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Metodologia e Filosofia

da Ciência
Metodologia e Filosofia da Ciência
Prof. Dr. Marcello Árias Danucalov
Diretor Geral
Alexandre
Machado
Sumário

METODOLOGIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA .................................................................. 1 


Sumário ........................................................................................................................ 2 

Ementa ......................................................................................................................... 4 

Currículo Resumido dos Professores ........................................................................... 5 

Bibliografia Utilizada ..................................................................................................... 6 

UNIDADE I.................................................................................................................... 7 

MÓDULO 1 ............................................................................................................... 8 

MÓDULO 2 ............................................................................................................. 14 

MÓDULO 3 ............................................................................................................. 29 

MÓDULO 4 ............................................................................................................. 51 

RESUMO ................................................................................................................ 62 

EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM ...................................................................... 63 

UNIDADE II................................................................................................................. 69 

MÓDULO 1 ............................................................................................................. 70 

MÓDULO 2 ............................................................................................................. 79 

MÓDULO 3 ............................................................................................................. 83 

MÓDULO 4 ............................................................................................................. 97 

RESUMO .............................................................................................................. 115 

EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM .................................................................... 116 

UNIDADE III.............................................................................................................. 120 

MÓDULO 1 ........................................................................................................... 121 

MÓDULO 2 ........................................................................................................... 131 



MÓDULO 3 ........................................................................................................... 135 

MÓDULO 4 ........................................................................................................... 148 

RESUMO .............................................................................................................. 164 

EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM .................................................................... 165 

UNIDADE IV ............................................................................................................. 169 

MÓDULO 1 ........................................................................................................... 170 

MÓDULO 2 ........................................................................................................... 175 

MÓDULO 3 ........................................................................................................... 180 

MÓDULO 4 ........................................................................................................... 187 

RESUMO .............................................................................................................. 190 

EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM .................................................................... 191 


Ementa

Metodologia e intersubjetividade na ciência; diferenças entre a ciência antiga e a ciência


moderna; a revolução científica; dedução e indução; a filosofia da ciência; a filosofia de
Karl Popper; a filosofia de Thomas Khun; Renascimento e o Iluminismo; Auguste Comte,
Émile Durkheim, Max Weber, Karl Marx, Pierre Bourdieu; campo social; ilusão naturalista;
as estruturas do campo social; força e o poder simbólicos; agentes do campo social; o
conceito de Illusio; o conceito de habitus; regras da lógica argumentativa; formato padrão
dos argumentos; critérios de validação de argumentos: aceitabilidade, relevância,
suficiência e refutabilidade; história da lógica; falácias argumentativas; limites do
pensamento lógico; projeto científico: tema; formulação do problema; objetivos;
justificativa; referencial teórico; metodologia; cronograma; referências; ética e
investigação científica; fases da pesquisa científica; levantamento bibliográfico; redação
científica; comunicação da pesquisa; tipos de pesquisa científica existentes.


Currículo Resumido dos Professores

Doutorado em Ciências (Psicobiologia) pela Universidade Federal de São Paulo


(UNIFESP) (Avaliação Capes - 7) (2012); Mestrado em Farmacologia pela Universidade
Federal São Paulo (UNIFESP) (Avaliação Capes - 6) (2000); Pós-graduação em
Fisiologia do Exercício pela UNIFESP; Licenciatura Plena em Educação Física pela
Universidade Santa Cecilia dos Bandeirantes (1989); Bacharelado em Filosofia pela
Universidade do Sul de Santa Catarina (2012); Formado em Coaching Ontológico pelo
Instituto Latino Americano de Coaching Ontológico; Atua com Coaching Ontológico para
indivíduos, grupos e equipes; Liderança Corporativa; Professor Universitário há vinte e
sete anos; Professor das disciplinas Comportamento Organizacional e Liderança e
Trabalho em Equipes para os cursos de Administração, Comércio Exterior, Logística,
Gestão Portuária e Processos Gerenciais da União Brasileira Educacional (UNIBR);
Professor convidado a ministrar aulas em cursos de pós-graduações na Universidade
Federal de São Paulo - UNIFESP/EPM, Universidade de São Paulo (USP) entre outras;
Consultor e Palestrante atuando com desenvolvimento humano para pessoas físicas,
grupos e equipes (ambientes corporativos, educacionais em geral e órgãos públicos) com
foco em: Coaching Ontológico; Neurociências do Comportamento Humano; Filosofia e
Ética Corporativa; Comunicação e Linguagem Humana; Revitalização de Equipes e
Grupos. Entre seus clientes destacam-se: Grupo Pão de Açúcar, Brasil Foods (BRF),
Petrobrás, SESC, Sabesp, Superior Tribunal Militar, Metrô (SP), Centro da Indústria e
Comércio do Estado do Amazonas, Ultracargo, Indico (Planos de Saúde), Staybridge,
Melitta, Tribunal Regional do Trabalho (Campinas) entre outras empresas e instituições;
Autor de diversos livros e artigos científicos; Estudioso em Filosofia Clínica; Finalista do
Prêmio Saúde 2013 da Editora Abril na categoria Saúde Mental e Emocional. Para ter
acesso ao Currículo Lattes completo acesse: http://lattes.cnpq.br/7168696309821501


Bibliografia Utilizada

Bibliografia Básica

POPPER, K. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Editora Pensamento/Cultrix,


2013.

BOURDIEU, P. Homo academicus. 2ª. Edição. Florianópolis: Editora UFSC, 2011.

BOOTH, W.C.; COLOMB, G.G.; WILLIAMS, J.M. A arte da pesquisa. 2a Edição. São
Paulo: Martins Fontes, 2005.

Bibliografia Complementar

ARISTÓTELES. Tópicos. [Os pensadores]. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

BACON, F. Novum organum. [Os pensadores]. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

DESCARTES, R. Discurso do método. [Os pensadores]. São Paulo: Abril Cultural,


1983.

KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.

LAVILLE, C & DIONNE, J. A construção do saber: manual de metodologia da


pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Artes Médicas Sul; Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1999.


UNIDADE I
História e Filosofia da Ciência

“A ciência não desvela truísmos. Ao contrário, faz parte da grandeza e da beleza da


ciência o fato de podermos aprender, através de investigações conduzidas com espírito
crítico, que o mundo é inteiramente diverso daquilo que chegamos a imaginar, até que
nossa imaginação seja estimulada pela refutação de teorias anteriores”

Karl Popper


MÓDULO 1

Sociologia. Conceito e objeto

Parabéns aluno (a) ingressante. Você acaba de entrar em uma faculdade. A partir deste
momento você passa a fazer parte do mundo acadêmico, e poucas são as pessoas que
gozam deste grande privilégio. Agora você faz parte de uma elite, e isso lhe concederá
certo poder simbólico. Contudo, já dizia o avô do homem aranha: “Grandes poderes,
grandes responsabilidades!”

Esperamos que sua estadia aqui seja repleta de momentos alegradores, permeada de
desafios e cheia de conquistas. Ainda não sabemos quais são os seus sonhos e objetivos
de vida. Todavia, é importante que você saiba que, independente do rumo que você
escolher conceder à sua vida profissional, o mundo acadêmico é o lugar legítimo de
produção de conhecimento científico. Você não necessariamente sairá daqui um
cientista, mas, caso intencione este objetivo, esperamos conceder a você os subsídios
para que possas atingir sua meta. A UNIBR tem, inclusive, um programa de iniciação
científica, e desde já convidamos você a se informar sobre as normas e diretrizes desta
rica e salutar atividade.

Acreditamos de maneira indubitável que, se você se esmerar na leitura e no estudo


deste livro que agora tens em mãos, o aproveitamento de seu curso superior como
um todo será muito maior, pois, independente de sua vocação para a ciência,
entender como este campo social funciona expandirá em muito sua capacidade
reflexiva, e isso pode lhe ser útil em sua vida profissional e também pessoal. Seja
muito bem vindo ao mundo da ciência.

Quando versamos sobre ciência é importante definir suas subdivisões. As ciências


naturais são detentoras de uma classificação que engloba as áreas da ciência que
intencionam estudar a natureza em seus aspectos mais fundamentais, ou seja, todos
aqueles que são regulados por regras ou leis de origem natural e com validade universal,

 

tais como a biologia, a física, a química e a astronomia. Tem como foco os aspectos
físicos e não o homem ou os aspectos antropogênicos em si, que são estudados pelas
ciências sociais. Logo, as ciências sociais estudam os aspectos sociais do mundo
humano, como a vida social de indivíduos e grupos humanos. A antropologia, os estudos
da comunicação, o marketing, a administração, a arqueologia, a geografia humana, a
história, a ciência política, o direito, a psicologia, a filosofia e a sociologia são áreas de
seu interesse. Então se prepare. Vamos começar a entender o que de fato é a ciência.

O homem tem tentado conceder sentido à sua existência desde que começou a
diferenciar-se dos outros animais e iniciou sua aventura pelos territórios do pensamento.
A percepção de que esta inserido na temporalidade, e consequentemente, a constatação
de que é um ser finito, provavelmente tem motivando-o na incessante busca por
explicações que lhe apaziguem a inexorável angústia que teima em acompanhá-lo
durante sua jornada pela vida. Sendo assim, o homem tem buscado fruir o mundo e
conceder-lhe significado por meio da utilização de distintos saberes. Em tempos remotos
os mitos foram de grande relevância para a organização psíquica do homem.
Provavelmente, a mitologia fez nascerem sistemas e instituições organizados, dando
origem às distintas religiões. A arte também tem sido companheira do homem desde a
noite dos tempos, e tem lhe servido de refúgio quando suas dúvidas clamam por uma
explicação que transcenda os limites da linguagem falada. O senso comum, uma forma
espontânea de entender o mundo, tem-lhe sido valiosa, pois, mesmo sendo uma
abordagem rudimentar de investigar a vida, o senso comum tem-lhe concedido
praticidade, além de ajudar-lhe a resolver inúmeros problemas do cotidiano. Porém,
houve momentos onde as regras e os rigores do pensar passaram a ser necessários,
quase imperativos, e por este motivo pensadores da Grécia nos legaram a filosofia, mãe
- ou filha? - da racionalidade humana. Patrocinadora de revoluções intelectuais.
Progenitora daquilo que convencionamos chamar de ciência moderna, e que em breve
versaremos com mais vagar. Sendo assim, ainda hoje, existem à nossa disposição seis
maneiras bastante distintas de ver e fruir o mundo: o mito; a religião; a arte; o senso
comum; a filosofia; e a ciência. Contudo, é importante deixar claro que, talvez não seja
prudente advogar em defesa de uma ou de outra, afirmando ser esta ou aquela a melhor
das maneiras de se decodificar o mundo. Mesmo que sejamos um cientista, ainda assim,
em algumas ocasiões, flertaremos com o senso comum, com a arte ou mesmo com a
mitologia, quando, por exemplo, ao torcer por seu time do coração, o referido cientista

 
 

passe a idolatrar um jogador de futebol, acreditando, como nos tempos antigos, que este
homem irá salvar seu time do rebaixamento para a segunda divisão, fazendo ressurgir
assim o velho e bom mito do herói. Todavia, se somente falarmos isso, talvez estejamos
cometendo uma injustiça com a ciência. Carl Sagan, em seu maravilhoso livro O mundo
assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro, nos alerta
(SAGAN, 1997, p.39):

Nós criamos uma civilização global em que elementos mais cruciais – o


transporte, as comunicações e todas as outras indústrias, a agricultura, a
medicina, a educação, o entretenimento, a proteção ao meio ambiente e
até a importante instituição democrática do voto – dependem
profundamente da ciência e da tecnologia. Também criamos uma ordem
em que quase ninguém compreende a ciência e a tecnologia. É uma
receita para o desastre. Podemos escapar ilesos por algum tempo, porém,
mais cedo ou mais tarde essa mistura inflamável de ignorância vai
explodir em nossa cara.

