no que Bergson chama "a nossa influência sobre as da em que considera que todos os momentos se equivalem numa
coisas". É a nossa ação sobre o mundo que se trata de ordenar; é abordagem quantitativa que visa estabelecer relações e não repre-
portanto sobre a estrutura da práxis que se modelará a ciência. Como sentar essências". A abordagem relacional que procura mostrar a
nossa ação se organiza segundo o modo da descontinuidade, será estrutura do real através da decomposição levada às últimas conse-
assim que a ciência ordenará sua própria forma de ver o mundo, qüências aprofunda portanto a divisibilidade virtual como procedi-
transformando a realidade movente num conjunto de símbolos bem mento do conhecimento que já notáramos em Aristóteles e na índo-
estruturados que nos fornece as condições necessárias para a inteli- le, por assim dizer, eleática da visão que tinham os antigos da maté-
gibilidade e a ação (E.C.-329). Essa escansão da realidade não faz ria e do movimento. Unidade e divisão, entretanto, possuíam para o
mais do que aprofundar a herança dos procedimentos da filosofia pensamento grego os limites impostos por uma noção não comple-
grega que, como já vimos em Aristóteles, consistia em transformar o tamente matematizada de medida e também por estar o procedi-
movimento numa relação entre posições, ignorando os intervalos en- mento da ciência ancorado numa linguagem comum e subordinado
de alguma forma à estrutura da percepção. É dessa forma que, por

11. "Não nos parece contestável que a filosofia moderna tenha tido, muitas vezes, e
sobretudo no início, a veleidade de mudar (o ponto de vista da filosofia antiga sobre
12. "(... ) a ciência antiga cri conhecer suficientemente seu objeto quando realiza a
o tempo). Mas uma atração irresistível conduz a inteligência ao seu movimento natu-
notação de seus momentos privilegiados, ao passo que a ciência moderna considera o
ral, e a metafísica dos modernos às conclusões gerais da metafísica grega" (E.C.-328).
objeto em qualquer de seus momentos'· (E.C.-330).
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ri 11 - ETAPA CRITICA DA REINSTAURAÇAO DO OBJETO DA fiLOSOFIA 3. TEMPORAUDADE FORMAL

exemplo, os gregos não poderiam operar uma decomposição indefi- assim como a inteligência organiza os procedimentos da atitude
nida do tempo, uma vez que a divisão nesse caso estava determinada natural, é ela que organiza também O processo de abstração e de
pela percepção natural, pela linguagem natural e por um recorte simbolização que são extensões da atitude natural. A descrição por
factual da realidade sob o critério das individualidades sucessivas. conceitos diferenciados - ou qualitativa - cede definitivamente
Sempre poderíamos prosseguir com a decomposição se pudéssemos lugar para o conhecimento matemático puramente relacional. Isto
estabelecer outras tantas individualidades. É o que Bergson chama significa que os momentos, ou as divisões do tempo, assumem outro
de "crises aparentes do real" que determinavam, por exemplo, as significado. A ausência da consideração das articulações naturais
articulações naturais do tempo. Tais articulações naturais represen- deixa campo livre para o estabelecimento de quaisquer relações entre
tariam, de certa maneira, limites para a divisibilidade abstrata. De os elementos, fazendo com que a constituição das articulações pelo
fato representam talvez os próprios limites da abstração como forma sujeito do conhecimento traduza ou represente uma realidade orga-
de consideração simbólica do real. nizada em termos puramente quantitativos. A ciência moderna trata
A ciência moderna, por sua vez, não considera essas articulações a realidade em termos de grandeza e a medida se faz em termos de
naturais. O tempo pode ser dividido conforme as necessidades teó- experimentação. A associação entre medida e experimentação é que
ricas, já que não possui nenhuma articulação objetiva que precise- marca a originalidade da ciência moderna, fazendo com que a expe-
mos respeitar. Podemos e devemos, por exemplo, localizar um mo- rimentação assim concebida se distinga da maneira como os antigos
vimento de mudança em qualquer de seus momentos, e isso faz parte trabalhavam os dados empíricos (E.C.-332). As relações de grandeza
do conhecimento que podemos ter sobre ele. Podemos localizar é que fazem com que a ciência moderna procure chegar a leis mais
qualquer instante da mudança em primeiro lugar porque podemos do que a conceitos, como a ciência antiga. Leis são relações constan-
localizar todos e, em segundo lugar, porque todos os instantes se equi- tes entre variações quantitativas. Tais variações tendem a ser vistas
valem (E.C.-331). A diferença entre a ciência antiga e a ciência mo- como representativas de um maior dinamismo da ciência moderna
derna, apesar de importante, é de grau e não de natureza. Na verda- em relação à antiga, que Bergson considera como estática, isto é,
de, trata-se de uma maior precisão ou, numa terminologia mais pro- relacionando-se com blocos estáticos do devir, dividido, para tanto,
priamente bergsoniana, uma maior exatidão de procedimento em partes ou períodos representativos da realidade a conhecer. A
articulatório, conseqüência da independência que a ciência adquire ciência moderna tende a considerar a variável temporal em todas as
diante da percepção e da linguagem natural. O procedimento básico relações, sem considerar blocos pré-articulados de fenômenos. A lei
de conhecimento é o mesmo: relação de instantes descontínuos como da queda dos corpos de Galileu, por exemplo, procura ligar o espaço
descrição do objeto ou do movimento do objeto; exterioridade recí- percorrido por um corpo que cai ao tempo que leva sua queda. Para
proca de índole espacial como constitutiva do modelo básico de in- Kepler, a astronomia consiste, no geral, em, "conhecendo as posi-
teligibilidade. Isso caracteriza, como já vimos, a atitude de recusa do ções respectivas dos planetas num momento dado, calcular as posições
devir. Na ciência moderna, esta atitude vem a se traduzir numa ma- deles em qualquer outro momento" (E.C.-334). Este modelo foi apli-
neira mais exata de efetuar as relações entre os elementos descontí- cado a todo sistema material: conhecer a posição dos pontos do
nuos, seja do movimento, seja da duração, e numa descrição destas sistema é calculá-los em relação a um momento do tempo, qual-
relações e destes objetos que não mais depende da percepção e da quer que seja, a partir do conhecimento das posições destes pontos
linguagem natural. É portanto o caráter simbólico que se acentua num momento dado. Ainda que isso, na sua significação completa,
pelas novas possibilidades que se abrem para a constituição de es- seja apenas um ideal (como no exemplo do gênio de Laplace), re-
truturas conceituais mais "purificadas" do que o permitido no sim- presenta um modelo que constitui o fundo a partir do qual emer-
bolismo da linguagem natural. Isto constitui certamente um apro- gem todos os problemas a respeito do conhecimento da natureza.
fundamento de grau no que respeita à articulação simbólica, mas Esse mecanismo dinâmico leva em conta, pois, o tempo. Podemos
não uma diferença de natureza. O processo de abstração ganha uma mesmo distinguir a ciência antiga da ciência moderna através do
nova amplitude pela sua maior separação da atitude natural. Mas uso que ela faz do tempo. Entre as grandezas que a ciência moderna

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11 - ETAPA CRITICA DA REINSTAURAÇAO DO OBJETO DA FIWSOFIA 3. TEMPORAUDADE FORMAL

relaciona, o tempo pode ser visto como grandeza privilegiada l '. É como elemento de grandeza ou simples termo de relação na medida
claro que, participando a ciência da atitude natural que consiste em em que é vivência específica em termos de duração psicológica. É
escamotear o devir, o tempo que é tomado como grandeza privilegia- essa realidade da consciência que nos aponta o tempo real. É claro
da ou como variável independente em nada nos ajuda a conhecer a que a partir dessa posição surgem imediatamente todos os proble-
realidade do devir, antes tem como função resolver esse movimento mas relativos ã projeção dessa duração psicológica para a questão do
numa série de pontos matematicamente relacionados entre si. A tempo em geral. Sartrel< resssalta a dificuldade, vendo aí uma defici-
descrição básica que Bergson dá do movimento como maneira de ência da concepção bergsoniana de tempo. O problema tem a ver
identificar o objeto no espaço e no tempo tem a finalidade de cons- com o monismo bergsoniano, nem sempre bem compreendido. Di-
tituir um modelo simplificado em que se mostra como a ciência não zer que Bergson projeta a duração psicológica para a compreensão
considera a mobilidade ou o fluxo temporal, ignorando completa- do tempo em geral implica dizer que haveria outra realidade do tem-
mente a qualidade irredutível do intervalo como duração específica po além daquela que é apreendida na duração da consciência: talvez
(E.C.-336-7). Uma notável conseqüência desse modo de considerar um tempo das coisas materiais, ou um tempo "objetivo". Ora, a
as coisas é que, como o que interessa é a representação por equações maneira como apreendemos intuitivamente a duração psicológica
das relações entre os diferentes pontos ou simultaneidades virtuais, representa a realidade temporal que nos é primeiramente acessível
não importa a velocidade do fluxo, pois não importam a lentidão ou no psíquico por se apresentar aí no seu grau máximo de tensão e
a rapidez como qualidades próprias que ressaltariam dos intervalos. portanto com a sua essência mais aparente. O que não quer dizer
De tal modo que posso variar este ritmo sem ter de mudar nada nas que, por se apresentar a duração na realidade material de forma a ser
equações, pois os mesmos pontos e as mesmas relações estariam mais espontaneamente identificada com o espaço (por estar aí mais
sendo considerados. Levando essa hipótese ao limite, posso abolir, a distendida), exista outro tempo da matéria. O mesmo tempo é apre-
bem dizer, o tempo. Posso considerar que, sendo a rapidez do fluxo endido como diferenciação de ser, e isto significa graus diversos de
infinita, todo o devir se dê instantaneamente. Encontraríamos, neste tensão da duração e solidariedade entre estados da consciência e
caso, as mesmas relações entre os momentos, que, embora fazendo estados da matéria.
parte do fluxo do tempo, seriam nesta hipótese totalmente simultâ-
neos. Eliminaríamos assim a história que se desenvolve propriamen- Ainda quanto à concepção do tempo como grandeza, o que se
te no intervalo de duração considerado como movimento de mudan- pode notar na análise bergsoniana é que a maior amplitude da abs-
ça (E.G.-337). O tempo neste caso seria apenas uma grandeza defini- tração da ciência moderna está certamente relacionada, como suge-
da e não haveria o fluxo que caracteriza sua essência. Não existiria re o autor, com uma maior independência em relação à percepção e
sucessão. Este exemplo-limite serve para mostrar que a ciência des- à linguagem natural, o que significa uma melhor constituição da
preza no tempo exatamente o aspecto de sucessão qualitativa, con- inteligibilidade formal. Tentemos identificar com mais precisão, pre-
siderando na verdade simultaneidades justapostas. O tempo é pois enchendo de maneira concreta as indicações por vezes sumárias de
uma grandeza caracterizada por um número e nada contém em ter- Bergson, o que, na concepção de tempo da ciência moderna, se apre-
mos do que Bergson chama "intervalos determinados para a consci- senta como elementos constituintes do aspecto de inteligibilidade
ência" (E.C.-ll). Existe um caráter de irredutibilidade na espera que formal. Isto nos permitirá talvez compreender de forma mais nítida
mostra que o intervalo de tempo vivido representa uma realidade a diferença de grau que marca ao mesmo tempo a continuidade entre
qualitativa que chamamos de du~ação e que não pode ser tratada o pensamento antigo e a ciência moderna. Reportemo-nos à concep-
ção newtoniana de tempo absoluto, pela qual Newton se opõe a Leib-
niz e de modo geral à concepção de tempo presente no cartesianismo.
13. "Concluamos que nossa ciência não se distingue da ciência antiga apenas por No escólio das Definições iniciais dos Principia, Newton critica os
buscar leis, nem mesmo por pretender que estas leis enunciam relações entre gran-
dezas. b. preciso acrescentar que a grandeza à qual pretendemos poder remeter todas
as outras é o tempo, e que a cMncia moderna deve ser definida sobretudo pela sua
aspiração a tomar o tempo como variável independente" (E.C.-335). 14. Sartre, J, -P., L'2tre et le Néant, Gallimard, Paris, 1982, pp. 17455.

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11 - ETAPA CRITICA DA REINSTAURAÇAQ DO OBJETO DA FILOSOFIA 4. DURAÇÃO, DESCONTINUIDADE E DETERMINAÇÃO

que permanecem numa concepção de tempo apenas ligada às coisas aparente a vinculação entre movimento e imobilidade, constituída a
sensíveis e lança já as bases de uma concepção inteligível do tem- partir da separação entre movimento absoluto e movimento relati-
pO". É interessante notar, como faz Koyré, a equivalência em New- vo". Por refletir acerca da noção de variável temporal como medida
ton das expressões absoluto, verdadeiro e matemático, referidas ao e extrair de sua crítica aos cartesianos uma noção de tempo como
tempo. Elas têm como função distinguir a sua concepção da idéia absoluto - mas ainda uma grandeza absoluta, autõnoma em rela-
vulgar de tempo, na raiz da qual ele situa Aristóteles e em seguida ção às realidades medidas -, Newton ilustra de forma privilegiada a
todos os que consideram o tempo apenas sob o aspecto das "medi- marcha progressiva da constituição de tempo como forma de inteli-
das sensíveis"". Tais medidas nos afastariam, segundo ele, da dura- gibilidade, nele dotada ainda de realidade e mesmo de substanciali-
ção como tempo absoluto, por estarem associadas ao movimento, e dade, caracterizando assim a interpenetração entre método e meta-
todos os movimentos podem ser acelerados ou tornados mais lentos, física que Bergson considera fundamental no legado cartesiano. A trans-
ao passo que a duração absoluta flui sempre da mesma maneira. A formação de uma variável de mensuração em entidade metafísica, ou
crítica da aproximação entre tempo e movimento parece ter a fun- a indistinção entre os dois aspectos, ressalta para Bergson a continui-
ção de salvaguardar a concepção do tempo inteligível que se estru- dade entre o pensamento antigo e as bases da ciência moderna.
tura na distinção entre tempo absoluto e tempo relativo, distinção
solidária de outras, simétricas e feitas em relação ao lugar, espaço e
movimento. A independência do tempo diante de "qualquer coisa 4.DURAÇÃO, DESCONTINUIDADE E DETERMINAÇÃO
externa", a partir da qual Newton combate a relação, para ele dema-
siado estreita, que Descartes faz entre o tempo e o mundo exterior e Vimos que o que Bergson considera o modelo kepleriano de
material, tende a separar o tempo do movimento e da mudança, o conhecimento, que consiste em, dada a localização presente dos
que é compreensível a partir da concepção do tempo inteligível, que planetas, poder estabelecer qual será esta localização num momento
Newton relacionará a Deus e que em Spinoza será explicitamente futuro, a partir das relações que os corpos celestes e seus movimen-
um atributo divino. A distinção entre relativo e absoluto parece servir tos guardam entre si, teria sido projetado para o conhecimento de qual-
para purificar a medida enquanto cálculo matemático proporcionan- quer sistema material. Uma das conseqüências da fundamentação
do maior amplitude de abstração pela maior distãncia do imediata- filosófica desta perspectiva, segundo Bergson, é a concepção parale-
mente empírico. Daí as críticas de Newton aos que consideram as lista, que identifica o sistema corporal e a consciência, ou faz do
medidas sensíveis do tempo como o próprio tempo e o esforço para sistema corporal a causa da consciência. A concepção paralelista é
distinguir movimento absoluto de movimento relativo. Tal esforço estreitamente solidária do determinismo enquanto teoria geral do
tende ao estabelecimento do caráter absoluto das entidades cujas conhecimento da matéria. Supõe-se que o universo material é com-
medidas sensíveis utilizamos ordinariamente. Esse absoluto é obvia- posto de partículas submetidas a vários tipos de movimento que
mente de cunho inteligível: uma grandeza abstrata, se dermos à noção configuram as diversas organizações da matéria. O sistema material,
matemática o peso metafísico que ela tem desde Galileu, como lin- enquanto organização determinada, seria deste tipo e obedeceria aos
guagem ou código de inteligibilidade do mundo". Torna-se assim mesmos princípios gerais: moléculas e átomos que se atraem e se
repelem, originando os diversos estados cerebrais l '. A influência que
15. "'O tempo absoluto, verdadeiro e matemático flui sempre igual por si mesmo e
por sua natureza. sem relação com qualquer coisa externa, chamando-se com outro
nome 'duração'; o tempo relativo, aparente e vulgar é certa medida sensível e externa 18. Newton, 1., ob. cit., p. 11.
de duração por meio do movimento (seja exata, seja desigual), a qual vulgarmente se 19. "O determinismo físico, na sua forma mais recente, está intimamente ligado às
usa em vez do tempo verdadeiro, como são a hora, o dia, o mês, o ano" (Newton, 1., teorias mecânicas, ou antes cinéticas, da matéria. Representa-se o universo como um
Princípios Matemáticos, trad. Carlos Lopes de Matos e Pablo R. Mariconda, Abril Cul- acúmulo de matéria, que a imaginação resolve em moléculas e em átomos. Estas
tural, Pensadores, São Paulo, 1979, p. 8). partículas executariam sem cessar movimentos de toda ordem, por vezes vibratórios,
16. Newton, 1., ob. cit., p. 9. por vezes de translação; e os fenômenos físicos, as ações químicas, as qualidades da
17. Newton, 1., ob. cit., p. 12. matéria que nossos sentidos percebem, calor, som, eletricidade, talvez mesmo até a

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11 - ETAPA CRfTlCA DA REINSTAURAÇÀO DO OBJETO DA FILOSOFIA
4. DURAçAO, DESCONTINUIDADE E DETERMINAçAO

tal sistema receberia de outros que o circundam seria igualmente em vida psicológica no tempo que se procura determinar a partir de
termos de choques e movimentos que modificariam os movimentos uma visão determinista do sistema que se supõe seja a sua causa, o
do sistema cerebral, provocando reações. O inverso também pode sistema cerebral. É este paralelismo que Bergson procura refutar, para
suceder, e as reações podem ser provocadas pelos movimentos in- caracterizar a independência da vida psicológica e conseqüentemen-
ternos ao sistema cerebral. Como este sistema obedece às mesmas te a especificidade do tempo como duração psicológica (0.1.-110).
características de outros sistemas materiais, a ele se aplica também
o príncípio de conservação de energia, ou seja, cada átomo do siste- O que motiva a hipótese paralelista, além da admissão do prin-
ma tem a sua posição determinada pela soma das influências que os cípio de conservação de energia como universal, é o tratamento que
outros exercem sobre ele. Isto abre, então, também neste caso, a a ciência moderna dá ao tempo, entendendo-o como variável e como
perspectiva da previsão: conhecendo a posição presente de todos os grandeza, o que permite a concepção determinista do transcurso da
átomos e as leis de seus movimentos, podem-se calcular as ações vida psicológica. A hipótese paralelista surgiu da necessidade de
passadas e futuras da pessoa, desde que se consiga dar conta de enquadrar o psicológico nas características gerais dos sistemas ma-
todas as varíáveis capazes de influenciar o comportamento. A mes- teriais defínidos de maneira relacional pela ciência. Os procedimen-
ma quantidade de energia se conservando sempre, os diferentes es- tos básicos da ciência moderna sofreram uma extensão indefinida
tados da matéria estarão em função da distribuição dessa força entre em vez de gerarem outros procedimentos complementares ou inver-
os elementos, o que decorrerá da relação entre as posições que estes sos que dessem conta de realidades diversas da do mundo físico. No
elementos ocupam (0.1.-108). Isso significa que as posições relativas ponto de imbricação entre o nascimento da ciência e o da filosofia
dos elementos de um sistema num momento dado são rigorosamen- modernas, o que se vê não é a constituição desta última como um
te determinadas pelas posições relativas no momento precedente. É tipo de conhecimento que, a partir do reconhecimento das caracte-
esta concepção, aplicada ao psiquismo, que redunda na teoria deter- rísticas da ciência, procurasse constituir uma maneira diferente de
minista da vida psicológica. Mas há um problema de fundamental abordar o real, maneira esta que tentasse romper a mediação simbó-
importância que se inscreve nessa passagem: o da relação entre o lica, fruto do caráter discursivo da ciência. O que vemos é, na filoso-
sistema cerebral e a vida psicológica. O paralelismo da série física e fia, o prolongamento dos procedimentos da ciência, colocando-se a
da série psicológica é a verdadeira questão envolvida na afirmação filosofia como um conhecimento do mesmo gênero, que tem por
do determinismo da vida psíquica: consiste em ver na série psicoló- objeto realidades mais "elevadas" ou mais "fundamentais" do que
gica a mesma determinação que julgamos encontrar no sistema ce- aquelas atingidas pela ciência. Tal continuidade faz com que desde
rebral por via de uma correspondência estrita que se supõe existir logo a filosofia se apresente como um prolongamento da ciência,
entre o cérebro enquanto sistema físico e a vida da consciência. que por sua vez já era um prolongamento do senso comum. A ad-
Naturalmente o princípio de conservação de energia entra como missão tácita do valor especulativo da percepção, do senso comum
pressuposto causador da assunção deste paralelismo, na medida em e da linguagem natural, as quais, prolongadas e sistematizadas, nos
que seria violá-lo admitir que a série dos estados de consciência fariam penetrar na essência do real, está por trás da unidade do ser
poderia conter mais do que aquilo que a determina. E sendo o que e da ciência, tão característica da filosofia clássica.
a determina uma configuração por sua vez determinada de pontos Sendo tal admissão tácita a raiz profunda da endosmose entre
materiais, o que ocorre na consciência só pode ser função deste sis- tempo e espaço, é útil que se procure na fundamentação filosófica
tema estritamente determinado. Vemos então que é o desenrolar da dos procedimentos da representação simbólica do mundo os pontos
de incidência da crítica bergsoniana, a exemplo do que fizemos com
a concepção aristotélica do tempo e com alguns aspectos da idéia
atração, se reduziriam objetivamente a movimentos elementares" (D.I.-107). Disto
deriva a possibilidade teórica de se "calcular com uma precisão infalível as ações
newtoniana de tempo absoluto. Isso nos leva a relembrar alguns pon-
passadas presentes e futuras" de qualquer organismo concebido segundo tais critérios, tos da concepção de tempo em Descartes. O que Bergson procura
assim como se prevê com precisão, através do cálculo, fenômenos astronômicos (Cf. mostrar, como já vimos, é que, na imbricação entre o nascimento da
0.1.-108). ciência e o da filosofia modernas pode-se notar o aborto de uma
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4. DURAÇhO, DESCONTINUIDADE E DETERMINAÇÃO
I
possibilidade: a de um outro tipo de conhecimento baseado em ou- partir da qual podemos pensar o problema do tempo, dada a solida-
II tros procedimentos, que não teria o caráter pragmático que a ciência
II riedade entre as duas noções na filosofia de Descartes".
herda do senso comum moldado pelas estruturas da inteligência, e
que ofereceria assim uma alternativa para a abordagem simbólico-dis- A partir de sua visão Geométrica da física, Descartes define o
cursiva do real (E.C.-341-2). É como se o próprio simbolismo discursivo movimento como totalmente relativo. Quando descrevo o movimen-
i! da ciência devesse "sugerir" esse outro conhecimento, complementar to de A como se afastando de B tenho de dizer ao mesmo tempo que
no sentido de que estenderia nosso conhecimento sobre uma face da B se afasta de A. Há portanto reciprocidade no movimento, e nesse
realidade que escapa à ciência - e inverso nos procedimentos que sentido a relatividade é total. Ora, é a partir da relatividade do mo-
adotaria para abordar esta outra face do real. Inclusive porque o vimento que se pode pensar o tempo, pois, como assinala Bergson,
próprio fato de o tempo assumir a importância de variável privilegia- a realidade do tempo e a realidade do movimento em Descartes se
da para a ciência moderna deveria atrair a atenção para os proble- superpõem (E.C.-344). Assim como o movimento deve ser pensado
mas oriundos da compatibilidade entre a noção de tempo e a reali- no interior da reciprocidade que relaciona os termos independente-
dade temporal. A ciência moderna, mais do que a antiga, deveria mente do movimento efetivamente realizado no ato de mover-se, o
pois aprofundar o problema do tempo, ainda que tal aprofundamen- tempo também deve ser pensado como relação de termos indepen-
to só viesse a se completar num outro tipo de conhecimento efetiva- dentemente do processo de sucessão efetiva, ou duração. Mas há o
mente capaz de captar a realidade da duração 20 • É claro que para outro lado da atitude que Bergson descreve como "hesitação". Existe
tanto o conhecimento, refletindo sobre si mesmo, teria de reconhe- o tempo como criação contínua, série de atos que sustentam o mun-
cer os limites da discursividade, o que significaria de um lado rom- do em dependência direta da vontade de Deus". Trata-se aqui da
per historicamente a continuidade de categorias fundamentais que causa do movimento e dos princípios de determinação da matéria,
muitas vezes são pressupostos não explicitados e, de outro, proble- que em Descartes se subordinam ao princípio da conservação da
matizar, senão mesmo fazer explodir, o próprio quadro da unidade mesma quantidade de movimento - o que deriva diretamente da
do saber, que reflete, por sua vez, o pressuposto da unidade do ser. É imutabilidade de Deus e faz com que não se possa conceber cresci-
principalmente esta unidade que a metafisica se encarrega de fundar e mento na realidade: uma lei de compensações faz com que a quan-
explicitar; portanto, a metafisica não se constituiu como conhecimento tidade de movimento total seja sempre a mesma. Deus mantém na
de outro tipo que ofereceria a alternativa à abordagem discursiva do natureza a mesma quantidade de movimento que nela colocou no
real. Assim a metafisica se deu por tarefa prosseguir o conhecimento momento da criação, a qual conserva, sendo que o aspecto mais
científico, prolongá-lo e fundamentá-lo a fim de, dirigindo a constitui- importante desta conservação é a criação contínua. Como os instan-
ção de seu próprio saber na mesma direção do saber científico, teste- tes não se prolongam naturalmente uns nos outros, como há radical
munhar a unidade do saber. Era inevitável, neste caso, que a metafisica descontinuidade no tempo, é preciso que Deus conserve o mundo
moldasse suas noções à semelhança da ciência e da metafísica grega recriando-o a cada instante do tempo. Certamente o fato de ser esta
de onde provinha sua herança conceitual, e também do próprio sen- criação contínua compatível com a existência de leis deriva da imu-
so comum enquanto inteligência. Dessa forma se explica que a me- tabilidade de Deus. Existem leis na natureza porque Deus não é in-
tafisica não tenha procurado remodelar profundamente a noção de constante ou caprichoso. A criação contínua não implica, pois, a con-
tempo (E.C.-344). Ainda assim a reflexão chegou a hesitar diante do tingência, uma vez que Deus está fora do mundo e do tempo, e é
caminho a seguir. Bergson crê que tal hesitação é visível na oscilação dele que deriva a necessidade da organização da natureza. Portanto
de Descartes entre o movimento relativo e o movimento absoluto, a

21. Cf. Descartes, R.. Principes de Philosophie, 11, 29, edição Alquié, Gamier, Paris,
. 20. "É verdade que, da realidade que flui. limitamo-nos a fixar instantâneos. Mas 1973, p. 173.
1 justamente por essa razão o conhecimento cientifico deveria apelar para um outro 22. "Que Deus é a primeira causa do movimento, e que conserva sempre a mesma
J que o completasse" (E.C.-341) Isto todavia não ocorreu pelo fato de a metafísicaja-
I mais ter reconhecido a "eficácia" do tempo.
quantidade de movimento no Universo" (Descartes, R., Príncipes de Philosophie, ob.
cit., p. 182).

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11 - ETAPA CRíTICA DA REINSTAURAÇÃQ DO OBJETO DA FILOSOFIA 4. DURAÇÃO, DESCONTINUIDADE E DETERMINAÇÁO

esta idéia de criação contínua, uma vez associada a Deus e não ao Bergson afirma que a criação contínua poderia implicar uma visão
homem, não retira da natureza a determinação necessária. E isso do universo em constante mutação se tal criação não fosse hiposta-
apesar de Descartes afirmar o indeterminismo das ações humanas, o siada em Deus e tivesse sido atribuída às próprias coisas. Podería-
que para Bergson é outro indício da presença de duas concepções do mos assim ter mantido uma visão científica e pragmática do univer-
tempo, já que a liberdade implica uma noção de tempo distinta da so feito, para a qual valeria o determinismo enquanto método de
de variável em um sistema determinado. Na Quarta Meditação e nos conhecimento; e uma visão do universo se fazendo (se criando), com
Princípios (I, 37), Descartes insiste na liberdade da vontade, no infi- procedimentos de conhecimento distintos dos da inteligência. Seriam
nito poder do sim e do não, que é o que distingue o homem e per- duas concepções diferentes do tempo. Mas o determinismo cartesia-
mite que lhe atribuamos o mérito do julgamento moral. A experiên- no não foi concebido apenas como método, e sim também como
cia da liberdade é algo tão intenso e uma realidade tão presente que, doutrina metafisica. E assim o cartesianismo enveredou definitiva-
assevera Bergson, Descartes continua a afirmá-la mesmo quando en- mente pela concepção unitariamente determinista da realidade, o
contra as dificuldades, clássicas em teologia, de conciliar a predeter- processo discursivo do entendimento sendo visto como a única for-
minação divina (pré-ordenação) com a liberdade humana, deixando ma válida de abordar a realidade em qualquer de seus aspectos".
o problema irresolvido". Talvez seja essa a expressão maior da osci- Dois motivos principais podem ser alinhados para explicar essa to-
lação, de que fala Bergson, entre a determinação absoluta das coisas mada de direção: um de ordem estrutural e "biologista", qual seja a
físicas e a indeterminação das ações humanas. De qualquer forma, estrutura da inteligência que orienta o espírito para a procura de
não parece válido associar a liberdade de indiferença à noção de formas fixas e que provém do método cinematográfico natural à in-
criação contínua, ao menos entendendo a criação no sentido divino, teligência; outro de ordem histórica que diz respeito à influência da
ex nihilo. No que respeita às coisas naturais, é instrutivo comparar filosofia grega: mesmo quando o pensamento se orienta para novos
Descartes e Aristóteles, na medida em que Descartes define o tempo caminhos e questiona o legado da antiguidade, como é o caso em
de maneira muito semelhante a Aristóteles, embora distinguindo-o Descartes, o estabelecimento de conceitos fundamentais e o proce-
da duração24 • O tempo, entendido como número do movimento, ser- dimento de reflexão permanecem em larga medida na dependência
viria para medir a duração, associada às mudanças sensíveis, mas dos padrões gregos, e esta relação é bem mais profunda do que o
não exatamente ao movimento, já que Descartes parece acreditar seria uma simples filiação histórica. De tal forma que Bergson crê
que as coisas que não mudam também estão de alguma maneira poder afirmar que os sistemas cartesianos possuem a mesma "ossa-
sujeitas ao tempo. O tempo não é estritamente função do movimen- tura" das filosofias de Platão e Aristóteles, ou melhor, que são quase
to, embora esteja associado a ele. Por exemplo: os movimentos regu- apenas interpretações de Platão e Aristóteles através do código do
lares nos dão o padrão de medida da duração das coisas, e a este mecanicismo. É sob essa perspectiva que podemos olhar os sistemas de
padrão chamamos tempo; mas o tempo tomado assim independente Spinoza e de Leibniz, "como sistematização da nova física, sistematiza-
da duração das coisas é, para Descartes, "apenas uma maneira de Ção construída sobre o modelo da antiga metafísica" (E.C.-347).
pensar". Isto significa que o tempo real é o movimento de duração O que se pretenderia, em suma, seria a unificação da represen-
das coisas e o tempo enquanto "maneira de pensar" é um determi- tação da realidade sob o modelo da nova física. Pode-se dizer que
nado padrão regular de duração extraído do sensível e aplicado como
medida às coisas em geral. Há portanto distinção entre tempo e
25. Descartes tinha diante de si duas vias: a primeira afirma o mecanicismo universal
duração, e o tempo parece ser reconhecido como medida abstrata, e a relatividade do movimento; a segunda, a partir do indeterminado das ações huma-
embora extraída (abstraída) da duração sensível. Por isto Newton afir- nas e da criação contínua, afirma o movimento Como um absoluto. A primeira, se
mará que Descartes concebe o tempo apenas como medida sensÍ'. el. seguida até as últimas conseqüências, "o teria conduzido à negação do livre-arbítrio
no homem e do verdadeiro querer em Deus". A segunda "desembocaria em todas as
conseqüências implicadas na verdadeira duração. A criação não apareceria J;11ais ape-
nas como continuada mas como contínua". A escolha da primeira alternativa configu-
23. Descartes, R., Principes de Philosophie, I. 39 a 4l. ra a transformação'do método (mecanicismo) em doutrina metafísica (determinismo)
24. Descartes, R., Principes de Philosophie. I, 57, ed. cit., pp. 125·6. (E.C.-345·61.

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11 - ETAPA CRfTlCA DA REINSTAURAÇÁO DO OBJETO DA FILOSOFIA 4. DURAÇÁO, DESCONTINUIDADE E DETERMlNAÇÃO

isto foi feito em duas etapas que correspondem ao determinismo sário que o determinismo mecânico se transforme numa doutrina
tomado como regra metodológica e como doutrina metafísica. De filosófica para que a realidade possa ser concebida totalmente nestes
posse das características do modelo de sistema material que consti- termos. Uma regra metodológica se prova a cada passo, a cada nova
tuía o padrão de inteligibilidade da ciência, tratava-se naturalmente realidade que ela permite abarcar; uma doutrina metafísica institui
de expandir este modelo e verificar quanto da realidade ele poderia uma totalidade unificada segundo tais características. É desta forma
abarcar. É esse o espírito e o sentido da experimentação. Dentro dessa que o mecanismo se torna de direito indefinidamente extensível. É
perspectiva é lícito supor que uma regra merodológica é indefinida- este o sentido profundo da índole geométrica do método cartesiano26 •
mente aplicável. como se todos os sistemas da realidade preenches-
sem os requisitos necessários à aplicação da regra. A única maneira É evidente também que essa maneira de operar relações, tida
de conhecer os limites de uma regra é supor primeiramente que não como todo O conhecimento da realidade, pela opção quantitativa
há limites para a sua aplicação; quando, de fato, tais limites forem que lhe serve de princípio, teria de abandonar a descrição da reali-
encontrados, então se reformulará a regra em função dos novos da- dade por conceitos diferenciados, própria da filosofia antiga. Apli-
dos da realidade. Postura inatacável dentro do espírito da ciência cando-se à extensão e considerando privilegiam ente os sistemas
experimental. Mas, justamente na imbricação da nova ciência e da materiais, havia que, no entanto, dar conta da "outra metade" da
nova filosofia, havia a exigência metafísica da unidade do ser, a qual realidade em termos cartesianos: o pensamento. E isso mantendo a
só se pode pôr como exigência filosófica, pois não há sentido em unidade do saber, ou seja, não instaurando ruptura nem inversão
falar-se de totalidade acabada na perspectiva científica. O que se fez recíproca entre estes dois aspectos, que Bergson interpreta como sen-
então foi, a partir desta exigência metafísica, hipostasiar a regra do quantidade (corpo) e qualidade (alma). Foi para resolver o pro-
metodológica, levando ao limite a exigência do método e supondo a blema - a respeito do qual Descartes teve ao menos o mérito de
física como totalmente acabada e a realidade como totalmente de- deixar pendente - que os sistemas cartesianos de Leibniz e Spinoza
terminada pela ciência. É a partir dessa regra metodológica, tornada desembocaram no "paralelismo" ou na "tradução", como formas de
"lei fundamental das coisas", pressuposto ontológico, que a filosofia harmonizar extensão e pensamento. Reencontramos assim um dos
vai desenvolver a tarefa de justificar a realidade e a ciência assim problemas que parecem estar na origem da análise bergsoniana da
concebidas. O modelo do sistema material totalmente determinável justificação filosófica do padrão de inteligibilidade da ciência moder-
a partir das posições relativas de seus elementos é simplesmente na. O paralelismo psicofísico que se encontra na psicologia tem suas
projetado para a totalidade do universo. A tarefa da filosofia torna-se raízes metafísicas no paralelismo entre extensão e pensamento, atra-
a de formular o mecanismo como modo fundamental do ser das vés do qual a filosofia dos cartesianos procurou preservar a unidade
coisas e dar a razão de ser deste mecanismo, fundá-lo. Tal justifica- do ser e do saber. Seja como traduções de um único Princípio, como
ção filosófica pode ser entendida como a explicitação da unidade do em Spinoza, seja como tradução extensa de um original inteligivel, o
ser e do conhecimento. Ora, esta unidade podia ser pensada a partir pensamento em Leibniz, o que se pretende é harmonizar realidades
da "solidariedade matemática" de todos os pontos do universo entre que parecem ir em sentido inverso uma da outra, a fim de preservar
si, solidariedade apreendida pelo método geométrico presente, por a unidade e fazer com que a realidade apareça como um único sis-
exemplo, nas filosofias de Descartes e de Spinoza. É claro que esta tema (E.C.-349). O padrão de inteligibilidade matemático nos indica
determinação recíproca de todos os elementos do sistema do mundo os procedimentos e os conceitos privilegiados para dar conta desta
supõe a totalidade dada, para que possam ser plenamente pensadas realidade unificada. A apreensão metódica segundo o método geomé-
as relações entre todos os elementos, não havendo lugar, então, para trico indica como e por que se faz a tradução da duração em grandeza
o fluxo temporal entendido como duração, já que necessito de todos ou ao menos como se pode, por via do paralelismo, dizer que estou
os elementos justapostos para que haja uma determinação total da apreendendo a duração quando explico o tempo como grandeza.
realidade. É preciso, em suma, a simultaneidade virtual das dimen-
sões temporais para que possa haver uma totalidade pensada em
termos de determinismo mecãnico. É importante notar que é neces- 26. Cf. por ex., Principes de Philosophie, N, 203. (Ed. Alquié, p. 519).

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11 - ETAPA CRITICA DA REINSTAURAÇÀO DO OBJETO DA FIlDSOFIA 5. TEMPORAUDADE E CAUSALIDADE

5. TEMPORALIDADE E CAUSALIDADE trar é que o determinismo geralmente afirmado pela ciência é menos
uma teoria sugerida pelos fatos e muito mais um postulado que
A concepção de uma realidade totalmente determinada em to· explicita uma posição filosófica e que não aparece claramente no
dos os seus aspectos, tese metafisica assumida pela filosofia a partir trabalho experimental. A relação entre ciência e filosofia é, pois, mais
da regra metodológica da ciência moderna, foi, por assim dizer, de- um daqueles problemas tradicionais que necessitam ser repensados
volvida à ciência ou reassumida pelos cientistas, não mais como re· sem que se tome como pressuposto inquestionado a fidelidade da
gra metodológica, mas precisamente como tese metafisica. Ora, uma ciência aos fatos e a distância que a filosofia manteria dos mesmos.
tese metafísica assumida pela ciência e tida como concepção cientí· Pois O determinismo é exemplo de uma concepção filosófica que, uma
fica que retrata fatos redunda num dogma. Isto faz com que a ciência vez interiorizada na ciência, estrutura a visão que ela terá dos fatos
admita como fato científico apenas objetos caracterizados como iner· empíricos. A Psicologia é tomada mais uma vez como caso privile-
tes e sobre os quais o tempo" desliza sem penetrar", ou seja, todo o giado para mostrar as conseqüências da assunção do determinismo
real enquanto objeto da ciência fica, na sua dimensão temporal, como expressão total da realidade.
submetido ao tempo como grandeza. Tal é a condição para que a Voltemos ainda um pouco às relações entre determinação e prin-
realidade possa ser vista como plenamente determinada, a partir do cípio de conservação de energia. Em termos simples, este princípio
cálculo das posições dos elementos, conforme já vimos (E.C.-353). É apenas nos diz que o que é dado é dado e se operamos sobre um
importante notar que, ao supor O mecanismo geométrico ou dinâmi· número fixo de elementos o resultado será sempre o mesmo seja
co como indefinidamente extensível, a ciência fez uma opção meta- qual for a ordem que adotemos para somá-los, visto que aquilo que
física. Isto nos introduz na problemática, central na epistemologia nos interessa nos elementos permanece e temos no final da opera-
bergsoniana, da ambigüidade da ciência experimental. Estando o ção a mesma quantidade inicial, seja qual for a decomposição que
empirismo da ciência penetrado da tese metafisica do determinismo tenhamos operado. É praticamente a lei de não-contradição - o que
mecânico, há um compromisso fundamental entre ciência e metafi· revela a índole matemática do princípio. Mas precisamente devido a
sica que orienta, como um princípio, toda abordagem científica da esta índole matemática deveríamos perguntar se este princípio diz
realidade. Isso se confunde com o próprio estatuto da ciência e com respeito à natureza do dado, à natureza daquilo que se conserva e
a noção de experiência que subjaz ao seu empirismo ou ao seu que deveria ser o conteúdo concreto do enunciado do princípio de
experimentalismo. É preciso levar a análise mais além do que a mera conservação quando aplicado à realidade. Parece, ao menos de acor-
separação, admitida superficialmente, entre ciência e metafisica pode- do com os preceitos fundamentais da ciência experimental, que de-
ria sugerir. Quando o cientista toma fatos da experiência para medir e veria ser a experiência o critério destes aspectos, principalmente
assim obter determinado conhecimento da realidade, isto supõe uma quando se trata de determinar a extensão do princípio, isto é, saber
série de "arriêre-pensées", cuja não explicitação compromete uma crí- se o encontramos em todos os sistemas possíveis (0.1.-113). Sendo
tica aprofundada da ciência. Pois a concepção geral que orienta a aná- este princípio a base do cálculo determinista e conseqüentemente
lise dos fatos, que os conjuga entre si e ao contexto, que permite recortá- da previsão, muitos são levados a pensar que, se existirem na reali-
-los de uma realidade tida como disponível a esse recorte, e a própria dade sistemas não submetidos a este princípio, a ciência estará arrui-
constituição da experiência que engloba este todo a partir dos quadros nada, o que é um erro na perspectiva de Bergson. A existência de
da inteligência, tudo isto representa uma série de atos inseridos numa sistemas não submetidos à lei de conservação de energia apenas mos-
atitude diante da realidade, que é a assunção de certa tese metafisica, traria que esse princípio não é universal; nada seria tirado do rigor
ou seja, de postulados básicos que orientam uma dada interpretação
da realidade e que se traduzirá numa "teoria empírica". Mas qual o
verdadeiro estatuto de uma tal teoria?" O que Bergson procura mos- inteligência sobre-humana, de ler no cérebro o que se passa na consciência, acredita-
-se bem longe dos metafísicos do século XVII, e muito perto da experiência. Entretan-
to, a experiência pura e simples não nos diz nada de semelhante. (... ) Do fato de que
27. "Certamente, um psicofisiologista que afirma a equivalência exata entre o estado um termo seja solidário de outro não se segue que haja equivalência entre os dois"
cerebral e o estado psicológico, que se representa a possibilidade, da parte de alguma (E.C.-354).

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11 - ETAPA CRíTICA DA REINSTAURAÇÃO 00 OBJETO DA FILOSOFIA 5. TEMPORAUDADE E CAUSALIDADE

da determinação dos sistemas para os quais o princípio continuasse rística ou, como diz Bergson, uma "coloração espacial". Isto provém
válido. Tais sistemas são na verdade aqueles suscetíveis de reversão de que o determinismo associacionista reconstitui artificialmente os
de movimento na determinação dos elementos que são concebidos fatos psicológicos, dotando-os de características de justaposição e
como pontos geométricos. Portanto aqueles que são tidos como não linearidade necessárias à explicação dos fatos. Confundem-se pois os
submetidos à duração. Já que a matéria não parece durar, o próprio fatos com a explicação que deles é dada. Há aqui um movimento
senso comum tende a admitir, neste domínio, mais ou menos instin- inverso daquele que seríamos levados naturalmente a supor: como a
tivamente, algo como o princípio de conservação. Já no domínio do linguagem exprime os fatos psicológicos necessariamente por pala-
vital não aparece a possibilidade de reversão dos elementos do sis- vras que, enquanto símbolos, não podem evidentemente expressar
tema. Muito menos esta possibilidade aparece no que se refere à todas as nuances da singularidade psicológica, supomos, por um mo-
consciência. Já vimos alguns aspectos relativos à consideração das vimento retroativo, que os próprios fatos possuem a mesma simpli-
sensações como grandeza: um aumento de intensidade é na verdade cidade e a mesma exterioridade recíproca que as palavras sugerem.
uma mudança, uma outra sensação que traz em si a primeira e está Mais uma vez, a causa é que a concepção de tempo embutida na
em movimento de mudança para uma outra. A passagem do fluxo linguagem nada tem a ver com a duração psicológica pela qual os
temporal se confunde com um aumento de energia. O tempo repre- fenômenos da consciência se interpenetram reciprocamente. Se
senta ganho ou perda (0.1.-116). Mas como isto aparentemente não quisermos ainda considerar os estados psicológicos em termos de
ocorre com os objetos exteriores que supomos serem causas de nos- multiplicidade, deveríamos pensar numa multiplicidade de fusão ou
sos estados conscientes, cremos que se passa o mesmo com a cons- qualitativa, e não numa multiplicidade homogênea. Numa multipli-
ciência. É apenas a transposição indevida das condições do sistema cidade de fusão não poderíamos visar aos fenômenos psicológicos
material para a vida da consciência. Daí deriva a extensão da lei da em termos de causalidade determinista, como condição e condicio-
conservação para a realidade psíquica e o determinismo psicológico, nado, de maneira a considerar todo o conjunto como um sistema
negação da liberdade. Portanto é ainda a concepção do tempo como sujeito à determinação. Na verdade, é o esquema causal empregado
grandeza que está na raiz do problema. O determinismo psicológico pela ciência que impôe o determinismo; enquanto tal esquema não
afirma que um estado de consciência é rigorosamente determinado for criticado, a discussão dificilmente poderá escapar dos termos
pelo que o precedeu. Haveria uma relação necessária entre os esta- deterministas, ou de uma adaptação do determinismo fisico à vida
dos psicológicos de tal forma que o antecedente explica em termos psicológica. Veja-se, por exemplo, a própria maneira pela qual o
de condição aquele que o sucede. Desnecessário dizer que isto sig- determinismo é habitualmente refutado: quando os deterministas
nifica considerar os estados psicológicos à maneira dos elementos de afirmam que, dado o antecedente, um só ato é possível, os adversá-
um sistema material. E, de fato, é a concepção do Eu como uma rios desta doutrina respondem que, dado o antecedente, são possí-
associação de estados psíquicos justapostos e nitidamente diferen- veis vários atos, um dos quais será efetivamente realizado, pensan-
ciáveis entre si que se vincula à idéia determinista do psicológico. A do-se aí numa escolha entre atos igualmente possíveis. Isso supõe
ação é explicada pela preponderãncia relativa de um deles. O resul- com efeito que, diante de direções possíveis, o Eu hesita e, após de-
tado do conflito de motivos torna-se a determinação da conduta. liberação, escolhe uma delas, o que faz com que nem por isso as
Nesse sentido, o próprio ato livre pode ser "explicado" em termos de outras deixem de existir, de direito. Tanto que definimos por vezes a
motivação". O que não é levado em conta é o aspecto qualitativo da ação livre dizendo que é aquela cujo contrário era igualmente possí-
sucessão psicológica, aquilo que, embora expresso da mesma forma vel. A representação geométrica de duas ou várias linhas se abrindo
que muitas outras coisas, guarda contudo uma propriedade caracte- a partir de determinado ponto é uma concepção cristalizada do de-
senvolvimento da vida psíquica. Pois devemos considerar que a tra-
jetória da ação se encaminha para uma das duas (ou mais) alterna-
28. "O determinismo associacionista representa o Eu como um conjunto de estados
tivas, embora as outras permaneçam em princípio e de direito aber-
psíquicos, dos quais o mais forte exerce influência preponderante e carrega os outros tas. É uma solidificação da escolha, uma falsa contingência que muito
consigo" (D.I.-119). pouco difere do determinismo estrito (0.1.-133). Damo-nos conta

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11 - ETAPA CRITICA DA REINSTAURAÇAO DO OBJETO DA FILOSOFIA 5. TEMPORALlDADE E CAUSALIDADE

mais facilmente quando refletimos que esta representação da esco- pretensos estados "elementares" participam tanto quanto os estados
lha só pode ser efetuada depois do ato realizado. É uma representa- ditos "complexos". Isso significa que temos de modificar radicalmente
ção geométrica da escolha. Vê-se como explicar nesse caso significa a concepção de causalidade quando se trata do psíquico, supondo-
remontar às condições de possibilidade: retornar. Isso ocorre porque -se que ainda se possa falar, neste caso, de causalidade (0.1.-151). O
a duração é representada como uma linha na qual, justamente, po- problema verdadeiramente básico é o da causalidade em si, pois é
demos retornar. Na medida em que a sucessão é vista como uma possível pensar um determinismo mais flexível que se "adaptaria" às
série descontínua de elementos, a explicação se confunde com a re- características da vida psicológica. É possível pensar num esquema
capitulação dos elementos da série: o passado, como fases fixa- de determinação diferente do físico sem que por isto se deixe de
das ao longo de uma série de simultaneidades. Dessa maneira fica afirmar a ligação do fato com seus antecedentes em termos de con-
sempre por explicar por que se tomou tal partido e não outro; daí dições. A crítica do determinismo precisa aprofundar-se em radica-
derivam todos os problemas ligados a tal concepção de liberdade Iidade até atingir a própria noção de causa. E no exame desta noção
(0.1.-136). O assim denominado "problema da liberdade" só existe encontramos novamente a mesma ambigüidade entre regra de expe-
devido à concepção do tempo espacializado. riência e doutrina metafisica. Os mesmos antecedentes produzem
Para evitar as "soluções" do "problema" da liberdade que se sempre os mesmos fenômenos, sempre que a experiência nos mos-
tra que isto ocorre. O que temos é, por assim dizer, uma universali-
constroem no âmbito do determinismo e que resultam na conserva-
dade cumulativa que parece ser descrita como regida pelo princípio
ção do problema, é preciso atacar a questão da causalidade, já que
é ela que engendra o determinismo. A justificativa mais geral para o de indução. À primeira vista, semelhante perspectiva poderia pare-
determinismo dos estados psicológicos consiste em dizer que eles cer a de um empirismo restrito, uma vez que restringe a validade do
são fenômenos e, enquanto tais, estão submetidos às leis da nature- princípio de causalidade à acumulação das experiências ou consta-
za. Nessa justificativa não se considera a especificidade dos fatos de tações no passado. Poderíamos argumentar que se trata de uma vi-
consciência. Isso vai se refletir na discussão do esquema causal. A são até de certa forma pré-humiana da indução causal, pois é sabido
causalidade determinista na física exige a presença reiterada das que a constatação reiterada da associação entre antecedente e con-
mesmas causas. O defensor do determinismo psicológico, na impos- seqüente é fundamento para inferir o segundo na presença do pri-
sibilidade da determinação precisa destas causas, ou das condiçôes meiro, não ficando portanto a afirmação da causalidade necessaria-
de produção do efeito, afirmará todavia que o determinismo psico- mente sujeita à constatação dos dois termos da relação. Mas exami-
lógico deriva da existência da própria causalidade, a qual implica nando o teor da argumentação bergsoniana, vemos que não é preci-
condicionamento do conseqüente pelo antecedente. O determinis- so interpretá-la no sentido restritivo. A experiência passada efetiva-
mo psicológico é assim "deduzido" sem ser mostrado nos fatos29. É mente é fundamento suficiente de uma inferência como a descrita,
o mesmo que dizer (ou "deduzir") que as mesmas causas se apresen- desde que tal inferência seja feita no ãmbito demarcado pelas expe-
tam reiteradas vezes na consciência, pois o determinismo necessita riências anteriores, ou seja, em sistemas do mesmo tipo daqueles
desta afirmação. Tal não encontra, porém, apoio nos fatos reais, dada nos quais a experiência mostrou ser sempre verdadeira a relação
a característica fundamentalmente movente da vida psicológica e sua antecedente/conseqüente. É nesse âmbito que o princípio tem uma
absoluta heterogeneidade. Decompor estados psicológicos para en- aplicabilidade de extensão indefinida. O que não se pode fazer é trans-
contrar condições idênticas em estados supostamente elementares é ferir o valor probatório da experiência acumulada num domínio de
ainda deixar de ver a natureza própria da vida psíquica, da qual esses realidade para outro no qual o princípio é assumido como válido
sem que haja um acervo de fatos que constituam uma experiência
significativa para justificar futuras inferências. É preciso considerar
29. "Essa argumentação consiste, no fundo, em não entrar nos detalhes dos fatos portanto uma diferença básica entre, de um lado, inferências de fa-
psicológicos concretos, devido ao medo instintivo de encontrar fenômenos que desa- tos para outros fatos dentro de um mesmo domínio de realidade e,
fiam toda representação simbólica, conseqüentemente toda previsão. Deixa-se então
na sombra a natureza própria desses fenômenos, mas afirma-se que, na qualidade de de outro, a inferência global de um domínio para outro. Esta última
fenômenos, permanecem submetidos à lei de causalidade" (D.I.-149-50). repousa, para Bergson, num artificio meramente psicológico, em que

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11 - ETAPA CR[TlO\ DA REINSTAURAÇÃO 00 OBJETO DA FILOSOFIA 6. CRíTICA DO A PRIORI TEMPORAL

lil o sucesso que a inteligência obtém no domínio do aparentemente a possibilidade de não-realização. O ato é possível, mas não neces-
inerte "encoraja" a extensão do mesmo procedimento para a totali- sário (0.1.-158-159). Dessa característica decorrem as dificuldades
I dade do real. Tal artifício é o que está provavelmente na raiz da tese que a concepção dinâmica encontra para se enquadrar no determi-
I metafísica que afirma esta espécie de "monismo" mal provado, ou nismo, já que, à maneira do hilozoísmo, trataríamos aqui com uma
seja, que estende em princípio as características do sistema físico concepção vaga de transição entre matéria e consciência. É um de-
para toda a realidade. Não é por outra razão que existe o "problema terminismo que só poderia ser fundado a partir do interior dos ele-
da liberdade": assume-se por princípio que a liberdade deve ser pen- mentos em relação, à semelhança da concepção monadológica de
sada a partir de um universo totalmente determinado e então, como Leibniz e da sua hipótese de harmonia preestabelecida. São difícul-
um enclave estranho ao que o rodeia, ou ela é impossível ou apenas dades desta ordem que levaram, por exemplo, Kant a afirmar que tal
aparentemente afirmada. concepção não pode ser considerada uma verdadeira solução para o
De resto, como se sabe, o determinismo que rege a inferência problema da necessidade objetiva. A pré-formação parece exigir uma
causal supõe que o fenômeno conseqüente está contido no antece- relação de exterioridade recíproca entre os elementos da relação cau-
dente ou que o efeito está "pré-formado" na causa. Não há nenhuma sal, pois o fato de o antecedente "conter" o conseqüente não exclui a
dificuldade quanto a isto se pensarmos esta pré-formação em ter- descontinuidade do encadeamento, já que se trata de uma necessidade
mos estritamente matemáticos: traçar uma figura é engendrar virtual- lógica de condicionalidade e não de uma interpenetração real, pela
mente todas as propriedades que se podem deduzir dela, e a dedu- qual os elementos se relacionariam "internamente". Daí deriva a neces-
ção real apenas realiza o que já estava contido na figura inicial. Mas sidade de aprofundar o fundamento lógico das bases da necessidade
deveria haver muitas dificuldades para se obter a mesma relação entre objetiva, o que será uma das questões da filosofia transcendental.
fenômenos físicos (0.1.-154). Como, então, podemos obtê-la? Sim-
plesmente porque temos uma visão matemática destes fenõmenos,
desprezando neles tudo que não se possa reduzir a propriedades 6. CRÍTICA DO A PRIORI TEMPORAL
quantitativas. Ou melhor, fazendo com que todos os aspectos do ob-
jeto se expliquem em termos de extensão e movimento. As qualidades No percurso crítico bergsoniano, a passagem pela filosofia kan-
enquanto tais são tidas como aparências que podem ser reduzidas a tiana é etapa fundamental. Kant representa, para Bergson, a efetiva
forma, movimento e posição. A partir daí - e supondo no movimento passagem à modernidade uma vez que, nele, a filosofia das formas
o seu significado abstrato - toda realidade pode ser vista em termos de característica da antiguidade assume a feição lógica que o pensa-
relações constantes entre grandezas variáveis. É a complexidade cres- mento científico já antecipara. É natural, portanto, que a crítica do
cente dessas relações que engendra todos os aspectos da realidade. determinismo mecanicista se prolongue na abordagem da filosofia
Sendo assim, é possível então conceber para a realidade física um de- crítica, já que esta não só se encontra na continuidade das concep-
terminismo análogo ao matemático: o fenõmeno determinante contém ções da natureza enquanto estritamente determinada como também
o determinado como a figura geométrica contém as suas propriedades. porque, na Analítica kantiana, o determinismo ganha uma feição de
necessidade objetiva puramente lógica, independente das garantias
É este um tipo de pré-formação a que poderíamos chamar geo-
transcendentes de evidência próprias do conhecimento clássico. É
métrica. Mas há outro tipo, cujo modelo está na relação entre o es-
isto o que Bergson quer dizer quando vê como diferença entre a
forço e o ato, entre a vontade e a ação. O engendramento do ato pelo
filosofia crítica e a metafísica clássica o fato de que Kant teria assu-
esforço voluntário é sem dúvida um caso de pré-formação que trans-
mido, da hipótese metafísica fundamental do determinismo, o míni-
portamos para o mundo físico. Mas uma análise da relação entre
esforço e ato mostra a ilegitimidade desta aplicação. Seria difícil mo suficiente para tomar indefínidamente extensível o procedimen-
manter-se, nesse caso, a categoria de necessidade. Nessa concepção, to da física de Galileu30 • Assim, Kant continuaria mantendo, para Berg-
de ordem psicológica, o esforço presente traz em si de certa forma o
ato futuro, mas não necessariamente, na medida em que o tempo 30. "Entre o dogmatismo de um Spinoza ou de um Leibniz e a crítica de Kant há
que decorre entre a vontade, o esforço e o ato representa exatamente exatamente a mesma distância que separa o 'necessário' do 'suficiente'. Kant faz com

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11 - ETAPA CRfTICA DA RE1NSTAURAçAO DO OBJETO DA FILOSOFIA 6. CRfTICA DO A PRIORI TEMPORAL

son, OS pressupostos fundamentais de origem aristotélica, entre os mento extra-intelectual do conhecimento, isto não significa instalar-
quais está a crença na unidade da ciência. Mas enquanto Aristóteles -se no "ritmo" próprio das coisas, porque a dualidade como tal com-
e os clássicos hipostasiavam a unidade num princípio único (Deus), promete a concepção da matéria extra-intelectual (E.C.-358). Assim,
Kant, abandonando essa parte da hipótese metafísica, contenta-se não há grande mudança do ponto de vista das formas tradicionais de
com a unidade formal garantida pelo entendimento. E é justamente abordagem do real em que pese a nova concepção de necessidade
por isto que uma parte da hipótese metafísica teve de ser abandona- objetiva baseada na garantia formal do entendimento.
da: o entendimento humano não poderia arcar com a tarefa de fun-
dar a unidade real, sendo para tanto necessário um entendimento Isto provém de Kant ter considerado apenas uma possibilidade
infinito; mas pode garantir, através de um quadro lógico definitiva- de experiência, precisamente aquela já estruturada pela fundamen-
mente fixado, a estrutura formal unitária do saber. Tal concepção tação metafísica da ciência determinista: a que repousa na unidade
está de acordo com um saber tecido de relações, já que relações do saber, no modo único de se atingir a verdade acerca do real. A
pressupõem sempre um entendimento que relaciona. A inteligência própria delimitação crítica deriva da aceitação deste postulado. A
não necessita mais, em Kant, possuir a amplitude infinita que pos- crítica kantiana não atinge, para Bergson, os postulados fundamen-
suía em Leibniz, porque se trata agora de fundamentar um saber que tais da ciência: esta afirmação parece estar em consonância com o
não tem apenas bases intelectuais, mas que se encontra adstrito aos próprio Kant quando, no início dos Prolegômenos, ele faz distinções
limites da intuição sensível, se bem que o caráter transcendental dessa entre ciência e metafísica. A validade daquela não é posta em dúvida;
fundamentação parece colocar a função formal do entendimento de pelo contrário, trata-se de verificar que verdades se podem atingir
maneira simétrica à garantia real do Deus da metafísica clássica. A utilizando os procedimentos da ciência, cujas metas tradicionais não
tarefa crítica da filosofia kantiana teria sido, pois, a de manter o ideal são submetidas à crítica3l • Entendimento e experiência se recobrem
tradicional de ciência, operando contudo uma redução na hipótese inteiramente e o procedimento discursivo é o único dotado de valor
metafísica necessária à manutenção desse ideal. teórico. Para Bergson, a concepção da unidade da ciência, mantida
por Kant, é restritiva, pois o modelo mecânico da física não é susce-
A redução operou-se por via da introdução da sensibilidade como tível de ser indefinidamente estendido a toda e qualquer região da
fundamento do conhecimento ao lado do fundamento intelectual. É realidade. Tal procedimento compromete a objetividade. Se esta deve
este, no entender de Bergson, o aceno que se nota neste momento a resultar do acordo entre as estruturas da inteligência e do objeto,
uma filosofia que se poderia ter liberado dos quadros intelectuais devemos considerar que a extensão de procedimentos teóricos para
rígidos que vinham governando o pensamento. A consideração do objetos não abordáveis através das mesmas estruturas mecanicistas
aspecto extra-intelectual do conhecimento abria caminho para uma implica um conhecimento vago, ou mesmo falso, a menos que nos
superação da "filosofia da inteligência" e para uma consideração da contentemos com um saber estritamente simbólico. É o que aconte-
realidade através da experiência direta que se colocaria "do lado de ce quando passamos do físico ao vital e ao psíquico. Pelo contrário,
dentro" do real (E.C.-357). Tal não aconteceu porque a matéria ex- se consideramos a relação entre inteligência e matéria, não há por
tra-intelectual do conhecimento já está comprometida, em Kant, com que considerar o conhecimento simbólico como problemático, nem
os quadros intelectuais. Devido à concepção da coisa-em-si como que neste caso haja uma imposição de forma ao conteúdo, visto que
incognoscível, a matéria do conhecimento já é aquela pré-moldada há uma compatibilidade natural entre a forma da inteligência e a
para a representação tanto sensível como intelectual. Isto é decor- estrutura da matéria, tal como é dada na percepção".
rência da maneira como Kant concebe a dualidade forma/matéria.
De maneira que quando o kantismo concebe a matéria como ele-
31. "A crítica de nosso conhecimento instituída por Kant consistiu em elucidar a
natureza do nosso espírito se as pretensões de nossa ciência são justificadas; mas Kant
que o dogmatismo se detenha num determinado ponto de uma trajetória que o faria não criticou estas pretensões em si mesmas" (E.C.-358).
adentrar demasiadamente na metafísica grega; ele reduz ao minimo estrito a hipótese 32. "Diminuem as barreiras entre a matéria do conhecimento sensível e a sua forma,
requerida para supor indefinidamente extensível a física de Galileu" (E.C.-356). como também entre as 'formas puras' da sensibilidade e as categorias do entendi~

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A consideração, por parte de Kant, de apenas uma forma de ex- liberdade do Eu. Kant representaria o caso exemplar da transferência
periência está intimamente associada à concepção de intuição como dos procedimentos do conhecimento externo para o interno, inclu-
unicamente sensível. A intuição sensível impõe à matéria a forma sive porque, nele, a transferência mostra claramente a impossibilida-
espacial e a forma temporal, o tempo se reduzindo a uma grandeza de do conhecimento interno. Conheço apenas que sou, não o que
exterior aos fenômenos e que os organiza. Não há portanto em Kant sou. Como se o reconhecimento da conjunção entre temporalidade
uma intuição que pudesse tentar coincidir com a duração dos fenô- da consciência e liberdade fosse um resultado quase pressentido e
menos como que "de dentro" deles. A destinação da forma temporal, portanto evitado por algo como a índole do sistema. A maneira de
aliás, se explicita no final da Estética Transcendental quando Kant evitar foi fazer da liberdade uma categoria metafisica colocada fora
explica a impossibilidade de captar diretamente os estados internos. do tempo, alternativa preferida a fazer da duração real o processo de
Só podemos representar a nós mesmos internamente através de liberdade que seria a própria vida da consciência (0.1.-176). Kant é
outras representações que afetam o sentido interno". Isto provém de ainda caso exemplar por afirmar que no nível do fenômeno a liber-
ser o tempo apenas um modo de representar e não uma realidade dade é incompreensível. Tal incompreensibilidade é estendida aos
suscetível de nos fazer coincidir com nós mesmos de forma total. fenômenos internos, perspectiva esta decorrente de se atribuir a eles,
Sendo assim, a percepção interna segue o mesmo padrão causal da ao menos em princípio, a possibilidade da determinação completa,
percepção externa, seja qual for o nível de profundidade do Eu: nem pelo fato de serem pensados, assim como os fenômenos fisicos, em
sequer tem sentido falar aqui em profundidade do Eu na medida em relação a um tempo concebido como meio vazio homogêneo. Perce-
que não temos acesso direto à especificidade da consciência. Tudo be-se o postulado que vincula todo conhecimento à índole
que sabemos é que esta constitui a unidade transcendental origina- matematizante dos procedimentos da ciência. O que tal perspectiva
riamente sintética da apercepção, que permite que todas as sínteses alcança do Eu é apenas a camada mais externa e voltada para a prá-
sejam remetidas à unidade originária do Eu penso. Fora dessa função tica imediata. Nesse nível não é dificil pensar um determinismo que
formal, a consciência está submetida às mesmas regras do conheci- regeria a personalidade, pois estamos nos aspectos em que nossa
mento fenomênico, visto que a falta de intuição direta da consciên- consciência se governa pelas coisas exteriores. É a face simbólica do
cia faz com que tenhamos apenas acesso indireto a ela". Kant insiste Eu que alcançamos aqui: a consciência exteriorizada e como que
em que a percepção do Eu é pensamento e não intuição, pois não há penetrada pela fixidez das coisas exteriores, mais o nível das palavras
conhecimento direto da interioridade. O conhecimento fenomênico que exprimem os estados psicológicos do que eles mesmos (0.1.-
se estende assim à consciência". Em outras palavras, o conhecimen- 177-8). É onde são possíveis as decomposições e as recomposições
to do Eu está ligado ao conhecimento das coisas exteriores e se faz que nos dão as figuras artificiais da vida psicológica. Artificiais por-
através delas. Sendo pois a interioridade um reflexo da exterioridade, que se retirou da vida psicológica a sua característica essencial que
compreende-se que não possa haver um reconhecimento direto da é a temporalidade específica - duração qualitativa. Nesse quadro
nada impede, com efeito, que apliquemos o esquema da determina-
ção causal da mesma forma que aos fenômenos fisicos. Esta forma é
mento. Vemos a matéria e a forma do conhecimento intelectual (restrita ao seu objeto aquela que recebeu a notável descrição que encontramos na Segun-
próprio) engendrarem-se uma à outra por adaptação recíproca, a inteligência mode- da Analogia da Experiêncid".
lando-se pela corporeidade e a corporeidade pela inteligência" (E.C.-360).
33. "( ... ) Mas a forma desta intuição, existindo previamente no espírito, determina Lembremos alguns aspectos. Segundo Kant, é preciso que a su-
na representação do tempo a maneira pela qual o diverso é reunido (beisammen ist) cessão subjetiva, ou a percepção da sucessão, seja derivada da suces-
no espírito. Com efeito, este se intui a si mesmo, não como se representaria a si são objetiva, única capaz de se pôr como necessária por se dar con-
próprio imediata e espontaneamente, mas segundo a maneira como é interiormente
afetado, por conseqüência tal como se aparece a si mesmo e não tal qual é" (Kant, E.,
forme uma regra. Desta maneira posso ter certeza de que a apreen-
Critique de la Raison Pure. tradução francesa de A. Tremesaygues e B. Pacaud, PUF,
Paris, 6 a edição, 1968, p. 73 - doravante citada apenas como CRP).
34. Kant, E., CRP - 131. 36. Cf. e enunciado: "Tudo que ocorre (começa a ser) supõe alguma coisa à qual
35. Kant, E., CRP - 135-6. sucede, segundo uma regra" (Kant, E., CRP - 182).

