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MOUNIER *
Introdução
1. A ética personalista
O termo ética deriva da palavra grega ethos, que significa modo de ser de uma pessoa,
comportamento, conjunto de valores e princípios que norteiam a conduta humana na
sociedade. Ethos é uma derivação de dois outros vocábulos gregos: êthos com significado de
costumes, modo de agir habitual; e éthos no sentido de morada, abrigo. Pode-se, portanto,
dizer que a ética significa bons costumes, modo de ser ou caráter de uma pessoa, é a casa, a
morada, a acolhida, o abrigo protetor e seguro da vida do homem em sociedade (cf. LIMA
VAZ,1993, p. 12-13). Mas também diz respeito ao estudo de um certo tipo de experiência
humana, ao comportamento moral das pessoas. A moral (do latim mores) significa costumes,
normas, leis, regras, hábitos, que regem a vida em sociedade. Assim, o objeto de investigação
da ética é a moral. A partir do ethos, o espaço do mundo humano (sociedade) torna-se
habitável para o homem, torna-se espaço de afirmação do humano. Com o ethos, a
solidariedade, a cooperação e a alteridade passam a ser referência da vida em sociedade,
contrapondo-se ao egoísmo, ao individualismo, à busca esquizofrênica pelo lucro e à barbárie,
esta última expressa nos atos de violência física e psicológica, na miséria e na fome.
A ética é, assim, a excelência do agir humano, o agir humano que não fica indiferente
aos atos desumanos. Trata-se do agir humano voltado para o que é justo e bom.
A referência da ética é o outro. Portanto, o ser humano é um ser capaz de refletir sobre
a sua própria existência e o seu agir no mundo. Nós, seres humanos, podemos fazer uma
reflexão ontológica e ética, como partes constitutivas da nossa antropologia. Vivemos num
mundo, inseridos em um período histórico muito complexo no qual a ética perde suas
referências universais e lança a humanidade numa crise de sentido. Muitos chamam esse
momento histórico de modernidade; outros já dizem ser a pós-modernidade, pois não se
acredita mais na ilusão moderna. E sobre ela, faremos nossa reflexão.
A ética é, por conseguinte, a resposta à interpelação que o Outro nos dirige. É uma
relação inter-humana. Por isso, a ética é a escuta e o atendimento à chamada do Outro, o
oprimido, seja pelas estruturas econômicas, seja pelas políticas. É a atitude de
responsabilidade com o Outro. Uma experiência ética fundamenta-se nas múltiplas respostas
resultantes da nossa interface com o Outro.
Para Mounier, os seres humanos sem a vivência dos valores “não existiriam
plenamente”. Ressalta ainda:
[...] os valores só acedem, para nós, à existência através do fiat veritas tua
pronunciado pelas pessoas. Não constituem um mundo feito que
automaticamente se realiza na história, como pretendem os preguiçosos
mitos da “força invencível da verdade’’, da “marcha irresistível da história”.
Erro e acerto, ato bom e mal, fazem parte da ação do homem, porque ele é ser de
liberdade e de inacabamento. Entretanto, o que o personalismo de Mounier questiona é a
liberdade sem responsabilidade, o “abandono ao automatismo impessoal do instinto ou do
hábito, à dispersão, ao egocentrismo, à indiferença e à cegueira moral”. É aí que mal moral
começa, com a “perversão profunda da liberdade” (MOUNIER, 1964, p. 141).
Mounier percebia no contexto histórico em que ele vivia, e percebemos no nosso atual
contexto histórico, que a ética perdeu suas referências universais e lança a humanidade numa
crise de sentido. O que fazer para enfrentar essa crise ética e de sentido? Mounier responde
que o caminho é o de uma revolução pessoal e comunitária como forma de recuperar a
individualidade e a universalidade do homem.
Mounier propõe uma reforma estrutural e moral. Uma reforma dos valores que
orientam o agir humano em sociedade. Para ele, era preciso mudar a estrutura econômica,
torná-la mais justa, mas também reformar os valores que norteiam a sociedade. Apenas a
reforma das estruturas econômicas, acreditando que uma vez mudada os valores também
mudarão, não garante essa mudança, como comprovaram as revoluções comunistas, que
acreditavam que mudando a estrutura econômica mudariam também os valores.
