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CPLE – CADERNO PRODUÇÃO DE LEITURA E ESCRITA INTRODUÇÃO
AIHI - ACADEMIA INTERNACIONAL DE HIPNOSE INTEGRATIVA
PUBLICAÇÃO BI-MESTRAL. VOL I/Nº 1/ ANO I (SET/20I0)
ISSN 900.397 PAGINA: 78- 107
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TRANSE HIPNÓTICO E DMT:
VEGETAIS ENTEÓGENOS E RELIGIÕES
AYAHUASQUEIRAS
Antonio Almeida Carreiro1
Resumo: Identifica os principais
vegetais alucinógenos e enteógenos
para diferenciar seus efeitos. Defende
que o transe hipnótico pode ser
desencadeado pelo consumo de DMT
contido nos vegetais enteógenos.
Focaliza a legalidade do uso do Chá
ayahuasca e seu uso contexto
religioso. Relaciona as religiões
ayahuasqueiras, definido origens,
rituais e procedimentos de cura.
Descreve como procedeu a pesquisa
de campo em comunidades que fazem
uso da ayahuasca.
Palavra chave: Hipnose; DMT;
Vegetais Enteógenos; Ayahuasca
1
O autor é Mestre e Doutor em Ciências pela Universidade
Federal da Bahia e é professor da Universidade Catolica do
Salvador.
A indução ao transe hipnótico
geralmente é produzido através de estímulos
sensoriais normais; auditivos, visuais, táteis e
olfativos, além de também ser provocado por
ingestão de substâncias químicas que agem
no organismo com este propósito. Em
algumas sociedades primitivas, substâncias
hipnotizadoras encontradas na natureza,
geralmente em vegetais, foram incorporadas
às liturgias e são usadas até hoje com
surpreendentes efeitos. Pode também ocorrer
o transe bastando tão somente que alguém se
depare com situações de estados mentais
especiais, como grande expectativa com
violenta carga emocional, sono intenso sem
possibilidade de dormir, jejum nutricional,
isolamento social, abstinência sexual
prolongada, meditação, relaxamento físico e
mental ou atitude contemplativa em geral de
fundo religioso ou místico (Carreiro, 2008).2
Também é produzido por vários outros
meios, como procedimentos xamânicos,
prática espirituais, durante profunda
meditação ou através de sessões de hipnose
convencional. Além disso, algumas pessoas
podem, de forma voluntária ou não,
experimentar o transe por razões especiais
cotidianas e pode favorecer a terapia, a
transformação pessoal e a evolução da
consciência e, assim, pode beneficiar de
forma significativa a qualidade de vida de
quem o experimenta.
O enfoque da cura pelo transe através
da religião, envolvendo a ingestão de
2
Carreiro, A. A. Hipnose e psicoterapia: Etiologia e práxis.
SP, Editora Fiuza, 2008.
78
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substâncias químicas para obtenção de
estados mentais alterados é muito amplo e
complexo. O nível menor do efeito hipnótico
é o hipnóideo, que se caracteriza como
consciente, porém com baixa crítica às
impressões externas, o transe é um nível
intermediário e o êxtase é quando atinge o
nível pleno. Na literatura é fácil perceber que
todas as culturas, de todas as épocas,
conheceram, procuraram e desenvolveram
métodos para estabelecer estes antigos
estados da mente por muitas formas; desde o
uso de ervas, drogas e aplicações de
equipamentos especiais, até rituais dos mais
diversos. Na maior parte das vezes, estes
estados mentais foram e são produzidos por
métodos simples que vão da dança selvagem,
passando pelo ritual religioso, pela prática de
uma tranquila e intensa meditação até uso de
técnicas hipnóticas clássicas. Qualquer que
seja sua origem ou nível atingido, o estado
hipnótico sempre implica em uma função
normal do cérebro humano, decorre de várias
situações e algumas pessoas são mais
propensas ao seu alcance e aprofundamento.
Em relação às sociedades urbanas e
escolarizadas, as culturas nativas sabem
muito mais como produzir e aproveitar sua
religiosidade para estabelecer o estado
hipnótico. Cultivam este conhecimento em
altíssima estima, passam grande parte do
tempo desenvolvendo rituais que funcionam
como técnicas de indução, descobrindo
elementos e vegetais hipnóticos ou
enteógenos, inventando formas de integrar
tudo isso e associar com práticas espirituais
com objetivo de cura ou para ampliação da
intuição e exploração da percepção extra-
sensorial, como fonte de inspiração artística e
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
obtenção de sensações de bem-estar.
VEGETAIS ENTEÓGENOS
A busca do transe hipnótico por
ingestão de meios químicos é o método mais
direto (embora menos comum) para o ser
humano entrar temporariamente em
fascinantes mundos do seu inconsciente.
Desde as antigas civilizações, diversos
vegetais com propriedades hipnóticas têm
sido utilizados com esta finalidade,
apresentando um papel importante em ritos
religiosos. Segundo Schultes e Hofmann
(1982),3 o uso destas plantas permitia ao
curandeiro realizar cura, fazer adivinhações e
orientar a tribo nas estratégias de guerra. A
explicação é que, entre seus efeitos, podem
transportar a mente humana para o
autoconhecimento, para o contato com
divindades e outras forças do mundo
espiritual.
Segundo Ott (1994),4 a partir dos anos
60, pesquisadores da etnobotânica
começaram chamar a atenção para o fato de
que algumas substâncias psicoativas, até
então consideradas drogas, possuíam uma
característica singular: seus efeitos
apontavam para um uso espiritual.
Chegaram a definir um termo para essas
substâncias, as quais chamaram de
enteógenos. Esta palavra é um neologismo
para definir plantas psicoativas, significando
“que faz nascer Deus dentro”. Outro termo
também usado é plantas maestras ou plantas
3
Schultes, R. E. e Hofmann, A. Plantas de los Dioses.
Orígenes del uso de los alucinógenos. México, Fondo de
Cultura Económica, 1982.
4
Ott, J. Ayahuasca analogues - Pangean Entheogens. USA,
Natural products, 1994.
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professoras. Este conceito está amplamente
difundido principalmente entre os
vegetalistas peruanos mestiços, mas também
bastante presente no contexto xamânico da
Amazônia. Os vegetalistas consideram certos
vegetais como fonte de seu saber e de poder
cosmológico, mitológico e terapêutico (Luna,
2009).5
Os vegetais chamados de enteógenos
são utilizados para a transformação pessoal e,
quando consumidos com esse propósito,
ampliam as reflexões e interpretações dos
indivíduos, durante e após a ingestão dessas
substâncias, muitas vezes provocam
revelações que determinam a superação de
problemas e ansiedades. Possuem, portanto, a
possibilidade de ajudar os indivíduos sobre o
entendimento a cerca de suas questões mais
íntima e abre portas para que o próprio
usuário possa perceber saídas e percorrer esse
caminho em busca de soluções. Estão
presentes em todas as antigas culturas e suas
religiões. Os xamãs siberianos ingeriam o
cogumelo Amanita Muscaria para poder
contactar os espíritos durante suas cerimônias
religiosas. Os sacerdotes da Índia antiga
utilizavam a bebida sagrada chamada de
Soma, que nos vedas era mencionada como o
licor da vida ou o Néctar da imortalidade. Os
gregos, os iniciados de Eleusis, lugar do
santuário da deusa Demeter, bebiam o Kikeón.
Na África, na região do Gabão e países
próximos, os Bwiktis adoram o deus Nzame,
que lhes presenteou seu sangue divino no
extrato da planta Iboga. Na Pérsia antiga, os
5
Luna, L. E. Xamanismo amazônico, ayahuasca,
antropomorfismo e mundo natural. In: Labate, B. C.;
Araujo, W. S. (Orgs). Uso ritual da ayahuasca. SP, Editora
Mercado de Letras, 2009.
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
seguidores de Zoroastro ingeriam o Haoma,
bebida feita a partir de sementes de Arruda
da Síria (Peganum Harmala). No nordeste
brasileiro, índios, negros e cablocos bebem o
vinho da jurema em seus rituais religiosos.
Esses rituais deram origem a religiões afro-
brasileiras, como o Candomblé de Caboclo,
Catimbó e a Umbanda, entre outras.
Na antiga China, o imperador Shen
Nung (2000 a.C.) escreveu um Manual
Fotoquímico que mencionava várias bebidas
que induzem ao transe. Os antigos Taoistas
adoravam o Ling Chih, conhecida por eles
como a planta visionária da imortalidade. No
antigo testamento se faz referencia ao Maná, o
alimento sagrado que os conectava com deus,
durante o êxodo do povo judeu até o Egito.
Época de muitas visões e contatos com deus e
seus anjos.
A árvore do conhecimento,
mencionada na Bíblia Sagrada, é uma alusão
ao fato de que o consumo de uma planta
pode abrir as portas do conhecimento. Na
região amazônica, seus habitantes utilizam a
ayahuasca para experimentar o transe que lhes
permitem comunicar-se com seus
antepassados, com os espíritos das plantas e
dos animais, descobrirem novos
medicamentos para a comunidade e devolver
a saúde aos doentes.
Nas culturas mexicanas existe uma
ampla variedade de plantas utilizadas em
seus cultos, como o Peyote, a Salvia divinorum,
El toloache (datura stramonium), El teonanacatl
(cogumelo sagrado Psilocybe cubensis), El
ololluqui (Rivea corymbosa), o cacto San Pedro,
entre muitas outras, que foram utilizadas
também pelos antigos Maias, Incas e Astecas.
80
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
O efeito curativo das plantas
enteógenas é muito amplo, pois atuam de
forma diferente das outras plantas medicinais
conhecidas, elas fazem com que a pessoa
participe ativamente do processo de cura.
Cada pessoa reage de maneira particular ao
efeito das plantas, segundo suas próprias
necessidades e crenças. Existem várias
religiões constituídas que utilizam plantas
enteógenas em seus cultos: as religiões
sincréticas amazônicas do Brasil usam
Ayahuasca, a igreja nativo-americana utiliza o
cacto peyote em seus cultos e os Bwikti, povo
nativo da áfrica que faz uso o extrato de iboga,
cujo efeito pode durar até três dias. Essas
plantas enteógenas aumentam a percepção, a
acuidade visual e auditiva, além de
transportar o praticante para outras formas
de pensar. A experiência é individual,
algumas pessoas têm visões, outras dizem
que recebem mensagens, fazem regressões,
obtém respostas e soluções para seus
problemas com maior claridade, percebem as
causas de suas doenças, recebem cura, se
conectam a arquétipos, aos mitos, aos medos,
traumas que estão no inconsciente,
visualizam entidades, sentem que viajam
pelos ares como que se transportassem além
do corpo físico.
O uso ritualístico das plantas
enteógenas proporciona uma experiência
místico-religiosa indescritível, o usuário
experimenta o que pode ser chamado de
samadhi, êxtase ou nirvana, o encontro com o
estado mental de transe. O uso de enteógenos
tradicionalmente ocorre sob um contexto
ritual, “seus efeitos seriam condicionados
tanto pelo arranjo e pela ordem do meio
ambiente imediato quanto por fatores
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
adicionais, como crenças e valores
relacionados ao uso das plantas.” (Dobkin de
Rios 1977 apud MacRae 1992).6
Segundo Labate (2004),7 na natureza
existem cerca de cem vegetais que podem
desencadear o processo hipnótico, alguns são
classificados como alucinógenos, como a
Iboga, utilizada por aproximadamente um
milhão de pessoas na África; o Peiote, um
cacto amplamente consumido no México e
nos EUA, cuja substância ativa é a mescalina;
os Cogumelos, que já apareciam em registros
hindus da antiguidade.
Aldous Huxley (2002),8 romancista e
filósofo britânico, testou pessoalmente os
efeitos da mescalina, derivada de um cacto, e
registrou suas observações em um ensaio
publicado em 1954, As Portas da Percepção: Céu
e Inferno. Huxley fala de um transe com
sensações prazerosas, tais como “uma dança
lenta de luzes douradas”, descreve os
lampejos de “diversidade transcendental”
que diz ter experimentado enquanto dirigia
um automóvel por um subúrbio de Los
Angeles sob o efeito da droga.
O incrível fluxo de informação sensorial
liberado pela mescalina levou Huxley à
hipótese explicativa do que sentiu. Diz que a
principal função do cérebro e do sistema
nervoso é servir como uma válvula redutora
para restringir o influxo de realidade a um
nível administrável e supôs que há tantos
6
MacRae, E. - Guiado pela Lua: O Xamanismo e o uso ritual
da Ayahuasca no culto do Santo Daime. SP, Editora
Brasiliense, 1992.
