Fabrizio Cândia dos Santos Estado e Forma Política (Boitempo, 2013, 132 páginas), do jurista e filósofo brasileiro Alysson Leandro Mascaro, propõe-se à recompreensão do Estado e da política, a partir de uma perspectiva marxista. Filiando-se à corrente derivacionista, o autor traz a lume a percepção do Estado e da política como formas derivadas das relações de produção capitalistas, estabelecendo um rico diálogo entre economia e política. Não se trata, portanto, de um recauchutamento de velhos conceitos tradicionalmente utilizados na literatura sobre o tema, mas sim uma tradução inovadora pela qual se deixa transparecer que forma estatal e forma política consubstanciam prolongamentos da forma mercadoria. Por isso, para compreender- se o fenômeno estatal não se deve partir de suas características, mas da forma de reprodução do capitalismo. Não é o Estado que origina o capitalismo, e sim o capitalismo que origina o Estado. Nessa ordem de ideias, o Estado não figura como uma instância apartada da economia capitalista, e sim como um fenômeno típico do capitalismo. Afastando-se da tradicional visão marxista, pela qual o Estado é tomado como um aparato de dominação dos trabalhadores exercido pela burguesia, na concepção de Mascaro o Estado é posto como um terceiro nas relações entre capitalistas e trabalhadores, agindo como intermediador e garante dessas relações. É, ao revés, pela diferenciação entre Estado e burguesia que se possibilita a reprodução do capitalismo. Agindo como um terceiro, o Estado consolida as formas capitalistas, instrumentalizando -as ao estabelecer um quadro jurídico que garante a contínua exploração do trabalhador. Ao prever formas contratuais típicas, assegurar a autonomia da vontade e a personalidade jurídica, o Estado condiciona a reprodução do capital. Isto não significa dizer que o Estado seja um elemento neutro, indiferente ao capitalismo, mas antes é “(...) um momento de condensação de relações sociais específicas, a partir das próprias formas dessa sociabilidade” (p. 19). Mais que um aparato de dominação, neutro e passivo, o Estado se configura como forma específica da sociabilidade capitalista, atuando ativamente na reprodução dessas mesmas relações das quais ele deriva. Mas para que possa atuar ativamente, o Estado não pode confundir-se com a própria classe burguesa, antes deve manter-se autônomo em relação às classes. Se nas sociedades pré-capitalistas o poder político e o poder econômicos se amalgamavam, nas modernas sociedades capitalistas a separação dessas instâncias é uma nota característica, necessária ao funcionamento do capitalismo. Donde surgir a diferenciação entre o privado, relegado à sociedade e o público, o âmbito próprio de atuação do Estado. A burocracia estatal, que, ao autonomizar-se com poder e funcionalidades próprios, serve de contorno material para dar sustentação à separação entre o público e o privado e obliquamente impede a captura do Estado pelas classes. Mais que a simples expressão de juridicidade, a burocracia é um organismo vivo, dinâmico, derivação intrínseca das relações capitalistas, que consubstancia um centro de poder que atua sobre as classes sociais e é refratária dos interesses imediatos dessas classes. A burocracia, exercendo seus fins próprios, não se deixa contaminar pelas iminências e injunções dos indivíduos e das classes. O que não significa dizer que há uma barreira intransponível entre burocracia e classes ou burocracia e indivíduos, nem a ocupação de uma posição sobranceira ou onisciente da burocracia em face da sociedade. Ao revés, a burocracia é agente e reagente na dinâmica do capitalismo, é dela derivada e dela condicionante. Assim sendo, o Estado não é apenas um agente repressivo ou um aparato de dominação burguesa. É sobretudo um agente constitutivo das relações sociais, ao albergar um espaço político próprio para a conformação das condutas à reprodução do capital. E a forma política estatal é também constitutiva da subjetividade, ao constituir os sujeitos de direitos, dotados de autonomia de vontade, aos quais poderão ser imputados os vínculos jurídicos necessários (contratuais, por exemplo) à reprodução do capital. A construção subjetiva é fundamental para a reprodução capitalista, vez que as relações individuais são a base da sociabilidade capitalista. O indivíduo é o núcleo constituinte das relações capitalistas e por isso o Estado lhe confere reconhecimento jurídico, atribuindo-lhe a nota da