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II - ETAPA CRíTICA DA REINSTAURAÇÃO DO OBJETO DA FILOSOFIA 6. CRITICA DO A PRIORI TEMPORAL

são objetiva ocorre de acordo com o que realmente se passa no ob- qual algum objeto passa do estado A para o estado B é concebido
jeto". Isto significa que é preciso que haja uma regra transcendental matematicamente. A diferença entre os dois momentos pode ser
regulando a sucessão de fenômenos de maneira necessária: o fenô- medida em termos de grandeza. A mudança é remetida pois a uma
meno antecedente deve conter em si a condição do fenômeno con- diferença quantitativa entre as realidades A e B: o resultado é idên-
seqüente. Tal condição é necessária para que a ordem dos fenôme- tico à mudança". Quanto ao tempo no qual se opera a mudança. ele
nos não seja aleatória. Não basta que um fenômeno suceda a outro: é concebido como uma somatória de momentos que se determinam
é preciso que isto ocorra de maneira necessária. ou seja. segundo uns aos outros enquanto grandezas. Toda mudança é constituída de
uma regra. A isto se chama estabelecer uma relação de tempo". A estados intermediários igualmente submetidos à lei da determina-
objetividade do fenômeno dado no momento presente provém do ção causal; de maneira que a mudança. enquanto resultado. é cons-
reconhecimento da necessidade pela qual ele sucede àquele que o tituída por todos os momentos enquanto se determinam uns aos
precedeu. Existe uma continuidade no encadeamento temporal que outros. É desse modo que a ação causal decorreria no tempo: no
constitui uma lei da representação empírica. O entendimento confe- tempo concebido como série de momentos (pontos ou simultaneida-
re à existência dos fenômenos uma determinada ordem temporal des. na linguagem de Bergsonl cujas relações totalizadas formam o
necessária que é estabelecida a partir do tempo como forma trans- movimento de mudança". Tal é o esquema a priori que explicita a
cendental das relaçôes dos fenômenos entre si. Dessa forma podemos regra da causalidade no conhecimento empírico. Trata-se na realida-
dizer que o fenômeno. no nível do objeto em geral. tem seu lugar no de da forma da sucessão enquanto determinação estrita dos fenôme-
tempo determinado a priori. A ordem do tempo é portanto um plano nos que se seguem na realidade. Não é difícil ver como Bergson pode
transcendental de organização da existência dos fenômenos. de modo identificar aí um esquema formal de duração dado e a ser preenchi-
necessário39 • O que aqui é considerado como caráter formal do tem- do com fenômenos que simplesmente se depositariam em lugares
po se mostra com suficiente clareza quando Kant argumenta que. no previamente demarcados num encadeamento temporal formalmen-
caso das causas eficientes que existem ao mesmo tempo que seus te concebido a priori. Desta maneira o tempo enquanto sentido in-
efeitos. o que deve ser considerado é a ordem do tempo e não o curso terno determina a realidade na forma da sucessão dos estados de
do tempo. ou seja. há que considerar a determinação do efeito pela coisa. O entendimento determina o lugar das percepções que. orga-
causa mesmo quando os dois são simultâneos. O que se pretende nizadas. redundam nos fenômenos objetivamente considerados na
afinal é impor a determinação lógica do efeito pela causa e não reco- seqüência temporal de causa e efeito. de modo determinado". Para
nhecer a realidade do tempo como duração ou passagem entre os o universo fenomênico. vale essa determinação estrita que é condi-
dois fenômenos". A anterioridade real não importa na constituição ção de conhecimento; não poderíamos ter do mundo físico uma ciên-
da determinação. A sucessão é sempre o critério empírico da causa- cia plenamente objetiva se tivéssemos de admitir. ao lado do deter-
lidade. minismo. ou em vez dele. uma causalidade livre". A liberdade. en-
quanto oposta à lei da causalidade. resultaria na impossibilidade do
Tal causalidade se manifesta como ação no tempo. o que signi-
fica força. Mas o movimento contido nesta ação de mudança pelo
41. Kant. E.• CRP - 193.
42. Kant. E.. CRP - 193.
37. !Cant. E.• CRP - 185. 43. "Desta forma, assim como o tempo contém a condição sensível a priori da pos-
38. Kant. E.• CRP - 188. sibilidade de uma progressão contínua do que existe àquilo que se segue, também o
39. "Ora, ele (o entendimento) atinge este objetivo (tornar possível a representação entendimento, graças à unidade da percepção, é a condição a priori da possibilidade
de um objeto em geral) pelo próprio fato de que transporta a ordem do tempo para de uma determinação contínua de todos os lugares dos fenômenos no tempo, por
os fenômenos e para a existência destes, assinalando a cada um deles, como conse- meio da série das causas e dos efeitos, dos quais as primeiras envolvem necessaria-
qüência, um lugar determinado a priori em relação aos fenômenos precedentes, e mente a existência dos segundos e, por via disto, tornam o conhecimento empírico
sem o qual ele não concordaria com o próprio tempo que determina a priori o lugar das relações de tempo válido para todo o tempo, isto é, objetivamente válido" (Kant,
de todas as suas partes" (Kant, E., CRP - 189). E.. CRP - 195).
40. !Cant. E.• CRP - 190·1. I 44. !Cant. E.• CRP - 349.
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11 - ETAPA CRíTICA DA REINSTAURAÇÃO DO OBJETO DA FILOSOFIA 7. TEMPO E CONCEITO

conhecimento científico. Mas como em Kant este conhecimento diz quer papel positivo quando nos colocamos numa perspectiva de acei-
respeito aos fenômenos, é deixado um lugar para a liberdade no tação dos fatos internos tanto como dos externos. Se aceitamos a
mundo das coisas-em-si, o que a torna inexplicável em termos teó- possibilidade de acesso à duração como fato interno, a intuição in-
ricos. Na verdade, tal concepção resulta de se pensar a liberdade a telectual deixa de estar obrigatoriamente associada à análise concei-
partir do determinismo, do fato de se tentar explicar por conceitos tual e se torna um degrau para atingirmos uma forma de experiência
aquilo que por natureza foge à conceitualização. Nessa linha de pen- direta. Mas para aceitar tal experiência seria preciso pelo menos
samento, a metafísica torna-se não somente algo oposto à ciência conceber a possibilidade de um tempo diferente da sucessão deter-
como também um conjunto de crenças de estatuto inexplicado. Com minada, um tempo que não fosse meramente destinado a servir de
efeito, tomando por exemplo o estatuto do tempo, vimos como em suporte à lei da causalidade determinista (0.1.-174). É preciso no
Kant a sucessão está conjugada com a determinação necessária. Isso entanto não confundir a intuição intelectual com uma espécie de
faz com que não se possa pensar a liberdade no tempo, já que o conhecimento supratemporal, como fizeram vários filósofos, antes e
tempo é inseparável do determinismo". Conseqüentemente, a dura- depois de Kant, e inclusive o próprio Kant. Justamente por ser uma
ção psicológica não tem estatuto teórico, o que é apenas uma parte dimensão da experiência, a intuição tem de levar ainda mais em conta
do preço a ser pago pela solidez dos fundamentos formais da ciência o tempo como modo privilegiado de existência, tanto do homem
da natureza. Disso resulta, no próprio Kant, a inacessibilidade teóri- como das coisas. Foi o que não flzeram os sucessores de Kant que,
ca da consciência e na psicologia que se inspira numa teoria da ciên- ao restabelecer os direitos da intuição intelectual, pensaram-na na
cia kantiana a construção de um Eu superficial e voltado para a ex- forma de um conhecimento direto de um princípio - arqué ou telos-
terioridade, logo com as mesmas características desta exterioridade, situado fora do tempo, e que o real, na sua esfera de temporalidade,
o que o torna então um objeto análogo aos da ciência da natureza: "realizaria" mesmo que necessariamente. Não deve ser função da
é isto que faz com que também a psicologia possa ser pensada como intuição construir princípios ou deduzir realidades, ou mesmo orde-
ciência natural e, assim, possa fazer uso da mesma concepção do nar pelo pensamento a evolução histórica do devir, mas sim entrar
tempo (0.1.-178-9). em contato direto e experiencial com a duração".
Grande peso possui nos resultados do kantismo a acepção uni-
camente sensível da intuição. A impossibilidade de intuição intelec-
tual corta na raiz qualquer pretensão de coincidência, mesmo no 7. TEMPO E CONCEITO
modo discursivo, com a interioridade. Tal restrição se compreende
no quadto crítico da filosofia kantiana, quando pensamos que ela Bergson considera que a ciência determinista fundada pelo kan-
visava diretamente resgatar a experiência como fundamento sensível tismo é totalmente relativa à capacidade humana de conhecer, en-
do conhecimento em oposição ao dogmatismo da análise puramen- tendida como possibilidade de relações quantitativas através da im-
te conceitual. A mesma restrição no entanto deixa de cumprir qual- posição da forma intelectual à matéria sensível do conhecimento.
Esgotado este ãmbito, não há mais conhecimento teórico que se possa
obter pelo entendimento, e conhecemos a razão: tal domínio é de-
45. A relação entre o início relativo e o início absoluto da série de eventos, afirmada
por Kant no Comentário da Tese da Terceira Antinomia, é vista por Bergson como um
indício de que na própria filosofia kantiana existe, de alguma maneira latente, a pos- 46. A intuição não pode ser ponto de partida da reconstrução do real muito simples-
sibilidade de pensar o ato livre como espontaneidade absoluta e como advento de mente porque a intuição é forma de contato experiencial- a experiência aqui enten-
uma heterogeneidade radícal no próprio interior da série fenomênica. Por não poder dida corno liberta das condições que a inteligência lhe impõe. A intuição requer "re-

l '"
admitir a heterogeneidade radical na série causal, Kant teria deslocado o ato livre para nunciar ao método de construção, que foi o dos sucessores de Kant. Seria preciso
a esfera do noumeno, mantendo assim a homogeneidade da série causal no plano dos apelar a uma experiência - uma experiência depurada, despojada, onde fosse preci-

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fenômenos. Mas o que fica assim retirado da esfera da pOSSibilidade de conhecimento so, dos quadros que nossa inteligência constituiu durante o progresso de nossa ação I

teórico é o Eu enquanto objeto de apercepção interna, situação que revela a experiên- sobre as coisas. Uma experiência deste gênero não é urna experiência intemporal~ I
~ ~ , . .- ~ ,....,. - ""'"~. ~ O.,·",. .~.~.
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11 - ETAPA CRíTICA DA REINSTAURAÇÁO DO OB/ETO DA FILOSOFIA
7. TEMPO E CONCEITO

marcado pela intuição sensível. A relatividade do conhecimento é articulações supõem o devir: mas como a intuição que desvenda o
algo que merecerá os mais sérios reparos de Bergson em vários tex- sentido deste devir é intemporal, permanecemos ainda no interior
tos, notadamente na Introdução a La Pensée et le Mouvant. Mas a de uma filosofia do conceito que sobrevoa o tempo e que não adere
crítica não parte imediatamente da afirmação da possibilidade do à temporalidade real. Sem dúvida isto deriva do caráter menor atri-
conhecimento absoluto e sim questiona a maneira como a relativi- buído a qualquer experiência no tempo. Acreditou-se sempre que
dade é estabelecida pela filosofia kantiana, que teria incorporado os algum esquema intelectual deve dominar o tempo para que haja co-
dogmas metafisicos tradicionais, notadamente o do determinismo, nhecimento efetivo. Quis-se retirar o conhecimento do âmbito res-
fundamentando-o na instância transcendental. Uma visão puramente trito da forma da intuição sensível e então foi ele recolocado na es-
metodológica do determinismo daria outro perfil à relatividade do fera intemporal, onde já o havia posto Platão, como se a alternativa
conhecimento, adequando-o a características por assim dizer regio- fosse entre uma relatividade sensível e o caráter absoluto de uma
nais dos campos de objetividade. Mas a assunção da intuição sensí- inteligência fora do tempo, esquecendo-se que, sendo a duração a
vel como única possível corta na raiz a possibilidade de uma diferen- verdadeira realidade substancial, somente um conhecimento capaz
ciação e, assim, de um relativismo metodológico. A impossibilidade de, em alguma medida, coincidir com ela, poderá aspirar à efetivida-
da intuição intelectual foi, como se sabe, contestada pelos "sucesso- de. Em vez disso procurou-se, a partir da intuição intemporal de um
res imediatos" de Kant. É interessante notar como, para Bergson, conceito tido como absoluto, reconstruir o real, incluída nesta re-
esta contestação está ligada à crítica da ciência mecanicista. O pen- construção uma rearticulação de elementos num tempo espacializa-
samento se volta para as possibilidades abertas pelas concepções do, ou absolutamente espacializado. Desta forma é que Bergson acre-
evolutivas do real, libertando-se deste modo do mecanicismo, ou dita ter sido possível um sistema com a abrangência que possui a
reduzindo-o ao seu âmbito próprio, ao seu "momento". Apareceu aí filosofia de Hegel. O tempo seria o substrato da articulação das for-
a oportunidade para que a crítica do mecanicismo como extensão mas do devir, dos graus de realização da Idéia, objeto da intuição
universalizante dos procedimentos da ciência da natureza abrisse intemporal. Conseqüentemente, permanece ainda a desvinculação
espaço para a consideração da duração real e portanto para uma entre a verdade e o tempo. No § 258 da Enciclopédia o tempo é de-
outra concepção do tempo, mais adequada aos objetos não inertes. finido como unidade negativa da exterioridade, abstrato e ideal. A
Tal não aconteceu porque a intuição sensível que circunscrevia o idealidade e a abstração resultam de ser o tempo o "devir intuído" -
conhecimento foi substituída por uma intuição intemporal, totalmen- "o ser que, enquanto é, não é, e enquanto não é, é". A diferenciação
te alheia à duração. Assim, embora a filosofia pós-kantiana tenha da passagem do tempo, ou as passagens enquanto determinações,
criticado o mecanicismo estrito como modo universal de pensamen- resulta em diferenças extrínsecas: no tempo ainda estamos no domí-
to teórico, introduzindo noções como progresso, evolução, devir, elas nio do que é exterior a si mesmo. Exterioridade e abstração, sair fora
não correspondem à consideração do tempo real, mas simplesmente de si, tais são as expressões que designam o tempo. Não há nele,
a uma nova configuração das formas da realidade que leva em conta para Hegel, nenhuma diferença real- apenas uma referência abs-
o tempo na constituição do real, porém pensando-o como um con- trata de si mesmo a si mesmo. Esta continuidade não é a de um
ceito, isto é, como uma multiplicidade quantitativa. Em vez de graus receptáculo, mas a da própria realidade enquanto nascer e morrer: o
de complicação mecânica, supõe-se agora a realidade constituída que engendra e devora, como Cronos. Este nascer e morrer é a
em graus de realização da Idéia ou de objetivação de um conceito, negatividade que faz parte do real enquanto finito: o real não é a
como uma escala que o ser percorre. Mas, justamente, é preciso negatividade, mas tem a negatividade, daí a contradição no seu ser.
partir da Idéia ou de qualquer outra configuração do ser, para refa- Esta contradição, enquanto exterioridade, é o tempo; o real está do-
zer a "história" do real. É como se o devir fosse deduzido do ser minado pela contradição, vale dizer, pelo tempo, ao contrário do
(E.C.-361). conceito que, sendo a negatividade total, é também a liberdade total
e não está dominado pelo tempo. Por isto, diz Hegel, "somente as
Não haveria, assim, grande diferença com respeito ao mecanicis- coisas naturais estão sujeitas ao tempo, por serem finitas; o verda-
mo. Apenas as articulações são feitas agora ao longo do tempo e as deiro, pelo contrário, a Idéia, o Espírito, é eterno".
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11 - ETAPA CRITICA DA REINSTAURAÇAO DO OBJETO DA FILOSOFIA 7. TEMPO E CONCEITO

A passagem do tempo, configurada pelas dimensões passado, no âmbito da matemática, em conceito; conseqüentemente vê como
presente e futuro, é o devir da exterioridade, diferenças no ser, pas- prejudicada - também por isso - a argumentação que Kant desen-
sagem do nada ao ser e do ser ao nada. Tais diferenças se anulam na volve para provar o caráter sintético das operações matemáticas. A
individualidade presente, em relação à qual passado e futuro são exterioridade que caracteriza o pensamento matemático não permi-
meras abstrações. Mas também O presente está destinado a conver- te que se fale em síntese ou em conceito. O ato de numerar é carente
ter-se, de realidade e afirmação, em abstração e negatividade47 • Res- de conceito", agrupamento meramente extrínseco. Cremos que é a
salte-se porém o caráter representativo da duração, pois na natureza partir disso que Paulo Arantes pode afirmar: "A repetição do Uno
não existem propriamente as dimensões, mas apenas o instante. numérico desenrola-se, desse modo, em um meio inassimilável des-
Como o tempo na natureza é apenas o instante, a negação do instan- de o início àquele em que se reproduz a dialética do Uno tempo-
te é a negação do tempo, que para Hegel é o espaço. ral"". A exterioridade recíproca que caracteriza a numeração faz com
que a multiplicidade daí resultante seja muito diferente do engen-
O tempo tem, pois, natureza quantitativa e a forma de uma re-
dramento da multiplicidade temporal, razão pela qual Hegel não só
petição serial. Esta repetição, que Hegel caracteriza como uma refe- se afasta de Kant, mas também de Aristóteles, que define o tempo
rência de si a si na pura exterioridade, pode ser vista como uma como número do movimento e afecção do movimento, portanto em
incessante reprodução da unidade. O nascer e o morrer, que carac- constante referência a um móvel que encama a própria substancia-
terizam o tempo, não engendram formas novas numa duração qua-
lidade do Agora ou do instante. O número é a realização mais com-
litativamente diferenciada, mas simplesmente repetem a mesma pleta da exterioridade do pensamento. Mas, como vimos, o tempo
contradição. A passagem do tempo é o engendramento do Uno tem- também é definido como exterioridade, constante sair de si. Por que
poral, o Agora; em seguida sua anulação; depois um novo engendra-
então distinguir multiplicidade numérica e multiplicidade temporal?
mento de um outro Agora; mas isto não se faz numa diferenciação Esse problema nos interessa na medida em que, com esta diferença,
qualitativa, e sim numa repetição quantitativa, daí poder ser chama-
Hegel parece reconhecer a existência de dois tipos de multiplicidade,
do de serial". Assim, o tempo tem algo a ver com o número. Mas tal como Bergson no Essaf". Arantes sugere esta comparação ao co-
Hegel não admite, como Kant, que a operação de contagem seja feita mentar a incompatibilidade vista por Hegel entre o tempo e o núme-
no tempo ou que o tempo seja o substrato da aritmética. As opera-
ro, bem como as relações entre tempo e espaço. Se por um lado a
ções aritméticas e as demonstrações geométricas não são sintéticas, contigüidade dos dois conceitos está de acordo com a articulação
pelo menos não da forma como pensara Kant. Na verdade o proble-
dialética espaço-ponto-tempo, por outro lado há determinações do
ma é anterior, na medida em que Hegel não crê que se possa falar,
tempo que só se explicam pela confusão com o espaço". Existe por-
tanto uma simetria no engendramento dialético das multiplicidades

47. "O presente finito é o instante, fixado como algo que é distinto do que é negativo,
dos momentos abstratos do passado e do futuro, como a uriidade concreta e, por
conseguinte, como o que é afirmativo; mas aquele ser do instante presente é também 49. Cf. Hegel, WF, Ciencia de la Logica, oh. cit., pp. 183-4.
meramente o ser abstrato que se dissolve no nada" (Hegel, WF, Enciclopedia de las 50. Arantes, P., Hegel: A Ordem do Tempo, Polis, São Paulo, 1981, p. 111.
Ciencias Filosoficas, tradução espanhola de Ovejero e Maury, Juan Pablos Editor, 51. "Tudo se passa como se na origem de duas multiplicidades houvesse dois gêne-
Mexieo, 1974, § 259, p. 174). ros ou modos de ser da exterioridade, uma, por assim dizer, analítica e constituída
48. "O espaço é este absoluto ser-fora-de-si, aquele que ao mesmo tempo de maneira pela justaposição de momentos indiferentes, a outra sintética, em que a separação
absoluta e não interrompida é um ser outro e ser-novamente-outro, idêntico consigo não exclui desde logo a coesão interna. Enquanto a multiplicidade temporal define
mesmo. O tempo é um absoluto sair-fora-de-si, um engendrar-se do uno, do ponto uma das formas abstratas da exterioridade imediata, a multiplicidade numérica cir-
temporal, do agora, que de imediato é seu próprio anular-se, e continuamente de cunscreve o pensamento abstrato da exterioridade. No entanto, ambas se comunicam
novo o anular-se deste perecer; de modo que este engendrar-se do não-ser é também por dentro, pois, graças à intenrenção de um ato próprio ao entendimento, a multipli-
simples igualdade e identidade consigo" (Hegel, WF, Ciencia de la Logica, tradução cidade numéricas se produz a partir de uma corrupção dos elementos da multiplici-
espanhola de Augusta e Rodolfo Mondolfo, edição Solar/Hachette, Buenos Aires, 1968, dade temporal" (Arantes, P., ob. cit., p. 112).
p.167). 52. Arantes, P., ob. cit., p. 113.

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, 11 - ETAPA CRiTICA DA REIN5TAURAÇÃO DO OB/ETO DA FILOSOFIA

espaciais e temporais, sem que deixe de haver especificidade do tem-


7. TEMPO E CONCEITO

de do ser é o que será intensamente criticado na Evolução Criadora.


po, pelo menos em relação ao número. Não se pode também deixar Tal atitude contraria a noção de experiência integral (o acompanha-
de assinalar que Hegel insiste no caráter abstrato do número em mento dos fatos sem pressupostos metafísicos) e opõe-se à noção de
relação ao sensível: o número é uma determinação abstrata do sen- intuição que consiste na coincidência com o ritmo do fazer-se na
sível. Nesse sentido, Kant tem razão quando diz, no Esquematismo, duração.
que o número está a meio caminho entre o sensível e o intelectual,
Essa segunda perspectiva, que na verdade engloba a primeira,
mas isso justamente prova que o número serve para determinar o
deve ser adotada não só do ponto de vista noemático - a conside-
múltiplo da exterioridade. Ele seria uma espécie de "exterioridade
ração da realidade em si mesma como um fazer-se, progresso ou
interna". Embora não coloque na origem do número a intuição espa-
processo de duração - mas também do ponto de vista noético -
cial, como faz Bergson, Hegel reconhece pelo menos a preponderân-
apreensão da realidade em termos de conhecimento. Nesse último
cia da exterioridade na definição do número. Essas aproximações de
detalhe poderiam prosseguir e certamente encontraríamos ainda sentido é que devem ser entendidas as considerações de Bergson
muitos outros pontos para comentar. Mas não devemos esquecer sobre a filosofía como sistema. Na Introdução a La Pensée et le
(como nos alerta Paulo Arantes) que Hegel concebe o tempo como Mouvant, o filósofo insiste em que, adotada uma perspectiva intui-
pluralidade quantitativa, uma extensão, conseqüentemente como o tiva e experiencial, não se pode mais conceber a filosofia como sis-
que Bergson chamaria "meio homogêneo". É bem verdade que po- tema fechado e integral que contenha a solução para todos os pro-
demos ver em Hegel talvez duas maneiras de "preencher" este meio blemas. Pelo contrário, a filosofia deve imitar a ciência sob o aspecto
homogêneo: coexistência ou sucessão, que seriam duas espécies de da continuidade e da acumulação de resultados, como obra coletiva.
homogeneidade. Se por um lado isto dá conta de haver em Hegel Não competiria neste sentido ao filósofo construir os "estágios su-
duas multiplicidades e de ser o tempo uma pluralidade quantitativa, perpostos de um magnífico edifício" (E.C.-362) com generalidades
por outro lado isto nos afasta bastante da diferença bergsoniana entre cada vez mais altas. Cabe a ele contribuir para o acúmulo de resul-
coexistência homogênea espacial e heterogeneidade da duração. tados que constituem um acervo coletivo, impessoal, de verdades
Lembremos ainda que Hegel define o tempo, explicitamente, como definitivamente conquistadas. A integralidade da filosofia está no seu
uma repetição contínua, repetição da mesma contradição. Tal repe- horizonte de rigor e não na ossatura de sistemas particulares. Não é
tição indefinida é signo de um pensamento que ainda não chegou à difícil reconhecer nessa crítica uma alusão à importância que tem
plenitude do conceito, negatividade absolutamente livre. Esta é a em Hegel a arquitetônica sistemática, caracteristica que Bergson atri-
razão pela qual o conceito (o espírito) não está no tempo. Apesar de bui a todos os pós- kantianos. A crítica é ilustrada pelo exame da
Hegel mencionar a "inquietude" característica da temporalidade e noção de Vontade em Schopenhauer e do papel que este conceito
que o espaço - ou o tempo travestido de espaço - "fixaria" mais ou desempenha na explicação da realidade (P.M.-49). O afã de atingir o
menos artificialmente, não se pode entender tal "inquietude" como conceito absolutamente geral produz a vacuidade. A generalidade é,
a essência movente da realidade. Mesmo os Agora, instantes que se para Bergson, o principal signo de imprecisão em filosofia. No en-
sucedem, não são substanciais como em Aristóteles. O espírito ou a tanto, podemos apontar certos textos de Hegel que, ao menos à pri-
Idéia enquanto destino da história devem ser vistos do ponto de vis- meira vista, parecem antes prefigurar a crítica da idéia geral vazia do
ta da eternidade. E talvez seja essa teleologia que, para além de qual- que ilustrar positivamente as denúncias bergsonianas. Diz Bergson
quer pormenor de aproximação ou de diferença, marque verdadei- em La Pensée et le Mouvant que os filósofos pós-kantianos acredita-
ramente o ponto de incidência da crítica bergsoniana. É o fato de o ram conhecer o absoluto dando-lhe um nome: Eu, Vontade, Idéia.
destino estar dado, de não se ter nada mais a fazer senão recons- Ora, no Prefácio da Fenomenologia do Espírito, Hegel critica as filo-

l ".,. .
truir os momentos lógicos e históricos da trajetória: para uma leitu- sofias que crêem atingir o absoluto sem determiná-lo e que assim
ra bergsoniana, isto corresponde metafisicamente à reconstrução caem na generalidade mais abstrata. Isto porque o absoluto é posto
no começo como um princípio vazio e não no fim como resultado de
da evolução com os fragmentos do evoluído. Esta teleologia que dá
ao filósofo o privilégio de se situar no ponto terminal da historicida- ""=;0""', « q" ~mbém ,,,,,mm = ","dp;«, 7~ j
176

L
7. TEMPO E CONCEITO
11 - ETAPA CRITICA DA REINSfAURAÇAO DO OBJETO DA FILOSOFIA

desta vez pleno da significação concreta que são as determinações". pode esquecer a definição hegeliana do tempo como idealidade abs-
Tal representação do absoluto pode ser "edificante" e responder aos trata. A análise do tempo segue o padrão de toda análise hegeliana:
anseios da consciência infeliz, mas não faz parte da filosofia como procura criticar a representação imediata, a fim de verificar como se
ciência. O que seria preciso pensar é a forma do tempo implícita no pode estabelecer a partir daí o trânsito ao conceito. Na Lógica e na
devir das determinações do espírito. A problemática da temporalida- Enciclopédia, vemos esse procedimento aplicado tanto ao espaço
de em Hegel está ligada ao caráter retrospectivo (volta a si) e pros- como ao tempo. Assim como, no caso do espaço, o ponto é o posi-
pectivo (saída de si) do itinerário do espíritOS'. Em todo caso, Hegel tivo a partir do qual se reconstitui o espaço (que o próprio ponto
qualifica de deficiente aquilo que é apenas universal. Daí a falha dos havia negado), no caso do tempo esse positivo é o presente ou o
sistemas que têm como fundamento ou começo este tipo de univer- Agora. O tempo pode ser representado como uma série de Agora ou
sal. Daí também a ausência do que Hegel chama efetividade, a tota- de presentes, dos quais o passado e o futuro são modificações. Mas
lidade das determinações que permite pensar a identidade na dife- é o Agora que aparece como realidade, mesmo que seja uma realida-
rença, ou a identidade como totalização das diferenças, o que é bem de evanescente, isto é, a caminho do negativo. Trata-se portanto de
diferente da identidade abstrata, em que as determinações do ser uma representação pontual ou de uma "articulação punctiforme"
(como designa Paulo Arantes). Daí a possibilidade de definir o tempo
estão em potência.
como" o ser que, sendo, não é, e não sendo, é"". Mas é apenas uma
Tais determinações dizem respeito à interioridade da consciên- representação ainda anterior ao conceito a que confere esta realida-
cia que reencontra na realidade do conceito a exterioridade desta vez de fixa e inabalável ao presente, porque ele também está inserido
determinada. Por isso diz Hegel que o conhecimento matemático é num processo que tem a negatividade como fator constitutivo. O
profundamente distinto do filosófico, na medida em que ele é exte- tempo é uma realidade movente: identificá-lo ao presente ou mesmo
rior e formal, ou seja, não inclui a oposição e a reconciliação interna privilegiar o presente é esquecer este aspecto dinâmico de processo
dos opostos que caracterizam o conceito. Assim o tempo matemáti- que para Hegel é inseparável do trabalho do negativo. O presente
co, que Kant põe como fundamento da aritmética, não representa a existe para ser negado, assim como ele próprio é a negação de um
realidade do tempo enquanto "pura inquietude de vida" e "absoluta passado que foi presente. A este respeito assinala Arantes que a lei de
diferenciação"55. No conhecimento matemático, não há diferencia- formação do presente é fornecida pelo negativo". O que distingue a
ção e sim "unidade abstrata e sem vida", "diferença sem conceito" e dialética do tempo da do espaço é exatamente a aniquilação que as
igualdade. O tempo real confunde-se com a existência do conceito: dimensões realizam umas em relação às outras. Tal distinção pode
esta inquietude de vida nada tem a ver com a repetição do Uno, que ser vista como uma ruptura entre tempo e espaço, embora o tempo,
é a temporalidade fixa da matemática. O conceito é no tempo. O na sua gênese, esteja ligado à dialética do espaço. No espaço há partes
movimento do conceito enquanto temporalidade ou historicidade ou momentos que, enquanto ser-fora-de-si, trazem como caracterís-
do ser é que precisa ser cotejado com a crítica bergsoniana da filo- tica a indiferença recíproca, que Bergson chamará de justaposição. E
sofia do conceito e do tempo quantitativo. Nessa comparação não se é esta característica que o tempo parece eliminar através de uma
atuação mais efetiva do negativo - através da supressão. Os mo-
mentos do tempo são suprimidos na passagem de um para o outro,
53. "A verdade é tudo. Mas o todo é apenas a essência explicitando-se a si mesma e a diferença se instala a partir dessa supressão. Faz parte portanto
através de seu desenvolvimento. (... ) Se digo 'todos os animais', estas palavras não da determinação do momento temporal o ser suprimido: "desaparição
podem passar pelo equivalente de uma zoologia; com igual evidência, vemos que as
palavras divino, absoluto, eterno não enunciam o que está contido nelas e são somen-
imediata". A referência de um momento do tempo a outro é insepa-
te tais palavras que exprimem de fato a intuição como o imediato" (Hegel, Préface à rável da supressão. Estaríamos a partir daí autorizados a qualificar
la Phénornenologie de I'Esprit, tradução Hyppolite, Aubier/bilíngüe, Paris, 1966. pp.
51·53).
54. Cf. a nota 8 de Hyppolite à sua tradução do Prefácio da Fenomenologia do espí-
56. Hegel. WF, Enciclopedia. ed. cit., § 258, p. 173.
rito, ob. cit., p. 184. 57. Arantes, P., oh. cit., p. 43.

I
55. Hegel. WF, Préface ... ob. cit., p. 107.
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II - ETAPA CRfTIG". DA REINSTAURAÇÃO DO OBJETO DA FILOSOFIA 7. TEMPO E CONCEITO

esta sucessão de momentos que se anulam no seu desenvolver-se ra O que Bergson chamaria de caráter homogêneo do tempo. Sabe-
como algo análogo à duração bergsoniana? Basta recordar a maneira mos que espaço e tempo estão na esfera da exterioridade; o espaço
pontual como esta articulação é pensada para responder negativa- é a exterioridade em-si e o tempo é a exterioridade para-si. A relação
mente. O que aí se representa é o instantâneo como ponto que entre espaço e tempo pode então ser compreendida como a passa-
escande a temporalidade. Lembremo-nos de que o momento nasceu gem dialética do em-si ao para-si, o que não pode (ou não precisa
dialeticamente do ponto espacial como negação da linha e que o necessariamente) ser interpretado como derivação. Resta o fato de
ponto temporal continua a ser pensado como limite. O tempo é uma que esta passagem repousa numa necessidade conceitual- que faz
série de pontos, tal como já era para Kant e para Aristóteles. Aliás, é com que o ponto temporal represente a verdade do ponto espacial.
isso que justifica o privilégio do instante presente na representação As bases "sólidas e explícitas" desta passagem é que levariam, numa
espontânea. Vemos que Hegel critica este privilégio sem no entanto perspectiva bergsoniana, a pensar num tempo "construído" mais do
mudar a figura da articulação do tempo. O instante não fornece mais que num tempo "vivido". Não podemos esquecer que o trajeto do
a realidade conceitual do tempo, mas a série de instantes a fornece. ponto espacial ao ponto temporal é um movimento conceitual. As-
O tempo é contínuo - o que justifica ainda uma vez a analogia com sim como o ponto temporal, enquanto "realidade efetiva" do ponto
a linha, tal como Kant a pensara: o ponto é limite espacial, o instante espacial, representa a "contração" do estar-aí na forma do ser-para-
é limite temporal. A filosofia transcendental, aliás, manteve fidelida- -si, poderíamos talvez perguntar se esta contração não faz do espaço
de a esta concepção, como mostra Arantes em relação a Fichte e a realidade conservada (e suscetível. ao menos idealmente, de se
Schelling58• descontrair) do instante temporal. No entanto, não podemos desco-
Sem dúvida a concepção pontual do presente em Hegel dá con- nhecer também as relações que, no pensamento de Hegel, mantêm
tinuidade a esta herança. Mas podemos perguntar se é apenas por as categorias do em-si e do para-si. A determinação do em-si não
analogia que o instante é concebido como espécie de unidade do está nele mesmo, mas em outro, ao passo que a determinação do
tempo. Arantes chama atenção para o fato de que a conexão entre para-si é imanente. É por isso que, quando a multiplicidade espacial
ponto espacial e ponto temporal não é analógica e sim dialética. O contém o Uno, diz Hegel, ela o contém em Outro, isto é, no tempo;
ponto temporal surge da negação do espaço e portanto de uma trans- e o tempo contém o Uno de forma imanente, nele mesmo. O fato de
formação da multiplicidade espacial. É como se a potência negativa que a determinação do espaço está no tempo não confere prioridade
do tempo responsável pela supressão dialética do espaço nos impe- ontológica ao tempo? O Uno no caso é o ponto; ora, o ponto tempo-
disse de ver nesta relação uma derivação do tempo em relação ao ral é a "plena verdade" do ponto. Disto resultaria que o caráter pon-
espaço, como poderia fazer uma possível leitura bergsoniana. A rea- tual ou "punctiforme" do tempo, longe de ser uma transposição es-
lidade do tempo como que repousa no fato de se ter posto a partir da pacial, é uma característica original do tempo, e a ele inerente en-
supressão do espaço". É ainda de se notar que o ponto temporal tem quanto exterioridade para-si.
um caráter sui-generis, que é o poder de suprimir ou excluir os ou- Por outro lado, haveria alguma maneira de aproximar o caráter
tros membros da série, e é isto que o diferencia do espaço, onde as
pontual do Agora das simultaneidades de que fala Bergson no Essai?
partes permanecem. Seria de se perguntar se esta característica reti-
A essência do tempo está no encadeamento de suas três dimensões.
Ver a essência do tempo no Agora é ilusão. O presente carrega em si
58. "Assim, Fichte define a série temporal, obtida por derivação genética, como uma a negatividade constitutiva que o destina ao desaparecimento ou à
série de pontos. (... ) Schelling, enfim, retoma o fio dessas análises: se a primeira síntese determinação num outro momento que é o futuro. Saindo da deter-
do tempo com o espaço, lê-se no System de 1800, só poderia ser expressa pela linha minação imediata, o Agora se cumpre verdadeiramente ao anular-se
ou, dizendo-se de outro modo, pelo 'ponto expandido', é porque o tempo é 'ponto em benefício do futuro, sua determinação mais rica. O Agora é um
puro' ou ;limite puro'" (Arantes, P., ob. cit., pp. 45-46).
59. "O passado e o futuro do tempo, enquanto estão na natureza, são o espaço, limite no sentido de que é a transformação em futuro, através da
porque este é o tempo negado, e assim o espaço, superado, é primeiro o ponto e, negação, do não-ser que o presente traz em si e que é uma determi-
desenvolvido por si, o tempo" (Hegel, WF, Enciclopedia, ed. cit., § 259, p. 174). nação. Nesse sentido, a essência do presente é o futuro e a negação

II 180 181

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7. TEMPO E CONCEITO
11 - ETAPA CRfTICA DA REINSTAURAÇÃO DO OBJETO DA FILOSOFIA

'·Ii' sente), resta ainda o fato de que é a relação entre os momentos re-
se repõe a cada momento, fazendo do presente o não-ser-de-si-
-mesmo. Nesse encadeamento está a essência do tempo e se vê tam- presentados como pontos temporais que define a realidade do tem-
bém com mais nitidez o caráter originariamente progressivo da arti- po. Esta relação é uma articulação conceitual que parece conservar
culação pontual. Atente-se para o fato de que o futuro é o que está a continuidade própria de uma pluralidade quantitativa. Epistemo-
determinado a ser a partir do presente. O percurso reflexivo não logicamente o Agora mantém certo privilégio. O problema de uma
poderia ser lido como uma transposição da reflexão para a realidade, leitura comparada seria saber até que ponto o não-ser do presente
ou da confusão entre articulação lógica e articulação da realidade leva a pensar num fluxo análogo à multiplicidade qualitativa. Na
Fenomenologia, o problema se apresenta como sendo a dificuldade
enquanto duração? Se compararmos os passos descritivos da reflexão
sobre o tempo em Hegel e em Bergson, talvez encontremos muitos que tem a consciência sensível para definir concretamente aquilo
pontos de afinidade. Certamente, por exemplo, a articulação "punc- que se dissipa, aquilo de que ainda não há conceito. "O Agora é a
tiforme" não cai exatamente sob a crítica das simultaneidades, apro- noite" ou "O Agora é o dia". Isto vai desembocar no não-ente, naqui-
ximando-se muito mais de um processo original e criador. Mas é o lo que é porque suas determinações não são: o universal. Esta
sentido do estabelecimento dessa articulação pela reflexão, o sentido evanescência do presente pode ser aproximada, como faz Arantes",
do próprio paralelismo entre a lógica e a articulação da realidade que do presente enquanto fazer-se da ontologia bergsoniana? Ou não seria
está em jogo: a própria lógica dialética enquanto resultado do de se ver aí antes a articulação lógica dos momentos de um absoluto?
esquematismo da inteligência quando aplicado à evolução, o que Em Hegel a evanescência do presente, a fluidez do tempo é algo que
Bergson reconheceria seguramente como um passo importante na impede que se veja no presente a essência do tempo, mas éjustamen-
direção da consideração do real como processo. Na própria crítica te porque a essência não pode estar associada ao fluxo evanescente.
que Bergson faz às filosofias pós-kantianas, ele não deixa de reco- Por isso é preciso que o Agora (presente) negado e suprimido seja
nhecer que "as idéias de devir, progresso, evolução parecem aí ocu- afirmado como o Agora (passado) que, enquanto passado, é também
par um lugar de destaque" (E.C.-361), mas justamente talvez porque negado e suprimido: a negação da negação, término do movimento
sejam as idéias que aí têm lugar é que a duração não desempenha dialético, restabelece o Agora no seu movimento de posição e negação.
um "verdadeiro papel", na medida em que a verdade do tempo será Desde Aristóteles, a tradição equaciona o problema do tempo
sua articulação conceitual. Tanto parece ser assim que o fato de a em termos de ser ou não-ser e toda a dificuldade deriva de que o
essência do tempo para Hegel não estar em nenhuma das dimensões tempo parece suscetível de receber as duas determinações. Esta al-
tomadas separadamente como ponto privilegiado, mas sim no trãn- ternativa ontológica não é aceita como princípio nas análises
sito que se faz por via da negação de uma dimensão para outra, pode hegelianas, na medida em que o tempo é e não é na dialética do fluir
ser visto como uma perspectiva que em si mesma supera a fixidez e de suas dimensões. Conforme consideremos o presente em relação
a consideração do tempo como simultaneidades. Mas este trânsito ao passado, o passado em relação ao presente ou o presente em
da negação pode também ser visto como diferenças internas do tem- relação ao futuro e vice-versa, teremos de jogar com o ser e o não-
po que se "comunicam por dentro". Dessa maneira o fato de o con- -ser, de tal forma eles estão inseparáveis na dialética do tempo. Por
teúdo real do tempo "circular" pelas três dimensões pode servir tam- isso é preciso que a própria especulação seja o movimento que
bém para mostrar que "o tempo só é como unidade do presente, do deslinda a "inquietude imediata dos incompatíveis", como está dito
futuro e do passado"". Assim, embora não haja uma predominância na L6gica. Com isto a especulação abre uma perspectiva de reflexão
ontológica do presente, que uma leitura bergsoniana poderia inter-
pretar na direção de uma sucessão simultânea; embora o ponto tem-

l .. . . .:
poral - o Agora - marque apenas a diferenciação em si mesma 61. "Não há como não entrar em acordo quanto a esta primeira constatação, a saber,
como característica do tempo (a característica "excludente" do pre- que o momento presente, no qual este do qual se crê falar e no qual se crê falar, ao
contrário de ser este ente-aí acabado e imediato, é um não-ente. Assim Bergson, para
:~:.:~ ~ _._"-~ _.,..-'~ J
~ 60. Arantes, P., ob. cit .. p. 51.

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11 - ETAPA CRITICA DA REINSTAURAÇÃQ DO OBJETO DA FILOSOFIA

ontológica que se diferencia bastante das análises do livro IV da Fí- IH


sica que foram sempre tomadas como referencial básico pela tradi-
ção. Ao ler passagens como as do § 259 da Enciclopédia ocorre-nos
naturalmente aproximar esta proposta de reflexão como movimento
da crítica bergsoniana da preponderãncia das categorias de estabili-
JNTUIÇÃO E EXPRESSÃO
dade na História do Pensamento. Não nos esqueçamos, porém, de A QUESTj\.O DA PRESENÇA DE ELEMENTOS
que o devir é antes uma categoria lógica separada do tempo, que é
deduzido na filosofia da natureza. Não podemos, como alerta
ROMANTICOS NO PENSAMENTO DE
Arantes.', assimilar o devir lógico ao devir intuído. Com isto falsifica- BERGSON
ríamos tanto a lógica como a natureza. Isso não impede que haja
uma aproximação entre as duas instãncias e que, por exemplo, o
pensamento de Heráclito ilustre, como afirmação do devir, a primei-
ra determinação da idéia lógica. Com a instauração da filosofia da
natureza que é ao mesmo tempo a primeira determinação do ser
como devir, fica esboçado aquilo que virá mais tarde a apresentar-se
1. A CRISE DO "G~NERO" CONCEITUAL
claramente como o ser enquanto processo temporal. Este processo se
apresenta segundo uma escala que talvez possa ser aproximada das
linhas mestras da "história natural" bergsoniana63 • Há que reparar, A presença de elementos romànticos na filosofia de Bergson
entretanto, na noção de "forma temporal" como "processo abstrato" apresenta-se como uma questão e não simplesmente como a afirma-
ou "abstração do processo", que uma leitura bergsoniana poderia ção de algumas afinidades - que entretanto existem -, porque tais
fazer recair no dualismo forma/matéria. Mas estas seriam questões afinidades, para ser estabelecidas, demandam o exame de relações
atinentes à ordem lógico-natural do tempo, ou à temporalização do razoavelmente complexas entre o pensamento de Bergson e o con-
devir em ato nas suas manifestações, e que fogem à tentativa de junto muito diversificado de idéias que simplificadamente chama-
esboço das possibilidades críticas bergsonianas em relação às carac- mos de pensamento romântico. Sem, por enquanto esmiuçar dife-
terísticas mais gerais do tempo hegeliano. renças, que no entanto veremos serem essenciais para a compreen-
são dessas relações, basta-nos por agora mencionar dois aspectos,
um relativo à filosofia de Bergson e outro concernente ao pensamen-
to romântico (permita-se-nos esta expressão cuja generalidade será
na devida ocasião objeto de precisão e consideração).
A filosofia de Bergson, por recusar o conceito na sua acepção
tradicional como linguagem adequada para a filosofia, procurará na
expressão imagética a alternativa para uma expressão metafórica mais
aderente ao real. Tanto o conceito, no seu significado formal e exato,
como a imagem, na fluidez que a caracteriza e lhe confere a vanta-
gem da precisão, são metáforas da realidade. Por que a metáfora no
sentido de imagem propicia, aos olhos do filósofo, uma compreen-
são mais precisa do real? O sentido desta questão liga-se sobretudo
ao fato de que é a imagem no contexto de sua utilização literária
aquela que pode substituir com vantagem o conceito; portanto é a
62. Arantes, P., ob. cit., p. 69.
questão do paradigma literário que está em jogo quando se tenta
63. Arantes, P., ob. cit., p. 71. encontrar para a filosofia uma linguagem mais precisa do que o
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IIl- INTUIÇÃO E EXPRESSA0 1. A CRISE DO "GIÔNERO" CONCEITUAL

conceito. Ora, a questão da precisão é uma questão metodológica. É imagem que substitui o conceito através de um trabalho metódico
por exigência metodológica que O conceito é recusado e é, assim, por de constituição da linguagem filosófica não propiciará um contato
exigência metodológica de fidelidade da expressão que a imagem, a direto com o objeto. A linguagem poética se constitui situando o
partir do paradigma literário, será trabalhada como linguagem da objeto no plano da emoção, o que faz com que a expressão seja uma
filosofia. Mas não se trata, evidentemente, de uma transposição, e é travessia da palavra pelo sentimento e na direção do sentimento. O
por isso que surgirão todos os problemas concernentes à relação de símbolo reenvia a um conteúdo afetivo cuja posição decorre do fato
que falamos antes. Se a filosofia deve adotar a linguagem imagética de estar a própria linguagem construída no plano da afetividade. O
por exigência metodológica, a maneira como o artista opera com a objeto tem, pois, algo de comum com o meio de expressão e com O
linguagem só pode ser tomada como paradigma se, na própria no- universo em que se situa. O conteúdo da linguagem poética se cons-
ção de paradigma, estiver incluído um trabalho de mediação que titui de forma imanente ao meio de expressão e ao universo expres-
transforme a metáfora literária num instrumento metodologicamen- sivo. Por isso, no caso do artista, expressão e método (se se pode
te apropriado à expressão filosófica. Portanto, é a distância entre a falar em método) são uma e a mesma coisa. O que não quer dizer
expressão artística e a expressão filosófica que constitui o espaço de que o que a linguagem poética expressa não seja "objetivo" ou "ver-
mediação em que deverá ser reinventado o método filosófico. E isso dadeiro" (palavras que demandarão ainda que as precisemos em seus
porque a adoção da linguagem imagética tem como objetivo um significados), mas sim que a verdade e a objetividade do que é ex-
ganho em precisão sobre a linguagem exata do conceito, metáfora presso na linguagem poética se constituem, por assim dizer, no tra-
exata unicamente porque cristalizada, mas imprecisa no seu conteú- balho de apropriação "subjetiva" e numa relação com as coisas que
do e na sua relação com as coisas. é antes de mais nada uma comunhão afetiva. A linguagem artística
é um jogo expressivo singular de criação de significações. O grande
Não se deve, portanto, pensar numa substituição da linguagem problema que se põe para a filosofia no plano da reinvenção da lin-
filosófica pela linguagem poética. E a razão não é apenas a exigência guagem filosófica é que o trabalho de criação de significações tem a
do caráter metódico da linguagem teórica, mas o próprio fato de que sua objetividade derivada do método que o filósofo emprega para
a linguagem filosófica tem de ser reinventada ou mesmo inventada apreender o mundo e transformá-lo em significados. É um outro jogo
como linguagem que vive a vida das coisas e não a vida de sua lógica expressivo, em que a liberdade de manipulação dos símbolos se su-
interna. Por outro lado, é certo que uma aproximação entre lingua- bordina à representação objetiva da realidade. E representação obje-
gem filosófica e linguagem poética é necessária como meio de rein- tiva, no caso de Bergson, deve ser entendida no sentido realista e até
venção da própria linguagem filosófica, já que a linguagem poética empírico. É importante notar que são as exigências do objeto que
traz em si um potencial expressivo maior do que a linguagem con- decidem das exigências da linguagem. A expressão filosófica tem uma
vencionalmente conceitual. O que está em questão, portanto, na profunda vinculação, na própria problemática da sua constituição,
conjugação problemática entre linguagem, filosofia e método é o lugar com a verdade que a filosofia almeja encontrar e exprimir, uma ver-
da expressão filosófica, seu estatuto e sua articulação simbólica. Di- dade inscrita fora da subjetividade, ao menos no seu sentido afetivo,
gamos, para antecipar, que o irremediável simbolismo da linguagem muito embora só possa ser encontrada e expressa a partir da subje-
deve ser transformado num meio de exprimir o imediato na sua tividade "afetiva". Devemos assim excluir da linguagem filosófica a
imediatez. Mas enunciar esta exigência já é dizer também que a lin- constituição do universo afetivo em obra, no sentido da transfigura-
guagem, por ser simbólica, exprimirá o imediato mediatamente ' . A ção dos significantes no significado da "verdade" da obra de arte; e
devemos excluir também a dimensão do jogo da linguagem regido
1. "Mas no próprio Bergson o imediato é mediatizado. ao menos no sentido de que
pela lógica interna do encadeamento dos conceitos da linguagem
uma aná1ise de purificação é necessária para distingui~lo. (...) Assim o filósofo não teórica (filosófica) tradicional, criticada por Bergson. No entremeio,
pode impedir~nos de assistir ao seu trabalho de filósofo. Enquanto no poema desapa~ como fica o processo de reconstrução da linguagem filosófica?
recem os traços do labor que o fez nascer" (Paliard. J" Note sur la Poésie Bergsonienne.
in Henri Bergson, Essais et Témoignages, org. Albert Béguin e Pierre Thévenaz, la A segunda das exclusões que enumeramos acima tem a ver com
Bacconiêre, Neuchâtel, 1943, pp. 142-3). a relação entre o método e os dados imediatos. Bento Prado observa

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III - I NTUIçP.Q E EXPRESSÃO 1. A CRISE DO "G~NERO" CONCEITUAL

a este respeito: "O salto para o imediato não é, ele próprio, imediato. articulação lógica da realidade. Esta é a causa de a linguagem enco-
Ele apenas é feito através da longa série de mediações constituída brir o objeto, no caso da filosofia: quase se poderia dizer que o objeto
pelo recurso ao testemunho do pensamento positivo"'. Dentre as é produzido pela linguagem, uma vez que serão as exigências de
mediações a que alude Bento Prado Jr., devemos citar pelo menos articulação conceitual que determinarão os modos do aparecer do
duas: a crítica da história da Filosofia e o recurso ao pensamento objeto no âmbito da apreensão intelectual. A lógica interna da arti-
positivo. Ambos os aspectos são, na verdade, recursos metodológicos. culação conceitual exclui da apreensão cognitiva as formas de con-
A reconstrução da linguagem filosófica exige uma crítica cerrada da tato com a realidade que não se subordinem ao caráter discursivo
linguagem tradicional na exata medida em que esta linguagem desta lógica - o que para Bergson se expressa paradigmaticamente
espelha procedimentos intelectuais tributários da conceitualização e na recusa kantiana da intuição intelectual. Mas a eventual aceitação
das suas conseqüências teóricas. Nesse sentido, a leitura da história desta intuição como procedimento cognitivo não é sufíciente para
da Filosofia tem a finalidade de assinalar, principalmente em seus quebrar a hegemonia da modalidade analítico-discursiva dos proce-
momentos mais representativos, a articulação simbólica subordina- dimentos e da linguagem filosófica. Assim se caracteriza na filosofia
da ao encadeamento conceitual em sua lógica própria. Tal lógica a hegemonia do que poderíamos chamar de subjetividade epistêmica,
resulta na independência do discurso tilosófico, o que não é senão a no sentido de um quadro lógico-subjetivo de constituição analítica
desvinculação entre a teoria e o seu objeto. Conseqüentemente, o que fundamenta o processo cognitivo. O teor epistêmico acarretará
discurso filosófico redunda na ocultação do seu objeto. O que se que a pretensa exatidão conceitual rompa o que em Bergson pode-
torna visível na linguagem são os contornos lógicos da realidade ríamos chamar de integralidade do sujeito espiritual. O plano da
inteligível. que é substancialmente um produto do entendimento. A afetividade, que em Bergson é chamado de simpatia, fica assim ex-
visibilidade do mundo tem como contrapartida a invisibilidade dos cluído da dimensão do sujeito teórico e restrito, como tradicional-
contornos efetivos da realidade, e do seu estofo mais íntimo, que a mente aconteceu, às formas de contato com a realidade alheias ao
metafísica tradicional no entanto julga atingir. A continuidade clás- plano do conhecimento. É comum atribuir-se ao "pensamento ro-
sica entre ciência e metafísica cria a "ideologia" da qual a filosofia mântico" uma reação contra a hegemonia do intelecto através da
torna-se tributária, produzindo uma "metafísica do entendimento"'. proposta inversa de uma hegemonia do "sentimento", ou em termos
Para reencontrar o estilo e a função da linguagem filosófica, é neces- mais imprecisos e gerais, da "subjetividade". Teremos ocasião de
sário proceder a uma crítica que tematize esta linguagem nas suas avaliar esta visão do romantismo e provavelmente de corrigi-la no
ocorrências históricas, mas que, ao adotar tal procedimento, já esteja que tem de superficial e parcial. Mas o certo é que - e isto desde já
fundada numa doutrina da relação entre o espírito e as coisas, o que podemos afirmar - não existe em Bergson nenhuma idéia relativa a
implicitamente significa uma profunda reformulação da noção de uma hegemonia do sentimento no sentido desta visão do romantis-
sujeito envolvida na relação teórica. mo a que aludimos. E isto se deve precisamente à integralidade do
sujeito espiritual, que é uno nos seus aspectos afetivos e intelectuais,
Aspecto essencial desta reformulação é uma avaliação do papel que vertentes do pensamento separaram devido a uma concepção
da inteligência na constituição da objetividade do conhecimento. As equivocada e, em certo sentido, pequena, da racionalidade. Um dos
formas naturais de intelecção da realidade determinam os modos de problemas para o exame da subjetividade bergsoniana nas suas pos-
expressão desde a gênese do contato intelectivo com o mundo. Des- síveis relações com a subjetividade "romântica" é, admitido porven-
ta forma, no decorrer da constituição dos processos históricos de tura algum aspecto daquela reação romântica que teria redundado
conhecimento presentes na ciência e na metafísica, acaba sendo a numa hegemonia do "sentimento", avaliar até que ponto Bergson
linguagem o fator determinante do pensamento, tendo em vista a supera a dicotomia entre intelecto e sentimento através da idéia de
que o espírito se compromete integralmente em cada um dos seus
2. Prado Jr., B., Presença e Campo Transcendental: Consciência e Negatividilde na
atos, inclusive os de conhecer. Isto significaria a afirmação de que o
Filosoflll de Bergson. EDUSP, São Paulo, 1989, p. 73. intelecto e o sentimento são aspectos do mesmo todo, o espírito.
3. Id., ibid., p. 73. Ainda assim, esta integralidade só seria passível de ser reafirmada na

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 1. A CRISE DO "G~NERO" CONCEITUAL

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!' filosofia bergsoniana a partir de uma "reabilitação" do sentimento, cia de complexidade da linguagem filosófica. No contexto bergsonia-
sem dúvida levada a cabo pelo pensamento romântico, mas que em no, tal questão não significa retomar alguma coisa banalizada pela
Bergson não resultaria em substituir uma hegemonia por outra, mas reiteração. Pois a linguagem conceitual, no sentido de complexo de
sim numa visão mais larga do espírito enquanto sede e manifestação encadeamento de conceitos, não é de forma alguma complexa, pelo
de racionalidade. O problema se apresenta em toda a sua complexi- contrário, espelha o pragmatismo cômodo da inteligência que cunha
dade no entrecruzamento de intelecto e emoção na representação símbolos de significação convencionalmente unívoca tendo em vista
do ato moral. O que antecede o ato livre, como veremos, não é a a economia da comunicação. A complexidade da linguagem tem a
representação intelectual das alternativas, mas a emoção profunda ver com a ausência de cristalização simbólica, em que a rede de
que impele a alma a agir de forma a que na ação se comprometa imagens expressivas deriva da criação de significações tanto no caso
toda a personalidade: a liberdade só existe quando é a totalidade do das imagens cada uma de per si como no caso das relações que se
sujeito que realiza a ação. O ato moral não emana nem do sentimen- produzem entre elas. É preciso levar em conta que, para Bergson, os
to, nem do intelecto, mas do espírito'. Este problema, que aparece conceitos são forjados com a finalidade de facilitar o pensamento e
com nitidez no plano de uma questão em que o intelectualismo e o a comunicação e é por isso que a expressão intelectual da realidade
voluntarismo se fizeram tradicionais adversários, ilustra no entanto obedece ao gênero conceitual. A recusa do conceito - a recusa das
uma questão mais geral: a impossibilidade de compartimentação do regras do gênero conceitual - implica uma dificuldade maior de
espírito. Esta questão se reflete na constituiçãO da linguagem filosó- expressão. E o grau maior de dificuldade, que na verdade deriva tam-
fica precisamente no aspecto conceitual que poderíamos entender, a bém de uma outra qualidade de expressão, deixa-se resumir numa
partir do que foi dito, como uma compartimentação da expressão palavra: criação, idéia-chave do pensamento de Bergson também no
filosófica da realidade. Nesse sentido tem-se o problema, bastante que se refere à questão da linguagem filosófica.
mais abrangente, de como entender as relações entre arte e filosofia,
e que aqui nos interessa do ponto de vista das relações entre as duas Mas se a linguagem filosófica deve participar da concepção da
linguagens como expressão da realidade, ou de níveis de realidade. linguagem como criação, o que significa sem dúvida uma aproxima-
Antecipemos por enquanto que tais relações, associadas à concep- ção entre a linguagem da filosofia e a linguagem da arte, isto se deve
ção da integralidade do espírito, testemunham um grande esforço não a uma superposição entre as duas formas de expressão ou a uma
para evitar que a experiência humana seja fragmentada. Mas é pre- "estetização" da filosofia como foi aventado por alguns críticos da
ciso considerar também que a experiência, una em sua origem e filosofia bergsoniana, mas, ainda uma vez, a uma exigência metódica
diversa nas suas manifestações, talvez não encontre no nível da ex- de reforma ou reinvenção da linguagem filosófica. Podemos no en-
pressão uma linguagem que espelhe a unidade originária, caso em tanto ver agora esta exigência metodológica inserida num horizonte
que a diversidade da experiência manifestada se expressaria frag- mais amplo, que chamaríamos de crise da linguagem filosófica, sem
mentariamente. dúvida um aspecto ou um produto da crise no nível dos procedi-
mentos metódicos da filosofia, crise gerada no próprio interior da
Questões como unidade/fragmentação, teor de metaforização, concepção de filosofia e que, na época de Bergson, se manifesta
substituição de conceitos por imagens, organização do discurso concretamente na herança do positivismo comtiano e na alternativa
metafórico e outras, mesmo implicitamente contidas no que prece- do pós-kantismo francês. Na medida em que a resposta bergsoniana
de, apontam para um problema que nos faz retomar, num outro à crise da filosofia envolve uma visão dessa crise como fragmentação
grau de generalidade, a problemática do método: trata-se da exigên- e empobrecimento da experiência humana como um todo, a crise da
'I metafisica pode ser vista como refletindo a crise da cultura, um exem-
plo da qual seria a tergiversação cientificista de valores éticos e espe-
4. "O homem que se prepara para agir toma consciência do início de seu ato sob culativos, que dizem diretamente respeito à condição humana. E é
forma emotiva. Longe de ser o sentimento a se fixar sobre si mesmo de maneira in-
telectual, é o espírito inteiro que se antecipa no exercício de sua liberdade" (Gilson, B.,
no entrecruzamento de três fatores - cultura, especulação filosófica ,

L'Individualité dans la Philosophie de Bergson, Vrin, Paris, 1972, p. 75). e condição humana - que podemos ver, num primeiro momento,

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III - INTUIÇhO E EXPRESSÃO 1. A CRISE DO UGtNERO" CONCEITUAL

aparecerem os aspectos que dizem respeito à questão da presença uma liberdade que ele não conhece. Na impossibilidade da intuição
de elementos românticos no pensamento de Bergson, ou das conflu- intelectual, a consciência de si, mesmo definida no plano da liberda-
ências possíveis entre o "pensamento romântico" e a filosofia de de, não deixa de apresentar um caráter análogo à idéia reguladora.
Bergson. Uma consciência que escolhe, julga e opera sem se conhecer põe o
problema da unidade do sujeito, e mesmo do próprio ser-sujeito'.
Podemos constituir um fundo sobre o qual pensar de início esses Isto porque a liberdade de que o sujeito moral está dotado não lhe
elementos recorrendo àquilo que já foi chamado, por sua vez, de confere nenhuma parcela da substancialidade retirada na Analítica
crise da subjetividade no legado kantiano e a partir da qual se vão da Razão Pura. Por outro lado, em que pese a dessubstancialização
construir as alternativas sistemáticas do idealismo, de Fichte a Hegel, e o vazio da subjetividade formal, o esquematismo irá conferir-lhe
passando pelo "pensamento romântico" circunscrito a Schlegel, um poder de produção imagética essencial à constituição da ordem
Novalis e outros pensadores que se podem agrupar sob este "clima" representativa da realidade e mesmo à experiência enquanto totali-
do idealismo romântico. Lacoue-Labarthe localiza tal condição teó- dade e unidade ideais.
rica da crise sob a qual se dará a reflexão romântica na forma da
subjetividade teórica kantiana, ou no vazio do sujeito concebido como Por que se pode entender a concepção kantiana de sujeito como
apercepção transcendental. A dessubstancialização do sujeito, um a raiz do que chamamos de crise da subjetividade? Porque o que
dos resultados da crítica kantiana do dogmatismo cartesiano, man- constitui o problema e a solução desta questão em Kant é o hiato
tém unicamente a forma temporal como necessidade lógica de uma introduzido na própria noção de sujeito como a única maneira de
presença vazia que acompanha todas as representações, e isto pela pensá-la nas suas duas funções específicas, a teórica e a moral. Ora,
impossibilidade de uma representação substancial do sujeito, man- se entendemos o idealismo - mais propriamente aquilo que depois
tido no entanto como a "forma do sentido interno"'. Resta porém de Kant será o idealismo especulativo - como dependente do estrato
que esta forma irrepresentável é o que constitui a unidade do possí- subjetivo, no qual inclusive repousaria o sistema, não será talvez difícil
vel sistema de representações, o que significa que o sistema, tanto na compreender a extraordinária dificuldade que poderia representar o
parcela que nos é dada na experiência como na idealidade formal e fato de o sistema do idealismo transcendental possuir como funda-
reguladora do Sistema absoluto, é o correlato de uma subjetividade mento no nível da subjetividade um sujeito dividido e definido mui-
vazia. A ordem do mundo no plano do conhecimento está de alguma to mais por um leque de ausências do que por um conjunto de pro-
maneira dependente de uma entidade irrepresentável e mesmo, do priedades efetivamente presentes no âmbito da auto-representação.
ponto de vista de sua realidade substancial, inapresentável. Que a É compreensível que este vazio e esta dilaceração fossem vistos como
unidade originária do conhecimento seja apenas um princípio lógico a impossibilidade da especulação, como a impossibilidade do reco-
é tanto mais problemático quanto Kant pretenderá, no plano moral, nhecimento da idéia derivando da impossibilidade do auto-reconhe-
recuperar a efetividade do sujeito enquanto liberdade e fundamento cimento do sujeito. Mesmo reconhecendo a coerência do trajeto
absoluto no nível da causalidade inteligível. Kant não deixa, inclusi- kantiano que leva ao dilaceramento da subjetividade e mesmo acei-
ve, de explicitar que a função do sujeito no plano moral está vincu- tando a legítimidade da crítica do substancialismo cartesiano, o que
lada àquilo que ele não é enquanto sujeito do conhecimento. Esta se reconhece também é que o próprio estatuto da idéia estará irre-
definição negativa da consciência como liberdade será por sua vez mediavelmente comprometido para a especulação se a própria idéia
também raiz de alguns impasses, na medida em que o sujeito pratica de consciência não mais puder readquirir alguma densidade, já que
ela tem uma primazia natural que a caracteriza. "A primeira Idéia é
naturalmente a representação de mim-mesmo como um ser absolu-
5. uÉ preciso partir disto, desta problemática do sujeito inapresentável a si mesmo
e desta erradicação de todo substancialismo, se queremos compreender o que ro- °
mantismo receberá, não como legado, mas como 'sua' questão, a mais difícil e - 6. "Como sujeito moral, em suma, o sujeito nada recupera em termos de substância.
talvez - a mais inabordável" (Lacoue-Labanhe, P., L'Absolu Littéraire - Théorie de la Pelo contrário. a questão de sua unidade - e portanto de seu próprio ser-sujeito -
Littérature du Romantisrne Allemand, Seuil, Paris, 1978, p. 43). vê-se repentinamente elevada à sua mais extrema tensão" (id., ibid., p. 44).