7
Labate, B. C. e Araújo, W. S. O Uso Ritual da Ayahuasca. 2ª
ed., SP, Editora Mercado de Letras/Fapesp, 2004.
8
Huxley, A. As Portas da Percepção: Céu e Inferno. RJ,
Editora Globo, 2002.
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CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
dados captados através dos sentidos que, se
fossem processados, a mente não suportando,
ficaria incapaz de lidar até mesmo com os
problemas da vida cotidiana. Acredita
Huxley que a mescalina desliga a função de
filtrar informações no cérebro, permitindo
que a mente fosse inundada por eventos
mentais que costumam ser excluídos por não
terem qualquer valor de sobrevivência. Diz
que tais informações são “biologicamente
inúteis, mas estéticas e, às vezes,
espiritualmente valiosas”. Também sugere
que este estado da mente pode ser estimulado
por outros catalisadores além das drogas, tais
como doenças, fadigas, jejum ou um
completo retiro sensorial, através da
meditação em algum lugar escuro e
silencioso. E, por que não, pelos métodos
hipnóticos convencionais.
Entre os vegetais que apresentam efeitos
psicoativos, um dos mais poderosos é a Salvia
divinorum, chamada também de ska pastora,
ska María, hierba María e hierba de los dioses, seu
efeito é extremamente forte. É uma planta
originária do México e se reproduz em maior
escala na região da Sierra Mazateca. A
literatura não faz referência do uso da
substância psicoativa encontrada em sua
folha como ilícita, também não existe
confirmação científica de que seja prejudicial
à saúde ou que seu uso possa gerar
dependência física ou psíquica. Pode ser
usada fumando uma pequena quantia de
folhas secas num cachimbo e prendendo a
fumaça depois de inalada por alguns
segundos ou pode ainda ser usada na forma
do extrato alcoólico para administração
sublingual e, assim, os efeitos são mais
prolongados, durando até duas horas.
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
Os efeitos do uso da Salvia são muito
rápidos e bruscos, provoca um extraordinário
aumento dos sentidos; ocorre a ampliação da
sensibilidade pelas cores e formas
geométricas e provoca a perda da dimensão
corporal no espaço e no tempo, resultando
em completa distorção da realidade. Usuários
da Salvia descrevem seus efeitos e afirmam
que correspondem aos produzidos por
drogas psicodélicas como o LSD, porém de
ação muito mais rápida e intensa.
Outro vegetal de grande poder referido
na literatura é a trombeta-de-anjo (Brugmansia
suaveolens), seu princípio ativo são alcalóides
beladonados (atropina, escopolamina e
hioscina). É um arbusto facilmente
encontrado nas Américas Central e do Sul.
Na costa da Colômbia e no Peru é conhecido
como floripôndio. Em outros locais é
conhecido como trombeteira, trombeta, babado,
cartucheira, cartucho, saia-branca, sete-saias,
datura e zabumba. As flores, em formato de
trombeta pêndula, têm cerca de trinta
centímetros de comprimento e exalam
perfume maravilhoso que se sente mais
durante a noite, apresentam variedade de
cores (branca, amarela, pêssego, rosa e
laranja). Todas as partes da planta são
altamente tóxicas e, historicamente, tem sido
usada com objetivo de se obter visões
psicodélicas.
A literatura indica o uso da trombeta-de-
anjo como muito perigoso, mas não se
observa registro de ilegalidade para o seu
plantio e cultivo, é usada em decorações de
praças e jardins. Há relatos afirmando que,
dependendo da dose da seiva da planta ou do
suco da flor absorvido pela pele ou
consumida em forma de chá, pode até matar.
82
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
O arbusto libera atropina, hiosciamina e
escopolamina que age como uma potente
droga, deixando os usuários sem condições
de reconhecer o que estão fazendo. A
escopolamina pode ser absorvida através da
pele e da mucosa, por isso quando se deseja
evitar os efeitos, é recomendado não tocar a
seiva ou o suco da planta na pele nua e nunca
deve ser consumida sem muito cuidado.
Os sintomas aversivos da ingestão da
trombeta-de-anjo são vômitos, náuseas, rubor
da face, secura das mucosas, febre,
taquicardia, alucinações, dilatação das
pupilas, estado de agitação e, nos casos mais
graves, coma e óbito. Em contraponto ao seu
efeito tóxico, dela são extraídas substâncias
para a produção de medicamentos contra mal
de Parkinson, infecções urinárias, problemas
cardíacos, síndrome pré-menstrual e despertar crises de alucinações e
intoxicações por colinérgicos.
Na Região Amazônica, a trombeta-de-
anjo é usada em práticas mágicas para
viagens visionárias; quem a usa experimenta
uma onda de adivinhação e clarividência e
muda a forma de ver as imagens que olha. A
escopolamina é responsável pelos seus efeitos
visionários e é o alcalóide que ocorre em
maior concentração (Schultes e Hofmann,
1982). O campo teórico pesquisado indica que
o ritual do seu preparo mais simples começa
por extrair e eliminar o núcleo da flor para
diminuir os riscos à saúde (maior
concentração), após isso as pétalas são
esmagadas com uma pedra limpa para se
extrair o sumo. É recomendado aplicar o
sumo de apenas uma flor na cabeça do
usuário, na posição deitado, sempre à noite
na hora de dormir. Um entre os efeitos
descritos é a sensação da consciência fora do
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
corpo físico. Também com o mesmo objetivo,
o sumo pode ser aplicado nas articulações.
Na literatura tem também indicações de uso
das folhas como supositório ou fumando as
folhas secas. Este vegetal tem longa história
nas práticas xamânicas para produzir transes
e se obter cura.
Quando se refere aos efeitos da
trombeta-de-anjo, W. Emboden (1979)9 diz que,
dependendo da quantidade consumida, o
usuário pode experimentar forte convulsão
seguida de sono profundo e acorda com
alucinações psicodélicas:
... o resultado de beber Brugmansia é
uma narcose tão violenta que o
participante tem que ser contidos
fisicamente. Eventualmente, ocorre
depois um sono prolongado com
visões coloridas que são entendidas
como a comunicação com o mundo
dos espíritos dos mortos. A intenção é
tornar-se profética por meio da
adivinhação (EMBODEN, 1979).
Com referência aos curandeiros que
usam a trombeta-de-anjo, na Colômbia e no
Peru, assim se afirma Mckenna (1993):10
... médicos ou curandeiros tomam
uma maceração aquosa das folhas
para produzir alucinações, durante o
qual eles vêem a solução de casos
difíceis, fazendo adivinhação, profecia
ou diagnóstico. Estas plantas são
usadas por curandeiros locais, que a
ingere em determinadas condições,
como, se acredita, foi ensinado pelos
9
Emboden, W. Narcotic Plants. 2ª ed., N. York, Macmillan,
1979.
10
McKenna, T. Alucinações Reais. RJ, Editora Record/Nova
Era, 1993.
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CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
xamãs (MCKENNA, 1993).
Entre os vegetais descobertos pelos
povos primitivos encontra-se também a
Trepadeira Elefante ou Argyreia Nervosa,
originária da Índia. É também conhecida
como Hawaiian Baby Wood Rose (HBWR),
pertence à família convolvulácea e ao gênero
Argyreia, própria para plantio em
alambrados, pérgulas e caramanchões
grandes. Suas folhas, em forma de coração,
são brancas no verso e as flores são de cor
rosa com o interior violeta. Possui sementes
peludas de cor marrom, que se formam
dentro de várias cápsulas parecendo ao fruto.
Há milhares de anos é usada em rituais
espirituais na Ásia, México e no Havaí. Tem
registro de seu uso também pelos Astecas e
Maias.
Argyreia Nervosa contém uma
triptamina natural com o nome de amina de
ácido lisérgico (LSA), quimicamente
relacionada com o LSD, ainda que
consideravelmente menos potente. A mescalinismo. Dentro dos rituais xamânicos,
pesquisa teórica indica que as sementes são
consumidas por via oral após jejuar por
quatro a seis horas, devem ser bem
mastigadas de modo que as substâncias
ativas possam ser absorvidas pela saliva. Seu
efeito é notado depois de ingerir de duas a
três sementes. De quatro a seis é uma dose
média e, ingerindo-se de oito a dez podem
ocorrer fortes alucinações, com visões de
polígonos e mandalas que se formam no céu.
As luzes ficam muito mais brilhantes e as
imagens observadas ficam fluorescentes.
A ação da Argyreia Nervosa é descrita
como sendo um efeito intermediário entre o
LSD e o Cogumelo. O efeito pode durar de
quatro a doze horas e é acompanhada de
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
vômitos, incluindo a náusea severa, espasmos
abdominais e diarréia, causa forte foto-
sensibilidade e perda de psicomotricidade,
podendo produzir abortamento fetal em
qualquer fase da gestação. Pode ocorrer uma
ressaca que dura até um dia, caracterizada
por visão turva, vertigens e inquietação física.
O preparo eficiente para o consumo da
Argyreia Nervosa depende de quatro passos: 1)
Remover qualquer casca restante, lixando
com uma lixa de unhas nova, cortar as
sementes em pequenos pedaços com uma
faca ou uma tesoura. 2) Colocar numa caneca
com água pela metade, não fervente mais
quente. 3) Deixa repousar durante pelo
menos 1½ hora para que a água esfrie até à
temperatura ambiente. 4) Beber a água
juntamente com as sementes.
A literatura faz também referência ao
uso do Cacto de São Pedro (Trichocereus
Pachanoi) que, no panorama do uso de
plantas enteógenas, está ligada à área do
seu uso tem fins terapêuticos e
adivinhatórios. Estima-se que é usado pelos
nativos americanos há muitos séculos, em
especial pelos índios do Peru, da Venezuela e
também pelos Yanomami do Brasil.
O Cacto de São Pedro é a planta mais
velha que se conhece na América do Sul com
efeitos alucinógenos, é originário do Equador
e do Peru, o seu alcalóide mais importante é
mescalina, contém um pouco menos que o
cacto peiote (Lophophora williamsi). No
norte andino o nome Cacto São Pedro se
alterna com Wachuma/Guachuma que parece
haver sido o nome mais antigo, mas também
é conhecido como cacto dos quatro ventos,
mestre dos mestres, erva santa, caldo santo,
84
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
huando hermoso e remédio. É usado pelos
xamãs para determinar, em suas visões ou
sonhos, como devem proceder num processo
de cura.
Cacto de São Pedro é uma planta que
tem o formato de coluna com quatro ou mais
gomos e é utilizado em práticas rituais
similares à tradição dos índios mexicanos que
tinha como finalidade o contato com os
deuses através de visões mágicas. Seu uso
permite explorar o mundo de fantasia com
visões coloridas, sentimentos de
tranquilidade, consciência elevada e fluxo de
pensamentos rápido. Esta sensação surge
normalmente acompanhada com uma
felicidade indescritível.
O modo tradicional de consumir o
Cacto de São Pedro é comê-lo após retirar a
casca e os picos. A maioria das substâncias
ativas encontra-se concentrada logo abaixo da
casca. Pode secar cortando em lascas e
levando-os ao forno a 50°C durante quatro a
cinco horas, depois se come as lascas. Outra
maneira é consumir em forma de chá, para
isso, retira os espinhos e corta os cactos em
pedaços pequenos e cozer por duas a três
horas numa panela fechada em fogo brando.
Depois de esfriar pode misturar a bebida com
sumo de fruta ou com mel. Não se alimentar
pelo menos seis horas antes do consumo é
imprescindível para amenizar o efeito de
sensação de náusea e comer gengibre ajuda a
evitá-la.
A potência do Cacto de São Pedro pode
variar muito, por isso, não se toma a dose
toda de uma vez só, deve ser consumido
gradualmente. É recomendado não misturar
com álcool ou outros estimulantes e não usar
em caso de gravidez, depressão, medicação,
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
condução de veículos motorizados. Seu uso é
ilícito, a mesclaina contida no cacto tem
consumo proibido em vários países, inclusive
no Brasil.