A universidade é o local legítimo para se falar e fazer ciência, e seria de se esperar que
seus agentes - alunos de graduação, de pós-graduação, de mestrado, de doutorado,
assim como professores e orientadores - fossem conhecedores desta forma de saber e
fruir o mundo. Todavia, não é exatamente isso que acontece. Pouquíssimos são os
agentes sociais que transitam nas faculdades e universidade saberiam discursar sobre o
que é ciência. Muitas vezes, as aulas de metodologia da pesquisa científica são
conduzidas por professores que sequer publicaram uma boa pesquisa científica em suas
trajetórias profissionais. Sendo assim, esta disciplina tão rica e necessária pode
transformar-se em um “lugar” onde se discutem regras cosméticas de apresentação do
conteúdo do trabalho científico, sendo esse, muitas vezes, um aglomerado de dados
desconexos, muito pouco representativo daquilo que chamamos de dados científicos.
Ouso afirmar que são escassos os mestres e doutores em nosso país que leram a obra
Discurso do Método de Descartes, ou que obtiveram informações - ainda que superficiais
-, sobre Karl Popper e Thomas Kuhn, representantes legítimos da filosofia da ciência e
que com suas críticas nos ajudaram a compreender os alcances e os limites daquilo que
chamamos de ciência. Acredito que, em parte, devido a esta carência em nossa formação
básica, somos tão frequentemente vítimas de dilemas.

Apesar de podermos interpretar o universo à nossa volta partindo de diferentes pontos


de observação, precisamos tomar muito cuidado para não misturar saberes, pois o
resultado, muito comumente, é desalentador. Gilbert Ryle, (1900 – 1976), é um filósofo
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inglês que trabalhou com filosofia da linguagem. Em sua obra Dilemas, Ryle nos mostra
que muitos dos dilemas que vivenciamos hoje, na realidade não são de fato dilemas, são
falsos dilemas. Sempre que transgredimos categorias geramos falsos dilemas, ou seja,
ao colocarmos numa mesma categoria elementos que pertencem a categorias distintas
corremos o risco de produzir conclusões paradoxais. Por exemplo, ao tentar responder
questões científicas com argumentos religiosos, ou vice-versa, ou ao tentar analisar uma
obra de arte por meio de um pensamento estritamente racional.

Foto 1: Gilbert Ryle

Recentemente, a revista Veja publicou uma matéria cujo título era Entre a Fé e a Razão.
Nela, é possível perceber parte daquilo que Ryle denomina de dilemas e que outro grande
filósofo britânico, Bertrand Russell (1872-1970), denominava de “batalhas sombrias”, ou
seja, os seculares embates entre a ciência e o campo religioso. Essa matéria faz alusão
à recente declaração do papa Francisco: “Quando lemos no Gênesis sobre a criação,
corremos o risco de imaginar que Deus tenha agido como um mago, com uma varinha
mágica capaz de criar todas as coisas. Mas não é assim [...]. O Big Bang, que hoje temos
como a origem do mundo, não contradiz a intervenção criadora, mas a exige. A evolução
na natureza não é incompatível com a noção de criação, pois a evolução exige a criação
de seres que evoluem”. O intuito do papa Francisco provavelmente não era o de erigir
mais uma batalha nesta guerra que já dura milênios, mas, pacificar a tensão entre os
campos. Ainda assim, sua fala patrocina mais um dilema, uma vez que, como ficará claro
a você caro (a) estudante, ciência e fé definitivamente não combinam! Ciência e religião
são duas maneiras bastante distintas de pensar e estar no mundo, e um dos abismos
que as separa é o dogma, afirma Marcelo Gleiser, físico, astrônomo e professor de
filosofia do Dartmouth College, EUA. E ainda que Albert Einstein (1879-1955), talvez o
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maior cientista do século XX, pensasse diferente, e afirmasse que: “A ciência sem a
religião é manca, a religião sem a ciência é cega”, a esmagadora maioria dos cientistas
da atualidade tem um ponto de vista radicalmente distinto. Ciência e religião são
categorias distintas. Nunca poderemos uni-las sem que incorramos em dilemas, pois
ambas partem de premissas opostas. A ciência, com sua metodologia, pode investigar a
espiritualidade. Podemos pesquisar suas bases biológicas, seus constructos sociais,
seus alicerces linguísticos etc. Todavia, não podemos fundir categorias, ainda que
possamos tentar erigir pontes entre distintos saberes, com vistas a patrocinar diálogos
mais respeitosos entre campos de saberes tão diversificados.

Foto 2: Bertrand Russell

Metodologia e intersubjetividade na ciência

Uma das coisas que faz da ciência uma forma de saber bastante distinta das demais é o
fato dela ser controlada de maneira rigorosa por seus agentes sociais. Costuma-se dizer
que os conhecimentos científicos são objetivos e que as afirmações que brotam da
ciência devem ser controladas por todos os cientistas que militam na causa em questão,
ou seja, elas devem ser intersubjetivamente controláveis. Logo, os saberes que
emanam de seu interior necessitam poder ser compreendidos, confirmados ou refutados
por qualquer outra pessoa que tenha formação necessária para tal, ou seja, todos os
agentes sociais do campo científico têm direito e dever de criticar os conhecimentos
oriundos do seio da ciência. Sendo assim, o conceito de intersubjetividade ambiciona
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garantir que as teorias científicas não se tornem proposições baseadas em um único


ponto de vista, como muitas vezes acontece no campo da fé religiosa, por exemplo. A
ciência é repleta de procedimentos, todos eles bastante metódicos e rigorosos, e que
intencionam torná-la o mais isenta possível de interesses particulares. Tais
procedimentos buscam garantir a obtenção de um conhecimento válido sobre os fatos,
caracterizado pela confiabilidade das observações, dos experimentos e das conclusões
que emergem das pesquisas científicas. A presença desta metodologia procura manter
a rigorosidade do conhecimento científico, e paralelamente busca torná-lo claro, preciso
e unívoco.

Como dito anteriormente, a ciência surgiu da filosofia e esta, embora tenha como objeto
o conhecimento em si, deixou para a ciência a tarefa de explicar como as coisas são,
concentrando-se muito mais nas indagações sobre o por que as coisas são como são, e
não de outro maneira. Perceba amigo (a) estudante, para além do conhecimento
explicativo, a filosofia preocupa-se com o sentido das coisas em relação ao homem.
Todavia, vamos retornar às características apontadas acima. O conhecimento objetivo,
compreendido de forma estrita, não pode ser atribuído nem à religião e nem tampouco à
filosofia. A religião depende justamente de uma experiência pessoal e intransferível,
ligada também à força da fé. Já a filosofia, embora fundada na razão e na pretensa
universalidade de seu conhecimento, foi essencialmente movida pelo desacordo entre
diferentes filósofos e suas concepções ao longo de sua história. Deste modo, torna-se
inexequível falar de um “controle intersubjetivo” para teorias filosóficas. Vejamos agora
quais os pontos mais importantes daquilo que se convencionou chamar de revolução
científica.

Para saber mais:


Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-
marcelloarias.com.br

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MÓDULO 2

Ciência antiga e Ciência Moderna

A revolução científica é um período caracterizado pela publicação da obra De


Revolutionibus, de Nicolau Copérnico (1473 – 1543), e essa obra inaugura o que
chamamos de ciência moderna, ou ao menos o período em que foi gestada para que
tivéssemos hoje a imagem daquilo que chamamos de ciência moderna. A astronomia
vinha sustentando o modelo geocêntrico aristotélico / ptolomaico até o século XV, e
tinha como pressuposto básico a imobilidade da Terra no centro do universo, orbitada
pelo Sol, assim como pelos demais planetas. Copérnico revoluciona a astronomia ao
afirmar que a Terra se move ao redor do Sol e também sobre seu próprio eixo. Não é
difícil perceber, caro (a) aluno (a), que com a chamada inversão copernicana, não apenas
o paradigma astronômico se altera de maneira radical, mas também toda a concepção
de mundo vigente até o século XV. Sobre este assunto, Reale e Antiseri (2004, p. 143)
comentam:

Mudando a imagem do mundo, muda também a imagem do homem. Mas


também, progressivamente, muda a imagem da ciência. A revolução
científica não consiste somente em adquirir teorias novas e diferentes das
anteriores […]. Ao mesmo tempo, a revolução científica é revolução da
ideia de saber e de ciência. A ciência – e esse é o resultado da revolução
científica, resultado que Galileu iria explicitar com clareza absoluta – não
é mais a intuição privilegiada do mago ou astrólogo iluminado,
individualmente, nem o comentário a um filósofo (Aristóteles) que disse
“a” verdade e toda a verdade, isto é, não é mais um discurso sobre “o
mundo de papel”, mas sim investigação e discurso sobre o mundo da
natureza.

Se Copérnico alastrou a semente revolucionária sobre aquilo que se chamava ciência,


coube a Galileu Galilei (1564 – 1642) expandir este princípio transformador à prática.
Conta-nos a história que ao ouvir sobre a invenção da luneta, um instrumento capaz de
ampliar a visão natural através de lentes, Galileu pôs-se a construir sua própria luneta e,
ao invés de apontá-la para pessoas, a direcionou para o céu. Foi um singelo gesto, mas
que causou enorme impacto, pois se tratou da primeira utilização de um instrumento

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científico para aumentar o poder de nossa experiência sensível. O universo passou a ser
observado por meio de outra óptica, com “outros olhos” e isso gerou problemas entre
Galileu e a Igreja. Galileu passou a arbitrar em favor do modelo heliocêntrico, sendo
assim, a Terra deixava de ser o centro do universo, dando ao Sol esta primazia. Galileu
também passou a afirmar que os conhecimentos científicos deveriam se desvencilhar da
fé e das escrituras sagradas. Caberia à ciência a missão de tentar descrever o mundo
físico tal como ele é, enquanto as doutrinas religiosas deveriam limitar-se aos assuntos
da alma e sua salvação.

Galileu foi o um dos precursores dos testes controlados, muito embora, suas
experiências controladas ainda não seguissem nenhuma metodologia pré-fixada,
rigorosamente especificada e intersubjetivamente aceita. Como amante da ciência
Galileu desenvolveu teorias sobre o movimento e conseguiu prová-las mediante
experiências concebidas previamente. Note que não se trata mais de simples
confirmações das teorias por meio da contemplação passiva, como comumente era feito
na antiguidade, mas sim, da construção de experimentos projetados para confirmar uma
determinada hipótese. A ciência idealizada por Galileu é detentora de um conhecimento
objetivo, que esquematiza a verdade sobre a realidade, mesmo que essa verdade
contradiga percepções mundanas ou crenças arraigadas. Galileu forneceu para nós os
parâmetros fundamentais para o desenvolvimento de uma prática científica totalmente
inovadora. Matematizou este campo do saber; fez uso de instrumentais práticos, como a
luneta; e construiu de forma racional experimentos elegantes com vistas a testar suas
hipóteses. Ainda que a ciência de Galileu seja desprovida de uma metodologia como a
que conhecemos hoje, sem dúvida, a ciência da contemporaneidade deve muito ao seu
gênio, e a partir das inovações patrocinadas por ele, um novo modelo de ciência começou
a surgir.

A ciência praticada na antiguidade buscava compreender os fenômenos por meio da


observação das qualidades substanciais daquilo que se contemplava. Já na ciência
moderna predomina o caráter quantitativo, uma vez que os fenômenos naturais têm sido
compreendidos em termos de suas propriedades matemáticas, denominadas de
primárias. A ciência da antiguidade ambicionava encontrar a finalidade de cada
fenômeno, ou seja, era de caráter teleológico - telos, em grego, é finalidade. Por exemplo,
Aristóteles tinha a preocupação de entender qual era a causa final de cada fenômeno
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que contemplava. Para ele, não só os seres vivos tinham finalidade, mas até os objetos
físicos eram destinados a cumprir sua missão no universo. Em sua época acreditava-se
que o universo era finito, harmônico, organizado, e tudo nele, tinha uma função. Na
ciência moderna ambicionamos outras metas, uma vez que direcionamos nosso
interesse para conhecermos as causas de cada fenômeno e não necessariamente sua
finalidade. Acompanhe:

Restringindo o escopo da física às qualidades primárias e suas relações,


Galileu excluiu as explicações teleológicas do discurso permissível da
física. De acordo com Galileu, dizer que um movimento tem lugar a fim de
realizar certo estado futuro não constitui uma explicação científica bona
fide. Em particular, ele instituiu em que as interpretações aristotélicas em
termos de “movimentos naturais” em direção a “lugares naturais” não se
qualificam como explicações científicas. Galileu compreendeu que ele
não poderia provar como falsa uma asserção tal como “corpos não
apoiados movem-se em direção a Terra a fim de alcançar o seu lugar
natural”. Mas compreendeu, ao mesmo tempo, que este tipo de
explicação pode ser excluído da física porque não consegue “explicar” os
fenômenos (LOSEE, 2000, p.64).