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ri III - INTUlÇAo E EXPRESSÃO
1. A CRISE 00 "G~NERO" CONCEITUAL

tamente livre'." Não só esta idéia é a "primeira" como é também a fica da realidade em todos os aspectos. Por isso o ato estético - ato
geradora de outras representações: "Com o ser livre, consciente de de compreensão filosófica - é ato da Razão, subjetividade livre e
si, surge ao mesmo tempo um mundo inteiro - do nada -, a única criadora, e o sistema que há de surgir é uma obra no sentido de uma
verdadeira e pensável criação a partir do nada"'. É portanto apenas obra de arte. E é por isto também que "o filósofo tem de possuir
a partir do ser livre consciente de si, isto é, reconhecendo· se na sua tanta força estética quanto o poeta"ll.
própria idéia ou na plena posse intelectual da idéia de si, que se pode Muito embora esta atitude se vincule a uma superação do kan-
pensar o mundo - como criação do sujeito livre e autoconsciente. tismo, a idéia de obra não deixa de sugerir as características orgânica
Isto significa que a liberdade e o autoconhecimento não se situam e teleológica da representação correlata da reflexão na Crítica do Juízo.
em universos paralelos, separados e incomunicáveis - o teórico e o Se por um lado O juízo reflexionante nada acrescenta ao conheci-
prático -, mas estão absolutamente ligados como condição de re- mento, por outro ele confere à representação as qualificações de to-
presentação - de criação mesmo - da realidade do mundo. talidade e finalidade que permitem visar ao mundo como sistema.
É portanto com referência a Kant - ao Kant da Crítica da Razão Isto significa que a subjetividade opera com a sistematicidade a priori,
Pura e da Crítica da Razão Prática - que será encaminhada a ques- que não é uma forma lógica no sentido teórico, mas que tem em
tão da reposição do Eu como idéia de si em termos de liberdade comum com as formas lógicas o caráter de fundamento transcen-
absoluta e de poder criador. Nesse mesmo movimento de reposição, dental de certo tipo de representação. A função da subjetividade
entretanto, dois aspectos marcam um profundo afastamento do kan- permite pensar o real em termos de organização e finalidade a partir
tismo: primeiramente, o mundo é posto como correlato da consciên- do Eu como fundamento transcendental do sistema. Ora, na medida
cia de si enquanto liberdade, o que significa que, por essa via, o em que a sensibilidade é a única fonte de representação externa no
mundo é posto como correlato da consciência moral inclusive no que se refere ao conteúdo, a subjetividade, ao interpretar estas re-
seu sentido de organização natural, que se expressa no texto do Mais presentações sob as formas da totalização e da finalidade, pensa
Antigo Programa Sistemático do Idealismo Alemão através da propo- primeiramente estas formas, isto é, o sujeito pensa tais formas na
sição da "física em grande escala'" que possa satisfazer a um "espí- instância transcendental, o que significa que o movimento de refle-
rito criador". O sujeito enquanto liberdade como fundamento da re- xão, mesmo quando efetua juízos reflexionantes acerca do mundo
presentação do mundo natural: eis o que subverte o kantismo no seu externo, consiste em o sujeito pensar-se primeiramente como locus
próprio íntimo. Em segundo lugar, mas ainda em relação com o pri- das formas transcendentais reflexionantes. O sujeito pensa-se na sua
meiro aspecto, a idéia de que o Sistema é obra, realização humana atividade pensante, ainda que apenas no nível da forma: nisso con-
derivada do ato estético lO E isto porque o ato estético é o ato supre- siste o movimento de reflexão, de teor portanto semelhante ao car-
mo da Razão, na medida em que engloba a verdade e o bem na idéia tesiano no seu movimento geral, mas bem diferente dele no que
de Beleza. A identificação platónica é aqui claramente infletida para concerne ao conteúdo pensado na reflexão, que em Descartes era a
que o Belo venha a subsumir a verdade e o bem. Na filosofia de substância espiritual e em Kant é a forma transcendental do juízo.
Schelling, isto se traduzirá pela proposição de que a Arte é o órganon Tal é a possibilidade a partir da qual Fichte entenderá a reflexão
da Filosofia. Assim, uma filosofia do espírito é uma filosofia estética como a tomada de consciência pelo Eu de seu modo de operar em
porque o espírito da filosofia é a arte, núcleo de compreensão filosó- geral. A consciência das formas de operação da consciência como
que torna tais formas conteúdo de um saber, que no entanto não é
objetivo no sentido usual, mas sim um saber do saber, ou a forma de
7. o Mais Antigo Programa Sistemático do Idealismo Alemão, tradução Lacoue- consciência do pensamento nas suas formas (forma e forma da for-
-Labarthe, ob. cit., p. 53; tradução brasileira de Rubens R. Torres Filho no volume
Schelling, Nova Cultural, São Paulo, 1989, p. 42.
ma). É este movimento de reflexão que permite ao sujeito absoluto
8. Id., ibid.. trad. Lacoue-Labarthe, p. 53; trad. Rubens R. Torres Filho, oh. cit., p. 42.
9. Id" ibid" Irad. Lacoue·Labarthe, p. 53; Irad. Rubens R. Torres Filho, p. 42.
10. Id., ibid., trad. Lacoue-Labarthe, p. 54; trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, pp.
11. Id., ibid., trad. Lacoue-Labarthe, p. 54; trad. Rubens R. Torres Filho, ob. cit., p. 42.
42·43.

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II '
I
III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO
1. A CRISE DO "GE:NERO" CONCEITUAl.

conhecer-se imediatamente sem que isto signifique uma relação in- ou entre sujeito e representação do mundo em obra. A idéia absoluta
tuitiva entre sujeito e objeto, o que introduziria dificuldades no ca- de sujeito como atividade infinita, a idéia de sistema como conexão
'i' ráter absolutamente imediato do auto conhecimento. O sujeito abso- infinita que veremos aparecer em Schlegel e Novalis deixam
luto se conhece como instância metódica de apreensão em geral: transparecer o problema de um novo significado dos atos da Razão
não se conhece como a um objeto, nem mesmo intuitivamente. Esta ou da Razão em ato. E o movimento dos atos da Razão como processo
modalidade de conhecimento imediato em que o sujeito se desdobra criativo colocará a questão ontológica também na dimensão do proces-
formalmente sem deixar de coincidir realmente consigo próprio con- so, da produção, da criação contínua ou da auto produção do infinito,
fere à consciência de si o estatuto de absoluto. O absoluto está pre- para lembrarmos as fontes spinozistas do pensamento romântico.
sente na coincidência do pensar consigo próprio, o que isenta o
movimento de reflexão da ameaça de regressão ao infinito. A vincu- A compreensão da interioridade como criação, a expansão cria-
lação entre absoluto e finitude será repensada pelos românticos, que dora do espírito no plano da natureza, a liberdade como instância
reafirmarão a conexão entre absoluto e infinito, detectada primeira- absolutamente criadora nos planos ético e natural configuram, em
mente na reflexão. "Não podemos ter nenhuma intuição de nós Bergson, as possibilidades de aproximação entre o seu pensamento
mesmos, o Eu nos escapa sempre. Em contrapartida, é verdade que e a problemática que o primeiro romantismo constitui no momento
podemos nos pensar. Para nossa grande surpresa, aparecemo-nos em que pensa a reconstituição da subjetividade a partir do idealismo
então infinitos, nós que, no curso habitual da vida, nos sentimos tão especulativo. A problemática de que parte o romantismo, no plano
nítida e completamente finitos"." Assim o movimento de reflexão, especulativo, de um lado, e o esforço de redimensionar o pensamen-
embora se dê na instância da subjetividade, não resulta, como para to filosófico em Bergson, de outro, tendem ambos para uma altera-
Fichte, numa intuição determinada do Eu. Para Schlegel, como vol- ção profunda da filosofia no seu sentido de expressão cultural. Esta
taremos a comentar, esta intuição determinada, em que pesem to- questão envolve obrigatoriamente a relação que a filosofia mantém
das as ressalvas formais de Fichte, pode ser tomada como um resquí- com as demais formas de expressão cultural, particularmente a arte.
Repensar a filosofia como expressão cultural significa repor o proble-
cio de realismo.
ma da linguagem filosófica, não no nível estritamente técnico, mas
Assim o idealismo especulativo tenta recuperar a densidade da sim no seu teor expressivo. Os problemas que isto acarreta podem
subjetividade, sua unidade, seu caráter originário, não apenas como ser de início avaliados quando lembramos que tanto o pensamento
fundamento lógico-metafísico da representação, mas dotando-a tam- romântico como O pensamento de Bergson tiveram seu estatuto filo-
bém das características do absoluto. Com isto a reflexão afirma não sófico posto em questão. Basta lembrar, por ex., os reparos que Ni-
apenas seu dinamismo operante em termos de autoconhecimento, colai Hartmann faz ao pensamento romântico, pondo em dúvida,
mas também seu poder absoluto como órganon de posição de rea- senão negando explicitamente, o caráter filosófíco deste pensamen-
lidade. Os traços filosóficos que o pensamento de Fichte transmite à to, muito embora reconheça que filósofos como Schleiermacher e
geração de lena interessam-nos apenas no que diz respeito a uma Schelling foram "influenciados" pelo romantismo " . Mais do que ava-
atitude especulativa determinada, característica do idealismo pós-
-kantiano: a reintrodução do absoluto como tema da filosofia. E isso
não apenas no plano filosófico da recuperação do status da intuição 13. "Não se pode dissimular que os desígnios filosóficos dos românticos são no final
intelectual e da legitimidade do conhecimento imediato, mas tam- de contas debilitamentos de suas próprias idéias. Em imagens e metáforas ousadas ou
bém e talvez sobretudo no que diz reSPeito à confluência temática em aforismos impressionantes fulgura ocasionalmente algo do verdadeiro conteúdo
que se pode estabelecer entre criação e absoluto, entre sujeito e obra destas idéias. Mas este fulgor verifica-se sempre na linha de separação entre filosofia
e poesia. Nesta linha de separação se movem de preferência os românticos, nem sem-
I pre vantajosamente para ambos os lados. Assim, deve entender-se que para eles a
filosofia e a poesia em geral acabem por ser uma e a mesma coisa, que de fato a

~
filosofia se torne para eles simbolicamente vaga e a poesia transborde intelectualidade
12. Schlegel, F., citado por Benjamin, W., Le Coneept de Critique Esthétique dans le metafísica" (Hartmann, N., Filosofia do Idealismo Alemão, traduçâo portuguesa da
Romantisme AIlemand. tradução francesa Flammarion, Paris, 1986, pp. 64-65.
editora Gulbenkian, Lisboa, 1983, p. 192).

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~. III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

liar a estrita pertinência dessas considerações, o que poderia nos


levar ao exame do problema da demarcação do caráter filosófico do
2. A DIMENSÃO DA REFLEXÃO REAL

acerca deste fazer, o que resulta numa conjugação de criação e refle-


xão, não num sentido de desdobramento entre criação e análise da
criação, mas na direção de uma ligação íntima do processo de cria-
pensamento romântico e da obra de Bergson, o que a nosso ver seria
uma discussão inócua, cabe-nos tomar a questão por aquilo que ela ção com a consciência de seu teor e de seu destino: o fazer artístico
nos permite pensar em termos do lugar e do estatuto da filosofia é inseparável da consciência do caráter da arte como absoluto, e do
como criação cultural e sua organização enquanto formação discur- artista como mediador entre os homens e o absoluto. Daí a impor-
siva. Seria portanto pelo lado da inserção da filosofia no universo tância de uma elucidação da subjetividade como órgão da reflexão,
cultural e seu poder transformador em relação a este universo, muito da coincidência entre a subjetividade como atividade e a reflexão
mais do que nos termos de uma comparação entre formas de expres- como dinâmica intrínseca da subjetividade, o que faz com que a
espontaneidade criadora do Eu cumpra um destino que é posto pela
são cultural que redundasse numa identificação da filosofia, que
sua própria liberdade. A questão da reflexão como fundamento ima-
procuraremos tratar a questão.
nente dos atos do espírito impõe que se examine primeiramente o
Mas é exatamente no plano da filosofia como formação discur- que constitui a subjetividade na sua dimensão interna e no plano em
siva e expressão cultural que encontramos um problema que deverá que manifesta seus modos de relacionar-se com as coisas.
nos levar a pensar em um aspecto que se situa no núcleo do projeto
filosófico bergsoniano e que constitui também um traço profunda-
mente distintivo do legado especulativo dos românticos, principal- 2. A DIMENSÃO DA REFLEXÃO REAL
mente alemães. Trata-se da questão da "Filosofia da Filosofia", tal
como é entendida por alguns pós-kantianos e por Schlegel a tarefa A espontaneidade do sujeito, por não se resolver apenas no pla-
crítica na sua mais profunda origem filosófica. A filosofia crítica, no lógico dos princípios cognitivos como referência última da subje-
entendida como o saber acerca do saber, imporá exigências ao pro- tividade, não pode ser estabelecida na dimensão da reflexão formal.
cedimento filosófico que redundarão no aprofundamento exaustivo Isto significa que a consciência não se define primeiramente como
da reflexão como única instãncia metódica capaz de fornecer o fun- forma de auto-apreensão do Eu, substância e atividade originária
damento e o instrumento da constituição do saber filosófico, na fundamentadora da relação sujeito-objeto no nível teórico e no nível
medida em que se põe como a operação pela qual o pensamento se prático. De um lado, a subjetividade não pode ser apenas a consci-
apropria de sua forma e o espírito se torna consciente da extensão e ência da intersecção causal; de outro, não pode ser também a liber-
da índole de seu poder de representação. Bergson entenderá a crítica dade de escolher entre alternativas implicitamente dadas a priori
como uma separação entre forma e conteúdo que, pela maneira como como duas linhas causais possíveis. O movimento de reflexão que
é levada a cabo, envolve o risco de hipostasiar as formas intelectuais põe a subjetividade como liberdade determinante está ainda preso
de apreensão de realidade. No entanto, a própria crítica da filosofia ao esquema causal em cujos termos não é possível pensar a espon-
crítica, e sobretudo a crítica do gênero conceitual como linguagem taneidade do sujeito. As alternativas elaboradas no contexto kantiano,
filosófica, pode ser entendida de certa maneira como o plano em que seja o Eu como intersecção causal, seja o Eu como causalidade livre
a filosofia reflete sobre si mesma: filosofia da filosofia. Por outro lado, enquanto sujeito moral da ação, estão ambas presas, em última aná-
essa questão tem uma importância estratégica no exame de possí- lise, à ideologia determinista e diferenciam-se por enfatizar ora o
veis confluências entre Bergson e o "pensamento romântico", por- aspecto mecânico, ora o aspecto dinâmico da atividade subjetiva. A
que a idéia de "saber do saber" será incorporada não apenas como permanecermos neste universo de pensamento e discurso analíticos,
ideal de complementação da crítica kantiana (que será vista apenas jamais conseguiremos conhecer o sujeito na dimensão do que se
como o esboço de uma filosofia da filosofia verdadeiramente siste- poderia chamar de reflexão real, ou seja, na sua efetiva atividade
mática), mas também como a necessidade da posição imanente da espontânea. A filosofia bergsoniana assinala, portanto, já desde o

~
reflexão nas modalidades de expressão cultural em geral. Assim, por início do tratamento da questão da subjetividade, uma dificuldade
ex., a obra de arte não implica somente um fazer, mas um saber considerável: a necessidade de recusar o próprio esquema causal,

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111 - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 2. A DIMENSÃO DA REFLEXÃO REAL

uma vez que mesmo a noção de causa livre não seria adequada para primeiro, na exata medida em que a consciência é reflexo dos movi-
pensar a espontaneidade do sujeito. mentos moleculares do cérebro. Disto resultaria uma teoria obscura,
em que o determinismo da série psicológica é inferido como episte-
Do ponto de vista psicológico, a teoria determinista supõe a tese mologicamente necessário, mas não é conhecido. Ademais, a partir
do mecanicismo universal: da mesma maneira que todos os fenôme- desta obscura correspondência entre dois determinismos, a Psicolo-
nos físicos e as ações químicas, a organização do sistema nervoso é gia passa a afirmar também a interferência dos termos da série física
explicada em termos de moléculas e movimentos; " ... as sensações, sobre os termos da série psíquica, quando a tese metafísica clássica
sentimentos e idéias que se sucedem em nós poderão se definir como fora elaborada precisamente para que a correspondência pudesse
resultantes mecânicas, obtidas através da composição de choques ser afirmada sem que fosse preciso recorrer à interferência. A harmo-
vindos do exterior com os movimentos de que os átomos da subs- nia preestabelecida em Leibniz e o monismo da substância em Spi-
tãncia nervosa estavam anteriormente animados" (0.1.-108). A de- noza visavam sobretudo â explicação da correspondência entre duas
terminação rigorosa do momento subseqüente pelo momento pre- séries (reais ou imaginadas) incomunicáveis. A co-presença de ele-
cedente, em termos de organização e localização de pontos mate- mentos físicos e psíquicos no plano dos fatos elementares e
riais, é uma conseqüência da relação mecânica tida como a única involuntários leva a Psicologia a ver neste nível superficial da vida
concebível na explicação do movimento psíquico. O mecanicismo psicológica uma prova válida para a vida psicológica como um todo.
universal traz consigo a tese da determinação suficiente dos elemen- "Este começo de prova experimental mostra-se amplamente suficien-
tos das séries, pois a pré-formação do conseqüente no antecedente te para aquele que, por razões de ordem psicológica, já admitiu a
é condição de inteligibilidade dos fenômenos presentes na experiên- determinação necessária de nossos estados de consciência pelas cir-
cia, segundo o modelo explicitado por Kant nas Analogias da Expe- cunstâncias em que eles se produzem" (0.1.-112). O importante é
riência. No entanto, quando falamos de fatos psicológicos, mesmo notar que a adoção de uma teoria que se revela tão obscura a um
no sentido mais elementar, como, por ex., a sensação, referimo-nos exame um pouco mais acurado deve-se ao fato de que os movimen-
à conjunção de dois fatores: o cerebral e o psicológico ou o fisioló- tos moleculares do cérebro são vistos como um original imperfeita e
gico e o psicológico, ou ainda o físico e o psíquico. A separação entre indefinidamente traduzido pela fosforescência consciente que a Psi-
o físiológico e o psicológico só tem sentido se consideramos estas cologia não pode explicar em si mesma. O materialismo psíquico
duas realidades como pelo menos parcialmente diferentes entre si. O fornece então a base segura e palpável de onde derivaria aquilo que
paralelismo das séries física e psicológica nos mostra que existe em seria apenas uma pseudo-realidade: o psicológico em si mesmo fica-
muitos casos uma correspondência entre as duas ordens de fatores. ria então devendo sua aparente realidade à realidade efetiva dos fe-
A partir daí temos duas alternativas: ou entendemos que existe uma nômenos cerebrais. Isto permite explicar os movimentos involuntários
correspondência rigorosa termo a termo, "que a um estado cerebral e voluntários a partir de uma base real material.
dado corresponde rigorosamente um estado psicológico determina-
do" (0.1.-110); ou que existe determinação rigorosa no interior de Disto decorre que a atividade interna é merO reflexo da atividade
cada uma das séries e isto as definiria como completamente deter- externa. Quando a exterioridade aparece como explicação dos fatos
minadas, cada uma no seu plano específico. Da primeira alternativa, externos, dos movimentos, a Psicologia tem uma relação causal con-
segundo Bergson, não há demonstração; quanto à segunda, ela foi cebida em termos de homogeneidade. Isto significa que o sujeito se
afirmada como tese metafísica, por Leibniz e Spinoza, por ex., e cor- define a partir de uma observação externa a si mesmo. É este movi-
responde a uma construção coerente para explicar, a partir dos pres- mento de exteriorização do Eu que permite a universalização do
supostos cartesianos, a relação entre o físico e o psíquico. A psicofísica mecanicismo, do determinismo e do princípio de causalidade. O
não pode manter a tese metafísica da correspondência em seu intei- célebre exemplo cartesiano da impossibilidade de detectar uma even-
ro rigor, porque isto implicaria aceitar a realidade autônoma da cons- tual vida interna de um autômato é erigida pela Psicologia em prin-
ciência. Por isto a Psicologia adota o determinismo físico e superpõe cípio de explicação. Esta explicação repousa ainda sobre um outro

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a ele uma espécie de determinismo indefinido que seria reflexo do postulado científico, cuja refutação se mostrará essencial para a com-
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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 2. A DIMENSÃO DA REFLEXÃO REAL

preensão autêntica da vida psicológica: o princípio de conselVação das condições é que se pode assegurar a priori a previsão dos mes-
da energia. Sobre este princípio repousa a possibilidade da previsão, mos efeitos. A constância da natureza, que assegura a homogeneidade
através do cálculo, de todos os estados de um sistema. Assim como, relacional dos fenômenos, ganha no plano da Psicologia a figura da
para Descartes, a conselVação da mesma quantidade de ser decorre homogeneidade qualitativa dos estados de consciência. No entanto
da imutabilidade e da sabedoria divinas, assim também a preseIVa- esta homogeneidade qualitativa não é demonstrada experimental-
ção da mesma quantidade de energia na realidade é garantia da mente: ela é afirmada como condição do conhecimento das vivências
certeza imanente ao cálculo da ciência. Pois o ser não pode provir do psicológicas enquanto necessariamente submetidas ao princípio de
nada: como explicar que na passagem de um estado a outro, da cau- causalidade. Mas a afírmação a priori da homogeneidade qualitativa
sa ao efeito, possa haver acréscimo de realidade? Como explicar o significa precisamente o entendimento dos fenômenos psicológicos
aparecimento de algo já não totalmente pré-formado naquilo que o como não qualitativos; pois a predeterminação da mesma qualidade
antecede? Esta é uma exigência da forma da determinação, e a epis- para todos os fenômenos me isenta da obselVação da qualidade de
temologia subjacente à Psicologia a estende para todo e qualquer cada um: da consideração da diferença. A predeterminação do con-
conteúdo pOIVentura presente na experiência. O determinismo en- teúdo pela forma atinge aqui o seu paroxismo: pois a forma do fenô-
quanto método é solidário da tese metafísica da predeterminação do meno natural, do fenômeno psicológico, no caso, implica a ausência
conteúdo pela forma, da experiência efetiva por aquilo que é afírma- da forma do fenômeno no sentido da determinação de sua individua-
do como sua condição de possibilidade. A partir daí a ciência se proíbe lidade, ou mesmo da determinação das características específicas do
conceber "que os sistemas conselVativos não são os únicos sistemas seu gênero. A forma do fenômeno torna-se apenas a sua posição
possíveis" (0.1.-114). Entre o cálculo de previsão possibilitado pela enquanto determinante e determinado, condição e condicionado. Isto
extensão indefinida do princípio de conselVação de energia e o ideal significa que, no sentido mais geral, a forma do conhecimento nos
de dedutibilidade completa dos estados de um sistema, aí incluídos termos de sua determinação pelas categorias analíticas do entendi-
os estados psicológicos, a diferença é apenas de grau. Supondo a mento traz em si o teor dos resultados da experiência; a predetermi-
mesma quantidade de realidade e a constância das relações entre nação do conteúdo pela forma é na verdade a predeterminação do
elementos descontínuos num meio homogêneo, a localização de resultado do conhecimento pela sua forma. Ora, a extensão indefini-
qualquer estado, passado, presente ou futuro, torna-se mera questão da do modelo analítico kantiano não pode mais invocar, no próprio
de cálculo. O conhecimento de qualquer realidade é antes de mais processo de sua universalização, as condições transcendentais que
nada o conhecimento de suas condições. Por isso a universalização legitimavam o estabelecimento da forma da experiência no âmbito
do determinismo é a mesma coisa que a possibilidade de aplicar da teoria kantiana. É já uma metafísica do conhecimento que funda
universalmente o princípio de causalidade. a concepção da predeterminação do conteúdo pela forma dos prin-
cípios que são utilizados para tornar a experiência dos fenômenos
O conhecimento de um sistema é, para a ciência, o conhecimen- acessível ao entendimento. A extensão indefinida do método analí-
to das regras que regem as relações entre os seus elementos. Mais tico é a teoria da ciência duplicada em metafísica, na medida em que
importante do que conhecer os elementos cada um em si é conhecer as condições metodológicas são erigidas em teses gerais que funda-
as leis que determinam o seu encadeamento. Assim, não há fenóme- mentam a relação sujeito-objeto.
no, enquanto tal, que não esteja submetido à lei da causalidade. "Ora,
esta lei determina que todo fenõmeno seja determinado pelas suas Ocorre que, precisamente no caso da Psicologia, esta metafísica
condições, ou, em outros termos, que as mesmas causas produzam do conhecimento determina o modo de apreensão do sujeito por si
os mesmos efeitos. Será necessário, pois, ou que o ato esteja ligado mesmo. Aquilo que tradicionalmente fora dado pelo movimento de
a seus antecedentes psíquicos, ou que o princípio de causalidade reflexão torna-se agora objeto externo em função da analogia implí-
sofra uma incompreensível exceção" (0.1.-150). Quando aplicado à cita na universalização metafísica do método analítico. O Eu que assim
Psicologia, o princípio de causalidade resulta na afirmação da se dá como resultado do processo de objetivação não se configura
homogeneidade da vida psicológica. Somente na forma da repetição para Bergson como conhecimento, mas sim como "ilusão da cons-

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III - INTUIÇÃO f EXPRESSÃO
2. A DIMENSÃO DA REFLEXÃO REAL

ciência". "Aqui ainda a ilusão da consciência deriva de que ela con- lógico ou a concepção teleológica do ato livre, enquanto duas ma-
sidera o eu não diretamente, mas por uma espécie de refração atra- neiras de constituir o conhecimento da realidade psicológica, têm na
vés das formas que emprestou à percepção externa ..... (0.1.-163). questão da liberdade uma espécie de fio condutor oculto, na medida
Mas exatamente esta relação da ilusão da consciência com a percep- em que um nega e o outro explica o ato livre, ou o que entendem
ção externa nos indica que esta ilusão possui outras causas além como tal. Por que a conclusão dos Données Immédiates aproxima
daquelas que podem ser detectadas no interior do processo de co- essas duas concepções aparentemente opostas da vida psicológica?
nhecimento e que se confundem com a sua própria lógica. Podemos Porque explicar, no sentido de reconstituir a gênese do ato livre, é
dizer que a homogeneização a priori dos estados de consciência nos negar a identificação entre liberdade e espontaneidade; é contentar-
faz concebê-los muito mais como no Eu do que como do Eu, no -se com a representação indireta da espontaneidade da consciência.
sentido de atos da consciência. A dissoluçãO da consciência em seus Esta representação indireta deriva de uma ilusão objetivante: acredi-
pretensos estados elementares, a redução destes aos movimentos ta-se que é possível conhecer a consciência fora da instância em que
cerebrais, que não são senão o movimento molecular pelo qual a ela se dá a si própria, fora da auto consciência. A objetivação da cons-
matéria se nos apresenta como objeto, implicam determinada con- ciência é o processo de exteriorização do Eu, para que este apareça
sideração do substrato psíquico. Essas sucessivas reduções servem a como objeto diante do sujeito. A constituição da Psicologia como
um propósito que não é outro senão a maneira pela qual O intelecto ciência positiva repousa inteiramente nesta atitude, e o espaço apa-
visa ao seu objeto: com efeito, a articulação do homogêneo supõe rece como a condição da experiência objetiva dos estados psicológi-
um substrato, ele próprio homogêneo. Este substrato homogêneo, cos. Mas se são o método, e a linguagem, que lhe é solidária, que
meio no qual as vivências psicológicas se sucedem na sua homoge- constituem assim o objeto, são eles também que constituem os pro-
neidade qualitativa e na sua diversidade numérica, determinando-se blemas inerentes à elucidação do objeto. É nesse contexto que a li-
umas às outras e determinando os movimentos que também lhes berdade é um problema para a Psicologia; no entanto, na medida em
sucedem, é o espaço. Ele é o mesmo que sustenta a repetição do que o conhecimento psicológico se constitui a partir da tese metafi-
mesmo; e somente a sucessão na forma da repetição pode ser enten- sica da determinação formal do objeto, a liberdade é antes um pro-
dida como condição da própria lei da causalidade. O fundamento blema filosófico, inclusive porque a representação indireta do ato
impensado do determinismo psicológico reside na possibilidade de livre já existe no nível do senso comum, incorporado como ponto de
entender a sucessão no espaço. Pois o espaço enquanto presença partida da filosofia".
dada deveria permitir falar apenas em justaposição. Essa possibilida- A crítica da Psicologia tem em Bergson um sentido especial por-
de, Bergson a elucida ao desvendar o processo de assimilação do que nessa ciência a inadequação do método ao objeto atinge o grau
tempo ao espaço. É este processo inerente à lógica do entendimento extremo, deixando a descoberto os pressupostos metafisicos que
que me permite identificar justaposição e sucessão, fazendo do tem-
governam a constituição da objetividade. O desdobramento objetivo
po a articulação de presentes dados numa presença total e totaliza-
dora. Assim o espaço é na verdade a única condição de "intuição ...1
sensível" e o verdadeiro sentido interno do sujeito teórico. Mas O
14. liA liberdade se dá à reflexão filosófica como problema. Que significa haver um
caráter fundamental do espaço como forma de apreensão objetiva e 'problema' da liberdade? É que a experiência da liberdade somente se dá no interior
como instância de autoconsciência tem conseqüências graves no de um campo estruturado por um discurso. A uma possível leitura direta da liberdade,
plano da apreensão do Eu: a pura espontaneidade torna-se determi- a uma familiaridade primitiva com ela, substituiu-se a leitura indireta e uma distância
nação externa. Por isso a reposição do objeto da Psicologia nos vivida. Entre a consciência e ela mesma introduziu-se o aluvião depositado pelo pen-
Données Immédiates não é apenas a correção de procedimentos cien- samento conceitual. Mas, se a tradição filosófica aparece assim como obstáculo, não
é por uma perversão inesperada do pensamento filosófico, pela substituição de um
tíficos ou a crítica do fundamento metodológico dessa ciência, mas discurso truncado e sem sentido à clareza da linguagem cotidiana. Se o discurso filo-
é também e sobretudo a posição do problema metafisico implicado sófico reestrutura a experiência da liberdade, refratando-a segundo suas próprias es-
na própria constituição do conhecimento psicológico: a liberdade ou truturas, é ele precedido por um trabalho da própria linguagem comum" (Prado Ir .. B.,
a espontaneidade do Eu. Não é por acaso que o determinismo psico- ob. cit., p. 70).

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 2. A DIMENSÃO DA REFLEXÃO REAL

do sujeito diante de si mesmo, na espacialidade intelectual que é Por isso também o Eu enquanto "problema" da liberdade só
condição da articulação simbólica, é um processo de reificação pelo poderá ser apreendido nos termos de suas razões de agir, na forma
qual a subjetividade se anula como atividade originária. O oculta- da determinação ou da escolha. A solução bergsoniana da querela
mento deste caráter do Eu deriva da mais infeliz das analogias já entre o determinismo e o livre-arbítrio não será a busca de uma ins-
produzidas pelo pensamento: a assimilação entre o movimento tância "anterior" na qual identificaríamos uma espontaneidade mais
mecânico pelo qual um móvel se transporta de um ponto a outro e "fundamental", pois isto seria ainda a procura de uma causa dos atos
o movimento de mudança enquanto alteração interna. No primeiro no Eu e não a compreensão do Eu como ato. A crítica das concep-
caso, o movimento pode ser explicado ou pelo poder próprio que ções objetivantes da liberdade não tem como escopo encontrar a
tem o corpo de se mover (como na física aristotélica) ou pela relação instância em que o Eu seja identificado como Absoluto, gerador de
externa dos pontos sucessivos nos quais o objeto é visado no seu atos que dele promanem como efeitos ou emanação. O Eu absoluto
movimento. Existe portanto ou uma relação externa entre os lugares não é causa de seus atos, mas está absolutamente em cada um de
de onde e para onde o objeto se transporta, ou uma relação externa seus atos: eis a tese fundamental dos Données Immédiates. A liberda-
entre pontos espaciais correlacionados no cálculo do movimento de só se compreende pela imanência absoluta do sujeito à sua ativi-
(como na ciência moderna). No segundo caso, o movimento deveria dade. Mais do que compreender o Eu como Absoluto, devemos com-
ser explicado por uma relação interna do objeto consigo mesmo, preender esta relação como absoluta. O espírito, por definição inter-
pois ainda que as mudanças dependam de causas exteriores os re- no a si, não pode fundar sua própria exterioridade. O erro do
sultados são alterações no objeto em si mesmo, independente de sua espiritualismo abstrato é acreditar que há uma espiritualidade trans-
relação com outros. Neste segundo caso, estão as mudanças de qua- cendente ao espírito em ato ou que há um substrato da subjetividade
lidade, que Aristóteles distinguia das mudanças de posição, mas que em ato. Tanto materialistas como espiritualistas explicam a consci-
tendem a uma superposição enquanto movimento em geral na me- ência através da separação entre o conteúdo e a forma: uns crêem na
dida em que modernamente o movimento passa a ser considerado gênese material dos conteúdos, outros acreditam que a própria for-
uma variável. O privilégio que o pensamento cartesiano concedeu ao ma espiritual os produz. Ambos cindem a totalidade para encontrar
movimento mecânico como relação de posições na espaço está certa- numa parte a razão de ser da outra. Ou se faz da realidade espiritual
mente na raiz da concepção que considerará as alterações de qualidade a resultante da relação entre a consciência e as coisas, ou se faz do
em função de movimentos elementares, tais como os das partículas no espírito um princípio que mantém consigo mesmo uma relação de
cérebro. Essa assimilação se explica: é mais natural para o entendimen- identidade. No primeiro caso, o espírito é um produto ou uma supe-
to procurar a causa da mudança num elemento externo ao objeto que restrutura reflexa; no segundo é um princípio absoluto que, à força de
muda. Nisso consiste a aplicação típica do princípio de causalidade. A ser interior, mantém com os seus atos uma relação de exterioridade.
consolidação epistemológica desse procedimento está exemplarmente Para superar o impasse, a critica da Psicologia e da filosofia que
expressa na necessidade em que se viram cartesianos como Cordemoy a sustenta prepara, ou já é, interiorização no sentido autêntico, pre-
e Malebranche de identificar a causa do movimento não apenas em sença imediata do Eu a si mesmo!'. Tal presença imediata não é
objetos externos uns aos outros mas em algo radicalmente externo ao apenas autoposição da consciência como possibilidade de represen-
mundo da mudança: Deus. Em que esta ideologia da causalidade afeta tação, mas acesso ao ser. Mas se a interioridade é o oposto da exte-
a concepção do Eu como liberdade-espontaneidade? Se algo traz em si rioridade, por que ela permite pleno acesso ao ser e não apenas à
a razão de sua própria atividade, o intelecto tende a desdobrá-lo, ainda dimensão interna como contrapartida do plano externo do ser? O
que formalmente, de modo a poder separar e a articular a causa e o fato é que antes se procurava o ser da interioridade através de sua
efeito. Isto pode ser feito separando o substrato da atividade e a própria
atividade; ou articulando a atividade ou o processo em momentos-
-coisas na ordem da sucessão. Por isso a substância pensante de Des- 15. "À subjetividade separada do Ser - para a qual o Ser se dá apenas parcial e
cartes será uma essência subjacente aos seus modos de atividade; e exteriormente - deve substituir-se uma subjetividade que participa internamente do
o sujeito kantiano, o substrato lógico de sua atividade sintética. Ser, para a qual ele é inteiramente presente" (id. ibid., p. 75).

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO Z. A DIMENSÃO DA REFLEXÃO REAL

exterioridade metódica; agora procuro definir a interioridade no seu e não apenas como existência lógica ou possibilidade lógica das exis-
próprio âmbito. A critica da Psicologia e, a [ortiori, da metafisica do tências. O aspecto de anterioridade lógica visto como intrínseco ao
conhecimento se constituiu como um percurso para situar o sujeito caráter absoluto do Eu fez com que a tradição vinculasse Absoluto e
diante de seu objeto: ele mesmo. E O resultado foi que o sujeito não Identidade, o que decorre da consideração do Eu como princípio
se vê mais diante de si, mas em si: o conhecimento da consciência é condicionante das representações. A Existência Absoluta só pode ser
autoconsciência e a interioridade só pode visar-se coincidindo con- idêntica a si mesma: uma vez que o Eu se manifesta em suas repre-
sigo mesma. Mas o percurso crítico que leva à autoconsciência como sentações, uma das quais é a dele próprio, e uma vez vistas estas
experiência da interioridade é ao mesmo tempo o processo que re- representações como conteúdos do Eu, foi preciso estabelecer uma
"
vela o caráter ilusório daquilo que antes era considerado como a instância anterior à multiplicidade de representações, e portanto
condição universal da experiência: o espaço como substrato da arti- anterior a cada uma delas, inclusive a do próprio Eu, para que o
culação de descontinuidades. O conhecimento agora devolve ao seu sujeito pudesse identificar-se na sua unidade absoluta. Por isso a
domínio próprio as "formas tomadas de empréstimo ao mundo ex- reflexão, neste caso, se dá como desdobramento lógico mesmo quan-
terior" (0.1.-116). do reconhece a coincidência real do Eu sujeito e do Eu objeto. O
desdobramento lógico é necessário para que o Eu possa pôr-se dian-
Mas, como já vimos, o encontro do Eu em seu caráter absoluto te de si para identificar-se formalmente consigo mesmo ou para
não é o encontro de uma duplicação metafisica do princípio de iden- intuir-se como realidade. Neste último caso a coincidência real é
tidade. A presença imediata do Eu a si mesmo não é identidade for- solidária da anteposição formal do sujeito a si próprio, e o movimen-
mal que possibilita as representações predicativas. A relação entre o to de reflexão é concebido no sentido que antes descrevemos como
sujeito absoluto e o princípio de identidade na filosofia tradicional posição, o que faz com que a situação temporal da subjetividade possa
faz com que o sujeito, enquanto fundamento, seja concebido como ser descrita a partir da miscigenação intelectual entre tempo e espa-
anterior a todas as representações temporais. Kant criticou a subs- ço, ou da espacialização do tempo como condição de articulação de
tancialização e a intemporalidade do sujeito cartesiano nos Paralo- realidades e mesmo de uma realidade consigo própria, Como o con-
gismos da Razão, mas preservou, no plano lógico, a anterioridade do teúdo do Eu anteposto a um outro conteúdo do Eu motivaria uma
sujeito formal a todas as representações temporais. O idealismo fich- regressão infinita em termos de posição de realidades, optou-se pela
tiano fará do sujeito a origem da temporalidade objetiva. Bergson imanência de uma essência formal ao conteúdo que a preenche, o
fará do sujeito não apenas uma representação temporal, mas a tem- que permite dizer que no movimento de reflexão a consciência co-
poralidade mesma. A negação do espaço como condição universal incide consigo mesma. Na realidade trata-se apenas de conferir ima-
da experiência me revela, em contrapartida, que o tempo é condição nência à relação entre fundamento e fundado, o que não altera o
imanente da presença do sujeito a si, não enquanto forma da expe- esquema lógico que transforma a relação temporal entre a anteriori-
riência subjetiva, mas enquanto a própria realidade da subjetividade dade e a posterioridade na relação formal entre o condicionante e o
e a única maneira de apreendê-la em seu caráter absoluto. A subje- condicionado. Por isto a sucessão pode ser pensada no espaço: não
tividade em ato é temporalidade, processo de vir-a-ser. As vivências é a passagem dos instantes que importa, mas sim O encadeamento
psicológicas não estão no Eu, mas são do Eu na contínua produção condicional. Mas a inscrição do instante na temporalidade não faz
temporal de si próprio. A temporalidade é indissociável do fluxo de dele uma unidade de tempo. O anterior e o posterior não são seg-
suas manifestações. Por isso o acesso ao ser coincide com a revela- mentos de uma linha divisível, a menos que, seguindo o padrão
ção do tempo como o ser do sujeito e a autêntica compreensão do implícito na representação aristotélica do tempo, consideremos os
tempo é o único modo de conceber a espontaneidade da subjetivi- instantes como números do movimento temporal. A descontinuida-
dade: a liberdade como total imanência da consciência aos seus atos de, representação indireta do tempo, funda a representação indireta
no fluxo temporal. que a consciência tem de si mesma quando julga dever exteriorizar-
Assim a filosofia bergsoniana pretende recuperar a reflexão real -se para se conhecer. É portanto a endosmose entre tempo e espaço
ou o movimento efetivo de reflexão que revela o Eu como realidade que falseia a reflexão, fazendo com que ela atinja necessariamente a

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 3. PENSAMENTO E REFLf.X.IVIDADE

consciência da forma da consciência, ou a consciência da forma das a atividade do sujeito retoma sobre si. Em todo caso, o conhecimen-
representações conscientes, como instância absoluta, unidade-identi- to direto suscita a questão da relação entre a coincidência real entre
dade do Eu. Por isso dissemos antes que se poderia chamar a esse sujeito e sujeito-objeto e a expressão desta coincidência num discur-
movimento reflexão formal, por oposição à tentativa bergsoniana de so definido pela mediação. A redefinição da identidade do sujeito e
fazer do conhecimento de si a realização temporal da consciência de do tipo de totalidade que ele representa estão, assim, na base da
si nos seus atos. Mas a realização temporal opõe-se à forma identi- reinvenção da linguagem que expressará a reflexão. Se o sujeito se
tária. A identidade da consciência não está numa pretensa relação define pela reflexão, é a modalidade da "presença interna" que
analítica que ela manteria consigo mesma, mas no processo de pro- determinará a apreensão do sentido do ser. Da constituição de uma
dução contínua da vida do espírito que é a multiplicidade diferencia- filosofia fundada no conhecimento imediato decorrem exigências de
da do pensamento. Agora já é possível ver de maneira mais clara por constituição da linguagem filosófica vinculada à expressão do ime-
que o Eu mantém com as vivências que o expressam uma relação diato. Mas como o conhecimento imediato redefine o sujeito como
absoluta, conforme vimos antes. Estando em cada uma de forma totalidade, será útil, para entendermos melhor os elementos român-
absoluta, é o Eu enquanto multiplicidade qualitativa que é o absolu- ticos presentes no pensamento de Bergson, que recorramos a alguns
to. A identidade do Eu é a diferença interna do fluxo temporal. O que aspectos especulativos do romantismo, especialmente os referentes
a filosofia nunca pôde aceitar - que o Absoluto é Diferença - apre- à constituição do movimento de reflexão, bem como à modalidade
senta-se em Bergson como tese filosófica fundamental, e como a de presença do sujeito a si na atividade de pensamento, em particu-
única maneira de apreender o Absoluto enquanto vida do espírito- lar naquilo que se pode entender como pensamento criador.
e não enquanto conceito ou forma pura.
Tudo isto significa que o Absoluto não pode nunca ser pensado 3. PENSAMENTO E REFLEXIVIDADE
como abstração do relativo. Por isto a espontaneidade do Eu não
pode ser identificada como fundamento imutável e necessário do A pergunta que está na base da crítica bergsoniana das filosofias
vir-a-ser da liberdade. Seria como extrair a liberdade da necessidade. do absoluto, mormente no caso do Idealismo Alemão, é a seguinte:
Mas como é procedimento natural do intelecto remeter a multiplici- a abstração é um processo lógico ou um movimento real? A questão
dade da diferença à unidade elementar idêntica a si mesma e a não é desprovida de sentido. No que se refere a Bergson, a crítica da
mudança à permanência, a filosofia tradicional esforçou-se sempre história da filosofia enquanto procedimentos "platonizantes" tende
por encontrar no nível do pensamento a "Idéia das idéias" ou o pen- a mostrar que a filosofia sempre se constituiu como "filosofia das
samento do pensamento como possibilidade do pensar (P.M.-48 a formas", e as filosofias pós-kantianas teriam chegado a desenvolver
51). A abstração é a liberação do pensamento da multiplicidade re- plenamente esta tendência ao instituírem a "Forma das formas",
lativa dos signos imediatamente vinculados ao empírico para que ele espécie de superconceito que teria sido o resultado da reabilitação
chegue à posição de um Signo dos signos que, pela sua própria fun- da intuição intelectual. Na verdade, a condensação aristotélica do
ção, só pode designar a generalidade. A partir daí se pode dizer que Mundo das Idéias em Forma pura está na raiz do esforço filosófico
a reflexão formal não é uma experiência, não é a experiência que o para "intuir" (do ponto de vista bergsoniano melhor seria dizer: no-
Eu tem de si mesmo, pois assim como "uma existência só pode ser mear) a realidade em si, o conceito ou a forma da realidade da qual
dada numa experiência" (P.M.-50), a experiência só se constitui ver- tudo deriva. O correlato da intuição intelectual se constitui pois no
dadeiramente no contato com uma realidade. No entanto, mesmo a processo de condensação conceitual cujo paradigma especulativo é
reflexão formal representa o esforço especulativo para fazer do co- o spinozismo: e o conceito, generalizado até o máximo de sua vasti-
nhecimento imediato do Eu o modo de acesso ao ser. Como a trama dão significativa, significará apenas a si mesmo. " ... que se dê o nome
interna da consciência proporcionará o conhecimento da realidade que se quiser à 'coisa em si', que se faça dela a Substância de Spino-
I em sua índole própria dependerá da maneira de se conceber a cons- za, o Eu de Fichte, o Absoluto de Schelling, a Idéia de Hegel ou a

~,
tituição do próprio conhecimento, primeiramente no plano em que Vontade de Schopenhauer, a palavra poderá até apresentar-se com

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 3. PENSAMENTO E REFLEXIV1DADE

sua significação bem definida: ela a perderá, ela se esvaziará de toda ao mesmo tempo lógico e real, já que ele será o fundamento do
significação desde que a apliquemos à totalidade das coisas" (P .M.- movimento e das realidades que surgem neste e por este movimen-
49). O intelecto realiza, na sua busca do absoluto, por assim dizer, to. Por isto para Bergson, o Eu de Fichte assim como os outros con-
uma abstração de segundo grau, partindo dos conceitos, que já eram ceitos absolutos seriam "parentes próximos" da Idéia Platônica e
abstrações da realidade múltipla, para o Conceito único, abstração Forma pura ou Deus aristotélico: a princípio contida inteiramente
dos próprios conceitos e forma do gênero conceitual. Como, para o nele, a realidade como que se "derrama" dele. Este "derramar-se",
entendimento, os conceitos expressam coisas, o Conceito expressa- entretanto, é a própria construção do discurso especulativo enquan-
ria a realidade no seu mais elevado sentido de unidade. Na medida to gênese simbólica do real, pois a confusão entre lógica e realidade
em que o movimento especulativo da filosofia das formas perde o se duplica na confusão "natural ao espírito humano, entre uma idéia
significado da distinção entre lógica e realidade, chega-se, do plano explicativa e um princípio agente" (P.M.-48).
dos conceitos como existências lógicas ao plano do fundamento de Tal confusão se traduz na verdade num princípio que poderia ser
todas as existências lógicas, a Existência em sentido puro, despida de assim formulado: se uma diversidade deve ser una, sua unidade só
todo significado determinado, até mesmo da extensão lógica deter- pode dever-se a um princípio que, enquanto único (ou seja, em si
minada. A indeterminação lógica, no caso, é solidária da compreen- dotado de unidade). garanta a unidade da diversidade. Pois a unida-
são abstrata, a única que pode abarcar a realidade em geral. O paro- de que age como princípio unificador da multiplicidade é também a
xismo da abstração se mostra no fato de que a Forma das formas tem idéia (de unidade) que explica a multiplicidade enquanto unidade. A
a generalidade como sua matéria. idéia na qual conhecemos a unidade é também a razão de ser da
O que Bergson está denunciando é que a necessidade de encon- própria unidade, sobretudo se se tratar de unidade da multiplicida-
trar o fundamento único do sistema da realidade põe em movimento de. Se a multiplicidade da realidade é expressa numa multiplicidade
o procedimento de abstração através do qual o sujeito acreditará de proposições organizadas em sistema e ligadas pela mesma certe-
atingir, ao cabo, um conhecimento direto, imediato e indemonstrá- za, esta certeza será o elo unificador que me fará dizer, por ex., que
vel do qual deriva todo o sistema. As características do fundamento, o conjunto de proposições diferentes constitui uma ciência. Mas para
e o próprio fato de ter de haver um fundamento, são exigências da que todas e cada uma das proposições possuam a mesma certeza é
sistematicidade do conhecimento. Isto significa que é a sistematici- preciso que uma delas, a primeira, originária e fundamental, possua
dade que determina logicamente a existência do fundamento. Deter- a certeza que é comunicada às demais. Portanto, de uma proposição
minar logicamente significa predeterminar pela forma. É o sistema isolada só podemos dizer que é ciência se a ciência for constituída de
enquanto forma que determina a existência do fundamento e as ca- uma única proposição. Mas em relação a várias proposições singu-
racterísticas que ele deverá ter. Sendo formalmente determinado, o lares que fazem parte de uma ciência enquanto sistema, só podemos
conhecimento imediato, primeiro e originário é posto a priori na sua dizer que são certas se cada uma deriva sua certeza, sua forma e sua
necessidade: em termos bergsonianos, é nomeado como primeiro posição de uma proposição, em si certa, que as determina em ter-
princípio. Dentre os vários nomes com que se designa o Absoluto, mos de verdade, notadamente no que diz respeito à compatibilidade
Bergson cita o Eu de Fichte. Isto significa que Bergson vê no movi- sistemática de cada uma com as demais. Portanto, embora Fichte
mento de reflexão fichtiano a busca do Conceito dos conceitos, no possa dizer que "a essência da ciência consistiria (. .. ) na índole de
qual o entendimento repousaria e a partir do qual derivaria toda a seu conteúdo (... ) e a forma sistemática seria meramente contingen-
realidade enquanto sistema conceitual. Mas é claro que a realidade te"!', ele pode afirmar também que "as proposições singulares, em
enquanto sistema, se deriva de algo, só pode derivar de uma Reali- geral, não chegam a ser ciência, mas s6 se tomam ciência no todo,
dade, primeira e fundamental. Ao pôr a necessidade lógica de um
primeiro princípio para a realidade, o entendimento põe também a
derivação, a emanação ou a explicitação da realidade como movi- 16. Fichte, G., sobre o Conceito de Doutrina-da-Ciência (1794), tradução Rubens
mento lógico de distensão do devir: o princípio originário tem de ser Rodrigues Torres Filho, Abril Cultural, São Paulo, 1980 (coleção Pensadores), p. 11.

212 213

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 3. PENSAMENTO E REFLEXIVIDADE

por sua colocação no todo e sua relação com o todo"", desde que portando aqui a mera forma da conexão que, por ignorar em termos
entendamos que o caráter de certeza científica não nasce da mera de conteúdo, chamo de X. Mas a conexão necessária é um juízo: A é
vinculação, mas da vinculação de todas as proposições a uma "pura A no juízo e pelo juízo; portanto no Eu que julga e pelo Eu que julga.
e simplesmente certd'l'. A vinculação da proposição originária às de- Aqui, o juízo de conexão necessária afirma uma identidade de tal
mais se dá na forma de comunicação de certeza, certeza que a pri- maneira que, pela conexão, afirmam-se os termos que a ela se refe-
meira proposição tira de si mesma, pois não está, neste sentido, vin- rem, A e A. Mas assim como o juízo está posto no Eu e pelo Eu, o Eu
culada a nenhuma outra, ou seja, não está determinada por nenhu- também está posto e pensa-se necessariamente como ponente na
ma outra no seu caráter de verdade, mas determina a todas as ou- sua própria ação: a posição remete à reflexão. Conseqüentemente a
tras. A determinação se dá de duas maneiras: a certeza em geral que proposição A é A envolve outra: Eu sou Eu. Mas A é, antes de mais
o princípio comunica às demais proposições é o conteúdo interior do nada e independentemente de qualquer outra determinação, porque
princípio; o modo como tal certeza é comunicada constitui a forma foi posto no Eu e pelo Eu como termo do juízo de identidade, e só
da ciência. Isso significa que o conteúdo do princípio é a certeza em nesta medida é: apenas no, pelo e para o Eu. Como o juízo é de
geral, a mera comunicação de certeza. Como isso se realiza é a forma identidade, a posição de A como predicado decorre de ter sido A
que a ciência toma na gênese progressiva e dedutiva de suas propo- posto como sujeito. Nesta operação, há algo que o Eu sabe de si: a
sições. A certeza como conteúdo provém, pois, da forma da deriva- ação de pôr ou a atividade ponente; "sei necessariamente de meu
ção; a forma do sistema provém da própria dedutibilidade sistemá- pôr de que sou sujeito, portanto de mim mesmo, intuo reflexivamen-
tica, que inclui os requisitos de compatibilidade proposicionall9 • Já te a mim mesmo, sou para mim mesmo"". "É portanto fundamento
que conteúdo e forma do sistema provêm do princípio, o estabeleci- de explicação de todos os fatos da consciência empírica que, antes
mento do princípio em seu caráter absoluto é condição do saber, de todo o pôr no Eu, é posto o próprio Eu'l." Esta posição é uma
entendido no mais elevado sentido formal, isto é, saber do saber. A atividade reflexiva, isto é, o Eu põe-se a si mesmo e é isto que o faz
condição epistemológica não diz respeito aqui às epistemologias ser; e ele é em virtude de se ter posto. É uma atividade pura: o Eu é
regionais, mas à epistemologia geral, ao caráter absoluto do saber na "ao mesmo tempo agente e produto da ação; o ativo e aquilo que é
sua forma absoluta, o que inclui até mesmo as formas lógicas do produzido pela atividade"; essa coincidência não será encontrada
pensamento. em nenhum outro estado-de--ação. A identidade entre o sujeito for-
mal da proposição e o predicado formal da proposição faz com que
O princípio como condição incondicionada é, pois, o ponto de
o Eu se ponha como sujeito absoluto, pois o Eu que põe e o Eu que
partida. Há dois aspectos a considerar em relação ao ponto de par-
é posto são um e o mesmo. Chegamos então àquilo que é pura, sim-
tida: o pensamento como fato da consciência empírica e aquilo que ples e necessariamente. "O Eu põe originariamente, pura e simples-
nele é pensado necessariamente, separado das determinações empí- mente, seu próprio ser"." Isto significa também, o que decorre da
ricas, ou seja, o que é refletido como pensado no pensamento. As-
identidade entre sujeito e predicado, que há necessariamente
sim, por exemplo, A é A é uma proposição, aliás idêntica, da qual identidade entre sujeito e objeto na posição do Eu, o que Fichte
posso abstrair o ser como predicação, isto é, aquilo que em geral
exprime dizendo que o Eu é, sem mediação, sujeito-objeto.
pode ser predicado de A, restando portanto a simples posição: se A
é, então A é, não importando O quê seja A, nem mesmo se A efetiva- Se o caráter absoluto do Eu se expressa na sua atividade, esta só
mente é, ou que haja algum A. Aquilo que Fichte chama de "pura e pode ser absoluta. A produtividade absoluta exclui a heterogeneida-
simplesmente certo", a proposição incondicionada, é a conexão ne- de entre idealidade e realidade; portanto, a realidade, ao menos do
cessária que existe entre se e então, independente de qual seja, im-

20. Fichte, G., A Doutrina-fia-Ciência (l794), tradução Rubens R. Torres Filho, Abril
17. Id., ibid.• p. 12. Cultural, São Paulo, 1980 (coleção Pensadores), p. 45 - nota.
18. Id., ibid., p. 12. 2!. Id.• ibid., p. 45.
19. Id., ibid .• p. 14. 22. Id.• ibid., p. 47.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 3. PENSAMENTO E REFLEXIVIDADE

ponto de vista categorial, é efeito da produtividade do Eu; da sua proposição anterior, aqui se faz abstração de qualquer determinação
atividade deriva a realidade. Isto significa que não há a mediação das do juízo, restando apenas a anterioridade do opor em sentido puro.
condições de aplicabilidade. Assim se pode dizer que a realidade Acontece que a negação suprime a afirmação. Em conseqüência,
deriva do Eu na medida em que deriva da posição do Eu em, por e a posição do não-Eu nega e suprime o Eu. Mas como é só no Eu que
para si mesmo. A recusa da heterogeneidade afasta o problema da essa supressão pode se dar, na medida mesma em que se dá como
coisa em si na exata medida em que a produtividade absoluta exclui oposição, o Eu estaria suprimido no interior de si mesmo. "O Eu não
a concepção de objeto no sentido do realismo dogmático. Por outro está posto no Eu, na medida em que nele está posto o não-Eu2S ." O
lado, a intuição reflexiva de si não pode ser considerada exatamente oposto suprime o que estava posto, mas como a oposição é a posição
uma reabilitação da intuição intelectual na medida em que o Eu que da negação, é como se ele fosse oposto a si mesmo e se auto-supri-
se põe a si na reflexão não se objetiva como representação da coisa misse. Eu e não-Eu, ao serem postos e opostos, suprimem-se cada
em si, no sentido substancial ou mesmo lógico-formal. Os elementos um a si mesmo, na medida em que se põem como contrários de si
que confluem no movimento reflexivo fichtiano são: a apercepção próprios. A identidade da consciência foi pressuposta em ambos os
transcendental como presença imanente do Eu nas suas representa- princípios, e a contraposição que agora se estabelece entre eles
ções; o Eu como intersecção causal e o Eu como liberdade, reunião do ameaça suprimir esta identidade. A tarefa que Fichte se propõe no
teórico e do prático; e o Eu como função de síntese entre o sensível e estabelecimento do terceiro princípio é encontrar uma maneira de
o inteligível no juízo reflexionante. O Eu como conhecimento da coisa preservar os dois primeiros como resultados corretos do movimento
em si não entra como elemento neste movimento de reflexão". reflexivo e manter a identidade da consciência. Ora, a consciência
Se, em vez da proposição na qual é posta a identidade, anterior- una é atividade e o Eu e o não- Eu são produtos de sua ação. São
mente formulada, enunciamos outra em que se põe a oposição (não- portanto a consciência enquanto autoprodução. Para compatibilizar
-A não é igual a AJ, igualmente indemonstrável, então encontramos, a identidade da consciência com o Eu e o não-Eu enquanto produtos
também pela reflexão, a atividade originária de opor, que na sua que tendem a se suprimir, temos de considerar que a supressão é
forma é incondicionada, mas que na sua matéria está condicionada uma limitação recíproca pela qual os produtos se suprimem em parte
por aquilo a que é contrária, a que se opõe. Matéria aqui deve ser e se conservam em parte. Para que isso seja possível é preciso con-
entendida como meramente aquilo que está posto, de que de algu- ceber tanto o Eu como o não- Eu como divisíveis, caso contrário não
ma maneira depende aquilo que está oposto. A identidade da cons- faria sentido falar-se em partes. Assim percebemos que, quando se
ciência deve ser pressuposta para que, à realidade de A (do Eu), se pensou na oposição do não- Eu ao Eu, já se pensava implicitamente
possa opor a negação de A (o não-Eu). O que está em jogo aqui é o na limitação, caso contrário a oposição teria sido pura e simples-
contrário em geral num juízo de negação. Fichte fala da oposição mente a supressão da consciência. A noção de limitar inclui, como
entre representante e representado ("Assim que devo representar algo que de direito, as de realidade e de negação. A consciência, conser-
devo opô-lo ao representante""), mas é claro, pelo que precede, que vando-se como tal e ao mesmo tempo exercendo a ação de opor, já
não podemos entender oposição no sentido tradicional de heteroge- limitava. Reencontramos assim a terceira categoria, dentre as que
neidade entre sujeito e objeto. O que importa aqui é notar que a haviam sido enunciadas por Kant, a de limitação que, tal como as
oposição entre representante e representado é uma regra transcen- outras, não foi deduzida através do fio condutor da lógica geral, mas
dental, pela qual a contrariedade em geral aparece como condição foi geneticamente estabelecida a partir da posição absoluta do Eu. A
imanente da atividade de opor, instância da qual deriva em particu- limitação recíproca do Eu e do não- Eu por meio do conceito de
lar a negação como categoria e o princípio de oposição. Tal como na divisibilidade constitui a união das contraposições e assim a consci-
ência se preserva na sua unidade. Isto se torna compreensível quan-
do entendemos que a oposição pressupõe a identidade e a identida-
23. A este respeito cf. Victor Delbos, De Kant aux Post-kantiens, Aubier, Paris, 1940,
pp.9455.
24. Fichte, G., A Doutrina-da-Ciência (1794), trad. cit., p. 51. 25. Id. Ibid., p. 52.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 3. PENSAMENTO E REFLEXIVIDAOE

de pressupõe a oposição: A é igual a B naquilo a que ambos se refe- do sujeito no interior da objetividade. Não se trata apenas de separar
rem enquanto iguais (razão de referência); A é oposto a B naquilo em o sujeito do objeto, mas sim de dissolver qualquer sujeito de objeto.
que ambos se distinguem enquanto opostos (razão de distinção). Mas É a dissolução dessa reciprocidade que Fichte julga ser a tarefa de
é claro que este raciocínio só vale para o que é divisível. Parte de A uma filosofia crítica radica(27. Mas exatamente por condensar-se no
é igual a B porque parte de A e parte de B referem-se a um mesmo Eu, nas formas explicitadas nos três princípios originários, a reflexão
índice de igualdade; e parte de A distingue-se de parte de B na me- que estabelece o saber do saber exige a ancoragem no sujeito, ainda
,
dida em que ambas estas partes referem-se a um índice de distinção. que não epistemologicamente determinado. Esse ponto constituirá
Por isso duas coisas que se limitam opõem-se parcialmente e parcial- uma das diferenças fundamentais entre Fichte e o romantismo, e ao
mente mantêm a identidade. Assim posso falar em unidade da cons- mesmo tempo um dos pontos de partida da concepção romântica de
ciência e ao mesmo tempo em oposição entre o Eu e o não-Eu, sig- reflexão.
nificando que a igualdade e a diferença fundam-se em razões, mas a
unidade absoluta da consciência não é fundada. Temos portanto três Pode-se dizer que, para a leitura romântica (exemplificada em
princípios: o Eu absoluto, o Eu divisível e o não-Eu divisível, e Fichte SchlegelJ, a conjunção entre a reflexão como atividade e o Eu posto
pode finalmente formular: "Eu oponho, no Eu, ao Eu divisível, um como ponto focal da reflexão constitui uma ambigüidade. A questão
não-Eu divisível". Aí se condensa tudo que "deve aparecer no siste- do ponto de partida e a necessidade de encontrar uma ancoragem
ma do espírito humano"". para a reflexividade fazem com que Fichte localize o conhecimento
imediato na intuição do Eu absoluto. A reflexão realiza-se primeira,
Passar da representação fática do juízo à representação da fun-
ção de ajuizar é pensar o pensamento. O juízo reflexionante pelo fundamental e originariamente na autoposição do Eu. Apesar de não
qual afirmo O ser da função de pensar (e com isto ponho-me a mim ser uma existência no sentido positivo, o Eu é visto como positividade
mesmo) é na verdade o único juízo puramente tético. Tudo o mais, da função de pensar. Há uma interpenetração entre conhecimento
como se viu, é juízo de reciprocidade, é composição de igualdade ou imediato do Eu e pensamento reflexivo que faz com que o Eu assu-
de diferença, numa palavra, é síntese, e, enquanto tal, deriva de uma ma a posição formal de fundamento do sistema. Como O saber do
antítese, ainda que implícita. A tese do Eu é o pensamento conscien- saber é um sistema finito, tem de haver um princípio da própria
te de sua função, é a autoconsciência no seu aspecto verdadeiramen- formalidade do sistema, e este princípio é o sujeito formal. Mas este
te originário. Mas a autoconsciência é intuição reflexiva do Eu na sua sujeito formal é o sujeito absoluto enquanto atividade. Por que a
anterioridade imediatamente absoluta. Quando passo da determina- atividade da reflexão tem de ser também um princípio? A resposta,
ção da identidade proposicional à posição da identidade do Eu, dou implícita na filosofia de Fichte, tem a ver com o caráter absoluto da
um passo atrás em relação ao primeiro princípio lógico do pensa- consciência que é a reunião de lógica e realidade. A consciência não
mento e encontro assim o próprio pensamento como auto posição e pode dissolver-se no processo reflexivo; em algum momento ela tem
fonte de toda determinação. Posso dizer que assim encontro o sujei- de ser efetiva. Esta efetividade pode ser entendida como uma limita-
'r, I
to? Sim, mas com a condição de não conferir a este sujeito nenhum ção do Eu, e esta é uma função do não-Eu. A limitação faz com que
atributo derivado de qualquer doutrina da objetividade. Se a subje- o Eu se conheça finito na reflexão, caso contrário não haveria consciên-
tividade for a contrapartida da objetividade, ela não será absoluta. cia efetiva". Por isso o conhecimento imediato de si ou a consciência
Por isso o conhecimento imediato do Eu é formal, mas no sentido de
funcional. Nesse aspecto, a busca do absoluto em Fichte não implica
o abandono da ortodoxia kantiana. A tese da consciência é a tese da 27. Rubens Rodrigues Torres Filho, O Espirito e a Letra, Ática, São Paulo, 1975, p. 71.
função do juízo, abstraídas todas as determinações, inclusive as ló- 28. Benjamim, W., "Le Concept de Critique Esthétique dans le Romantisme Allemand,
gicas. Por isto a afirmação do sujeito absoluto implicará a dissolução diz à p. 54: "Resumindo, digamos que a posição se limita e se determina pela repre-
sentação, o Não-eu, a oposição. Em razão das oposições determinadas, a atividade de
posição, que em si vai até o infinito. é finalmente reconduzida no Eu absoluto; e aí,
onde ela se conjuga à reflexão. é capturada e fixada na representação do sujeito que
26. Id .. ibid., p. 55. representa" .