O uso de ervas para produzir o transe
está presente em algumas religiões que
tiveram origem nas tribos indígenas da
África, das Américas e da Oceania, assim
como dos primitivos habitantes da Europa e
da Ásia. Um bom exemplo disso é o
xamanismo, caracterizado por práticas
realizadas pelo xamã, que, com ajuda de
vegetais, entra em transe e, segundo a crença
indígena, sua alma vai para longe do corpo,
percorre lugares distantes, enquanto um
espírito estranho encarna para realizar
trabalhos de cura e adivinhação. Os Incas
definiam os xamãs como “punku” que
significa porta ou entrada, uma espécie de
ligação entre o corpo e a alma de seus
pacientes.
Entre algumas nações indígenas, o xamã
é um homem ou mulher que, no final da
infância, passou por uma experiência de
sentir sua sexualidade transfigurada e, a
partir daí, dedica-se inteiramente para
práticas espirituais. É iniciado através de
rituais, permanecendo por vários dias em
estado de êxtase que é considerado como o
mais elevado nível de transe, depois disso
consegue facilmente entrar neste estado
mental para servir de intermediário entre os
homens e o mundo dos espíritos, de onde
acreditam que recebem instruções de como
proceder em busca de cura e outras respostas
mágicas que sevem de aconselhamentos para
os membros de sua comunidade. Para
85
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
Campbell (1990),11 o inconsciente inteiro se
abre e o xamã mergulha nele. Encontram-se
descrições dessas experiências xamânicas ao
longo de todo o caminho que vai da Sibéria às
Américas, até a Terra do Fogo.
Em contato com diferentes povos, os
rituais dos xamãs se popularizaram e se
transferiram para fora das aldeias,
incorporando parte de outras culturas e
crenças. Essa mescla, às vezes, muito
distanciada das explicações originais, é
observada atualmente nos centros urbanos na
prática do xamanismo. Independente do uso
de vegetais, no ritual de cura dos indígenas
ocorrem sons produzidos pela voz humana e
ou instrumental, extremamente monótonos e
repetitivos, podendo também acontecer
danças com movimentos corporais lentos,
síncronos e repetidos. Tudo isso revela
condições hipnotizadoras que, mesmo sem a
ingestão de qualquer substância, podem levar
pessoas ao transe hipnótico.
No Brasil, na Região Nordeste, a Jurema
(planta nativa do semi-árido nordestino) e o
Yopo, são muito consumidos no decorrer de
ritos religiosos por tribos indígenas com o
meio de produzir transes. A Jurema é servida
em forma de chá, enquanto as sementes do
Yopo são maceradas e seu pó é consumido
pela via intranasal (cheirado). Mas a campeã
de consumo em diversas regiões da América
do Sul é o chá ayahuasca, entre as bebidas com
propriedades hipnóticas produzidas por
vegetais é a mais conhecida, divulgada e
pesquisada.
É evidente o poder hipnótico do chá
11
Campbell, J. As transformações do mito através do tempo.
SP, Editora Cultrix, 1990.
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
ayahuasca, bebida de cor marrom e de gosto
amargo, produzida a partir do cozimento
concomitante de talos socados do cipó jagube
ou mariri (Banisteriopsis caapi) e da folhas do
arbusto chacrona ou rainha (Psychotria
viridis). Na mistura para a sua produção pode
ainda ser acrescentada mais de trinta outras
espécies de vegetais, como a folha de outro
cipó conhecido na Colômbia como chagro
panga (Diplopterys cabrerana) ou o sumo das
flores ou seiva do arbusto corneta de anjo.
Essas adições ao chá transformam a ayahuasca
em um potente alucinógeno.
HOUAISS (2001)12 descreve a palavra
ayahuwaska como pertencente à língua
quíchua, falada no antigo Império Inca pelos
quíchuas e que ainda é uma importante língua
indígena da América do Sul, considerada no
Peru e na Bolívia como oficial, junto com a
língua Aimará. Na etnologia linguística, aya
quer dizer corda ou cipó dos espíritos
ancestrais e huwaska significa chá ou vinho. A
transliteração para a língua portuguesa
resultou na simplificação do nome para
ayahuasca ou mais simples como Hoasca. No
Brasil, o chá é conhecido e expresso em vasta
literatura, com o nome de Auasca, Uasca,
Santo Daime, Vegetal, Mariri, Yagé, Caapi, Nixi
Honi Xuma, Hoasca, Kahi, Natema, Pindéi, Dápa,
Mihi, Vinho da Alma, Dápa, Bejuco d’Oro, Vinho
de Deus, Vinho dos Espíritos, Professor dos
Professores, Plantas Mestras. Onde se cultua
esse chá é recorrente a expressão “o cipó dá a
força e a folha, luz”.
Há relatos do uso do chá ayahuasca em
toda a Amazônia, chegando à Bolívia e à
12
HOUAISS. DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS DA LÍNGUA
PORTUGUESA – Versão 0.1. SP, Editora Objetiva, 2001.
86
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
costa do Pacífico no Peru, Colômbia,
Equador, Panamá e Brasil. Foi reconhecida
nesta região em pelo menos setenta e duas
tribos indígenas, com quarenta nomes
diferentes. Entre as diversas tribos da bacia
Amazônica é percebida como uma poção
mágica, de origem divina, geralmente usada
em ritual religioso com propósitos de cura; os
xamãs usavam a bebida para descobrir qual
era a doença de seus pacientes e saber como
tratá-la. Também usada para fornecer visões
importantes no planejamento de caçadas,
prevenção contra espíritos malévolos, bem
como contra ataques de feras da floresta.
Essas visões, guiadas e manipuladas pelos
xamãs, são fundamentadas no ideário de
crença do grupo e podem se repetir de forma
coletiva.
Segundo Grob (2002),13 as experiências
visionárias da ayahuasca são elaboradas de
acordo com o sistema de crença coletivo e
individual dos participantes. E os relatos
sobre os efeitos específicos da ayahuasca
variam significativamente, de acordo com o
contexto cultural, que vai do ritual tradicional
dos nativos da Amazônia à cerimônia dos
curandeiros mestiços, ou da estrutura
sincrética da religiosidade à livre e curiosa
exploração psiconáutica euro-americana.
Originariamente o chá foi apenas usado nos
rituais indígenas que, segundo suas crenças,
entre os efeitos produzidos “facilita o
desprendimento da alma de seu
confinamento corpóreo, voltando ao mesmo
conforme a vontade, carregada de
conhecimentos sagrados” (Schultes e
13
Grob, C. S. A psicologia da ayahuasca. In: Metzner, R e
Callaway, J. C. Ayahuasca: alucinógenos, consciência e o
espírito da natureza. RJ, Editora Gryphus, 2002.
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
Hofmann, 1982). Os índios Jivaro do Equador
acreditam que a experiência com ayahuasca é
a vida real, ao passo que a realidade cotidiana
é apenas uma ilusão.
No Brasil, o consumo do chá ayahuasca
por população não indígena surge do contato
entre seringueiros e xamãs da região
amazônica, no auge da exploração da
borracha, no fim do século XIX. Os
desdobramentos sócio-histórico-culturais
ocorridos nesta região, nas primeiras décadas
do século XX, propiciaram a sua expansão
para outros contextos sociais distintos de suas
origens e deram início às religiões
ayahuasqueiras que se espalharam
rapidamente para os centros urbanos.
RELIGIÕES AYAHUASQUEIRAS
Foram os “Soldados da Borracha”,
alistados como seringueiros pelo governo
brasileiro para trabalhar na região amazônica,
principalmente no Estado do Acre e
Rondônia que, em contato com os índios,
conheceram o uso do chá ayahuasca e
adaptaram para suas comunidades nas zonas
rurais. Destes contatos surgiram diversos
grupos que associaram o uso da bebida a
contextos religiosos (cristão-espírita) e ao
mesclar o chá com os seus conceitos, culturas
e tradições, essas comunidades recriam
rituais indígenas agregando novos elementos
para formar as religiões ayahuasqueiras que
migram para zonas urbanas e depois para
grandes centros como Salvador, Rio de
Janeiro e São Paulo. Daí, avançando para
outros Estados brasileiros e também para a
87
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
América do Norte e Europa. Alves Jr. (2007)14
apresenta amplo referencial teórico e relata
como surgiram e se desenvolveram essas
religiões, contando detalhes de seus rituais.
Várias comunidades na Amazônia
passam a cultuar o chá ayahuasca e, em seu
ritual, envolvem santos da Igreja católica e
orixás do candomblé, reverenciam a mata, a
floresta, a paz e a alegria. Ao lado de cânticos
que geralmente têm inspiração ecológica, a
cerimônia envolve uma dança coletiva de
passos repetidos, síncronos e monótonos,
dois para um lado, dois para outro. Às vezes
essa dança dura uma noite inteira. Algumas
dessas comunidades se transformaram em
religiões bem conhecidas e, por dissidência
ou conflito de liderança, se multiplicam a
cada dia.
As novas religiões que fazem uso do
chá ayahuasca associam ações esotéricas do
mundo indígena com tradições de outras
crenças religiosas. Bastante sincréticas
combinam, em doses diferentes, desde o
xamanismo indígena até o kardecismo,
passando pelo catolicismo popular, pelo
candomblé e pela religião umbandista. Em
todas elas, os efeitos decorrentes da ingestão
do chá são atribuídos ao processo de
purificação da alma e tem como objetivo
transmitir aos homens uma prática ordenada
pela força superior no sentido de ensiná-los a
se conduzir sobre a terra (Goulart, 2004).15
Nos rituais, o chá é ingerido por homens,
14
Alves Jr., A. M. Tambores para a rainha da floresta: A
inserção da umbanda no santo daime. SP, Dissertação de
Mestrado, PUC, 2007.
15
Goulart, S. L. Contrastes e Continuidades em uma Tradição
Amazônica: as religiões da ayahuasca. SP, Tese de
Doutorado, UNICAMP, 2004.
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
mulheres, crianças e adolescentes como
forma de obter saúde e bem-estar físico e
mental. Prevalecendo, porém, impedimento
para aqueles que fazem uso de medicamentos
psicotrópicos ou que tenham problemas de
ordem psiquiátrica considerada grave.
SANTO DAIME
Raimundo Irineu Serra, neto de
escravos, nasceu em São Vicente Ferret,
Maranhão, em 15 de dezembro de 1892, e
faleceu em 1971, aos 79 anos. Por volta de
1930, fundou a vertente religiosa
ayahuasqueira na cidade de Rio Branco no
Estado do Acre, conhecida como “Santo
Daime” ou “Alto Santo” e posteriormente
como CICLU - Centro de Iluminação Cristã
Luz Universal. Mestre Irineu era um negro
seringueiro de dois metros de altura que, em
1930, após uma intensa iniciação com a
ayahuasca, através de um xamã na floresta
amazônica, resolveu chamar o chá de “Santo
Daime” e, com esse nome, iniciou uma
religião. Tomando essa bebida, Mestre Irineu
teve uma visão (miração) de Nossa Senhora
da Conceição e, segundo afirma, foi quando
recebeu os fundamentos inspiradores da
crença que acabaria por inaugurar. O nome
“Daime” vem do próprio verbo “dar”, no
sentido Dai-me Luz! Dai-me Amor! Dai-me
Força! Mas existem outras hipóteses, Silva
(2009)16 vê provável relação entre o termo
16
Silva, C. M. O uso ritual da ayahuasca e o reencontro de
duas tradições. A miração e a incorporação no culto do
Santo Daime. In: Labate, B. C. e Araújo, W. S. (Org). Uso
ritual da ayahuasca. SP, Editora Mercado de Letras, 2009.
88
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
“Daime” e a simbologia da serpente presente
nas mitologias do “Daomé”, na África.
No Acre apareceu outra ramificação do
Santo Daime, o CEFLURIS – Centro Eclético
da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu
Serra, liderada por Sebastião Mota de Melo
(Padrinho Sebastião), nascido no seringal
Monte Lígia na Cidade de Eurinepé no
Estado do Amazonas em 1920 e falecido em
1990, no Rio de Janeiro. Da mesma forma que
o Alto Santo, o CEFLURIS é herdeiro do
xamanismo amazônico, é influenciado pelo
Círculo Esotérico da Comunhão do
Pensamento e do catolicismo popular, com
suas danças e festas religiosas. Ambos têm na
figura do Mestre Irineu seu líder espiritual.
Sebastião Mota trabalhou como
seringueiro e construtor de canoas, foi
discípulo de Irineu e, segundo Alves Jr.
(2007), foi filiado ao Círculo Esotérico da
Comunhão do Pensamento, assim como à
Ordem Rosa-Cruz. Resolveu fundar sua
própria religião, embora sem apresentar, no
início, divergências significativas na prática
ou na crença do Mestre. Esta vertente de
consumo da ayahuasca evoluiu mais
rapidamente para outros contextos sociais do
que as outras.