A metodologia utilizada também sofreu sensíveis modificações, se é que faz algum


sentido falar sobre metodologia científica na ciência da antiguidade. Todavia, a obtenção
do conhecimento na antiguidade era em grande medida dependente do método dedutivo,
ou seja, partia-se do universal rumo ao particular. Já na ciência moderna o método
indutivo, que falaremos com maiores detalhes em breve, passa a ser um de seus maiores
baluartes. Deve-se partir do singular rumo ao universal. Inicia-se a jornada da construção
do conhecimento nos casos particulares, até que se possam obter leis passíveis de
generalizações. Por último, na ciência antiga a natureza era tida como boa e o homem
era visto como parte integrante dessa natureza. Contudo, na modernidade a natureza
passa a ser vista com ressalvas, como algo a ser compreendido e, posteriormente,
dominado. A crença na manipulação da natureza com vistas a adequá-la aos nossos
desejos e necessidades foi um dos motores da revolução científica. Para aqueles leitores
fãs de desenhos animados sugerimos um olhar mais atento para a dupla de ratinhos de
laboratório conhecida como Pink e Cérebro. Ainda que o desejo do Cérebro seja dominar
o mundo com vistas à aquisição de benefícios exclusivamente pessoais - o que, a
princípio não deve ser o objetivo de nenhum cientista -, sua crença na capacidade de

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manipulação da natureza por meio de mentes brilhantes reflete fidedignamente o frenesi


que a revolução científica gerou na Europa dos séculos XV, XVI e XVII.

Figura 1: Cérebro e Pink

Francis Bacon e seus ídolos.

Francis Bacon (1561 – 1626) também viveu a efervescência do período onde a ciência
moderna foi gestada, e seu nome é sempre lembrado como um dos mais importantes
deste incrível momento do pensamento humano. Assim como muitos pensadores dos
séculos XVI e XVII, Bacon foi impelido pela atitude crítica em relação ao saber de sua
época, e se empenhou em abolir os conceitos não demonstrados e que se nutriam
somente na autoridade dos filósofos clássicos ou pela maneira pouco afável com que a
Igreja conduzia a sociedade. Bacon colocou todo seu talento a serviço da reestruturação
da maneira como construímos nosso conhecimento, esmerando-se na consolidação de
um saber seguro e, ao mesmo tempo, livre de falsas noções acolhidas pela mente. Assim
como Galileu, o caráter experimental do conhecimento é seguramente uma de suas
maiores contribuições ao desenvolvimento do método científico. Como visto acima
quanto falamos dos ratinhos Pink e Cérebro, a maneira como o homem encarava a
natureza sofreu uma grande modificação na modernidade, e Bacon teve enorme
influência nesta nova maneira de pensar. Foi com ele que teve origem a noção de que a
ciência concederia ao homem a primazia de controlar a natureza. “Saber é poder” é a
máxima mais conhecida de Bacon, e resume sua ênfase na potencialidade da ciência
transformar os produtos da natureza e aplicá-los com maior proveito nas atividades
humanas.

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Bacon afirmava que, no cotidiano, a razão humana tende a lidar com a natureza de
maneira não metódica. No dia a dia temos a tendência de estabelecer certas
antecipações que nem sempre se harmonizam com a realidade. Somos motivados por
certas regularidades observadas nos fenômenos, assim como pela influência, muitas
vezes automática, de nossa imaginação. Contudo, essas antecipações da natureza
podem nos enganar. Não são, de modo algum, seguras, e podem transmutar-se em
concepções falsas ou preconceitos que se cristalizam e nos impedem de progredir na
busca pela verdade sobre os fatos. Desta forma, Bacon nos convida a pensar sobre a
distinção entre as antecipações da natureza produzidas pelo senso comum e a
interpretação da natureza realizada pela ciência. As antecipações da natureza são
noções edificadas sem apoio e orientação metódica. Na maioria das vezes são oriundas
da observação de poucos casos, e acabam sendo responsáveis pela instauração de
diversas concepções equivocadas, ou “erros do espírito”, denominados por Bacon de
ídolos. Podemos nos lembrar das literaturas de autoajuda, que, na maioria das vezes
seguem um modelo bastante conhecido. Escolhe-se um caso de sucesso em
determinada área. Investigam-se os passos dados pelo agente em questão e,
posteriormente, esses passos são universalizados, desconsiderando por completo
inúmeras variáveis do problema, e deixando de lado muitos fatores circunstanciais
envolvidos no assunto. A conclusão, na maioria das vezes é sempre a mesma. Siga cinco
ou dez passos e os resultados serão exatamente os mesmos daqueles sugeridos pelo
autor da obra. Por sua vez, as interpretações da natureza são atributos da ciência e fruto
do trabalho de cientistas, resultado de um método objetivamente construído e da
aplicação experimental da observação criteriosa de inúmeros casos, onde se reúnem
dados capazes de sustentar determinada hipótese. Bacon afirma que para se chegar ao
método adequado para o conhecimento científico todas as falsas noções do espírito
devem ser abandonadas. Isso, de certa maneira, inviabiliza os crentes de qualquer
natureza de seguir uma carreira científica, pois, quando o ser humano mantém alguma
crença, tem a tendência de buscar confirmações para ela a todo o momento. Aquele que
crê em astrologia, por exemplo, direcionará seus olhos no sentido de encontrar no mundo
exemplos que confirmem sua crença. Para Bacon, a prática da ciência está atrelada ao
abandono dos quatro tipos distintos de ídolos:

Ídolos da tribo (idola tribus) – Tendência que tem o intelecto humano de enxergar mais
do que o fenômeno realmente oferece. Nas palavras do próprio Bacon: “Quando encontra
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alguma noção que o satisfaz, porque a considera verdadeira ou porque convincente e


agradável, o intelecto humano leva todo o resto a validá-la e coincidir com ela”.

Ídolos da caverna (idola specus) – Representados pelas disposições e preconceitos


de cada indivíduo em particular. Frutos das circunstâncias de cada ser humano que tende
a colocar sua cultura, educação, crenças, costumes e leituras pessoais como únicos
norteadores dignos de consideração na tarefa de interpretar os fenômenos do mundo.

Ídolos do foro, da praça do mercado (idola fori) – Oriundos dos equívocos ou


confusões que emergem dos limites da linguagem e da comunicação humanas, assim
como pelas falsas noções originadas das disputas ordinárias entre opiniões não
abalizadas.

Ídolos do teatro (idola theatri) – Falsas noções fundamentadas exclusivamente na


autoridade de algum pensador, filósofo notável, dogmas religiosos ou superstições
populares.

Figura 2: Francis Bacon

Para Bacon, é impossível avançar rumo ao conhecimento científico sem que antes
abdiquemos dos ídolos patrocinadores dos preconceitos. Em sua obra Novum Organum
(1620), Bacon nos apresenta as ideias basilares daquilo que denomina filosofia
experimental, que tem como meta a teorização de uma nova técnica de pesquisa da
natureza. Como vimos acima, a ciência antiga apoiava-se na contemplação e na
descrição da natureza. Por sua vez, Bacon descreve um método demonstrativo que se
opõe aos moldes desta maneira de fazer e pensar a ciência. Sua nova proposta assevera
que a aquisição do conhecimento não poderia mais ser meramente contemplativa, mas
deveria favorecer intervenções no ambiente físico, concedendo ao homem certo controle

19 
 
 

sobre fenômenos naturais. Bacon também propõe uma radical inversão de


procedimentos. O conhecimento antigo era baseado em uma metodologia de reflexão
bastante abstrata, onde princípios universais eram obtidos de maneira direta e por
intermédio da razão, para posteriormente, serem confirmados pela observação de casos
particulares. Contrapondo-se a essa maneira de agir, Bacon afirma que somente por
meio de uma criteriosa análise de casos particulares que se pode, num segundo
momento, chegar a leis universais. A partir de agora a metodologia da ciência obedeceria
a uma nova abordagem, e seria rotineiramente depurada na medida em que outros
pensadores, como René Descartes passassem a contribuir ainda mais com esta
necessária revolução. A construção do conhecimento científico passou a envolver a
observação cuidadosa, a experimentação bem planejada e a formulação de hipóteses e
teorias.

Atualmente, muitas das abordagens propostas no século XVI e XVII ainda são caras aos
cientistas, muito embora tenhamos avançado bastante desde os primórdios da revolução
científica. As hipóteses e teorias provenientes das observações e experimentações
criteriosas ambicionam expor e explicar a realidade sob variadas perspectivas
particulares. Quer tenha o cientista uma orientação fundamentada a partir da física, ou
da biologia, ou da astronomia, ou das ciências sociais, e mesmo que cada uma dessas
áreas do conhecimento seja detentora de práticas e metodologias cada vez mais
diversificadas, ainda assim é possível observar elementos fundamentais que lhe são
comuns e que compõem os caracteres gerais do método científico, como por exemplo, o
raciocínio indutivo.

O fundamento da ciência é o pensamento estruturado racionalmente. Todavia, o


raciocínio lógico pode obedecer a várias facetas e apresentar-se na forma dedutiva ou
indutiva. A dedução foi, sem sombra de duvidas, o método mais utilizado pela ciência
na antiguidade. Ela parte de um conhecimento prévio e atinge verdades sobre um caso
particular, como no exemplo abaixo.

20 
 
 

Todo homem é mortal.

João é homem.

Logo, João é mortal.

Aristóteles em sua obra Órganum, mais especificamente na parte Tópicos, nos apresenta
maneiras que julgava correta de raciocinar, e com isso, fazer ciência. Aprecie
(ARISTÓTELES, 1978, p.5):

Ora, o raciocínio é um argumento em que, estabelecidas certas coisas,


outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primeiras. (a)
O raciocínio é uma “demonstração” quando as premissas das quais partes
são verdadeiras e primeiras, ou quando o conhecimento que delas temos
provém originariamente de premissas primeiras e verdadeiras; e, por
outro lado (b), o raciocínio é “dialético” quando parte de opiniões
geralmente aceitas. São “verdadeiras” e “primeiras” aquelas coisas nas
quais acreditamos em virtude de nenhuma outra coisa que não seja elas
próprias; pois, no tocante aos primeiros princípios da ciência, é descabido
buscar mais além o porquê e as razões dos mesmos; cada um dos
primeiros princípios deve impor a convicção da sua verdade em si mesmo
e por si mesmo. São por outro lado, opiniões “geralmente aceitas” aquelas
que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou os filósofos – em
outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e eminentes.

Nota-se que, para Aristóteles, a verdade já estava no mundo. Bastava somente


contemplar o universo, o cosmos. É patente também a certeza que Aristóteles tem de
que alguns homens são mais notáveis do que outros, por isso tem mais autoridade para
afirmar as verdades. Como vimos, tais pressupostos são muito atacados na
modernidade.

Foto 3: Aristóteles

21 
 
 

A obra Órganum trata da lógica – regras do pensamento correto e científico. Nela, há


inúmeros exemplos de raciocínios dedutivos. Inclusive, por meio deles, este filósofo
desenvolveu sua ética, ou seja, a maneira pela qual acreditava que o homem poderia
alcançar a vida boa e a convivência harmoniosa. Para ele, o universo (todo) era
harmônico, finito e organizado. Tudo nele tinha uma finalidade: o vento, as marés, os
animais etc - Aquela mesma finalidade que foi questionada por Galileu. Lembra? Logo,
o homem (particular) também deveria ter o seu telos, a sua finalidade. Você consegue
perceber o caráter dedutivo desta ideia caro (a) aluno (a)?