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III
III -
", INTUlçAO E EXPRESSA0 3. PENSAMENTO E REFLEXrVIDADE

imediata de si significa: a consciência do pensamento não é anterior tismo consiste na tentativa de compatibilizar reflexão infinita e siste-
ao pensamento, nem acrescentada a ele, mas são indissociáveis. A ma. Assim, a expressão fragmentária, em Schlegel, não significa au-
intuição é a identidade entre pensamento-sujeito e pensamento- sência de sistema, mas sistematização infinita. Pode-se mesmo dizer
objeto. Mas os românticos, em especial Schlegel e Novalis, fixam-se que existe uma identificação entre o caráter infinito - porque refle-
na reflexão como atividade e processo, por assim dizer dissociando xivo - de todo pensamento autêntico e o método fundamentalmen-
a função do princípio funcional. Afinal, para eles, o pensamento te entendido como intuição intelectual que engendra sua própria
enquanto tal tem uma natureza reflexiva. Esta natureza reflexiva en- forma. Mas o método e o sistema, se têm um ponto de partida, não
". quanto processo do pensar aponta para a dimensão infinita do espí- possuem propriamente um ponto de chegada, e o sistema nunca se
rito. E tal dimensão deriva de que a reflexão, ato do espírito, é na perfaz. Em Schlegel, O primeiro grau da reflexão é o sentido, o pen-
verdade um processo infinito. sado no pensamento; o segundo grau é o pensar desse pensar, quan-
do o pensamento torna-se matéria de si próprio. "O sentido que se
Para Fichte, a regressão ao infinito é a perda da efetividade da
vê a si mesmo torna-se espírito"." O pensamento do pensamento do
consciência. Para os românticos, o processo infinito não é visto como
regressão mas como conexão no sentido de curso inacabável. Isto pensamento é o terceiro grau da reflexão, obtido pela dissociação do
porque a regressão-progressão temporal não é vazia, mas justamen- segundo, a que Fichte havia chegado e que se pode chamar de "for·
te preenchida pela conexão de conteúdos pensados. Como cada con- ma canônica da reflexão". A partir desse terceiro grau - e aí reside
teúdo implica a reflexão como presença a si do pensamento, todo sua importância e o peso da originalidade da concepção romântica
pensamento é imediato, ao menos como pensamento de si. A imedia- de reflexão - o movimento reflexivo verdadeiramente se abre para
tidade do sujeito é a imediatidade do pensamento". Mas é precisa- o infinito. Pois a dissociação pode ser repetida indefinidamente, e
mente esta identificação que fará com que os românticos não acei- haverá tantos níveis de reflexão quantas dissociações forem opera-
tem a posição do Eu como determinação ontológica originária. Pen- das. A dissociação infinita tem um sentido metódico, porque o que
sar-se a si mesmo (como fenômeno) é ser (si mesmo) pura e simples- ela manifesta, na verdade, não é a separação mas a conexão dos
mente. O que os românticos procuram é relacionar a reflexão ao conteúdos de pensamento num sistema infinito. Mas com isso o
simples pensar, não ao Eu. A reflexão não é tese absoluta, interna a sujeito e a forma reflexiva não se dissolvem num processo por defi-
si, fundando o conhecimento imediato. Por isto, diferentemente de nição inacabado? Aqui é preciso observar, como já o fizemos antes,
Fichte, para eles não é apenas o sujeito que pode ser objeto de intui- que a regressão do pensamento não se dá numa temporalidade va-
ção intelectual. Pôr o sujeito como produto da intuição intelectual é zia, mas sim como conexão de conteúdos. Além disso, em cada um
de alguma maneira fazer com que a intuição engendre seu objeto, dos pensamentos conectados a reflexão mostra a presença imediata
quando o sujeito deve surgir a partir da função da reflexão como do Eu, o que significa que em cada um a consciência é efetiva e o
pura atividade. Não é por acaso que Walter Benjamim diz que o saber do pensamento é imediato. A dissociação também mostra o
.,,; .
pensamento na intuição intelectual é "relativamente objetivo"30. poder produtor do Eu num alcance sempre maior, de maneira que,
:1· ao contrário de uma dissolução, há uma crescente efetividade no
Mencionamos há pouco que o caráter finito da reflexão em Fichte sentido da realização absoluta da reflexão, ou da realização da refle-
(ao menos no que concerne ao saber teórico) deriva da necessária xão absoluta. É claro que toda reflexão se dá primeiramente como
sistematicidade do saber do saber. Isto não deve nos levar a pensar ação do Eu. Mas o Eu como origem da atividade reflexiva possui
que a reflexão infinita nos românticos esteja vinculada à ausência de exatamente o mínimo de efetividade necessário para iniciar o pro-
qualquer ideal sistemático. Pelo contrário, a originalidade do roman- cesso: há que perfazer um caminho infinito e não permanecer na
origem. Além dessa reflexão originária concebe-se portanto a refle-
xão absoluta, que é diferente do Eu absoluto da reflexão no sentido
29. ld" ibid., pp. 57·58.

l
30. "Fichte conhece, pois, apenas um caso de utilização fecunda da reflexão, o da
intuição intelectual. Aquilo que, na intuição intelectual, surge da função da reflexão é
o Eu absoluto. uma atividade real" (Benjamim, W., ob. cit., p. 61). 31. Schlegel, F., Atheneurn, frg. 339 (ed. Lacoue-LabartheJ,

220 22\
III - INTUIÇl..Q E EXPRESSÃO 3. PENSAMENTO E REFLEXlV1DADE

fichtiano. Esta reflexão absoluta conteria o máximo de realidade efe- tes conteúdos, a reflexão não é um eterno refletir-se do Eu, pois então
tiva. Existe aqui a idéia de que a origem, se contém toda a realidade, somente seriam conectadas imagens de mesmo conteúdo.
só pode contê-Ia de forma condensada e até obscura. É o desenvol- A limitação deve ser entendida, parece, como uma modalidade
vimento da reflexão absoluta que confere plena efetividade e clareza de produção do Eu pela qual se constitui a diversidade a priori. A
ao conteúdo de realidade. Embora o Eu seja o operador do conheci- limitação seria, portanto, uma ação efetiva do Eu que deveria ser
mento, a intuição intelectual do Eu como autoconhecimento ime- distinguida da posição fichtiana do não-Eu por ocorrer no curso da
diato não fixa o paradigma, muito menos a fonte de todo conheci- produção, ou seja na efetividade. Novalis não aceita a concepção
I,". mento. Para Schlegel, a posição do Eu por si mesmo, ainda que como fichtiana segundo a qual a consciência do prático deriva da produ-
realidade funcional, seria em Fichte um resquício de realismo: o idea- ção inconsciente do não-Eu pelo Eu. Schlegel por sua vez recusa-se
lismo "subjetivo" se construiria a partir do realismo (da realidade) da a aceitar que a limitação seja como que o reflexo do Eu". Ambos só
subjetividade". concebem a limitação na efetividade, como realidade da consciên-
Não sendo mais a intuição do Eu o ponto privilegiado da refle- cia. O não-Eu, ou o contra-Eu como diz Schlegel, poderia então tal-
xão, e admitida a natureza reflexiva do pensamento, o imediato dei- vez ser concebido como uma formação reflexiva que a consciência
xa de se vincular apenas à intuição e se relaciona, doravante, com o produz ao longo do trajeto-movimento de reflexão. As intuições de-
pensar. A reflexão como pensar imediato dá acesso ao absoluto. O terminadas seriam interrupções voluntárias deste movimento.
absoluto se realiza e o sistema infinito é auto-reflexivo. O absoluto A matéria do movimento de reflexão é a conexão contínua. Esta
não é mais o princípio e fundamento do sistema da doutrina da ciên- conexão evidentemente não é uma ligação material, mas ligação dos
cia, porque a imagem do mundo já não tem de ser o conjunto de graus de manifestação da realidade na representação. Entre a ação
representações do conhecimento positivo. O caráter absoluto do Eu do Eu representante e a representação existe também um movimen-
não se afirma na medida em que ele se põe livremente para si. Tam- to de ir e vir, que pode ser entendido como exteriorização e interio-
bém não precisamos entender que o absoluto transcende o Eu e rização, sempre no interior do universo de representação. O retorno
aquilo que está posto diante dele (seja o "objeto", seja o não-Eu). a si é uma potencialização do Eu, a exteriorização é uma extração, no
Podemos considerar a subjetividade como absoluta, mas então aqui- sentido em que se extrai de um número outro que o contém em
lo que a nega, que a limita, tem de estar integrado nela, já que o potência. Ambos os termos devem ser entendidos por analogia com
sujeito é intimamente infinito. Por isto quando nos sentimos finitos a matemática. Por isto a reflexão deve ser entendida, como o faz
é porque somos ainda parcialmente conscientes de nós mesmos. Novalis, como potencialização da subjetividade. Esta potencializa-
Aquilo que está diante do sujeito não o limita na sua infinitude, sim- ção é qualitativa, e portanto é a qualidade do Eu que confere reali-
plesmente está contraposto ao sujeito, nele e por ele. Neste sentido dade significativa a toda e qualquer idéia. "É preciso considerar a
o objeto seria uma espécie de contra-sujeito numa acepção análoga idéia do Eu (... ) como a luz interior de todas as idéias. As idéias não
11'·'. ao contraponto na música. Assim como a razão de ser da polifonia é são mais do que imagens coloridas e repartidas desta luz interior. Em
'~" I
a unidade, e a construção da polifonia é a construção da totalidade cada idéia o Eu é a luminosidade oculta, é em cada uma delas que
que a sustenta, assim também a diferença entre o sujeito e o contra- nos encontramos; pensa-se sempre somente a si, ou pensa-se sem-
-sujeito (Schlegel fala em contra-Eu) é a realização do absoluto como pre o Eu (... )35." A consciência desta luz interna é a ação do espírito
subjetividade". Observe-se também que é essencial que haja dife- autopenetrando-se. É a única atividade que está à altura do espírito, a
rença; que haja, por ex., Eu e Mundo e que estas idéias se oponham
na exata medida em que se entrereferem. Por ser conexão de diferen-
34. "O Eu originário, que tudo esteja contido no Eu originário, é tudo; fora dele não
há nada; não podemos conceber nada além da egoidade. A limitação não é simples-
32, Benjamim, W., ob, cit., p, 64, mente um temo reflexo do Eu, mas ao contrário um Eu real; de forma alguma um
33. Id., ibid., p. 67. Cf. a explicação da tensão sujeit%bjeto em Fichte através da Não-eu, mas um Contra-eu, um Tu (Toi)" (Schlegel, F., citado por Walter Benjamim,
análise da própria palavra Gegenstand (Gegen = contra) na nota que Rubens R. Torres oh. cit., p. 69).
Filho adicionou à sua tradução da Doutrina-ela-Ciência, ed. cit., p. 51 - nota 25. 35. SchIegel, F., citado por Walter Benjamim, ob. cit., p. 71.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 4. EXTERIORJDADE E APOR IA DA REFLEXÀO

única que lhe é verdadeiramente própria. Por isso a reflexão infinita 4. EXTERIORIDADE E AFORIA DA REFLEXÃO
expressa a dimensão infinita do espírito.
A conseqüência de ser a reflexão concebida como ação infinita de A descrição do ato livre em Données Immédiates leva também à
um espírito tocado pela infinitude será o descentramento do ponto constatação de que ele é raro. A coincidência do espírito consigo
originário da reflexão. Não podendo mais haver uma identificação en- mesmo, a contração da interioridade, é rara porque significa a ativi-
tre a forma do Eu e a forma da reflexão, pela infinitização de ambos dade se produzindo no plano da duração pura. Ora, a gênese crítica
enquanto atividade, o romantismo buscará entender a reflexão como a da consciência do mundo mostrou que a possibilidade da ação sobre
", forma da ação infinita. O Eu, embora seja a origem consciente da refle- as coisas é a exteriorização do espírito que age num tempo espacia-
xão, não é mais o seu centro. A reflexão do Eu se dá no absoluto, pois lizado. Isto significa que a conexão das representações na consciên-
o Eu como sujeito já não é mais O absoluto, embora o absoluto ainda cia empírica não se dá no plano da duração pura, mas é dependente
continue sendo pensado no registro da subjetividade, mas de uma de um quadro regido pelo apriorismo natural da inteligência, e que
subjetividade amplificada e já quase com o sentido cósmico que assu- se constitui primeiramente no nível da percepção. Existe portanto
mirá em Schelling. De qualquer modo a forma do Eu já não pode ser a um nível a que poderíamos denominar intencionalidade pragmática
forma da síntese infinita. A criação como produção infinita será pensa- da consciência, em que o mundo se constitui como série de ocasiões
da a partir da forma artística e a arte será associada à reflexão, na medida de ações respostas subordinadas ao critério da eficácia. Bergson es-
em que é compreendida como mediação da conexão infinita. tudará este plano da consciência por meio de uma ficção metodoló-
Quando o Eu já não é mais visto como O princípio que contém gica que é a exterioridade pura, ou a consciência considerada como
em potência toda a realidade pensada no movimento de posição de idêntica à percepção instantânea, na qual existiria total coincidência
suas sínteses originárias, quando a representação do absoluto é um entre o presente puro do objeto dado e a presença da consciência nele
processo de conexão infinita e a postergação necessária da síntese por inteira, ou seja, fora de si. Isto é uma ficção metodológica, por-
final entre finito e infinito, quando o reconhecimento do absoluto é que a consciência, por definição, nunca pode estar inteiramente fora
uma identificação sintética que se faz sem nunca perfazer-se, pode- de si. Mas esta ficção é necessária porque o que caracteriza a inten-
mos falar ainda em idealismo? Certamente, na medida em que a tra- cionalidade pragmática é a exteriorização, a representação como
jetória de identificação sintética entre finito e infinito é idealização, assunção deliberada dos contornos do mundo empírico. A radicali-
processo operado pela consciência. Mas exatamente por ser a idea- dade deste realismo metodológico permitirá a elucidação da consci-
lização o processo pelo qual a consciência reconhece o absoluto, ência empírica como limitação e discernimento, atividades respon-
este processo não consiste apenas em exaurir o potencial do Eu, vis- sáveis pela construção da relação pragmática com o mundo. Sem a
to como condensação da realidade enquanto conteúdo interno. A elucidação do modo de se pôr da consciência natural não seria pos-
interiorização é absolutização exatamente porque na interiorização sível focalizar adequadamente a atividade da consciência reflexiva
,.., o sujeito acede conscientemente ao absoluto enquanto auto-realiza- no seu modo de pôr-se como presente a si mesma na dimensão da
ção infinita no qual necessariamente ele já está. Por isto os român- interioridade.
II ticos não aceitam a tese da subjetividade absoluta como posição. É nas
coordenadas desta questão que tentaremos entender a opção bergso- O primeiro capítulo de Matiere et Mémoire procura esclarecer
niana pela interioridade como etapa metodológica de acesso ao ser. esta modalidade de relação natural da consciência com as coisas que
Isto nos abrirá a possibilidade de compreender a dimensão absoluta da envolve necessariamente - e isto para nós é o mais importante - a
subjetividade bergsoniana: a temporalidade consciente de si. A consci- relação natural da consciência consigo mesma. O realismo metodo-
ência como temporalidade que se desvela para si mesma já traz implí- lógico permite considerar o problema da representação fora dos ter-
cita a reflexão como imersão no Tempo em si, na realidade da tempo- mos em que ele está colocado por realistas e idealistas. Veremos mais
ralidade, naquilo que Bento Prado Jr. chama "realismo da duração"36. adiante que é a formulação do problema, tanto da parte de realistas
como da parte de idealistas, que o torna insolúvel. Para escapar à
antinomia tradicional da representação, temos de considerar, ao
36. Prado Ir., B., ob. cit., p. 112. menos provisoriamente, que a representação se dá a partir do cam-
224 225

L
"111" '

4. EXTERIORIDADE E APORIA DA REFLEXÃO


III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

pela imagem central, nosso corpo, cujas variações elas seguem"


po das imagens, sem delas por enquanto buscarmos a gênese expli- (M.M.-21). Enquanto a filosofia pretender deduzir um sistema do
cativa. É a partir deste sentido vago de imagem que se constitui pri- outro, não conseguirá sair do interior da antinomia da representação.
meiramente o mundo como multiplicidade presente à consciência.
Mas o mundo da consciência empírica é um universo de solicitações: É preciso abandonar o postulado comum ao realismo e ao idea-
sendo a intencionalidade pragmática, a percepção é ao mesmo tem- lismo, que é o interesse especulativo da percepção, ou a intenciona-
po a escolha da ação possível. De forma que a objetividade se define lidade cognitiva da consciência empírica. Mantendo este postulado,
num primeiro momento pela relação ativa entre a consciência e as jamais conseguiremos explicar por que o sistema independente de
,. imagens das coisas. Como o que se encontra nesta etapa é o estudo imagens, que "guarda valor absoluto", torna-se necessariamente
da percepção como relação, posso elucidar o mecanismo perceptivo, objeto de uma determinada imagem, ou de uma imagem-sistema
posso principalmente alcançar-lhe o sentido, sem antes ter de solu- que se diferencia das outras apenas pela posição. Seria preciso atri-
cionar definitivamente o problema ontológico. A pressuposição da buir a esta posição um valor lógico que implicaria conferir à ima-
materialidade como substrato objetivo da atividade pode dar-se nes- gem-centro uma função constituinte. Se, por outro lado, insertamos
te primeiro momento através da definição de matéria como conjun- a objetividade cognitiva no sistema da consciência teremos de nos
to de imagens. "Chamo matéria o conjunto de imagens e percepção haver com o problema da correspondência entre consciência e ciên-
da matéria estas mesmas imagens relacionadas à ação possível de cia, no sentido dos dois sistemas de que falamos há pouco. Mas se
uma certa imagem determinada, meu corpo" (M.M.-l7). A organiza- consideramos que a consciência natural mantém com o mundo das
ção das imagens supõe uma imagem central, meu corpo (mais pre- imagens uma relação de atividade pragmática e não cognitiva, então
cisamente, meu cérebro), centro de ação e transmissor de movimen- reinserimos a relação no contexto natural da escolha consciente, isto
to enquanto refletor de estímulos externos a partir dos quais se ope- é, hesitante e a princípio indeterminada, de respostas a estímulos
ra o discernimento de reações que são os movimentos de interferên- externos em vista da melhor adaptação possível do organismo ao
cia nas imagens externas. Esta imagem central não possui outro pri- mundo circundante. "Em outros termos, o cérebro nos parece ser
vilégio senão o da posição, solidária da qualidade de discernimento um instrumento de análise em relação ao movimento recebido e um
que lhe é própria. A consciência da ação, sendo primeiramente cons- instrumento de seleção relativamente ao movimento executado"
ciência de ação possível, é sempre indeterminada, exceto nos casos (M.M.-26). Isto significa que não se pode dizer que o sistema nervo-
em que a reação é automática. Esta indeterminação é elemento ca- so produza representação ou mesmo que esteja essencialmente liga-
racterístico da percepção consciente e não existe naqueles organis- do a ela. O Essai já nos havia mostrado que movimentos moleculares
mos nos quais perceber e agir estão imediatamente identificados. não explicam as vivências psicológicas enquanto multiplicidade cons-
Como a imagem de mim mesmo enquanto centro de ação somente ciente. O que nos está sendo mostrado agora é que a consciência
se destaca das demais pela posição que ocupa em relação a elas, não representativa não deriva unicamente do movimento perceptivo
podemos fazê-la, enquanto tal, constituinte da representação. Por entendido como o trajeto da imagem à imagem percebida e depois
I'··· outro lado a relação ativa que a imagem-centro mantém com as à imagem objeto de ação. Se considerarmos portanto a percepção
.~: ,
demais que a circundam faz com que estas de alguma maneira afe- em sentido estrito, não existe continuidade entre ela e a consciência
tem aquela, o que é condiçãO da possibilidade e da realidade da ação. em sentido próprio, pois a exterioridade não pode produzir a interio-
Portanto temos de conceber dois sistemas, um em que as imagens ridade. As expressões consciência natural e consciência empírica, até
Ii. são puramente imagens; outro em que elas possuem uma caracterís- aqui utilizadas, referiam-se exclusivamente à descrição da relação
tica que é a de afetar a consciência (imagem-centro) e provocar res- ativa entre organismo e meio. Como explicar portanto a representa-
postas. "Ora, nenhuma doutrina filosófica contesta que as mesmas ção propriamente dita?
imagens possam fazer parte ao mesmo tempo de dois sistemas dis- Dissemos, no início, que a percepção pura seria a coincidência
tintos, um que pertence à ciência, e no qual cada imagem, estando instantânea e completa entre ser e ser percebido, o que daria a ima-
relacionada apenas consigo mesma, guarda um valor absoluto, outro gem na sua pura e simples presença, mas também na totalidade da
que é o mundo da consciência, e no qual todas as imagens se regram
227
226
III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 4. EXTERIORIDADE E APORIA DA REFLEMO

sua presença instantânea, que na verdade nunca significa uma ima- ção externa, ela contém um aspecto de alienação". No entanto, a
gem, mas o complexo do sistema no qual a imagem está inserida. A atividade de discernir já aponta para a espontaneidade, da qual só
determinaçâo perceptiva da imagem em si de direito seria a totalida- seremos inteiramente conscientes quando superarmos a nossa fini-
de da presença. Mas isto significaria a imagem determinando-se em tude instrumental. Assim, se é verdade que entre percepção e cons-
si. A representação se distingue da presença por introduzir um outro ciência representativa a diferença é apenas de grau, é certo também
nível ou uma outra modalidade de determinaçâo, aquela que pro- que a atividade espontãnea abre para a consciência a possibilidade
priamente pode ser entendida como negação. Entre a presença e a de mudar de direção e infletir a intencionalidade pragmática a tal
'L.'
representação se introduz a atividade da consciência do mundo exte- ponto que esta atividade, na plena posse de si, dissolva-se enquanto
rior que é o discernimento ou a seleção das imagens guiado pelo visar à exterioridade, transformando-se em atividade reflexiva que
critério do interesse. Interessar-se pelo mundo exterior significa as- encontrará na temporalidade subjetiva a realidade da duração. Mas
sumi-lo conscientemente nos seus aspectos interessantes e não na para isto será preciso que a memória, enquanto aporte efetivo da
sua totalidade; significa negar todos os aspectos desprovidos de in- subjetividade à constituição do mundo percebido, venha a aparecer,
por assim dizer, como a dimensão objetiva da reflexão.
teresse, o que equivale a diminuir a percepção, que de direito seria
do todo, mas que efetivamente é sempre parcial. Representar signi- Por que dizemos que a memória, enquanto aporte subjetivo à
fica limitar a presença. Não há portanto uma diferença de natureza percepção, seria a dimensão objetiva da reflexão? No plano da per-
entre representação e percepção, mas uma diferença de grau, ou se cepção pura, a memória cumpria um papel exterior: ela era o fio que
se quiser, de extensão do âmbito de relação entre o Eu e O Mundo. ligava as diversas instantaneidades, o contínuo presentificar-se da
"Perceber todas as influências de todos os pontos de todos os corpos consciência empírica nas coisas ou nas imagens exteriores à ima-
seria descer ao estado de objeto material. Perceber conscientemente gem-centro. A caracteristica de imagem, comum ao Eu e às coisas,
consiste antes de tudo no discernimento prático" (M.M.-48). Mas permitiu equacionar o problema da representação sem que tivésse-
dizer que a representação é a percepção diminuída não é o mesmo mos de optar entre realismo e idealismo, na exata medida em que a
que dizer que a representação nasce da percepção, e que portanto a percepção pura foi vista como a coincidência de direito entre o em
consciência nasce dos movimentos centrípeta e centrifugo pelos quais si e o para si no plano das imagens. Vimos também que a represen-
o cérebro registra o estímulo e aciona o mecanismo de ação sobre as tação é a percepção diminuída ou as imagens "selecionadas". Esta
coisas? É aqui que se mostra o valor da ficção metodológica da percep- seleção, este recorte que constitui efetivamente o mundo para a
ção pura, ou da pura consciência exterior. O mecanismo da percepção consciência, não é a negação pura e simplesmente quantitativa da
pura nos indica como seria a relação estímulo- resposta num instante totalidade do campo original das imagens. A negação é determina-
intemporal. Mas este presente absolutamente fixo não existe e a ção porque é escolha e como tal envolve uma contribuição subjetiva
presença é, na verdade, desenvolvimento temporal. Não existindo ima- da consciência que atua como critério para selecionar as ocasiões
gem absolutamente no presente e consciência absolutamente no pre- perceptivas nas quais esta contribuição se vai exercer. "É preciso levar
sente, a própria relação representativa se dá na temporalidade. E a
em conta que a percepção acaba sendo apenas a ocasião de lem-
atividade de discernimento, encontro dinãmico entre representante
e representado, nega O presente ao recortar originariamente no
37. "É verdade que toda consciência se 'acha' empenhada no mundo, que ela se
mundo pré-consciente ou pré-representado o mundo da representa- descobre em sua oposição a um mundo e que ela se faz contra a sua adversidade;
ção no qual e pelo qual a consciência se faz consciência das coisas. enquanto consciência-no-mundo, ela é essencialmente a seleção e a estruturação da
Ao selecionar as imagens para constituir o mundo para-si a cons- exterioridade, transformação da totalidade do ser-em-si em sistema instrumental, em
ciência guarda implicitamente a dimensão reflexiva de sua atividade mundo. Mas, este sair fora de si mesmo, que é o nascimento do mundo, implica uma
alienação da consciência, que jamais abandona o projeto de uma reinteriorização
enquanto aporte subjetivo essencial à presença da exterioridade. total da exterioridade - a morte do mundo - onde a consciência, soberana, seria
Imagem entre imagens, ela em princípio só é consciência do objeto.

I
pura referência a si mesma, sem a mediação da referência ao objeto" (Prado Junior,
Como esta intencionalidade é pragmática, ou seja, constitui a rela- 8.. ob. cit.. pp. 114·5).

228 229

L
Ir

III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 4. EXTERIORIDADE E APORIA DA REFLEXÃO

brar" (M.M.-68). Isto significa que a lembrança se mistura constan- principalmente, e sua relação com a percepção revelam também a
temente com a percepção, podendo mesm'o haver uma substituição função da memória na percepção, mostrando a razão de ser da con-
total da percepção pela lembrança. Por isto a percepção é represen- junção e o modo de operação da compatibilidade sintética de que
tação: nunca vemos o mundo pela primeira vez, sempre reconhece- falamos há pouco. A contribuição qualitativa da memória à percep-
mos as coisas e isto é condição do agir, na medida em que estabiliza ção consiste na conscientização das lembranças que complementam
a situação do sujeito que percebe. Mas exatamente por ser a percep- a percepção, mas que o fazem de tal maneira que a ação esboçada na
ção pura caracterizada pela atualidade e a lembrança pela inatuali- relação perceptiva se insira adequadamente no real. Assim como é
1,1". dade, existe uma diferença de natureza entre as duas. A lembrança é sob o critério da eficácia que se dá a seleção das imagens, assim
a representação do objeto ausente e esta ausência é feita da multipli- também a seleção das lembranças ocorre sob o signo da eficácia
cidade das presenças pontuais do objeto na percepção. A lembrança prática. O reconhecimento do mundo que a memória permite faz
não se relaciona com uma percepção mas com uma espécie de sín- com que a conjunção percepção/lembrança se constitua como in-
tese a posteriori de diversas percepções. Dessa forma, a lembrança serção do Eu no mundo circundante, mantendo a atenção à vida e
não é uma percepção mais fraca, ou uma impressão depositada nas relegando as lembranças não "utilizáveis" ao inconsciente. O cére-
circunvoluções cerebrais à espera de um estímulo que a reavive. A bro tem portanto a função de "ocultar" a maior parte das lembranças
diferença entre lembrança e percepção pode também ser vista pelo e de deixar que venham à consciência aquelas que se relacionam
lado da função: a lembrança (o passado) "é por essência aquilo que praticamente com a inserção perceptiva no presente. O cérebro não
já não age", enquanto a percepção (presente) é "agente" (M.M.-71). "armazena" lembranças; ele apenas as libera funcionalmente, per-
Tal diferença de natureza é essencial para compreender a compati- mitindo o ajustamento às situações exteriores.
bilidade sintética entre estes dois elementos na percepção real. A
objetividade pura seria a eliminação da consciência como memória Mas se abordamos a memória não pela sua função, mas por aquilo
para que, na imagem instantânea, percepção e percebido coincidis- que ela é, em si mesma, podemos dizer que ela é a consciência na
sem inteiramente. É a memória, aporte subjetivo à percepção, que sua própria vida interna. É claro que a memória somente se veicula
permite visar ao objeto como tal, o sujeito destacando-se pela con- na atualidade de uma percepção. Mas a diferença de natureza que
tração temporal que a consciência opera na conjunção percepção/ existe entre percepção e lembrança pode nos autorizar a pensar a
lembrança. A possibilidade da consciência do que não é presente memória no seu teor puro, tal como pensamos antes a ficção da
revela a identidade mais íntima do Eu. Mas a consciência do que não percepção pura como exterioridade completa. A memória seria neste
é presente é consciência do passado, do que já foi presente. A pos- caso a interioridade em si, ou seja, a consciência propriamente dita.
"
sibilidade da conjunção percepção/lembrança repousa justamente Se o que define a consciência na sua independência do mundo das
na continuidade entre passado e presente. Não é possível traçar uma imagens externas é a autonomia da interioridade, acedemos a esta
,
I.: linha nítida entre o passado e o presente, pois mesmo aquilo a que dimensão autônoma da consciência através da memória. Em Berg-
':11:., denominamos presente já envolve sempre seqüência temporal - a son a elucidação da memória é a prova experimental da autonomia
instantaneidade pura sendo apenas uma ficção. "( ... ) nossa vida in- do espírito. Assim se completa o trabalho iniciado no Essai sur les
terior é alguma coisa como uma frase única, começada no primeiro Données Immédiates: neste livro, a teoria das multiplicidades nos
despertar da consciência, frase semeada de virgulas mas nunca cor- havia levado a conceber a multiplicidade qualitativa da consciência
tada por pontos. E por conseqüência creio também que nosso pas- como o desenrolar temporal e criativo das vivências, o que culmina-
sado está totalmente aí, subconsciente - isto é, presente a nós de tal va na constatação da indeterminação constitutiva do ato livre; em
maneira que nossa consciência, para que ele se lhe revele, não tem Matiere et Mémoire vemos a consciência na experiência espiritual de
necessidade de sair de si, nem de acrescentar a si mesma algo estra- uma de suas funções essenciais, a memória, pela qual o espírito tem
nho: para aperceber-se distintamente de tudo o que ela contém, ou experiência de si. E é bem uma experiência, na medida em que já a

IL
melhor, de tudo o que ela é, ela só tem de afastar um obstáculo, de atividade de discernimento no campo empírico das imagens anun-
levantar um véu" (E.S.-57). A consciência definida como memória, cia, enquanto atividade, a dimensão espontânea do espírito. A partir

230 231
1II - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 4. EXTERIORIDADE E APORIA DA REFLEXÃO

daí. quando chegamos a ver que a memória é condição ativa desse próprio movimento e os toma como partes fixas pelas quais a cons-
discernimento. constatamos a sua face interna e atingimos a pos- ciência superficial (discursiva) organiza o pensamento como articu-
sibilidade interna de exteriorização de si no plano da atenção à vida. lação. Isso já é um início de exteriorização. que se cumprirá plena-
Isso significa que compreender a autonomia do espírito. recusar a mente na relação ativa da consciência empírica com o mundo que a
concepção da consciência como fosforescência dos movimentos ce- rodeia e que solicita ações. A alienação da consciência perceptiva
rebrais. é ao mesmo tempo compreender o ponto e a modalidade de nas imagens que a rodeiam tem sua condição de possibilidade no
inserção do Eu na exterioridade. Assim se supera a antinomia da movimento de exteriorização da consciência em relação a si mesma.
representação. na medida em que a lembrança não é percepção que se dá na passagem do Eu profundo ao Eu superficial. Portanto
enfraquecida nem a percepção é a lembrança reavivada. Dado o quando a consciência "reflete" sobre seus conteúdos ela não se en-
campo de imagens. a consciência está em contato com ele através da contra verdadeiramente a si mesma. mas apenas a sua face que está
estrutura mista. percepção/lembrança. cujos termos só de direito voltada para as coisas ou para as imagens exteriores. Por isso disse-
podem ser separados. "Mas o cérebro. justamente porque extrai da mos no início que a consciência natural relaciona-se consigo mesma
vida do espírito tudo o que ela tem de praticável em movimento e de enquanto natural. na medida em que a interioridade é condição de
materializável. justamente porque constitui assim o ponto de inser- exterioridade. Mas ela é. se assim se pode dizer. uma pseudo-interio-
ção do espírito na matéria. assegura a cada instante a adaptação do ridade e não é. de nenhuma forma. a dimensão da reflexão profunda.
espírito às circunstâncias. mantém sem cessar o espírito em contato Como o pensamento no seu estrato mais autêntico é movimento.
com as realidades" (E.S.-47). direção. força. criação. o Eu. "essa coisa que transborda o corpo por
todos os lados e que cria atos criando-se sempre de novo a si mes-
Mas. se a vida consciente ultrapassa a vida cerebral. a vida cons- ma" pode "tirar de si mesma mais do que contém. devolver mais do
ciente ultrapassa também de alguma maneira a si própria. Focalize- que recebe. dar mais do que tem" (E.S.-31). A razão daquilo que
mos um pouco o que poderia ser chamado de aporia da reflexão no chamamos aporia da reflexão é a impossibilidade de o espírito cap-
pensamento de Bergson. Em que consiste propriamente a dimensão tar-se num momento. num primeiro momento. em qualquer de seus
interna da consciência? Primeiramente. sem dúvida. nos conteúdos. momentos. na medida em que qualquer "instante" já seria uma in-
pensamentos e sentimentos que constituem as vivências do Eu. ar- terrupção artificial no fluxo do pensamento. Mais do que isso. não há
ticuladas entre si. Tomemos por exemplo as idéias que estão no es- como pôr uma realidade que seja ao mesmo tempo atividade: mes-
pírito: elas se articulam entre si na exata medida em que a consci- mo a identificação entre a atividade e o princípio de atividade já
ência se fixa em cada uma delas enquanto termos de uma articula- significaria congelar em algum momento uma continuidade que é
ção. Nesse sentido o pensamento é um discurso interior e. enquanto em si e por si. Vimos que em Fichte existe uma posição absoluta do
tal. escande o movimento do pensamento no seu contínuo vir-a-ser. Eu absoluto e que nesse movimento a reflexão encontra seu próprio
"(".) as idéias correspondentes a cada uma das palavras (desse dis- foco originário. na medida em que encontra a forma da reflexão. Mas
curso interior) são simplesmente representações que surgiriam no a atividade. como bem notaram os românticos. é um princípio: o que
espírito a cada instante do movimento do pensamento se o movi- significa. para Schlegel. algo como um realismo formal da subjetivi-
mento se detivesse" (E.S.-45). A ação de escandir é algo que se aplica dade. Em Bergson. no que concerne ao pensamento. qualquer fixa-
ao pensamento tendo em vista a necessidade de pontualizar idéias ção de realidade é abstração do movimento. A reflexão só pode dar-
como formas mentais que possibilitam a articulação. Mas o movi- -se. em conseqüência. nos termos do movimento do pensamento:
mento enquanto tal é anterior à articulação. é uma direção e não coincidência da atividade consigo própria. Tal atividade difere do
uma sucessão de pontos fixos. A idéia. tomada em si mesma e inde- discernimento. que se dá no plano da consciência empírica. mas ao
pendente do seu conteúdo representativo. já é sempre metáfora do mesmo tempo a possibilita. pois é a memória. inscrita no movimen-
pensamento. na exata medida em que o discurso interior é metáfora to interior do espírito. que subsidia as escolhas de imagens presentes
do pensamento enquanto movimento. A consciência como que re- na conjunção percepção/lembrança. ou na percepção objetiva. Mas
corta. a partir de sua dimensão mais profunda. segmentos de seu podemos conferir um significado preciso à expressão: coincidência

232 233
I~~J.•
I III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 4. EXTERIORIDADE E APORIA DA REFLEXÃO

da atividade consigo própria? Não podemos esquecer que esta ativi- circundantes. A consciência como pura interioridade seria a indeter-
dade é criadora; o espírito tira de si mais do que contém, o desenro- minação na sua máxima indeterminabilidade, se nos é permitida a
lar temporal é o advento do novo. É um movimento que está, portan- expressão. Mas não podemos dizer que, no plano da indeterminabi-
to, sempre adiante de si mesmo. A imprevisibilidade constituinte do lidade máxima, a consciência, coincidindo consigo mesma, coincidi-
desenrolar temporal faz com que não haja um cenário do pensamen- ria com um absoluto. Se por um lado podemos afirmar que o método
to. Como a criação é engendramento da forma pelo conteúdo, é como para atingir o espírito em sua autonomia foi a progressiva indetermi-
se a consciência se fizesse de novo a cada momento. Isto nos leva a nação da consciência, trajeto que nos fez regredir da finitude instru-
•• um paradoxo intrínseco à aporia da reflexão: o contato da consciên- mental da consciência-do-mundo para a dimensão da interioridade
cia se fazendo consigo própria é o contato com algo que ainda não é. pura, por outro lado o que atingimos assim não foi um Eu-objeto,
Na medida em que qualquer conteúdo é por princípio uma interrup- mas direção e movimento em sentido puro. O método portanto abre
ção do movimento, como se pode falar mesmo de contato intuitivo a dimensão da consciência, mas não apreende a subjetividade. Por
na ausência de qualquer formação objetiva? Como posso falar de isso é que se pode dizer que refletir é indeterminar. A indetermina-
subjetividade se o sujeito profundo é sempre aquilo que está para ção provém da abertura infinita da subjetividade. Em Schlegel a ques-
ser? A analogia com a noção de projeto não nos parece caber nesse tão aparece como a contradição inevitavelmente presente na relação
caso, na medida em que esta noção implica um movimento de lan- entre consciência e infinito, que não é contradição entre sujeito e ob-
çar-se da subjetividade para o futuro a partir de uma situação que jeto na medida em que na própria consciência existe o movimento de
deve ser definida em parte pelo modo futuro do ser do sujeito. Ora, conexão infinita. "Aquele que tem o sentido do infinito e sabe onde
o movimento do pensamento enquanto ser (vir-a-ser) da consciên- quer chegar (... ) quando se exprime (... ) formula puras contradições38 ."
cia não pode ser visto em Bergson a partir de uma situação, que só Em Bergson, a relação entre reflexão e indeterminação é que nos faz
poderia ser uma fixação retrospectiva do sujeito em algum momento. dizer, por ex., que a consciência é o que ela ainda não é. A determinação
da subjetividade enquanto interioridade pura somente seria possível se
Esta dificuldade de pensar a subjetividade como movimento puro pudéssemos unir intuição e conceito, como no projeto especulativo
parece levar o movimento de dessubstancialização até a anulação de de Schlegel39 • Mas já vimos que mesmo como objeto de pura intui-
qualquer referência subjetiva, o que em princípio ameaçaria a pró- ção a subjetividade não é apreensível.
pria identidade do sujeito. Como a reflexão é a apreensão da identi-
dade profunda da consciência consigo mesma, a ausência de auto- Na verdade se poderia dizer que o assim chamado idealismo
. referência poderia ser entendida como a dissolução da consciência. subjetivo parte de um realismo da subjetividade na medida em que
Não seria uma dissolução lógica, como no caso da regressão ao in- considera o Eu ou como princípio de realidades ou como princípio
!:! finito, mas uma dissolução ontológica: a perda da referência real. de conhecimento de realidades. A exigência do ponto de partida
Vimos que em Schlegel, o movimento infinito de reflexão está de absoluto conduz inevitavelmente ou à subjetividade absoluta ou à
1:1 !
alguma forma articulado pela conexão infinita de conteúdos de pen- objetividade absoluta. É essa alternativa que Schlegel deseja evitar: a
I! I· samento, com a consciência efetivamente presente em cada um deles. escolha entre Fichte e Spinoza. Esta escolha só pode ser evitada se,
Numa linguagem bergsoniana, diríamos que o movimento de cone- de alguma maneira, separamos o princípio da origem. O princípio
xão é segundo relativamente aos conteúdos conectados. Para que o pode ser entendido como o início da filosofia enquanto condição do
movimento fosse primeiramente dado, a conexão em si teria de pre- saber: por isso o princípio tem de ser incondicionado. Mas a origem
ceder como movimento real (e não como forma) os conteúdos conec-
tados. Se entendermos tais conteúdos como determinações intuiti- 38. SchlegeI. F., Atheneum, frg. 412 (ed. Lacoue~Labarthe). Claudio Ciando, Friedrich
vas da reflexão no seu movimento, teríamos de dizer que em Bergson Schlegel, Crisi della Filosofia e Rivelazione, Mursia, Milão, 1984, assim comenta esta
questão: "A contradição suprema. que gera todas as outras, é a contradição entre
existe uma relação problemática entre reflexão e indeterminação. Já absoluto e finito ou, mais precisamente, entre a necessidade de pensar a unidade do
vimos como a consciência, mesmo no seu nível empírico, é indeter- absoluto e finito e a impossibilidade de detenniná-la numa fórmula adequada" (p. 95).
minação relativamente às ações-respostas ao estímulo das imagens 39. Ciancio, C., ob. cit., pp. 85-86.

234 235
In - INTUlçAO E EXPRESSÃO
4. EXTERIORIDADE E APORIA DA REFLEXÃO

é, no limite, o ponto indiferenciado da reflexão que se constitui no o idealismo e o realismo, na medida em que se encontra no absoluto,
seu próprio movimento. Schlegel fala em "ponto de indiferença" entre vê-se aí sempre como dilacerada e, o acesso à verdade será sempre
a consciência e o infinito. Assim concebida, a origem não é condição, marcado pela insuficiência, pelo fato de que nunca haverá inteira
e o problema do in condicionamento não se põe mais no início da consciência da síntese infinita. Mas isto também indica que o movi-
filosofia. "Como início encontra-se não o incondicionado, mas o ori- mento reflexivo operado pela subjetividade tem caráter ontológico
ginário; (... ) não se trata de um ponto absoluto, um ovo do universo. enquanto de direito é o movimento da auto-reflexividade do ser, do
A consciência do infinito é a raiz de todo saber. A consciência somen- absoluto enquanto tal. A consciência está no absoluto e confunde-se
"~o te se pode pensar como infinita e o infinito somente como consciên- com ele, mas nunca poderá ter dessa coincidência a plena posse
cia"." É o caráter infinito do saber filosófico que impede que ele se intelectual, a "consciência". É próprio de uma cultura dilacerada re-
condense numa intuição intelectual imediata e totalizante; por isso presentar a totalidade sob a forma da particularidade, e a filosofia
o absoluto não é apreensível no sentido de ser objeto de uma intui- como expressão cultural não escapa dessa característica'l.
ção intelectual. Isto não nos impede de conceber a totalidade, desde
que a concebamos como conexão infinita, como realização e não A indeterminabilidade do conteúdo da reflexão em Bergson tam-
como o realizado. No texto citado acima, vimos que a consciência e bém deriva da impossibilidade de captar o movimento como conteú-
o infinito se condicionam reciprocamente, mas o índice de tal reci- do; por isso o pensamento estará sempre adiante da consciência do
procidade é a infinitização como processo. Assim a filosofia começa pensamento. E, tal como em Schlegel, isto nos leva a considerar o
sempre "no meio" porque a reflexão desde sempre já se move na problema da inserção ontológica da subjetividade. A impossibilidade
totalidade cuja síntese é preciso elevar à consciência, embora mes- de captar pela reflexão o movimento como conteúdo é a impossibi-
mo esta síntese já esteja implícita na totalidade concebida como re- lidade de captar o tempo como princípio no sentido de posição ab-
ciprocidade entre consciência do infinito e infinito da consciência. A soluta. O caráter absoluto do tempo só será autenticamente compre-
impossibilidade de determinar a forma infinita da filosofia é também endido se reunirmos as noções de absoluto e vir-a-ser. Mas o intelec-
a impossibilidade de determinar a forma da consciência do infinito. to só concebe o devir como absoluto identificando o devir com a
Em nenhuma das intuições reflexivas correspondentes aos diversos totalidade do vir-a-ser, dada a princípio e de direito como completude
conteúdos conectados essa forma aparecerá, pois isso significaria ideal. O que a filosofia ganha ao isolar a subjetividade como interio-
identificar a forma absoluta do movimento reflexivo com um dado ridade pura é a libertação das injunções intelectuais do devir natu-
momento deste próprio movimento. A questão que se proporia aqui ral, em que a natureza se apresenta como articulação e o pensamen-
seria a da conciliação da in completude do sistema infinito com o to da natureza como sistema articulado de representações conceituais.
caráter imediato da verdade (pensamento=intuição). O problema não A autonomia da consciência dá a possibilidade de superar a finitude
• tem solução porque ele constitui na verdade o conteúdo interno da instrumental traduzida na lógica naturalista do saber pragmático.
relação entre a consciência e o infinito. Mas ele nos indica, por outro Tendo acesso direto a si mesma, a consciência tem acesso ao ser
lado, que existe em Schlegel uma relação problemática entre o cará- como temporalidade, constatado na experiência que a consciência
"'<: ;
ter dado da verdade e sua forma de realização. Esta realização é in- tem de si enquanto memória e enquanto continuidade entre presen-
finita, mas a interminabilidade define a verdade. A dificil compatibi- te, passado e futuro. Mas identificar a consciência com a temporali-
lidade entre o dado e o processo, que aqui é exigida, deita raízes na dade não significa isolá-la da natureza entendida como espaço ou
dilaceração da consciência finita que é ao mesmo tempo revelação do justaposição. O isolamento da consciência é idealismo metodológico
absoluto, e é assim que o infinito está sempre adiante do movimento e a inserção ontológica da subjetividade corresponde à realização do
reflexivo que tenta compreendê-lo. Assim a consciência que supera movimento de acesso ao ser que se iniciou na dimensão interna da
consciência. Indício dessa necessidade de realização é a impossibi-
lidade de captar plenamente pela reflexão a região da subjetividade

I
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40. "( ... ) a dualidade de fato aspira a uma síntese, mais ainda, move-se já numa
síntese, mas o terceiro termo não é dado (... )" (Ciancio, C., ob. cit., p. 86).

236
41. Id .• ibid., pp. 98-99.

237
5. CONSCIt:.NCIA E MOVIMENTO DA INTERJORIDADE
III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

enquanto instância específica e delimitada. Não pode haver idéia. necessita. pois. a consciência realizar para. adiantando-se a si própria.
nem mesmo (assim o cremos) intuição determinada da subjetivida- encontrar não o mundo constituído. mas a realidade constitutiva do
de porque o Eu realmente insere-se no todo. do qual a reflexão tenta mundo e de si própria. algo que. para além da interioridade subjetiva
separá-lo. mas num movimento inevitavelmente incompleto. A aporia e da exterioridade objetiva. se dê como O movimento total ou tempo-
da reflexão deriva de que o sentido do Eu é sua comunhão íntima ralidade absoluta? Vê-se bem que aqui a noção tradicional de funda-
com a totalidade enquanto tempo. mais precisamente enquanto mento em nada nos auxilia. Pois não se trata de abstrair a partir da
presença subjetiva ou da presença objetiva para encontrar a origem de
" .. duração. Justamente porque a realidade da consciência consiste em
durar. ela não pode ser isolada da duração. É assim que a questão uma continuidade que ligasse o exterior e o interior - o que seria a
ontológica. no sentido de estrutura e gênese da realidade. se impõe construção intelectual de um presente contínuo -. mas de coincidir
na seqüência do tratamento da questão da subjetividade. sobretudo com um movimento verdadeiramente originário. que não se define pelas
após o problema que denominamos aporia da reflexão. Como em realidades que interliga. mas pelo seu próprio caráter movente. O tem-
Bergson a ontologia é teoria da vida. as relações entre as partes do po não pode ser um movimento abstraído a partir das dimensões tem-
todo ("consciência" e "natureza". se se mantiver esta separação) se poraís. mas estas são realidades contingentes que se desdobram no seu
constituirão a partir da compreensão da gênese da totalidade nas fluir. Portanto. se o absoluto é movimento. o movimento da consciên-
suas partes. cia apenas nos indica a sua índole. não nos revela a plenitude de sua
realidade. É preciso então procurar no estofo constitutivo deste mo-
vimento considerado na sua mais profunda generalidade originária
5. CONSCI~NCIA E MOVIMENTO DA INTERIORIDADE aquilo que nos vai revelar o mais íntimo do seu teor qualitativo: a
dimensão em que ser e razão de ser coincidem inteiramente.
Vimos que o movimento da reflexão no interior da subjetividade
Continuaremos aí no plano da reflexão. pois tal realidade. se
se revela necessariamente incompleto porque o próprio movimento
do pensamento faz com que a consciência esteja sempre adiante de puder ser conhecida. só o será imediatamente. Mas um conhecimen-
to deste tipo somente terá um valor diferente do conhecimento dos
si mesma. Isto significa. de um lado. que sua realidade é o seu fluir;
mas significa também que este fluir é um movimento em direção a princípios abstratos da filosofia tradicional se apresentar-se a nós
um futuro aberto. cuja construção é. fundamentalmente. criação. Esta rodeado de positividade. se possível dotado de positividade. Por isso
direção do movimento consciente seria a exterioridade? Estaria a rea- o conhecimento do princípio não pode ser o princípio do conheci-
lização criadora da consciência fora de sua própria interioridade? mento. Dele nos aproximaremos. num movimento de concretização.
Ora. já vimos que a exterioridade enquanto objeto de intencionalidade de realização. em vez de partirmos dele como de uma idéia inflada
~ :~ \
pragmática é o universo da ação. Este universo constituído pela ati- de objetividade. Seguindo o método que prescreve a mediatidade do
I~ '; 'i i vidade de coordenação vital da percepção e da inteligência é um conhecimento imediato. é necessário primeiramente interrogar cri-
mundo em que a imagem externa e a interioridade da memória ticamente o recorte da realidade que nos é dado pelo senso comum
:':!! i . e pela ciência e. a partir daí. problematizar dados e resultados para
encontram-se como negatividades que produzem negatividades. a
representação consciente sendo o recorte oriundo da subtração do que eles nos encaminhem ao princípio. Tal interrogação envolve antes
presente e da subtração do passado. Não será. pois. no âmbito desta de mais nada um questionamento do recorte da materialidade cien-
presença empobrecida que a consciência desenvolverá seu poder tífica no nível da constituição da sua objetividade que repousa na
criador. Pelo contrário. o mundo prático se caracteriza pelo oculta- identificação metodológica entre fisico-químico. biológico e psicoló-
mento da totalidade. pela interrupção do fluxo do tempo. Mas no gico. A crítica dessa identificação metodológica nos permitirá sepa-
âmbito da subjetividade. por outro lado. embora possamos nele cons- rar os elementos que a compõem através da utilização do critério da
tatar o movimento puro da temporalidade subjetiva. não encontra- temporalidade ou duração. A partir dessa dissociação entre o inerte
mos um absoluto na plenitude de seu movimento realizador. pois o e o vivo. que nesse estágio é uma dissociação também metodológica.
encontramos sempre como que aquém de si próprio. Que movimento criamos as condições para a reconstituição teórica do movimento
11,

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IH - INTUlÇÀO E EXPRESSÃO 5. CONSClf.NClA E MOVIMENTO DA INTERIOR!DADE

interno da realidade na produção das formas de vida, que não seria tos ou partículas que se deslocariam explicando assim a mudança
apenas a remontagem externa da sucessão das formas, mas a com- das aglutinações. Levamos a análise tão longe quanto for necessário
preensão do movimento de formação, que não é outra coisa senão o para explicar a mudança através do que não muda. "Descemos as-
trajeto da vida. O entendimento deste processo deverá nos encami- sim até as moléculas de que são feitos os fragmentos, até os átomos
nhar para a compreensão do seu princípio como realidade geradora constitutivos das moléculas, até os corpúsculos geradores dos áto-
de realidades, fundamento dinâmico e imanente do devir, ou do ser mos, até o 'imponderável' no qual o corpúsculo se formaria por sim-
como processo. ples turbulência. Conduziremos enfim a divisão ou a análise tão lon-
O que até aqui foi dito é suficiente para nos indicar que existe ge quanto necessário. Mas só nos deteremos diante do imutável"
uma continuidade metodológica entre Données Immédiates, Matiere (E.C.-8). Queremos indicar que a imutabilidade e a sistematicidade
et Mémoiree Évolution Créatrice. No primeiro se mostrou que a mul- por aglutinação são solidárias da reversibilidade do movimento. Pois
tiplicidade qualitativa da consciência deve ser entendida como inte- se este consiste apenas no intercâmbio das partes, nada impede que
rioridade recíproca, interpenetração das dimensões temporais numa as mesmas retornem - ainda que apenas teoricamente - às suas
continuidade heterogênea, da qual o determinismo está excluído no posições originais. Dessa maneira movimento e mudança tornam-se
nível da consciência profunda; no segundo a indeterminação ativa totalmente explicáveis pelo cálculo de posições, qualquer que seja o
da consciência foi positivamente constatada através do estudo da sentido que se dê ao movimento num sistema. Assim como o retorno
memória que revelou os planos interligados da intensidade da cons- a configurações anteriores é sempre possível, a previsão pelo cálculo
ciência, configurando a autonomia da interioridade e a efetividade de futuras configurações a partir das atuais é igualmente possível.
da reflexão real, modo de acesso ao ser pela autoconsciência; a Evo- Ora, o que caracteriza a passagem do tempo é a irreversibilidade;
lução Criadora mostrará que o acesso ao ser pela interioridade é portanto o tempo está ausente da explicação dos sistemas materiais
reflexão incompleta porque se, por um lado, a subjetividade é cons- que a ciência isola no procedimento de objetivação. Ou, se se faz
ciência, por outro lado, ela é o modo subjetivo da "consciência em presente, é na forma de tempo abstrato, simples variável que me
geral" (E.C.-187l que, do ponto de vista objetivo, é a chave para a serve para referir, no cálculo, as posições relativas dos elementos
compreensão da evolução como criação. Se a compreensão da pos- entre si. As diversas configurações estariam vinculadas entre si pelas
sibilidade da reflexão ou o entendimento da interioridade passam de "simultaneidades" ou "correspondências" dos elementos submeti-
certa forma pela "exterioridade", pela explicação do modo subjetivo dos à variável temporal. Podemos, além do mais, dividir o movimen-
de consciência como produto da história natural, isso ocorre porque to temporal tanto quanto quisermos, intercalando "instantes" que
a interioridade enquanto consciência humana é um modo de reali- seriam imutabilidades constitutivas da mudança, números abstratos
!:f zaçâo criadora do princípio interno do desenvolvimento formador da num sistema de relações. O "curso do tempo" é considerado como
vida. Assim, a passagem de Matiere et Mémoire à Evolution Créatrice uma linha que pode ser infinitamente divisível, o que resultaria num
r:; I
não é a expansão explicativa do princípio psicológico: é simplesmen- movimento feito de imobilidades como na aporia de Zenão.
I~" . te a posição do âmbito da interioridade no círculo mais vasto do Certamente continuamos a falar de sucessão mesmo em relação
processo vital entendido como realização do espírito. a sistemas materiais. Mas desta sucessão está ausente o movimento
Retornemos ao questionamento do recorte material da objetivi- de passagem de um instante a outro, que é o tempo no seu teor
dade científica, que é a primeira etapa da compreensão dessa reali- específico, e consideramos apenas os pontos imóveis que são as re-
zação. Procuramos esgotar o conhecimento dos sistemas materiais ferências do movimento. Entretanto, mesmo o movimento no mun-
através da análise. Ou consideramos que o sistema e os elementos do material é vivido, sob certo aspecto, como duração. Enquanto
do sistema permanecem imutáveis, ou entendemos que, se há mu- espero que o açúcar se dissolva na água (E.C.-9-10l, vivo o tempo da
dança, esta se dá por influência de força externa que provoca deslo- minha impaciência, o tempo da minha consciência "esperando", que
camento das partes, que em si mesmas permanecem imutáveis. Se não posso alongar ou encurtar, cujas "partes" não posso "relacionar"
as partes "aparentemente" mudam, buscamos nelas mesmas elemen- nem compor e decompor segundo a minha vontade: isto deveria me

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 5. CONSCI~NClA E MOVIMENTO DA INTERIORIDADE

alertar para a identificação que existe entre o processo físico e a vi- A interrogação crítica do recorte cientifico nos mostra, portanto,
vência do tempo, para a coincidência entre minha duração e a dura- que o mecanicismo inerente ao tratamento da realidade como con-
ção das coisas que estaria como que apontando para o fato de que só junto de sistemas isolados e matematicamente rei acionáveis consti-
artificialmente posso separar o açúcar, a água e a própria dissolução, tui uma forma de conhecimento que é ao mesmo tempo um oculta-
já que tudo comunga na mesma temporalidade que seria a duração mento do objeto, uma vez que despreza o fluxo temporal como a
universal. Claro, as imagens externas que minha percepção recorta qualidade mais específica do ser vivo. Isto nos indica também que a
estão marcadas pela exterioridade recíproca e, do ponto de vista prag- vida é movimento que tem uma direção definida na sua generalida-
mático, há um fundamento real para considerá-las isoladas ou isolá- de: crescimento, amadurecimento, envelhecimento, cuja direção
veis. Mas, mesmo na esfera da materialidade externa, o isolamento aponta para uma duração que é uma síntese entre aquisição e con-
nunca é completo: a própria ciência considera que todos os objetos servação, inexplicável em termos puramente mecânicos. "A evolução
estão submetidos a influências, que posso considerar ou negligenciar do ser vivo, como a do embrião, implica um registro contínuo da
segundo a comodidade do recorte objetivo. Essas influências formam duração, uma persistência do passado no presente, e conseqüente-
de direito uma rede de dependência recíproca que se estende à to- mente ao menos uma aparência de memória orgânica" (E.C.-19). O
talidade do que posso abarcar. Se desconsiderarmos o recorte da conhecimento do ser vivo requer algo mais do que a articulação sis-
percepção e a articulação da inteligência, o plano da intencionalida- temática de elementos sobre os quais o tempo não incidiria; requer
de pragmática e o nível da objetividade exterior, teremos de admitir, o conhecimento "do próprio intervalo da duração", da passagem do
ao menos como provável, uma "interação universal" em que a indi- tempo, de uma atividade dependente da "memória orgânica". Mas
vidualidade dos objetos seria como que reabsorvida (E.C.-H). Na isso não significa que a vida em geral possui atributos que dantes
verdade, a isolabilidade é uma "tendência" material que a ciência viramos como pertencentes à consciência?
prolonga até as últimas conseqüências para que os objetos e os sis- A memória orgânica num organismo individual é o que assegura
temas de objetos possam ser tratados através dos procedimentos de e possibilita a identidade "orgânica" através das mudanças que con-
articulação. Nos casos dos reinos vegetal e animal. o simples fenô- tinuamente se operam. A conservação do passado é condição da
meno da reprodução, enquanto reconstituição de um novo organis- existência, da adaptação "criativa" ao presente, numa continuidade
mo a partir de uma parte separada do outro, já nos indica que não que a própria heterogeneidade das mudanças só faz afirmar. Se a
existe individualidade total, mas que individuação e integração são mesma relação entre continuidade e heterogeneidade, cujo índice
duas tendências que convivem indissoluvelmente. Os fenômenos de comum é a criação, puder ser constatada na evolução das espécies,
regeneração, a dissociação dos organismos unicelulares são outros então existirá uma base real para que a vida seja considerada como
tantos exemplos de integração entre unidade e diversidade. Os cor- um movimento cujas formas de vida seriam as referências do proces-
pos organizados são testemunhos constantes desta integração, da so, resultados sempre provisórios, instantes cristalizados de um flu-
possibilidade natural do que é um tornar-se vários. Mas esse é ape- xo que se confunde com o próprio tempo da história natural. Se,
li " mais do que isso, o movimento revelar na continuidade heterogênea
nas o caso-limite e, por assim dizer, quantitativo, da inseparabilidade
entre individualidade e pluralidade. Se considerarmos cada organis- de suas formas um princípio interno que é uma direção, então esta-
mo em si, veremos que a mudança, o envelhecimento, por ex., é sua remos também diante de algo como um movimento puro, de uma
caracteristica mais marcante, presente em todas as escalas da evolu- formação que não se esgota nas suas formas, de uma produção que
ção. Seja nas fases bem marcadas da vida dos animais superiores, se define pelo seu próprio processo, como uma finalidade sem
seja no processo de esgotamento vital dos organismos inferiores, o terminalidade. A interrogação crítica dos fatos cientificos encontra
que vemos é que tudo que vive é marcado pelo tempo: assim o são, na teoria lamarckiana do transformismo o terreno favorável para uma
na própria origem dos organismos, as células que os compõem. "Onde interpretação adequada dos dados. Na verdade o transformismo é
quer que alguma coisa viva, há, aberto em alguma parte, um registro uma espécie de idéia geradora implicitamente presente em toda clas-
em que o tempo se inscreve" (E.C.-16). sificação natural. A organização dos seres vivos em grupos e subgru-

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 5. CONSCI~NCIA E MOVIMENTO DA INTERIORIDADE

pos sob o critério das semelhanças traz inevitavelmente o problema gânica com os sistemas puramente materiais oculta o movimento e
da origem das variações. Para uma filosofia da vida que pretende o princípio do movimento. Isto significa que o princípio de organi-
reconstituir. tanto quanto possível. o movimento de evolução e não zação ontológica do mundo da vida é de ordem interna como o psi-
apenas contentar-se com uma rearticulação das formas evoluídas. a col6gico. A análise. que parte do todo para reconstituir as suas partes
variação significa sobretudo o movimento vital se transmitindo atra- e a própria interação. atingirá apenas relações solidificadas e nunca
vés das formas de vida. não no sentido de fixar-se total ou mesmo a relação como movimento em ato. As formas que surgem ao longo
parcialmente em cada uma delas. mas utilizando-as como instru- do movimento da vida são vistas como causadas pelos seus antece-
'" mento de um processo inacabável. do qual são visíveis exatamente dentes apenas na retrospecção analítica; na verdade. constatado o
os aspectos menos importantes do ponto de vista da compreensão movimento e a índole de seu princípio. vemos que a causa é sempre
do princípio. que são os pontos de interrupção que nosso conheci- o próprio movimento. do qual as formas se derramam no trajeto.
mento recorta na trajetória indivisível. "(.. .) a vida aparece como uma Tocamos aqui um dos pontos mais sutis da ontologia bergsoniana.
corrente que vai de gérmen a gérmen por intermédio de um organis- As realidades criadas são menos que o movimento criador na medida
mo desenvolvido" (E.C-27). A transformação é a continuidade de uma em que nunca o esgotam. Assim como vimos que. no plano da cons-
evolução criadora cujo princípio é uma corrente de vida que atraves- ciência. qualquer fixação de realidade seria abstração do movimen-
sa a matéria ao mesmo tempo que a organiza em formas sempre to. também no que concerne ao movimento da vida - organização
novas e cada vez mais diferenciadas. cada vez mais mediatamente ontológica - os organismos são como que cristalizações residuais
vinculadas com o meio. cada vez mais indeterminadas no que con- da realidade fundamental que é o movimento orgânico. Assim como
cerne ao espectro de possibilidades de ação vital". A interpretação o pensado é cristalização do pensamento. o organizado é cristaliza-
das linhas de fatos biológicos nos encaminhou portanto para um ção do movimento organizador. A diferença entre a ciência e a filo-
princípio concreto. inferível a partir da experiência e da documenta- sofia é que a primeira toma o organizado como sistema de resulta-
ção paleontológica. genética. embriológica e anatómica. Percebemos dos e abstrai o processo a partir deste resultado; a segunda vê na
então que no domínio da evolução não é possível a reversibilidade articulação dos organismos ao longo da história natural o símbolo ou
dos elementos de um sistema. ou seja. que o tempo incide realmen- o índice do movimento que traz em si o seu próprio princípio na
te. e não apenas como variável abstrata. na constituição progressiva medida em que a travessia da materíalidade é a realização do prin-
das formas de vida que surgiram ao longo da evolução. Podemos cípio entendido como corrente de vida. As realidades visíveis têm
agora identificar duas expressões: "consciência em gera\" e "vida em valor de índice de uma realidade invisível na exata medida em que as
geral". pois a incomensurabilidade entre o antecedente e o que ele cristalizações temporais são sedimentações que o tempo deixa na
'to engendra revela a síntese criativa entre passado e presente que vi- sua passagem. Que tipo de relação existe aqui entre a particularidade
11:.:
mos caracterizar o fluxo consciente. Sempre podemos explicar uma e a totalidade? "(. .. ) a 'vitalidade' é tangente em qualquer ponto às
nova forma de vida remontando às causas que a antecederam; nun- forças físicas e químicas; mas estes pontos não são mais, em suma,
ca podemos. porém. prever que forma surgirá a partir do exame do que aspectos que o espírito se imagina em termos de interrup-
daquilo que a antecede. Isto significa que o presente traz o lastro do ções em tais e tais momentos do movimento gerador da curva. Na
passado e ambos modalizam a inserção no futuro. realidade. a vida é feita de elementos físico-químicos tanto quanto
Assim uma teoria da evolução que seja analítica. como a de uma curva é composta de linhas retas" (E.C.-311. Se considerarmos
Spencer. só pode ser um conhecimento subsidiário da lógica da re- que a evolução se explica pelos organismos resultantes nos vários
trospecção. A identificação do organismo e da filiação histórico-o r- momentos da história natural (por ex., pelos organismos "adapta-
dos" ao meio que aparecem nas várias fases da evolução). estaremos
considerando a evolução como a justaposição sucessiva dos seus
42. "Mas então não se poderá mais falar da vida em geral como de uma abstração, resultados parciais que. "somados". permitiriam uma visão da traje-
ou como de uma simples rubrica sob a qual inscrevemos todos os seres vivos" (E.c.- tória da vida. Esta soma de particularidades não é ilusória: é precisa-
26). mente a soma das realidades derivadas do movimento real. Mas as-
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III - INTUlÇAQ E EXPRESSA0 5. CONSCI~NCIA E MOVIMENTO DA INTERIORIDADE

sim não apreendemos a totalidade, que se oculta na articulação re- ramente tudo o que tem e em seguida mais do que tem: como definir
trospectiva. Tampouco apreendemos a qualidade interna da totali- de outra maneira o espírito?" (E.S.-2l). Em Matiere et Mémoire, Berg-
dade: por que há sucessão de organismos adaptados? Por que a vida son havia considerado que" deduzir a consciência seria um empre-
não se deu por realizada com a adaptação de um organismo primi- endimento bem ousado" (M.M.-31), felizmente nâo necessário uma
tivo ao seu meio, e prosseguiu realizando outros tipos de "adapta- vez que o campo de imagens já me dá a consciência como imagem-
ção"? Estas duas questões nos indicam que a totalidade, de alguma -centro. No plano da ontogênese, nâo se trata tampouco de concluir,
maneira, transcende seus ensaios de realização. Transcendernão deve a partir do sistema natural como um todo, um possível espírito que
ser aqui entendido no sentido de separação absoluta entre movi- o habitasse. Na verdade é ainda a interpretação critica dos fatos bio-
mento e resultados do movimento, mas de uma direção produtora lógicos que revela a vida como consciência em ato. Uma parte dos
que, enquanto tal, atravessa suas próprias produções como se rumasse darwinianos entende que as causas da variação estão no individuo
para algo além de qualquer resultado. O movimento, embora inter- desde o seu nascimento e não são adquiridas no curso de sua vida.
no, isto é, produtor efetivo de realidades (pois as engendra), como Como e por que tais causas já fazem parte do próprio germe? A Bio-
que se serve do que faz para fazer. Vê-se bem que a finalidade logia atribui a fatores acidentais as diferenças que se transformarão
extrínseca não seria aqui uma categoria adequada, pois apenas subs- em variações. "Não podemos impedir-nos de crer que elas são o
tituiria a lógica da retrospecção pela da prospecção. Na verdade não desenvolvimento de um impulso que passa de germe a germe atra-
há uma lógica desta produção, pois não há previsibilidade na filiação vés dos individuas, que não são conseqüentemente puros acidentes"
orgânica. Em conseqüência, não há totalidade dada, mas movimento (E.C.-86). Não sendo a variação apenas acidental, existe uma deter-
totalizador como processo aberto. A relação entre particularidade e minação, que não precisa ser entendida no sentido de uma pré-for-
totalidade se dá como relação entre movimento produtor e produ- mação de todas as características de um organismo em todas as
tos. Nunca um produto, ou a soma de todos os produtos conhecidos, características do organismo que o antecede. Já vimos que as causas
equivalerá à realidade do movimento produtor. Por isso também a das transformações das formas de vida não são fundamentalmente
"vida em geral" identifica-se com "consciência em geral": assim como os elementos físico-químicos presentes nos diferentes momentos da
o pensamento enquanto movimento está sempre adiante da "cons- evolução, mas o próprio movimento de transformação. Assim, a
ciência do pensamento" (identificação do pensado) assim também o determinação significaria aqui a presença de uma causa eficiente,
movimento criador de formas está sempre adiante da forma jd cria- mas não no nível da materialidade orgânica e sim no nível do "im-
da (o ensaio da vida que identificamos com o "adaptado"). Não há pulso" que é o motor da transformação. Este impulso pode também
assim como recuperar pelo pensamento a totalidade realizada, na ser visto como o esforço no sentido de que a formação seja sempre
medida mesmo em que ela se define como realização. Mas aqui de- uma transformação. Bergson louva nos neolamarckianos a intenção
sentranhamos a totalidade de sua imbricação na materialidade orgã- de procurar no processo de transformação uma causa de ordem
nica, como antes haviamos dissociado o próprio orgânico da distensão psicológica, embora restrita ao individuo. Entretanto o esforço, atri-
material ou inerte na qual a ciência o considera. Isto significa que buído ao organismo individual, não tem o alcance explicativo neces-
encontramos, através de um caminho concreto, o princípio dinâmi- sário para dar conta do processo natural de variação como um todo.
co da realidade, e seu caráter dinâmico corresponde àquilo que an- Devemos pensar num "esforço muito mais profundo do que o esfor-
tes previramos como a coincidência entre ser e razão de ser: o ser, ço individual, muito mais independente das circunstâncias, comum
como princípio, é aquilo que faz com que a realidade seja, ou me- à maior parte dos representantes de uma mesma espécie, inerente
muito mais aos germes que trazem em si do que à sua própria subs-
lhor, venha a ser. O ser, o princípio ou a razâo de ser .são iguais ao
absoluto como movimento ou ao movimento como absoluto. Seria tância e que tenha assim assegurada a sua transmissão aos descen-
dentes" (E.C.-88). O impulso interno ao movimento de constituição
possível coincidir ainda mais concretamente com esta descoberta?
dos seres faz com que a ontologia não seja um quadro de simultanei-
"Visivelmente, uma força trabalha diante de nós, que busca libe- dades desdobrado diante de nosso olhar teórico, mas a dinâmica
rar-se de seus entraves e também superar-se a si mesma, a dar primei- viva da formação natural, movimento que é também totalidade ab-