A história do CEFLURIS tem início em
1965, quando Sebastião Mota vivia na
Colônia Cinco Mil em Rio Branco, no Estado
do Acre, e foi levado desenganado ao Alto
Santo em busca de cura. Com o tempo,
passou a ocupar papel importante dentro
desta comunidade e recebeu do Mestre
Irineu, mais tarde, autorização para produzir
ayahuasca. Com a morte do Mestre Irineu,
Padrinho Sebastião não aceita a liderança que
o substituiu e funda, em 1974, o CEFLURIS,
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
na Colônia Cinco Mil. Este local teve origem
no loteamento em colônias das terras de um
antigo seringal, cada lote foi vendido na
ocasião por cinco mil cruzeiros, ficando até
hoje conhecida por Colônia Cinco Mil.
No começo da década de 1980, o
Padrinho Sebastião decidiu que um grupo da
Colônia Cinco Mil, liderado por ele, deveria
se mudar para o interior da floresta.
Seguiram para um seringal conhecido como
Rio do Ouro, depois migraram para outra
localidade às margens do igarapé Mapiá, em
Pauini, município do Estado do Amazonas.
Este local foi batizado, em 1983, como Céu do
Mapiá, situado no coração da floresta
amazônica, tornando-se local de
peregrinações para todos os adeptos da linha
do CEFLURIS, sendo também visitado por
pessoas provenientes de todas as partes do
Brasil e de vários outros países, daí se
expande para o mundo.
Mesmo com a saída de Padrinho
Sebastião para o Céu do Mapiá, a produção e
o uso da ayahuasca nunca foram
interrompidos na Colônia Cinco Mil, que
ainda é parte do CEFLURIS presidida por seu
filho e sucessor Alfredo Gregório de Melo.
Aos cuidados de Murilo Reis e Lourival
Bento Aleixo, na Colônia continua sendo
produzido grande quantidade de chá de
excelente qualidade, inclusive para suprir
outras comunidades ayahuasqueiras dentro e
fora do país. No preparo, as folhas do arbusto
são lavadas e colocadas com o cipó macerado
para ferver, usa-se o dobro do volume do
cipó em relação à folha que são adicionadas
em um recipiente de alumínio, sendo três
camadas do cipó, intercaladas por duas de
folhas, tudo é coberto de água e posto no
89
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
fogo. O cozimento do chá é feito
simultaneamente em cinco panelaços de
aproximadamente cinquenta litros cada um, o
preparo dura até quatorze dias e, na
proporção que evapora, a água é reposta para
manter o nível até o ponto da consistência
ideal. A produção finaliza em torno de
duzentos e cinquenta litros por batelada.
Além de manter o consumo local, parte da
produção é acondicionada a vácuo, em sacos
plásticos de dez litros, para melhor
conservação e distribuição em outros centros.
O CEFLURIS, nos anos 90, realiza
ajustes e correções na sua estrutura de credo e
de administração e expande-se pelos centros
urbanos brasileiros e para fora do país. Uma
boa característica dessa organização é a ser a
mais aberta à comunidade externa e divulgar
de forma explícita seus objetivos e práticas
religiosas. Sua estrutura, horizontal e
democrática, permite que os diversos
segmentos utilizem bem os meios de
comunicação, como revistas especializadas e
Internet. Isto permitiu seu crescimento
acelerado e, trinta anos depois de sua
fundação, há seguidores em vários países
como Estados Unidos, Inglaterra, Holanda,
Espanha e Japão.
BARQUINHA
É curioso como surgiu outra religião
ayahuasqueira denominada “Barquinha”,
nome que corresponde a uma festa do
folclore popular, trazida para o Brasil pelos
portugueses e guardada na memória do povo
através de gerações. Representa a cultura de
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
gente simples, suas brincadeiras e seu lirismo
lúdico que não se perderam no tempo.
Cultuam feitos históricos dos navegantes com
a representação de marinheiros e sua
religiosidade. Porém, aos poucos foi se
afastando das origens, se modificando, se
adaptando e readaptando a novos contextos
culturais.
A festa folclórica da Barquinha é
comemorada em pequenas cidades e vilarejos
em todo o país, principalmente no Norte e
Nordeste do Brasil. Acontece nos meses de
junho a dezembro, dependendo da região,
mas na sua maioria ocorre quando se
comemora Santo Antônio, São João e São
Pedro. Caracteriza-se como um bailado
popular dançado por homens e mulheres,
representando a chegada da barca que trazia
marinheiros e oficiais das naus portuguesas
para o porto, seguindo em um desfile até a
Igreja para comemorar feitos náuticos, daí
prosseguindo com os festejos aos santos
padroeiros locais. O grupo é composto por
pessoas simples que, trajadas de marujos, são
capitaneadas geralmente pelo mais antigo,
entoam hinos e glosas populares ao som de
instrumentos musicais rústicos. Além do
exibicionismo dos personagens, envolve a
platéia em seus folguedos, brincadeiras e
bailados. Embora aponte vínculos de
religiosidade, é uma festa popular profana.
Em 1945, Daniel Pereira de Mattos,
maranhense que bem conhecia e participava
de festas da Barquinha em sua terra natal,
onde frequentou a escola de aprendiz de
marinheiro, mudou-se para o Acre e
conheceu a ayahuasca pelas mãos de
Raimundo Irineu Serra, quando se tratava de
90
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
uma enfermidade (Araújo, 2002).17
Acrescentando ao folclore junino o consumo
do chá, transformou a festa em religião. Mais
tarde, fundando uma sede, o grupo da
Barquinha passou a ser denominado de
Centro Espírita e Culto Oração Casa de Jesus
Fonte de Luz, mas não perdeu o nome
original. Entre as religiões que consomem o
chá, a Barquinha é a menos espalhada pelo
Brasil, concentrada na região amazônica e
mantém o seu maior centro em Rio Branco.
Fundamenta-se na crença cristã, mas admite a
incorporação de entidades típicas dos rituais
de influência afro-brasileira.
A festa da Barquinha foi transformada
por Daniel Pereira de Mattos em uma mescla
do folclore popular com a crença cristã e o
ritual indígena, além de associar também
crenças do candomblé e da umbanda. Os
adeptos da Barquinha vestem-se com roupas
de marinheiro e tomam o chá ayahuasca que,
segundo a crença, conecta o homem com o
divino e todos cantam os salmos; músicas que
teriam sido inspiradas por guias espirituais
invisíveis. No templo tem um altar onde as
imagens de santos católicos se mesclam com
outras da umbanda e do candomblé como o
caboclo, preto-velho e boiadeiro, entidades
que supostamente se manifestam para afastar
forças negativas, promover curas ou ajudar
alguém de algum modo. O ritual tem duração
média de quatro horas.
A sede do grupo religioso que
representa a Barquinha, fica situado em Rio
Branco, no Estado do Acre, é denominada de
Centro Espírita Luz, Amor e Caridade, foi
17
Araújo, W. S. O uso ritual da ayahuasca. SP, Editora
Mercado das Letras, 2002.
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
criado pelo mestre Juarez que, com mais de
oitenta anos de idade, ainda comandava o
Centro. No dia 29 de junho, começa a
celebração mais importante do ano, é o dia de
São Pedro e, dentro da igreja, orações e
salmos são entoados. Após beber o chá, todos
saem para o terreiro de umbanda anexo, onde
são feitas obras de caridade. Além desta
comemoração principal, durante todo o ano
de segunda a sexta feira, os “aparelhos”
(pessoas que dizem incorporar espíritos), sob
a ação do chá assoviam chamando a força do
Daime e acreditam que várias entidades do
além incorporam para expulsar espíritos
malignos e promover curas. No fundo da
igreja existem locais apropriados para
trabalho espiritual, são cubículos
denominados de “congá” onde se faz
consultas e aconselhamentos.
UNIÃO DO VEGETAL
Na década de 1960 formou-se, em
Porto Velho no Estado de Rondônia, a UDV -
Centro Espírita Beneficente União do Vegetal,
através de José Gabriel da Costa, o Mestre
Gabriel, como ficou conhecido. Nasceu a 10
de fevereiro de 1922, na Fazenda Pedra Nova,
em Coração de Maria, localidade próxima a
Feira de Santana na Bahia e, adulto, foi para a
região amazônica trabalhar nos seringais. A
UDV atualmente figura como uma das
maiores entre as religiões que fazem uso do
chá ayahuasca, seu ritual é discreto e sem
bailados, é mais fechada à comunidade
externa e sua estrutura vertical é bem
hierarquizada.
91
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
José Gabriel da Costa bebeu ayahuasca
pela primeira vez em 1959, na selva
amazônica, através de um antigo seringueiro
chamado Chico Lourenço. Em 22 de julho de
1961, ele funda a União do Vegetal na
Amazônia, em região próxima da fronteira
com a Bolívia. Em 1965, muda-se para Porto
Velho, Rondônia. Em 1967, o grupo sofre
perseguição por parte da polícia, que chegou
a prender Mestre Gabriel. Nessa época, a
UDV não tinha ainda registro oficial; era o
momento de fazê-lo (Labate, 2005).18
Por orientação do mestre Gabriel, a
UDV adota a fundamentação cristã e
reencarnacionista e o transe é conhecido
como borracheira que, segundo seu fundador,
significa uma “força estranha, a presença da
força e da luz do Vegetal na consciência
daquele que bebeu o chá”. Segundo seus
dirigentes, a bebida é um veículo de
concentração mental, seu efeito amplia a
percepção e permite melhor compreensão dos
fundamentos da espiritualidade.
A UDV indica para os associados
seguirem regras disciplinares rígidas, como o
não consumo de álcool e de fumo,
preservação da instituição familiar, além de
postura socialmente ética sobre todos os
aspetos. É contra o uso do chá fora do
contexto religioso, além de considerar
inadequado o uso indiscriminado por pessoas
não-iniciadas e sem a orientação de um
dirigente (mestre). O novato, para ser
iniciado, é indicado por um associado e
aprovado pelo líder da organização. A
autoridade é amplamente ostensiva e tudo é
18
Labate, B. C. e Goulart, S. L. O uso ritual das plantas de
poder. SP, Editora Mercado de Letras, 2005.
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
controlado rigorosamente seguindo a
hierarquia que, de baixo para cima, é formada
pelos sócios, depois discípulos do Corpo
Instrutivo, Corpo do Conselho e o Quadro de
Mestres, possuindo este último mais três
graus hierárquicos; Mestre Representante,
Central e Geral. Todos se diferenciam uns dos
outros por fardamento, função e tarefa. Os
cargos de comando e direção são efetivos,
outros menores são concedidos com base em
eleições, mulheres não chegam ao grau de
mestres, mas podem chegar ao Corpo do
Conselho e até dirigir sessões em ocasiões
especiais. O lema escrito de forma bem visível
em uma faixa ostentada na farda de um
Mestre é “UDV É OBDC”, para lembrar
sempre aos associados o dever, obediência e
disciplina. Tudo indica que esses
pressupostos foram herdados da disciplina
vivenciada pelo Mestre Gabriel enquanto foi
“soldado da Borracha.”
Na UDV ocorrem sessões regulares (de
escala) duas vezes ao mês e sessões extras
convocadas pelo mestre, além de sessões de
iniciação. Durante o ritual, os participantes
permanecem sentados e em absoluto silêncio,
o mestre preside a sessão e dosa a quantidade
do chá ayahuasca para o consumo de cada um
em particular. Todos, sem exceção,
simultaneamente bebem e ficam esperando a
“borracheira” como é conhecido o transe.
Para sair do recinto, principalmente em
função das possíveis reações do chá que
iniciam após trinta a quarenta minutos e vai
até três ou quatro horas, é preciso permissão
do mestre. O novato, ao sair, é seguido por
um ou dois associados que o vigia em tempo
integral. Isso vale para prevenir vertigens e
outras situações imprevistas durante o transe.
92
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
No ritual, a circulação das pessoas no salão se
faz no sentido anti-horário que, segundo
mestre Gabriel, “é o sentido da força”. A
prática da circulação anti-horária também
acontecia nas sessões mesmeristas até o fim
do século XIX e, por herança, em algumas
sessões kardecistas até a primeira metade do
século XX.