A indução, também é apresentada por Aristóteles, ainda que este acredite ser esta, uma
maneira menos potente de se chegar à verdade. Note (ARISTÓTELES, 1978, p.5):

[...] Estabelecidas estas distinções, devemos distinguir agora quantas são


as espécies de argumentos dialéticos. Temos por um lado a indução e por
outro o raciocínio. Já dissemos antes o que é o raciocínio; quanto à
indução, é a passagem dos individuais aos universais, por exemplo, o
argumento seguinte: supondo-se que o piloto adestrado seja o mais
eficiente, e da mesma forma o auriga adestrado, segue-se que, de um
modo geral, o homem adestrado é o melhor em sua profissão. A indução
é, dos dois, a mais convincente e mais clara; aprende-se mais facilmente
pelo uso dos sentidos e é aplicável à grande massa dos homens em geral,
embora o raciocínio seja mais potente e eficaz contra pessoas inclinadas
a contradizer.

A indução ganhou força como alicerce da ciência somente na


modernidade. Inicialmente observam-se casos particulares, no anseio de
estabelecer uma lei geral para casos onde ainda não se tem
conhecimento. Acompanhe o exemplo abaixo:

O ferro conduz eletricidade.

O ouro conduz eletricidade.

O chumbo conduz eletricidade.

A prata conduz eletricidade.

Logo, todo metal conduz eletricidade.

22 
 
 

Essas duas formas de aplicação do pensamento estão presentes em nossa vida prática.
Contudo, o processo indutivo é basilar no campo científico, ainda que assuma padrões
bem mais rigorosos e complexos do que aqueles exigidos em nosso cotidiano.
Voltaremos em breve a este assunto.

René Descarte e o Discurso do Método

René Descartes (1596 – 1650), também conhecido por seu nome latino Renatus
Cartesius, atuou como filósofo, matemático e físico e foi uma das principais personagens
da revolução científica. Descartes é, muitas vezes, identificado como o fundador da
filosofia moderna e o pai da matemática moderna, e é também considerado um dos
pensadores mais admiráveis e influentes da história do pensamento ocidental. Não são
poucos os estudiosos que afirmam que foi a partir de Descartes que o racionalismo da
idade moderna foi inaugurado.

Figura 3: René Descartes

Descartes é bastante conhecido no senso comum graças à sua famosa frase: “Penso,
logo existo”, em latim: “Cogito, ergo sum”, ainda que a esmagadora maioria das pessoas
não tenha uma ideia muito clara do que subjaz a esta afirmação. A frase de Descartes é
na realidade um pouquinho diferente: "Eu duvido, logo penso, logo existo", “Dubito, ergo
cogito, ergo sum”, e é a conclusão de um longo argumento apresentado por Descartes
depois que passou a duvidar até mesmo de sua existência enquanto pessoa. Sua dúvida
cessou quando percebeu que quem duvida pensa, e quem pensa, existe de forma

23 
 
 

indubitável. Calma querido (a) aluno (a), não se apresse em julgar Descartes um
desmiolado qualquer. O objetivo de Descartes era basear o conhecimento humano em
um alicerce seguro, concedendo ao homem fundamentações cognitivas que o
libertassem do conhecimento medieval, cujas bases eram pouco seguras. Descartes
concedeu-se o direito de colocar em dúvida todo o conhecimento aceito como verdadeiro
e, de inicio, radicalizou, pondo em duvida até mesmo a possibilidade de sua existência.
O ceticismo é o ponto de partida de sua argumentação, ainda que não se solidifique nesta
posição. O ceticismo de Descartes é somente o início de sua argumentação. Ao colocar
em dúvida todo o conhecimento que possuía, percebeu que não era possível colocar em
dúvida a existência do ser que duvidava, chegando assim à sua primeira certeza: se
duvido, penso; se penso, logo existo.

Em sua outra obra Meditações (1641), Descartes faz uso de um método bem arquitetado
com o propósito de afastar todo juízo duvidoso, incapaz de garantir o saber verdadeiro.
Assim como muitos dos grandes pensadores, Descartes faz uso de uma argumentação
bastante complexa e de um raciocínio baseado em premissas e conclusões logicamente
necessárias. Ao anunciar a verdade primeira "eu existo", Descartes justifica todo o desejo
pelo conhecimento e prenuncia um novo tempo, uma nova Ciência e um novo método de
investigar o mundo. Sua obra Discurso do Método (1637) providencia as bases da
constituição do método científico. Nela, Descartes proclama quatro regras imperativas
para todos os que querem chegar ao conhecimento verdadeiro e desejam evitar os
equívocos e as ilusões que os sentidos e os julgamentos baseados em pressupostos mal
fundamentados podem originar. As quatro regras são importantíssimas e, apesar de
terem sido apresentadas em 1637, muitas pessoas ainda a desconhecem totalmente, o
que, em parte explica muitos dos mal entendidos que ainda teimam em nos assombrar.

Primeira Regra - Evitar tomar por verdadeira qualquer proposição que não seja
diretamente evidente, ou seja, que não se apresenta ao pensamento de forma clara e
abalizada.

Segunda Regra - Como as proposições de conhecimento só devem ser aceitas quando


se mostrarem evidentes ao intelecto, é necessário dividir os problemas complexos em
partes menores, para então compreendê-las melhor e resolver a questão. Este
procedimento é denominado de análise.

24 
 
 

Terceira Regra – Realizada a análise, obtém-se um conjugado de reflexões dispersas,


cada uma delas relativas a cada parte do objeto ou problema em questão. Deve-se então
recompor os elementos anteriormente separados, organizando as reflexões e
descobertas realizadas sobre cada um deles. Este processo é denominado síntese, e
determina que se inicie dos raciocínios mais simples, ascendendo gradativamente até os
mais complexos, e sempre obedecendo a uma ordem de coerência lógica. Segundo
Reale e Antisseri (2004, p. 290), “quando esta ordem não existe, é preciso supô-la como
a hipótese mais conveniente para interpretar e expressar a realidade efetiva”.

Quarta regra – Com vistas a garantir a certeza do conhecimento construído é necessário


passar em revista todo o processo. Enumeram-se todos os elementos analisados para
então refletir sobre a validade das sínteses realizadas. Segundo Descartes, essas quatro
regras devem ser aplicadas a todo processo de conhecimento que pretenda alcançar um
resultado rigoroso.

É importante frisar, contudo, que Descartes era um racionalista, e isso significa que ele
acreditava ser possível chegar às verdades por meio exclusivo do pensamento. Existem
outros filósofos conhecidos como empiristas, que acreditam que todo nosso
conhecimento é oriundo da experiência que travamos com o mundo por meio dos nossos
sentidos. David Hume, que vamos conhecer em breve, e John Locke, são exemplos de
empiristas. Sendo assim, apesar de Descartes ter-nos legado um método rigoroso para
pensar, não podemos afirmar que ele era um cientista, pois acreditava que poderia
prescindir das experiências, tão caras ao que hoje denominamos de método científico.
Entretanto, o cientista da atualidade ainda faz uso das quatro regras que Descartes
propôs, mas acrescentam a elas experimentos bem controlados e dependentes de
nossas percepção e fruição sensorial.

Outro fato digno de menção é a concepção equivocada que o senso comum tem da
palavra reducionismo. No dia a dia costuma-se falar que uma pessoa com visão limitada
das coisas, tendenciosa, é reducionista. Porém, o reducionismo, que nasceu com
Descartes, tem um significado bastante diferente para a ciência. É imperativo, para
aqueles que querem conhecer o todo, fragmentá-lo em pequenas partes, como nos
propõe Descartes em seu Discurso do Método. O reducionismo facilita o trabalho do
cientista. Sobre este assunto podemos lembrar-nos de uma pitoresca passagem que o
neurobiólogo Eric R. Kandel nos presenteia em seu livro Em Busca da Memória: o
25 
 
 

nascimento de uma nova ciência da mente, assim como em um DVD lançado no Brasil
pela Duetto cujo título é A Neurociência de Eric Kandel. Nessas obras Kandel se recorda
de quando era um estudante de medicina e resolveu fazer carreira científica em
neurobiologia. Em seu primeiro contato com seu orientador Kandel afirmou que queria
realizar uma pesquisa científica com vistas a descobrir o local preciso no cérebro onde
se situava o Id, o Ego e o Superego, conhecidos conceitos propostos por Sigmund Freud,
o pai da psicanálise. Segundo nos relata Kandel, neste momento, seu futuro orientador
perdeu totalmente o brilho em seu olhar e emendou: O que acha de começar pesquisando
um único neurônio?

Foto 4: Sigmund Freud

Foto 5: Eric Kandel

26 
 
 

O Gênio Issac Newton

No rastro do grande salto do pensamento humano caberia a Isaac Newton (1642 – 1727)
obter a máxima expressão dentro da revolução científica deflagrada por Copérnico. Sua
obra maior foi os Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (Princípios Matemáticos
da Filosofia Natural), de 1687. Nela, Newton consegue sintetizar todo o conhecimento
científico disponível até aquele momento, descrevendo de forma majestosa a natureza
física a partir de sólidos referenciais metodológicos que estavam a serviço de novas
teorias, como a teoria da gravitação universal e as três leis gerais do movimento.

Foto 6: Issac Newton

Newton estabelece no livro III dos Principia algumas regras do raciocínio filosófico,
diretamente relacionadas à sua maneira de pensar e fazer ciência (NEWTON, 1979,
p.18). Essas regras contribuirão para o arremate final da Revolução Científica principiada
por Copérnico. Este comportamento de Newton esta ligado a três importantes
pressupostos assumidos pela ciência moderna. Agora, indaga-se pela razão matemática
ou função de cada coisa, e não mais, como na ciência antiga, pela substância de cada
coisa. Os fenômenos físicos passam a ser decodificados a partir de parâmetros
relacionais extrínsecos aos corpos, isto é, as próprias leis naturais. Logo, deixam de ser
vistos como uma interação de qualidades substanciais. Fora isso, o procedimento
indutivo deve estar firmemente amparado por experiências e demonstrações, uma vez
que não serão mais tolerados argumentos que estejam apoiados em dogmas de caráter
religioso ou mesmo filosófico. A física newtoniana passa a demarcar os territórios da
ciência e da metafísica. E se tudo isso ainda não fosse suficiente, o trabalho de Newton
27 
 
 

permaneceu por um amplo período de tempo orientando a prática científica, além de ter
tido a honra de ser considerado o primeiro paradigma científico. Paradigma pode ser
definido de várias maneiras, como um conjugado de métodos e ideias; como a aceitação
de uma determinada ontologia do mundo; como um contíguo de ideias sobre o campo
científico; como um conjunto de explicações para determinados problemas e anomalias
da ciência, entre outras definições. Mais à frente, versaremos um pouco mais sobre essa
questão, quando falarmos sobre os trabalhos do filósofo da ciência Thomas Kuhn.

Para saber mais:


Assista a vídeo aula com este conteúdo e acessando o site: http://www.e-
marcelloarias.com.br

28 
 
 

MÓDULO 3

A filosofia da Ciência

A separação entre filosofia e ciência ocorreu recentemente, mais especificamente na


modernidade. Como vimos, neste momento, grandes nomes do pensamento humano
transitavam pelas duas formas de saber, como Francis Bacon (1561-1626) e Isaac
Newton (1643-1727). Na contemporaneidade, ainda que a ciência tenha se transformado
em um campo diverso da filosofia, é possível perceber um ativo intercâmbio entre elas
por meio da filosofia da ciência, que tem como principal objetivo olhar criticamente para
a ciência, estando do lado de fora deste campo do saber. Isso é imprescindível para que
a ciência não corra o risco de ser abduzida por dogmas invisíveis aos olhos de seus
agentes.

O pensamento científico tem nos proporcionado um maior entendimento do universo e


de nós mesmos. Sua metodologia e seus rigorosos critérios têm sido frequentemente
aprimorados desde que os primeiros pensadores da modernidade lançaram suas bases.
Nada na ciência é protegido e blindado, ou ao menos, não deveria ser. Nada na ciência
tem a ver com dogmas, ou ao menos não deveria ter. Nem mesmo a indução é protegida
das críticas. Ainda que por muito tempo o princípio da indução tenha sido identificado
como elemento central do próprio método científico, muitos filósofos, principalmente
aqueles devotados a pensar a ciência, têm criticado a confiabilidade da concepção
indutivista da ciência. Que tal compreendermos melhor esta questão?