A mudança deve ser tanto uma intervenção na esfera axiológica quanto na esfera
econômica. Desde o tempo de Mounier até nossos dias, as sociedades vêm passando por uma
profunda crise humanitária, um profundo processo de desumanização, uma crise provocada
pelos valores burgueses, valores a serviço do capital e do poder político e não do homem. No
tempo de Mounier as consequências dessa crise foram a Segunda Guerra Mundial, as bombas
atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, armas químicas contra os vietnamitas, Auschwitz,
desemprego, aumento da miséria e da fome.
aumento do desemprego, com a substituição acelerada da mão de obra humana pela máquina;
o aumento da fome e da miséria; os milhões de sem-teto que perambulam pelos grandes
centros urbanos sem amparo do poder público; os milhões de sem-terra que lutam por terra
para produzir e ter uma vida digna; a juventude em situação de privação de liberdade
encarcerada em abrigos com condições desumanas; o submundo das prisões que se
transformaram em escola do crime; a pressão dos capitalistas e de seus representantes para
acabar com as políticas de inclusão social; a retirada de direitos trabalhistas, como ocorreu no
Brasil recentemente com a reforma da trabalhista e as tentativas de flexibilização das leis
contra o trabalho escravo; as constantes ameaças de privatização do ensino universitário
público e da assistência à saúde.
Essa ética perpassa os textos de Mounier. Não é possível desvincular sua obra dessa
concepção ética. Trata-se de uma concepção que é também uma expressão da sua
compreensão da pessoa como ser imanente e transcendente, de condicionamento e de
engajamento. Assim, para ele a ética
2. Alteridade no personalismo
A alteridade é uma tarefa ética porque provoca a reflexão e ação sobre a condição
humana desse outro, considerando que o outro deve ser visto como um ser humano ao mesmo
tempo igual e diferente de mim. Refere-se à experiência que conota a conduta ética de
perceber, a partir das condições do outro, do mundo em que ele se insere, que é fruto de suas
experiências, seus hábitos, sua história, suas privações e suas possibilidades.
Considerar a alteridade é aceitar o convite para ser agente de uma mudança social que
contribua para superar a ideia do eu e do outro querer assumir a condição de opressor. Essa
busca da condição de opressor só será mudada com o sentimento de alteridade. Esse
sentimento de alteridade se constrói e se realiza de modo contrário à lógica hegemônica,
visando problematizar a experiência não dos mais fortes, mas dos mais fracos, dos oprimidos.
O sentido de alteridade aqui é o da pessoa enquanto afrontamento, engajamento,
comunicação, liberdade e compromisso, como propõe Mounier (1964).
Na obra Révolution personnaliste et communautaire, Mounier diz que, para formar uma
civilização comunitária, é necessário “refazer a renascença”, ou seja, fazer a conciliação do
espiritual e do material. Para isso, parte da problemática da crise e procura encontrar uma
solução para a personalização da sociedade. O ponto de partida é a compreensão da crise que
assolava a Europa em todos os domínios, da crise que é fruto das guerras mundiais e do abuso
do poder do lado do Estado, da ganância do ter, para chegar à formação de uma comunidade
espiritual com rosto humano onde todos têm direito, voz e vez.
Mounier, na obra Qu´est-ce que le personnalisme? (1990, t. III), diz que a crise que assolava
a Europa era explicada de duas maneiras: os marxistas apontavam que a crise era econômica,
crise de estrutura, e que mudando a economia o enfermo se recuperará; os espiritualistas
referiam que era uma crise do homem, crise dos costumes, crise de valores e, que, para superar
tal situação, era necessário mudar o homem, assim a sociedade melhorará. Com isso Mounier
diz que, assim como o homem é um ser dotado de matéria e espírito inseparável, a crise
também era total, tanto material como espiritual. A pessoa não se reduz apenas à dimensão
econômica, ela é um ser social, político, religioso.
Para Locke, o mundo já está dividido, no que diz respeito à educação, nas
duas classes fundamentais de ricos e pobres. Para os primeiros, a finalidade
da instrução é dotá-los da capacidade de governar, quer os negócios do
Estado, quer a administração de seus negócios particulares; para os
segundos, uma virtuosa e útil obediência. (Apud CUNHA, 1980, p. 36).