Na UDV, cerca de noventa minutos
após a ingestão do chá, como forma de
certificar-se dos efeitos, o mestre aborda cada
um dos participantes e pergunta “Como
vamos? Tem luz? Tem borracheira?” No
início do transe coletivo são entoados cânticos
(chamadas), que têm como proposta
transmitir ensinamentos. Decorridas cerca de
duas horas, quando todos estão em plena
“borracheira”, ouvem gravações de MPB.
Embora apresente controversas sobre o
termo, a Borracheira parece ser alusão do
mestre Gabriel ao momento conhecido nos
seringais como o período decorrido entre o
fim e o início da extração do látex, quando
ocorre ebriedade ou bebedeira dos
trabalhadores.
Segundo a crença da UDV, foi o Rei
Salomão quem descobriu como produzir o
chá e passou esse conhecimento a um homem
chamado Caiano. Séculos depois, Caiano teria
nascido de novo na Bahia, com o nome de
José Gabriel da Costa. Torna-se mestre
Gabriel após conhecer a ayahuasca nos
seringais de Rondônia e inicia a UDV. O chá é
conhecido nesta associação por três
sinônimos: Hoasca, Mariri ou Vegetal.
Andrade (1995)19 conta a trajetória de
19
Andrade, A. P. de. O fenômeno do chá e a religiosidade
cabocla. Um estudo centrado na União do Vegetal. SP,
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
vida de José Gabriel com detalhes, relata seu
envolvimento com o catolicismo popular no
interior da Bahia, como frequentou sessões
espíritas kardecistas e terreiros de candomblé
em Salvador e seu trabalho na extração da
borracha no Estado de Rondônia. Conta
como, em Porto Velho, Gabriel passa a
atender pessoas em sua casa jogando búzios,
relatando como e porque se torna Ogã e Pai
de Santo do Terreiro de Mãe Chica
Macaxeira. Por fim, define como ocorreu seu
retorno ao seringal, abrindo seu próprio
terreiro onde “incorporava” o caboclo Sultão
das Matas, com o objetivo de curar pessoas,
dar conselhos e orientar as caçadas.
Ao abrir seu próprio terreiro, José
Gabriel passa a dirigir um rito sincrético, uma
forma de xamanismo assemelhado à
pajelança amazônica que associa, na prática,
elementos religiosos afro-indígena, afro-
kardecista e do catolicismo popular. Foi no
seringal Guarapari, na região da fronteira
boliviana, que Gabriel recebeu pela primeira
vez o chá ayahuasca do seringueiro Chico
Lourenço, representante de uma tradição
indígena-mestiça de uso xamânico do chá.
Segundo Andrade (1995), em 1961,
José Gabriel reuniu as pessoas e disse: “Eu
quero falar pra vocês que tudo que o Sultão
das Matas faz, eu sei; Sultão das Matas sou eu”.
Este momento foi considerado como de
grande iluminação porque Mestre Gabriel, ao
postular para si mesmo o poder antes
atribuído à entidade Sultão das Matas, nega a
incorporação dos cultos de caboclo. A partir
daí, o transe deixa de ser entendido como
Dissertação de Mestrado, Instituto Metodista de Ensino
Superior, 1995.
93
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
mediúnico, não há mais incorporações nas
sessões. Mestre Gabriel reconhece um novo
tipo de transe e o denomina de borracheira,
justificado como sendo uma força
desconhecida que age dentro de cada um.
Para ele, neste estado da mente não ocorre
incorporação e sim iluminação. Como se diz
na UDV, “no decorrer da borracheira há uma
potencialização dos sentimentos, das
percepções e da consciência”. Essa descrição é
perfeita para caracterizar o que pode ocorrer
em um transe hipnótico quando bem
conduzido.
É certo que sugestões de melhorias,
curas e superações de vicissitudes, instaladas
na mente humana durante um transe,
funcionam de forma poderosa. No transe
produzido pelo chá ayahuasca as sugestões
são elaboradas, ampliadas, ajustadas e
adaptadas, de forma consciente ou não, por
cada pessoa, pelo mestre e pelo ambiente
onde ocorre a sessão. As sugestões, norteadas
pelo ritual e dogmas praticados e ensinados
pelos pares associados em suas crenças,
induzem princípios universais da ética e da
moral. A ordem religiosa estabelecida lembra
e introduz na mente de cada um, a idéia do
merecimento a uma vida digna e o direito da
pessoa ser feliz e de fazer o próximo feliz.
Condições indispensáveis para elevação da
auto-estima, superação de adversidade e
cura.
Nos anos 90, a União do Vegetal
começa a se expandir pelos centros urbanos
brasileiros e para o exterior, entrando na
América do Norte e na Espanha. Em 2006, a
Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos
deu autorização, por votação unânime, para
prática do culto em território americano. O
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
tribunal recusou os argumentos do governo
americano de que uma das substâncias
contidas na bebida ayahuasca está na lista de
entorpecentes proibidos pela legislação norte-
americana em vigor. A decisão do tribunal
levou em conta a permissão dos membros da
Igreja Nativa Americana, na grande maioria
indígena, de usar em seus rituais um chá
composto por peiote. Os índios norte-
americanos possuem o Ato de Liberdade de
Religião Indígena, aprovado em 1994, que
especifica autorização para o uso do cacto
Peiote para fins religiosos e, por analogia, o
consumo do chá também foi autorizado.
AYAHUASCA, PESQUISA DE CAMPO
Para conhecer o preparo, o uso e os
efeitos do chá, entre os meses de junho a
novembro de 2008, foram visitadas
comunidades que fazem uso regular da
ayahuasca e realizadas entrevistas com
participantes e dirigentes. As principais
foram: Barquinha, Colônia Cinco Mil e Chica,
localizadas em Rio Branco e Cobija na Bolívia,
além de seis menores afiliadas, dissidentes ou
independentes destas principais, situadas em
núcleos rurais e urbanos do Estado do Acre.
Também somaram outras entrevistas
realizadas na UDV- União do Vegetal na
Bahia,
Entre as comunidades pesquisadas,
60% são religiosas e vinculadas direta ou
indiretamente às três religiões mais
conhecidas. Outras 15% são relacionadas com
cultos ecológicos, reverenciam a natureza,
invocam proteção da floresta, árvores, lagos e
94
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
rios. Foram 15% as identificadas como
holísticas ou ecumênicas; aceitam parte da
cultura das comunidades religiosas e
acrescentam novos conceitos, mas sem
definição de dogmas ou crenças fechadas.
Finaliza-se a amostra com 10% comunidades
que não praticam culto religioso de qualquer
natureza e se declaram agnósticas, bebem o
chá, ouvem música clássica ou cânticos
gregorianos e afirmam que isso desencadeia o
autoconhecimento. Entre todas, 90% atribui
aos efeitos do chá relação com o mundo
espiritual ou divino, mas 100% consomem
ayahuasca e acreditam na sua força
terapêutica.
O objetivo desta parte dos estudos foi
verificar semelhanças e diferenças entre os
efeitos do transe provocado pela ingestão do
chá ayahuasca e o transe hipnótico
convencional, através da análise comparativa
de dois momentos distintos. O primeiro
representa a investigação realizada em 2008
nas comunidades ayahuasqueiras, para
conhecer o chá ayahuasca e o transe que
desencadeia, além de obter a quantidade do
chá para uso no segundo momento da
pesquisa realizada em Salvador, na Bahia, no
período de 1997 a 2002.
Para fundamentar uma descrição
precisa dos acontecimentos, procedimentos e
sensações, foram registrados em um diário de
campo, depoimentos dos envolvidos,
principalmente usuários do chá, para saber
opiniões sobre as práticas ayahuasqueiras.
Preservando a privacidade, foram omitidos
os nomes das pessoas nos depoimentos. Estas
anotações serviram posteriormente para a
análise fenomenológica das entrevistas e das
observações in loco, a fim de captar as
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
experiências, as vivências, a visão dos
entrevistados, interpretado suas narrativas.
Além dos registros, também foram gravados
em vídeo e áudio situações consideradas
relevantes como rituais das reuniões, feitura
do chá, espaços internos e externos dos locais
visitados para posterior análise das
frequências dos elementos mais comuns que
aparecem entre o transe hipnótico e o transe
produzido pela ayahuasca.
As entrevistas visaram informações
surveys, com o intuito de coletar dados sócio-
biográficos dos entrevistados, seguida da
aplicação de questionários semi-abertos com
questões estruturadas e não estruturadas,
totalizado 64. Abordava o conjunto da
experiência dos informantes com o chá, cujo
objetivo era ter acesso a dados que pudessem
ser confrontados com a experiência do transe
hipnótico. Foram questionados 42 homens e
22 mulheres, perguntando questões que
envolvesse, de algum modo, suas
participações nos rituais e no consumo da
ayahuasca.
A primeira fase da pesquisa de campo
demonstrou que o método de preparo do chá
ayahuasca varia conforme o grupo que o usa,
mas sempre o cipó é colhido, limpo e socado
pelos homens, as mulheres colhem e lavam as
folhas. Geralmente o cipó é cortado em
pedaços de vinte centímetros e amassado,
juntado dois terços de cipó para um de folha
e posto na água fervente, deixando que ferva
por mais de quatro horas, repondo certa
quantidade de água na medida de sua
evaporação. Depois de frio, o chá é coado e
armazenado em recipientes. Uma produção
pode durar anos e ser usada em vários
rituais. Em outro processo, podem ser
95
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
amassados o cipó e as folhas juntos e,
adicionando água fria, deixa em descanso por
aproximadamente 24 horas. Por qualquer
método, seu preparo é um longo processo.
As observações in loco, somadas aos
dados coletados, demonstraram que em todas
as sessões entram em transe em média 90%
das pessoas que experimentaram o chá
ayahuasca. Entre estes 70%, incluindo aí o
mestre, apresentaram sintomatologia
semelhante ao transe hipnótico de nível leve,
o que permite entrar ou sair do transe com
muita facilidade, dependendo apenas da
necessidade e de sua vontade. Permaneceram
em nível intermediário 20% e os 10% restante
apresentaram sintomatologia idêntica aos
níveis sonambúlicos e plenos do transe
hipnótico. O transe produzido pelo chá,
muito se assemelha aos provocados por
outros meios ou processos hipnóticos
simples, sem ingestão de qualquer
substância, exceto pelo fato de também poder
ocorrer efeitos aversivos provocados pela sua
ingestão.
Foi observado que os efeitos do chá
ayahuasca iniciaram após aproximadamente
trinta minutos e prolongaram-se por até três
horas, variando na intensidade a depender da
quantidade consumida e da propensão de
cada pessoa ao transe. A ayahuasca é capaz
de induzir transe com efeitos visionário que
podem variar entre um estímulo suave até
visões extremas e a escuridão total do
ambiente onde transcorre a sessão parece que
estimula este efeito. Durante as sessões,
algumas pessoas sentiram outros efeitos
aversivos de forma mais acentuada que se
caracterizam por uma série de reações como
náuseas, vômitos intensos, diarréias,
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
palpitação, taquicardia, tremores, midríase,
suor excessivo, perda da discriminação
espaço-temporal, ilusões sinestésicas, perda
ou diminuição de controle psicomotor e
vertigens.
Segundo depoimento do Mestre, para
evitar efeitos aversivos a dose deve ser
adequada a cada pessoa e proporcional a sua
massa muscular; se a dose for pequena não
produz o efeito desejado e se for excessiva
provoca náuseas e vômitos. Como diz
Callaway (2002),20 a náusea e o vômito são
provavelmente decorrentes do aumento
crescente dos níveis da serotonina o que
resulta numa estimulação em excesso do
nervo pneumogástrico e leva a espasmos e
contrações no trato intestinal. Porém, na
comunidade, esses efeitos aversivos são
considerados como castigo (peia),21 servem
para eliminar do consumidor maus
pensamentos ou atitudes.
Foi observado também em uma
segunda sessão para o consumo do chá, que
nada aconteceu com relação aos efeitos
esperados em pessoas que reagiram antes de
forma clássica. Também algumas pessoas não
apresentaram náuseas ou diarréias, mesmo
ocorrendo isto em sessão anterior e
20
Callaway, J. C. Fitoquímica e neurofarmacologia da
ayahuasca. In: Ayahuasca: alucinógenos, consciência e o
espírito da natureza. RJ, Editora Gryphus, 2002.