David Hume (1711 – 1776), importante filósofo britânico é conhecido devido,


principalmente, por ter escrito duas obras primas da filosofia, Tratado da Natureza
Humana (1739) (HUME, 2000) e Investigação Acerca do Entendimento Humano (1748)
(HUME, 2003). Uma de suas principais ambições é distinguir as relações de ideias e as
questões de fato, dois elementos distintos no pensamento racional. Vamos entender
isso melhor? As relações de ideias são as proposições matemáticas. Elas podem ser
reveladas somente por meio do pensamento, pois descartam a necessidade de quaisquer
elementos externos para serem realizadas. Por outro lado, as questões de fato fazem
29 
 
 

referência às coisas do mundo, que estão no mundo, e, por este motivo, não podem
prescindir da experiência e da intermediação dos nossos sentidos. Para David Hume,
quando pensamos sobre as questões de fato, inapelavelmente teremos que lidar com as
relações de causa e efeito, e essas relações nos permitem constatar a existência de
uniões entre os fatos presentes com aqueles que os antecederam. Notem que, as
questões de fato são de âmbito científico, pois tratam de algo necessariamente ligado à
experiência. Sendo assim, a indução consistiria precisamente na projeção para o futuro,
dessa relação anteriormente experimentada no passado. Contudo, Hume nos alerta que
a inferência causal em que nos amparamos para confiar que causas futuras
aparentemente semelhantes às causas passadas provoquem efeitos futuros
semelhantes aos efeitos passados, não se baseia num raciocínio, mas, apenas, na
experiência de eventos observados anteriormente e na esperança de que o andamento
das coisas continuará a ser o mesmo que tem sido até agora, o que, convenhamos, não
está efetivamente demonstrado. Logo, se quisermos ser rigorosos, teremos que admitir
que, a inferência causal ou indução não é fruto de um elaborado raciocínio lógico, mas é
originada pelo hábito resultante de nossa experiência com as repetições que se
manifestaram no passado. O que nos faz acreditar que estamos lidando com questões
de fato provém apenas de uma crença na continuidade do futuro conforme nossa
experiência passada. Hume argumenta que se quisermos respeitar às regras da lógica –
conheceremos algumas delas na Unidade 3 -, mesmo partindo de um grande número de
observações repetidas de um determinado fenômeno, nada nos autoriza a pressupor com
plena certeza, a reprodução do mesmo evento amanhã. Este é o conhecido problema
humeano da indução, a partir do qual não haveria possibilidade de defesa para nossas
inferências indutivas. Tal questão conserva-se, ainda hoje, como a base dos argumentos
de alguns céticos.

Foto 7: David Hume

30 
 
 

Como você pôde ver até aqui meu/minha aprendiz de cientista, o raciocínio indutivo
consiste na generalização de uma hipotética lei com base na regularidade de fatos
observados no passado, e agindo assim, assumimos que a natureza se manifesta por
meio de regularidades. Entretanto, trata-se de um processo em aberto, uma vez que o
conjunto de casos que confirmam determinada teoria será sempre de caráter provisório,
e isto se deve a dois motivos. O primeiro motivo é que não podemos afastar a hipótese
de nos depararmos com novos casos que contradigam a evidência fornecida pelos
casos anteriormente observados, o que, por si só, refutaria a teoria. O segundo motivo
é o fato de não podermos garantir que os eventos futuros comportem-se tal como
foram observados no passado. Desta forma temos duas objeções contra o processo
de inferência indutiva. A primeira delas é que na maioria das pesquisas científicas é
impossível a observação de todos os casos particulares. Logo, até que ponto uma lei
geral, universal, pode ser alcançada pela indução de um número finito de observações?
Quais seriam os parâmetros para definir a quantidade suficiente de casos observados
para a generalização de uma hipótese? Isso é possível? A segunda objeção é o
pressuposto da regularidade da natureza. Podemos afirmar com segurança a existência
futura de repetição dos eventos? Essa afirmação está fundamentada em algum tipo de
necessidade lógica?

A imperfeição da ciência não é novidade. Em seu nascimento, ou seja, ainda na


modernidade, seus alicerces já eram criticados, como no caso de David Hume. Todavia,
se parássemos por aqui muito provavelmente não estaríamos sendo nada justos com a
ciência. No já comentado livro de Carl Sagan, O mundo assombrado pelos demônios: a
ciência vista como uma vela no escuro, o autor nos apresenta mais uma calorosa defesa
desta magnífica maneira de pensar o mundo. Sua maneira de escrever é tão elegante
que opto por citá-lo na íntegra nos parágrafos abaixo. Veja que elucidativo (SAGAN,
1997, p.40-41):

Há muita coisa que a ciência não compreende, muitos mistérios que ainda
devem ser resolvidos. Num universo com dezenas de bilhões de anos-luz
de extensão e uns 10 ou 15 bilhões de anos de idade, talvez seja assim
sempre. Tropeçamos constantemente em surpresas. Entretanto, para
alguns escritores religiosos e da nova era, os cientistas acreditam que “só
existe aquilo que descobrem”. Os cientistas podem rejeitar revelações
místicas para as quais não há outra evidência senão o testemunho de
31 
 
 

alguém, mas dificilmente acreditam que seu conhecimento da natureza


seja completo.
A ciência está longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento. É
apenas o melhor que temos. Nesse aspecto, como em muitos outros, ela
se parece com a democracia. A ciência, por si mesma, não pode defender
linhas de ação humana, mas certamente pode iluminar as possíveis
consequências de linhas alternativas de ação.

O método científico de pensar é ao mesmo tempo imaginativo e


disciplinado. Isso é fundamental para o seu sucesso. A ciência nos
convida a acolher os fatos, mesmo quando eles não se ajustam às nossas
preconcepções. Aconselha-nos a guardar hipóteses alternativas em
nossas mentes, para ver qual se adapta melhor à realidade. Impõe-nos
um equilíbrio delicado entre uma abertura sem barreiras para ideias
novas, por mais heréticas que sejam, e o exame cético mais rigoroso de
tudo – das novas ideias e do conhecimento estabelecido. Esse tipo de
pensamento é também uma ferramenta essencial para a democracia
numa era de mudanças.

Uma das razões para seu sucesso é que a ciência tem um mecanismo de
correção de erros embutido em seu próprio âmago. Alguns talvez
considerem essa caracterização demasiado ampla, mas para mim, toda
vez que fazemos autocrítica, toda vez que estamos nossas ideias no
mundo exterior, estamos fazendo ciência. Quando domos indulgentes
conosco mesmos e pouco críticos, quando confundimos esperanças e
fatos, escorregamos para a pseudociência e a superstição.

Toda vez que um artigo científico apresenta dados, eles vêm


acompanhados por uma margem de erro – um lembrete silencioso, mas
insistente, de que nenhum conhecimento é completo ou perfeito. É uma
calibração de nosso grau de confiança naquilo que pensamos conhecer.
Se as margens de erro são pequenas, a acuidade de nosso conhecimento
empírico é elevada; se são grandes, então é também enorme a incerteza
de nosso conhecimento. Exceto na matemática pura - e, na verdade, nem
mesmo nesse caso -, não há certezas no conhecimento.

Quando Sagan fala de mecanismo de correção de erros, faz referência aos cálculos
estatísticos que devem acompanhar todo e qualquer trabalho científico de caráter
quantitativo. A estatística faz uso de cálculos matemáticos e se dedica à coleta, análise
e interpretação de dados que visam determinar as probabilidades dos fenômenos
estudados no presente voltarem a ocorrer no futuro. A estatística baseia-se na medição
do erro que há entre a estimativa de quanto uma amostra representa adequadamente a
população da qual foi extraída. É o erro amostral que determina a qualidade da
observação e do delineamento experimental, e este também é um dos inúmeros critérios
que diferenciam pesquisas científicas de alta qualidade, daquelas detentoras de pobres

32 
 
 

predicados. Por convenção, a probabilidade de um evento é definida como um número


entre zero e um, sendo um o equivalente a 100%, o que, como vimos na crítica feita à
indução, é virtualmente impossível de ser atingido. Quanto a isso, mais uma vez Sagan
colabora conosco (SAGAN, 1997, p.42):

Os seres humanos podem ansiar pela certeza absoluta; podem aspirar a


alcança-la; podem fingir, como fazem os partidários de certas religiões,
que a atingiram. Mas a história da ciência – de longe o mais bem sucedido
conhecimento acessível aos humanos – ensina que o máximo que
podemos esperar é um aperfeiçoamento sucessivo de nosso
entendimento, um aprendizado por meio de nossos erros, uma
abordagem assintomática do universo, mas com a condição de que a
certeza absoluta sempre nos escapará.

Método científico: a concepção tradicional e a concepção de Karl Popper

Nosso intuito agora é levá-lo (a) a conhecer outras ideias de bastante relevância para
todos aqueles que almejam compreender o significado e os limites daquilo que
chamamos ciência, e a apresentação de Karl Popper é de fundamental importância para
que sejamos bem sucedidos nessa nossa empreitada, uma vez que Popper é tido por
muitos como o maior filósofo da ciência que já existiu, e provavelmente um dos maiores
filósofos, em termos gerais, do século XX, senão o maior (MAGGE, 2001).

Foto 8: Karl Popper

O ganhador do prêmio Nobel de medicina, Sir Peter Medawar, afirmou o seguinte em um


programa da BBC, em 28 de Julho de 1972: “Penso que Popper é, sem duvida, o maior
filósofo da ciência que já existiu”. Medawar não é o único que pensa desta maneira, uma
vez que outros nobelistas já se pronunciaram publicamente sobre esta questão, como
Jacques Monod e Sir John Eccles. Este último escreveu em seu livro Facing Reality de
1970: “... Minha vida cientifica deve tanto a minha conversão, se assim posso denominá-
33 
 
 

la, abraçando os ensinamentos de Popper, acerca da conduta da investigação cientifica...


que me empenhei em seguir Popper na formulação e na investigação de problemas
fundamentais da neurobiologia.”. Popper e Eccles ficaram tão próximos que até
escreveram um livro marcante conjuntamente, O Eu e Seu Cérebro (POPPER &
ECCLES, 1991). Eccles, de fato, chega a aconselhar seus colegas no sentido de que
“Leiam e meditem acerca do que Popper escreve a propósito de filosofia da ciência,
adotando suas ideias como base de operação na atividade cientifica”.

Popper é um ardoroso defensor da filosofia e afirma que ela é uma atividade necessária
porque todos nós temos pressupostos, e alguns deles são de cunho filosófico. Nossas
ações são pautadas neles, muito embora alguns sejam falsos, e até mesmo perniciosos.
Sendo assim, seria prudente que passássemos a examinar criticamente nossos
pressupostos, ou seja, analisá-los por intermédio e apoio do método filosófico. Isso,
segundo Popper, além de intelectualmente importante é moralmente necessário. Partindo
desse princípio, fica evidente que para Karl Popper a filosofia é algo que deve estar a
serviço da vida. Não pode ser relegada a uma mera atividade acadêmica (MAGEE, 1973,
p.17).

Se você se recorda, no início deste texto versamos sobre como a ciência esmera-se na
descoberta de leis que regem o universo. Todavia, acredito que neste momento seja
prudente versarmos um pouco mais detalhadamente sobre esta questão. Quem nos
auxiliará nesta empreitada é o filósofo Brian Magge, de onde retirei os parágrafos abaixo
(MAGEE, 1973, p.17):

A palavra “lei” é ambígua e qualquer pessoa que fale de “violação” de uma


lei natural ou científica confunde os dois modos principais de empregar
aquela palavra. Uma lei social prescreve o que podemos e o que não
podemos fazer. Ela pode ser violada; em verdade, se não pudesse, ela
seria desnecessária: a sociedade não formula normas para impedir que
uma pessoa esteja simultaneamente em dois lugares diversos. A lei da
natureza, por outro lado, não é prescritiva, mas descritiva (MAGEE, 1973,
p.20).