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III - I NTU1<;Aa E EXPRESSÃO 6. A CISÃO DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VJRTUALlDADE

soluta. A origem é também a presença originariamente constante: em geral. Isso significa que a separação entre interioridade e exterio-
por isto o princípio é visível no esforço intrínseco de transformação ridade é de alguma maneira superada: ela sempre foi, de resto, ape-
que é a índole profunda da realidade viva. O esforço significa que o nas metodológica. Mas a reverberação ontológica da subjetividade
movimento formador está sempre adiante de todas as formas que revela agora plenamente que conhecimento e autoconhecimento são
encerram a vida, pois é esta na sua efetividade que cria as formas nas contato, intuição definida como simpatia. Para que intuição e abso-
quais se apresenta. Na criação a forma não preexiste: é o impulso de luto venham então a se revelar plenamente na reciprocidade interna
ser que cria as formas de ser, em atos indivisíveis. Esta visão que os que os caracteriza, é preciso que, a partir da estreita conjugação entre
dados da biologia filosoficamente interpretados proporciona é a vi- teoria do conhecimento e teoria da vida (ontologia), seja reposta a
são do espírito em ato: o princípio é o espírito, nomeado como esfor- questão da intuição como possibilidade de conhecimento imediato,
ço, impulso ou élan vital. Mas exatamente por termos acedido a ele pois a visão da possibilidade do conhecimento intuitivo é solidária
concretamente, por termos transposto as mediações positivas que de um movimento de retorno do sujeito sobre si: e o caráter meta-
nos separavam do imediato, vemos também que o espírito é o agir físico desse reencontro de um procedimento cognitivo está em que,
da temporalidade, ação do tempo, ação de durar, duração. Com isso assim fazendo, ou seja, retornando a si ou sobre si, o homem dá as
se esclarece a natureza psicológica da causa que é o agente ontoló- costas à sua finitude instrumental.
gico fundamental. A imutabilidade é a raiz de todas as ilusões meta-
físicas porque é a hipóstase do Nada. O que nada faz nada é. Se há
um absoluto, ele só pode ser agente. A totalidade portanto é ação. 6. A CISÃO DA TOTALIDADE:
Diferentemente da ação da consciência empírica que age por nega- DIFERENÇA E VIRTUALIDADE
ção' o absoluto age positivamente, por criação. A ação absoluta é
criação. Quando nos vimos diante da incompletude da reflexão da É, entretanto, a circularidade entre teoria do conhecimento e
consciência subjetiva, e no entanto já com acesso ao ser, isto ocorria teoria da vida que impede que a questão da intuição seja posta dire-
porque a subjetividade como interioridade truncava o ser ao refletir- tamente, sobretudo no sentido em que teriamos de fazê-lo aqui, ou
-se subjetivamente. Dessa forma, a intuição de si só aparece subje- seja, conjugada com a reflexão. A historiai idade da ontologia enquanto
tivamente como anseio de plenitude. Como a consciência é mais história natural exige que os problemas de conhecimento sejam tra-
ampla do que a subjetividade, a reflexão somente se realiza plena- tados, tais como todos os outros, a partir de uma perspectiva gené-
mente quando o movimento reflexivo atinge a consciência em geral tica. Assim como a compreensão da vida é inseparável da compreen-
são do processo vital, os procedimentos cognitivos também só po-
através da experiência da temporalidade subjetiva. Mas essa expe-
dem ser plenamente esclarecidos na dimensão de sua constituição.
" 'I riência deve amplificar-se como consciência da temporalidade abso-
Eis por que uma crítica estrutural do conhecimento, tal como a kan-
luta, intuição como coincidência com o absoluto, reabsorção da parte
tiana, padece de um vicio fundamental: está condenada a circular
no Todo. Por isso a reflexão se realiza na intuição e Bergson pode
tii,i' . entre o dado e o resultado, já que se dá uma totalidade estruturada
dizer que toda intuição é reflexão.
a priori para explicar. Se a intuição é procedimento cognitivo através
Assim se vê que o conhecimento filosófico tem um objeto, que do qual pretendemos ter acesso à dimensão da reflexão real, será
este objeto é a temporalidade absoluta, que não há diferença essen- preciso que a intuição seja abordada na sua gênese histórico-natural.
cial entre temporalidade subjetiva e temporalidade objetiva, uma vez É exatamente aí, no entanto, que se situa o problema que nos impe-
que a filosofia da vida repôs a consciência no movimento da consci- de de abordá-la diretamente. Pois o conhecimento humano cujo
ência em geral, a interioridade ou a espiritualidade" no impulso de modo nos é primeiramente acessível não é a intuição e sim a inteli-
criação que é o espírito, e finalmente que o sujeito somente coincide gência, uma vez que ela é a realização intelectual da intencionalida-
verdadeiramente consigo mesmo quando coincide com o absoluto, de pragmática da consciência. No nível da realidade aparente, o
não porque a subjetividade seja o absoluto, mas porque o sentido da conhecimento intelectual aparece como único dotado de positividade,
consciência subjetiva encontra-se em sua inserção na consciência realização perfeita do acordo entre a intenção pragmática do sujeito

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 6. A CISÃO DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VIRTUALlDADE

e as virtualidades de ação do objeto. A inteligência aparece para uma O capítulo II de Évolution Créatrice gira em torno de relações de
filosofia da vida que adota a perspectiva evolucionista como um re- complementaridade, oposição e de correspondência, cujo esclareci-
sultado para o qual tendeu o processo interativo entre consciência e mento nos indica" as direções da evolução". Depois de verificar como
materialidade. A inteligência é modo de consciência: para apreendê- as relações se estruturam entre os reinos vegetal e animal, Bergson
-lo na sua especificidade constitutiva é preciso retomar o trajeto da examinará os mesmos tipos de relação no reino animal, dividido entre
consciência em geral e segui-lo até o ponto de constituição da rela- os processos de consolidação do instinto e do despertar progressivo
ção inteligente com o mundo como função. Mas esta retomada é da inteligência. O exame de tais relações se dá a partir de um resul-
inseparável da consideração de outra vertente de constituição de tado obtido na primeira parte do texto: mostrou-se que vida vegetal,
relação com o mundo, pois as relações de reciprocidade entre as vida instintiva e vida inteligente não estão entre si numa relação li-
duas tendências e a consideração das relações entre os dois proces- near de sucessão ou progresso, mas como três linhas de evolução
sos é o que nos fornecerá a visão total do processo evolutivo no as- divergentes que se constituíram paralelamente como ramificações
pecto da constituição de conhecimento e a possível imbricação ori- de um movimento inicial". A origem comum nos alerta para a im-
ginária que o élan vital nos mostrou ter existido no movimento ini- propriedade de uma pesquisa que visasse à diferença absoluta ou ao
cial de constituição da vida em suas diferentes formas. O exame da encontro do instinto e da inteligência em estado puro. Cada um deles
evolução da vida mostra que, dentre as múltiplas direções em que se guarda algo do outro na forma de virtualidades presentes na origem
repartiu o movimento inicial, duas representam para nós aquelas em comum e depois ocultadas pelo próprio desenvolvimento dos pro-
que a vida teria atingido, em maior grau, suas "finalidades": instinto cessos separados. O próprio caráter de processo da evolução nos obriga
e inteligência. Retomar a gênese destas duas vertentes evolutivas, a considerá-los muito mais como tendências, antes interpenetradas,
comparando-as no decorrer de suas trajetórias e no resultado "final" depois separadas, do que como coisas. Tais tendências representam
que cada uma apresenta, deverá nos encaminhar para dois objetivos: o desenvolvimento bipartido da consciência em geral: já vimos que
primeiro, a diferenciação destes dois movimentos e a constatação a ontologia é o desvelamento do princípio de ordem psicológica que
das respectivas caracteristicas específicas; segundo, como os dois mo- comanda o processo vital, e é exatamente no plano dessa consciên-
vimentos são já resultado de uma possível cisão do movimento único cia considerada na sua escala cósmica que pretendemos encontrar
que deu início à trajetória da vida, compará-los naquilo que guar- elementos para a solução da aporia da reflexão. Isso nos leva a dizer
dam de comum, considerando o aporte relativo de cada um deles à que a filosofia bergsoniana é, na sua totalidade, uma filosofia da cons-
~ ":'
relação com o mundo - o tipo de conhecimento que cada um propor- ciência, embora não seja uma filosofia da subjetividade. A identidade
ciona - considerando também as relações que mantêm com a ori- entre consciência e vida nos mostrou que o princípio explicativo e o
~; ~!
gem comum. O que se impõe é um estudo da gênese do processo princípio agente no plano ontológico é a consciência ou espírito. Isso
adaptativo das formas de vida caracterizadas, de um lado, pelo aper- nos permitiu compreender, por assim dizer, a forma da ontologia; tra-
tI': .. feiçoamento progressivo do instinto, e de outro, pela constituição ta-se agora de compreender a gênese dos modos de consciência, que
Ili· gradual da inteligência como modo de inserção na realidade. So- são também as formas de autototalização do espírito". É claro que a
mente a partir da consideração genética poderemos visualizar corre-
tamente a estrutura da relação com a totalidade presente no instinto
e na inteligência - bem como as razões, na ordem do processo 44. "O erro capital, aquele que, transmitido desde Aristóteles, viciou a maior parte
das filosofias da natureza, consiste em ver na vida vegetativa, na vida instintiva e na
ontológico, que determinam o perfil das duas estruturas43 • racional três graus sucessivos de uma mesma tendência que se desenvolve, quando
são três direções divergentes de uma atividade que se cindiu ao se expandir. A dife-
rença entre elas não é de intensidade nem, de maneira mais geral, de grau, mas sim
43. "É a consciência da gênese que, ainda uma vez, permite a consciência da estru- de natureza" (E.C.-136).
tura. A estrutura da consciência só é compreensível à luz da gênese da consciência. A 45. "(. .. ) tanto em razão de seu percurso quanto por causa de suas teses fundamen-
crítica da filosofia tradicional consiste justamente em deslocar a perspectiva crítica de tais, a filosofia bergsoniana é plenamente uma filosofia da consciência (... )" (Theau,
sua faSCinação pela estrutura, de fazê-la voltar-se para a gênese, iluminando retros- J., ob. cit., p. 397). Esta "filosofia da consciência" aborda, antes de mais nada, na lógica
pectivamente a própria estrutura" (Prado Júnior, 8., ob. cit., p. 173). da sua constituição, a Consciência em geral e não a consciência subjetiva.

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III - INTUlçAQ E EXPRESSÀO 6. A C1SAo DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VIRTUALlDADE

gênese da inteligência será estabelecida primeiramente no plano da vel, da qual está ausente a possibilidade de aperfeiçoamento. A ins-
interação entre intenção pragmática e materialidade, de alguma ma- trumentalidade instintiva, por ser fixa, é também perfeita em seu
neira através das obras da inteligência, que é fundamentalmente gênero, o que significa totalmente determinada (determinação recí-
fabricadora; se isto significa abordar a inteligência pelo exterior, não proca entre meio e finalidade). Um instrumento serve a uma ação, e
é menos verdade que é neste plano que nos será permitido considerá- serve perfeitamente. Podemos dizer então que o que caracteriza a
-la plenamente em sua função, elemento diferenciador por excelên- relação instrumental no plano da inteligência é a indeterminação.
cia. Com efeito, na função fabricadora da inteligência, e na flexibili- Indeterminação, já vimos, significa escolha e hesitação: a instrumen-
", dade e na instrumentalidade indefinida que caracterizam esta fun- talidade inteligente não é pois perfeita em seu gênero e é por isso
ção é que encontraremos a propriedade que distingue inteligência que pode ser indefinidamente aperfeiçoada. A indefinição da maté-
de instinto. O instinto se caracteriza também pela instrumentalida- ria com respeito à forma faz com que o único aspecto determinado
de, mas não pela fabricação de instrumentos. A relação instrumen- na interação instrumental entre inteligência e ação seja precisamen-
tal, no plano instintivo, se dá a partir de instrumentos que a natureza te a relação. Por isto diz Bergson que o inatismo do instinto relacio-
fixou de forma permanente no próprio corpo do animal e que so- na-se com o conhecimento de coisas e o inatismo da inteligência
mente variam com a variação da espécie. O animal tem uma relação (seu a priori natural) diz respeito a relações. "( ... ) se consideramos
interna com sua instrumentalidade. No caso do homem, a inteligên- no instinto e na inteligência aquilo que encerram de conhecimento
cia permite a fabricação de instrumentos na escala de uma variação inato, vemos que este conhecimento inato no primeiro caso diz res-
indefinida, o que caracteriza uma relação externa com a instrumen- peito a coisas e no segundo a relações" (E.C.-149). O instinto está
talidade, bem como a separação entre a forma e a matéria do instru- para as coisas e a matéria assim como a inteligência está para as
mento. É o sentido em que a atividade de fabricação define a inteli-
relações e as formas.
gência: "Definitivamente, a inteligência, considerada naquilo que pa-
rece ser seu procedimento original, é a faculdade de fabricar objetos Aí está a razão pela qual a filosofia tradicional sempre conside-
artificiais, em particular instrumentos para fazer instrumentos, e va- rou o entendimento (a inteligência) a faculdade de unificação. Uni-
riar indefinidamente essa fabricação " (E.C.-140). Quando falamos de ficar significa estabelecer relações e a primeira das relações é a iden-
relação interna do animal com a instrumentalidade, no plano instin- tidade, unificação do objeto consigo próprio. Sendo o estabelecimento
tivo, queríamos dizer relação orgãnica: o instinto é prolongamento de relações formais o procedimento padrão da inteligência, compre-
natural do organismo e aí está a causa de sua relação natural com o ende-se, em primeiro lugar, que a instrumentalidade seja abstrata e,
111,' ~ meio. No caso do instinto, não é preciso que haja descontinuidade em segundo lugar, que as coisas sejam consideradas em função das
111'"
entre representação e ação, pois a consciência se prolonga natural- relações abstratas. Eis a razão pela qual a inteligência manifesta uma
r' mente na ação. No caso da atividade inteligente, a representação da compatibilidade tão natural com o conhecimento de relações entre
'~mi ;~ forma do instrumento precede a sua fabricação, o que aparece na partes inertes num espaço abstrato. O espaço enquanto sustentáculo
li.I" ' escolha variada da matéria sobre a qual se aplicará a forma. Há por- abstrato de relações "não é jamais percebido; é sempre concebido"
tanto uma descontinuidade entre representação e ação, que se torna (E.C.-157). O que faltou às teorias do conhecimento tradicionais foi
tanto mais aparente quanto maior a latitude de escolha dos procedi- constatar que a capacidade unificadora do entendimento, no nível
mentos instrumentais. A separação entre forma e matéria, que des- lógico, pressupõe o procedimento natural e implícito de divisão: o
caracteriza a relação orgânica, e a indefinição original da forma con- entendimento unifica porque divide, porque exterioriza reciproca-
creta do instrumento tornam a instrumentalidade inteligente abstra- mente as partes que concebe ao introduzir a descontinuidade no
ta, abstração que provém de sua generalidade: a extrema variação real. Essa exterioridade objetiva deriva da relação de exterioridade
possível dos meios faz com que a inteligência seja faculdade de fabri- que a inteligência mantém com as coisas. Já tivemos ocasião de
car em geral, o que possibilita não só a diversificação como também mencionar a relação que existe entre a divisibilidade esquemática do
o aperfeiçoamento. O instinto, por manter com a ação uma relação espaço e a vocação articuladora (decomposição e composição) da
orgânica, caracteriza-se pela função definida, especializada e in variá- inteligência. Do ponto de vista que nos interessa aqui, devemos nos
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J
III - INTUlçAO E EXPRESSÃO 6. A CISÃO DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VIRTUAUDADE

ater a um outro aspecto da atividade articuladora: aquele que diz dos objetos às palavras que os designam, destas à memória, da me-
respeito à comunicação e à apropriação simbólica da instrumentali- mória efetiva à representação do ato de lembrar e daí à consciência
dade através dos signos da linguagem. A relação instintiva com a das operações da consciência enquanto inteligência: este trajeto nos
instrumentalidade, por ser orgânica, não implica aprendizagem. Neste mostra que a reflexão é derivada. Quase se poderia dizer que a gêne-
caso a atividade simplesmente prolonga a inserção natural do orga- se da reflexão é a percepção do objeto empírico. Isso seria coerente
nismo no seu meio. Se existe comunicação entre os animais, esta é, com uma perspectiva naturalista. Assim como a gênese da consciên-
tal como o instinto, invariável e limitada, isto é, restrita a condutas cia é a virtualidade objetiva da ação sobre as coisas, assim também
definidas e delimitadas. Diz Bergson que, neste caso, "O signo é a consciência da consciência só pode ser efeito da interação efetiva
aderente à coisa significada" (E.C.-159). Pelo contrário, o que carac- da subjetividade pragmática com o mundo. As palavras são a vida
teriza a linguagem humana é a mobilidade do signo: um conjunto externa das idéias, é o pensamento tornado descontínuo pela sua
finito aplica-se a um número indefinido de coisas porque o signo transposição na exterioridade recíproca dos signos. Inversamente, os
tem a propriedade de se transportar de uma a outra. Mas por isso conceitos designados pelas palavras organizam-se no espírito como
mesmo o signo é exterior e convencional. O sujeito deve aprender a objetos na exterioridade, razão pela qual a reflexão que nasce da
chamar as coisas e a aplicar os signos a uma pluralidade aberta. Por linguagem é uma reflexão de inteligência, isto é, nela captamos o
mover-se entre as coisas, o signo não tarda a movimentar-se na di- lado interno da exterioridade. É certo que a linguagem liberta a inte-
reção das idéias, ou seja, na direção daquilo que não está diretamen- ligência da total aderência à exterioridade, do "sonambulismo" e do
te vinculado à ação. Mesmo entre as idéias, existem aquelas que se automatismo que estão presentes, por ex., na consciência dos hábi-
vinculam mais ou menos mediatamente à ação. O signo irá recobrir tos. Mas a dimensão reflexiva da inteligência somente nos dá a estru-
todas elas, pois a linguagem se caracteriza por uma superabundân- tura apriorística do pensamento espacializado47 • A interioridade a que
cia virtual. Além do nível pragmático da nomeação e da articulação, acedemos é a do élan na sua função adaptativa, no movimento inter-
há a face reflexiva da inteligência na medida em que ela é um modo no de constituição do mundo objetivo - reciprocidade entre a fun-
de consciência. A vocação para a exterioridade não implica um obs- ção categorial do intelecto e as ações virtualmente solicitadas pelo
tinado colar-se ao lado externo do real. Um mínimo de interioridade mundo externo. É natural que a inteligência, voltando-se para si,
é necessário para impulsionar a atividade de exteriorização. A inte- encontre as pressuposições do conhecimento do inerte, tome cons-
ligência está voltada para si mesma, e o caráter abstrato e indefinido ciência das condições de articulação do mundo prático. Nesse caso,
da atividade de significar é a ancoragem interna da articulação sig- o significado é fixação de sentido. O sentido como direção e mo-
nificativa. "A palavra, feita para ir de uma coisa a outra é, com efeito, vimento, de que nos fala La Pensée et le Mouvant (P.M.-133J, é apri-
essencialmente móvel e livre. Poderá pois estender-se não apenas de sionado no invólucro de uma referência material, que será tanto mais
uma coisa percebida a outra coisa percebida, mas ainda da coisa abstrata quanto mais determinada for a sua materialidade.
percebida à sua lembrança, da lembrança precisa a uma imagem Isso significa que o autoconhecimento da consciência através da
mais fugidia, embora ainda representada, desta à representação do inteligência será abstrato no sentido de parcial. Não apenas não atin-
ato pelo qual nós a representamos, isto é, à idéia. Assim se abrirá aos gimos aí a consciência subjetiva em todas as suas virtualidades, como
olhos da inteligência, antes voltados para fora, todo um mundo in- nos situamos longe da coincidência com a originalidade da consci-
terior, o espetáculo de suas próprias operações"." Da consciência ência em geral, da qual a inteligência é um modo engendrado no

46. E.C.-I60. Cf. Theau, J., ob. cit., p. 452: "Primeira em relação. à ciência ou à filo-
sofia, e de fonna alguma derivada da consciência sensível. a consciência reflexa é 47. "Os liames entre a linguagem e o espírito são duplos. De um lado, as palavras
entretanto o produto de uma evolução psicológica, que começa com a consciência acentuam a materialidade das idéias e lhes conferem um caráter exterior, descontínuo.
dos objetos, e onde a consciência de si só aparece plenamente com a ajuda da lingua- Os conceitos designados pelas palavras tendem a se excluir mutuamente no espírito
gem e da memória. A não ser de maneira virtual, a consciência reflexa não é, no como os objetos no espaço. De outro, urna espécie de espiritualidade anima o ato da
homem, aos olhos do filósofo, um dado verdadeiramente primitivo ou constitutivo, palavra. O homem que fala realiza um ato simples e espiritual corno a consciência de
como no caso de Descartes e sem dúvida no de Kant". um gesto" (Gilson, B., ob. cit., pp. 47-48).

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111 - INTulçAO E EXPRESSÀQ 6. A CISÃO DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VIRTUALlDADE

decorrer da trajetória evolutiva. Mais do que parcial: se entendemos 152). Já vimos que o instinto é conhecimento delimitado, determina-
que a consciência se define como temporalidade, a geometrização do e especializado. É portanto um conhecimento que se confunde
da duração operada pela inteligência em relação às coisas e a fortiori, com o desempenho vital. A indiscernibilidade entre ação e represen-
em relação a si mesma, falseia inteiramente o autoconhecimento. Na tação, oriunda do caráter direto da instrumentalidade, anula o ponto
verdade, a inteligência tende para a universalização do tipo de co- de nascimento da reflexão, o recuo mínimo exigido para que a cons-
nhecimento que lhe é próprio. Para isso contribui a mobilidade do ciência se torne consciência de si. Este recuo é a mediação necessá-
signo que, no seu caráter abstrato, aplica-se em princípio a tudo, se ria para que o conhecimento se torne imediato. A consciência de si
bem que realmente só seja adequado a uma parcela do real, assim do instinto seria o conhecimento imediato da relação imediata que
mesmo artificialmente sistematizado. A dimensão reflexiva da inteli- Bergson caracteriza como simpatia. Para que houvesse reflexão no
gência cria a ilusão de que ela se pode libertar da matéria, embora a plano do instinto seria preciso que a consciência refletisse imediata-
interação com esta seja seu elemento definidor. O esforço de liberta- mente sobre o pathos envolvido na relação de simpatia. "O instinto
ção é o esforço de universalização, inscrito na própria indetermina- é simpatia. Se esta simpatia pudesse alargar seu objeto e também
ção constitutiva da vertente evolutiva que resultou na inteligência. refletir sobre si mesma, ela nos daria a chave das operações vitais -
Mas esse esforço está destinado ao fracasso, pois a inserção na mate- da mesma maneira que a inteligência, desenvolvida e retificada, nos
rialidade define a inteligência e a indeterminação é apenas a flexibi- introduz na matéria" (E.C.-I77). Não será talvez despropositado in-
lidade intrínseca que distingue a instrumentalidade da inteligência troduzir aqui, à semelhança da relação entre interesse prático e interes-
da instrumentalidade do instinto. Embora indeterminação signifique se teórico existente na filosofia de Kant, o jogo das relações entre
liberdade, e o crescimento da inteligência se confunda com o adven- interesse vital (instinto) e interesse material (inteligência) para expli-
to progressivo da liberdade no mundo natural, liberdade instrumen- carmos as duas direções de conhecimento presentes em Bergson. O
tal não significa libertação ou superação da forma específica do co- interesse vital da consciência no seu modo instintivo expressa-se na
nhecimento de inteligência. Assim, se a marcha da inteligência sig- relação orgânica e direta, isto é, na inteira absorção da consciência
nifica liberação no seio do movimento da história natural, tal libera- nas funções determinadas pela constituição natural do organismo.
ção jamais anulará a oposição que marca a relação da inteligência Tal absorção significa, como já vimos, que não há descontinuidade
com o instinto. A função da inteligência é solidária de seu movimen- entre a função e a representação da função. A plena organicidade é
to interno: eis a razão pela qual sua fascinação pela inércia material conseguida aqui ao preço da determinação completa. O interesse
nunca será superada". material expressa-se no delineamento da atenção que a inteligência
Mas a oposição é o outro lado da correspondência. Originalmen- presta à matéria, na superposição entre condições lógicas e articula-
te indiscerníveis, instinto e inteligência separaram-se conservando ção mecânica. Como a atenção à matéria é solidária da articulação
uma relação de complementaridade no nível virtual. É claro que as formal enquanto decomposição e composição de partes abstrata-
;,:1, mente sustentadas pela concepção a priori do espaço, a relação en-
duas funções, no estágio avançado de realização de suas potenciali-
, I~. dades, revelam enormes diferenças, e a oposição predomina. No tre inteligência e matéria assume o caráter de aplicação da forma ao
entanto, as virtualidades que se mantiveram sob o processo evoluti- conteúdo, o que implica descontinuidade e representação a priori
vo, e que a gênese explicativa do princípio vital nos mostrou, nos das condições de diferenciação e individuação. Tal descontinuidade
encaminham para o estabelecimento de uma relação de velamento não é senão a conseqüência de outra, mais fundamental, que incide
recíproco, constitutiva do próprio desenvolvimento paralelo dos dois sobre a relação entre inteligência e materialidade, ou sobre forma e
processos: "Há coisas que somente a inteligência é capaz de procurar, conteúdo do conhecimento. Podemos dizer que o interesse fabricador
mas que, por si mesma, não encontrará jamais. Estas coisas, somente da inteligência repousa na possibilidade de figuração simbólica do
o instinto as encontraria; mas ele não as procurará jamais" (E.C.- real, de que o plano da linguagem é a um tempo causa e conseqüên-
cia. Se quisermos supor a possibilidade de um encontro ideal entre
instinto e inteligência, teremos de retirar do instinto o interesse vital
48. Cf. Theau, / .• oh. cit.. pp. 454-5. e da inteligência o interesse material, para que o dinamismo da vida
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III - INTUIÇÀO E EXPRESSÃO 6. A CISÃO DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VIRTUALIDAOE

se combine com a inércia da matéria. Neste caso teríamos uma es- -natural da evolução de nossa espécie foi o ocultamento do absoluto
pécie de intuição intelectual que talvez escapasse às críticas que e, portanto, sua plena positividade se transformou para nós em
Bergson faz ao gênero de conhecimento a que a filosofia tradicional indistinção de virtualidades afetivas. Por isto é muito difícil encon-
deu esse nome. Mas isso também significaria ignorar que instinto e trar, na filosofia de Bergson, a possibilidade de um conhecimento do
inteligência são ambos movimentos internos da consciência em ge- instinto que se oponha efetivamente ao conhecimento da inteligên-
ral, e que os dois movimentos tomaram, ao longo da trajetória evo- cia. Nesse sentido, não existe em Bergson aquela espécie de mergu-
lutiva, direções qualitativamente opostas embora historicamente lho cognitivo no instinto como fonte de verdade, que certa interpre-
paralelas. A intuição, portanto, nunca poderá ser intelectual. O que a tação vulgar atribui ao romantismo". Se por um lado a gênese do
consideração genética das duas tendências permite é um esforço de instinto mostrou que ele não é uma faculdade "misteriosa", por ou-
reencontrar a comunidade originária através da virtualidade instin- tro lado a gênese da inteligência mostrou também que a opção pela
tiva que a inteligência conserva, e buscar neste ponto de miscigena- exterioridade impede definitivamente de reconstituirmos uma
ção nebulosa aquilo que seria, para o ser inteligente, o nascimento combinatória feliz entre instinto e inteligência, que nos posicione
da intuição. diretamente no próprio movimento do absoluto.
Como poderia ser hipoteticamente definida a intuição? "( ... ) é ao No entanto, de alguma maneira a "faculdade estética" nos repõe
próprio interior da vida que nos conduziria a intuição, isto é, o ins- na direção do absoluto e na continuidade do élan originário. É bem
tinto tornado desinteressado, consciente de si, capaz de refletir so- verdade que esta faculdade individualiza seus resultados; e embora
bre o seu objeto e de alargá-lo indefinidamente" (E.C.-178). Para a arte seja contato com o absoluto, a obra de arte no sentido indivi-
caracterizar, ainda que imprecisamente, o esforço de conhecimento dual continua sendo metáfora do absoluto, ou, no máximo, imagem
interno, possuímos em nós uma indicação que é o que Bergson cha- do movimento absoluto. Ainda assim, somente a torção da inteligên-
ma de "faculdade estética". As características de imprevisibilidade e cia nos encaminha para a totalidade, muito embora a expressão da
criação que configuram a corrente da vida constituem direção e claridade absoluta só se faça através de seu obscurecimento relativo. A
movimento, com os quais o artista procura coincidir internamente. arte nos mostra uma direção que é o próprio sentido interno do trajeto
Trata-se de readquirir a simplicidade do movimento direto de cria- ontológico: ela é portanto, em princípio, órgão de conhecimento onto-
ção, a significação da intenção da vida. Entre o artista e esta intenção lógico. Se for possível um prolongamento metódico da direção do
levanta-se a barreira da complicação formal da inteligência - e a conhecimento artístico, talvez se possa obter algum tipo de reinserção
função da arte é transpor este obstáculo. Para isto é preciso reencon- cognitiva no sentido geral do movimento ontológico e uma comu-
trar a unidade simples do movimento intencional do élan, através de nhão da consciência subjetiva com a consciência em geral. Para tan-
"uma espécie de simpatia" (E.C.-178). Do ponto de vista negativo, to teríamos de nos situar, por um esforço de desnaturalização da
isto implica inverter a direção da percepção e da inteligência. Na inteligência, numa região anterior à constituição da objetividade pela
verdade, o que se atinge com este esforço de negação é o outro lado subjetividade do entendimento. Se quisermos utilizar aqui uma lin-
da percepção externa e a interioridade da inteligência onde estão as guagem mais contemporânea, diremos que o retorno à dimensão do
virtualidades intuitivas. Não é muita coisa, e é sobretudo da ordem "pré-reflexivo" é condição de acesso ao plano da reflexão real, enten-
do negativo, porque é através da inteligência que se opera esse esfor- dido como coincidência com o processo de auto-totalização do ser.
ço. A inteligência é, para nós, o órgão do "conhecimento propria- Uma coisa, ao menos, parece certa: é que intuição e objetividade não
mente dito": utilizando-a contra si mesma podemos apenas chegar à podem conviver. "Se a objetividade supõe a exterioridade recíproca
sugestão, nascida da insuficiência de seus quadros, de uma outra entre sujeito e objeto - a intuição é o fim da objetividade: nela o co-
direção de conhecimento. Não seria mais do que um "sentimento nhecido é conhecido no ato em que ele se autoconstitui (... )50."
vago" (E.C.-179). Mas como poderia ser de outra maneira se o reen-
contro da virtualidade simpática com a totalidade só se pode dar 49. Cf. a respeito as observações de Theau, J., ob. cit., pp. 419, 420 e 427.
através do avesso dos quadros da inteligência? O resultado histórico- 50. Prado Junior, B., ob. cit., p. 181.

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III - INTUlçAO E EXPRESSA0
6. A CISÃO DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VIRTUALlDADE

Mas é evidente que "o fim da objetividade" é também o fim da o absoluto, sem ser conhecimento absoluto. Atingimos aqui um re-
subjetividade na medida em que é a própria contraposição que cons- sultado metodológico da mais alta importância: a recuperação teóri-
titui a autonomia relativa dos dois termos. O processo vital consti- ca do sentido da evolução nos mostrou que a polaridade sujeito/
tuiu a autonomia da consciência subjetiva ao destacar progressiva- objeto é um produto da trajetória da vida: a gênese da relatividade do
mente o Eu como espécie de auto mediação entre si mesmo e o conhecimento intelectual alcança uma radicalidade muito maior do
mundo. O mundo enquanto objeto é fundamentalmente virtualida- que a atingida pela crítica estrutural de tipo kantiano. A face positiva
de de ação, mundo prático. A objetividade tem um sentido naturalis- desse resultado é a abertura do horizonte de um pensar liberado da
ta na medida em que só se constitui na reciprocidade com a inteli- oposição sujeit%bjeto, um pensamento do absoluto.
gência. Assim, a intuição é dissolução desta reciprocidade na exata Mas a dissolução desta polaridade significa também a liberação
medida em que é dissolução do interesse da inteligência. Portanto a em relação a uma dicotomia histórica, a necessidade de optar entre
"morte do mundo" não é o único requisito da intuição; a consciência realismo e idealismo. Já vimos como a gênese da consciência, mes-
subjetiva recolhida à sua interioridade alcança apenas o plano mo no plano da percepção e da intencionalidade pragmática, visa
indicativo da relação simpática com a totalidade. É preciso ainda um superar a dicotomia. Agora, trata-se de efetuar a mesma superação
recuo que é o movimento de dissolução do plano subjetivo da cons- para além do nível da representação. Bergson provavelmente não
ciência na coincidência com o movimento do élan; é preciso que a concordaria com a crítica de Fichte a Spinoza. Fichte pretendia que
consciência subjetiva reinsira-se especulativamente na originariedade Spinoza tentou encontrar o incondicionado do lado do objeto quan-
da sua gênese. Mas para isto não basta a constatação objetiva da do fez da consciência uma simples modificação da substância eter-
gênese da consciência através da recuperação teórica da Consciên- na. Com isso ele teria posicionado o Eu no objeto, o que não estaria
cia como princípio do movimento real. Não se trata de uma relação
longe de uma reificação da subjetividade. Ao identificar a substância
teórica, mas de uma coincidência real. Nenhum movimento análogo spinozista com a Coisa-em-si, com a coisa-absoluto, Fichte inverte a
à redução fenomenológica nos remeterá ao plano dessa coincidên- trajetória de Spinoza e toma a produção de realidade pela substância
cia: atingir o núcleo noético do conhecimento enquanto campo da absoluta como produção de representação e atualização de possí-
consciência é praticar abstração na indivisibilidade concreta do abso- veis. Assim a Substância pode ser traduzida em linguagem fichtiana
luto. Mas com isso não teremos sido levados à dificil elucidação do
como o não-Eu, que supõe o Eu, verdadeiro absoluto a que Spinoza
problema de um conhecimento sem sujeito? Do ponto de vista da
não teria chegado. Spinoza teria sido vitima da ilusão dogmática de
lógica do entendimento esse seria provavelmente um problema in-
que a busca do absoluto pode ultrapassar a unidade da consciência,
solúvel; visto da perspectiva da gênese dos modos da consciência, o
que no entanto é a unidade dada na reflexão imediata. Esta unidade,
impasse é apenas aparente. Se a mediação entre inteligência e ação,
descoberta implícita do criticismo kantiano, será aquela depois to-
expressa na representação, é que institui a dissociação entre sujeito
talmente desvelada no idealismo crítico5l • Mas não poderíamos su-
e objeto, o conhecimento instintivo, como já vimos, não se caracte-
por que o que subjaz à interpretação de Fichte seria a concepção que
I·' riza pela mediação, na medida em que representação e ação são in-
Schelling classifica como kantismo banalizado, que consiste em sim-
dissociáveis, coincidindo na função. A "objetividade" da ação instin-
plesmente aceitar, pelo lado prático da razão, aquilo que a razão
tiva é um simples prolongamento da vida natural do organismo, o
pura não pode justificar? A reunião do Eu teórico e de sua produti-
qual não pode, pela mesma razão, ser caracterizado como "subjeti-
vidade prática não equivaleria à manutenção latente da separação e,
vidade". Ora, como a intuição nasce da virtualidade instintiva pre-
portanto, do conflito entre sujeito e objeto, mesmo entendendo este
sente na inteligência, a possibilidade de seu prolongamento cognitivo
dependerá, entre outras coisas, do desaparecimento da polaridade último como a projeção objetivante do sujeito? Se entendermos o
spinozismo como a geração de sujeito e objeto em suas respectivas
sujeit%bjeto. O análogo natural da intuição é a relação orgânica, a
imediatez. É portanto a própria qualidade do conhecimento intuitivo
que o preserva da polaridade constitutiva do conhecimento inteli-
gente. E é essa qualidade que nos assegura também que ele alcança 51. Sobre estas questões cf. Delbos, V., ob. cit., pp. 98 a 103.

260 261
III - INTUIÇAO E EXPRESSÃO 6. A CISÃO DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VIRTUALlDADE

efetividades - modalizações da substância absoluta - não teremos livre se exprime fisicamente: a separação que Kant havia efetuado
encontrado a índole da produção absoluta e a conjugação orgânica entre a determinação da causalidade física, a indeterminação da
de ser e conhecer, artificialmente imposta no paralelismo leibniziano? causalidade prática e a reflexão da causalidade orgânica é signo de
É provável que uma interpretação deste tipo esteja presente como um idealismo crítico incompleto. A unidade do espírito se projeta na
inspiração do projeto bergsoniano de relativização genética da obje- unidade de suas criações, e assim a natureza, enquanto tal, é orgâni-
tividade. Mas se este projeto puder ser visto de alguma maneira como ca. A precedência do todo e a finalidade não são apenas modos de
a concretização naturalista do geometrismo ontológico que para visar reflexivamente o mundo empírico. O juízo de reflexão produz
Bergson caracterizaria a filosofia spinozana, então o empreendimen- conhecimento. Isso porque não se trata apenas de aglutinar dados
to bergsoniano oferece aspectos de afinidade com o pensamento de fenomênicos: trata-se de compreender a produção, e espírito e natu-
SChelling, ao menos enquanto este tem, no seu ponto de partida, reza comungam na atividade produtora. "Não se trata de dizer ape-
algo como uma combinatória entre a crítica do idealismo fichtiano e nas que o espírito é sujeito e a natureza objeto: a Natureza, como o
uma reinterpretação do spinozismo. Espírito, é ao mesmo tempo sujeito e objeto, atividade produtora
ideal (natura naturans) e sistema de produtos reais (natura naturataf"."
Para Schelling, o kantismo bem compreendido significa a possi- O entendimento tende a ver no caráter naturante da natureza a ati-
bilidade de dois sistemas opostos, o que não é outra coisa senão a vidade formal que organiza a matéria, naturalizando-a, dando--lhe
supressão do conflito entre sujeito e objeto que está na base da alter- forma de natureza. Mas isto significaria que a matéria se opõe à ati-
nativa idealismo/realismo. Mas a supressão do conflito é ao mesmo vidade, quando na verdade matéria e formação da matéria são uma
tempo a construção de um sistema a partir do sujeito, o que seria no e a mesma coisa. O espírito tira de si a forma e a formação: ele é
entanto um idealismo absoluto e não empírico. A supressão da atividade absoluta. A matéria da atividade absoluta só pode estar no
dualidade entre sujeito e objeto é na verdade a afirmaçâo da identi- absoluto, portanto a objetivação em geral é atividade, não de uma
dade fundamental entre os dois termos. A isso tendem idealismo e subjetividade que seria pura consciência, mas de uma Identidade
realismo, mas sempre na forma de um desequilíbrio que dificulta o que toma forma, que se explicita em produtos finitos nos quais se
reconhecimento do sujeito no objeto e vice-versa. Se considerarmos reconhece a forma em geral da atividade infinita. A identidade sujei-
que o objeto não é apenas uma projeção representativa do sujeito t%bjeto é a identidade forma/matéria. O absoluto produz o real a
("aparência"), mas ao contrário uma produção efetiva, em que o partir de si mesmo, como "agir eterno". "Pense-se em primeiro lu-
produto, por inteira adequação ao produtor, reveste-se de autono- gar, o Absoluto (. .. ) puramente como matéria, identidade pura, pura
mia na medida em que a adequação completa anula a dependência, absolutez; mas como sua essência é um produzir e ele só pode tirar
então poderemos ver, no próprio seio do idealismo absoluto, a ver- a forma de si mesmo, e ele mesmo é pura identidade, então também
li dade ideal do realismo". A natureza é um sistema autônomo e não a forma deve ser essa identidade, e, portanto, essência e forma são
110. I:.
uma realidade subordinada, como no idealismo de Fichte. Este sis- nele um e o mesmo, ou seja, a mesma absolutez pura"." A produção
tema autônomo é autonomamente produzido: a virtude criadora do envolve essencialmente um processo de transformação e de dissolu-
11'' :, ' espírito seria empobrecida se entendêssemos sua produção como ção ou redissolução entre o infinito e o finito. A subjetividade gerada
subordinada e instrumental. A realidade infinita do espírito exige que infinitamente na objetividade finita e esta se redissolvendo na forma.
ele produza infinitas realidades. O idealismo crítico só será inteira- É como se a subjetividade se transformasse em objetividade e esta de
mente compreendido e realizado se entendermos que a causalidade novo se transformasse em subjetividade e este movimento fosse uma

52. "A evolução do pensamento de Schelling o leva ao contrário a pensar, cada vez
mais, não apenas que o real é mais do que uma simples aparência, que ele é uma 53. Delbos, V., ob. cit., p. 109. Cf. SChelling, Exposição da Idéia Universal da Filosofia
produção efetiva do espírito, mas ainda que esta produção do real é em si mesma em Geral e da Filosofza-da-Natureza como Parte Integrante da Primeira, tradução
adequada ao seu princípio e, conseqüentemente, autônoma, que há, correlativamente Rubens Rodrigues Torres Filho, Nova Cultural, São Paulo, 1989 (coleção Pensadores),
ao saber, um sistema da natureza que se basta a si mesmo e que se explica a partir de p.52.
si mesmo" (Delbos, V., ob. cit., p. 103). 54. Schelling, ob. cit., p. 50.

262 263

I.
III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 7. A VIDA COMO PRODUÇÃO ABSOLUTAMENTE CRIADORA

produção absoluta sempre idêntica a si mesma enquanto atividade, ência se constitui como temporalidade, ou seja, se vê como atividade
embora diferenciada quantitativamente na natureza. A oposição, se temporal". Mas isso nos revela que a consciência como temporalida-
oposição há, é derivada da atividade produtora (lembremos a atribu- de visa à realidade numa dimensão: o tempo. Ora, o tempo é o visar
tividade e a modalização spinozistas) e os termos "opostos" tendem da produção absoluta na escala de seu desenvolvimento sucessivo.
a se reencontrar para perfazer a realidade de cada um e a realidade Diferentemente de Bergson, Schelling entende que a Identidade to-
absoluta. Toda objetivação finita é figuração do infinito: mas como o talizadora situa-se aquém dessa dimensão. Para situar a maneira
movimento de objetivação é o movimento infinito da identidade pro- como Bergson entende a relação entre reflexão e absoluto, será ne-
dutora, a figuração traz o infinito no modo de figurar, qualquer que ele cessário que esclareçamos melhor o modo como Schelling e o idea-
seja. Por isso o particular é apenas, para Schelling, inessencial e quan- lismo romântico - tal como se apresenta, por exemplo, em Schlegel-
titativo; a essência é única por ser qualidade absoluta. "A natureza que tratam o mesmo problema.
aparece (... ) é a figuração da essência na forma aparecendo como tal ou
na particularidade, portanto a natureza é eterna na medida em que se
corporifica e assim se expõe por si mesma como forma particular"." Do 7. A VIDA COMO PRODUÇÃO
ponto de vista físico ou cosmológico, a estrutura do universo e o meca- ABSOLUTAMENTE CRIADORA
nismo universal são figurações, isto é, são relações internas da natureza
que exprimem no nível objetivo a produtividade infinita. Mas existe Se o movimento de reflexão quer alcançar a dimensão absoluta
uma "unifiguração", que é o organismo, pressuposto nas duas primei- da consciência, e não apenas o plano do sujeito enquanto consciên-
ras e que seria, para Schelling, "o perfeito correlato do Absoluto na cia empírica, é preciso efetuar o recuo para aquém da objetividade e
natureza e para a natureza"S6. A identidade entre extensão e pensamen- da subjetividade. Schelling entende este recuo como a realização do
to, que Spinoza concebera "objetivamente" deve na verdade ser conce- movimento transcendental em direção ao princípio do saber. Confe-
bida ideorealisticamente, se assim se pode dizer: somente desta forma rir primazia ao objetivo ou ao subjetivo é manter aberto o problema
escaparemos do realismo relativo e do idealismo relativo (Fichte) para do acordo entre a representação e o objeto. Por outro lado, se admi-
aceder a algo como a realidade ideal do Espírito e de seu poder pro- timos simplesmente que a filosofia transcendental parte do subjetivo
dutor. O absoluto não é compatível nem com o resíduo consciente e a filosofia da natureza parte do objetivo, estabeleceremos uma
nem com a materialidade informe, e assim a filosofia da natureza dualidade que nos impedirá de atingir o princípio do saber, a verda-
exige "um novo órgão de intuição e de concepção"57 para compreen- de enquanto idêntica a si própria. "Esse princípio só pode ser único.
der a coincidência entre o "absolutamente real" e o "absolutamente Toda verdade permanece com efeito igual a si mesma. Podem existir
ideal". A compreensão do absoluto como Identidade. graus de verossimilhança ou graus de probabilidade, mas não graus
de verdade"." É bem verdade que filosofia da natureza e filosofia
Se a reflexão deve atingir um movimento originário, este não é o transcendental são duas direções opostas, e poderíamos ver aí dois
movimento como atividade do Eu produtor de representações, mas princípios. Mas a oposição entre inteligência e natureza deve ser
o movimento pelo qual a Identidade originária se diferencia na entendida muito mais como reciprocidade, ou como tendência que
fenomenalidade quantitativa do mundo. Tal processo é visado pela encaminha a natureza para a inteligência como forma de "introduzir
consciência subjetiva através de uma contração do sentido interno a teoria nos fenômenos da natureza"". A própria ciência da natureza
que provoca a intensificação da consciência. Diante da consciência deve tender para a "espiritualização de todas as leis naturais" e mes-
intensiva, os corpos aparecem como extensão constituída, isto é, posta mo a uma redução da natureza à inteligência. Nada impede em prin-
diante do sujeito no seu desenrolar. É nessa oposição que a consci-

58. Schelling citado por Gilson, 8., ob. cit., p. 34 - nota 1.


55. Id., ibid., p. 52. 59. Schelling, Systeme de l'Idealisme Transcendental (excertos), tradução francesa de
56. Id., ibid., p. 53. S. Jankélévitch, Essais, Aubier, Paris, 1946, p. 136.
57. Id., ibid., p. 54. 60. Id., ibid., p. 124.

264 265
111 - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO
7. A VIDA COMO PRODUÇÃO ABSOWTAMENTE CRIADORA

cípio que, começando pelo "objetivo", cheguemos a deduzir o sub- o objetivo coincidiriam, pois o predicado, sendo outro em relação ao
jetivo: seria o trajeto da filosofia natural. Mas, por isso mesmo, a sujeito, seria ao mesmo tempo idêntico a ele. A representação teria
filosofia transcendental deve tomar, ou só pode tomar, a direção ao mesmo tempo valor objetivo e forma idêntica: realizaria o ideal de
oposta, e explicar o objetivo a partir do subjetivo. Isso significa situ- uma verdade idêntica a si mesma (absolutamente idêntica a si mes-
ar-se no plano do saber. Mas não basta situar-se no nível subjetivo ma), e ao mesmo tempo conteria uma realidade objetiva, pois seria
enquanto consciência representante, pois aí o princípio estará sendo uma síntese. A determinação não adviria unicamente do pensamen-
buscado no plano da unilateralidade. Outro nível de consciência é to como nas proposições puramente idênticas, pois haveria algo de
aquele em que, aquém do "pensamento ordinário" como "mecanis- real pensado na proposição. A completa ausência de mediação entre
mo em que dominam os conceitos" embora ainda não reconhecidos
sujeito e objeto, a identidade perfeita entre o ser e a representação,
como tais, atingimos a consciência do conceito como ato, ou o "con-
e ainda assim a síntese: eis a forma do princípio que deve ser encon-
ceito do conceito". Aqui a consciência, ao agir, percebe-se a si mesma
trado como origem do saber. "Essa identidade não mediatizada do
como agente.
sujeito e do objeto só pode existir onde o que é representado é ao
Mas ainda aqui a consciência se vê como imanente aos atos de mesmo tempo o que representa, onde o objeto de intuição é ao mesmo
representação, ainda que separemos o ato da representação deter- tempo seu sujeito. Ora, essa identidade do representado e do repre-
minada. É necessário recuar ainda mais na direção de uma coinci- sentante só existe na consciência de si; é aí que se encontra o ponto
dência total entre o representante e o representado. O que interessa que procurávamos" (p. 145). A reflexão atinge assim a identidade do
nesta coincidência é a incondicionalidade da representação. O con- pensado com o pensamento, o ponto em que sujeito e objeto são um
dicionado remete sempre à sua condição, o que significa que o sis- só. A forma da identidade me garante um pensamento que se torna
tema do saber remete por si mesmo ao incondicionado. É certamen- diretamente objeto para si mesmo. Que é este objeto? É o ato de
te no plano do incondicionado que encontraremos a identidade do pensamento: antes do ato ele não existia: surgiu, pois, no ato e pelo
princípio com ele mesmo: resta buscar então o saber acerca desse ato de pensamento. Não era um objeto inerte esperando ser conhe-
incondicionado. Mesmo quando enuncio uma proposição idêntica cido por um sujeito. Foi o próprio ato de pensar que o engendrou e
(A = A), se ela supõe um saber e não apenas uma representação para por isso sujeito e objeto coincidem completamente. Esse ato é, ao
mim, tenho, além da forma proposicional idêntica, a síntese dos ele- mesmo tempo que ato, conceito do Eu. Ato de conhecimento e con-
mentos, pois, se posso dizer que pensando A não penso outra coisa ceito coincidem, na medida em que o Eu só pode ser representado
senão A, posso sempre perguntar também como cheguei a pensar A. como ato. Atingimos assim um nível anterior à identidade do Eu
Fora da identidade do pensamento consigo mesmo só há sínteses: penso que acompanha todas as minhas representações. Pois aqui
ou seja, sempre que penso algo de objetivo, o pensamento é sintéti- não tenho apenas a forma que liga todas as representações de um
co. Importa então procurar o incondicionado no plano das proposi-
sujeito: tenho uma realidade que é, enquanto atividade pura, identi-
ções sintéticas, o que em princípio é contraditório, pois significaria
dade originária entre representante e representado. Por isto diz
buscar a identidade do pensamento com ele mesmo no plano em
Schelling que o "Eu penso cede lugar ao Eu sou, que é incontestavel-
que o pensamento se relaciona com outro pensamento. No entanto,
o princípio que estamos procurando só pode ser encontrado no pla- mente de ordem superior" (p. 147). A virtualidade predicativa do Eu
no da certeza incondicional sintética. "Essa contradição poderia ser sou faz dele uma proposição infinita, na medida em que a ausência
resolvida se fosse possível encontrar um ponto em que o idêntico e o de predicado real implica a possibilidade de predicação infinita. De
sintético fossem uma e a mesma coisa, ou uma proposição que fosse um lado tenho pois a subjetividade originária como princípio
sintética sendo ao mesmo tempo idêntica e fosse idêntica sendo ao cognoscendi, na medida em que é princípio de conhecimento: de
mesmo tempo sintética"." Numa proposição como esta o subjetivo e outro tenho a virtualidade da predicação infinita como princípio
essendi, ou princípio de realidade. Originariamente tenho a coinci-
dência absoluta entre ser e conhecer. O Eu absoluto é princípio an-
61. ld .. ibid., p. 129. terior à subjetividade e à objetividade.
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L.__
III - INTUIÇ4.0 E EXPRESSÃO
7. A VIDA COMO PRODUÇÃO ABSOLUTAMENTE CRIADORA

Na medida em que o Eu não é primitivamente objeto, mas torna- tidade da síntese. E isso era necessário porque todo conhecifil',nto
-se objeto para si, a intuição pela qual é conhecido .cria o seu próprio sintético é, de alguma maneira, coincidência entre sujeito e objeto. A
objeto. O que distingue a intuição intelectual da sensível é que a dualidade que idealismo e realismo sempre procuraram no regime
primeira é criadora. "Dado que o Eu (enquanto objeto) nada mais é da exterioridade é na verdade inerente à identidade do Eu. O Eu,
do que o conhecimento que tem de si mesmo, o Eu só nasce e existe sendo o primeiro objeto de si mesmo, realiza a unidade sintética
porque se conhece; este próprio Eu é pois um conhecimento criador como coincidência absoluta e, a partir daí, "assegura a unidade e a
deste Eu (enquanto objeto)" (p. 149). O ato de conhecimento cria o coesão de todo conhecimento sintético" (p. 152). A anterioridade
conhecido, unindo a objetividade da síntese com a identidade abso- fundamentadora das sínteses implica a generalidade do Eu, da qual
luta. Mas não se trata apenas de uma intuição que permaneceria deriva toda individualidade, toda determinação temporal. "A consci-
como resíduo fundamental da sistematização do conhecimento. A ência pura é um ato fora do tempo; é este ato que dá nascimento ao
intuição intelectual do Eu é permanente enquanto autocriação, na tempo, enquanto a consciência empírica evolui no tempo e se com-
medida em que é o substrato de todas as construções transcenden- põe de representações sucessivas" (p. 155). Dessa maneira, nem se-
tais. Por isto diz Schelling, numa frase que Bergson certamente cri- quer podemos dizer do Eu absoluto que ele é, no sentido em que as
ticaria, que a "intuição intelectual é (para a filosofia) o que o espaço coisas são. Antes deveríamos dizer dele que é o Ser enquanto ato
é para a geometria" (p. 151). eterno. Mas o ato eterno, enquanto tal, é ao mesmo tempo eterno
A intuição intelectual pode ser entendida como um conhecimento devir e eterna criação. Por isso a eternidade é compatível com a ati-
no sentido de uma determinação do Eu? Para que houvesse determi- vidade, assim como em Spinoza a substância eterna é eterna produ-
nação, no sentido habitual, seria preciso que houvesse a conjumina- ção. Assim, tudo que é, de alguma maneira é supressão da liberdade
ção de forma e matéria. Ora, o conhecimento do Eu é intuição cria- absoluta do Ser. Aqui retornamos ao tema da natureza como inteli-
dora; é a produtividade criadora que toma consciência de si. Ao intuir gência. A liberdade se manifesta no mundo natural através de sua
o Eu, intuo precisamente aquilo que é o não-objetivo em si, de ma- supressão. A liberdade se suprime ao produzir, ao atuar como força
neira alguma uma coisa, mas uma atividade pura. Como poderia o absoluta. "Toda ação livre é produtiva, mas produtiva conscientemen-
fundamento de toda determinação determinar-se a si mesmo? O Eu te. Se em princípio admite-se que estas duas atividades (subjetivida-
portanto não é determinado: é o processo criador consciente de si de e mundo objetivo) são uma só, a mesma atividade que, na ação
através de intuição permanente ou de autocriação contínua. Nesse livre produz conscientemente, se exerce no mundo exterior de manei-
sentido é liberdade ou atividade em si. É por isso também que se ra inconsciente (... ). A natureza, considerada na sua totalidade e nas
situa num estágio anterior à divisão da filosofia em teórica e prática suas partes, aparecerá então como uma obra conscientemente cria-
e, tal como para Fichte, incognoscível (no sentido objetivo) no plano da, mas ao mesmo tempo como o produto do mecanismo mais cego"
teórico, se revelará como produção prática. Tem, assim, o sentido de (p. 156). Esta união entre mecanismo e finalidade é fruto da união
postulado: é uma exigência teórica, algo sem o qual nada de real originária entre atividade consciente e inconsciente. A natureza é
teria sentido; mas ele mesmo não pode ser demonstrado, pois se inconsciente no seu processo criador - e mesmo nos seus produtos
situa no plano da identidade entre criador e criado. Apreendemos o particulares -, mas obedece a uma finalidade se este processo é
que ele é no próprio processo de criação, que se fundamenta na remetido à origem onde consciência e inconsciência são uma coisa
subjetivobjetivação primitiva. só. A coexistência entre liberdade e necessidade não é senão a liber-
dade produtora se determinando temporalmente nos seus produtos.
Como fica, a partir daí, o conhecimento que habitualmente cha- Assim a natureza é espiritual na sua legalidade e a teoria da natureza
mamos "objetivo"? Vimos antes que a filosofia da natureza consti- consiste em determinar a espiritualidade dos fenômenos, a interio-
tuía uma direção oposta à da filosofia transcendental. Ora, acabamos ridade das leis que os regem, como preconizava a "tisica em grande
de ver, na realidade, o nascimento do objeto. E foi no plano mais escala" do "Mais Antigo Programa Sistemático". Sobretudo os seres
radical da reflexão que ele ocorreu, na própria indiscernibilidade entre organizados manifestam a co-presença da liberdade e da necessida-
subjetivo e objetivo. Mas vimos também que o objeto nasceu da iden- de, que não é outra coisa senão a interpenetração da objetividade e
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J
UI - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 7. A VIDA COMO PRODUÇÃO ABSOWTAMENTE CRIADORA

da finalidade na intuição da materialidade. Por isso se pode falar em ção, mas esta é, ela mesma, fruto de ato produtor. Por isso a intuição
"finalidade cega e mecânica" da natureza sem supor, como Leibniz só se dá na reflexão: é preciso que a consciência se reflita num mo-
fazia, o paralelismo exterior entre consciência e extensão. Quando vimento que a leve para aquém da representação enquanto afecção,
falo em teleologia na natureza não posso supor uma intencionalida- para o plano em que a representação revela-se como ato. Mas a ati-
de intrínseca ao processo natural: isso seria permanecer na contra- vidade, ao mesmo tempo em que é reconhecida na sua identidade
dição entre mecanismo e finalidade. Mas posso falar de uma harmo- originária, é vista também como dividida entre produção consciente
nia entre produto e produtor, que nada mais é do que a relação entre e produção inconsciente. O que a teoria recupera é como que uma
liberdade e necessidade, e a vinculação interna destes dois termos identidade dual. A teoria não atinge, pois, o estrato originário (cons-
corresponde à identidade originária da qual o organismo é o correlato ciente/inconsciente) da atividade no seu princípio, algo como a sín-
objetivo. "Toda organização é um monograma desta identidade pri- tese a priori entre liberdade e necessidade. Para isto seria necessário
mitiva" (p. 132). recuperar a índole do processo criativo na escala em que ele é simul-
taneamente consciente e inconsciente, no ponto em que o produto
O que Fichte havia descrito como atividade irrefletida do Eu tor-
criado, enquanto finito, contivesse o infinito. Veremos que somente
na-se para Schelling produção inconsciente: há nisso uma ampliação
da solução fichtiana, pois ao mesmo tempo em que se compreende a arte pode realizar esta simultaneidade.
como a consciência ingênua pode ver como obstáculo e negação No plano da teoria, a dificuldade de compreender a independên-
aquilo que na verdade é um limite interno, abre-se também a possi- cia da produção inconsciente e ao mesmo tempo o seu estatuto de
bilidade de se atingir, pela reflexão, o estrato inconsciente da subje- condição da consciência é praticamente insuperável. O curso da
tividade e reconhecer aí também a atividade produtora que caracte- produção natural e de seus produtos não tem na consciência a sua
riza a consciência em geral. O realismo se dissolve quando entendo condição imanente. Mas como pode o processo produtor, que é ver-
que o que afeta a consciência é produzido por ela. Mas a modalidade dadeiramente o elemento característico da consciência, dar-se como
dessa produção mostra também a necessidade da "aparência real" estranho à própria consciência? Como pode, no curso da produção
ou da exterioridade do fenômeno. Tal necessidade só é compreendi- natural, a consciência surgir de um processo que é afinal gerado por
da quando a reflexão recua até o plano do nascimento da objetivida- ela mesma? Toda a dificuldade vem de que Schelling mantém um
de. O idealismo se faz conseqüente quando incorpora a ilusão da significado realista no próprio fundamento do processo natural. Por-
objetividade como constitutiva do campo da consciência. Assim ve- tanto não é suficiente reconhecer o caráter finalmente subjetivo da
mos que a direção transcendental, que em princípio era apenas a produção inconsciente; é preciso reconhecer também a sua autono-
direção oposta à filosofia da natureza, revela uma dimensão mais mia. A profunda inscrição do realismo no seio do idealismo é no
ampla na medida em que a gênese da consciência é também a gêne- entanto necessária para que se atinja o pensamento da identidade
se subjetiva da objetividade. Há uma relação de complementaridade absoluta. O subjetivo é a dimensão consciente de uma totalidade
e não de oposição entre a filosofia da natureza e a filosofia transcen- que é, no entanto, consciência. Isto nunca aparecerá claramente para
dental, e esta complementaridade nos encaminha para o seu funda- a consciência teórica. O absoluto não é claro, talvez porque a clareza
mento, que é a identidade. A filosofia, como teoria, recupera a pro- seja uma característica da relação cognitiva, portanto da polaridade
dutividade da consciência na medida em que compreende genetica· derivada sujeit%bjeto. É a partir dessa constatação que Hegel po-
mente a formação da representação. "A filosofia é a reprodução derá dizer, referindo-se a Schelling, que na noite do absoluto todos
congenial da produção original, a imitação filosófica do ato formativo os gatos são pardos. Teremos ainda ocasião de comentar o caráter
da representação, a reconquista do original por meio de uma nova noturno da concepção romântica do absoluto. Contentemo-nos por
consciência (... )" (p. 162). A intuição intelectual, ao coincidir com a enquanto em entender que o idealismo absoluto consiste em "atri-
identidade fundamental, revela algo de que o idealismo crítico ne- buir ao Eu um elemento que, ao mesmo tempo, esteja implícito em
cessitava para completar-se: a idealidade do limite. A afecção não é todo o Não-Eu e postular uma identidade para além de ambos, que
índice da exterioridade irredutível, ela é consciência da representa- não possa mostrar-se totalmente em nenhum deles, mas que, não
270 27/
III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO
7. A VIDA COMO PRODUÇÃO ABSOLUTAMENTE CRIADORA

obstante, apareça nos dois"62. Com isso poderíamos dizer que tanto dêssemos que a essência está na limitação, como se a particularida-
a filosofia da natureza como a filosofia transcendental são exposi- de fosse a essência do particular. Mas qualidade ou essência não se
ções incompletas da filosofia da identidade. Cada um deles explica- diferencia: "A diferença não afeta a essência das coisas, mas apenas
ria uma face da produção absoluta e, nesse sentido, eles explicariam a 'grandeza do ser' delas"". Podemos portanto dizer que essencial-
o absoluto, sem no entanto compreendê-lo como totalidade. A dife- mente todo finito é infinito, pois a infinitude, do ponto de vista abso-
rença que atravessa a racionalidade separa sujeito e objeto, mas por luto, é qualidade. A multiplicidade é modalização quantitativa do
outro lado essa dualidade inclui tudo, e portanto a razão unifica os infinito que não afeta a essência dos modos. Por isto o infinito está
dois termos. Assim o idealismo absoluto pode ser também entendido sempre em ato: a razão não é fundamento absoluto, mas realidade
como um racionalismo absoluto. Vê-se por aí que o abandono do absoluta, isto é, a totalidade das "coisas" não repousa na razão abso-
terreno em que sujeito e objeto se opõem, e a tentativa de alcançar luta, mas esta totalidade é razão absoluta.
uma unidade identitária, não significa a renúncia ao conhecimento A produção modalizada é manifestação. Como o absoluto é inse-
racional. É porque nada existe fora da razão que a própria razão é parável de sua manifestação, a série natural é revelação do absoluto,
anterior ao subjetivo e ao objetivo: ela os compreende e lhes dá sen- presença imanente a todos os produtos finitos. A consciência finita
tido, ao mesmo tempo que os supera ao englobá-los. Tal superação, é um produto, no qual aparece a consciência de si e, portanto, a
entende-se, não deriva de oposição dos dois termos; ao contrário, possibilidade da regressão reflexiva. Como o infinito está presente
eles é que derivam da identidade fundamental da razão absoluta. A nos produtos finitos, a consciência é de direito consciência do infi-
oposição é a forma geral da finitude, mas a infinitude não pode ser nito, embora este apareça para ela na forma de abertura da série
"produzida" pela união dos opostos, ela não é uma síntese superior. temporal. A manifestação temporal do infinito na série da particula-
A consciência absoluta é razão. Ora, razão significa conhecimen- ridade finita é, para nossa consciência, condição da realidade efetiva
to. A razão na verdade só pode conhecer-se a si mesma já que nada do infinito. Por estarmos assim situados entre a objetividade, que é
existe fora dela. Mas o movimento de conhecimento é ao mesmo a forma exterior da liberdade, e a reflexão, abstração do objeto e
tempo a gênese de sujeito e objeto, cisão necessária para a realização consciência interna da atividade livre, a intuição da liberdade seria
do autoconhecimento da razão. Em si, sujeito e objeto não diferem, ao mesmo tempo a constatação de sua difusão extensiva e a concen-
pois ambos são razão. A razão "estabelece-se infinitamente como tração reflexiva da atividade livre como força ativa na consciência.
sujeito e objeto", mas essa divisão é quantitativa exatamente porque, Na medida em que subjetivo e objetivo perderam o caráter irredutí-
no plano da qualidade, sujeito e objeto se identificam. A diferencia- vel da oposição, entrar em si e sair de si tornam-se movimentos re-
ção quantitativa, gradual e seriada, entre sujeito e objeto, constitui o lativos. Uma vez que o objetivo é disseminação da liberdade infinita,
que chamamos de multiplicidade: conforme o membro desta série, o absoluto como que se desdobra fora do sujeito; em contrapartida,
Ili.11 nele preponderará o objetivo ou o subjetivo. Nada existe, pois, que a subjetividade encontra na consciência a atividade livre em estado
U:"'~
seja somente objetivo ou somente subjetivo: apenas a diferença quan- de tensão. Assim não se pode dizer que o "objeto" da reflexão seja da
.'c, titativa determina que consideremos um ou outro aspecto unilate- ordem da subjetividade64 • Na verdade, dificilmente se pode falar em
ralmente. Isto significa que a multiplicidade é real. A passagem da objeto da reflexão, Isto porque forma e conteúdo deste "objeto" teriam
identidade à diferenciação não é a passagem de ser ao não-ser. Mas de coincidir pura e simplesmente no ato de sua posição. Seria um
como a identidade se preserva na diferenciação, porque ela é o em- objeto em que a forma da posição coincidiria com a sua realidade.
-si, todo particular é, de certa maneira, aparência: é aparência pelo Ou seja, a matéria teria de ser também pura e simplesmente posição.
lado parcial em que o consideramos, já que não o vemos como
partícipe da unidade absoluta. Neste sentido é que ele é inessencial:
quando o consideramos pelo lado da quantidade é como se enten- 63. Id.. ibid., p. 159.
64. Marquet, Jean-François, Liberté et Existence, Étude sur la Formation de la
Philosophie de Schelling, Gallimard, Paris, 1973, pp. 37-38 (a propósito de um frag-
62. Hartmann, N., oh. cit., p. 157. mento de Novalis).