21
Peia – expressão utilizada nas religiões ayahuasqueiras
para designar a sensação de mal-estar, acompanhado por
vômitos e ou diarréia, provocada pela ingestão da
ayahuasca durante os rituais. Ocorre, eventualmente,
com alguns participantes, sendo considerada como um
fato normal e pode ser entendido como uma forma de
purificação e limpeza do corpo. Do ponto de vista
religioso, essa experiência também é considerada como
parte e do processo de aprendizagem e desenvolvimento
espiritual de cada um.
96
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
consumindo a mesma quantidade de chá.
Porém, todos que vivenciaram a experiência
declaram ter experimentado sensação de
bem-estar.
Após o consumo do chá ayahuasca, as
observações e os depoimentos colhidos
indicam que, não obstante aos sintomas
adversos, pode ocorrer o aumento de bem-
estar do indivíduo, criando fortes sensações
de tranquilidade, paz, felicidade, segurança,
conforto e contentamento, além de torpor,
distorção na percepção do tempo e hiper-
acuidade dos sentidos, principalmente da
audição. Aqueles que experimentaram efeitos
mais profundos de bem-estar descreveram
sensações de vôo pelos ares, idas a lugares
distantes, visões envolvendo locais e pessoas
(miração), relataram ainda a sensação de
comunicação com divindades e disseram
obter, durante o transe, respostas para seus
problemas e conflitos.
As narrativas feitas por quem consome
o chá são variadas e, de certo modo, se
ajustam à cultura, à crença e ao ideário de
cada um, são revelações que têm por base,
não só a formação cultural, mas a toda sorte
de informação que um indivíduo recebe
durante a vida, daí parece que derivam as
concepções religiosas ayahuasqueiras.
Devido a esses efeitos, a mistura dos dois
vegetais para a composição do chá ayahuasca
se justifica com finalidade mística em ritual
religioso, geralmente com objetivo de cura,
embora a pesquisa tenha demonstrado a
existência de grupo onde o chá é consumido
sem esse propósito.
Para estabelecer diferenças e
semelhanças entre o transe hipnótico e
consumo de chá ayahuasca, no segundo
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
momento da pesquisa realizada em Salvador
no período de dezembro de 2008 a março de
2009, foram selecionados aleatoriamente cem
voluntários que posteriormente passaram por
controlada experiência com o consumo do
chá ayahuasca. Para isso foi adquirido na
Colônia Cinco Mil, no Acre, cinco litros de e
desenvolvidas sessões com parte do grupo de
uma pesquisa anterior sobre transe hipnótico
convencional. A amostra foi aleatória e
aqueles que revelaram ter sentido mais o
efeito do chá foram os que também
apresentaram ótima suscetibilidade no transe
hipnótico provocado por induções
convencionais (sem ingestão de substâncias)
em sessões anteriores.
Na pesquisa realizada em Salvador-
Bahia, foram observados os efeitos e ouvidos
depoimentos, logo após as sessões de chá,
com descrições dos efeitos da ayahuasca. Dos
relatos e observações se extrai que, nesta fase,
ocorreram algumas manifestações extras ou
hiper sensoriais (isso também ocorreu,
embora com menor intensidade, nas sessões
de hipnose sem ingestão de substâncias). Os
efeitos descritos nas sessões não esgotam o
assunto, comparando depoimentos de
usuários em comunidades com os revelados
na experiência, pode ser observado que é
comum as pessoas que possuem vasta
vivência com a ayahuasca descreverem que
cada experiência tem sua própria dinâmica, a
cada sessão as sensações e visões se
modificam, portanto as possibilidades são
infinitas. Os tópicos apresentados a seguir se
referem às experiências mais comumente
vividas pelos indivíduos que consomem o
chá. Tem por base depoimentos que
confirmam as sensações descritas como iguais
97
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
as que sentiram quando antes foram
hipnotizadas de forma convencional. A
junção dos dados resulta na revelação de
algumas sensações experimentadas tanto na
hipnose convencional como em decorrência
do uso da ayahuasca:
 Aumento da sensibilidade auditiva
(percepção de sons ínfimos
imperceptíveis em condições normais).
 Transcorrer do tempo de forma
desigual, alguns segundos parece
demorar séculos e horas parecem que
se sucedem rapidamente em alguns
segundos.
 Aumento da sensibilidade do tato
pelo toque das mãos e do corpo,
(percebe pelo toque detalhes de
qualquer objeto ou superfície).
 Aumento da sensibilidade da visão e
da luminosidade.
 Aumento da sensibilidade do olfato
(percebe cheiros ou odores ínfimos
imperceptíveis em condições normais).
 Aumento da sensibilidade do paladar
(percebe sabores antes não
observáveis).
 Uso de linguagem simbólica altamente
acentuada, podendo se manifestar
através do movimento do corpo e
ocorrer também manifestação
simultânea de clariaudiência ou de
clarividência.
 Comunicação com outra pessoa, sem
uso de linguagem convencional, como
se estivesse lendo pensamentos.
 Capacidade de se lembrar de tudo que
ocorreu durante a vida, mesmo
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
remotamente (pantomnésia).
 Transfiguração da fisionomia (palidez
acentuada, roxo em torno dos olhos).
PESQUISA PARTICIPATIVA
Após levantamento do referencial
teórico, o autor envereda pela pesquisa do
transe em contextos religiosos e no consumo
do chá ayahuasca, com o objetivo de verificar
qual a relação entre esses elementos e transe
hipnótico convencional, tema que foi objeto
de longa pesquisa anterior (Carreiro, 2008).
Torna-se um observador participativo
quando, pela primeira vez, autorizado por
um Mestre da UDV, em Salvador, participou
de uma sessão. Essa incursão começa por
justificar ao Mestre que sua participação seria
como pesquisador e não como quem estava
em busca de uma religião para se afiliar. Na
sessão tinha em média trezentas pessoas, o
rito teve início às vinte horas e término às
duas horas do dia seguinte, tudo transcorreu
dentro do esperado e de acordo com a teoria.
O chá foi oferecido, variando a quantidade de
acordo com a intuição do Mestre que
distribuía para uns, um copo cheio e para
outros, meio copo, um pouco menos, um
pouco mais, porém todos os presentes na
sessão beberam simultaneamente.
Na UDV, meia hora depois da ingestão
do chá, os efeitos iniciaram, a primeira
sensação foi de não sentir o corpo. Dava
ainda pra observar as pessoas aos arredores,
alguns vomitavam, outros apresentavam a
sintomatologia de um transe hipnótico
profundo, ocorreram sensações imediatas de
98
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
considerável aumento dos sentidos,
principalmente auditivos e visuais, mas não
passou disso. Três horas depois, tudo estava
voltando à normalidade e todos saíram do
salão para degustar frutas como abacaxi,
melancia e laranja. A explicação ouvida foi
que essas frutas cortariam a sensação de mal-
estar no estômago provocado pelo chá.
Cinco pessoas que participaram da
sessão na UDV foram convidadas para uma
sessão de hipnose comum e, uma semana
depois, isto de fato aconteceu.
Impressionantemente os cincos entram em
transe e apresentaram a mesma
sintomatologia do transe vivenciado, após o
consumo do chá ayahuasca, na UDV. Porém,
na sessão de hipnose não aconteceu mal-
estar, náuseas ou vômitos. Descreveram
sentir mesmas sensações e apresentaram as
mesmas mudanças fisiológicas do transe
hipnótico descritas por Carreiro (1997).22
Estava construída a hipótese para a nova
pesquisa “o transe hipnótico é semelhante ao
transe produzido pelo consumo do chá
ayahuasca”, porta aberta para um longo
caminho e fascinante investigação que
resultou neste livro.
Os passos seguintes foram ampliar o
campo teórico e viajar para a Região
Amazônica para investigar in loco a gênese
das religiões e comunidades ayahuasqueiras,
saber sua história, práticas, feitura, uso e
efeitos do chá. Nessa missão, o que mais
impressionou foram os fatos acontecidos na
Colônia Cinco Mil, no dia que iniciava a
feitura de chá. Após entrevistas com
22
Carreiro, A. A. Fenômenos hipnóticos. BA, Editora EDUFBA,
1997.
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
membros e dirigentes da comunidade para
obter respostas sobre o local onde teve início
o CEFLURIS, foi manifestado o desejo de
adquirir cinco litros de chá para trazer para
Salvador e continuar a pesquisa com um
grupo baiano. O responsável pela produção,
pessoa extremamente serena e simpática, fez
poucas perguntas, bebeu e ofereceu para
experimentar com ele um chá especial, o mel
de ayahuasca, um líquido bem denso, parece
um melaço de cana na consistência e na cor,
dizia ele que o mel é a ayahuasca concentrada.
A dose servida foi mínima, medida na
própria tampa de uma garrafa pet pequena, o
gosto não era amargo como o do chá comum,
juntos, os dois beberam.
O homem que bebeu e serviu o mel de
ayahuasca, na Colônia Cinco mil, continuava
seus afazeres e, vez por outra, parava e
olhava na direção do observador, a sensação
era que estavam lendo pensamentos um do
outro e a impressão era de que se conheciam
desde criança, como se fosse irmãos, mas
nunca tiveram qualquer informação um do
outro ou se viram antes. Cerca de uma hora
mais tarde, ele disse “sei que você deseja
levar o chá e sei como será o encontro com
amigos em Salvador, verá que o chá é muito
mais poderoso do que imagina e, quando
descobrir isso, vai contar pra muita gente”.
Foram fornecidos cinco litros de chá e um
litro de mel de ayahuasca e detalhadamente
instruído de como deveria ser servido nas
sessões que aconteceria depois em Salvador.
Ao sair da Colônia Cinco mil, a meta
era conhecer a sede da Barquinha, distante
cerca de quatro quilômetros. Mas o efeito do
mel da ayahuasca ainda não tinha passado, as
sensações de paz e leveza eram imensas. Os
99
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
espaços da Barquinha foram observados com
detalhes, a pracinha e um coreto no centro, a
Igreja, pinturas, desenhos e o altar.
Finalmente visita um salão anexo aos fundos
da igreja e, ali, pessoas, sobre a ação do chá
ayahuasca, assoviavam para chamar as
entidades espirituais da umbanda e faziam
“passes mediúnicos”.
Sem vocação religiosa e sempre
assumindo comportamento de pesquisador
científico, a idéia era buscar explicações
lógicas e racionais para o que via e sentia no
ambiente da Barquinha, mas
surpreendentemente, o observador cético foi
tomado pela atmosfera religiosa do local,
passando a agir como aquelas pessoas como
se todos, simultaneamente, o observador e os
observados, estivessem comprometidos com
os acontecimentos, tendo os mesmos
pensamentos. Essas ações estranhas só se
explicam pela ação do mel que tomara,
quatro horas antes, na Colônia Cinco Mil.
Diferente do chá, o mel de ayahuasca, não
causa mal-estar, náusea ou vômitos e
decididamente, os efeitos são superiores na
intensidade e duração.
Estava apenas começando uma série
de entrevistas e visitas pela Região
Amazônica que serviram de base para a
segunda etapa da pesquisa desenvolvida na
Bahia. Em Salvador foram realizadas vinte
sessões entre janeiro de 2009 a novembro de
2010, variando de um para outra, o número
de participantes. Iniciando com duas sessões
de 30 pessoas, depois reduzindo
gradativamente para uma sessão com 20,
uma de 15, três de 10, três de 5, cinco de 4,
duas de 3 e duas com 2 pessoas, o critério
para a redução foi a seleção de quem mais
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
reagiu com “mirações”, quem declarou obter
benefícios terapêuticos e quem menos sofreu
mal-estar gastro-intestinal. O intervalo entre
as sessões foram, em média de trinta dias.
Nas sessões realizadas em Salvador, a
proposta foi que, sentados em círculo, todos
ingeriam o chá e evitavam-se falar ou fazer
qualquer ruído no ambiente, apenas ouviam
música suave, do tipo para relaxar, e em
volume bem baixo. Sempre duas ou três
pessoas não bebiam o chá e ficava
responsável pela condução da sessão,
inclusive das gravações de áudio e vídeo. Das
20 sessões realizadas, o observador participou
ativamente de cinco, bebendo o chá e
interagindo diretamente com o grupo para
vivenciar as sensações do efeito da ayahuasca,
isso permitiu melhor descrição e
entendimento posterior das entrevistas feitas
aos membros do grupo.
Em Salvador, todas as sessões foram
gravadas em vídeo e áudio e isso permitiu
perceber que durante a ação do chá em duas
sessões, um grupo de 3 e depois de 5 pessoas
parecia conversar, todos faziam perguntas e
tinham respostas sobre o que sentiam. Mas
quando o vídeo foi analisando
posteriormente, ficou claro que ninguém
tinha falado nada, se quer abriram a boca. É
como se durante a sessão as pessoas se
comunicassem mentalmente. As observações
e as sensações presenciadas e vivenciadas
pelo observador serviram de dados para as
conclusões a que chegou.