capacidade jurídica: a personalidade. É por meio da personalidade, da autonomia de vontade que o indivíduo pode atuar em seu microcosmo privado. E ao considerar o indivíduo como núcleo de referibilidade, o Estado acaba ainda, reflexamente, por desconsiderar a existência de classes, encetando a ideia de convivência harmônica de indivíduos que procuram mutuamente satisfazer seus interesses, esfumaçando os antagonismos entre as classes sociais. Por outro lado, a separação do Estado das classes sociais acaba por ensejar o surgimento de conflitos entre o Estado e essas classes. Pontualmente, pode o Estado antagonizar com os interesses da burguesia, já que não é um mero gestor dos interesses dos capitalistas, nem é a racionalidade superior que governa o sistema. Trata-se de mais uma das inúmeras contradições que cercam o sistema capitalista. Se a separação entre Estado e burguesia é fundamental para a reprodução do capitalismo, essa mesma separação permite a existência de conflitos entre Estado e burguesia. A forma política, por conseguinte, não suprime as lutas de classe, ao contrário, serve de esteio para que a oposição entre classes continue a possibilitar a existência de uma classe exploradora e outra explorada. As formas políticas refletem as lutas de classe, sendo que essas formas políticas são a própria expressão mesma dessas lutas, politicamente condensadas. E determinam, assim, o modo relacional entre trabalhadores e capitalistas, os quais procedem seus vínculos recíprocos pelas vias de interações sociais estipuladas pela política. Essas vias de interação política nada mais são do que derivações da forma mercadoria e da forma valor as quais se põem como centro de gravitação das relações sociais. São formas talhadas, portanto, à concretude da vida e no decurso da história, pois são substanciadas a partir da generalização de relações efetivas e concretas, não se constituindo apenas como movimentos de consciência, ou tipos ideais à maneira weberiana. Por conseguinte “a forma não é um constructo eterno ou atemporal. Pelo contrário, representa uma objetivação de determinadas operações, mensurações, talhes e valores dentro das estruturas históricas do todo social” (p. 22). Donde sobressair que, na mesma medida em que a forma mercadoria constitui as relações sociais, é também por essas constituída, uma vez que a forma é a estratificação dessas relações sociais que lhe dão base. Nesse sentido, tomadas em sua generalidade (estratificação), as formas valem não per si, mas em razão da troca. A forma mercadoria (inclusive o trabalho, enquanto mercadoria) valem não em razão de suas qualidades inerentes, mas sim em referibilidade ao processo de troca. Entretanto, para que esse processo de troca possa ser estabelecido há a necessidade de construção de um esteio jurídico e político que garantam a apropriação e acumulação privadas. Por isso, a forma política estatal e a forma jurídica são correlatas à forma mercadoria, na medida em que dão sustentáculo a implementação do circuito capitalista de valorização do capital. Desse modo, se o processo econômico ocupa a centralidade na formação das relações, sociais, isso não quer dizer que ocorra em detrimento da forma política e da forma jurídica, mas sim que é na correlação das formas correspondentes que o capitalismo pode instaurar-se e desenvolver-se. Forma política e forma jurídica também encontram-se aneladas uma a outra no sistema capitalista, não só em razão de sua origem comum– a forma-mercadoria – como também por uma exigência recíproca de uma pela outra., em processo de unidade e implicação necessária para a reprodução da forma-valor e da forma-mercadoria. As correlações, todavia, não se operam no plano da logicidade, mas sim no plano material. Não há uma derivação lógica e necessária entre a forma-mercadoria e as formas políticas e jurídicas. Elas são formatadas no curso da história e assentadas na contradição das lutas entre as classes e consubstanciam diversas relações sociais, institucionais, consuetudinárias, ideológicas, dentre outras, as quais podem conflitar-se, rivalizar-se, antagonizar-se. Não se trata, portanto, de um engenho cerebrino, mas sim do conjunto de contradições, lutas, antagonismos que se defrontam no plano dos fatos e que redundam na formação do processo de produção capitalista. Mas é justamente esse arranjo contraditório do econômico que molda os demais arranjos da sociedade, em termos igualmente contraditórios. A