A formulação de leis naturais tem sido encarada desde há muito, pelo


menos desde Newton, como uma das tarefas mais importantes da ciência.
Todavia, a descrição sistemática do procedimento a adotar, na busca das
leis só foi feita por Francis Bacon. Embora, suas ideias tenham sido
ampliadas, depuradas, hajam sido restringidas e tornadas mais

34 
 
 

sofisticadas, alguma coisa da tradição que Bacon inaugurou foi aceita pela
quase totalidade das pessoas de índole científica, do século XVII ao
século XX. Em linhas genéricas, a situação é a seguinte. O cientista
principia efetuando alguns experimentos, cujo objetivo é o de permitir
observações cuidadosamente controladas e meticulosamente medidas –
em algum ponto da fronteira entre nosso conhecimento e nossa
ignorância. O cientista registra sistematicamente seus achados, divulga-
os, talvez, e, com o correr do tempo, ele e outros pesquisadores que
trabalham na mesma área chegam a acumular uma porção de dados
comuns e dignos de crédito. Crescendo o número de dados, traços de
ordem geral principiam a emergir e os pesquisadores começam a formular
hipóteses gerais – enunciados de caráter legalóide que se ajustam a todos
os fatos conhecidos e explicam de que modo eles se relacionam
casualmente entre si. O cientista procura confirmar sua hipótese,
encontrando evidência que lhe de apoio. Bem sucedido nesta tentativa de
verificação, o cientista descobre mais uma lei científica – lei que lhe
permitirá desvendar mais alguns segredos da natureza. Trabalha-se,
então, nessa nova linha: a descoberta é aplicada em todos os casos que,
segundo se imagina, permitam coleta de informações adicionais. O
conhecimento científico amplia-se dessa maneira, e a fronteira de nossa
ignorância é levada para adiante. O processo se repete num ponto da
fronteira nova.

Como vimos, o método que permite que toda esta sequência descrita por Magee seja
realizada é o método indutivo. Durante muito tempo este procedimento foi considerado o
critério de demarcação entre ciência e não ciência. Vimos também que Hume lançou
algumas dúvidas sobre esta questão.

[...] E não pode ser estabelecido com base em argumentos lógicos, pois
que do fato de futuros passados se terem assemelhado a passados, não
deflui que todos os futuros venham a assemelhar-se aos passados futuros
(MAGEE, 1973, p.22-23).

Embora não existam meios de ratificar a validade dos procedimentos indutivos, devido à
constituição psicológica dos homens, não lhes resta alternativa senão a de ponderar em
termos de tais procedimentos indutivos. No cotidiano, esses procedimentos concedem-
nos alguma legitimidade de ordem prática. Na ciência, também. Todavia, não devemos
asseverar de forma contundente que falte fundamentação racional para as leis científicas,
ou mesmo que elas não se apoiem na lógica e na experiência. Mas, também, não nos é
permitido afirmar que a ciência é detentora de metodologias blindadas. Leia abaixo:

35 
 
 

Precisamos admitir que, estritamente falando, as leis científicas não


podem ser demonstradas e, portanto, que não são certas. Ainda assim,
cada caso confirmador eleva o seu grau de probabilidade; além disso, ao
conjunto do passado conhecido, cada momento de permanência do
mundo acrescenta incontáveis bilhões de exemplos confirmadores – e
nenhum contraexemplo. Assim, embora não certas, as leis científicas são
prováveis, no mais alto grau que é possível conceber; e, na prática, senão
em teoria, isso não se distingue da certeza. [...] Quase todos os cientistas,
quando refletem acerca dos fundamentos lógicos do que estão fazendo,
aceitam essa maneira de ver. Para eles, a coisa verdadeiramente
importante é que a ciência desempenha seu papel – opera, produz uma
corrente infindável de resultados práticos. Assim, em vez de continuarem
a lutar com um problema lógico aparentemente insolúvel, preferem
prosseguir com a atividade científica e alcançar maior número de
resultados. Não obstante, os cientistas mais inclinados à reflexão
filosófica têm-se sentido profundamente perturbados. Para eles e para os
filósofos, de modo geral, a indução se tem apresentado como um
problema não resolvido e relativo aos fundamentos mesmos do
conhecimento humano e, até que possa ser solucionado, o conjunto da
ciência, conquanto intrinsecamente coerente e extrinsecamente útil, deve
ser visto como algo que flutua no ar, não ligado a terra firme (MAGEE,
1973, p.23-24).

Popper tenta apaziguar um pouco este aparente mal estar no momento em que aponta
para a assimetria lógica existente entre a verificação e o falseamento, sendo este último
um importantíssimo conceito nos legado por Popper. Veja que bonito e elegante é este
pensamento:

Embora não existam números de enunciados de observação relatando a


observação de cisnes brancos que permita derivar o enunciado universal
“Todos os cisnes são brancos”, um só enunciado de observação relatando
uma única observação de cisne preto, é suficiente para permitir a dedução
lógica do enunciado “Nem todos os cisnes são brancos”. Neste importante
sentido lógico, as generalizações empíricas, embora não verificáveis, são
falseáveis. Isto significa serem as leis suscetíveis de testes, ainda que não
sejam demonstráveis: podem as leis científicas ser submetidas a teste
mediante sistemático esforço dirigido para a sua refutação (MAGEE,
1973, p.24-25).

Veja como o raciocínio é simples. Se um só cisne preto foi observado, então não se pode
afirmar que todos os cisnes sejam brancos. E isso é uma certeza! No universo da lógica,
se consideramos a relação entre enunciados, uma lei científica poderá ser

36 
 
 

conclusivamente falseada, embora não possa ser conclusivamente verificada


(MAGEE, 1973, p.25).

Brain Magee, em seu livro sobre Popper, nos concede um exemplo muito concreto.
Fomos ensinados que: “A água ferve a 100 graus centígrados” e que isso se reflete em
uma lei científica. Pelo que vimos até aqui, nenhum número de casos confirmadores
demonstrará categoricamente a veracidade dessa afirmação, mas ainda poderemos
esmiuçar a lei, submetendo-a a testes, e tentando encontrar circunstancias em que ela
deixe de vigorar. Descobriremos, então, que a água não ferve a 100 graus centígrados
quando está contida em recipientes fechados, e aquilo que supúnhamos ser uma lei
científica universal, imediatamente deixa de sê-lo. Note que, ao tentar falsear a lei,
ampliamos nosso conhecimento e melhorarmos o enunciado da mesma. Agora sabemos
que: “A água ferve a 100 graus centígrados em recipientes abertos”. Agora, o desafio é
refutar esse novo enunciado. Com mais um pouco de reflexão, a refutação da lei pode
ser descoberta a grandes altitudes, e uma vez que o cientista tenha se esmerado para
falsear aquilo que se acreditava ser verdade, um novo conhecimento se abre e um novo
enunciado científico, desta vez, ainda mais restrito, é produzido: “A água ferve a 100
graus centígrados, em recipientes abertos, sob pressão atmosférica igual à que se
constata ao nível do mar”. E as tentativas de falsear os enunciados seguiriam
ininterruptamente. Agindo desta maneira estamos delimitando com muito maior precisão
o nosso conhecimento científico a respeito do ponto de ebulição da água (MAGEE, 1973,
p.26).

Perceba que, de forma bastante resumida, é desta maneira que Popper acredita que o
conhecimento progride, pois, se nos esmerássemos na verificação dos casos que
confirmassem o enunciado original da lei científica, mesmo que reuníssemos trilhões de
exemplos confirmadores, ainda assim o conhecimento não progrediria e não poderíamos
afirmar categoricamente que tínhamos atingido a verdade. Você está compreendendo a
questão caro (a) aluno (a)?

O aspecto mais negativo, todavia, está em que, ao acumular evidência


favorável, não se lança dúvida sobre o enunciado original, de modo que
não surgem motivos para substituí-lo por outro, e o conhecimento fica
estagnado naquele estágio. Nosso conhecimento não teria progredido
como progrediu se, ao lado dos casos confirmadores, não tivessem, por

37 
 
 

acidente, surgido alguns contraexemplos. Acidentes desse tipo são o que


de melhor nos pode acontecer. É em tal sentido que muitas das famosas
descobertas científicas foram “acidentais”. Porque, em realidade, o
aumento do conhecimento se deve aos problemas e as nossas tentativas
de resolvê-los. Essas tentativas requerem a colocação de teorias que,
almejando resolver a dificuldade, precisam ir para além do conhecimento
existente e, portanto, exigem esforço de imaginação. Quanto mais ousada
a teoria, tanto mais ela nos diz, e mais atrevido o ato imaginativo. Todavia,
simultaneamente, torna-se maior a probabilidade de ser falso o que a
teoria afirma e é preciso submetê-la a testes rigorosos para verificá-lo. A
maior parte das grandes revoluções científicas deveu-se a teorias
temerárias, que exigiram imaginação criativa, profundidade de visão e um
pensamento desejoso de aventurar-se em regiões inseguras (MAGEE,
1973, p.28).

Note, somente em outros campos do saber, como na religião, na mitologia e no senso


comum podemos acreditar na obtenção da certeza dos enunciados, pois para a ciência,
todo e qualquer conhecimento é de natureza provisória. Sendo assim, é
contraproducente reproduzir o que muitos cientistas e filósofos tentaram fazer ao longo
da história, ou seja, trabalhar com vistas a justificar uma crença particular em certa teoria.
Segundo Popper, o que é possível fazer é explicar em detalhes a nossa preferência por
uma teoria, em detrimento de outra.

Nos exemplos sucessivos acerca da ebulição da água, nunca nos foi


possível mostrar que a teoria em vigor era verdadeira, mas sempre nos
foi possível esclarecer os motivos que a tornaram preferível, suplantando
a teoria anterior. Esta é a situação característica em qualquer
circunstância, a qualquer tempo. Inteiramente errônea é a concepção
popular de que a ciência engloba corpos de fatos estabelecidos. Nada na
ciência está permanentemente estabelecido, coisa alguma, nela, é
inalterável. Em verdade, a ciência está claramente em constante
modificação, e esta não se processa por simples acréscimo de novas
certezas. Se agirmos racionalmente, baseamos nossas decisões e
expectativas no que de melhor sabemos, até onde me é dado saber.
Admitimos a verdade dos nossos conhecimentos para efeitos práticos,
pois eles são a menos insegura base disponível. Sem embargo, não se
pode perder de vista o fato de que a experiência pode atestar, a qualquer
momento, que aqueles conhecimentos são errôneos e necessitam de
revisão (MAGEE, 1973, p.28).

A física newtoniana foi a mais importante e bem sucedida teoria científica


já formulada e acolhida. Tudo o que ocorria no mundo observável parecia
confirmá-la. Todavia, Albert Einstein colocou um fim nesta crença, pois
suas descobertas inviabilizaram a continuidade da física newtoniana
como sendo um baluarte intransponível. Contudo, se a teoria de Newton
38 
 
 

não é um corpo de verdades, inerente ao mundo, derivado pelo homem


da observação do real, como chegou a nascer? A resposta é: nasceu de
Newton. Foi uma hipótese levantada pelo homem, e que se ajustava muito
bem a todos os fatos conhecido até aquela época (MAGEE, 1973, p.31).

Qual critério de demarcação entre o que é ciência e o que não é ciência?

A concepção tradicional afirma que o que distingue a ciência da não ciência é a utilização
do método indutivo. Mas, os limites da indução inviabilizam conceder a ela o estatuto e a
primazia para delimitar esta demarcação. Sendo assim, precisamos de um critério. Qual
será? Popper afirma que qualquer tolo pode oferecer um enorme número de previsões
que tenham probabilidade igual a 1, ou seja, 100%. Isso pelo fato do conteúdo informativo
ser pobre. Pense na afirmação: Choverá! Ora, um dia, choverá em algum lugar. É
praticamente impossível falsear essa afirmação. Todavia, ao restringir o enunciado
podemos torná-lo falseável, como no exemplo: Choverá em São Vicente, no bairro do
Bitarú, na próxima quinta feira, no período da manhã. Agora passamos a ter alguma
informação útil, pois, quanto mais específico for o enunciado, mais provável será que ele
se mostre equivocado, mas, ao mesmo tempo, mais informativo e útil ele será, caso seja
verdadeiro (MAGEE, 1973, p.31). Pense bem, existe uma relação inversamente
proporcional que precisa ser entendida, pois, quanto maior o conteúdo informativo de um
enunciado, menor será a probabilidade dele se mostrar verdadeiro, pois quanto mais
informação ele contiver, maior será o número de maneiras segundo as quais ele poderá
se revelar falso. O que a ciência persegue são exatamente esses enunciados de alto
conteúdo informativo e de baixa probabilidade. Por serem altamente falseáveis,
esses enunciados são muito suscetíveis de serem submetidos a teste. Sendo assim, um
enunciado verdadeiro, com alto conteúdo informativo, aproxima-se muito mais de uma
completa, peculiar e detalhada descrição do mundo.