O capitalismo passou a exercer o seu poder sobre o mundo, sobre a natureza e sobre os
homens. Transformou-se não só num sistema econômico, mas também político e cultural.
Como sistema cultural passou a ser o modo de ser e agir humano, ethos, burguês, que forjou a
criação do homem como indivíduo. Desse modo, o capitalismo passa a ser um sistema de
Dessa forma, como resposta a tais concepções, o personalismo propõe uma “revolução”
total de tudo o que leva à escravização da pessoa, visto que o despertar do sentido
comunitário brotará de uma experiência da comunitária.
É por isso que o personalismo de Mounier surge como crítica radical à crise
econômica, política, social e ética que tomou conta do mundo no pós-Segunda Guerra
Mundial. Esse contexto de crise incomodava profundamente Mounier, que é tomado pela
inquietação e inconformismo diante da miséria e da desumanização. É essa realidade que o
desperta para o engajamento político e acadêmico.
Com essa proposta, Mounier discute a crise vivenciada pela Europa naquele período
que, para ele, era uma crise de civilização. Sobre isso Guy Coq apresenta a seguinte questão:
qual civilização? Ele responde:
O humanismo burguês é caracterizado por Mounier (1992, t. I) como uma revolta que
se desenvolveu na Renascença, a revolta contra o absolutismo feudal. O sistema feudal se via
ameaçado pelo novo modo de produzir riqueza, e procurava dificultá-lo com fiscalização,
cobrança de impostos e tarifas alfandegárias sobre os mercadores. O sentido dado a essa
revolta dos burgueses está na busca por um mundo de felicidade que encontrou no
liberalismo as suas bases de justificação. Sobre o liberalismo, Alves (2007, p. 79-80) explica
que
[...] deve ser visto como a expressão mais desenvolvida da visão de mundo
burguesa. Mas ela não surge do nada. Sua gênese deu-se no interior das lutas
que a burguesia vinha travando contra a igreja católica e a nobreza no
sentido de superar os “entraves feudais” postos ao desenvolvimento de seus
negócios. No âmbito do discurso, essa classe alicerçava suas reivindicações
nas liberdades individuais: liberdade de comerciar, liberdade de produzir,
liberdade de crença, liberdade de trabalho, etc. Logo, o liberalismo, tendo
sua doutrina formulada no século XVIII, tinha suas raízes fincadas na
existência da burguesia desde as suas origens.
Muito do que inquietava e indignava Mounier na primeira metade do século XX, como
a miséria, a fome, a violência, o desemprego, as profundas desigualdades sociais, a
absolutização do mercado, continuam presentes no contexto da sociedade contemporânea;
continuam sendo motivos para defendermos um novo renascimento. A chamada nova ordem
mundial continua sendo uma “desordem estabelecida”, geradora da desumanização, do
esquecimento do humano e da negação da ética e da alteridade. No Brasil, a partir da década
de 1960, o personalismo passa a ser inspiração para os movimentos sociais ligados à Igreja
católica para intervenção nas questões sociais e políticas. Foi uma época de intensa
mobilização e participação política de estudantes, sindicatos e intelectuais que reivindicavam
justiça social.
Mounier adota o termo "revolução" por considerar que expressa melhor a ideia de
engajamento. Ele pretendeu imprimir-lhe um sentido mais amplo, simbolizando uma
se esta palavra tem razão, apesar de tudo, para nós, contra as suas
impurezas, é devido à longa permanência que ela fez do lado em que
recebemos golpes, os da sorte, os do regime e os da polícia; do lado em que se
mantêm ainda os instintos primários da justiça.
Cruzada contra os blocos, que cimentam erros [...] e erguem uma barreira diante da
realidade e diante dos homens. Cruzadas contra as uniões sagradas que mascaram as
desordens profundas sob reconciliações interessadas. Cruzada contra os
conformismos, parasitas do pensamento e do caráter. [...] O ódio faz-se virtuoso,
puritano. [...] o ódio é outra forma de confusão. (MOUNIER, 1992, t. I, p.747).