modificação das estruturas sociais até desembocar na sociedade capitalista se deu lenta e gradualmente no decurso da história, transmudando processos, liturgias, instituições para adaptá-las às necessidades do capitalismo. Essas transições, por isso mesmo, não podem ser compreendidas pela análise superficial dos fenômenos, exigindo-se a percepção em conjunto com as mudanças na estruturação econômica. Uma instituição política que serviu aos desígnios dos antigos impérios, embora formalmente transpareça a mesma em uma sociedade capitalista, deve ser interpretada em consonância com a sua nova rede relacional para sua serviência ao capitalismo de modo que se possa aferir as modificações operadas no plano qualitativo. Suas funções não são equiparáveis, por conseguinte, pois seus desígnios não são os mesmos, sendo que, no capitalismo, o seu entrelaçamento estrutural leva à convergência com a forma-mercadoria. A busca pela compreensão das estruturas sociais, dos institutos, instituições deve-se dar no plano da materialidade econômica. Outrossim, não se deve reduzir a forma política às suas instituições, em que pese a sua correlação estrutural. Não são as instituições políticas que determinam a forma política, e sim justamente o contrário: “Tal forma política é que cria, aproveita, afasta, reforma, transforma ou reconfigura instituições sociais, muitas já existentes e outras novas, aglutinando-se à forma necessária de reprodução da vida social que vai se instalando” (p. 31). A forma relacional das instituições com o estado é reveladora da forma política, mas sem esgotá-la, sendo essa – forma política – mais ampla que aquelas. Se as instituições são os loci do político no Estado, a forma política sobressai e esparge-se por toda a sociedade. O Estado imerge no todo social como núcleo material da forma política, mas sem esgotar a política e está ele mesmo – Estado – mergulhado no mar de contradições, lutas e antagonismos gestados pelo capitalismo, sendo, ao mesmo tempo reflexo e parte da paisagem capitalista. Essa imersão, com já dito, não se dá de forma neutral, ao contrário, o Estado se arraiga nas entranhas da sociedade, não só com a imanência de sua força política, mas também com sua força ideológica. Os aparelhos ideológicos do Estado fundem-se às estruturas sociais, materializando-se em práticas, que se reproduzem e se efetivam com força intelectiva e valorativa. Dentre os aparelhos ideológicos está a construção da nação. A nação, as um só tempo, imprime a ideia de coesão social e institui uma uniformidade de práticas que se refletem em diversos campos da cultura, das artes, dos costumes, fundando-se em narrativas de um passado comum e gloriosos que deve ser exaltado. Figuras e fatos que simbolizam os interesses burgueses são postos como significativos na régua da história. A ideologia nacional serve para eclipsar os antagonismos existentes em um determinado espaço de exploração do trabalho alheio. A nação é a visualização ideológica de unidade que encoberta as lutas de classes, perpetrando valores do capitalismo como se fossem uma escolha compartilhada por todos os nacionais. Dessarte, se o Estado atua no plano constitutivo, com força reprodutiva do capitalismo, estruturando as relações, a nação atua no campo ideológico, com força intelectiva, indutiva e conformadora. Entram em pauta ainda a democracia e a cidadania como formas políticas correspondentes à forma-mercadoria. De início, Mascaro sedimenta que não há correlação necessária entre capitalismo e democracia, mas a dinâmica capitalista, baseada na pulverização de relações e na autonomia de vontade, impulsiona a adoção do regime democrático como modelo de organização política. Por democracia entende -se a forma de organização política baseada no processo eleitoral e na garantia da subjetividade jurídica, erigida em termos de garantias de direitos constitucionais fundamentais. O sistema democrático é forjado pelo sistema jurídico, o mesmo que constrói a subjetividade jurídica privada, de modo que o cidadão está para o campo político assim como o sujeito de direito está para o plano econômico. O processo eleitoral, exercido pela livre disposição de vontade no plano político, espelha a separação entre Estado e sociedade, ao viabilizar a escolha de representantes políticos que atuarão com certo grau de independência de seus eleitores. Certo grau porque não há completa autonomia do mandatário, ao revés há mecanismos de pressão que influenciam