A ciência ainda caminha no sentido de
esclarecer completamente como os elementos
contidos no chá ayahuasca agem no organismo
humano. Na maioria das vezes é observado
exagero de quem se coloca contra o seu uso,
100
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
chegando até formular declaração de
conhecimento de causa sem a menor
fundamentação ou domínio sobre o assunto.
Embora as pesquisas revelem que o chá não
vicia e não causa dependência física ou
psicológica, é relativamente grande a
discussão acadêmica quanto aos efeitos que
produz. A literatura científica sobre o tema é
controversa, ora considera como alucinógeno,
ora considera como um enteógeno,23 bebida
sagrada e inofensiva à saúde e indicada como
terapia. Parece que as pessoas que o usam a
ayahuasca se confrontam com os seus medos
mais profundos e o resultante dessa
confrontação é a ultrapassagem desses
medos. Após o efeito sentem-se renovados e
renascidos.
FARMACODINÂMICA DA AYAHUASCA
Oliveira (2010)24 mostra uma ampla
revisão bibliográfica e aponta recentes
descobertas envolvendo a farmacologia e a
toxicologia da ayahuasca. Conclui afirmando
que a utilização da ayahuasca é uma polêmica
que ainda depende de vários estudos
farmacocinéticos, farmacodinâmicos e
toxicológicos para que se consiga chegar a um
consenso de seu uso com segurança. Diz que
os estudos atuais não são suficientes para se
23
Enteógeno significa en = dentro/interno, theo =
deus/divindade, genos = gerador. Pode ser entendido
como um facilitador da comunicação com o Deus interno
que habita na mente humana (N. do A.).
24
Oliveira, C. D. R. e Pires, A. P. S. Ayahuasca: uma revisão
dos aspectos farmacológicos e toxicológicos. SP, USP,
Revista de Ciências Farmacêuticas Básica e Aplicada, p.15-
23, 2010.
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
saber quais efeitos indesejáveis podem vir a
ser manifestados pelo seu uso em longo
prazo. No entanto, mesmo sem dados
científicos que indiquem riscos à saúde,
Oliveira reconhece a importância do uso
terapêutico da ayahuasca quando associada à
religiosidade.
Para Stuckey (2005),25 embora existam
poucas conclusões sobre a ação farmacológica
em indivíduos que tomam ayahuasca ou sobre
a eficácia de suas possíveis aplicações
clínicas, há evidências de benefícios e de suas
qualidades psicoterapêuticas. Pesquisa com
uso do EEG confirma que o transe produzido
através do consumo da ayahuasca, provoca
uma mudança física e afeta diretamente o
cérebro, levando o pensamento para uma
zona da memória onde toda vivência será
rememorada, revelando fatos ocorridos no
decorrer da vida. No transe, a frequência de
ondas cerebrais passa do nível Beta (ativo)
para o nível Alfa (relaxado, entre 8 e 12 Hz)
ou Teta (profundamente relaxado, entre 5 e 8
Hz). Simultaneamente ocorre redução do
ritmo respiratório de 12-14 para 4-6 incursões
por minuto, redução de oxigenação em até
20%, redução do ritmo metabólico de 25 a
30%, redução da pressão sanguínea, mudança
no pH e nos níveis de bicarbonato de sódio
do sangue. Também é observado aumento da
acuidade e sensibilidade dos sentidos;
aumento da audição, visão e tato. Se atingido
o nível Delta, o transe pode chegar ao
máximo e se caracterizar como êxtase.
Observações de frequências de ondas
25
Stuckey, D. E.; Lawson, R. e Luna, L. E. EEG gamma
coherence and other correlates of subjective reports
during ayahuasca experiences. EUA, Journal of
Psychoactive Drugs, n.37, v.2, p.163-78, junho, 2005.
101
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
cerebrais idênticas foram realizadas durante
transes hipnóticos produzido por meios
convencionais, sem ingestão de qualquer
substância.
As pesquisas com a ayahuasca também
revelam que a folha do arbusto chacrona
(Psychotria viridis) contém um princípio
ativo, o DMT (N,N, Dimetiltriptamina), um
composto químico que tem semelhança
estrutural com a serotonina, um importante
neurotransmissor do sistema nervoso central,
ambos tem a função de “ligar” um neurônio
ao outro transmitindo impulsos
eletroquímicos (Jacob, 2005). 26 Quando
administrada por via oral, o DMT é
decomposto pela monoaminoxidase (MAO),
tornando-se inativa. O cipó jagube
(Banisteriopsis caapi) contém alcalóides beta-
carbolinas: a Harmina, a Tetrahidroharmina e a
Harmalina. Esses alcalóides inibem a atuação
da enzima MAO, o que evita que esta torne
inativa a ação do DMT contida na folha.
Assim, a interação entre esses alcalóides e o
DMT permite que a bebida produza
alterações no corpo e no psiquismo
(Callaway, 1998).27
Para a ciência, a similaridade entre a
serotonina e o DMT causaria a maior parte dos
efeitos do chá ayahuasca sobre o sistema
nervoso central, já que ambas fazem ligações
entre os neurônios, produzindo pensamentos,
26
Jacob, M. S. e Presti, D. E. Endogenous psychoactive
tryptamines reconsidered: an anxiolytic role for
dimethyltryptamine. Amsterdã, Medical Hypotheses, n.64,
p.930-7, 2005.
27
Callaway, J. C. e Grob, C. S. Ayahuasca preparations and
serotonin reuptake inhibitors: a potential combination for
severe adverse interactions. EUA, Journal of Psychoactive
Drugs, n.30, v.4, p.367-9, out-dez, 1998.
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
visões e sensações (Goodman, 2007).28
Digamos que sua ação acelera e aumenta o
processo cognitivo e, assim, pode revelar
respostas antes não imagináveis sobre
questões e inquietações de ordem emocional,
moral e ética. Sobre o DMT, as pesquisas se
iniciam com os textos de Terence McKenna
(1993, 1995 e 1996).29 O DMT é reconhecido
na literatura como um neurotransmissor
químico presente naturalmente no corpo
humano bem como em muitas plantas,
também é assegurado que não causa
dependência física ou psicológica. Mas, não
existem ainda respostas conclusivas sobre as
funções deste DMT interno, tão pouco sobre o
órgão responsável por esta produção, embora
essa função seja especulativamente atribuída
à epífise, conhecida como glândula pineal.
Embora sem prova científica, há uma série de
apontamentos, hipóteses e teorias neste
sentido. Sabe-se que a quantidade de DMT
produzidas no cérebro pode criar o estado
mental de transe que também pode ser
desencadeado pelo consumo de DMT externo
contido nos vegetais enteógenos.
O chá ayahuasca é considerado por
alguns autores como um expansor da
consciência e não como um alucinógeno.
Consideram que seu uso em contextos
ritualísticos religiosos serve para promover
um encontro com o divino ou com uma
natureza divina, por isso prefere utilizar o
termo enteógeno ou gerador da divindade
interna. Tem como objetivo promover contato
28
Goodman, L. S. e Gilman, A. As bases farmacológicas da
terapêutica. 11ª ed., RJ, Editora McGraw-Hill, 2007.
29
McKenna, T. Alimento dos Deuses. RJ, Editora
Record/Nova Era, 1995 - McKenna, T. Retorno à cultura
arcaica. RJ, Editora Record/Nova Era, 1996.
102
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
com o mundo espiritual para obter
orientação, realizar diagnóstico e a cura de
enfermos. O termo “enteógeno” tem origem
grega e significa “Deus dentro”, mas na
medicina nativa peruana esses vegetais são
chamados de “plantas-mestras” por
proporcionar, aparentemente, comunicações
espirituais que ensinam procedimentos de
cura (Tupper, 2002 e Luna, 1984).30, 31 Mas o
certo é que esses vegetais podem levar os
indivíduos ao transe ou aos mesmos estados
mentais atingidos por técnicas hipnóticas
comuns como rituais, danças, orações,
devoção, meditação.
O termo alucinógeno é carregado de
preconceito, pois expressa alucinação,
alienação, vício, dependência e para
diferenciar o vegetal alucinógeno do
enteógeno, pode ser apresentado o
argumento comprovado na pesquisa de
campo. Quem toma o chá ayahuasca,
enquanto durar seus efeitos, pode sair do
transe e voltar à consciência normal, pode
também retornar ao transe quando quiser.
Isso não acontece com o alucinógeno, uma
vez consumido, seus efeitos só terminam com
um tempo certo, não podem ser suspensos
apenas pela vontade do usuário. Contudo, os
críticos contrários consideram que o objetivo
do uso do chá é induzir o transe para obter
visões psicodélicas, portanto alucinógeno no
sentido que as visões não são reais.
30
Tupper, K. W. Entheogens and Existential Intelligence: The
use of plants teachers as Cognitive Tools. Canadá,
Canadian Journal of Education, v.27, n.4, p.499-516, 2002.
31
Luna, L. E. The concept of plants as teachers among four
mestizo chamans of Iquitos, northeastern Peru. Amsterdã,
The Journal of Ethnopharmacology, n.11, p.135-156,
1984.
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
Depoimentos colhidos nas entrevistas
e a experiência pessoal induzem a crer que a
ayahuasca produz ampliação da percepção
que faz com que se veja nitidamente a
imaginação, as chamadas mirações, acessando
níveis psíquicos inconscientes e outras
percepções da realidade, mas o usuário fica
sempre consciente do que acontece e,
geralmente, com domínio suficiente para sair
ou retornar ao transe quando quiser. Os
adeptos ao consumo do chá consideram esse
estado mental como supramental e de
hiperlucidez.
Dada a similaridade das descrições das
experiências do transe hipnótico e do transe
espiritual, incluindo-se também os
provocados por certas substâncias
psicoativas, cientistas questionam se práticas
místico-religiosas estimulariam uma
produção extra da molécula DMT pelo
organismo. Isso implica na hipótese que todo
transe é provocado pelo aumento de DMT no
organismo humano, seja endógeno ou
ingerido. Rick Strassman especula a
possibilidade de que essa molécula possa ser
secretada pela glândula pineal nessas
situações.
Strassman (2001)32 publicou os
resultados de sua pesquisa, quando
investigou os efeitos da substância N,N-
Dimetiltriptamina (DMT), classificando como
um poderoso enteógeno que afirma ser
produzido por plantas e animais, assim
também nos organismos humanos, e é o
principal ingrediente do chá ayahuasca.
32
Strassman, R. DMT: The Spirit Molecule: A Doctor's
Revolutionary Research into the Biology of Near-Death
and Mystical Experiences. EUA, Park Street Press, 2001.
103
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
Investigou e concluiu que o DMT produz um
efeito extremamente poderoso, projeta a
mente para fora do corpo e dentro de outra
dimensão.
À medida que Rick Strassman
administrava DMT aos seus voluntários,
percebia, pelos comentários ao longo do
tempo, que todos eles, mesmo sem se
conhecerem e não terem nada em comum em
suas formações, pareciam reproduzir
pensamentos comuns a todos. Afirma
também que no chá ayahuasca, por ser uma
mistura de dois vegetais, o efeito dura muito
mais, cerca de três horas, enquanto o DMT,
usado em sua forma pura como fez Rick
Strassman com seus voluntários, dura cerca
de vinte minutos.
Graham Hancock (2005),33 comentando
a pesquisa de Rick Strassman, afirma que já
se sabe que o DMT ocorre no metabolismo
humano natural, mas não se tem certeza onde
e como ele é produzido no organismo. Para
Hancock, Rick Strassman encontrou indícios
que apontam para a possibilidade de ser a
glândula pineal a fonte desse composto, mas
isso ainda é uma hipótese não confirmada
cientificamente. A pesquisa de Strassman não
é reducionista, ele não reduz a produção do
DMT à mera química cerebral, tenta uma
explicação intuitiva que transcende os limites
do procedimento cartesiano laboratorial e
admite certo grau de espiritualidade como
pressuposto para suas conclusões.
Hancock (2005) acredita que o cérebro
é um receptor, semelhante a um receptor de
televisão e, para a maioria de nós, esse
33
Hancock, G. Supernatural: Meetings With The Ancient
Teachers of Mankind. UK, Editora Century, 2005.