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO


7. A VIDA COMO PRODUÇÃO ABSOWTAMENTE CRIADORA

Nesse caso, assim como a forma não seria anterior à posição, tam- noscível para o sujeito relativo, aquele constituído no interior da
bém o conteúdo se confundiria com o engendramento da forma. A polaridade sujeit%bjeto". A diferença entre sujeito absoluto e su-
total imbricação entre ser e ser pensado como que dissolve o objeto jeito relativo cria um problema que afeta diretamente o percurso que
da reflexão na pura imediatidade do em-si da atividade produtora. estamos tentando fazer. O sujeito relativo, ao operar o movimento
de reflexão, não atinge a dimensão do princípio absoluto porque,
Entretanto, é possível dizer também que o objeto da reflexão não enquanto movimento relativo, essa reflexão não vai além da consci-
existe enquanto objeto encontrado. Não é possível descrever intuiti- ência já produzida pela relação sujeito/ objeto. É neste sentido que
vamente a consciência e assim chegar a uma dimensão em que a Schelling diz que "a reflexão pura e simples" barra o caminho para o
atividade de posição coincidisse com a passividade da força difundi- sujeito absoluto, considerando-a mesmo uma "doença do espírito
da. O que caracteriza o ato intuitivo é que ele é o seu próprio objeto. humano (... ) que destrói no germe sua existência superior e aniquila
Não basta dizer que a intuição cria o objeto: a própria intuição é em sua raiz sua vida espiritual que tem por condição exclusiva a
autocriar-se, sem que seja possível separar criador e criatura. Por identidade"66. O esforço de Schelling vai no sentido de não permane-
isso a reflexão é abissal: a atividade vertiginosa é um mergulho infi- cer no que ele denomina idealismo relativo ou unilateral, que consis-
nito, e a reflexão como que atravessa sua própria infinitude. Seria te em inferir o Eu absoluto a partir de sua imanência ao Eu finito,
contraditório encontrar neste movimento o ponto em que ele se como considera que ocorre no modelo fichtiano. Não se trata de
detém. explicar apenas a dimensão transcendental do Eu diante do não-Eu,
A infinitude e a pureza da razão absoluta criam o paradoxo de mas de explicar também a existência do universo. A relação sujeito/
que a razão humana não pode atingir a razão absoluta. Mas este objeto supõe sempre um condicionamento recíproco, qualquer que
paradoxo se desfaz quando compreendemos que a racionalidade seja o termo privilegiado. O sentido da consciência é dado pela nature-
humana se reduziu sempre à busca de uma objetividade adequada a za no plano de sua manifestação objetiva. Sem elucidar a natureza, a
um sujeito. O racionalismo absoluto de Schelling reúne a Vontade consciência perde o significado de sua manifestação. É esse o senti-
enquanto razão prática e a objetividade enquanto razão teórica. Es- do do "retorno à física", interpretado como O retorno ao dogmatismo
sas duas dimensões, separadas em Kant, haviam criado o problema, na filosofia de Schelling. No entanto, há duas maneiras precisas em
insolúvel em termos kantianos, do conhecimento do supra-sensível que se deve entender o retorno à física. Em primeiro lugar, um sen-
e da própria razão enquanto vontade incondicionada. Ao reunir as tido de correção e complementação do projeto de Fichte, que fazia
duas dimensões num princípio que é ao mesmo tempo querer en- da natureza uma produção inconsciente do Eu, no plano da imagi-
quanto princípio e conhecer enquanto princípio, Schelling não pre- nação produtora. Já vimos que a ampliação da noção de produção
tende, no entanto, recuperar a possibilidade do conhecimento obje- irrefletida para produção inconsciente remetida ao sujeito absoluto
tivo do incondicionado. O princípio é incognoscível teoricamente retira da natureza o estatuto de mero produto da subjetividade e
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I:;:;" não apenas enquanto vontade, mas enquanto princípio absoluto, do situa em outro nível o problema do estatuto da representação. Em
querer e do conhecer. Isso porque Schelling não via na aspiração segundo lugar, a física na qual pensa Schelling não é a ciência new-
"li·1;,I.:,.·
supra-sensível da razão prática fundamento suficiente para postular toniana, mas a "física em grande escala" de que falava o Mais Antigo
o absoluto. É a própria razão, aquém de seu caráter prático e teórico, Programa do Idealismo Alemão, e cujo esboço está no projeto de
que é o absoluto e, como tal, incognoscível teoricamente. O fato de física organicista de Goethe. A natureza como um todo deve ser
não podermos atingir o incondicionado racionalmente não significa
que o mesmo esteja fora da razão, mas simplesmente que a polari-
dade subjetividade/objetividade, forma pela qual se estrutura no °
65. "O sujeito absoluto, sendo vontade pura. põe mundo; o sujeito relativo,
maculado pela razão, se opõe ao mundo" (Bornheim, G., Aspectos Filos6ficos do Ro-
homem a razão, não alcança a dimensão pré-objetiva e pré-subjetiva mantismo, Instituto Estadual do Uvro, Porto Alegre, 1959, p. 74. Texto reeditado na
na qual se situa a Razão como princípio absoluto. A dimensão volun- coletânea Romantismo, org. J. Guinsburg, Perspectiva, São Paulo.
tarista do sujeito absoluto está inscrita no nível da produção originá- 66. SChelling, Idées Pour une Philosophie de la Nature, tradução francesa, S.
ria, aquém da separação entre teórico e prático. Esse plano é incog- Jankélévitch, Essais, cit., p. 47.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO
8. INTUIÇÃO, REFLEXÃO E INTERIORJDADE

entendida como um grande organismo para a compreensão do qual


medida em que nela a unidade entre natureza e espírito se torna
o mecanicismo é insuficiente. Nesse sentido, o inerte é apenas um concreta.
resíduo ou um projeto falhado no itinerário do espírito enquanto
manifestação da Vida. A natureza é na verdade o devir do espírito e
o mecânico é apenas o avesso do processo. 8. INTUIÇÃO, REFLEXÃO E INTERIORIDADE
A solução de Schelling para a problemática do absoluto procura
reunir a transcendentalidade do Eu e a objetividade da natureza, Ainda que o caminho para a intuição do absoluto passe necessa-
encontrando um princípio incondicionado a partir do qual se possa riamente pela reflexão, na medida em que o incondicionado não pode
compreender a geração das duas formas fundamentais da filosofia, a ser buscado do lado do objeto, permanece em Schelling a separação
subjetividade e a objetividade. O instrumento para a busca desse entre reflexão e intuição, pois a reflexão de alguma forma subordina
princípio é a intuição, que se inicia no movimento subjetivo de refle- a infinitude do absoluto à finitude da consciência. Talvez seja neces-
xão mas que não se esgota nele. Há de se constatar, porém, que muito sário que a infinitude seja pensada primeiramente como subordina-
embora a identidade absoluta se situe aquém do sujeito e do objeto, da à finitude, já que provavelmente não há outra maneira de aceder
a busca do incondicionado passa, ílinda que metodicamente, por um à consciência do infinito a não ser por meio desta contradição. Por
trajeto regressivo da subjetividade;- pois é no plano da consciência isto no diálogo Bruno, ou Do Princípio Divino e Natural das Coisas,
subjetiva que o movimento produtor toma consciência de si. Somen- é feito um longo caminho para se chegar à intuição temporalmente
te no plano da consciência se dá a possibilidade de recuperar o determinada, contraposta ao pensar como saber infinito. Mas o ape-
movimento da produção inconsciente. Embora a permanência no Io à intuição mostrou também que a oposição entre determinação e
plano subjetivo da reflexão equivalha à recusa de pensar a identida- infinitude era na verdade um entrelaçamento, e pensar este entrela-
de, é somente através deste plano que o sujeito pode ter acesso à çamento já significava compreender "que e como tudo está contido
revelação de si mesmo como negação da identidade e, portanto, in- em tudo e mesmo no singular está depositada a plenitude do todo".
diretamente, à revelação da identidade. No trajeto regressivo da re- Portanto, se a intuição é diferença e o pensar indiferença, o pensar
flexão, o Eu é o último objeto de si próprio, porque é, geneticamente, esta própria oposição significa situar-se num plano em que a dife-
o primeiro. Se isso for considerado o término do trajeto filosófico, rença e a indiferença são uma e a mesma coisa. Donde se conclui
permaneceremos na esfera da síntese objetiva, ainda que no seu que a "mera oposição" entre a determinação real e a indiferença ideal
nascedouro. Mas como regredir subjetivamente para aquém da coin- é índice de uma unidade entre o real e o ideal, ou a "absoluta unidade
cidência do Eu consigo mesmo? Aqui a consciência teórica encontra da unidade e da oposição". Na verdade, somente a intuição temporal
o seu limite e, assim, a identidade absoluta só pode ser pensada está oposta ao pensar. Mas a intuição temporal é intuição aparente e
abstratamente. Para que a identidade deixe de aparecer como abs- confusa, ou seja, própria da consciência subjetiva. "Portanto, aban-
trata, é preciso suprimir a condicionalidade subjetiva do objetivo. É donarás este estreito em que te havias mantido anteriormente, ao
preciso uma fusão da produtividade consciente e do movimento in- restringires a unidade suprema à consciência, e ganharás comigo o
consciente. É preciso atingir conscientemente a presença, velada para livre oceano do Absoluto, onde não só nos moveremos mais viva-
si, da consciência na natureza. Desta forma a subjetividade se insere mente, mas conheceremos a infinita profundeza e altura da razão"."
numa força pré-consciente e, levada por esta corrente, tenta a sínte- A intuição do infinito deriva da referência do conhecer finito ao co-
se entre a livre criação e a necessidade inconsciente." A produção nhecer infinito, ou a possibilidade indefinida do conhecimento, que
artística rompe a separação entre o "em nós" e o "fora de nós", na ainda é infinito de entendimento. O conceito, por exemplo, é uma
possibilidade infinita de conhecimento infinitamente posta pela pró-

67. tl.A produção artística é uma tentativa de síntese do conflito entre a livre criação
espiritual do artista e a necessidade inconsciente" (Bornheim, G., ob. cit., p. 85). 68. Schelling, Bruno ou Do Princípio Divino e Natural das Coisas, tradução Rubens R.
Torres Filho. Nova Cultural, São Paulo, 1989 (coleção Pensadores), p. 129.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 8. INTUIÇAO, REFLEXÃO E INTERIORIDADE

pria diferença entre a generalidade conceitual e a particularidade Schelling a atividade e o ser não aparecem como produtor e produto,
das coisas determinadas. É o plano lógico do infinito. No entanto a mas como idênticos. Compreendemos também que, da mesma ma-
possibilidade deste plano está dada pela referência do conhecer finito neira que a reflexão subjetiva é mera particularidade, a reflexão total
ao infinito; as determinações cognitivas derivam dessa referência, ou aparece necessariamente como a face identitária do pensamento.
melhor, do absoluto que na relação é referido. A oposição entre real Walter Benjamim assinala de modo claro esta relação única e neces-
e ideal pode ser vista como uma relação reflexa, cujos termos são sária do pensamento consigo próprio. Já que tudo que é efetivo pen-
valorizados unilateralmente, se não a entendo como a relação entre sa, "este pensar, sendo o da reflexão, só pode pensar a si mesmo ou,
ser infinito e conhecer infinito, resolvida na eternidade. Por isto ati- mais exatamente, seu próprio pensar; e como este próprio pensar é
vidade não se opõe a ser. Se os produtos da atividade produtora são um pensar substancial e pleno, ele se conhece no tempo em que se
no plano da finitude depositada historialmente, temporalmente, a pensa"70. Dir-se-á, portanto, que há uma reflexão do objeto? A ex-
atividade enquanto evolução material da naturalidade finita só é pressão se mostraria adequada apenas para reforçar a disseminação
corretamente compreendida quando a remeto à sua qualidade infi- da potência reflexiva, mas esta disseminação envolve necessariamente
nita, onde atividade se confunde com eternidade. Assim, pode-se a desaparição das noções de sujeito e objeto. No entanto a identifi-
manter com a atividade infinita uma relação contemplativa, posto cação que faz Novalis entre pensar e conhecer na modalidade da
que sua essência infinita não se traduz como processo indefinido, e reflexão suscita inevitavelmente a questão da relação entre conhecer
sim como eternidade. O caráter igualmente absoluto do ser e do e ser conhecido, problema aliás que já aparecia na menção schellin-
conhecer corresponde à identidade entre ser, intuir e pensar. "Pois giana do conhecer infinito. Em Schelling, como vimos, a presença da
no absoluto tudo é absoluto e se, portanto, a perfeição de sua essên- inteligência na natureza era a forma de esta tornar-se si mesma, ou
cia aparece no real como ser infinito, no Absoluto o ser como o co- de reconhecer-se como espírito. Mas sem que aqui precisemos ape-
nhecer são absolutos e, na medida em que cada um é absoluto, tam- lar para aspectos específicos da filosofia da identidade, podemos notar
bém nenhum deles tem uma oposiÇão fora de si no outro, mas o que a inseparabilidade entre conhecer e ser conhecido significa a
conhecer absoluto é a essência absoluta, a essência absoluta o co- inserção da reflexão no modo de ser e pensar-se da totalidade. Para
nhecer absoluto"." Novalis, "a ipseidade é o fundamento de todo conhecimento"", e o
ser-conhecido de um objeto pressupõe o conhecimento que ele tem
Compreende-se que a reflexão subjetiva não se possa elevar até de si mesmo. O conhecimento é como a germinação da reflexão no
a dimensão do infinito de razão, a eternidade. Talvez a expressão ser pensante, isto é, em todos os seres. Todo conhecimento é, pois,
mais adequada do que significa o conhecer infinito, na sua identida- um procedimento de autoconhecimento. Enunciada de forma tão
de com o ser infinito, se encontre em Novalis, quando estende a radical, a concepção de Novalis mostra o problema do conhecimen-
reflexão à indiferenciação do pensável-pensante como totalidade: to a que habitualmente chamamos de "objetivo". Pois, segundo ela,
efetividade e pensamento são sinônimos, tudo o que é, pensa. O cada ser conheceria apenas a si mesmo. Não podemos, rigorosamen-
absoluto é pensante, mais do que pensado. Por isso a teoria fichtiana te, falar em conhecimento "objetivo", mas apenas em conhecimento
do Eu aparece como demasiado estreita para Schlegel e Novalis: o Eu de outro ser, o que se dá através de algo como uma expansão do
é uma perspectiva particular do pensamento; cabem ainda outras, autoconhecimento. O universo não é um agregado de mônadas in-
como a natureza e a arte. Mas o essencial é a afirmação da totalidade comunicáveis, mas, se há comunicação, ela não se dá sob a forma da
pensante que caracteriza o absoluto. Assim a reflexão reaparece na "objetivação". O que existe são relações de inclusão de outros seres
forma da mais profunda e radical totalização. Tudo o que é, é no no conhecimento que um ser tem de si mesmo, através da potencia-
absoluto, como absoluto; o absoluto é efetividade plena; tudo o que lização da reflexão. Não nos esqueçamos de que Novalis chama a
é efetivo, pensa. Com isto compreendemos melhor por que em

70. Benjamim, W., ob. cit., pp. 92-93.


69. Id .• ibid.• p. 136. 71. Novalis citado por W. Benjamim, ob. cit., p. 93.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 8. INTUIÇÃO, REFLEXÃO E [NTERIORIDADE

esta potencialização de "romantização", um procedimento de acrés- ganicidade do absoluto. O que decorre dessa teoria do conhecimen-
cimo de si mesmo, ou de incorporação de outro a si, como ocorre na to é que o conhecimento se define evídentemente pela imediatez, já
potenciação em sentido matemático, A potencialização representa que é fundamentalmente autoconhecimento. Não há diferença, quan-
um sair de si que é ao mesmo tempo um permanecer em si, pois um to à imediatidade, entre autoconhecimento e interpenetração refle-
ser multiplicado por si mesmo permanece tal e qual ainda que mo- xiva pela qual se dá o conhecimento de outro ser. A concepção de
dificado ou expandido pela multiplicação. A reflexão é o único pro- Novalis tem estreita relação com a imanência a si do Eu fichtiano.
cedimento de conhecimento. Mas não apenas o homem pode fazer Com efeito, o Eu conhece porque se conhece, assim como o olho vê
uso dele. Também os objetos "naturais" são dotados de reflexão, são porque se vê. Na verdade, correto seria dizer que o olho só vê porque
centros de reflexão. O conhecimento de outro é irradiação do auto- se vê, a imaginação só imagina porque se imagina etc. Em suma o
conhecimento. As recíprocas irradiações de autoconhecimento cons- pensamento só reconhece o pensamento, e tudo é conhecido na
tituem uma espécie de comunhão reflexiva que deve ser entendida medida em que se pensa. Fichte vía como traço original em sua filo-
como uma comunicação cognitiva. "Tudo o que, por conseqüência, sofia o fato de que o filósofo evocava ou provocava a ativídade do Eu
aparece ao homem como o conhecimento que tem de um ser é o para observá-la e para poder concebê-la em sua unidade. O filósofo
reflexo, nele, do autoconhecimento do pensar neste mesmo ser"." se punha na posição de espectador da ativídade do Eu, o que é muito
Mas a comunidade reflexiva não é outra coisa senão a ausência de diferente de simplesmente pensar o Eu num sentido objetivo. Novalis
limitação de cada ser na sua auto-reflexão. A intensificação ou a amplia o alcance desta evocação para todo e qualquer objeto, o que
potencialização da reflexão mostram que não há barreiras entre co- redunda numa interessante relação entre, por assim dizer, consciên-
nhecer e ser-conhecido, ou simplesmente que não há barreiras entre cias de si. Pois conhecer significa evocar a consciência de si daquilo
os seres, pela razão de que o plural aqui empregado reflete tão-so- que é conhecido, já que a relação de conhecimento é a relação de
mente a participação de todos os indivíduos no absoluto. Walter autoconhecimento. Conhecer significa portanto provocar aquilo que
Benjamim afirma que a reflexão é o "medium" no qual se dá a exis- cada ser possui de mais íntimo: a relação consigo mesmo. A relação
tência e o conhecimento. do homem, assim relacionado consigo mesmo, com outros seres por
É a interpretação que ocorre nesse "medium" que nos propor- sua vez relacionados a si mesmos é o que Novalis denomina idealis-
ciona a um tempo a indivíduação e a remissão dos indivíduos ao mo mágico. A comunicação vísa identificar-se com o devír daquilo
absoluto. Isso significa que a relação de conhecimento, longe de se que é conhecido, e essa identificação exige do cognoscente que re-
dar sob a égide da separação entre sujeito e objeto, traduz por si nuncie à posição de sujeito. Assim o "objeto" não é conhecido pelo
mesma a supressão dessa dualidade. A relati\idade dos indivíduos sujeito, mas por si mesmo. Novalis concorda com Goethe: conhecer
na comunhão reflexiva remete à interpenetração fundamental. "Todo a natureza não significa propor questões ao mundo natural. A obser-
conhecimento é uma conexão imanente no absoluto ou, se se quiser, vação e a experimentação significam deixar acontecer o autoconhe-
no sujeito. O termo 'objeto' não designa uma relação no conheci- cimento: a atitude de espectador é a que melhor convém ao proce-
'" dimento de identificação.
mento mas uma ausência de relação"." Uma complexa rede reflexiva
governa, assim, as relações de conhecimento. O ser que conhece, É preciso notar também que o medium da reflexão é a ancora-
conhece antes de mais nada a si mesmo: conhece e é conhecido; o gem da relação absoluta que se dá entre todos os elementos relativos
ser que é conhecido ("objeto") o é enquanto se autoconhece e en- que compõem a nossa vísão necessariamente descontínua do abso-
quanto conhece aquele que o conhece, o qual por sua vez é conhe- luto. A relativídade desses elementos é o avesso da unidade reflexiva
cido enquanto se autoconhece ... Esta rede reflexiva representa a or- do ser. Apesar de que em Novalis exista ainda uma forte influência
fichtiana que o impede de afirmar explicitamente a identidade abso-
luta, a potencialização reflexiva indica que a incorporação recíproca
72. Benjamim, W., ob. cit., p. 95. dos elementos relativos resulta numa totalidade orgânica, não so-
73. Id., ibid., p. 96. mente em termos de conhecimento, mas também em termos de ser,
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III - INTUIÇÃO f EXPRESSÃO 8. INTUIÇÃO, REFLEXÃO E INTERIORIDADE

na medida em que a reflexividade de cada elemento assegura a iden- abre a possibilidade da própria transformação material a partir da
tidade entre ser e ser-conhecido. A identificação entre real e pensan- vontade. Assim a consciência reflexiva revela-se como veículo de auto-
te faz com que O ser identifique-se com o pensar-se, não no sentido -revelação do absoluto. A perfeita compreensão da filosofia significa
em que cada coisa seria objeto de si própria, mas no sentido em que entender esta auto-revelação. A originalidade do idealismo mágico
O pensar reflexivo é, para tudo O que existe, índice de si mesmo. consiste em admitir que esta auto-revelação se dá na intuição inte-
rior com a qual a criação está em continuidade. No caso da moral
Esta espécie de inter-reflexividade na forma da conexão imanen- isso se expressa na imanência dos valores à ação. Mas essa criação
te faz com que a conexão infinita das representações (Schlegei) não em continuidade com a intuição interior afirma-se mais precisamen-
seja necessariamente ordenada pela consciência finita do homem, te na arte, na medida em que o artista cria realmente a partir do
mas se dê como disseminação em que a exponenciação reflexiva mundo que iiltui interiormente. No artista, a reflexão é imanente à
assegura a expansão orgânica da consciência de si do absoluto. No atividade criadora. A arte do pintor é a arte de ver, a arte do músico
plano da consciência humana, a potencialização ou a intensificação é a arte de ouvir: neles O que nos outros homens é passivo transfor-
da reflexão, além de ser fator de autoconhecimento, é também órgão ma-se imediatamente em atividade. O enigma da criação consiste
de transformação e criação. A partir da idéia fichtiana de produção propriamente nesta inserção absoluta em que a passividade é ativi-
da consciência através da imaginação, Novalis concebe o poder ab- dade e em que a contemplação é produção. A produção da forma
soluto de produção, com uma legalidade imanente que deriva total- através dos órgãos espirituais do ver e do ouvir constitui a genialidade,
mente da consciência produtora e criadora. Para ele, a liberdade do que se define como a imanência das regras à produção. O gênio possui
espírito não é compatível com leis anteriores ao potencial criador da portanto o poder absoluto de dar forma segundo leis intrínsecas à
imaginação. O espírito não é apenas soberano no aspecto operatório própria genialidade. Só a criação inteiramente livre é compatível com
de sua produção: ele é soberanamente livre porque se governa a si a soberania do espírito. No artista a solicitação da ação, da vontade,
próprio e à sensibilidade, "plasma o mundo a seu prazer"". Nesse coincide com o núcleo interior da vida, e deste se irradia a produção
sentido O movimento de reflexão não determina objetivamente o da forma como pura criaçãO. A comunicação entre o núcleo interior
espírito; pelo contrário, a reflexão, na sua radicalidade, alcança a in- e o que está fora dele não se configura como exterioridade recíproca.
determinação do espírito e é o que permite ao homem superar-se na Justamente a magia do idealismo criador consiste em que este nú-
criação e autocriação. "Não devemos ser meramente homens, deve- cleo interno é o mundo na sua verdade absoluta. Por isso a arte é
mos ser também mais do que homens. Homem, em geral, equivale órganon de manifestação da verdade e poesia e filosofia se confun-
a universo. Não é nada determinado, pode e deve ser ao mesmo dem enquanto meios de revelação do devir interno das coisas, ou da
tempo qualquer coisa de determinado e de indeterminado 75 ." A in- poíesis, produção interna do real que a fantasia e a imaginação cap-
tensificação da consciência, ao mesmo tempo em que realiza o po- tam diretamente. A coincidência entre o núcleo intuitivo interno e o
tencial reflexivo, revela o poder criador e transformador inscrito na que chamamos de "mundo real" faz com que a fantasia seja o mais
relação de interioridade recíproca que a consciência mantém com autêntico acesso à verdade. "A poesia é o real autêntico e absoluto.
tudo que a rodeia. A indeterminação significa que é o potencial cria- Este é o cerne da minha filosofia. Quanto mais poético tanto mais
dor que vai definir, a cada momento, o ser do homem em relação aos verdadeiro 76 ." Se a filosofia mostra-se como órgão de conhecimento
outros seres. É claro que essa possibilidade aparece primeiramente, da verdade da mesma maneira que a poesia, a reflexão enquanto
tal como nos outros pensadores da vertente prático-voluntarista, com produção fIlosófica não pode assumir o caráter determinante que
um sentido moral. Mas em Novalis, este sentido expande-se para o contrariaria a indeterminação da consciência profunda enquanto
plano ontológico por via do idealismo mágico, por meio do qual se núcleo intuitivo. A filosofia deve ser caracterizada pela indetermina-
ção e o único sistema filosófico possível é o sistema da liberdade ou

74. Hartmann, N., ob. cit., p. 230.

j
75. Novalis citado por Hartmann, ob. cit., p. 231. 76. Novalis citado por Hartmann, ob. cit., p. 233.

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8. INTUIÇÃO, REFLEXÃO E INTERIORIDADE


III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

"a assistemática levada até o sistema"n de maneira semelhante à ção externa ou plasmação da alteridade, mas tessitura poética inter-
concepção de sistema que já vimos ser a de Schlegel. Reflexão infi- na como modo de revelação da realidade na sua mais efetiva pleni-
nita supõe sistema infinito. Se a única determinação é criação, a de- tude? Ê claro que se pode falar aqui de planos de realidade. O gênio
terminabilidade filosófica será sempre oscilante entre a determina- permanece adormecido na caricatura de criação que é a instrumen-
ção e a indeterminação. A criação é produto indeterminado. Dessa talidade cotidiana, ou na relação mundana regulada pelo bom senso
forma, a filosofia é, para Novalis, arte absoluta, pois seu produto não . em termos de interioridade/exterioridade. Mas não há por que falar
é exatamente uma obra, mas a forma absoluta, ou a essência abso- de uma sucessão linear de planos de realidade ou de consciência,
luta do mundo, que se autoconhece na medida em que é poietica- uma vez que os centros de reflexão projetam-se transversalmente.
mente revelado na reflexão filosófica. A filosofia realiza mais perfei- No plano dessa translação ou dessa transversalidade, o fóssil e a es-
tamente a atividade poiética na medida em que é poesia sem poema, trela são centros de reflexão, assim como o é a consciência humana.
atividade sem produto, poetizar absoluto. O filosófico é portanto a Na relação de conhecimento que é simultaneamente conhecer e
atividade poetizante no seu sentido inacabado e infinito. Assim o autoconhecer, a estrela encontra o olho tanto quanto o olho encon-
infinito e o absoluto transparecem na filosofia: na medida em que o tra a estrela, e o fóssil nos observa quando o observamos. Isso nos
mundo interior e o mundo exterior ligam-se por transparência, e a serve de ocasião para dizer que, em Bergson, o elementar pode estar
produção desta transparência é a atividade simbólica a partir da re- mais próximo do princípio do que um órgão instrumental cuja per-
flexão. A liberdade mais perfeita é o situar-se nesta transparência feição custou exatamente o afastamento das origens. Assim é que o
plasmadora, "entre dois mundos, num estado intimamente vivo" que instinto está mais próximo do élan original do que a inteligência. A
se traduz num sentimento de poder. "enteléquia biológica"" que não possui O discernimento da consciên-
cia instrumental está no entanto mais próxima da força criadora,
Se assim se pode dizer, a reflexão como conexão infinita, que sem que possa disto tomar consciência.
vimos em Schlegel, ganha aqui algo como uma translação cognitiva
que confere dinamismo e organicidade à apreensão do absoluto. Esta rápida passagem pela concepção da reflexão disseminada
Repitamos que esta apreensão é sempre auto-apreensão, sem que a em Novalis serviu para nos mostrar que, para os românticos, a rela-
consciência humana perca com isso sua personalidade. Pois o abso- ção entre reflexão e conhecimento inclui uma afirmação da reflexão
luto é dotado de auto-reflexividade porque cada modo de consciên- no plano pré-subjetivo e pré-objetivo que é solidária da auto-reflexi-
cia que nele se dá opera por reflexão. Por isso na interioridade se vidade do ser. Assim compreendemos por que Schelling podia afir-
encontra um mundo, o mundo, e a imaginação quanto mais se volta mar a pobreza da reflexão subjetiva quando se trata de alcançar a
sobre si e exerce seu poder de produzir fantasia tanto mais apreende dimensão cósmica do espírito e o seu desdobramento na desconti-
o real no que este tem de mais autêntico. Goethe se perguntava: nuidade finita.
"Não está o mais profundo da natureza no coração do homem?"" No meio reflexivo, a imanência da consciência à totalidade, a
Não se trata de uma coincidência da interioridade com a exteriorida- imanência de cada ser à totalidade do Ser: assim se configura a pos-
de, mas de uma identificação de duas interioridades, ou de dois cen- sibilidade da intuição e da criação, na medida em que o infinito toma
tros de reflexão. Mas o que pode ser esta identificação senão o reco- forma através da atividade criadora, seja nos produtos finitos da arte,
nhecimento da interioridade fundamental, o situar-se no núcleo ín- carregados da presença do infinito, seja na atividade poiética filosó-
timo do ser de onde irradia a criação que não é outra coisa que a fica da realização das formas ou essências (real-idealização). Mas
expansão reflexiva do ser como totalidade, na qual atividade e con- como explicar a criação, se o absoluto está dado, na sua atividade I
templação se confundem porque justamente a criação não é produ-
79. "C .. ) a idéia profunda de uma afinidade paradoxal segundo a qual o inferior e o
elementar podem estar freqüentemente mais intimamente vinculados ao princípio
77. Novalis citado por Hartmann, ob. cit., p. 234.
superior do que os graus intermediários aos quais estamos mais atentos na vida co-
78. Citado in Frank, Simon, L'Intuition Fondamentale de Bergson, in Henri Bergson,
tidiana" (Simon, F., ob. cit., p. 193).
Essais et Témoignages, ob.cit., p. 190.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 8. INTUIÇÃO, REFl..EXAO E INTERIORIDAOE

passividade infinita, unidade eterna da qual o particular é apenas descoberta num percurso que à primeira vista parece ser duplo: a
figuração? Se é a intuição do absoluto que possibilita a figuração, a gênese objetiva do instinto e da inteligência a partir do princípio
criação figurada do infinito no finito, esta criação não será sempre vital ou élan original, de um lado, e a reflexão que, ultrapassando a
derivada, cópia incompleta da totalidade inexprimível por já ser in- objetividade da inteligência, recupera, sem poder estabelecê-la com
dissociadamente realidade e expressão? Nesse caso, mesmo que cri- exatidão, a dimensão pré-objetiva e pré-subjetiva em que a cons-
ar significasse participar do absoluto, tal participação não seria se- ciência coincide com a temporalidade em si. Na verdade são como
quer seguir um paradigma, pois não é o modelo que está dado, é o que duas faces da mesma moeda, pois a gênese objetiva da cons-
próprio Real na sua completa efetividade. Mas se o Ser é Liberdade, ciência subjetiva leva à constatação das virtualidades instintivas da
a imanência não é apenas participação na Liberdade, é ser livre na inteligência, o que permite recuperar pela reflexão o estrato de coin-
plena identificação com a Liberdade. A partir da Liberdade como cidência entre consciência subjetiva e consciência em geral. Há nes-
interioridade em si, o que deve ser explicado é a necessidade exter- se percurso um movimento ambivalente: a gênese objetiva da cons-
na, o aparecimento daquilo que não foi inventado: o resíduo a ciência me mostrou sua imanência à duração; no entanto, para com-
posteriori da criação. Criação irrefletida ou produtividade inconsci- pletar o movimento da reflexão e alcançar o plano em que consciên-
ente, o mundo "real" da natureza adverte-nos, na sua densidade, cia de si e consciência em geral se identificam, tenho de transcender
que a atividade criadora considerada nela mesma supera o homem, a temporalidade subjetiva. Mas se a temporalidade subjetiva é a face
e que o criador não é apenas homem. Por isso mesmo, a criação consciente do Tempo, como posso transcendê-la sem romper a ima-
humana tem um sentido predominantemente moral. Criação huma- nência da consciência à duração? Transcendendo a temporalidade
na talvez seja aqui um termo inadequado. Melhor seria dizer criação da consciência, que é a face subjetiva do Tempo, não estaria aban-
a partir do homem. A imanência do princípio à ação e a do valor ao donando a via "temporalista", única maneira de aceder à intuição do
ato figuram a imanência da consciência à totalidade. Afinal, é a absoluto? Podemos encaminhar essa questão no sentido de uma com-
ampliação da noção kantiana de mundo prático que aparece aqui preensão mais específica do que significa no pensamento bergsonia-
como a chave para a compreensão da atividade criadora. O produto no a noção de transcendência. Se transcendente for sinônimo de algo
artístico é sensível, mas seu significado é infinito; apenas este signi- que, situado num plano mais elevado, subordina a si e compreende
ficado não transcende o produto, mas está nele como imanência pro- de alguma forma sob si outras realidades que dele dependem onto-
dutora. A ação é sensível, mas o corpo é instrumento do espírito logicamente, numa ordem de ser, então, no contexto do pensa-
enquanto órgão infinito. O valor é criação que não transcende a ação, mento bergsoniano não podemos falar em transcendência, pois ne-
mas lhe confere a forma pela qual ela ultrapassa a finitude. nhuma realidade transcende o Tempo. A temporalidade subjetiva e
Aqui retomamos o fio condutor estabelecido a partir do que a temporalidade objetiva são denominações extrínsecas de uma mes-
ma realidade. Para passar da temporalidade subjetiva, ou da tempo-
chamamos em Bergson a aporia da reflexão. A instrumentalidade
natural da consciência fabrica; a intuição cria quando o espírito volta ralidade objetiva, à temporalidade como tal, a consciência deve ul-
trapassar o plano da polaridade sujeit%bjeto, o que significa que
as costas à instrumentalidade finita. Isto significa que a consciência
criadora é consciência da liberdade, o que é o mesmo que dizer: ela deve ir adiante da instrumentalidade finita ou do plano da inten-
cionalidade pragmática, de um lado, e recuar para aquém da cons-
consciência imanente à duração. Tal imanência dilui a relação subjeti-
ciência subjetiva, para o plano em que à supressão da objetividade
va que a consciência tem com o mundo natural e integra a subjetivida-
de na temporalidade pré-objetiva, depois que a intuição provocou a corresponde a supressão da subjetividade, de outro. Ir adiante da
consciência instrumental significa alcançar a presença; recuar para
morte da objetividade. Assim o advento da intuição é a descoberta
aquém da consciência subjetiva significa recuperar de alguma ma-
"da imediatidade criadora do élan original"80. Esta imediatidade é
neira o nível intuitivo de coincidência com a consciência em geral,
espírito ou duração. Qualquer destas duas direções implica o aban-
80. Brétonneau, G., Création et Valeurs Bthiques chez Bergson, SEDES, Paris, 1975, dono da perspectiva teórica da discursividade. Portanto quando fa-
p. 10. lamos em transcendência, falamos em superação do recorte objetivo
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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO
9. A INTERIORIDADE EM SI

da representação e do recorte subjetivo do modo de consciência


que o objeto da filosofia é a interíoridade, o que é o mesmo que
humano. Tal como em Novalis, a intuição, por implicar uma relação
dizer: o ser como temporalidade. É portanto a potencialização da
interna com a totalidade, é algo que ultrapassa o homem, se bem
reflexão que implode a interioridade subjetiva e nos põe no plano da
que se dê a partir dele. O homem traz em si como se superar, já que
interioridade pura, que é o movimento produtor do ser no seu sen-
traz em si a marca da origem e do original. A temporalidade originá-
tido originário.
ria identificada com o absoluto nos isenta de apresentar a Bergson o
problema que mencionamos acima com referência a Schelling e Para que este movimento se complete, não basta coincidir con-
Novalis. A produtividade originária não se reveste da característica templativamente com a continuidade interior, pela qual nos senti-
ambivalente atividade/passividade, necessária para que a presença mos parte da totalidade, ou melhor, modo da totalidade. É preciso
possa ser pensada no plano da eternidade e não apenas no plano da coincidir dinamicamente com a atividade originária: somente então
abertura temporal. Em Bergson, o absoluto é efetivamente dinâmico a intuição se dá como criação. Já que o que nadafaznada é, a intuição
porque é temporalidade no sentido do contínuo fazer-se. Assim como como procedimento cognitivo somente se efetivará quando coincidir
o tempo está na mobilidade mais do que nas dimensões temporais, com o ser como fazer-se, ou COmo criação. Bergson não recupera ape-
o absoluto, que é Tempo, deve ser entendido como movimento e, do nas a identificação entre ser e intuir como identificação absoluta. Ele
ponto de vista dos seus produtos, como um contínuo superar-se. concebe esta identificação a partir do dinamismo absoluto do princípio
produtor. Assim a coincidência é com o devir absoluto enquanto liber-
Como o absoluto é movimento que atravessa seus produtos ao
dade criadora. É esta liberdade criadora que se manifesta no artista
produzi-los, a interioridade é sua marca característica. Eis a razão
e no criador de valores morais. É nessas duas dimensões que a intui-
pela qual a intuição pode simpatizar com o absoluto: assim como
ção se pode exercer com maior efetividade, já que é neste plano que
este não fabrica produtos, mas os cria a partir da interioridade rela-
aparece de maneira mais vigorosa a oposição entre a consciência
tiva de cada um, assim também a intuição comunica-se com o inte-
profunda e a instrumentalidade finita. No universo da ação moral,
rior das realidades intuídas. Assim se compreende que a intuição
ou no mundo ético-religioso é que veremos, portanto, a intuição es-
seja reflexão: é na interioridade da consciência que buscamos as "raí-
capar à aporia da reflexão, sem deixar de dar-se como reflexão. Para
zes do nosso ser" ou as raízes do ser em geral, já que no plano da
tanto necessitamos examinar o estatuto da intuição em Deux Sources
interioridade mais profunda o externo e o interno remetem-se igual-
deja Morale et de la Religion.
mente ao princípio originário. "( ... ) se por uma primeira intensifica-
ção, ela (a intuição) nos fez alcançar a continuidade de nossa vida
interior, se a maior parte de nós não poderia ir mais longe, uma
9. A INTERIORIDADE EM SI
intensificação superior a levaria talvez até as raízes de nosso ser e,
assim, até o princípio da vida em geral" (0.S.-265). Tal como em
Para Bergson, o plano moral da instrumentalidade finita é circu-
Novalis, a intensificação da reflexão alarga o alcance da intuição fa-
lar: do individual ao social e do social ao individual, a incorporação
zendo-a penetrar mais profundamente na interioridade da consciên-
de valores éticos tem por finalidade a preservação do grupo e, de
cia e finalmente fazendo-nos alcançar o próprio ser como interiori-
uma maneira mais geral, a coesão e a sobrevivência de sociedades
dade. Diríamos que a verticalidade do esforço de intuição interior
fechadas. Sob este ponto de vista, a universalidade da obrigação re-
transforma-se, a partir de certo momento, numa horizontalidade que
presenta apenas a impessoalidade das regras que governam a convi-
abrange a interioridade e a exterioridade num mesmo horizonte de
vência. Muito embora a inteligência seja fator de individuação, a
conhecimento originário. Mas talvez não caiba conservar aqui a oposi-
virtualidade instintiva adormecida no fundo do intelecto é suficiente
ção entre exterioridade e interioridade, pois o objetivo da intuição é o
para compatibilizar o egoísmo natural de um ser inteligente com as
movimento originário e absoluto como interioridade em si, como uni-
outras individualidades que constituem o grupo. O horizonte da obrí-
dade múltipla que internamente se cria. Quando dizemos que a carac-
gação moral é, pois, estreito: não vai além da soma consentida dos
terística da intuição é o conhecimento interno, dizemos simplesmente
egoísmos individuais. É este o domínio da moral fechada, aquela em
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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 9. A INTERIORIDADE EM SI

que as regras derivam do equilíbrio dos interesses e não de valores também nos faz sentir como inevitável a emoção em que nos in-
efetivamente universais. Estes seriam aqueles cultivados pela moral troduzimos quando da contemplação de uma obra de arte. É a rever-
aberta, na qual, para além do grupo, o que se visa é a humanidade beração de sentimentos dantes insuspeitados, acordados no fundo
como fundamento de valor. Não se trata apenas de uma expansão de de cada um, que nos transporta em comunhão universal numa emo-
conteúdo: é a qualidade da moral que neste caso se altera, são valo- ção original. Quando traduzimos esta emoção em palavras,
res radicalmente diferentes que estariam na base das atitudes mo- necessariamente fazemos com que seu caráter único se perca na uni-
rais. É, portanto, uma nova forma ética, que ultrapassa o plano da formidade do signo. "( ... ) alegria, tristeza, piedade, simpatia são
justificativa intelectual para a moderação dos interesses individuais. palavras que exprimem generalidades às quais temos de nos remeter
Interessa-nos verificar aquilo que, para além da lógica intelectual da para traduzir o que a música nos faz experimentar, mas (a) cada
sobrevivência em grupo, fundamentaria essa outra escolha de valo- música nova aderem novos sentimentos, criados nesta e por esta
res; o que, para além do nível da inteligência propriamente dita, música, definidos e delimitados pelo próprio desenho, único em seu
explicaria a relação ética do individuo com a totalidade da espécie e, gênero, da melodia ou da sinfonia" (0.5.-37). Assim, não é daquilo
mesmo, com algo que a ultrapasse. A diferença de natureza entre as que já possuímos que são extraídos esses sentimentos; nós é que os
duas valorações se mostra na ausência de um objeto, estritamente traduzimos obrigatoriamente nas palavras que já conhecemos, e que
falando, no segundo caso. Pois a humanidade não pode ser conside- nos parecem exprimi-los mais aproximadamente. Aqui já não esta-
rada um objeto do mesmo teor que os objetos situados no plano da mos no plano da finitude instrumental, em que os sentimentos ser-
instrumentalidade, ou da finalidade moral no seu sentido utilitarista. vem à manutenção da coesão do grupo e são ditados pelas necessi-
Mais do que isso, nem mesmo se pode dizer que a humanidade aí dades de preservarmos a sociedade constituída. São emoções novas,
esteja como um objeto, qualquer que seja o sentido que venhamos inventadas, correspondentes à criação e à invenção da obra que as
a dar a esta noção. Aquele que visa à humanidade no plano da rela- causa. Fora do domínio da instrumentalidade, existe uma relação
ção ética "lança-se para mais longe; só atinge a humanidade na con- estreita entre emoção e criação; não é preciso que uma obra de arte
dição de atravessá-la". Trata-se de um movimento que se traduz numa esteja sempre na origem desta relação. O amor da natureza, o amor
atitude "que se basta a si mesma" (0.5.-35). Este movimento, que romanesco, as emoções sugeridas por determinadas paragens são,
primeiramente, sentimentos "vizinhos da sensação" em quem os
supera os hábitos e a pressão socia\' ou seja, supera a inteligência e
experimenta. Mas quando esse sentimento, que apenas prolonga a
a virtualidade instintiva que harmoniza a individualidade com o gru-
sensação, é transfigurado em uma emoção nova, a criação se incor-
po, supõe uma ação da sensibilidade. Esta ação pode assemelhar-se
pora ao patrimônio sensível da humanidade. Nesse caso, é a própria
exteriormente a uma obrigação, e esta é a razão pela qual se pode
emoção que seria a obra a servir doravante de referência para os
legitimamente falar da inelutabilidade da paixão. Seria uma obriga- sentimentos que o objeto desperta.
ção sem constrangimento, uma obrigação livremente consentida, mas
que guardaria a característica da inevitabilidade, própria da obriga- A emoção, sendo criação, é também um impulso para que a cria-
ção impessoal. Em ambas há a exigência de cumprimento de algo ção se efetive. Por isso a criação da obra de arte se dá a partir de uma
como um dever, em todo caso de uma ação. Na verdade, nem mes- emoção que é, ela mesma, criação do artista. "Há emoções que são
mo a impessoalidade poderia ser nitidamente vista como uma carac- geradoras de pensamento"; há emoções "que são prenhes de repre-
terística distintiva, pois a força da sensibilidade universaliza a emo- sentações, das quais nenhuma está propriamente formada, mas que
ção, fazendo com que mais nos sintamos nela do que ela em nós. ela tira ou poderia tirar de sua substância por meio de um desenvol-
Mas a força da emoção, e o circuito que ela estabelece entre os indi- vimento orgânico" (0.5.-40). Esta agitação profunda da alma antece-
viduas, no plano da humanidade inteira, deriva do caráter novo da de no tempo às representações que a traduzem, de resto imperfeita-
emoção em relação ao sentimento de obrigação da moral fechada. A mente; mais correto seria dizer que ela engendra representações que
universalidade da emoção ética sugere analogias com a emoção es- seriam transposições dos movimentos afetivos em idéias. O que ca-
tética, na medida em que o transporte característico desta última racteriza esse movimento profundo da sensibilidade é, em primeiro

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III - INTUlçAO E EXPRESsA0
9. A INTERIQRIDADE EM SI

lugar, o seu caráter inexprimível. Mas o emergir para os níveis mais de, não estimulará ações morais. Não pode existir, portanto, um
superficiais do Eu é já uma procura de expressão. A marca da intui- imperativo de ordem puramente intelectual na base da ação moral.
ção profunda, no caso da obra de arte, é a coincidência entre o autor O formalismo e a universalidade lógicas podem fazer com que o
e seu objeto. Esta coincidência não é outra coisa senão a originalida- intelecto reconheça a superioridade teórica de uma doutrina, mas a
de da emoção que está na gênese da obra. Não se trata de combinar vontade não a adotará como norma de conduta se os valores não
idéias já feitas para exprimir uma nova articulação. É o próprio ma- foram interiorizados através da emoção. Da mesma maneira, uma
terial que deve ser refundido: são os próprios signos que sofrem uma moral que se assente apenas no cálculo utilitarista do jogo de inte-
transformação prévia, para que, como novos elementos, possam resses egoístas poderá explicar teoricamente o equilíbrio social no
exprimir uma articulação original. É como se os signos retomassem plano ético, mas não fornecerá o móvel para a prática da ação. O
a um estágio pré-significativo, no qual perderiam algo da solidez que intelectualismo em moral, na sua forma lógica ou na sua forma uti-
a cristalização significativa lhes conferira. Ao reaparecer como signi- litária, tem um valor explicativo a posteriori; mas por meio dele não
ficando a emoção original, essa nova formação significativa nada deve compreendemos a gênese da ação moral. O que nos inclina para as
às significações cristalizadas anteriormente. Se os signos não pre- explicações intelectualistas é o fato de que não existe, na prática,
existissem de qualquer maneira a toda forma de expressão, podería- obrigação pura no sentido de coerção social, de um lado, nem uma
mos dizer que se trata de uma nova forma engendrada por um novo moral que se assente diretamente na emoção criadora de valores.
conteúdo. Isso não se dá no estrato da materialidade dos signos, mas Ordinariamente, obrigação e emoção se imiscuem num plano inter-
ocorre no âmbito das significações. A gênese intuitiva da obra como mediário em que a primeira confere à segunda o caráter impessoal
que engendra a forma pela qual ela se tomará sensível: o espírito e coercitivo ao mesmo tempo em que a emoção criadora passa para
informa a partir de si mesmo, ou seja, a partir da profundidade da a moral social algo da significação ético-universal de que se reveste.
emoção na qual a obra se encontra em caráter inexprimível. A ex- "Essas duas formas de moral justapostas parecem perfazer uma, a
pressão é sempre luta com o significado cristalizado. O esforço para primeira emprestando à segunda um pouco do que ela possui de
modelar o signo segundo a emoção é propriamente o trabalho cria- imperativo e recebendo desta, por sua vez, uma significação menos
dor. A virtualidade representativa da emoção criadora se encontra a estreitamente social, mais largamente humana" (D.S.-47). Isso signi-
priori diante de uma multiplicidade indefinida de possibilidades, no fica que uma só forma de moral acaba aparecendo no universo da
jogo das quais se dará a expressão como passagem da intuição do ação. É quando fazemos abstração dessa forma comum que perce-
interior para o exterior, para a materialidade dos signos. Mas esta bemos que existe uma moral que deriva da pressão social e outra
materialidade servirá de ocasião para que, através de um outro jogo que, pelo contrário, deriva da aspiração a valores que ultrapassam o
de significações, o significado seja apreendido por uma outra interio- nível da instrumentalidade ético-social.
ridade, sob o signo da universalidade do sentimento. Apreender um A moral relativa à pressão social é aquela consolidada biológica
significado criador é introduzir-nos num sentimento, mais do que e socialmente no plano da instrumentalidade finita. Serve aos desíg-
introduzir o sentimento em nós. A obra de arte é única e original nios naturais da sobrevivência da espécie, nos diversos grupos cons-
porque seu referente é único, a originalidade da emoção do artista. tituídos. Constitui-se no entremeio da relação entre o individuo e o
No plano moral, as mesmas considerações se aplicam à compre- grupo, diferindo da sociabilidade instintiva dos insetos apenas por-
ensão da criação de valores. Uma intuição de valor moral passa ao que a inteligência reflete sobre ela e encontra motivos racionais que
plano da representação quando encontra meios de se transformar se sobrepõem ao determinismo vital. A vida em geral tende para a
em doutrina, ou ao menos em um conjunto de idéias morais. Nesse organização: neste sentido a organização social de uma colméia ou
caso, a especulação que sistematiza a moral é segunda relativamente de um formigueiro corresponde à organização das sociedades hu-
à intuição criadora. O valor moral transita pelo circuito voluntarista manas no plano da sobrevivência. A inteligência reflete e racionaliza
da emoção. Ele pode se cristalizar em noções e em doutrina, mas se a relação parte/todo, mas fundamentalmente a mesma estrutura se
na origem não houver uma emoção, este valor não moverá a vonta- mantém. É o plano do círculo entre o individuo e a espécie ou o

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 9. A INTERIORIDADE EM SI

grupo. Esse círculo deve ser entendido como uma interrupção da dora de valor, ou a emoção, é a retomada do movimento, que não é
marcha do élan. Mas o círculo pode ser rompido pela própria mar- senão a reinserção no absoluto. A virtualidade intuitiva que existe
cha do élan, quando indivíduos se elevam acima da consolidação em todos os homens explica que esta criação encontre eco num gru-
ético-social da espécie. O rompimento da consolidação redunda na po social, e mesmo na humanidade inteira, e que o individuo criador
criação que nada mais é do que o prosseguimento do élan, tendo de valor moral irradie, pela sua ação, um apelo que é correspondido
como veículo individualidades que alcançam novos valores e assim pela renovação dos valores éticos de todos os homens, ou de uma
inventam novas formas de vida moral. Do ponto de vista da origem, grande parcela da espécie humana. Se de um lado a retomada do
não há diferença entre o élan enquanto motor das sociedades fecha- movimento absoluto é a continuidade do élan criador, de outro esta
das e o élan enquanto impulso de criação nos individuos que se lan- reinserção no absoluto através da aspiração moral não deixa de ser
çam para além da espécie. Na verdade é a espécie que, neles, pros- um movimento contra a natureza. A flexibilidade que a inteligência
segue a marcha do élan. Aqui reencontramos a oposição entre estag- introduz na conduta fabricadora ou instrumental do homem não de-
nação e progresso que aparecera na Evolução Criadora. No caso do veria voltar-se contra a estrutura fundamental que assegura a conso-
progresso moral, trata-se de uma ação indireta do élan, que faz com lidação da organização da espécie constituída. A dilatação indefinida
que a humanidade se supere enquanto espécie "constituída"8l. Sen- da inteligência, acordando a virtualidade intuitiva que a rodeia e
do o élan movimento, a aspiração que caracteriza a moral aberta não possibilitando a intuição criadora enquanto consciência do movi-
é tendência para uma outra "constituição" ou qualquer outro "obje- mento absoluto do élan faz com que o homem se eleve primeira-
to". É apenas o movimento criador transcendendo a estagnação re- mente à altura da espécie como um todo e que, em seguida, ultra-
lativa da espécie na sua atual formação. Por outro lado, essa trans- passe a espécie numa direção que coincide com o que Bergson cha-
cendência, ao mesmo tempo em que se realiza por meio de indivi- ma, retomando a expressão spinozista, natureza naturante. Assim, se
duos, é também o reencontro da espécie na sua totalidade. A "cons- por um lado a moral aberta rompe com a natureza, no sentido do
tituição" da espécie redundou na individuação e no agrupamento de círculo no interior do qual se constitui a sociabilidade natural, por
individuos, com o horizonte restrito à sobrevivência grupal e mesmo outro lado isto significa reencontrar a mobilidade do élan e, portan-
com interesses contrários aos de outros grupos. O individuo trans- to, o princípio da vida. É essa caracteristica de movimento que faz
cende a espécie quando se eleva acima da individuação e da confi- com que a moral aberta não encontre facilmente seus meios de ex-
guração grupal, abraçando na sua aspiração a espécie inteira, como pressão: exemplo são os paradoxos, os circunlóquios, as metáforas e
totalidade. É nesse sentido que o individuo se repõe na trajetória do as alegorias do Evangelho, que para Bergson é paradigma de moral
élan: reabsorvendo em si a espécie e saltando para a frente no mo- aberta; mas já na antiguidade clássica vemos que o inspirador de
vimento qualitativo do élan. Ele "simpatiza" com a espécie e mesmo todas as modificações éticas fundamentais, aquele que está na raiz
com toda a natureza; ele se recoloca na totalidade que é movimento. das grandes concepções morais, Sócrates, foi precisamente o filósofo
"Que uma alma assim mobilizada esteja mais inclinada a simpatizar que não deixou uma doutrina constituída. Aqui também a linguagem
com as outras almas e mesmo com a natureza inteira seria causa de não se adapta à expressão do movimento, de uma moral que seria
espanto se a imobilidade relativa da alma, girando em círculo numa muito mais o puro transcender do que o estabelecimento objetivo de
sociedade fechada não derivasse precisamente de que a natureza regras de conduta. A linguagem, própria do domínio fechado, é a
repartiu a espécie humana em individualidades distintas pelo pró- notação do aberto. Entre as duas existe a mesma diferença que entre
prio ato que constituiu a espécie humana" (D.S.-50). A intuição cria- a música e a notação. O poder englobante da palavra, a expansão da
significação escondem as mudanças qualitativas dos conceitos que
exprimem valores morais. Entre a justiça entendida como equilíbrio
da troca e a justiça concebida como valor absoluto no nível abstrato
81. "É verdade que se chegássemos até a raiz da própria natureza, perceberíamos dos direitos, há uma distância que nenhuma gradação poderia trans-
talvez que é a mesma força a que, girando sobre si mesma, manifesta-se diretamente
na espécie humana uma vez constituída e, agindo indiretamente por intermédio de por. No entanto, pela lógica retrospectiva, somos levados a unir as
individualidades privilegiadas, impulsiona a humanidade para a frente" (D.S.-48). duas noções, vendo nas transformações sucessivas da justiça aproxi-

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 9. A INTERIORIDADE EM SI

mações gradativas da noção em seu caráter absoluto. Esta seriação é que se manifesta na atenção que o ser vívo deve prestar ao mundo
própria da lógica do entendimento, que recusa o salto e a criação. da consciência empírica. Mas se a relação com o transcendente en-
contra na função fabuladora a ordem objetiva daquilo que o supera,
De forma geral, entre a moral fechada e a moral aberta há dife-
a vírtualidade intuitiva não poderia preencher essa distância com
rença de qualidade que nenhuma expansão de significação poderia
uma relação direta, que fosse coincidência e não fabulação? Nesse
recobrir. Os indivíduos que se lançam para além da moral da cidade
caso a atenção à vída se desligaria da própria vída, não para encon-
não se elevam apenas quantitativamente acima dos semelhantes.
trar num mecanismo de compensação a diminuição do risco que
Entre o grupal e o universal, a diferença não é de grau, mas sim da
envolve esta desatenção, mas para dirigi-la ao próprio princípio na
qualidade do valor. "A aparição de cada uma delas (almas individuais
forma de uma comunicação direta com aquilo que transcende a
criadoras) seria como a criação de uma nova espécie composta de
própria forma intelectual do absoluto. "Mas sabemos que em torno
um único indivíduo, o impulso vítal conseguindo, intermitentemen-
da inteligência permaneceu uma franja de intuição, vaga e evanes-
te, num homem determinado, um resultado que não põde ser obtido
cente. Não poderiamos intensificá-la, fixá-la, e sobretudo completá-
de uma só vez para o conjunto da humanidade" (0.5.-97). Mas de
-la em ação, já que ela tornou-se pura vísão através do enfraqueci-
onde vem, em cada caso, o impulso para um novo valor? Certamente
mento de seu princípio e, se podemos nos exprimir assim, por meio
da emoção criadora, que não encontra expressão na moral constitu-
de uma abstração praticada sobre si mesma?" (0.5.-224). A inteli-
ída. Trata-se de uma direção que se sente dever ser seguida, mais do
gência, enquanto núcleo da relação instrumental com o mundo, re-
que uma regra determinada a ser estabelecida. Trata-se de uma in-
flete sobre sua própria situação e questiona, de certa forma, a inser-
tenção que transborda a intencionalidade pragmática da consciên-
ção do indivíduo no grupo e na natureza. A função reflexiva da inte-
cia no seu vísar à adequação entre a ação indivídual e a moral con-
ligência, contrapartida da sua flexibilidade, introduz a inquietude, a
solidada. Este dinamismo criador que supera os limites da humani-
representação oscilante do futuro e de si mesmo, a incerteza ima-
dade atualizada numa sociabilidade determinada, sendo direção, é
nente aos projetos, a ansiedade e o medo: tudo isso o homem é,
de certa forma guiado por algo cuja intuição ultrapassa largamente
provavelmente, o único ser vívo a experimentar. Tal desvío em rela-
a capacidade de entendimento daquele mesmo que intui. São ocasi-
ção aos desígnios naturais é compensado pela religião estática, fruto
ões em que, no homem, algo de maior do que ele mesmo age, como
da função fabuladora, que tem por objetivo a harmonia afetiva entre
que por ele: uma coincidência que não pode ser expressa, já que é a
o homem e aquilo que o supera. Como já dissemos, a inteligência
identificação entre o indivíduo e algo que o ultrapassa infinitamente
tem aí função preponderante, ainda que não exclusiva. Mas a franja
e que no entanto ele encontra no mais profundo de si mesmo, no
intuitiva que cerca a inteligência, memória ontológica da origem, pode
cerne de sua própria interioridade. Uma mensagem que não saberia
romper o círculo da intelectualidade afetiva e ganhar o espaço da
expressar, e que por isso tenta víver. Uma vísão que não pode trans-
relação sensível com o absoluto. Tal como no caso da moral aberta,
mitir, e que por isso tenta dar a ver. Essa união espiritual é, no en-
aqui é também por meio da emoção criadora que se estabelece uma
tanto, a definição possível do misticismo: na intuição mística deve-
relação original e originária com o transcendente. E, de forma seme-
mos, portanto, procurar os indícios da identificação entre o homem
lhante ao plano ético, transcender-se significa retomar o movímento
e o absoluto.
criador do princípio espiritual, coincidir com uma ativídade. Por isso
O desinteresse que a reflexão da inteligência introduz num ser a intuição mística é uma relação que se dá ao mesmo tempo como
que não se encontra totalmente absorvído pelas solicitações da ati- vísão e como impulso para a ação. Quando o misticismo se dá ape-
vídade real ou vírtual do mundo que o circunda encontra sua expres- nas como vísão ou contemplação, ele está ainda imbuído de intelec-
são e ao mesmo tempo sua contrapartida na função fabuladora, de tualidade e longe de perfazer o caminho que conduz à coincidência
onde nascem as relações que, em termos de religião estática, o ho- ativa com uma totalidade que é movímento criador. No pensamento
mem mantém com o divíno, no necessário afã de serenar sua inquie- grego, a convívência entre a especulação e o culto dos mistérios, a
tude. É ainda a inteligência a disciplinar a margem de desinteresse interferência freqüente do segundo no primeiro, como em Platão e
pela vída, assim como dirige, de forma muito mais direta, o interesse no pitagorismo, revelam a trajetória paralela da ativídade de con-

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 9. A INTERIORIDADE EM SI

templação intelectual com outra atividade de cunho supra-intelectual na instrumentalidade finita, na densidade das consciências materia-
ou extra-intelectual, visível nas origens (orfismo, eleusianismo) e no lizadas, a partir de um impulso inicial de uma "visão em Deus", e se
final da época helênica (alexandrinos, Platina). Mas o intelectualis- prolonga até certo ponto, contido pelo obstáculo da materialidade
mo grego impediu que o misticismo avançasse para além do estágio finita da sociabilidade fechada e da religião estática, em suma, pela
contemplativo e chegasse à ação, na qual os gregos viam um empo- estabilidade intelectual que se opõe ao dinamismo criador. Assim se
brecimento da relação com o absoluto. Assim também no misticis- esboçam os limites efetivos da intuição: uma humanidade que se
mo oriental. Apenas no cristianismo a contemplação se traduz em absolutiza num individuo e que, opondo-se a ele, opõe-se à sua pró-
ação, tomando ativa a relação universal entre o individuo e a huma- pria inserção no absoluto. A relação de estranhamento entre a hu-
nidade, derivada de sua relação com o absoluto, efetivamente senti- manidade e o individuo que se repôs no sentido do absoluto deriva
do como atividade criadora e que faz desta própria relação um im- da vida exterior do espírito na cotidianidade da relação com o mun-
pulso criador (D.S.-230 a 245). do. O estranhamento é real da perspectiva da consciência pragmáti-
ca, já que o individuo, neste caso, visa à humanidade não nela mes-
A este impulso criador se opõe a instrumentalidade finita, como ma, mas através do absoluto. Não é apenas uma "visão em Deus",
os limites de um círculo se opõem à força que deseja rompê-lo. A mas um "amor em Deus". Por isso a intuição mística não tem objeto,
individualidade que se repõe no sentido do élan se separa das outras e Bergson pode dizer que a emoção criadora é um sentimento "que
individualidades e dos grupos fechados em que elas se organizam se basta a si mesmo". A ausência de objeto provém da identificação
para reencontrar, num outro plano, a totalidade, a humanidade como entre a emoção criadora e o processo criador no seu sentido absoluto.
espécie e ainda mais do que ela. A fraternidade universal e o amor da
humanidade não podem ser vistos apenas como expansão da ligação Embora a intuição mística seja um caso privilegiado de simpatia
entre o individuo e o grupo, ou como a universalização de algum com a totalidade e de comunicação com o absoluto, o contexto re-
instinto de solidariedade dos individuos entre si. O universal não é a ligioso em que ela se dá autoriza o filósofo a estudá-la como exemplo
soma ou a expansão do particular, mas o reencontro de algo que, de intuição e não a identificar a intuição com a experiência mística.
como absoluta gênese e criação, precede o particular. Assim, a emo- O "valor filosófico do misticismo"" não consiste em trazer uma cer-
ção criadora que dinamicamente transcende a individualidade tem teza definitiva acerca do alcance cognitivo da intuição, mas em for-
muito mais um sentido metafísico do que moral". A transformação necer de alguma maneira uma experiência "objetiva" em que este
ético-religiosa que ocorre a partir da irradiação mística é apenas alcance possa ser avaliado. Trata-se de um resultado a ser compara-
conseqüência de que, no movimento do élan, cujo veículo é um in- do com outros. "O encontro, entre os místicos, desta experiência, tal
dividuo, a espécie avança para além do plano estático da consolida- qual esperada, permitiria acrescentar algo aos resultados adquiridos,
ção dos valores que regulam a relação com o transcendente. Assim enquanto estes resultados revestiriam a experiência mística com algo
de sua própria objetividade" (D.S.-263). Não podemos esquecer que
a transcendência mística se dá na forma da intuição do absoluto
a intuição é uma experiência, embora de tipo peculiar, já que sua
como coincidência. A atividade transformadora que se segue à intui-
expressão a distorce, por vezes irremediavelmente. Nesse sentido,
ção mística é a expressão da continuidade do élan, que progride
diz Bergson que a "notação" do fato não o representa na sua auten-
qualitativamente numa direção indeterminada, mas que provavel-
ticidade, mas precisamente o simboliza. A própria visão mística, en-
mente é o sentido do divino - a própria marcha do élan podendo
quanto concretização do êxtase, é já uma tradução de uma comuni-
ser assimilada a um processo de divinização, já que o esforço criador cação íntima em si intraduzível. Há no entanto uma referência, inde-
"é de Deus, se não é o próprio Deus" (D.S.-223). Este esforço penetra terminada porque absoluta, da atitude mística enquanto tal, e dela
encontramos os indícios na variedade da experiência mística e na

82. "Coincidindo com o amor de Deus por sua obra, amor que tudo fez, ele (o élan)
confiaria a quem soubesse interrogá-lo o segredo da criação. (O amor que se traduz no
impulso criador) é de essência metafisica mais do que moral" (0.5.-248). 83. Título do item tratado nas pp. 261 a 266 de D.S.