decisivamente na condução da política, mecanismos esses que são mais facilmente apropriados pela classe burguesa. E, por outro lado, não há completa autonomia de escolha pelo cidadão, uma vez que o processo eleitoral está limitado pela forma jurídica: “Ao invés de estender a deliberação política democrática ao limite, o direito restringe e qualifica seus espaços e mecanismo” (p. 87). A escolha restringe-se às alternativas ofertadas pelo sistema e que são juridicamente consentidas, não havendo possibilidade de deliberação sobre as condições sociais em que se realiza o processo democrático. E, caso haja reunião de forças políticas que ameacem esse estado de coisas, a democracia é substituída por outras formas típicas que sejam capazes de corrigir as disfunções dos mecanismos do capitalismo, tais como o fascismo, o nazismo e as ditaduras. A democracia, como forma política, é utilizada apenas e enquanto for interessante para a conservação dos valores burgueses. E não raro, é combinada com outros instrumentos que podem atuar conjunta ou paralelamente. É o caso de países que adotam a fórmula democrática para sua organização política interna, mas que, no plano externo, atuam por meio de imperialismo, colonialismo e outras formas correlatas de dominação antidemocrática. Com efeito, embora o capitalismo se estabeleça em um plano nacional, há projeção das suas formas sociais no plano internacional. Nesse plano internacional, repetem-se os matizes verificadas no plano interno. Nas relações entre estados, prevalece a isonomia formal, pela qual todos os Estados são considerados igualmente capazes, e a autonomia de vontade, pela qual os Estados podem estabelecer tratados e convenções entre si, resolvendo-se no binômio soberania e liberdade. Os Estados são considerados juridicamente livres e soberanos, sem considerações à efetiva concreção dessa subjetividade jurídica, a qual, em verdade, está imersa em relações de dependência e fragilidade, que determinam a hierarquização de regiões do mundo pela qual um Estado dominante subjuga países periféricos. Esse arranjo permite a universalização das formas capitalistas (propriedade privada, circulação mercantil, exploração da mão de obra assalariada). Daí porque ser o capitalismo necessariamente internacional: exige pluralidade de Estados para a formação de um sistema internacional em que se desenrola a sua dinâmica. Reproduzem-se, assim, os mesmos antagonismos e formas verificadas no plano interno. No último capítulo, Mascaro aborda as implicações da regulação estatal sobre o capitalismo. De início anuncia que a relação entre Estado e capitalismo se estabelece a partir de uma penetração do econômico no político, em um processo de implicação recíproca. Não obstante, essa relação entre o econômico e o político não é harmônica, permeada que está pelas contradições, lutas de classe, relações de exploração. E, por isso mesmo, é a geratriz das crises do capitalismo. As crises do capitalismo derivam tanto do regime de acumulação – que comporta as fases constituintes do capitalismo –, como também do modo de regulação estatal, ou seja, os mecanismos políticos e jurídicos que instrumentalizam a acumulação. O Estado regulatório é, nesse passo, uma forma haurida da própria estruturação social e se faz presente mesmo no Estado liberal: “O neoliberalismo não é uma retirada do Estado da economia, mas um específico modo de presença do Estado na economia” (p. 118, grifos originais). Entretanto, a regulação estatal não é suficiente para estacar as crises, seja por causa das contradições do próprio sistema econômico, seja pelos desarranjos entre o político e o econômico. A regulação não se destina à solução das crises, mas, ao revés, as torna mais profunda, ao solidificar esses núcleos relacionais “crísicos”, como, a exemplo, a implementação do modelo organizacional chamado “fordismo”, que correspondeu a um período específico do capitalismo caracterizado pela densificação da exploração do trabalho assalariado pelo refinamento de técnicas de administração e produção em massa. Donde se conclui que as crises, no capitalismo, não são episódicas, mas sim uma de suas notas características. Sobressaem tanto da própria dinâmica econômica quanto do desacoplamento entre o econômico e o político, apresentando -se ora como estancamento no processo de acumulação, ora como rearranjos políticos, no mais das vezes com perdas de direitos subjetivos, especialmente pelos trabalhadores.