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
receptor está sintonizado no “Canal Normal”
o tempo inteiro. Mas quando a substância
DMT age no cérebro humano, seja produzida
em excesso pelo próprio cérebro, por
exemplo, quando se pratica hipnose
convencional ou quando se consome
ayahuasca, a sintonização do aparelho
receptor é alterada e, então, passa a sintonizar
aquilo que o Rick Strassman chamou de
“Canal DMT”. Neste caso outras dimensões
da mente, que não são acessíveis em estados
ordinários de consciência, durante o transe
são subitamente acessíveis.
Para Hancock, a ação do DMT no
cérebro humano parece abrir um portal
dentro da mente que leva os pensamentos
para outra dimensão. Rick Strassman está
absolutamente convencido que a realidade
percebida pelos sentidos humanos é muito
mais ampla e complicada do que se imagina,
o que se percebe é como um iceberg, a ponta
está acima da superfície, mas 90% dele estão
abaixo. A consciência diária normal pode ser
apenas a ponta, os outros 90% da realidade
podem estar fora da percepção humana, mas
pode ser vitalmente importante e, para
encontrá-la, a forma de acesso é o estado de
transe conquistado através do DMT.
Há unanimidade entre os autores
pesquisados quando afirmam que, embora a
farmacodinâmica do chá ayahuasca seja objeto
de estudo científico, o efeito do DMT sobre a
consciência humana não é um problema
satisfatoriamente respondido. Dentro da
perspectiva sistêmica, fica complicado
explicar como as propriedades do chá
ayahuasca, isoladamente identificadas a partir
de pesquisas reducionistas, agem no
organismo humano; o quê de fato acontece
104
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
quando o chá é ingerido, se são ou não
mantidas suas propriedades originais na
interação com tantos outros elementos do
metabolismo e do psiquismo. Também parece
difícil saber como algo tão
farmacologicamente sofisticado foi
descoberto e usado em culturas primitivas.
É fato que para a ciência atual, o efeito
do chá ayahuasca ainda é misterioso. Também
é difícil explicar como acontece a produção
do transe, induzidos através de meras
sugestões verbais ou visuais e que podem até
ser praticados por auto-sugestão. É preciso
questionar porque a sintomatologia e os
efeitos do transe hipnótico também são
produzidos pelo chá ayahuasca. Associar estas
questões e relacionar com o DMT talvez
possa contribuir para interpretar um lado
pouco conhecido e muito mistificado do ser
humano, o transe hipnótico.
A planta inibidora da MAO mais
comum depois do cipó jagube ou mariri
(Banisteriopsis caapi) é a arruda da síria
(Peganum harmala), um membro da família
Nitrariaceae. É uma planta oriental cujas
sementes são altamente potentes em
substâncias inibidoras da MAO, fácil de
encontrar e de preparar, seus efeitos são
muito próximos dos produzidos pelo chá
Ayahuasca. Mas, as substâncias que provocam
o efeito do chá ayahuasca podem ser também
extraídas de sementes de Anadenanthera
peregina ou de cascas de caules de: Virola,
Piptadenia, Mimosa hostilis, Diplopterys
cabrerana (Banisteriopsis rusbyana) e toalha e parte-a com um martelo
Lespedeza bicolor (Thompson, 1987). Com 34
34
Thompson, A. C.; Nicollier, G. F. e Pope, D. F.
Indolealkylamines of Desmanthus illinoensis and their
growth inhibition activity. EUA, Journal of Agricultural
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
mesma finalidade é também muito usada a
casca da raiz da jurema-preta (Mimosa
hostilis) e a flor do ilinóis (Desmanthus
illinoensis), ambas descendentes da família
Fabaceae. No entanto, entre todos esses
vegetais, os usuários dizem que a experiência
com o chá ayahuasca tradicional produz
efeitos mais suaves e mais seguros.
AYAHUASCA COM JUREMA-PRETA
A feitura do chá ayahuasca obtido com
a mistura do cipó jagube e a raiz da jurema
preta é detalhada e amplamente ensinado na
internet. Entre os endereços eletrônicos
disponíveis, o website http://www.ayahuasca-
info.com é um que melhor especifica os
ingredientes e procedimentos necessários ao
feitio na forma como segue:
Igredientes:
 50 gramas do cipó jagube
(Banisteriopsis caapi).
 12 gramas de casca da raiz de jurema-
preta (substitui 50 gramas de folhas
de chacrona (Psychotria viridis).
 Vinagre branco.
 Água destilada.
 4 panelas de aço inoxidável ou de
barro (não usar de alumínio).
Procedimentos:
1. Embrulha o cipó jagube numa
até estar esbagaçado.
2. Pulveriza a casca da raiz da
Food Chemistry, n.35, v.1, p.301-5, maio, 1987.
105
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
jurema-preta com um moedor de
café ou separar em pequenos
pedaços manualmente.
3. Numa panela, coloca a jurema-
preta, uma colher de chá de
vinagre, e cerca de um litro de
água destilada.
4. Em outra panela, coloca o cipó
jagube, acrescenta também um
litro de água e uma colher de chá
de vinagre.
5. Deixa esquentar em fogo brando
por 2 a 3 horas até o nível de
água baixar. Não deixar entrar
em ebulição, manter abaixo desse
ponto, sem borbulhar,
evaporando lentamente.
6. Manter a jurema-preta e o cipó
jagube separados, coar com pano
limpo 4 a 5 vezes.
7. Colocar o chá de jurema-preta
numa panela e o chá do cipó em
outra, levar ambos ao fogo
brando sem borbulhar,
evaporando lentamente.
8. Depois de separar o líquido, deve
reaproveitar o bagaço da jurema
e do cipó para mais 3 nova
fervura, utilizando a mesma
quantidade de água e vinagre e o
mesmo processo.
9. O chá da porção já filtrada deve
ser mantido separado e em fogo
brando enquanto se faz a
segunda e terceira porção. Isso
requer 4 panelas para serem
usadas paralelamente.
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
10. Com a evaporação durante o
processo, as 3 porções obtidas
como o chá da jurema deve estar
reduzido a 1 a 1/5 litro. O mesmo
acontece com o chá do cipó.
Coloca-as ambas, em vasilhames
separados, no frigorífico durante
a noite.
11. No dia seguinte coar novamente
o chá de jurema e reaquecer
ambos. Estará pronto para uso.
Deve se bebido quente,
misturando os chás ou
consumindo primeiro a jurema e
logo depois o chá do cipó. A dose
será o mínimo de meia e máxima
de uma xícara de chá para cada
usuário.
O website http://www.ayahuasca-
info.com pesquisado sugere que seja
preparada duas doses para cada pessoa,
considerando que alguém não consiga
manter o chá no estômago por vomitar
prematuramente e, assim deve beber a outra
dose.
O preparo do chá ayahuasca em
pequena quantidade é muito praticado nas
comunidades do Alto Amazonas. Alí se faz e
se consome ayahuasca como se fosse um
“cafezinho” de uso comum nas grandes
cidades. Seu preparo é simples:
 500 gramas desfiado do cipó (B.
caapi) por pessoa.
 85 gramas de folhas de chacrona (P.
viridis) por pessoa.
 Colocar na panela de barro ou de
aço inoxidável entre camadas
106
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
alternantes de folhas e cipó,
cobrindo depois com água. A poção
é cozida em fogo brando durante 4
horas.
 O líquido é coado e recolhido.
 Usando a mesma mistura, a panela
é novamente cheia com água fresca,
e colocada em lume brando durante
mais 4 horas.
 O líquido é novamente coado e
recolhido. Desfazendo-se em
seguida dos ingredientes que
sobram na mistura.
 Ambas as quantidades de líquido
são misturadas e fervidas em fogo
brando para concentrar, até que
reste uma quantidade aproximada
de 1/5 de litro (suficiente para 2
dose).
 É durante a evaporação que o chá
concentra as substancias contida na
folha e no cipó, mas com o cuidado
de não deixar ferver demasiado alto
(ebulição) para evitar a degradação
dos ingredientes ativos e também a
caramelização dos açúcares contidos
na mistura, o que pode resultar
numa poção final muito espessa.
LEGALIDADE DA AYAHUASCA
O uso do DMT é proibido pela
Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas
da ONU - Organização das Nações Unidas,
firmada em Viena em 1971, da qual o Brasil é
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
signatário. Por conta desta restrição foi
incluído na lista das substâncias psicoativas
proscritas da Divisão de Medicamentos do
Ministério da Saúde brasileira durante os
anos de 1985 a 1987. Enquanto neste mesmo
período, uma comissão multidisciplinar
estudou as formas de consumo do psicoativo
e, como resultado deste estudo, o (extinto)
Conselho Federal de Entorpecentes elaborou
parecer retirando a substância da ilegalidade.
Em 1992 houve nova tentativa de
proibição do consumo do DMT no Brasil,
tendo sido organizada uma segunda
comitiva, que reafirmou a decisão anterior de
liberalização do uso para fins religiosos. Após
dezoito anos de estudos, o CONAD -
Conselho Nacional Antidrogas do Brasil,
retirou a ayahuasca da lista de drogas
alucinógenas conforme portaria publicada no
Diário Oficial da União em 10/11/2004,
predominando o entendimento
fundamentado no Direito Constitucional de
liberdade de culto e religião (Constituição
Federal de 1988, artigo 5º, inciso VI). Também
nada consta na legislação penal brasileira
sobre os componentes ativos contidos nos
vegetais que compõem o chá ayahuasca,
portanto em tese seu uso é facultado.
Do ponto de vista internacional, existe
uma ação processual em curso na ONU no
sentido de reconsiderar o uso do chá
ayahuasca como facultado em ritos religiosos
no Brasil. A ONU já emitiu parecer favorável
recomendando a flexibilização das leis em
todos os países do mundo no que se refere ao
uso da ayahuasca e, no dia 25/01/2010, em
resolução publicada no “Diário Oficial da
União”, o governo brasileiro oficializou o uso
religioso do chá ayahuasca. Sem força de lei
107
CPLE – Caderno Produção de Leitura e Escrita
esse texto, formulado depois de décadas de
negociações e estudos realizados pelos órgãos
de combate às drogas, define as
responsabilidades das religiões
institucionalizadas e garante o direito ao
consumo do chá. Por outro lado, ele veta a
comercialização e a propaganda do composto
feito a partir do cipó mariri e das folhas da
chacrona, além de sugerir que qualquer
tentativa de turismo motivado pelo chá seja
coibida.
O texto publicado no “Diário Oficial”
25/01/2010 recomenda que as entidades façam
uma entrevista com aqueles que forem ingerir
o chá pela primeira vez e evitem seu uso por
pessoas com transtornos mentais e por
usuários de outras drogas. Segundo esta nova
normatização das regras do uso religioso da
ayahuasca, as seitas cadastradas pelos órgãos
passam a ser totalmente responsáveis pelo
que acontece com seus adeptos durante os
rituais. Cabe a elas decidir quem está apto ou
não, tanto do ponto de vista médico quanto
do psicológico, a tomar o chá. Também não
há regras de dosagem: quem serve a bebida
decide quanto o usuário deverá ingerir. Por
fim, a determinação recomenda que todos os
participantes permaneçam nas igrejas até o
final dos rituais e dos efeitos do chá.
Na Colômbia, Bolívia, Peru, Venezuela
e Equador o consumo e a administração do
chá ayahuasca sem envolvimento religioso é
tradição antiga. Sua aplicação é feita por uma
espécie de médico naturalista ou
“curandeiros pelas plantas”, que se
apresentam como vegetalistas ou herboristas
e ajudam as pessoas das áreas rurais e as
populações pobres de áreas suburbanas que,
doentes, não têm condições de ser assistidas
Vol I/Nº 1/ Ano I (Set/20I0)
pela medicina convencional. Isso também
ocorre no Brasil, principalmente em muitas
localidades dos Estados do Acre, Rondônia e
do Amazonas.
No Peru, o chá ayahuasca é conhecido
também como la purga, devido às suas
características de provocar diarréias que são
entendidas como processo de desintoxicação
e em certas regiões da Colômbia, com essa
mesma finalidade, o chá é denominado de el
remedio. Sem envolver religião, estudiosos
levantam também hipóteses de que o chá
ayahuasca contenha propriedades
antimicrobianas, o que o tornaria efetivo no
combate a vermes ascarídeos e protozoários.
É só no Brasil que acontece o uso do chá,
associado ao sincretismo religioso, por
populações não indígenas.
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