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III - INTUIÇÃO E. EXPRESSÃO
9. A INTERIORIDADE EM SI

própria história dos misticismos que se sucederam e que. se não


realizaram plenamente o "ideal" da mística. ao menos marcaram a da intencionalidade pragmática é o objeto do Eu superficial tal como
direção de um desenvolvimento que se completou com a mística este havia sido constatado nos Dados Imediatos. A superação da
cristã. O acordo profundo que assim se constata "é signo de uma subjetividade empírica não se dá por meio de uma saída de si em
identidade de intuição" que se explicaria pela "existência real do Ser" direção à objetividade. Já vimos que o nascimento da intuição é a
com o qual todas estas atitudes místicas estiveram em comunicação morte da objetividade e da subjetividade que lhe é correlata. A supe-
(0.S.-262). A "identidade de intuição" presente na mística se agrega ração da subjetividade "epistêmica" é um retorno à interioridade. Na
a outros dados obtidos em linhas de fatos bem diferentes da expe- verdade. a interioridade bergsoniana. à semelhança do que vimos
riência religiosa. como por exemplo. o estudo da evolução. que levou em Novalis e em Schlegel. transcende a subjetividade e a objetivida-
à concepção do élan vital e da unidade do princípio. bem como da de. na medida em que o contato direto na modalidade intuitiva só se
interpenetração originária entre inteligência e intuição. Como con- pode dar entre duas interioridades. A unidade do élan com a qual a
seqüência desta origem comum. constata-se a virtualidade intuitiva intuição comunica não é uma unidade quantitativa e exterior. mas a
presente na inteligência. ou a franja de possibilidade de conheci- qualidade interna do movimento ou a essência íntima do tempo. É
mento simpático que rodeia o intelecto. O instinto como imobiliza- da índole do absoluto que ele só possa ser apreendido intimamente.
ção da intuição e a inteligência como intencionalidade pragmática e para tanto o sujeito deve transitar pelo núcleo intuitivo de sua pró-
que fez adormecer a virtualidade intuitiva formam assim o jogo de pria interioridade cuja continuidade. aquém da subjetividade "obje-
possibilidades. reais e virtuais. da dupla direção cognitiva. a interes- tivante". é índice da intimidade do real enquanto temporalidade
sada ou atenta à vida. e a desinteressada. ou atenta ao Todo. susce- absoluta. Nesse sentido. quase se poderia dizer que a interioridade
tível de ser atingida por um tournant da reflexão. Este tournant. como autêntica seria um ponto de indiferenciação. a um tempo mais e
já vimos. situa-se no plano de uma intensificação da intuição que. de menos que o Eu. a um tempo interna e externa ao Eu. transcendência
uma reflexão da inteligência. pode se transformar numa inflexão bem interna e externa. inseparavelmente. Na tentativa de compreender
mais radical da direção "habitual" do pensamento. Da continuidade tão complexa relação entre interioridade e intuição. Marie Cariou
da vida interior à continuidade da interioridade do movimento total fala de "transcendência de interioridade"". pela qual situar-se na
e absoluto do élan: tal é a trajetória da intensificação da intuição ou interioridade do Eu equivale a situar-se no absoluto como interiori-
da potencialização da reflexão. A experiência mística é exemplo de dade pura. Por essa razão também é que a experiência mística. ou
tal intensificação e nos apresenta. assim. a realidade da possibilidade mesmo de maneira mais geral a comunicação religiosa com a trans-
de comunicação com o absoluto. O valor filosófico da experiência cendência. serve de exemplo privilegiado para ilustrar o percurso da
mística aparece quando despojamos a intuição do místico das "vi- interioridade na direção do absoluto. Santo Agostinho afirma a via
sões. das alegorias. das fórmulas teológicas pelas quais ele se expri- da interioridade como único caminho para o absoluto. contrapon-
me" tentando de alguma maneira recuperar a experiência mística do-a à errãncia da busca do absoluto na exterioridade: "( ... ) tu esta-
como que em "estado puro" (0.S.-266). A direção objetiva que levou vas dentro de mim e eu fora. e fora te buscava; disforme. lançava-me
à constatação do élan como princípio através do exame dos dados sobre essas coisas belas que tu criaste. Estavas comigo. mas eu não
biológicos e a direção. por assim dizer. transobjetiva da experiência estava contigo. Retinham-me longe de ti aquelas coisas que. se não
mística. tomada como atitude de comunicação direta com o princí- fossem em ti. não seriam"". O Eu fora de si busca na objetividade
pio criador. confluem. indicando a via do conhecimento simpático. natural o fundamento da ligação de si com aquilo que o supera. Mas
intuitivo. como superação do ponto de vista humano. como a reali-
zação verdadeira da metafísica numa dimensão diferente do simbo-
lismo conceitual. na imanência da consciência à totalidade da tem- 84. Cariou, M., Bergson et le Fait Mystique, Aubier Montaigne, Paris, 1976, p. 96. Cf.
poralidade criadora. também: "( .. ,) l'intuition métaphysique atteint un au-delá de la conscience qui, sans
sortir du moi, se révéle comme un moins ou un pIus moi; plus exactement peut-être
É preciso ressaltar que a superação do ponto de vista humano se comme une transcendance interne" (p. 92).
dá através da interioridade. O mundo que a consciência visa através 85. Santo Agostinho. Confissões, L. X, capo 27, § 38, BAC, Matiti, 1968, p. 424. Tradu-
ção brasileira Nova Cultural, São Paulo, 1987 (coleção Pensadores), p. 190.
300
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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 10. INTUlÇAO E EXPREssA0: A TENsAo DO SIGNIFICADO

a ligação entre o Eu e o absoluto é interna e, na verdade, tão íntima po de objetividade próprio em oposição a um outro do qual a intui-
quanto possa ser a relação de identificação. Por isso a consciência de ção obteria um conhecimento "absoluto". A preservação da legitimi-
que o absoluto é solidário da opção pela interioridade aparece quan- dade do conhecimento científico ou de inteligência é o reconheci-
do o Eu se dá conta de que a exterioridade é obra de um movimento mento do factum da finitude; mas em Bergson este factum não se
que é, em si, interioridade. Assim o retorno à interioridade é também confunde com o destino do homem enquanto sujeito cognoscente.
consciência da conexão imanente, não apenas da consciência à tota- Ele pode ser superado, e a metafísica estará fundada quando se en-
lidade mas também de todas as coisas, inclusive aquelas que minha contrar o método de superação. Devido a isso, o criticismo kantiano
consciência desenha na exterioridade, ao devir absoluto do princípio é, tipicamente, uma filosofia do "ponto de vista": a exterioridade sim-
criador. A compatibilidade entre a forma do Eu superficial e a forma bólica do conhecimento teórico e a vanidade intrínseca da metafísi-
da exterioridade sendo apenas de índole instrumental, a busca da ca são aí afirmados a partir da aceitação tácita do referencial empí-
qualidade interna do princípio na exterioridade seria uma deforma- rico e finito da consciência instrumental como a delimitação absolu-
ção do Eu profundo, seria como refletir fora de si. A conformidade ta da certeza objetiva. "A gênese da inteligência faz com que a critica
entre o Eu e o princípio criador se manifesta pela interconexão seja transformada em filosofia do homo faber, em filosofia da espé-
identificadora de duas interioridades, ou pela reabsorção do Eu pro- cie"." A gênese da inteligência é a demonstração objetiva da possi-
fundo, do núcleo intuitivo da consciência, na interioridade em si. bilidade de superação da intelectualidade. Ao mesmo tempo, é a afir-
mação da especificidade da intuição como conhecimento autentica-
mente extra-intelectual. É a partir dessa gênese que a crítica bergso-
10. INTUIÇÃO E EXPRESSÃO: A TENSÃO DO SIGNIFICADO niana pode denunciar como pseudo-intuições os procedimentos li-
gados à superintelectualidade propugnados pela filosofia alemã pós-
o que vimos até aqui já nos dá condições de afirmar que o que -kantiana e que para Bergson nada mais são do que hipóstases do
chamamos em Bergson opção pela interioridade não diz respeito conceito. É assim que o que nestas filosofias é chamado de conheci-
apenas à intuição da duração interna, ou temporalidade da consci- mento absoluto apresenta-se para Bergson como o caso-limite da
ência, mas se estende à totalidade do real visto a partir de sua essên- relatividade. Pois esta não se define pelo alcance do conceito, mas
cia, tendo portanto uma significação ontológica. Eis por que a defi- pela utilização do conceito como instrumento de conhecimento filo-
nição de intuição como conhecimento interno não se opõe a uma sófico. O conhecimento relativo é aquele que se põe "fora do próprio
outra possibilidade de conhecimento, que na Introdução à Metafísi- objeto" (P.M.-178). Ora, a pretensa significação absoluta do conceito
ca é descrito como "ponto de vista", relativo e simbólico. Não se trata é o conhecimento mais exterior que neste sentido se pode conceber,
de duas "perspectivas" de conhecimento: o "ponto de vista" se res- pois a abrangência do conceito o torna abstrato, condição de seu
tringe ao saber pragmático a partir dos quadros da inteligência, cujas próprio alcance simbólico.
representações se definem pelo valor utilitário, pelo interesse ligado
à percepção e ao intelecto. Apesar de certas ambigüidades do texto Na verdade, o que caracteriza o conhecimento relativo é a sua
bergsoniano, principalmente no caso da Segunda Introdução ao Pen- exterioridade simbólica, expressão aliás redundante, uma vez que o
samento e o Movente, e à nota acrescentada ao início de Introdução conhecimento externo é por definição simbólico, ou seja, utiliza algo
à Metafísica, o real não está dividido em duas partes, uma das quais estranho ao objeto para conhecê-lo. No entanto não se poderia dizer
seria objeto de ciência ou da inteligência e a outra objeto da meta- que a vinculação significativa entre a coisa e o seu símbolo cria uma
física ou da intuição. O que se torna mais claro na Segunda Introdu- familiariedade que os uniria intimamente no processo de expressão?
ção é a legitimidade do conhecimento de inteligência no seu gênero, Essa hipótese poderia até ser tida como plausível se não existisse
ou seja, no âmbito em que a inteligência pode desempenhar plena- entre o real e os meios de expressão uma heterogeneidade radical, a
mente a sua função de articular o físico-inerte. A relatividade, por-
tanto, é apenas uma especifícação do gênero de conhecimento ca-
racterizado pela objetividade da inteligência; não significa um cam- 86. Prado Júnior, 8., ob. cit., p. 201.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 10. INTUIÇÃO E EXPRESSÃO: A TENSÃO DO SIGNIFICADO

mesma que se pode notar entre o móvel e o imóvel. Esta heteroge- pudesse coincidir por um instante com a própria personagem. "En-
neidade é que separa completamente o conhecimento exterior do tão, como de sua fonte, me pareceriam verter naturalmente as ações,
conhecimento interior, fazendo do símbolo uma aproximação do os gestos e as palavras." "( ... ) A personagem me seria dada de uma
objeto a partir de um ponto de vista simbólico. O falseamento onto- vez na sua integralidade" (P.M.-179) em vez de manifestar-se através
lógico do ponto de vista simbólico consiste em que ele relativiza o dos incidentes do enredo. Em lugar de ser a minha compreensão da
objeto, identificando-o à sua representação simbólica. É o que ocor- personagem progressivamente "enriquecida" pelos incidentes, estes
re, por exemplo, quando representamos o movimento através da decorreriam de sua essência, destacando-se com naturalidade de um
sucessão de pontos de imobilidade, reais ou virtuais. Por isso o co- núcleo sem deixar de pertencer a ele, ou seja, sem "empobrecê-lo".
nhecimento não simbólico só pode ser interno: a coincidência com
a intimidade do objeto exclui a mediação da representação objetiva, Isso significa que não é a somatória indutiva de caracteres mani-
ou seja, a filtragem do contato com O real pelas categorias da inteli- festados que me proporcionaria uma autêntica compreensão da es-
gência. "Quando falo de um movimento absoluto, é que atribuo ao sência do objeto. Pelo contrário, tais caracteres devem fluir de um
móvel um interior e como que estados de alma, é também que sim- núcleo essencial, cujo conhecimento só pode ser obtido intuitiva-
patizo com os estados e neles me insiro por um esforço de imagina- mente. Bergson não reconhece portanto a inelutabilidade daquilo
ção" (P.M.-178). A ausência da mediação da representação simbólica que tradicionalmente foi denominado a "ordem do conhecer". A
nesse caso se mostra no fato de que o movimento é conhecido a intuição me coloca de imediato na própria "ordem do ser", dimen-
partir do objeto e não de mim mesmo, isto é, da representação sub- são em que posso prescindir da articulação simbólica. Mas a coinci-
jetiva desse movimento. Isto significa que a exterioridade em relação dência entre ser e conhecer, pela qual o objeto me é dado na sua
ao sujeito é a interioridade em relação ao objeto. Pode-se dizer então "perfeição", ou seja, na totalidade indivisível do que ele é, só se po-
que a objetividade intuitiva - seja-nos permitido, por enquanto, a deria manter como tal se houvesse um trânsito possível da intuição
expressão - depende da anulação da representação subjetiva na à expressão. Como tal não ocorre, a coincidência para nós se dá como
medida em que esta é governada pelos quadros da inteligência. Isso equilíbrio, necessariamente instável, entre intuir e expressar. "Deno-
não significa a anulação do sujeito de conhecimento: a concordância minamos aqui intuição a simpatia pela qual nos transportamos para
é substituída pela identificação, o que também não significa que o o interior de um objeto, a fim de coincidir com o que ele tem de
conhecimento pode prescindir da representação. Ainda que o sujeito único e, por conseqüência, de inexprimível" (P.M.-18l). Na medida
esteja no objeto, ele possui consciência do objeto Ej é isto que define em que o conhecimento se expressa num discurso, a pura coinci-
a relação cognitiva. Há no entanto duas maneiras de se ter consciên- dência é ao mesmo tempo ideal de conhecimento e ausência dele.
cia do objeto. A primeira consiste em visar ao objeto a partir de pontos Não podemos dizer que o que faltaria a um tal conhecimento seria
de vista exteriores, e representá-lo relativamente a estes pontos de a comunicação intersubjetiva que se dá necessariamente através da
vista. A segunda consiste ainda em representar o objeto na consciên- articulação discursiva. É o próprio sujeito que não possui, para si, o
cia, mas a partir da interioridade do objeto, coincidindo com um conhecimento enquanto não o expressa, para si mesmo, na articula-
cerne de realidade que é gerador de representações. Essa é a consciên- ção do pensamento, que é um discurso silencioso, na medida em
cia verdadeiramente compreensiva do objeto, na medida em que to- que, como já vimos, as idéias por si já são cristalizações do pensa-
das as representações estariam imediatamente vinculadas ao núcleo mento enquanto movimento. A consciência do objeto enquanto tal
indivisível que é o próprio objeto na sua interioridade. Por isso é que pressupõe uma demarcação do fluxo absoluto do pensamento, e
as várias representações podem decorrer da coincidência com o portanto uma desidentificação da relação absoluta entre pensamen-
objeto, mas a variedade de representações não pode engendrar o to e pensado. Esta desidentificação é sempre o estabelecimento de
conhecimento interno do objeto. Quando o romancista descreve ex- uma relação complexa entre sujeito e objeto que necessariamente se
terna e internamente a personagem, através de suas ações e de suas afasta da simplicidade da visão absoluta, ou absolutamente interna.
palavras, ele me fornece uma série de pistas para compreender a Somente no plano da interioridade "um absoluto é coisa simples";
personagem. Mas a compreensão somente seria completa se o leitor visto de fora, "em relação aos signos que o exprimem", ele se remete

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 10. INTUIÇÃO E EXPRESSÃO: A TENSÃO DO SIGNIFICADO

à inesgotabilidade intrínseca da análise (P.M.-180). A expressão é ção do espírito para a exterioridade cria algo como o vazio da inten-
sempre primeiramente para o próprio sujeito da intuição, pois a cionalidade pragmática. Aí se acumularão as imagens, numa multi-
relação entre intuição e idéia já é expressão no interior da consciên- plicação confluente, dando nascimento a uma tendência intuitiva,
cia. O núcleo íntimo do objeto que lhe dá o seu caráter único é inex- substituta da tendência "habitual" formada pelos hábitos de um
primível. De alguma maneira, pensá-lo já é significá-lo por uma idéia, pensamento voltado para a exterioridade. Não deixa de haver aqui
mesmo que obtenhamos dela o máximo de fluidez. Significa isto que algo semelhante à evocação romântica, no sentido em que, por exem-
não há como evitar o rompimento do equilíbrio para o lado da ex- plo, num Novalis, os centros de reflexão evocam-se mutuamente.
pressão? De certa maneira sim, na medida em que toda expressão é Com efeito, diz Bergson que a imagem nunca pode "usurpar o lugar
tradução. Mas a expressão da intuição é a manutenção da instabili- da intuição que ela deve evocar", uma vez que isto já não seria uma
dade do equilíbrio, o que se dá através do engendramento infinito expressão aproximada, mas uma tradução definitiva, cujo caráter de-
das imagens. Este engendramento infinito de imagens é uma inflexão finitivo faria perder o sentimento de imprecisão que deve acompa-
do "mal infinito" da inteligência analítica. Esta, no seu inesgotável nhar todas as imagens. O sentido evocador das imagens está em
afã de traduzir, por meio de pontos de vista diversos, a simplicidade consonância com o "esforço de imaginação" pelo qual devo me in-
e a indivisibilidade originais do objeto, multiplica as aproximações serir no interior do objeto (P.M.-178). A evocação não é tanto de
externas como que tentando abarcar a qualidade por meio da quan- cada imagem, quanto da confluência significativa entre várias e dife-
tidade simbólica. A aproximação relativa é infinita na própria medi- rentes imagens.
da em que a expressão é heterogênea em relação ao conteúdo ex-
pressado. Há um fundo de inquietude nesse infinito quantitativo, A possibilidade do conhecimento metafísico repousa inteiramente
pois a inteligência se põe como o único conhecimento possível. É na intuição. Ao contrário da ciência, a metafisica pode e deve dis-
um "tournant" da inteligência que permite que a infinitude dos pon- pensar os símbolos. Mas esta oposição à ciência é de caráter meto-
tos de vista conceituais se transforme na multiplicidade das ima- dológico, ou seja, existe na medida em que a análise se opõe à intui-
gens. Quando o "olhar interior de minha consciência" busca expres- ção. Pois a metafísica também é ciência, e precisamente constituída
sar-se traduzindo a multiplicidade qualitativa da duração interna, as a partir da intuição. "A metaflSica é pois a ciência que pretende pres-
imagens se sucedem, corrigindo-se sem nunca se completarem. É, cindir dos símbolos" (P.M.-182). Há aqui algo que poderíamos cha-
primeiramente, "a crosta solidificada" das percepções materiais; "a mar de antinomia metodológica, na medida em que ao mesmo tem-
superfície de uma esfera que tende a se alargar e perder-se no mun- po em que a metafísica é conhecimento não-simbólico, ela não pode
do exterior"; o enrolar e desenrolar de um fio, continuidade e cres- dispensar as outras ciências que trabalham com os símbolos, o que
cimento; o "espectro de mil nuances, com degradações insensíveis, toma os símbolos, ainda que indiretamente, "indispensáveis" à me-
que faz com que passemos de uma a outra"; "um elástico infinita- tafísica. "Certamente, os conceitos lhe são indispensáveis, pois todas
mente pequeno" esticado progressivamente; entre todas essas ima- as outras ciências trabalham com conceitos, e a metafísica não po-
gens não se poderia escolher aquela que melhor traduziria a conti- deria dispensar as outras ciências" (P.M.-188). A relação entre a me-
nuidade do fluxo interno (P.M.-182-4). Cada uma representa um tafísica e as outras ciências passa pela mediação da interpretação dos
aspecto, nenhuma me permite captar a totalidade múltipla e indivi- símbolos utilizados nessas ciências e, mais do que isso, pela inter-
sível da interioridade. As afinidades parciais entre as imagens funcio- pretação genética da função simbólica do conhecimento de inteli-
nam todavia como índices ao menos da insuficiência do conceito. É gência. A metafísica não trabalha a partir dos resultados científicos,
como se a confluência das insuficiências expressivas das várias ima- mas com a interpretação dos mesmos, que freqüentemente consiste
gens apontasse para uma direção, a expressão da coincidência inex- numa reavaliação, exatamente porque a critica inerente à constitui-
primível. "O único objetivo do filósofo deve ser aqui o de provocar ção da verdadeira metafísica desvela a função simbólica do conheci-
um certo trabalho que tende a entravar, na maior parte dos homens, mento de inteligência, repondo a objetividade científica no seu au-
os hábitos do espírito mais úteis à vida" (P.M.-18S). Visto dessa for- têntico estrato, o ponto de vista pragmático da consciência. É bem
ma, é sobretudo um procedimento negativo. A suspensão da voca- verdade que os resultados da metafísica só podem ser expressos em
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j
111 - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO
10. INTUIÇÃO E EXPRESSÃO: A TENSÃO DO SIGNIFICADO

símbolos, e mesmo em conceitos: ao menos o trabalho da metafísica


marcha habitual do pensamento, pela refundição das categorias da
redunda num remanejamento dos conceitos. A metafísica "só é pro-
linguagem etc. É a inteligência que se volta contra si mesma, a partir
priamente ela mesma quando supera o conceito, ou ao menos quan-
da reflexão que atinge a virtualidade intuitiva presente no intelecto.
do se libera dos conceitos cristalizados e totalmente prontos para
Já que não se pode transpor a distância, marcada pela heterogenei-
criar conceitos bem diferentes daqueles que manejamos habitual-
dade radical, que no homem existe entre intuição e inteligência no
mente, isto é, representações flexíveis, móveis, quase fluidas, sempre
que se refere à expressão, esta se dá como um contraponto que o
prontas a se moldarem pelas formas fugitivas da intuição" (P.M.-
conhecimento intelectual produz em relação a si mesmo. Este con-
188). Isto significa que no seu estrato expressivo a metafísica flexíbiliza
traponto supõe uma harmonia que pode ser vista sob um duplo as-
as formas conceituais na tentativa de lhes conferir a "souplesse"
pecto. Primeiro, a harmonia entre o conceito "remanejado", fluido,
necessária para se amoldarem, tanto quanto possível, à intuição.
móvel, ágil, flexível - mas ainda conceito - e a inteligência como
Existe portanto um movimento que vai da intuição ao discurso, e
estrutura conceitual. Esta harmonia assegura a continuidade entre a
neste movimento a expressão procura constituir-se através da atri-
inteligência e o modo de expressão, já que o simbolismo da lingua-
buição de mobilidade às representações. O caráter móvel da repre-
gem é produto da inteligência. Segundo, a harmonia representada
sentação é o único que pode produzir uma relação de identificação
pela interpenetração originária entre intuição e inteligência, gênese
parcial entre o conhecer e o ser. Essa amoldagem da estrutura con-
da possibilidade de que a inteligência busque algo que não está em
ceitual ao objeto ontológico se faz através do remanejamento concei-
perfeito acordo consigo mesma. A reflexão representa como que o
tual que a metafísica opera na estrutura simbólica da inteligência.
traço de união entre estes dois aspectos, já que a gênese da expres-
Vê-se em que consiste este remanejamento: na recusa do símbolo
são metafísica é a procura pela inteligência do ponto onde ela pode
reificado, do qual o conceito é o paradigma evidente; na recusa da
instalar uma desarmonia consigo mesma, no que se refere à vocação
cristalização da forma significativa e da lógica intelectual enquanto
para a exterioridade que caracteriza o espírito enquanto inteligência,
objetividade virtual e a priori constituída, como uma rede cujo dese-
ou consciência pragmática. Por isso Bergson classifica tal esforço de
nho da malha antecipa os conhecimentos que ali virão se alojar. A
"violento", na medida em que por ele a inteligência recusa a unilate-
essa fixídez se opõe o significado enquanto movimento de significa-
ralidade de sua vocação externa, permitindo que o espírito recupere
ção que se realiza na mobilidade da representação, na direção signi-
a sua interioridade e que esta seja expressa por uma torção da ma-
ficante que gera o conceito, o qual aparece assim como novo, em
terialidade dos signos. É uma recusa da materialidade da significa-
correspondência com a originalidade do que deve ser expresso. Não
ção que está na raiz da possibilidade de retorno à pluralidade movente
se pode exigir das palavras a originalidade absoluta; mas a originali-
dos significados num estrato em que estes ainda não se fixaram na
dade relativa pode ser buscada na mobilidade significativa dos sím-
exterioridade de uma significação totalmente cristalizada, "já dada"
bolos, que é a condição de possibilidade da invenção do significado.
como estratificação da realidade da duração. Esse retorno à interio-
A pluralidade significativa do símbolo se fixa de ordinário na unida-
ridade como matriz de significação supera as dicotomias analíticas
de simbólica do conceito. A metafísica deveria retornar à dimensão
em que se debateu o pensamento filosófico e que se traduzem no
dessa pluralidade e reconstruir o significado no entremeio de todas
dilema entre o realismo e o idealismo. Ou existe a multiplicidade
as possibilidades de significação. Desta forma o espírito "pode insta-
dada das imagens imediatamente presentes no campo da represen-
lar-se na realidade móvel, adotar sua direção incessantemente
tação, ou existe um estrato unitário, não presente na exterioridade
mutável, enfim captá-la intuitivamente. É preciso para isto que ele se
imediata, que fundamenta a realidade relativa desses estados múlti-
violente, que ele inverta o sentido da operação através da qual pensa
plos. Na verdade, o dilema se resume na escolha entre a relatividade
habitualmente, que reverta, ou antes, que refunda sem cessar suas
das "coisas" na sua particularidade indefinida e alguma "coisa" pre-
categorias" (P.M.-213). Não é possível encontrar ou constituir no nível
sente na representação interna como absoluto. No fundo é um deba-
da expressão a mesma heterogeneidade que, a partir da intuição,
te acerca da abrangência conceitual, como se tivéssemos de optar
captamos entre a mobilidade e a imobilidade. Esta heterogeneidade
entre conceitos e Conceito. A "indefinível combinação do múltiplo e
radical é aqui substituída pela mudança de direção, pela inversão da
do um" (P.M.-208) se dissolve enquanto problema filosófico a partir
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309
III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 10. INTUIÇÃO E EXPRESsA0: A TENsAo 00 SIGNIFICADO

do momento em que" a intuição nos introduziria na consciência em O sentido da totalidade é o movimento que a constitui. Talvez
geral" (P.M.-28). Isto significa que a interioridade como matriz de por isso a melhor metáfora da duração seja a música. Ao longo da
significação metafísica não condena o filósofo à autocontemplação. obra bergsoniana, os apelos ao exemplo musical são freqüentes, sen-
Pois à consciência "alargada" corresponde a duração universal. a do que os mais sugestivos encontram-se nos Données lmmédiates".
substancialidade absoluta do tempo. da qual a temporalidade subje- A continuidade melódica enquanto progresso qualitativo da totali-
tiva é apenas o modelo e o ponto de partida na ordem do conhecer. dade parece funcionar como o melhor "esquema dinâmico" para que
Quando a intuição atinge a "mudança pura" ela já não está mais possamos chegar a expressar a multiplicidade qualitativa da dura-
restrita à temporalidade subjetiva, mas alcança uma espiritualidade ção. Certamente a multiplicidade tonal e o movimento pelo qual a
cósmica em que a consciência subjetiva e a duração universal se mudança apresenta-se como contínua e ao mesmo tempo como
identificam na consciência em geral. Buscar "nas coisas, mesmo incessante invenção de qualidade significativa sugere de modo
materiais, a participação na espiritualidade" (P.M.-29) significa dis- privilegiado a espécie de continuidade descontínua do fluxo tempo-
solver a separação tradicional entre real e ideal na compreensão da ral. Ainda mais, o circuito emocional que se instala entre obra e es-
duração como interioridade em si. Por isso a reflexão que busca no pectador, no caso, representa o envolvimento da afetividade do su-
estrato anterior à cristalização significativa o movimento expressivo jeito naquilo que se lhe apresenta - o que é talvez o exemplo mais
que indica essa realidade absoluta se põe como o único meio de próximo de identificação no plano da contemplação estética. É o
superar a conceitualização múltipla e a conceitualização absoluta, caso em que a flexibilidade do signo, o caráter tênue de sua materia-
escapando assim à lógica do entendimento e abrindo a possibilidade lidade e a indissociabilidade entre unidades simbólicas e movimen-
de pensar o eterno no registro do tempo. to, ilustra da forma mais adequada a "souplesse" da representação
necessária à expressão da relação intuitiva. O envolvimento do sujei-
Equivocou-se a filosofia quando pensou que o absoluto poderia to numa afetividade que o transcende sugere o transporte do espírito
ser expresso por um conceito absoluto. Esse nível de expressão ape- para um sentido que se situa, por assim dizer, no registro de uma
nas prolonga a ilusão inerente à aproximação externa do objeto. Não emoção transubjetiva. O caráter interno da progressão melódica su-
é seguindo a vocação unitarista da linguagem que a metafísica pode- gere algo como a envolvência de um absoluto no qual nos inserimos
rá dar conta de seu objeto. A metafísica necessita da ciência porque pelo simples assentimento à cadência da constituição da música. O
é necessário "subsidiar" o ato de pensamento que visa ao ser na sua sentido musical é talvez o que mais se aproxima do significado dado
profundidade, no seu caráter único e indivisível. A familiaridade com pela própria temporalidade, como se aqui a matéria da obra de arte
os aspectos superficiais da realidade é condição para a penetração fosse o tempo.
na sua estrutura profunda. Mas a pluralidade quantitativa de dados
e de resultados de nada serve enquanto o espírito não se instala, por Ainda assim a música não pode ser entendida como a expressão
assim dizer, no centro qualitativo que reúne todos esses aspectos, ou completamente adequada da intuição da duração. Pois uma peça
melhor, de onde todos eles derivam, como perfis de um único rosto. musical é uma construção simbólica e, nesse sentido, um discurso,
O trabalho de situar-se no centro vivo da realidade é análogo ao embora de um gênero em que o movimento significativo importa
trabalho preparatório do escritor, que junta notas e documentos, mais do que a articulação das partes, ou a posição fixa de cada uma.
É bem verdade que a construção simbólica na música remete de
estuda o assunto de todos os ângulos, antes de abordar a própria
maneira mais direta ao plano não-discursivo, uma vez que a matéria
composição da obra. Enquanto não encontrar o "impulso" originário
da música relaciona-se de modo mais imediato com a consciência
que me colocaria no próprio coração da totalidade, tudo o que tenho
emotiva. Isso porque a imagem musical transita de maneira mais
são "partes" ou elementos exteriores entre si, ligados apenas por uma
livre pelo circuito emotivo da contemplação, de forma a permitir que
rubrica. Mas desde que me situo na posição do impulso que deriva
da intuição do todo, as partes transformam-se em "expressões par-
ciais" e assumem a significação que devem possuir no interior de
uma totalidade indivisível. 87. Cf. por exemplo, D.I. pp. 76 a 79.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 11. EMOÇÃO E VERDADE: A INOETERMINAÇAo SIGNIFICATIVA

nos situemos mais facilmente na direção do sentido. Se admitimos inquietude de superar a cristalização. A expressão formal da duração
nuances entre as formas expressivas - todas elas obviamente insu- é basicamente uma contradição, a mesma que os românticos pensa-
ficientes e indiretas -, não poderemos concordar com a afirmação ram ao fazer da arte a forma finita de expressão do infinito. Em Berg-
de S. Langer de que "a música não apresenta a realidade de modo son esta contradição deriva do fato de que a expressão da intuição só
mais direto do que o discurso filosófico", embora a apresente por se toma possível quando instalo a própria contradição no interior da
meio de imagens não-discursivas". Acreditamos que Bergson esta- inteligência, pois só este procedimento me permite atingir a mobili-
belece uma relação suficientemente estreita entre símbolo e discurso dade do significado, que é como que o símbolo geral da interiorida-
para que se possa afirmar que existiria alguma construção simbólica de, ou da mobilidade interior. Esta contradição aponta para a supe-
que escape inteiramente à estrutura discursiva. O que a música tem ração da humanidade no homem. "( ... ) a filosofia deveria ser um
de singular enquanto expressão da realidade fundamental é que ela esforço para superar a condição humana" (P.M.-218). Ignoraremos
nos introduz numa metáfora da temporalidade contínua, fazendo sempre se e até que ponto esta superação se dá na interioridade
com que tenhamos acesso a algo diferente do tempo espacializado, individual. Mas podemos tentar compreender o esforço de ultrapas-
com o qual nos relacionamos habitualmente, e nOS apresentando a sar-se sempre que ele se expressa na transfiguração simbólica, razão
concretude afetiva da postura de identificação com o absoluto, a pela qual, no pensamento de Bergson, as exigências de expressão da
intuição. É claro que, do ponto de vista da elaboração e da contem- metafísica são mais bem cumpridas pela Arte.
plação, a singularidade da expressão musical deriva da vivência do
tempo absoluto, mas por intermédio de signos que, na música, são
extraídos mais diretamente do tempo, já que, neste caso, O próprio 11. EMOÇÃO E VERDADE:
tempo é signo. Foi provavelmente esta característica que levou A INDETERMINAÇÃO SIGNIFICATIVA
Selincourt a dizer: "A música é uma das formas de duração; ela sus-
pende o tempo comum e oferece-nos como um equivalente e ideal No primeiro capítulo dos Données Immédiates, Bergson, depois
substituto"". Não se pode falar em Bergson de "formas de duração": de analisar o sentimento do belo como um caso característico de
existem, isto sim;diferentes graus de tensão de duração, ou de con- atividade do Eu profundo, e de concluir que "a arte visa muito mais
centração da temporalidade. A música certamente é uma expressão imprimir sentimentos em nós do que exprimi-los", extrai de suas
tensa da temporalidade, pois nela o signo está carregado de duração considerações uma conseqüência de grande importância para a com-
e a composição simbólica utiliza o próprio tempo como fundo ex- preensão do papel das imagens na expressão da intuição: "Resulta
pressivo. dessa análise que o sentimento do belo não é um sentimento espe-
cial, mas que todo sentimento exprimentado por nós aparecerá com
Mencionamos a música com a finalidade de mostrar que, mes- um caráter estético se tiver sido sugerido, e não causado" (D.I.-12).
mo na forma de expressão menos indireta e naquela em que encon- A origem sugestiva do sentimento estético está na coincidência com
tramos a possibilidade de maior mobilidade da representação, a in- um certo ritmo inscrito no relacionamento emotivo com a obra. Esta
tuição da duração não é representada de forma completamente ade- coincidência faz com que aquilo que em nós é despertado pela obra
quada. A expressão metafísica é sempre aproximação do inexprimí- não passe pela determinação estritamente racional da forma sensível
vel. A inversão da marcha habitual do pensamento tem esse sentido:
ou da sensação. Há um certo compromisso entre o espírito e a obra
trocar a aproximação do objeto pela aproximação do absoluto. Mas
pelo qual se constrói uma relação que atravessa a sensação, estabe-
ambas são simbólicas, e .a diferença está em que a inteligência se lecendo uma comunicação com a interioridade do objeto, uma his-
compraz na fixidez da forma e a expressão intuitiva é movida pela
tória condensada ou uma emoção ali depositada pelo artista, pela
qual o objeto nos sugere, em diferentes graus de intensidade, a
88. Langer, S., Sentimento e Forma, tradução brasileira da editora Perspectiva, São
emoção inscrita no circuito da contemplação. O caráter peculiar da
Paulo, 1980, p. 125. emoção estética, como já vimos, é que mais nos introduzimos nela
89. Selincour, B., citado por S.langer, ob. cit., p. 117. do que ela em nós. A condensação da coincidência entre subjetivida-

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1II - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 11. EMOÇÃO E VERDADE: A INDETERMINAÇÃO SIGNIFICATIVA

de e absoluto, que está na origem da concepção e da elaboração da que a Theoría. entendida como visão, é um ato mais originário do
obra de arte, e que inclui uma história da complexidade interior do que a linguagem. Não há portanto uma continuidade entre Theoría
artista, não poderia ser entendida "racionalmente". Por isso a inten- e discursividade mesmo quando a visão direta é concebida como
ção do artista é "fazer-nos experimentar aquilo que não poderia nos intuição intelectual. Existe portanto um patético que transporta a alma
fazer compreender" (0.1.-13). A emoção não é pois a refração de sem que esta seja movida pela sensibilidade. Mas se o discurso racio-
duas exterioridades, a materialidade sensível da obra e a apreensão nal deriva da contemplação patética, então o que os separa? Ou o
sensível ou intelectual de quem a contempla. A expressão aqui deve que separa a linguagem racional da linguagem governada pelo pathos?
ser entendida como participação em dois sentidos. Em primeiro lu- A retórica. como discurso persuasivo. sempre foi posta ao lado da
gar, a expressão da subjetividade do artista é participação na emoção linguagem que apela para a sensibilidade, para as paixões. Há um
criadora, pela qual o sujeito se coloca no sentido mesmo do élan. Em desvio que pode ser talvez detectado no início da tradição ocidental.
segundo lugar, a contemplação é a participação na expressividade quando o discurso "retórico", no sentido de patético, foi distinguido
emotiva da obra, mais do que uma leitura externa de significações. do discurso racional, da utilização da argumentação lógica, e consi-
Isto faz com que as imagens enquanto meio expressivo não possam derado como o discurso que leva à ilusão. Nizolius. como mais tarde
ser vistas apenas sob o aspecto de uma tradução da intuição, na Nietzsche, localiza em Sócrates e Platão esta separação entre o dis-
modalidade de uma relação significante/significado. curso do saber e o discurso que visa "apenas à persuasão". "( ... ) antes
de Sócrates e Platão, a ciência do bom comportamento e do belo
Se a imagem não tem seu teor expressivo mediado pela relação falar (recte faciendi et ornate dicendi scientia) - isto é, a filosofia e a
intelectual, ela deverá no entanto apresentar uma estrutura de lin- retórica - não eram distintas, mas sim uma única (... ) Mas - não
guagem que permita a compreensão através da sugestão, ou da sim- sei por qual destino adverso ao gênero humano (adverso humano
patia. Seria então o caso de distinguir entre duas linguagens, distin- generi fato) - então nasceu Sócrates que, juntamente com Platão,
ção que, por si só, entretanto, configura uma questão, como enuncia destruiu aquela bela união de filósofo e orador"." A conjunção da
Ernesto Grassi: "Qual o caráter daquela linguagem que é o próprio desvalorização da retórica e da insuficiência da palavra "racional"
depoimento dos motivos originais? Certamente ela não apresentará coloca o filósofo diante de um dilema: o falar racional que permane-
caráter racional, pois para isso precisaria tirar definições através de ce distante da compreensão originária. ou o falar "retórico" que su-
seu fundamento. Deverá então ser posta à parte da linguagem 'racio- gere a comunicação patética, mas que não se submete às normas do
nal' e 'demonstrativa'; será uma linguagem 'a-racional', puramente discurso "verdadeiro". Bastaria, para solucionar essa aporia, lembrar
indicativa, semântica, cuja estrutura fosse diferente da linguagem que o discurso "verdadeiro" provém da visão originária? Nesse caso
demonstrativa e racional?"" A oposição entre ratio e pathos seria tão a fidelidade à visão estaria muito mais ligada à metáfora. enquanto
profunda a ponto de fazer da linguagem um ato segundo e do silên- imagem construída, do que à articulação lógica e conceitual. A me-
cio algo mais originário do que a linguagem? Outra oposição deve táfora enquanto meio de articulação alternativo sugere a anteriori-
aqui reter nossa atenção para que possamos pensar de uma maneira dade da imagem em relação à própria linguagem, o que faria com
mais ampla a relação entre linguagem e imagem: a oposição entre que a imagem detivesse o caráter originário e, por assim dizer, sub-
eidos e pathos. Se nos remetemos ao significado de eidos (aspecto, metesse a si a linguagem no seu teor expressivo.
imagem) vemos que a essência, tal como aparece na filosofia de
Platão, é a imagem contemplada intelectualmente, ou seja, dotada Isso significa propor algo como a autonomia da imagem, que
do privilégio de aparecer como imagem para o intelecto na disponi- derivaria de seu poder de "compreensibilidade", que aqui seria en-
bilidade pura da contemplação, isto é, como alma. Esta contempla- tendido como a sugestão do acesso direto ao que Grassi chama de
ção se enfraquece quando traduzida em linguagem, o que significa "motivos originários". Mas como se pode pensar a autonomia da
imagem se os símbolos tendem para a fixidez necessária à comuni-

90. Grassi, E., Poder da Imagem Impotência da Palavra Racional. tradução brasileira
da Editora Duas Cidades, São Paulo. 1978. p. 16. 91. Nizolius, M., citado por E. Grassi, ob. cit., p. 17.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO
11. EMOÇAO E VERDADE: A INDETERMINAÇAo SIGNIFICATIVA I
cação instrumental, e se a linguagem pertence ao estrato pragmático ser, portanto, a interpretação entendida como figuração simbólica
da cultura? A resposta à questão liga-se àquilo que mencionamos do originário. A interpretação é a marca da finitude e ao mesmo
antes acerca do fundo de inquietude que, mesmo na atividade inte- tempo aquilo que permite superá-Ia através da liberdade simbólica.
ligente, acompanha a tarefa infinita de completar as aproximações Esta liberdade se dá quando transfiro para a imaginação a tarefa de
simbólico-conceituais do objeto. Quando a reflexão aprofunda esta configurar simbolicamente a realidade. Desnecessário dizer que a
inquietude e atinge a dimensão do pathos, esta deveria ser a origem instrumentalidade é uma interpretação guiada por parâmetros natu-
do processo de recriação dos símbolos. Tal recriação, por sua vez, rais ou regida pelo telos da utilidade. A construção do mundo per-
deveria restituir ao símbolo uma função patética que o tornasse ex- ceptivo e sua assimilação através das formas intelectuais são sem
pressão da originariedade. Mas é importante que se note que, em dúvida procedimentos interpretativos que se regulam pela exteriori-
Bergson, o símbolo não tem uma função patética original. Conse- dade do espírito, a direção habitual do pensamento. A interioridade
qüentemente, não é o caso de se buscar um estrato originário em e, mais do que isto, o sentido da interioridade recíproca entre "sujei-
que o símbolo aparecesse como expressão primordial. Toda expres- to" e "objeto" representam a adoção de uma outra direção interpre-
são é tradução". Já que o símbolo enquanto tal não pertence à di- tativa que se dá como expressão da comunicação originária. O origi-
mensão originária, voltamos ao problema do caráter inexprimível do nário é a visão (theorein) e a expressão é o lagos, tanto na sua acep-
pathos. No entanto existe uma efetividade emocional na figuração ção de palavra como na de reunir e recolher. Entre a visão e o logos,
simbólica da arte. Ela deriva da indefinição primitiva do mundo no homem encontra-se a mediação dos sinais, que deveriam remeter
humano, dessa abertura que permite a configuração instrumental da à visão, mas que a articulação simbólica distancia das origens. Por
intencionalidade pragmática. Esta indefinição, na qual se insinua a isso não se pode confundir o logos do entendimento com o logos
inquietude que na esfera religiosa resulta na fabulação, abre também originário. Assim, para os antigos, ouvir o logos originário dependia
a possibilidade de uma figuração simbólica a partir de uma subver- da anulação do logos "racional". Daí o caráter enigmático dos oráculos
são dos significados, que na arte atinge o próprio nível da forma e a caracteristica da "possessão" daquele que fala a partir do logos ori-
simbólica. Assim a arte não é apenas um rearranjo de símbolos, mas ginário. Possessão significa que aquele que fala não domina o logos,
uma criação que se manifesta a partir de uma recriação simbólica, mas é habitado por ele. Neste caso, os sinais e os símbolos já não
entendida principalmente como transformação da função do símbo- obedecem à ordem lógica, mas se conformam a uma ordem originá-
lo. O homem é o único ser vivo que pode fazer de sua situação na- ria que necessita ser interpretada. Mas a própria fala já é uma media-
tural uma contradição. Isso significa que a cultura não está biologi- ção entre a origem e a interpretação "racional". No entanto a origem
camente condicionada; é possível transformar a formação natural, da comunicação oracular, da fala da sibila, dos videntes e dos profe-
fruto da evolução, e assim aceder a aspectos que a natureza, por tas é a visão pura, theoria na acepção absoluta. A linguagem faz com
assim dizer, desejou manter obscuros. que o dizer do logos entre no universo humano, torne-se história. A
palavra é formadora do mundo humano porque o que por meio dela
A recriação simbólica é, pois, a decisão acerca de uma nova di- é dito torna-se cultura no sentido de forma do mundo humano: a
reção interpretativa. Quando Bergson fala de uma "refundição" dos historicização da palavra dá início à vida cultural no sentido de his-
símbolos, evidentemente não poderíamos entender por isso uma tória humana. "O discurso faz com que nos esforcemos por atingir os
reelaboração completa, uma vez que a linguagem está dada como primeiros princípios que nos levam a definir os fenômenos, a colocar
produto cultural e que a materialidade dos signos nas artes que não ordem no caos das impressões e a fundar o nosso mundo. Portanto,
são da palavra é igualmente insuperável. A questão central passa a a fala é fundadora do mundo. Negá-lo equivale a renunciar à histó-
ria, à comunidade e à mundanidade93 ." A história equivale então à
92. Não podemos portanto referir a Bergson a afirmação de Grassi: "A obra de. arte tarefa de interpretar o destino a partir da palavra que transmite o
evoca uma situação fundamental na qual símbolos esclerosados e tornados inofensi~
vos pela existência cotidiana revelam o seu significado originário, provocam estados
de espírito que fazem com que o homem experimente suas paixões fundamentais"
93. Grassi, E" ob. cit., p. 75.
(ob. cit .• p. 35).
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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 11. EMOÇÃO E VERDADE: A INDETERMINAÇÃO SIGNIFICATIVA

logos original, o motivo originário, a Vlsao nunca inteiramente criar? No entanto tais formas precisamente figuram o infinito porque
traduzida. Só o silêncio corresponderia à visão. É porque o absoluto de alguma maneira derivam dele, ou desta relação absoluta que se
atravessa o destino humano que a palavra deve fazer-se história, e configura na possessão do finito por algo que o ultrapassa. É preciso
que o evento deve manifestar algo que lhe é anterior. Mas o discurso portanto que a força interpretativa seja buscada naquilo mesmo que
que visa atingir os primeiros princípios é aquele que se distancia da se pretende interpretar. Nisso também se situa a transferência inscri-
cotidianidade, da instrumentalidade restrita dos "signos esclerosados" ta na acepção de metáfora. A fonte produtora do sentido deixa de ser
para elaborar uma figuração simbólica que desvele pela linguagem a cotidianidade, o mundo da consciência instrumental, para ser a
aquilo de que ela depende. A linguagem depende da visão, portanto camada originária da realidade ou a coincidência com o logos pri-
do silêncio. É nessa dimensão que se encontram os archai que então mordial. Esta coincidência retira da linguagem o caráter de processo
devem governá-la enquanto linguagem que fala da origem. É a lin- entendido como seqüência lógico-temporal de articulação do signi-
guagem em que o símbolo remete a algo anterior à linguagem: ficado. Por isso a visão direta é transmitida pela metáfora, que não
symbállein significa originalmente ligação com base em algo comum94 • articula, mas torna possível a relação imediata entre as palavras que
Essa comunidade originária entre o homem e o logos originário deve remetem à origem do significado. O significado não é atingido por
aparecer na estrutura segunda da linguagem articulada, manifestan- dedução, mas por uma associação introspectiva de similaridades, que
do o parentesco do símbolo verbal com a origem que ele deveria tem como premissa o poder absoluto do logos originário, ao qual se
exprimir. Por isso o discurso filosófico e a linguagem da arte são submete o poder articulador da linguagem". O que foi dito autoriza
arcaicos, isto é, os símbolos são aí articulados no registro de uma a seguinte conclusão: "A linguagem racional, demonstrativa, explica-
comunicação patética com o originário. Assim, a fala é mais fiel às tiva não é originária: ela tem suas raízes na linguagem semântica e
origens quando quem fala está "possuído", sendo apenas veículo do referente, que é extraída diretamente da fonte dos 'sinais' arcaicos"".
logos divino, caso em que a própria articulação do discurso deixa de Assim como a interpretação do oráculo ou da fala da sibila se dá a
ser puramente racional, já que o estrato da articulação é o pathos, partir da compreensão da organização interna das imagens que com-
mediação não "lógica" da expressão. põem o discurso, assim também é a organização de imagens, numa
ordem diferente da articulação conceitual que permite elaborar o
A metáfora, no sentido mais geral, é a transferência da camada
discurso que visa à aproximação interna da visão como conteúdo
originária da expressão no sujeito. Não se trata apenas de transfigu-
intuitivo. Há um aspecto pictórico cuja consideração é essencial para
rar o significado e assim transferir a figura do sentido de uma signi-
que se compreenda a possibilidade de uma linguagem originária. A
ficação para outra. É a própria origem da expressividade que se trans-
visão é completa em si: as imagens do visto descomprometem a vi-
fere do entendimento para a esfera do pathos. É portanto algo mais
são com o seu objeto. Por isto a expressão do visto só pode ser ima-
do que aquilo que já vimos como a mobilidade do signo, caracterís-
gética, pois trata-se de traduzir a visão pela sugestão da visão, que é
tica pela qual ele, movendo-se entre os significantes, aplica-se a vá-
dada na imagem. A visão é tão heterogênea à expressão que não
rias coisas. Aqui é a camada originária da expressão que se situa num
poderia causar nenhum conteúdo expressivo. A construção de ima-
outro âmbito, diferente do entendimento, embora dele dependente
gens no jogo da imaginação (ou no jogo entre imaginação e enten-
no que se refere ao trânsito exteriorizante da expressão. Quando os
dimento) visa de alguma maneira contornar esta heterogeneidade,
românticos afirmam que a obra de arte é a figuração finita do infini-
evocando a visão através de visões: de imagens. Dar a ver o que não
to, podemos perguntar: qual a origem desta figuração? Poderia a
pode ser compreendido é a função da imagem enquanto sugestão;
subjetividade finita figurar o infinito a partir de seu próprio poder de
eis por que a imagem não causa representação, mas representa dire-
simbolização? Ou devemos entender que tal figuração se dá quando
a subjetividade está "possuída" pelo próprio infinito que ela deve
figurar, mas que só pode fazê-lo nas formas finitas que é capaz de 95. Cf. Grassi, E., ob. cit., p. 88. Cf. também a análise da linguagem da sibila em
Agamenon, de Ésquilo, que Grassi desenvolve nas pp. 89 a 104, assim como a análise
do episódio da sibila de Cumae (Eneida).
94. Cf. Grassi, E., ob. cit., p. 76. 96. Grassi, E., ob. cit., p. 83.

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III - INTUlÇÀQ E EXPRESsA0
1L EMOÇÃO E VERDADE: A INDETERMINAÇÃO SIGNIFICATIVA

tamente a visão indireta que podemos ter do conteúdo intuitivo. A entendido como estranhamento perante o cotidiano, quando para
organização interna das imagens, solidária da indeterminação de cada além dele vislumbramos a visão e abrimos para nós a possibilidade
uma em particular, resulta assim num conteúdo expressivo mais rico de que esta visão venha a ser a do originário, Sendo a função do
do que a uniformidade semântica do conceito. Essencial para que as espanto transportar-nos para além do aparente, seu âmbito é o pri-
imagens cumpram esta função é a manutenção de sua indetermina- mordial e o arcaico - o anterior à dimensão racional do discurso, A
ção significativa, já que somente assim o significado pode manter-se experiência de estranhamento em relação ao cotidiano é comoção:
no plano da sugestão. Esta indeterminação também faz parte do jogo emoção compartilhada com o próprio absoluto. Não está esta como-
significativo das imagens, que se dá entre a evidência e o ocultamen- ção na própria raiz do esclarecimento racional dos fenômenos? Não
to. O eterno vir-a-ser da verdade da origem, em si irrepresentável, é existe portanto um paralelismo entre pathos e entendimento, como
o próprio processo de figuração que, por ter o absoluto como origi- duas "faculdades" que abarcam campos distintos. O caráter originá-
nal, é infinito. O conteúdo intuitivo é experiência, no sentido mais rio do pathos nos faz reconhecê-lo como o signo da primazia da
integral em que se pode concebê-la. Assim, a palavra remete a uma imagem sobre o discurso puramente racional, na medida em que
experiência, ou seja, se constitui no âmbito de uma revelação. Reve- este é uma fixação derivada das metáforas que mais servem à esta-
lar é reconduzir à experiência originária, permitindo que o sujeito se bilidade do nosso contato com o mundo. Aquém deste contato, o
reconheça em ato, isto é, na atividade originária do pathos. Por isso mundo é visto como que pela primeira vez, na imediatidade de sua
a constituição da linguagem da arte e da linguagem da metafisica é qualidade de criado que remete de modo absoluto à atividade cria-
uma tarefa que tem por finalidade penetrar na estrutura da realidade dora, com a qual procuramos tomar contato intensificando a nossa
em sentido próprio: da vivência que antecede o discurso vivido da relação com as coisas até torná-la originária. O limite desta relação
história e do mundo humano. O que faz a palavra oracular, através originária está na recriação simbólica, pela qual transformamos a
das imagens, é tornar visível o âmbito originário da revelação da instrumentalidade natural dos signos em tarefa de criação de for-
palavra. Os archai são experiências: neles figura e palavra não se mas. O homem é o único ser que pode transportar a inquietude para
distinguem, e a produção do sentido não é a articulação do signifi- o mundo da natureza, fazendo com que physis e ethos identifiquem-
cado, mas produção poiética como identificação expressiva entre o -se como cenário da criação.
homem e a totalidade do ser. É nesse sentido que a articulação racio-
nal é derivada e a filosofia e a arte são questionamentos emotivos O caráter originário do pathos pode ser também compreendido
originários. A problematização especulativa do mundo parte da in- a partir da diferença entre forma instrumental e forma artística. O
quietude que nos atinge quando a reflexão transborda o entendi- que significa o desenho do mundo empírico para a consciência prag-
mento e o homem se torna consciente de sua solidão entre os seres mática senão a determinação de uma correspondência entre a virtua·
naturais, na medida em que é o único capaz de questionar a sua lidade instrumental do mundo prático e a estruturação utilitária da
própria natureza. Esse poder de se transcender tem algo de "aflitivo" consciência enquanto inteligência e percepção? Esta determinação
perante a impassibilidade necessária do mundo natural. "Esse poder realiza as virtualidades de ação presentes no mundo prático, deter-
aflitivo - que exige fé - traz consigo o aspecto apaixonado do ele- minando a forma da percepção e a forma da apreensão intelectual.
mento arcaico, que já aqui deixa claro ser a esfera do originário de- Esta determinação exclui todas as demais virtualidades da presença.
terminada por um elemento emotivo, enquanto o mundo racional- Um utensílio, uma vez construído, está determinado na sua forma e
não-originário, mas puramente derivado - permanece impassível e na sua finalidade; essa própria conjunção, na medida em que realiza
não-emotivo97 ." perfeitamente a intencionalidade fabricadora e utilitária da consci-
ência empírica, exclui todas as outras formas e todas as outras fina-
Impossível não relacionar esse elemento emotivo com o que lidades. A determinação se dá pela compatibilidade definida entre
Platão assinalou como estando na origem da filosofia: o espanto, forma e finalidade. A obra de arte, derivando da emoção ou da co-
moção, não está determinada pela inteligência no estrato de sua
97. Id., ibid., p. 120. gênese criadora. Essa ausência de determinação remete àquilo que

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lU - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 11. EMOÇÃO E VERDADE: A INDETERMINAÇÃO SIGNIFICATIVA

seria a determinação intuitiva, que no entanto teria de ser entendida forço de imaginação", visa ao núcleo da realidade numa visão que
como determinação a partir da coincidência presente na comunica- permanece enquanto tal; é a partir da permanência que se operam as
ção simpática com O originário e o absoluto. Mas uma determinação configurações de imagens que estabelecem entre o sujeito e a reali-
absoluta entendida como ausência de mediação entre determinante dade a relação de desinteresse que caracteriza a atitude estética. As-
e determinado é, por referência à inteligência, indeterminação. Esta sim como a percepção "real" mede o interesse da ação virtual, a
indeterminação é que faz com que a obra de arte não seja fruto de percepção artística instaura o desinteresse como mediação entre a
uma atividade fabricadora. Significa que, não havendo determina- forma (atividade) e o produto sem finalidade. A obra de arte reflete
ção, não há exclusão de possibilidades, não há compatibilidade de- essa ausência de finalidade assim como o utensílio reflete a sua fina-
finida entre forma e finalidade. Assim a obra de arte, ainda que sen- lidade. Mas a obra só reflete algo na medida em que o poder de
sivelmente fixada numa forma, remete a infinitas possibilidades de refletir está na gênese de sua elaboração, em que a criação imprimiu
ser. Como a forma não corresponde a uma finalidade precisa, o ob- à obra a organização não finalista ou a unidade não determinada,
jeto traz em si a significação difusa da imagem, a indeterminação de geradas por um sentimento da realidade que não encontraria ex-
conteúdo que só pode ser apreendida no plano da emoção. A irradia- pressão nas possibilidades determinantes dos quadros intelectuais.
ção do significado a partir do núcleo intuitivo da obra exclui a con- Nesse sentido, o artista é aquele em que o poder de refletir se con-
vergência objetiva que determinaria a significação; por isso, como trapõe à absorção requerida pelas virtualidades de ação com as quais
vimos, só a coincidência com essa irradiação, com esse percurso nossa percepção se relaciona no mundo prático. Toda escolha se dá
múltiplo do centro para a periferia, permitiria que apreendêssemos, a partir de uma base reflexiva. Assim, a reflexão de inteligência, mi-
na efetividade de sua realização, o significado emocional da obra. nimamente instalada entre a consciência empírica e o mundo práti-
Por isso diz Bergson, nos Données Immédiates, que a obra de arte co, fundamenta o visar seletivo da intencionalidade pragmática, e
cuja apreensão do significado se dá apenas no âmbito da sensação dessa maneira o mundo aparece enquanto esquemas de ações. Mas
representa uma "arte menor". A forma sensível deve remeter àquilo se a reflexão atinge, através da virtualidade intuitiva da inteligência,
que ela não é: nisso consiste a indeterminação que a distingue da a visão aquém do esquema prático, então o poder de refletir se ma-
forma do utensílio, que é aquilo que com ele eu posso fazer. "O ob- nifesta em si, desligado das virtualidades de ação, e abrindo-se para
jeto real é uma exclusão daquilo que ele não é, ou seja daquilo que as virtualidades do ser como presença: reflexão livre e ilimitada, e,
é inútil ou à sua ação ou a uma ação sobre ele. A obra de arte é ao assim, coincidente com o ato criador. Assim a obra de arte reflete o
contrário a sugestão daquilo que ela não é, sugestão que, no caso das mundo e ao mesmo tempo cria um mundo. Essa relação entre refle-
obras de arte superiores, atinge quase o infinito"." A atualidade for- xão e criação é reveladora da índole da criação artística. Esta índole
mal da obra de arte não a particulariza: no caso a forma é apenas um aparece em Bergson de maneira mais clara quando o filósofo com-
veículo da universalidade. Se no plano da inteligência a visão se trans- para a intuição como instrumento da arte e como instrumento da
forma em ação, e esse é o caráter determinante e conclusivo da ati- filosofia. "( ... ) a arte relaciona-se apenas ao ser vivo e utiliza apenas
vidade intelectual, a obra de arte representaria a inconclusão da vi- a intuição, ao passo que a filosofia ocupa-se necessariamente da
são, a identificação entre atividade e possibilidade, a escolha da Vir- matéria ao mesmo tempo em que aprofunda o espírito, e conse-
tualidade, e não a opção entre virtualidades. Da visão à ação, o per- qüentemente apela para a inteligência tanto quanto para a intuição
curso natural é como que bloqueado pela contemplação, que inter- (embora a intuição seja seu instrumento específico (. .. )"." Que sig-
rompe o circuito natural e desvia o pensamento de sua vocação nifica esse relacionamento da arte "apenas" com o ser vivo? Certa-
"mundana". É nessa interrupção que se abre a possibilidade da in- mente não podemos opor arte e filosofia afirmando que a arte tem a
tencionalidade não pragmática da consciência, de um outro dese- ver com o movimento e a filosofia com a matéria inerte. O que de-
nho do mundo, de uma organização imagética que, através do "es-

99. Bergson. H.. Carta a Hoffding. citada in Chahine. c.. La Durée chez Bergson.
98. Thibaudet. A., Le Bergsonisme. ob. cit .. p. 62 - voI. 11. Structures Nouvelles. Paris. 1970. p. 89.