Popper sempre afirmou que a nossa ignorância tende a crescer com o nosso saber. Logo,
um iletrado, provavelmente tem muito menos duvidas do que um doutor em filosofia ou
neurobiologia ou sociologia, por exemplo (MAGEE, 1973, p.40). Para esclarecer um
pouco mais este problema, farei uso de minhas próprias dúvidas, advindas da conclusão
de meu trabalho de doutorado. Nele, investigamos, eu e meus colaboradores, os
possíveis efeitos de práticas de atenção plena na capacidade de cuidadores familiares
de pacientes com doenças neurodegenerativas lidar com o estresse. Sabemos de longa
39 
 
 

data que o envelhecimento da população mundial está relacionado com uma maior
incidência de doenças crônico-degenerativas causadoras de demência, entre as quais se
destaca o Alzheimer. Os cuidadores em geral costumam emergir do núcleo familiar, e a
sobrecarga física e psíquica imposta a eles, não raro os conduz a uma má qualidade de
vida, podendo gerar muitas doenças como infarto agudo do miocárdio, além de elevados
níveis de estresse, exclusão social, depressão, isolamento afetivo, corrosão dos
relacionamentos pessoais, perda da perspectiva de vida, distúrbios do sono e abusos de
substâncias psicotrópicas. Por esses motivos, a Organização Mundial da Saúde tem
preconizado a importância do cuidador familiar receber orientações e apoio já nos
primeiros momentos deste enfrentamento. Dentre as formas de intervenção passíveis de
serem implementadas com esta população podemos citar as práticas contemplativas.
Sendo assim, propusemos algumas delas a um grupo de voluntários e aferimos por meio
de questionários e escalas comportamentais os níveis de depressão, ansiedade,
estresse, qualidade de vida, autocompaixão e vitalidade. Também foram realizados
testes bioquímicos com vistas a detectar alterações dos marcadores de estresse, como
o hormônio cortisol. Os resultados foram altamente positivos e o trabalho foi aceito para
a publicação em uma importante revista internacional (DANUCALOV et al., 2013 ). Veja
como concluímos a pesquisa:

A partir da análise dos resultados, é possível concluir que a prática do protocolo proposto
neste trabalho:

• Repercutiu em diminuição dos níveis de estresse e menores escores para ansiedade e


depressão.

• Indicou aumentos na qualidade de vida, na vitalidade, na autocompaixão e na atenção


aos acontecimentos cotidianos.

• Reduziu as concentrações basais de cortisol salivar.

• Gerou benéficas alterações psicofisiológicas em cuidadores familiares.

De fato, os resultados foram tão auspiciosos que a pesquisa foi finalista do Prêmio Saúde
da Editora Abril na categoria saúde mental e emocional em 2013. Contudo, vamos tentar
clarificar as dúvidas que me acometem neste momento. As conclusões foram feitas com
base no protocolo de práticas seguido pelos voluntários do projeto. Entretanto, muitos
40 
 
 

dos voluntários da pesquisa chegavam mais cedo para as práticas e ficavam sentados
nos tatames da sala de prática dividindo suas experiências, falando sobre suas questões
particulares, suas dores, seus medos e suas preocupações. Não poderia, parte dos
resultados positivos obtidos nesta pesquisa, ser fruto dessa dinâmica de grupos informal
que se construiu naturalmente durante o desenrolar desta pesquisa? Quanto dos
benefícios medidos vem da prática do protocolo em si e quanto vem dos encontros e dos
diálogos de apoio mútuo que se teceram durante o tempo da referida pesquisa? Minha
presença teve algum impacto? Se fosse outro pesquisador, talvez um pouco mais frio e
distante do que eu, os resultados teriam sido os mesmos? Pense nisso com carinho e
parcimônia caro/a aluno (a).

Caso você queira fazer ciência da maneira como ela deve ser feita, sempre será assolado
por dúvidas. Quanto a isso o neurobiólogo John Eccles já afirmava que a crença
equivocada de que a ciência patrocina a certeza e as explicações categóricas, vem
acompanhada da ideia de que é grave crime divulgar hipóteses que possam vir a ser
falseadas no futuro. Por este motivo, alguns cientistas relutaram muitas vezes em
reconhecer a refutação de uma hipótese, e investiram uma enorme quantidade de
energia e tempo na tentativa de defenderem o que não tinha defesa alguma. Acompanhe
abaixo Magee citando Popper:

Segundo Popper, o falseamento total ou parcial é o destino que podemos


antecipar para todas as hipóteses. Deveríamos, inclusive, alegrar-nos
com o falseamento de uma hipótese que acalentamos como um filho
intelectual. Dessa forma, livramo-nos de temores e remorsos, tornando-
se a ciência uma aventura excitante em que a imaginação e a intuição
conduzem a desenvolvimentos conceituais que transcendem, em
generalidade e alcance, a evidência experimental. A concretização
dessas visões imaginativas em hipóteses abre caminho para o mais
rigoroso teste experimental, antecipando-se sempre que a hipótese possa
ser contestada, para ser substituída total ou parcialmente por outra
hipótese de maior poder explicativo (MAGEE, 1973, p.40-41).

Em seu cativante e provocativo livro Pensamento Crítico e Argumentação Sólida, Sergio


Navega nos convida a prestar mais atenção a algumas afirmações de cunho
pseudocientíficas que nos tem sido ofertadas por “gurus” do comportamento humano,
muitos deles atuantes no mundo corporativo, e franco autores e/ou propagadores das
literaturas de autoajuda. Veja algumas delas:
41 
 
 

O que você irá ler nas próximas páginas resulta de estudos e pesquisas
fundamentados na mais moderna tecnologia de aprendizagem e
comunicação conectada com os ensinamentos de veneráveis tradições
(CARMELO, 2000, p.15).

Todavia, o autor se esquece de apresentar de forma clara e inequívoca as referências


científicas de onde emergem suas afirmações. Esta atitude fere gravemente uma das
regras que devem ser sempre respeitadas quando nos arvoramos o direito de sermos os
porta vozes do campo científico, que é agir com total transparência com relação à
explicitação das fontes originais de onde brotaram os argumentos. Se negar a fazer isso
indica ou má fé, ou ingenuidade e ignorância quanto a tais regras vigentes no campo
científico.

Recentes estudos no campo da psicologia demonstram que precisamos de 21 repetições,


no mínimo, para que um hábito se forme (RIBEIRO apud NAVEGA, 2005, p.226).

Neste exemplo também temos acesso aos “recentes estudos”, e poderíamos contra
argumentar esta hipótese altamente falaciosa perguntando ao seu autor se ele teve que
enfiar seu dedo vinte e uma vezes no interior de uma tomada elétrica para, somente
depois de ter levado vinte e um choques, se habituar a não fazê-lo novamente.
Argumento passível de falseamento. Os resultados que, provavelmente obteríamos com
nosso autor, e com qualquer outro corajoso voluntário, me parecem bastante óbvios. O
que você acha caro (a) aluno (a)?

Em comunicação, há um segredo que poucos sabem: as palavras


representam apenas 7% de nosso poder de se comunicar. Além das
palavras, que você seleciona no momento em que está falando, você
utiliza a voz, em suas diversas tonalidades (modo de falar, timbre,
velocidade, volume), e a linguagem corporal. O tom de voz, o modo como
você fala, representa 38% do poder da comunicação; e a linguagem
corporal representa 55% desse poder (RIBEIRO apud NAVEGA, 2005,
p.226).

Desde que me deparei com a afirmação acima, venho tentando imaginar que tipo de
pesquisa poderia ser feita com a tecnologia atual para que chegássemos ao ponto de
poder realizar uma afirmação tão bombástica e de caráter quantitativo, sobre algo tão

42 
 
 

complexo e de caráter qualitativo como é a nossa linguagem. Sinceramente, não


identifico a mínima possibilidade para a concretização de tamanha façanha. Faz-me
lembrar de Kandel e seu Id, Ego e Superego. Não é necessário dizer que o autor não
indica as fontes pesquisadas. Todavia, podemos nos divertir com outros detalhes dessa
pérola da autoajuda. Se esses dados são segredo, como podem ser científicos? Todo e
qualquer conhecimento científico, só o é, pois se tornou público, uma vez que o cientista
tenha submetido sua pesquisa ao crivo de seus pares, para, posteriormente publicá-la
em conceituados periódicos científicos. Acompanhe o que Carl Sagan nos fala sobre
essa interessante dinâmica do campo científico:

Os encontros científicos vivem cheios de disputas. Há colóquios


universitários em que o conferencista mal discursou trinta segundos e já
se ouvem perguntas e comentários devastadores na plateia. É instrutivo
examinar os procedimentos aos quais um relatório escrito é submetido
para possível publicação numa revista científica, sendo depois enviado
pelo editor a juízes anônimos que tem como tarefa fazer as seguintes
perguntas: o autor fez alguma besteira? Existe alguma coisa nesse
trabalho que seja suficientemente importante para ser publicada? Quais
são as características desse artigo? Os resultados mais importantes
foram descobertos por outra pessoa? A argumentação é adequada, ou o
artigo deveria ser reavaliado depois que o autor realmente demonstrar
aquilo que nesse trabalho, por ora, é ainda especulação? E tudo isso é
anônimo: o autor não sabe quem são os críticos. Essa é a expectativa
comum na comunidade científica.

Por que toleramos tudo isso? Gostamos de ser criticados? Não, nenhum
cientista gosta disso. Todo cientista tem um sentimento de propriedade
em relação a suas ideias e descobertas. Mesmo assim ninguém responde
aos críticos: “Esperem um pouco; essa ideia é realmente boa; gosto muito
dela; não lhe faz mal algum; por favor, deixem-na em paz”. Em vez disso,
a regra dura, mas justa é que, se não funcionam, as ideias devem ser
descartadas. Não se devem desperdiçar neurônios com o que não
funciona. Eles devem ser aplicados em novas ideias que expliquem
melhor os dados. O físico britânico Michael Faraday alertou contra essa
tentação poderosa: “de procurar as evidências e aparências que estão a
favor de nossos desejos, e desconsiderar as que lhe fazem oposição [...].
Acolhemos com boa vontade o que concorda com nossas ideias, assim
como resistimos com desgosto ao que se opõe a nós, enquanto todo o
preceito de bom senso exige exatamente o oposto”. A crítica válida presta
um favor ao cientista (SAGAN, 1997, p.46).

Descobrir a gota ocasional de verdade no meio de um grande oceano de


confusão e mistificação requer vigilância, dedicação e coragem. Mas, se
não praticamos esses hábitos rigorosos de pensar, não podemos ter a
esperança de solucionar os problemas verdadeiramente sérios com que
nos defrontamos – e nos arriscamos a nos tornar uma nação de patetas,
43 
 
 

um mundo de patetas, prontos para sermos passados para trás pelo


primeiro charlatão que cruzar o nosso caminho (SAGAN, 1997, p.53).

Logo, qual seria critério de demarcação entre o que é ciência e o que não é ciência? A
resposta que Popper nos concede para a questão é a seguinte: A refutabilidade é o
critério de demarcação entre a ciência e a pseudociência. E ele ainda nos alerta que:

[...] se todos os possíveis estados de coisas se acomodarem a uma teoria,


não haverá estado de coisas ou observação ou resultado experimental
que possa ser oferecido como evidência confirmadora da teoria. Não
haverá diferença observável entre o ela ser verdadeira e o ela ser falsa.
Nesses termos, a teoria não veicula informação científica. Por outro lado,
somente se houver alguma observação concebível capaz de refutá-la,
será a teoria suscetível de teste. E somente se for suscetível de teste será
científica (MAGEE, 1973, p.45).

Uma boa brincadeira que serve como treinamento para desenvolver um pensamento
científico e criterioso é tentar “falsear” alguns provérbios ou frases populares. Vamos
tentar? Pense na seguinte frase;

Não faça para os outros aquilo que você não gostaria que fizessem com você.