Temos aqui uma discussão sobre o universo da justiça social que se contrapõe ao
apego de uma felicidade assentada na busca desenfreada da acumulação de bens e da
segurança individualista que anula o homem como pessoa e o impede de compreender as
injustiças sociais. Quando os espiritualistas afirmam que o homem se salva pela pobreza,
Mounier contrapõe dizendo que os bens materiais são a condição fundamental para uma vida
digna. É necessário eliminar a miséria, pois esta tira do ser humano toda dignidade. Ele
afirmava que cada ser conheceria sua força e sua própria medida: “[...] não opomos revolução
espiritual a revolução material. Afirmamos somente que não há revolução material sem estar
enraizada e orientada espiritualmente” (MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 94). Tal revolução
se estrutura e se interliga em três dimensões: a espiritual, a política e a histórica. A ausência
de qualquer uma destas certamente destruirá as vias para se chegar à pessoa. Qualquer
reforma social que não seja a plena realização da pessoa (realismo integral) corre o risco de
fracassar.
A pessoa só se realiza na comunidade: isso não quer dizer que ela não tenha
alguma chance de fazê-lo perdendo-se no anonimato (l’on). Não existe
comunidade verdadeira a não ser uma comunidade de pessoas. Todas as
outras não passam de uma forma do anonimato tirânico. (MOUNIER, 1992,
t. I, p. 217).
O personalismo é mais do que uma filosofia: é uma ética de orientação da ação que
afirma a alteridade. Mounier, ao elaborar a fundamentação de seu projeto civilizador, se valeu
do espaço das implicações antropológicas para justificar as exigências da ação.
Como a crise é ao mesmo tempo axiológica e material, uma crise total, a sua solução
também deve ser total, uma revolução pessoal e comunitária, axiológica e econômica. Essa é
sobretudo uma tarefa de construção de uma nova civilização, de novos valores, de um novo
projeto para a humanidade. Mounier apresenta nas obras Révolution personnaliste et
communautaire (1992, t. I) e Le personnalisme (1990, t. III) alguns traços fundamentais dessa
revolução. Um deles é o primado do espiritual – não podemos confundir o espírito com o
espiritualismo. Espiritual que se encontra ligado ao corpo, a todos os objetos materiais, e
situado, visto que a pessoa é um ser encarnado. Outro é dissociar o espiritual do político.
Sobretudo do que se chama direito, e do econômico, visto que o espiritual comanda o político
e o econômico. A revolução como uma forma de libertar a pessoa do primado do econômico,
do político e da técnica. Outros traços ainda são: a independência relativamente aos partidos
políticos e grupos constituídos; a revisão de todos os valores; atuar com rigor e clareza na
resolução dos problemas; libertar-se do conformismo doutrinário e encarar a realidade na sua
verdadeira dimensão.
Conclusão
Emmanuel Mounier vivenciou em sua época uma crise espiritual, material, política,
econômica, teológica, filosófica e científica que resultou no esquecimento do humano e no
aviltamento de valores, uma consequência das atrocidades das duas Grandes Guerras
Mundiais, dos campos de concentração, dos holocaustos e dos regimes totalitários. Na busca
de saídas para defender a pessoa humana, Mounier refletiu sobre seu tempo histórico,
É possível dizer que ainda hoje o pensamento de Mounier é importante para ajudar a
compreender a crise humanitária – crise civilizatória – que vivenciamos e para orientar nossa
ação. Diante de uma sociedade cada vez mais hedonista, consumista, pragmatista,
individualista, egocêntrica, insensível, seu pensamento continua sendo um apelo à mudança
tanto de consciência como de atitude. Seu pensamento é um grito de alerta, o grito que clama
por uma libertação do homem no que diz respeito às condições que negam sua humanidade e
denuncia os contravalores da sociedade.
Referências
ALVES, Gilberto Luiz. O liberalismo e a produção da escola pública. In: LOMBARDI, José
Caudinei; SANFELICE, José Luiz (Org.). Liberalismo e educação. São Paulo: Histedbr, 2007.
LIMA VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola,
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LORENZON, Alino. Em torno de Emmanuel Mounier. Síntese, Belo Horizonte, v. 27, n. 88, 2000.
______. Obras completas. Traducción de Antonio Ruiz. Salamanca (España): Ed. Sígueme,
1988. T. IV.
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