322 323
III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 12. SER E SIGNIFICAR: A INTIMIDADE CRIADORA

vemos entender é que a arte relaciona-se diretamente com o núcleo A imagem pode refletir o absoluto. A recriação de Significação
vivo e movente da realidade, uma vez que a gênese criadora da obra através da construção de metáforas pela subjetividade criadora se dá
situa-se numa dimensão mais profunda do que os quadros da inte- por meio da transcendência das interioridades; daí o poder evocado r
ligência. A filosofia relaciona-se com a matéria porque ela necessita da imagem: despertar a virtualidade indeterminada pela qual o abso-
superar metodicamente a aparência de imobilidade pela qual o real luto se faz presente, ou presença. A realização dessa virtualidade in-
se apresenta na percepção e é assimilado através da lógica do enten- determinada - precisamente porque ela é indeterminada - é cria-
dimento. Por isso a filosofia apela para a inteligência: porque o co- ção. Assim a originalidade de um mundo reflete a originariedade do
nhecimento filosófico necessita familiarizar-se com as manifestações mundo: a liberdade da imaginação reencontra a Liberdade criadora.
superficiais da realidade, aquelas mesmas que são acessíveis à inte-
ligência, para ultrapassar criticamente, através dos fatos, a visão in-
telectual da realidade e predispor-se assim para a relação cognitiva 12. SER E SIGNIFICAR: A INTIMIDADE CRIADORA
através da intuição. Num certo sentido o conhecimento filosófico é
mais completo: ele vai à gênese da constituição dos modos de co-
nhecimento, relacionando-os com a trajetória do élan. A arte não faz Mesmo quando se referem aos estágios de elaboração subjetiva
o percurso genético porque parte da virtualidade intuitiva e se co- da obra, as considerações de Bergson sobre o estatuto da obra de
munica emocionalmente com o núcleo da realidade, utilizando as arte e do artista não podem ser entendidas como uma psicologia do
imagens tanto para construir esta comunicação como para expressá- ato criador. O que está em causa é menos a análise da genialidade
-la. Diríamos então que a arte não revela o porquê da intuição (sua individual do que o fazer artístico como instância de revelação, ou de
gênese na relação conheciment%ntologia); ela se põe diretamente expressão da intuição. E isto mesmo quando, aparentemente, são os
no sentido do élan, e vai da profundidade interior do sujeito à inte- aspectos relativos à composição da obra focalizados de maneira pri-
rioridade do movimento absoluto. A filosofia parte também da interi- vilegiada. "O que há de mais construído, de mais sabiamente engen-
oridade do sujeito, atingida pela reflexão, e penetra na interioridade drado do que uma sinfonia de Beethoven? Mas ao longo de todo o
do objeto (movimento absoluto), construindo de alguma maneira seu trabalho de arranjo, de rearranjo e de escolha, que se desenvol-
indiretamente a sua relação direta com a totalidade, o que é outra via no plano intelectual, o músico regressava a um ponto situado
maneira de mencionar a mediatidade do conhecimento imediato, a fora deste plano para aí buscar a aceitação ou a recusa, a direção, a
que já nos referimos. Esta é a razão pela qual a metafísica tenta apre- inspiração: neste ponto alojava-se uma indivisível emoção que a
ender o que Grassi chama de "regência interna" das imagens: o inteligência auxiliava, sem dúvida, a explicitar em música, mas que
movimento da sua pluralidade, enquanto a arte se serve diretamente era mais do que música e mais do que inteligência" (D.S.-268). Tex-
das imagens para recriar simbolicamente (construir um mundo) a tos como este não nos apresentam uma psicologia da produção ar-
inserção da consciência no absoluto. Diferentemente do plano do tística. O que aí está é a relação entre a intuição e a composição, ou
porquê, o artista estaria situado no plano do como da atividade cria- seja, o trabalho de expressar com os símbolos próprios de determi-
dora: desconhece a gênese, mas coincide diretamente com o fazer-se nada arte algo que em si é completo, na unidade e indivisibilidade da
da realidade. É por isso que o "mundo" do artista reflete o mundo emoção na qual a obra se confunde com a intuição que a engendra
real, embora seja uma criação: pois a essência do mundo real é cria- enquanto forma expressiva. O ato criador não é suscetível de análise,
ção, e a arte, no que tem de atividade (produção), é recriação do muito embora sua própria expressão tenha algo a ver com a análise, na
movimento criador. A verdade da arte provém de que a recriação medida em que a forma é uma discursividade simbólica. Se o artista
simbólica deriva da intuição (simpatia) da atividade criadora no pla- é mais do que ele mesmo quando cria, é menos que ele mesmo
no do absoluto. É assim que a interioridade do artista (o núcleo in- quando expressa sua criação. Se, enquanto criador, identifica-se com
tuitivo de sua relação com o real) faz com que ele se situe acima de o absoluto, no plano da expressão, retoma ao universo humano da
si mesmo: uma continuidade transcendente, se assim se pode dizer, fabulação e dos símbolos. Por isso o ponto nuclear da obra enquanto
liga-o com o absoluto enquanto interioridade em si. criação está fora do discurso e fora do artista enquanto homem, se

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 12. SER E SIGNIFICAR: A INTIMIOADE CRIADORA

bem que para encontrá-lo tenhamos de ir ao fundo da subjetividade. vincule-se bem mais à face obscura e misteriosa da criação do que
O que mais interessa à concepção bergsoniana da arte não é a ges- ao "mecanicismo" das regras de composição vigente no neoclassicis-
tação individual da obra. mas o processo de identificação com a to- mo. "Pode-se dizer que um original é de natureza vegetal; brota es-
talidade da qual a obra se faz o veículo de revelação. Nesse sentido pontaneamente da raiz vital do gênio; cresce. não é feito. As imita-
todo artista. no plano da expressão. já é um intérprete de si mesmo. ções são freqüentemente uma espécie de manufatura elaborada pela
da mesma forma que o filósofo. quando expressa sua intuição funda- arte e pelo trabalho mecânico a partir de materiais preexistentes que
mental em sistema. já é um discípulo de si mesmo. O "esforço de não são próprios loo ." Note-se que a visão orgânica. aspecto que seria
imaginação" não diz respeito ao ato criador. mas à construção da em princípio favorável a um paralelismo com a concepção de Berg-
mediação imagética que tentará transpor a visão condensada no sono diz respeito à criação entendida como elaboração da obra por
ponto nuclear fora do discurso para uma estrutura formal acabada. uma subjetividade genial. O mistério e a divindade presentes na cria-
configuração simbólica cujo único sentido é remeter àquele ponto ção são remetidos muito mais à personalidade do artista (que ele
nuclear. Este. referência emotiva para a construção simbólica. atua mesmo desconhece em grande parte) do que a uma participação em
como diretriz e inspiração que guia a síntese entre a impressão intui- algo que o ultrapassa. A explicitação do paralelo entre criação divina
e criação artística. comparação que remonta a épocas bem anterio-
tiva e a expressão discursiva. O sentido da obra de arte. entretanto.
res a Young. sublinha com extraordinária força o aspecto espontâneo
não se encerra na construção da forma; esta apenas remete à totali-
do ato criador. mas vinculando-o exclusivamente à subjetividade.
dade absoluta. na qual a subjetividade se dissolveria. não fora o como se o artista tivesse dentro de sium outro - um estrato inescru-
descenso necessário para o nível da recriação simbólica. Como todos tável de sua subjetividade - com o qual ele entra em contato no
os objetos da arte são figurações da duração absoluta. não há sentido momento da criação. Abrams faz notar quão estranho devia aparecer
em falar de imitação. a menos que se entenda por isso a repetição do tal psicologia do artista numa cultura impregnada da psicologia
movimento criador. movimento que não se enraíza na subjetividade. lockiana. na qual não havia lugar para o pensamento inconsciente.
mas na força do élan. Jamais uma psicologia poderá ultrapassar o Na Alemanha. tais idéias se combinarão bem mais facilmente com
nível da composição pelo qual o artista torna-se veículo da criação uma psicologia impregnada de metafisica. por ex.• com a concepção
universal. O sentido da interioridade está na identificação. não na leibniziana de inatismo virtual. com a idéia de que a percepção "real"
separação: quando a individualidade se projeta além da espécie. já se compõe de um número indefinido de pequenas percepções in-
não o faz como individuo da espécie. mas como outra espécie. ainda conscientes etc. Mas o que mais nos interessa nesta questão é a
que constituída de um único individuo. A obra de arte. o artista são posição do artista. Tornou-se lugar-comum dizer-se que o romantis-
manifestações da continuidade do Ato Criador. Por isso as indica- mo opõe a liberdade criadora da personalidade individual à univer-
ções de uma concepção de obra de arte em Bergson apontam para salidade abstrata da regra. Disso já há claros indícios em Young. que
o plano ontológico. e não psicológico. privilegia as profundezas insondáveis da consciência. Essa separação
Há portanto uma grande diferença entre tais indicações e a dou- entre o individual e o universal não se manterá da mesma maneira
trina do gênio presente no pré-romantismo inglês. por ex.• em Young. ao longo do desenvolvimento das concepções românticas de criação.
Opondo-se à concepção do trabalho artístico enquanto sábio sobretudo na Alemanha. Em Young. o que vemos é uma ênfase na
agenciamento de partes segundo regras precisas. o que fazia da visi- espontaneidade da "natureza humana" quando o gênio a representa.
bilidade arquitetõnica - dos aspectos explícitos da composição - o Uma espécie de dupla subjetividade faz com que o artista encontre
essencial da obra. Young preconiza uma visão "orgânica" da relação em seu interior a gênese das formas. numa dimensão não totalmente
entre autor e obra. enfatizando a ação criativa e a vitalidade original acessível ao domínio da consciência. Trazendo em si de que se sur-
da produção artística. O enraizamento da obra na profundidade do preender. se não de que se ultrapassar. colhe no desconhecido de si
Eu. inclusive em aspectos inconscientes. seu crescimento orgânico e.
sobretudo. a ênfase no processo de criação. mais do que no produto 100. Young, citado por Abrams, M. H., El Espejo Y la Lámpara (fhe Mirror and the
acabado. fazem com que a concepção da relação entre autor e obra Lamp), tradução espanhola Editorial Nova, Buenos Aires, p. 290.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 12. SER E SIGNIFICAR; A INTIMIDADE CRIADORA

aquilo com que expressa sua diferença. A espontaneidade orgânica, dizemos que o finito figura o infinito, queremos dizer que o infinito
quase sempre comparada ao crescimento vegetal, aparece como está no finito, que o universal é o particular e que o particular é o
modelo de regulação interna da criação. O gênio é aquele que é para universal. Pôr o sentido do símbolo nele mesmo e não em outra coisa
si a sua própria regra. O exemplo incessantemente citado, tanto pe- não é optar pela unilateralidade da expressão ou pela auto-remissão
los ingleses como pelos alemães, é Shakespeare, síntese de saber e do discurso; é levar até a radicalidade a noção kantiana de exhibitio
espontaneidade exatamente por organizar a obra a partir de si, não e anular a distância entre ser e significar. "Ao dizer que no simbólico
como um transbordamento selvagem, como por vezes se apregoou, o universal não significa o particular, nem o particular significa o
exageradamente, na opinião de Coleridge e A. Schlegel, mas como universal, mas cada um deles é o outro, Schelling está atento, sobre-
um desenvolvimento orgânico e auto-suficiente"l. Essa relação entre tudo, à pregnância desse é, afirmado cum emphasi. Ao longo de toda
inconsciente e individualidade, que parece ser bastante enfatizada a sua reflexão, ele nunca perdeu de vista a transitividade desse é, que
entre os teóricos ingleses, no idealismo alemão assume um caráter foi, desde o começo, aquilo que propriamente o fascinou no 'eu é eu'
mais ligado à ontologia, sobretudo em Schelling, com o conceito de de Fichte - que apanhava em ato a identidade da consciência (... )104."
produção inconsciente da natureza, de que já falamos antes. A mediação como presença da identidade remete a algo como o ar-
tista e o seu Duplo. Mas essa duplicidade não deve ser pensada como
Isso se explica, no caso de Schelling, pela recusa da dicotomia consciência e inconsciência no plano da personalidade. A subjetivi-
subjetividade/objetividade e pela concepção da identidade como dade é mediadora porque traz em si mais do que ela mesma, não
"auto-afirmação absoluta''''. É algo que tem a ver com a relação entre como a parte desconhecida, obscura, de si, mas como a parte do
o particular e o universal, tanto no que se refere à obra como no que Todo da qual a subjetividade não é consciente, mas com a qual se
concerne ao artista. O Belo, dizia Schelling, é o infinito apresentado identifica, pois na unidade misteriosa da criação, a parte é o Todo, a
de forma finita; August Schlegel complementa: "O belo é uma apre- subjetividade finita se faz infinito pela figuração, coincidindo com o
sentação simbólica do infinito"l03. A recriação simbólica se dá na processo "afirmante" da afirmação absoluta, noção que nos român-
subjetividade do artista, ou por ela, mas a partir do infinito, do qual ticos faz eco à natura naturans de Spinoza. O mistério da criação
o símbolo não é O significado, mas a apresentação. Assim o absoluto artística está em que, nela, a mediação se faz identificação imediata.
se faz presença na obra de arte: a subjetividade do artista é singular Por isso a mediação simbólica não pode ser inteiramente pensada
precisamente porque aí o particular e o finito são ocasiões de mani- no interior da subjetividade representante, pois essa mediação não
festação do infinito. A mediação estabelece a continuidade entre o se explica apenas como ação da subjetividade ou como produto do
finito e o infinito. O artista, enquanto mediador, é outro em relação gênio. No limite, não é possível uma explicação psicológica do gênio,
aos homens, mas não é outro em relação ao absoluto. A mediação só pois isto seria reduzir a Identidade ontológica à identidade dividida
se dá porque o mediador comunga com aquilo que através dele é do Eu na relação entre consciência e inconsciência Nessa perspectiva
mediado. O mesmo se aplica ao produto artístico. O absoluto não é se inscreve a relação entre genialidade e fatalidade e o aspecto sacrificai
outra coisa em relação àquilo que o simboliza. O valor do símbolo inerente à figura do mediador. O estranhamento, face apenas indicativa
está exatamente em que a mediação se faz presença, ou a presença do aspecto sacrifical, configura a singularidade do destino do artista,
se dá na mediação. Entre o símbolo e o simbolizado não há relação levado a renunciar ao modo alegórico de figuração do infioito, próprio
de alteridade, mas de figurabilidade. Não é propriamente uma rela- da criatura, para aceder à identificação através da mediação simbólica,
ção de significação, tal como habitualmente entendemos. Quando possível apenas a partir da coincidência, vedada ao comum dos ho-
mens, entre o sofrer e o agir, coincidência que, no plano da finitude,
é a própria essência da criação. Assim se entende como a atividade
101. Cf. Abrams, M. H., ob. cit., p. 310. criadora só se desvela a partir do pathos.
102. Torres Filho, R. R., O Simb6lico em Schelling, in Ensaios de Filosofia Ilustrada,
Brasiliense, São Paulo, 1987, p. 155.
103. SchlegeI, August, Leçons sur ['Art et la Littérature, tradução Lacoue- Labarthe in
L'Absolu littéraire, ob. cit., p. 343. 104. Torres Filho, R. R., o Simbólico em Schelling, ob. cit., p. 157.
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III - INTUIÇÃO E EXPRESSA0 12. SER E SIGNIFICAR: A INTIMIDADE CRIADORA

A mediação simbólica é uma recriação porque o símbolo não tranhamento, a solidão daquele que recebe a revelação, a primeira
está naturalmente aberto para a figuração do infinito. Uma diferença visão, e que assim refaz noutro plano o contato com o real, vendo-
que se pode assinalar neste ponto entre Bergson e os românticos é -o pela primeira vez. A revelação supõe a virgindade da alma: razão
que, para o primeiro, a transfiguração simbólica é primeiramente pela qual a arte e a contemplação mística se dão, ambas, como atra-
uma transformação da função dos símbolos. Naturalmente voltados ção do absoluto, compenetração íntima da subjetividade e da Tota-
para a instrumentalidade, eles só se prestam à figuração do infinito lidade, partilha do ritmo inefável da duração na sua multiplicidade
através de uma torção violenta da direção de figurabilidade. É bem identitária. "( ... ) o ritmo é uma imagem sonora que nos faz sentir, de
verdade que o interstício que se abre entre os símbolos e as coisas uma maneira análoga à da metáfora, essas relações misteriosas, mas
guarda uma virtualidade que trai a função natural da simbolização. verdadeiras e reconhecidas como tais pelo auditor ou o espectador,
Para que o significado possa se transformar em presença intrínseca, que unem as coisas entre si e que unem entre si as coisas e os esta-
interna, intuitiva, é preciso que a expressão se contraia e, por assim dos de alma. Cada vez mais altas, cada vez mais centrais, essas cor-
dizer, revolva-se por dentro; é preciso que a expressão venha a se respondências remontam até o ritmo inicial, integram-nos na ordem
tornar o que August Schlegel entende por ex-impressão, isto é, algo divina e na harmonia universaP06."
que, ao exprimir, imprime. A aderência que supomos quando pensa- Mas esta ordem divina e esta harmonia universal só podem ser
mos que o ser habita a linguagem fundamenta-se na transfiguração entendidas como" eternidade de vida", nunca como o correlato pas-
recíproca entre o real e o ideal'os. Somente assim a interioridade pode sivo da contemplação, que Bergson assimila a uma "eternidade de
expressar a Interioridade: quando, como em Novalis, o sair de si é o morte". É a esse ritmo enquanto progresso e fazer-se que o artista se
entrar em si, e a identidade transcende a polaridade inerente à sig- integra, pois criar é atividade e, mais do que isso, criar é tornar-se
nificação. Em Bergson, a união entre ser e significar ocorre quando atividade, já que a coincidência com o ritmo da duração é coincidên-
o símbolo deixa de remeter à sua utilidade, ao seu caráter de uten- cia com o espírito enquanto criação. O tournant que desvia o espírito
sílio, para aparecer por si mesmo, arrancado ao universo prático e da ação prática não o encaminha para a passividade. Antes, seria
vivendo da virtualidade reveladora que traz em si. Dessa forma "ele mais correto dizer-se que passividade é o estado da consciência ab-
realizará assim a mais alta ambição da arte, que é a de nos revelar a sorvida na práxis, visando ao mundo como construto simbólico-in-
natureza" (Le Rire-1l9). Quando o símbolo se despoja de seu telectual. Aí a consciência se compraz na sua naturalidade, no re-
utilitarismo, a obra ganha a transparência derivada da apresentação pouso das formas que representam a interrupção do élan. A fabrica-
imediata do real na sua essência. Para a inteligência e para a vida ção e a utensilidade não devem ser entendidas como atividade no
prática, as formas valem pelo que servem; para a arte, as formas sentido original, mas apenas como transformações ordenadas do
valem pelo que são, e pelo que deixam ser, no sentido de dar a ver mundo prático para acomodar o percurso da vida regrada pela inte-
aquilo que o entendimento recalca na estruturação intelectual da ligência. No plano da atividade autêntica, a forma não encerra a vida,
realidade. O artista "se ligará às cores e às formas, e como ele ama a mas a simboliza no seu constante e essencial fluir. É o plano em que
cor pela cor, a forma pela forma, como ele as percebe por elas mes- a vida não se contrapõe ao espírito, na medida mesma em que a
mas e não por ele, é a vida interior das coisas que ele verá transparecer trajetória do espírito é vital. Na Evolução Criadora vimos que a vida
através das formas e cores" (Le Rire-1l9). A face mística da atividade é uma corrente espiritual que atravessa a matéria: como pode o por-
artística apresenta-se como uma Aliança, no sentido bíblico, entre o tador ser contrário àquilo que traz em si? A forma artística realiza
artista e o absoluto. A contrapartida mundana desta Aliança é o es- simbolicamente aquilo que a vida realizou ontologicamente ao se-
mear as formas: a natureza ao expressar-se imprime o absoluto nas

105. Expressão e impressão são inseparáveis. Cf. Schlegel, August, Leçons ... , na tra-
dução já citada de Lacoue-Labarthe, L'Absolu Littéraire, p. 344. Cf. também a nota de
Lacoue-Labarthe explicando o jogo semântico que August Schlegel faz a partir da 106. Christoflour, R., Bergson et la Conception Mystique de l'Art. in Bergson, Essais et
palavra Ausdruck (expressão). Témoignages, ob. cit., p. 165.

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1II - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO
12. SER E SIGNIFICAR: A INTIMIDADE CRIADORA

formas criadas; por isso cada uma delas traz a densidade da criação reflexão bergsoniana. um pensamento não está conectado a outro
absoluta, simples e irreproduzível. A vida só é contrária ao espírito através de um sustentáculo que seria o fio da consciência, mas um
quando as formas por ela criadas são tomadas como produtos exter- pensamento engendra outro sem articulação descontínua. Mais do
nos ao ato de criação '07 • A forma, como veículo de vida, traz em si a que de interioridade, a relação entre os pensamentos e destes com a
pulsão infinita do ato que a criou. consciência é de intimidade. Esta intimidade absorve a polaridade
da referência numa continuidade que é a única verdadeira interiori-
Mas a visão da relação externa entre criador e criado é encoraja- dade, a do Tempo, já que aí a interioridade é a Totalidade, sem o
da por uma concepção de interioridade que domina a vertente, por interstício representativo. É nesse sentido que Bergson pode dizer
assim dizer, triUnfante do pensamento moderno. É a concepção em que a intuição é reflexão, pois não existe duplicação do pensamento
que o construto interno do espírito mantém com ele uma relação de nem separação entre afecção interna e pensamento. Intuir, contato
alteridade, com a qual se busca salvaguardar, de um lado, a realidade direto, pode ser ao mesmo tempo refletir porque a flexão do pensa-
do correlato das representações, de outro, a autonomia da consciên- mento modaliza o conteúdo sem articulá-lo descontinuamente. A
cia representante. Para que a consciência não se perca no oceano da continuidade que caracteriza a vida do espírito é. entretanto, con-
exterioridade, para que não seja apenas uma somatória de represen- densação da duração ontológica, razão pela qual o contato com as
tações, ela deve representar-se como diante das coisas, guardando, coisas é. de certa maneira, o contato do espírito consigo mesmo.
mesmo na relação interna com os seus conteúdos, uma realidade interioridade recíproca. Daí a ligação tão estreita que vimos existir
(formal ou substancial) separada. Por outro lado, para que a densi- entre criação artística e intuição mística: assim como nesta o místico
dade das coisas não se dissolva no fluxo da consciência que as repre- comunica diretamente com a interioridade absoluta do universo, e
senta, é preciso que elas sejam pensadas nos termos de um padrão se sente como criação interna de Deus, o que é a explicação mesma
externo, e que o pensamento seja impressão ou reconstituição essen- desta comunicação, o artista, ao criar a forma, cria interioridade. cria
cial, mesmo que esse padrão tenha a sua validade lógica no âmbito sentido através do construto simbólico. É a diferença. que já assina-
da representação. Isso significa que uma filosofia da subjetividade lamos, entre criar e fabricar. É claro que, a partir daí. a natureza
pode construir-se a partir de uma divisão da própria interioridade, assume outra significação: ela não é disponibilidade utensilar. mas
separando nela a subjetividade e a objetividade. Assim dizemos que repertório de sentidos. O pensamento industrioso tem de desconhe-
a reflexão é o fundamento da representação: porque existe um estra- cer a presença do sentido intrínseco, sinais do absoluto, mas essa é
to da consciência que projeta os conteúdos de si para si, para que os uma característica da conjunção entre pensamento e domínio práti-
próprios conteúdos internos conservem o referente externo. Esse co do mundo. Bréhier assinala a relatividade histórica desta atitude:
procedimento faz com que a consciência represente a sua interiori- "Ela era, entenda-se, ignorada pela antiguidade clássica, para a qual
dade numa direção contrária à da sua intimidade. Dessa forma é que rejeitar os deuses fora do mundo. considerá-los como independen-
a produção interna pode relacionar-se com produtos a um tempo tes das grandes forças que animam a natureza, era pura e simples-
exteriores e internos, o que Bergson aponta quando assinala que as mente negá-los"IO'. Para Bergson, mais do que histórica, essa postura
próprias idéias já podem ser símbolos de pensamentos. A autocons- é a atitude natural da inteligência, que necessita que uma realidade
ciência da produção íntima prescinde dessa desvinculação e de uma relativa corresponda à sua finitude. É esse "ponto de vista", escolha
reflexão concebida, por assim dizer, como espacialmente articulada natural do entendimento, que recalca a interioridade do real ou a
(a anterioridade do pensamento sobre o próprio pensamento). Na recolhe na dicotomia da objetividade subjetiva. Por isso considera
ainda Bréhier que a filosofia de Bergson está próxima" (d)esta filoso-
fia da natureza e (d)esta filosofia do espírito que, de Bruno e J. Boheme
107. Não podemos concordar com a afirmação de Hans Urs von Balthasar: "Bergson.
também, foi tentado a dissociar o Espírito e a Vida. a relegar a inteligência aos confins
da intuição, a ver na fonna e na geometria apenas o residuo da vida desagregada" (La
Philosophie de la VIe chez Bergson .t chez les Allemands Modernes. in Bergson. Essais 108. Bréhier. E.. Prefácio a Adolphe. L. La Philosophie Réligieuse de Bergson, PUF,
Paris, 1946, p. VIII.
et Témoignages. ob. dt.• p. 268).

332 333
lU - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO 12. SER E SIGNIFICAR: A INTIMIDADE CRIAOORA

a Schelling e Baader, constituem esta 'filosofia não oficial' que se é a inteligência compreendendo-se a si mesma e, para tanto, desco-
recusa a permanecer no ponto de vista exterior do operari e da fabri- nhecendo o espírito enquanto virtual idade intuitiva. A inteligibilida-
cação, mas não recusa a apreender a natureza na sua intimidade"lO'. de histórica é essencialmente solidária da lógica da retrospecção.
Quanto à história como vivência da duração vital e participação na
A separação entre interioridade fabricadora e intimidade criado- continuidade progressiva do Todo, o seu valor de conhecimento é
ra configura a crise que, de diferentes maneiras, os românticos e inerente à vivência concreta da temporalidade, pois o único sentido
Bergson tentaram superar. Existe, em ambas as direções de pensa- não retrospectivo da história é a imprevisibilidade, e a raiz do ho-
mento, um esforço dramático para ressituar a reflexão. Esta não pode mem como ser histórico está na sua comunhão com a duração es-
mais marcar a distância entre o pensamento e a consciência, o pen- sencial. Nesse plano, que é inacessível à inteligência, não há distin-
samento e as coisas, o pensamento e o absoluto. A separação, emi- ção entre ser e historicidade. Vemos então que a causa da recusa da
nentemente crítica, entre o pensamento e a realidade, tende a história é a aceitação da historicidade como identificação entre cons-
ser nos dois casos substituída por uma consubstanciação genética ciência e temporalidade. Devido à incapacidade congênita da inteli-
entre produção e produto, nos termos de uma dinâmica que procura gência para apreender a temporalidade essencial, todas as formas de
resgatar o real no processo de sua formação, na qual a apresentação psicologia positiva são insuficientes para apreender a presença real
da realidade é concomitante à intuição e à reflexão, indissociavel- do Eu, e a história positiva é igualmente incapaz de apreender a his-
mente ligadas na apreensão de um movimento absoluto. A dualidade toricidade do homem. Entenda-se que a mesma crítica atinge os
sujeit%bjeto é vista como restrita ao plano lógico; no nível da on- pressupostos antropológicos das metafísicas da subjetividade. Exis-
tologia, consciência e coisas participam da mesma essência. Assim a te, em Bergson, o mesmo desequilíbrio fundamental quanto ao co-
potenciação romântica da reflexão reinsere o pensamento no infini- nhecimento do homem que detectamos no romantismo de Schlegel,
to, e a intensificação da virtualidade intuitiva do entendimento per- na medida em que este oscila entre o predomínio da Poesia, da His-
mite, em Bergson, que o pensamento simpatize com a Totalidade. tória e da Filosofia como eixos principais do conhecimento'lO. Por
Em ambos os casos, também, a via para a expressão desses procedi- escapar à metafísica substancial da psique e à lógica retrospectiva de
mentos, nos seus resultados, é simbólica: retomo à poíesis primitiva seu situar-se histórico, o Eu só pode ser apreendido no plano anterior
da linguagem num caso, inflexão da figurabilidade no outro. Os dois à cisão pela qual ele objetiva a totalidade: ele só pode ser apreendido na
movimentos tendem para a anulação da distância entre ser e signi- e pela totalidade. O Eu toma-se um objeto da Ontologia quando esta
ficar, e o motor do movimento expressivo é o ideal da coincidência supera a interpretação etimológica que lhe conferiu a modernidade:
completa, o que é o mesmo que dizer que a expressão se governa quando deixa de visar às coisas e passa a visar ao Tempo que as produz.
pelo inexprimível. A contradição presente nesse propósito figura a Assim o símbolo arrancado da cotidianidade instrumental tem a força
oscilação entre a razão e o pathos, diferença que traz continuamente de trazer e manter a Presença, escapando da intencionalidade da cons-
à presença do pensamento a essencial inquietude do homem, da ciência empírica e traduzindo em obra a história absoluta do ser.
consciência que é o Tempo degradado em história. E não nos deve
espantar que uma filosofia da duração, para a qual a única realidade
substancial é o Tempo, relegue a história como forma secundária da
consciência de si e do mundo. Pois quando o homem se volta para
a sua história não adquire consciência mais intensa do vir-a-ser; a
história é antes a fixação de blocos segmentados na continuidade da
existência: nessa articulação se reconhecem as sociedades no decur-
so do progresso do entendimento instrumental. A sucessão histórica

110. Cf. a respeito Ciancio, C., Friedrich Schlegel: Crisi della Filosofia e Rivelazione,
109. Bréhier, E., ob. cit., p. VIII. ob. cit., pp. 116-122.

334 335
1
CONCLUSÃO

, -
O COMENTARIO DA CRIAÇAO

Numa passagem de L'Évolution Créatrice, Bergson, como que


respondendo por antecipação àqueles que mais tarde o rotulariam
de eminente representante do "espiritualismo" francês, critica a ten-
dência idealista na sua forma geral, que ele nomeia como "doutrinas
espiritualistas", argumentando que estas, embora corretas quanto ao
que procuram, procedem erradamente quanto ao lugar em que pro-
curam e, mais do que isso, onde pretendem que esteja aquilo que
buscam encontrar. Com efeito, para afirmar a autonomia do espírito,
tais doutrinas julgam necessário afastar a vida espiritual do contexto
de solicitações materiais que de certa forma a pressionam. A explica-
ção desse equívoco não deixa de ser curiosa, partindo de uma filoso-
fia antiintelectualista como a de Bergson. Pois o que motiva tal pro-
cedimento, no entender do filósofo, é que as doutrinas idealistas
parecem desconhecer a função da inteligência na realidade efetiva
em que se apresenta. A presença incontornável da inteligência sus-
cita questões que deveriam ser enfrentadas e não somente contorna-
das. Veja-se por exemplo a questão da liberdade: a consciência a
afirma no seu agir espontâneo, mas a inteligência a nega ao afirmar
a inexorável determinação do efeito pela causa; ou então tomemos a
tese da independência do espírito em relação à matéria, que o idea-
lismo afirma com razão; mas a isso se contrapõe ainda a inteligência,
mostrando a associação entre vida consciente e atividade cerebral.
Veja-se também a questão da singularidade do lugar que o homem
ocupa na natureza: a inteligência nos demonstra, em contrapartida,
que há uma gênese de todas as espécies por transformação gradual
e que assim o homem deve ser integrado nesta história natural. Isso
para não tocar em questões mais complexas, como a independência
da alma e sua sobrevivência em relação ao corpo, por exemplo. Ao
,

337
j
o COMENTÁRIO DA CRIAÇÃO
1
CONCWSÃO

pretender dissolver a insuperável realidade dos fatos materiais num nervoso. que observamos no decorrer da evolução. redunda na pos-
isolamento da realidade do espírito. o idealismo acaba por transfor- sibilidade crescente de indeterminação das ações. Num certo senti-
mar tal realidade num "efeito de miragem" (E.C.-268). do pode-se dizer que é a complexidade do cérebro humano que per-
No entanto. o idealismo está certo ao afirmar assim a unidade e mite ao homem o exercício da liberdade. Mas seria um erro grosseiro
a autonomia da vida mental. O que ele desconhece é a gênese e o definir a liberdade Como sendo a amplitude maior do espectro de
alcance dessas caracteristicas. Pois aquilo que para nós distingue o reações possíveis. A liberdade não significa a oscilação das determi-
homem entre todas as espécies não é algo que lhe pertença de forma nações. mas a ação nascida de um impulso de natureza diferente da
exclusiva. mas sim uma virtualidade que nele se realiza plenamente. causalidade. A singularidade do homem entre as demais espécies
O movimento da Vida enquanto impulso criador é a origem e a razão provém do fato de que. se por um lado ele está em continuidade com
de ser de todas as formas semeadas ao longo da evolução. Este as outras formas de vida surgidas ao longo da evolução. todas elas
movimento é suscetível de duas representações: em relação a cada fruto do mesmo impulso originário. por outro lado o homem é o ser
espécie. ele aparece como a realização de uma forma definitiva; em em que precisamente este impulso triunfou sobre os obstáculos que
relação a si mesmo. assume a figura de um élan que atravessa todas o determinavam - e assim ele se fez indeterminação. "( ... ) em um
as formas criadas na direção de um telos indeterminado. Esta é a só ponto o obstáculo foi forçado. o impulso passou livremente. É
razão pela qual é possível ver cada espécie como resultado de um essa liberdade que a força humana registra. Por toda parte a nature-
projeto determinado e ao mesmo tempo como um vestígio da passa- za se viu diante de um impasse; apenas com o homem ela prosse-
gem do movimento criador. Do ponto de vista da inteligência. cada guiu seu caminho" (E.C.-266). É este o "caminho que leva à vida do
forma é o efeito determinado de uma causa; se superarmos a causa- espírito". No homem a espiritualidade do élan se revela e dá a co-
lidade do entendimento. poderemos ver estas mesmas formas como nhecer o seu estatuto criador. pois a liberdade é o requisito da cria-
realizações até certo ponto contingentes de algo que se lança. atra- ção. A realidade é fruto de dois movimentos: um. ascendente na di-
vés delas. para além delas. e para o qual elas são obstáculos trans- reção da liberdade. cujo termo ideal seria a atividade criadora exer-
postos. soluções encontradas nas sucessivas etapas de adaptação do cendo-se de forma absoluta; outro. descendente. na direção da deter-
movimento vital à materialidade que o concretiza na diversidade das minação total. cujo termo. também ideal. seria a matéria bruta isenta
formas de vida. O que o idealismo ignora é precisamente isto: cau- de qualquer atividade vital. Tais termos são. evidentemente. apenas
salidade. determinação. matéria são a contrapartida necessária de a exponenciação lógica de ambos os movimentos. pois seria ontolo-
um movimento espiritual que cria formas. Se considerarmos a maté- gicamente contraditório supor uma atividade criadora sem produtos
ria como simples oposição ao espírito. nossa visão da realidade será criados. portanto. do ponto de vista bergsoniano. sem matéria de
abstrata. já que não poderemos explicar justamente a materialidade criação. do mesmo modo que seria igualmente inconcebível matéria
das formas. que entretanto é um dado inquestionável. A partir disso sem transformação.
não é espantoso que Bergson possa afirmar que "uma filosofia da Assim vemos como. em Bergson. o estrato biológico do seu
intuição será a negação da ciência. cedo ou tarde ela será desmentida pensamento confere consistência real à metafísica da temporalida-
pela ciência. se ela não se decide a ver a vida do corpo onde esta está de. enquanto o tempo. visado como substrato da realidade. propicia
realmente. no caminho que leva à vida do espírito" (E.C.-269). Signi- o fundamento do dado biológico e confere significado ontológico à
fica que o percurso do élan é criador e que o fisico e o vital são teoria da evolução. São aspectos inseparáveis. e esta é a razão pela
matéria de criação. ou aquilo de que se serve a atividade criadora
para triunfar sobre a determinação. Mas assim não estariamos su-
pondo que o espírito depende da matéria? Tal seria. sem dúvida. a
interpretação idealista. O equívoco é pensar que o espírito se afirma
evitando a materialidade. quando na verdade ele se afirma sobre a
qual Bergson não pode alinhar-se entre os "espiritualistas" que fa-
zem do isolamento do espírito a condição de sua autonomia. Esta
autonomia. na verdade. é a marca original do élan criador. na medi-
da em que liberdade e criação são indissociáveis. O homem é livre
significa: a liberdade estd no homem. enquanto o momento da evo-
I
materialidade e através dela. A progressiva sofisticação do sistema lução no qual a vida encontrou "passagem livre" para o impulso cria-
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j
CoNCl..UShO o COMENTÃRIO DA CRIAçAO

dor. O que nos mostra que a singularidade humana é a outra face da é parte daquilo que a Consciência teve de abandonar no caminho
profunda vinculação que o homem mantém com tudo o que é vivo que leva à consciência humana. Para que pudesse triunfar sobre a
e mesmo com tudo que existe. O homem, como todas as formas matéria foi necessário amoldar-se primeiramente a ela, às suas de-
surgidas no decorrer da evolução, é veículo do impulso criador. "Tudo terminações: mas uma vez feito isso, não foi mais possível recuperar
se passa como se um ser indeciso e indistinto que poderíamos chamar, a plenitude intuitiva do contato com o mundo, e a intuição ficou
como quiséssemos, de homem ou de super-homem, tivesse procurado reduzida a uma virtualidade da consciência, tornada principalmente
se realizar, e s6 tivesse conseguido isto abandonando pelo caminho inteligência. É entretanto no caráter vago e descontínuo da intuição
uma parte de si mesmo" (E.C.-266). Tudo se passa como se a finali- que o homem guarda aquilo que principalmente o vincula às ori-
dade da Vida fosse a criação. Embora não se possa falar em causa gens. Com efeito, a inteligência é produto avançado da evolução,
inicial e causa final no sentido categorial, a "finalidade" do impulso aquilo que permitiu a consolidação da espécie humana no que ca-
criador está desde sempre presente em todas as suas manifestações, racteriza a sua relação com as coisas, a variabilidade instrumental.
inclusive na imprevisibilidade e contingência que caracterizam as Do ponto de vista da organização natural, a intuição é uma virtuali-
etapas da evolução. O homem traz em si, portanto, algo que o liga à dade vazia, análoga a um órgão sem função. Mas, ativada pela refle-
totalidade dos existentes e à origem de todos eles. Algo que ao mes- xão, ela se mostra como a única possibilidade de recuperação do
mo tempo o vincula à materialidade, às determinações que herda estatuto próprio do élan, a criatividade. Pois por mais flexível e variá-
das etapas anteriores da história da vida e com as quais convive, que vel que seja a inteligência, ela nos encerra nos limites de nossa na-
o atrai para a materialidade e que também o impulsiona na direção turalidade: apenas a intuição nos encaminha para a transcendência.
do espírito. Como já pudemos observar, a reflexão instala no homem a contradi-
"O élan de vida de que falamos consiste, em suma, em uma exi- ção, que aqui pode ser vista sob um outro aspecto: aquilo que em
gência de criação. Não pode criar absolutamente porque encontra nós se apresenta como "uma luz vacilante e fraca" é a única possibi-
diante de si a matéria, isto é, o movimento inverso do seu. Mas ele lidade de abandonarmos "a obscuridade da noite em que nos man-
se aproveita desta matéria, que é a própria necessidade, e tende a tém a inteligência" (E.C.-268).
nela introduzir a maior soma possível de indeterminação e de liber- A ênfase na relação entre intuição e criação nos permite apreciar
dade" (E.C.-258). No homem, no estágio atual da evolução, encon- um aspecto pelo qual a filosofia de Bergson apresenta-se como um
tra-se a maior indeterminação possível na matéria. Isso se deve a três rompimento profundo com a tradição grega. Para Aristóteles, o co-
fatores: 1) a complexidade do cérebro que permite a construção de nhecimento do ente em seu ser e em sua gênese significa o conhe-
um número ilimitado de mecanismos, portanto de possibilidades de cimento das diversas espécies de causas responsáveis pela existência
ação, ensejando assim uma variabilidade que supera em larga escala das coisas. Dizer que algo veio a existir é o mesmo que dizer que
a uniformidade dos hábitos nas demais espécies: 2) a linguagem, ou determinada causa engendrou determinado efeito. O domínio
mais precisamente a imaterialidade dos significados, que lhe permi- gnosiológico da rede causal nos encaminha para os mais elevados
te abarcar de forma indefinida o mundo que o rodeia, e mesmo ir níveis de conhecimento. O estabelecimento da gênese inclui tam-
além dele: 3) a vida social, que racionaliza e conjuga o esforço pro- bém o conhecimento da relação de dependência de um ente em
dutor da práxis. Mas essas são condições de que se serve o impulso relação ao outro, e este é um aspecto importante da relação causal.
criador, e o significado da liberdade humana não se esgota nesses Quando a filosofia medieval apropriou-se deste esquema, deparou
requisitos, pois os mesmos se encontram, de alguma maneira, pre- com o problema, inexistente para os gregos, da explicação da relação
sentes em muitas outras espécies. Tais condições, entretanto, propi- causal em termos de criação do mundo por Deus. Foi necessário
ciaram o "salto" pelo qual se configura a diferença de natureza que então separar a causalidade no sentido de doação de existência e a
se consubstancia na possibilidade de criação. Esta possibilidade re- causalidade no sentido de dependência na escala do ser. O primeiro
pousa na parte mais obscura de nossa consciência, que é a intuição. sentido, aquele no qual a causalidade se apresenta como criação,
O exercício pleno da intuição, a vivência imediata de si e das coisas não é suscetível de uma integral explicação racional, posto que a

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CONCLUSÃO
o COMENTÁRIO DA CRIAÇÃO

criação é ato derivado da vontade absolutamente livre de Deus. Já no trice. Não se pode dizer, no entanto, que, ao separar as duas noções,
segundo sentido, a razão pode estabelecer por seus próprios meios Bergson opte pela idéia judeu-cristã de criação ex nihilo. Uma das
uma relação lógica e ontológica através da qual se pode compreen- partes mais expressivas da filosofia bergsoniana é, com efeito, a crí-
der a escala dos entes como sucessão de causas e feitos, chegando tica da idéia de Nada, desenvolvida no Ensaio Le Possible et le Réel e
assim à compreensão da necessidade da Primeira Causa, no que se no último capítulo de Évolution Créatrice. A singularidade da posi-
refere à relação de dependência. Sendo a primeira causa necessaria- ção filosófica bergsoniana deriva do fato de recusar ao mesmo tem-
mente incausada, podia-se introduzir aqui a noção de causa absolu- po a noção de criação ex nihilo, uma vez que a idéia do Nada é uma
tamente livre e criadora, muito embora isso significasse um compro- ilusão, e a racionalização cartesiana da criação, identificada à causa-
misso entre racionalidade e revelação bíblica. Este compromisso lidade. Assim como denuncia o caráter ilusório da idéia de Nada,
mantém o aspecto não-racional da noção de criação, ou seja, não há Bergson critica também o princípio cartesiano segundo o qual nada
uma perfeita identificação entre causalidade e criação. Na filosofia há no efeito que já não estivesse contido na causa. A razão disso é
de Descartes, a causalidade é assimilada à criação, no caso de Deus, que a filosofia bergsoniana perfaz um itinerário diferente para atin-
posto que a criação é como que reduzida à relação primeira entre gir a idéia de criação. Essa idéia aparece no bergsonismo não como
causa e feito. A tal procedimento Gouhier se refere como racionali- algo posto a priori e que deve ser filosoficamente justificado, mas
zação da criação. "Ora, esta racionalização tem evidentemente como sim como o resultado da crítica da noção de tempo fisico, tanto em
condição a eliminação do que há de irracional na noção de criação, si mesmo como aplicado no evolucionismo de Spencer. Foi a cons-
a saber, o fato de conferir o ser àquilo que não existia. Esta elimina- tatação de que o tempo físico é algo de que a duração está ausente
ção é obtida quando a criação é confundida com a causalidade e que motivou a crítica da Psicologia contida nos Données Immédiates.
depende do princípio: nada há no efeito que já não esteja contido na Foi esse percurso crítico da ciência que levou à recusa do caráter
causal." É a partir dessa perspectiva que Descartes pode acreditar universal da noção de causalidade, estreitamente solidária da noção
que sua demonstração da existência de Deus é perfeitamente racio- fisicalista de tempo. Essa crítica pode ser tida como a origem episte-
nal, e pode ser aceita mesmo pelos infiéis. Este compromisso entre mológica da ontologia bergsoniana apresentada em Évolution Créa-
a concepção grega de causalidade e o criacionismo judeu-cristão re- trice. A Teoria da Vida veio ampliar os horizontes da noção de cau-
presenta um esforço para colocar no horizonte da racionalidade a salidade psicológica, sem mudar a sua natureza. O resultado dessa
noção de criação ex nihilo. Posto que a relação causal mais primitiva reflexão mais abrangente é a concepção de interioridade, no largo
a que se pode remontar coincide com a criação ex nihilo, exclusiva alcance que constatamos que ela possui no exame efetuado na ter-
da divindade, a conseqüência natural é tomar este tipo de causalida- ceira parte deste trabalho.
de como protótipo de toda relação causal, ou até mesmo como a A constatação de que a noção de criação está presente desde o
única possível. Nesse sentido Malebranche é profundamente conse- primeiro momento permite-nos verificar quão profundamente estão
qüente, não apenas com o que está implícito no cartesianismo, como unidos, na filosofia de Bergson, os aspectos crítico, metodológico e
também com toda a tradição que buscou, no limite, a identificação metafísico. A crítica da causalidade fisica nos Données Immédiates é
entre criação e causalidade. principalmente a crítica da representação conceitual do tempo psi-
A filosofia de Bergson representa, desde os Données Immédiates cológico - e isto significa a crítica do método da Psicologia. Tal crí-
de la Conscience, um esforço no sentido de separar causalidade e tica extrai seu sentido e seu alcance da proposta, que no primeiro
criação. A noção de causalidade psicológica, que no primeiro livro se livro ainda se encontra no nível implícito, da intuição como única
opõe à causalidade física, cumpre já essa função. Mas a noção de alternativa gnosiológica compatível com a recusa da universalidade
criação adquirirá estatuto teórico pleno apenas em Évolution Créa- do princípio de causalidade no seu enunciado cartesiano. Essa revi-
ravolta epistemológica só atinge o seu pleno significado se a obser,
vamos de alguma maneira sob a égide da metafísica da temporalida-
1. Gouhier, H., Bergson dans l'Histoire de la pensée Occidentale, Vrin, Paris, 1989, p. 55. de, que no entanto só será inteiramente enunciada em Évolution

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342
CONCWSÃO o COMENTÁRIO DA CRIAÇÃO

Créatrice. Ora, conceber o tempo como substrato da realidade, defi- çãO da articulação discursiva e a liberdade criadora da intuição. É
nida portanto como duração, é o mesmo que instituir a noção de interessante notar que a liberdade criadora, no caso, associa-se à
criação como horizonte de compreensão metafísica da realidade. É identidade intuitiva que subjaz aos sistemas e a diversidade da ex-
dessa forma que teoria do conhecimento e ontologia coincidem no pressão situa-se no plano das determinações da linguagem. Isto quer
movimento absoluto que faz da intuição O modo de identificação dizer que a criação não significa fundamentalmente diversidade,
com a criação contínua que caracteriza o fazer-se da realidade em embora seja livre; é a variabilidade da expressão que impede a liber-
sua essência temporal. Poderíamos dizer que a coincidência entre dade criadora de se manifestar, pois esta variabilidade está irremedia-
teoria do conhecimento e ontologia figura a recusa do dualismo velmente presa ao determinismo intelectual da linguagem. A identi-
aristotélico e a afirmação, na nova fIlosofia, do caráter unicamente dade intuitiva situa-se no plano do único objeto da fIlosofia: o Tem-
absoluto do ato. Pois o que distingue a intuição das formas tradicio- po. São as características deste objeto que fazem com que na intui-
nais do conhecimento é que ela se põe como um ato (de conheci- ção se compatibilizem liberdade e identidade, unicidade e criação,
mento) que busca identificar-se com o ato (de produção ontológica: pois a imprevisibilidade e a fluência indeterminável do Tempo fazem
criação); a recusa da modalização representativa enquanto interstício do absoluto um processo absoluto: duração.
entre sujeito e objeto é que vai ocasionar as dificuldades que encon- Por isso a intuição fIlosófica é figura privilegiada da intuição como
tramos para estabelecer a relação entre intuição e expressão, ou seja, processo cognitivo. Mas ao mesmo tempo nos deixa ver com nitidez
para fazer do discurso uma instância de apresentação da criação. a inelutabilidade da falência da expressão. Sendo a inteligência vol-
O que distingue a intuição da explicitação sistemática, numa tada para a materialidade, a linguagem, seu produto, é processo de
doutrina fIlosófica, é o trabalho da expressão, necessário para corpo- materialização. É assim que a expressão fixa a intuição na matéria
rificar num discurso o núcleo vivo e em si inexprimível de uma fIlo- simbólica que são as palavras. A imaterialidade dos significados não
sofia. Se pudéssemos atingir o plano da intuição fIlosófica, veríamos escapa ao alcance da materialidade dos signos. Não é outro O pro-
provavelmente desvanecerem-se as diferenças que, no nível de siste- cesso que ocorre na obra de arte. "A idéia geradora de um poema se
mas, nos parecem tão profundas e irreconciliáveis. Mas o fundo de desenvolve em milhares de imaginações, as quais se materializam
intuição de onde emana o impulso doutrinal não é acessível nem em frases que se escandem em palavras. E, quanto mais vamos des-
mesmo ao fIlósofo, pois esta provável identidade do que é intuído cendo da idéia imóvel, envolta em si mesma, para as palavras que a
não repousa na subjetividade - no gênio fIlosófico -, mas se fun- explicitam, tanto maior o âmbito que deixamos à contingência e à
damenta na profundidade do "mesmo oceano" em que todas as fIlo- escolha: outras metáforas, expressas em outras palavras, poderiam
sofias lançam as suas "sondas", muito embora façam aflorar à super- surgir, imagem que apela para outra imagem, palavra que solicita
fície "materiais muito diversos" (P.M.-225). Tal diversidade é doutri- outra palavra. Todas essas palavras correm agora umas atrás das
nariamente trabalhada pelos filósofos, pelos discípulos e pelos outras, buscando em vão, por si mesmas, traduzir a simplicidade da
comentadores das filosofias. Ora, se o próprio fIlósofo realiza a maior idéia geradora" (E.C.-319-20). A imobilidade da idéia geradora não
parte de seu trabalho de formulação discursiva nesse plano superfi- tem aqui um significado espacial; representa o ponto nuclear que ao
cial em que ele como que se explica a si mesmo e aos outros acerca mesmo tempo é o impulso da expressão e a sua impossibilidade dada
de algo que jamais logrará transmitir inteiramente, a conclusão é desde sempre, devido à incomensurabilidade entre intuição e expli-
que o discurso filosófico é uma explicitação inacabável. A fIlosofia é citação discursiva. O poema é de alguma forma a análise da idéia que
um diálogo infinito entre o discurso e a intuição, no qual aquela o gerou, assim como o discurso fIlosófico é a análise da intuição
tenta traduzir nas formas correntes da cultura algo que com elas é fundamental. A diferença que existe entre as duas formas de expres-
incomensurável. Trata-se de algo "simples, infinitamente simples, tão são é que a análise filósofica é ordinariamente explicitação conceitual,
extraordinariamente simples que o fIlósofo jamais logrará exprimi- enquanto o poema desenvolve a intuição como figuração simbólica.
-lo" (P.M.-1l9). A heterogeneidade entre complexidade simbólica e Ao transformar a mobilidade significativa em transfiguração imagé-
intuição provém da diferença radical que existe entre a determina- tica, o poema amplia o alcance da figuração simbólica, fazendo-a

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CONCWSÃO
o COMENTÁRIO DA CRIAÇÃO 1
escapar da uniformidade do significado. Para que a filosofia faça o
mesmo, aumentando sua possibilidade expressiva, cumpre que abano de que a crítica se distingue do comentário porque emite um julga-
done o gênero conceitual, realização plena da uniformidade do sigo mento, avalia os aspectos da obra que "decidem da sua imortalida-
nificado. Em suma, a explicitação poética reflete a criação; nela, a de", a saber, o modo como se estrutura a relação entre conteúdo e
verdade.
expressão é a busca da anulação da heterogeneidade existente entre
intuição e linguagem. O poema não procura analisar a intuição, mas Ora, a verdade estaria do lado da significação e não da matéria.
comentá-la. O que a obra tem de realidade material só perdura porque o conteú-
Seja-nos permitido aqui recorrer à diferença que faz Benjamin do de verdade nela se incorporou profundamente, e isto ocorre
entre crítica e comentário para introduzir nossa hipótese de distin- mesmo quando é a materialidade que se dá primeiro ao conheci-
ção entre análise e comentário no contexto bergsoniano. "Numa obra mento. O crítico sabe que a significação é feita de materialidade, mas
de arte, a crítica se interessa pelo que ela contém de verdade; o co- sabe também avaliar o meio em função do fim. De resto, a anterio-
mentário se atém sobretudo à matéria'." A realidade material da obra ridade do "objeto" do comentário tem uma função definida no plano
não se opõe à sua significação, antes os dois aspectos mantêm entre da duração da obra: "(... ) a história das obras prepara o caminho
para a crítica"4.
si relações que tendem a se tomar "menos aparentes e mais inter-
nas" à medida que transcorre a vida histórica da obra. A "lei funda- Cr{tico é o exame que disceme, separa, desdobra e configura por
mental" que preside a esta vinculação induz também à dissociação limitação um territorium. São esses os aspectos do procedimento
entre matéria e verdade, ocasionando a relevância maior da primeira que permite avaliar, ou seja, detectar o valor de imortalidade presen-
e o progressivo ocultamento da segunda. Assim, é a materialidade te na obra. A crítica, na medida em que separa e limita, repousa
que se impõe antes à abordagem crítica, mas ela deve ser tomada sempre de alguma maneira naquilo que opta por desconhecer. Há
como uma escrita sobreposta a outra escrita, e a leitura da primeira um jogo entre o conhecimento e o desconhecimento que é inerente
só se faz com o objetivo de decifrar a segunda. Essa passagem pelo ao exercício da crítica e que lhe permite inclusive ser consciente da
texto que encobre o texto é chamada por Benjamin de comentário'. multiplicidade funcional da linguagem e da sua ambigüidade. Nesse
Trata-se, portanto, de um procedimento preliminar: após ele virá a sentido - e aqui já buscamos nos colocar no contexto bergsoniano
crítica, o "julgamento". É como se a sedimentação inerente à vida - o intelecto é uma faculdade espontaneamente "crítica", pois con-
histórica da obra constituísse uma camada que o comentário atra- solida o saber que lhe é próprio sempre em contraposição àquilo que
vessa, detendo-se no limiar da vida eterna da obra, aquela que a exclui do universo do saber. A isso se opõe completamente o sentido
crítica deve abordar e julgar. A função preparatória do comentário, bergsoniano de intuição, logo o sentido do saber filosófico. Pois a
embora importante para situar a obra no plano das realidades con- intuição não articula (separa e limita, definindo partes), mas compre-
cretas e no seu perfil filológico, é evidentemente vista por Benjamin
como subsidiária, seu sentido provindo de sua vinculação à etapa
crítica. A distinção benjaminiana objetiva exatamente separar o exa- 4. Benjamim, W., ob. cit., p. 76. Num outro texto, Essais sur Bertolt Brecht, Maspero,
me crítico da obra de Goethe do "interesse filológico" que até então Paris, 1969, tradução de Paul Laveau, Benjamim diferencia o comentário de um
teria prevalecido. Interessa-nos reter, desta página complexa, a idéia "compte rendu", mencionando que o comentário aborda o texto como se fora "clás-
sico", isto é, um texto carregado de idéias, com dificuldades acumuladas e já bastante
posto à prova. O comentário não é um ajuste de contas com o significado estético do
2. Benjamim, W., Les "Alfinités Électives" de Goethe, in Oeuvres Choisis, tradução texto, mas busca uma leitura precisa e até mesmo levando tal precisão ao nível de um
francesa de Maurice de Gandillac, edição René Julliard, Paris, 1959, p. 75. preconceito: o de que o texto veicula verdade, ainda que em segredo. "Onde Sua
3. "Imaginemos um paleógrafo em presença de um pergaminho cujo texto primiti- preciSão (do comentário) poderia parecer quase indecente, o segredo pode futura-
vo, parcialmente apagado, se aclara através do escrito mais recente e mais legível que mente reencontrar suas prerrogativas." (p. 58). Lembramos também que um dos sig-
os copistas a ele superpuseram; seria necessário que o paleógrafo começasse seu tra- nificados latinos da palavra comentário é ata, registro do evento no momento em que
balho pela leitura do segundo texto; da mesma maneira o crítico deve começar pelO ele se dá. Esta simultaneidade entre evento e o seu registro, a assunção do significado
primeiro, confere ao comentário o caráter arcaico, numa acepção provavelmente so-

,
comentário" (Benjamim, W., ob. cit., p. 76).
lidária daquela mencionada por Benjamim nos Essais Sur Bertolt Brecht, p. 57.
346
347
CONCWSÃO
o COMENTÁRIO DA CRIAÇÃO

ende o real no vir-a-ser como expansão interna. Pode-se dizer que o como um comentário - reelaboração metafórica que se esforça por
conceito é um instrumento crítico de apreensão da realidade, uma glosar o "ponto" nuclear da intuição - procura escapar à heteroge-
vez que engendra a significação através da articulação do real visto neidade existente entre linguagem e intuição. Desnecessário reafir-
como produto. Mas se a realidade é criação, o produto da criaçãO mar que isso nunca é conseguido de forma completa. Mas a perma-
tomado em si mesmo apresenta apenas o aspecto finalmente fixado nência da linguagem no plano metafórico, em que a virtualidade
de um processo - e o conhecimento inclui o processo assim como intuitiva é tomada como direções de significação, além de represen-
a contemplação da obra de arte inclui o dinamismo da emoção que tar um esforço para redizer o que nunca foi dito, busca também evitar
a criou. Desse modo, a materialidade entendida como história da que se consuma a dissociação entre conteúdo e verdade, entre ser e
obra, movimento de materialização que enquanto corporificação di- significar.
nâmica do conteúdo se opõe à significação fixada (o eterno como Da posição da linguagem como meio expressivo, tal como vimos
finalidade da transição), é que seria, do ponto de vista bergsoniano, até aqui, decorre uma conseqüência importante para a questão da
captado pela intuição. E, coerentemente com o que vimos, só pode- relação entre linguagem e intuição, que se desdobra no problema da
ria expressar-se no comentário, nunca na crítica e na análise, pois vinculação entre linguagem e ontologia, ou, de forma mais ampla,
não se trataria de avaliar o produto como origem de significação, no problema da fundação ontológica da expressão. Temos de pensá-
mas acompanhar o movimento interno pelo qual e no qual ele veio -lo, na perspectiva bergsoniana, a partir de duas constatações: 1) a
a ser. Por contraposição, a crítica seria a visão analítica e a análise a linguagem enraiza-se na subjetividade; 2) além disso, é produto de
visão crítica. Se nos é permitido transpor desta maneira a sugestão uma faculdade instrumental, o intelecto, que tem como funçãO ope-
benjaminiana para o contexto de uma possível teoria bergsoniana da rar uma restrição na presença do real à consciência. A conclusão que
interpretação, vemos que o comentário, enquanto leitura repensante primeiramente se impõe a partir daí é que a realidade, no sentido
do processo criador é, apesar da passividade heurística que parece ontológico da Presença, não se manifesta na linguagem. Como já
envolver, a única forma de manter, tanto quanto possível, fidelidade vimos, esta não pode ser tomada como adequado veículo do saber
à intuição que a um tempo gera e impede a expressão. Foi o que filosófico. Já que não existe, portanto, um pacto original entre a lin-
pretendemos dizer ao assinalar que a explicitação poética, diferente- guagem e a essência do real, a significação encarnada na palavra não
mente da análise conceitual, comenta a intuição. é mediação entre a consciência e o Fundamento, de si ou das coisas.
É bem verdade que tal comentário é um descenso, e o símbolo vai A linguagem naturalmente reenvia a arquétipos intelectuais, não à
se distanciando do simbolizado na trajetória processiva que consti- imagem da origem. Mas a contradição que a reflexão de inteligência
tui a elaboração metafórica. Mas, nos vários graus descendentes da instala na consciência instrumental pode ser prolongada na consti-
processão, a linguagem metafórica guarda uma relação complexa com tuição da linguagem imagética que, do ponto de vista intelectual, é
o que a gerou, um contato feito de participação e repulsa, de forma uma contralinguagem, pois, em vez de descrever e prescrever, disse-
semelhante à matéria que, no universo plotiniano, mantém com o mina o significado na multiplicidade de metáforas confluentes. E é
Uno de que é a derradeira emanação uma relação de participação exatamente o ponto imaginário da confluência, enquanto situado
que já é quase a oposição do nada ao ser. Assim, enquanto a postura aquém do enraizamento subjetivo da linguagem e da restrição do
analítica situa-se diante do real para articulá-lo a partir de uma visão significado conceitual, que nos permite pensar o correlato ontológi-
definitiva (produto), o comentário representa a degradação da intui- co da subjetividade intuitiva, aporética e desnaturalizada e, assim, a
ção em expressão, processo complexo de simbolização infinita, de fundação ontológica da expressão. As metáforas, no aspecto constru-
aproximações consecutivas que nunca anulam a qualidade da dis- tivo, confluem para o ponto nuclear da intuição; no aspecto descons-
tância, mas nunca há um voltar-se para o enfrentarnento de um outro, trutivo, procedem dele. Pois a expressão só se atualiza afastando-se
nunca o núcleo intuitivo será objeto de um ato cognitivo que o in- da origem intuitiva e só se realiza ao dela se aproximar. A metáfora,
corpore simbolicamente na sua totalidade ou no conjunto indefini- enquanto elaboração lingüística, rodeia à distância a intuição; en-
do de suas virtualidades. É dessa forma que a expressão que se dá quanto intençâo significativa, visa-a imediatamente. Há aqui um jogo

349
348
CONCLUSÃO
o COMENTÁRIO DA CRIAçAO

de mediação e imediação profundamente estranho à unilinearidade


ção, a crítica da linguagem filosófica vise especialmente a Platão e à
do entendimento. Cada metáfora, na sua insuficiência explicitativa,
tradição que se lhe seguiu, não podemos supor que a filosofia tenha
é também sempre e em cada caso a significação mais direta da intui-
alguma vez participado do logos inspirado da Poesia e do Mito. Por
ção no registro das imagens. Como vimos (primeira e terceira partes
esta razão não se aplicam à concepção bergsoniana da linguagem
deste trabalho). não há imagem melhor do que outra, mas apenas
filosófica as palavras de Dufrenne sobre a "filosofia nascente"'. Em
imagens diferentes, e é a multiplicidade de diferenças que tende para
contrapartida, o reencontro entre as duas linguagens, à maneira de
a desmultiplicação dos significados: a aproximação infinita do ponto
projeto e mesmo de método, está explicitado pelo mesmo Dufrenne
único e simples. Esta aproximação feita de procedência e retorno
em termos que julgamos coerentes com a concepção bergsoniana,
configura, na simultaneidade das duas trajetórias que perfazem um
quanto ao caráter originário da palavra poética e da expressão filosó-
único discurso, a correlação problemática entre intuição e expres-
fica: "Dir-nOS-ão aqui que a filosofia, reencontrando a linguagem das
são. Na intuição a realidade é duração presente; na expressão é du-
cosmogonias, se abandona à poesia. Mas talvez a poesia exprima
ração representada na disseminação significativa das imagens. Por-
uma experiência autêntica e significante. E talvez a metafísica não
tanto, a linguagem metafórica reporta-se, como contralinguagem, ao
tenha outro recurso senão seguir tais inspirações, as únicas intuiçôes
que a funda como expressão: o correlato ontológico presente na in-
de que seus conceitos podem nutrir-se, os únicos recursos de um
tuição. Somente desta forma o comentário da origem insinua-se nos pensamento pré-crítico. Tais intuições vão ter com a filosofia nas
interstícios dos símbolos da linguagem, quando cada imagem vale origens da experiência humana, no surgimento de toda reflexão"'.
também pelo que ela não é, pela ausência que é virtual solicitação de
outra imagem. É para fazer com que a palavra traga em si ainda um pouco da
origem e da originalidade que caracterizam a criação que o discurso
É esse um modo de superar de alguma maneira o enraizamento
filosófico deve se dar como comentário e não como análise. O co-
subjetivo da linguagem - sua produtividade intelectual - e vinculá-
mentário é a palavra que procura se fazer presente no ato da criação.
-la à produtividade criadora do élan, o que significa tentar fazer da
Não rearticula e explica aquilo que já se revelou, mas busca compre-
expressão sempre um ato de registro cosmogõnico, que nos dê pelas
ender a partir da revelação: da onticidade que a experiência integral
palavras, mas apesar delas, algo que elas não podem nomear. E o
da intuição proporciona. Assim como o discurso poético se elabora
que funda esta possibilidade, por mais remota e longínqua que seja,
no interior do sentido inesgotável da intuição criadora, assim tam-
é que a intuição é experiência. Trata-se de uma experiência integral
bém o discurso filosófico deve aceder à intuição, carregar-se do las-
da origem e do sentido temporal da totalidade. Este é o significado
tro ontológico da Consciência criadora e respeitar o inexprimível
do empirismo radical que Bergson acredita caracterizar a sua filoso- como critério de expressão.
fia. A experiência da percepção e da associação lógica dos conteúdos
intelectuais é simbólica e inteiramente limitada pela cristalização dos O paradoxo que consiste em ver no inexprimível a força geradora
significados. A crítica genética e o método indicam-nos a possibili- da expressão situa no horizonte da filosofia a relação entre lingua-
dade de uma experiência originária, aquela espontaneamente figura- gem e criação, que incide de maneira intensa no significado da fini-
da na atitude mística e na atividade do artista Se o conhecimento é tude tal como este aparece na filosofia de Bergson. A intencionalida_
coincidência com a origem criadora, se tudo que existe é, em última de pragmática da consciência, redução da Presença à representação
instância, criado mais do que causado, a indissociabilidade entre
Teoria do Conhecimento e Teoria da Vida solicita que a superação
do homem natural, própria da atitude filosófica, inclua essa profun- 5. "Estas palavras são ao menos originárias; e a repetição é ao mesmo tempo um
da inflexão da linguagem natural, q\le situa o discurso filosófico ao remontar ao fundamento. Hoje o filósofo reanima e explora a linguagem que foi certa
vez a da ftIosofia nascente, de uma filosofia que ainda não havia especializado e fixado
lado da palavra poética, o verbo que acede à criação. Mas essa pro- sua linguagem; e esta estava ainda muito próxima da poesia que nomeava os deuses
ximidade é, na filosofia bergsoniana, um projeto e não uma retoma- e as potências, e que veiculava os mitos" (Duffrenne, M., OPoético, tradução brasileira
da de algo que já ocorreu. Muito embora, como vimos na Introdu- de Luiz A Nunes e ReasyMa K. de Souza, Globo, Porto Alegre, 1969, pp. 47-48).
6. Duffrenne, M., ob. cit., p. 192.

350
351
j
CONCWsAO ,
é, certamente, a marca mais cabal da finitude. Mas, exatamente por
aparecer no âmbito dessa intencionalidade, ela assume um teor di- BIBLIOGRAFIA
ferente da inelutabilidade metafisica que a caracteriza nas analíticas
da finitude. Disto resulta o otimismo ambivalente que ressalta da
concepção bergsoniana das relações entre condição humana e refle-
xão filosófica. Pois se de um lado a filosofia representa a superação
da naturalidade da condição humana, de outro lado esta superação só
ocorre na situação de intuição, que se caracteriza pela aporia da
I. OBRAS DE BERGSON
reflexão. Se a filosofia, para não reduzir-se ao silêncio, deve necessa-
riamente incluir a expressão da intuição em discurso, a linguagem da BERGSON, H., Essai sur les Données Immédiates de la Conseienee, PUF, Paris,
filosofia deve inscrever-se no registro da criação. Ora, a linguagem é, 1970 (144) edição)
naturalmente, articulação discursiva da finitude, produto (do inte-
lecto) apto a constituir outros produtos (intelectuais). O discurso fi- BERGSON, H., Matiere et Mémoire, PUF, Paris, 1968 (92) edição)
losófico sugere o limite da finitude, apontando para além dela, quan- BERGSON, H., L'Évolution Créatriee, PUF, Paris, 1969 (142) edição)
do, ao inscrever-se de alguma forma no ritmo da criação, dá origem
BERGSON, H., La Pensée et le Mouvant, PUF, Paris, 1969 (149) edição)
à obra e não ao produto. A obra se opõe ao produto enquanto violen-
ta a ambiência natural que constitui a obviedade do mundo da inte- BERGSON, H., L'1!nergie Spirituelle, PUF, Paris, 1967 (132) edição)
ligência. Por isso a obra de arte, enquanto instauração da absoluta BERGSON, H., Les Deux Sources de la Morale et de la Religion, PUF, Paris,
novidade e recusa da ambiência natural, é o efetivo paradigma do 1967 (164) edição)
discurso filosófico, pois a novidade traz o sinal da origem'. A lingua- BERGSON, H., Le Rire, PUF, Paris, 1950 (87) edição)
gem da obra e em obra é ao mesmo tempo marca de finitude, posto
que ainda simbólica, e horizonte de infinitude, posto que abertura
metafórica do significado: criação de sentido. O discurso que se abre
lI. OBRAS DE BERGSON TRADUZIDAS PARA O PORTUGUts
para a criação de sentido acolhe o sentido da criação, pois atinge a
raiz da verdade, a identificação entre ser e criar. A partir daí a filoso- BERGSON, H., Ensaio sobre os dados imediatos da Consciência, Edições 70,
fia só pode ser o comentário da criação. Lisboa, 1988
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7. "É neste sentido que a novidade da obra de arte pode ser chamada de
originariedade. O discurso estético que deseja levar a sério a novidade da obra, a sua
BERGSON, H., Textos escolhidos, Coleção Pensadores, Abril Cultural, São
Paulo, 1984
indedutibilidade do mundo tal como ele é, e que se mantenha até o fim fiel a este
assunto não pode deixar de chegar, ao cabo, a descobrir que a esteticidade, entendida
como aquilo pelo qual a arte é arte, se reduz totalmente à originariedade. Em outras
palavras, e mais radicalmente: a obra de arte é verdadeiramente obra de arte, isto é,
III. COMENTADORES DE BERGSON E OUTRAS OBRAS
é bela e esteticamente válida, apenas na medida em que é uma origem, abertura de
um mundo. Não existe outra noção de beleza a não ser aquela que resolve a beleza na
força originante e fundante da obra" (Vattimo, G., Poesia e Ontologia, Mursia, Milano, ARANTES, P., Hegel: A Ordem do Tempo, Polis, São Paulo, 1981
1967, p. 83).

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