Ora, minha mãe não ficaria muito feliz se eu lhe desse de presente uma viagem de barco
pelas ilhas Mentawai, na Indonésia, para surfar o dia inteiro em ondas perigosas e que
costumam quebrar sobre afiadíssimas plataformas de corais vivos. Contudo, ela faria isso
por mim, pois sabe que seu filho adora surfar, e esse é um dos melhores lugares do
mundo para fazer isso.

Popper viveu em um período onde importantes teorias estavam sendo erigidas, como as
de Freud e de Adler. Todavia, nenhuma delas era passível de refutações, pois não
permitiam a construção e aplicação de nenhum experimento científico que pudesse
almejar refutá-las. Não havia como inventar estratégias experimentais que pudessem
contraditá-las. Para seus adeptos, as teorias freudiana e/ou adleriana eram capazes de
explicar tudo o que ocorria no âmbito da vida psíquica daqueles que eram submetidos a
elas. Sendo assim, Popper se convenceu de que, a possibilidade que tanto empolgava
seus adeptos, ou seja, a capacidade de explicar tudo, era justamente o que nelas havia
de mais censurável (MAGEE, 1973, p.46). Neste momento o marxismo também gozava
44 
 
 

de grande apelo e popularidade. Entretanto, diferentemente das teorias psicanalíticas,


dele podiam-se deduzir uma grande quantidade de previsões falseáveis, que já se
haviam mostrado falsas. Porém, os marxistas - como acontece até os dias de hoje, -
renunciavam a aceitar as refutações e, de forma incessante empenhavam-se na
reformulação da teoria, com vistas a adequá-la novamente às suas crenças mais
profundas, afastando assim as refutações. Leia abaixo o que Magee nos conta:

Para eles, na prática, tal como se dava com os psicanalistas na teoria, as


ideias tinham incontestável certeza de uma fé religiosa e a insistência em
que revestissem caráter científico era, embora sincera, improcedente
(MAGEE, 1973, p.46).

Popper acredita que o segredo do amplo apelo psicológico exercido por teorias como
essas reside exatamente no fato de tudo explicarem, pois isso confere ao seu defensor
um aprazível sentimento de possessão intelectual e deflagra a segura percepção de que
o mundo é organizado e passível de conhecimento concreto. A aceitação de uma dessas
teorias exerce, segundo nos conta Popper, o efeito de uma revelação intelectual não
disponível aos não iniciados, algo similar a uma conversão religiosa. Acompanhe:

[...] Uma vez abertos os olhos podia-se ver exemplos confirmadores em


toda parte: o mundo estava cheio de verificações da teoria. Qualquer
coisa que acontecesse vinha a confirmar isso. A verdade contida nessas
teorias, portanto, parecia evidente; os descrentes eram nitidamente
aqueles que não queriam vê-la. Recusavam-se a isso para não entrar em
conflito com seus interesses de classe ou por causa de repressões ainda
não analisadas, que precisavam urgentemente de tratamento (POPPER,
1982, p.64).

Marxistas e psicanalistas viam evidências confirmadoras de suas teorias em qualquer


lugar que pousassem seus olhares. Os analistas freudianos, por exemplo, asseveravam
que suas teorias eram, de forma bastante recorrente, confirmadas por “observações
clínicas”, ao que Popper nos relata o seguinte:

Quanto a Adler, fiquei muito impressionado por uma experiência pessoal.


Certa vez, em 1919, informei-o de um caso que não me parecia ser
particularmente adleriano, mas ele não teve qualquer dificuldade em
analisar nos termos de sua teoria do sentimento, de inferioridade, embora
nem mesmo tivesse visto a criança em questão. Ligeiramente chocado,

45 
 
 

perguntei como podia ter tanta certeza. “Porque já tive mil experiências
desse tipo”, - respondeu; ao que não pude deixar de retrucar - “com este
novo caso, o número passará então a mil e um” (POPPER, 1982, p.65).
Talvez, caro/a aluno (a), você possa achar Popper um chato, por acreditar que ele é um
sujeito que não valoriza nada que não seja científico e passível de falseamento. Todavia,
Popper nunca alegou que essas teorias fossem destituídas de importância, absurdas ou
sem valor. Acredita francamente que as teorias propostas por Freud e Adler encerram
sugestões psicológicas interessantíssimas, ainda que não testáveis, e que, no futuro,
podem vir a desempenhar papel proeminente numa ciência psicológica capaz de ser
submetida a testes rigorosos (MAGEE, 1973, p.48). Todavia, as “observações clínicas”
que os analistas ingenuamente acreditam confirmar a teoria, não podem, segundo ele,
ser mais dignas de consideração do que as confirmações diárias que os astrólogos
encontram nas atividades a que se dedicam (MAGEE, 1973, p.47).

As revoluções de Thomas Khun

Assim como o que foi falado de Popper não dá conta da riqueza de seu pensamento, a
filosofia de Thomas Khun (1922-1996) também demandaria muito mais tempo e espaço
do que dispomos neste momento. Todavia, algumas de suas ideias são tão basilares que
não podem ficar de fora de nenhum texto que pretenda apresentar resumidamente a
história do pensamento científico. Sua noção de paradigma é capital, ainda que seja
largamente utilizada de maneira equivocada. O ponto fundamental da proposta de Khun
é que, a aceitação das teorias por parte dos cientistas é muito mais importante do que
até então fora considerado. Outro ponto relevante para Khun diz respeito ao progresso
da ciência, que, segundo ele, ocorre quando a comunidade científica delibera abandonar
uma forma de fazer investigação científica, com seus pressupostos teóricos e
ontológicos, em detrimento de outra que se mostra mais adequada. Isso denota uma
revolução científica, e as revoluções científicas tendem a ocorrer de maneira lenta, pois
sua gestação é ainda mais demorada. Em sua obra A Estrutura das Revoluções
Científicas (KHUN, 2009), Khun afirma que a ciência alterna períodos de normalidade
e anormalidade. Os períodos de normalidade são caracterizados pelo predomínio de
uma única teoria científica, não existindo, neste momento, aquilo que possa ser chamado
de teorias rivais. Elas podem até mesmo existir, mas não são acolhidas pelos cientistas.
Note que neste momento vigora um paradigma, e este é hegemônico na comunidade dos

46 
 
 

cientistas, onde seus agentes estão de acordo quanto ao modelo e às metodologias


utilizadas nas pesquisas. Mas veja bem, esse modelo de pesquisa é muito mais
elaborado e transcende sobremaneira as limitações de uma única técnica, pois
subentende uma concepção de mundo; acordos sobre quais objetos devem ter a primazia
de serem pesquisados; quais objetos “existem”; e, por fim, quais métodos devem ser
utilizados nas pesquisas. A isso Khun denomina paradigma:

Com a escolha do termo [paradigma] pretendo sugerir que alguns


exemplos aceitos na prática científica real — exemplos que incluem, ao
mesmo tempo, lei, teoria, aplicação e instrumentação — proporcionam
modelos dos quais brotam as tradições coerentes e específicas da
pesquisa científica. São essas tradições que o historiador descreve com
rubricas como: “astronomia ptolomaica” (ou “copernicana”); “dinâmica
aristotélica” (ou “newtoniana”), “óptica corpuscular” (ou “óptica
ondulatória”), e assim por diante. O estudo dos paradigmas, muitos dos
quais bem mais especializados do que os indicadores acima, é o que
prepara basicamente o estudante para ser membro da comunidade
científica determinada na qual atuará mais tarde. Uma vez que ali o
estudante reúne-se a homens que aprenderam as bases de seu campo
de estudo a partir dos mesmos modelos concretos, sua prática
subsequente raramente irá provocar desacordo declarado sobre pontos
fundamentais. Homens cuja pesquisa está baseada em paradigmas
compartilhados estão comprometidos com as mesmas regras e padrões
para a prática científica. Esse comprometimento e o consenso aparente
que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para a gênese
e a continuação de uma tradição de pesquisa determinada (KUHN, 2009,
p. 21).

Um paradigma sempre é encontrado em períodos onde a ciência é tida como “normal”, o


que pode ser entendido como um momento de acordo tácito e aceitação plena por parte
dos cientistas quanto à teoria que orienta seus trabalhos, inclusive com relação aos
pontos da teoria que são considerados anômalos. De forma resumida, o que temos é o
seguinte:

Período de pré-ciência: caracterizado pela coexistência pacífica de vários paradigmas,


sendo todos eles detentores de estatutos equivalentes quanto à primazia da suposta
obtenção da verdade. Neste período não existe crise, pois todos os paradigmas convivem
bem. Khun afirma que neste momento não existe ciência estabelecida.

47 
 
 

Período de ciência normal: este é um período onde predomina somente um paradigma,


ainda que contenha anomalias, o que é comum a toda teoria. Por este motivo, os
cientistas tendem a conduzir suas pesquisas ignorando as anomalias, e com isso, esse
período caracteriza-se por uma alta produtividade.

Período de crise: neste período a quantidade de anomalias é demasiadamente grande


que a continuidade do modelo se torna inexequível. Gradativamente as investigações
científicas começam a falhar quanto à obtenção dos resultados esperados; o paradigma
antigo passa a ser desacreditado e nenhum outro está disponível para substituí-lo, ainda
que existam paradigmas competidores. Depois de certo tempo, os agentes do campo
científico deliberam pelo paradigma que mostra maiores resultados e, quando o número
de cientistas que militam em um determinado paradigma se torna maior que o número de
cientistas dos paradigmas competidores, observaremos uma mudança de paradigma.
Isso afeta de forma drástica a maneira de ver e compreender o universo, o que transforma
radicalmente nossa concepção de mundo, impactando sobremaneira todos os a maioria
dos setores da sociedade.

Foto 9: Thomas Khun

Desta maneira, passamos a um novo modelo de ciência normal, onde agora impera um
novo paradigma. Os cientistas retomam suas pesquisas, ainda que os objetos
pesquisados e os métodos utilizados por eles sejam bastante distintos, pois, segundo
Khun, o paradigma antigo não é mais acolhido, sendo seus métodos e pressupostos
descartados. Note que a proposta explicativa de Khun é de cunho sociológico, pois trata
do caráter histórico da ciência. Por este motivo, sua proposta é mais conhecida e aceita
nas ciências humanas, ainda que valha para as ciências naturais.
48 
 
 

Provavelmente, a maior contribuição de Khun tenha sido o fato de que ele, de certa forma,
“humanizou” o campo científico, no momento em que apresentou algumas peculiaridades
do comportamento humano, como os jogos de poder que podem orientar as atividades
de seus agentes e que determinam resistências e aceitações em seu interior. Com seu
trabalho, Khun retirou, ou ao menos, fragilizou a “aura imaculada” que alguns leigos ou
mesmo alguns de seus agentes teimavam em conceder a ela. Versaremos mais sobre
este intrigante assunto na Unidade 2.

Para saber mais:


Assista a vídeo aula com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-
marcelloarias.com.br

49 
 
 

50 
 
 

MÓDULO 4

Últimas considerações

Como nos relata Khun em sua obra, a ciência é uma instituição com idas e vindas, e com
muito mais desacordo entre seus agentes do que possa parecer aos olhos dos não
iniciados. Muitas vezes, um agente deste campo, apesar de militar em seu interior, não
goza de grande legitimidade de seus pares, exatamente pelo fato de propor ideias que
não vigoram dentro do paradigma vigente do período atual. Este parece ser o caso do
Físico, e agora propagador de ideias espirituais da Nova Era, Amit Goswami.

Goswami foi um dos participantes de um filme de 2004 chamado What the Bleep Do We
Know!? ou What the #$*! Do We Know!? - O Que Diabos nós Sabemos? -, que no Brasil
foi lançado com o nome Quem somos nós? A obra não é um documentário e sim uma
obra ficcional. Porém, a forma com que foi produzida dá a entender ao público leigo, que
se trata de um documentário científico sobre neurobiologia, mecânica quântica e
psicologia, ainda que misture conceitos advindos da metafísica, epistemologia,
pensamento mágico e espiritualidade. O filme é repleto de entrevistas com "especialistas"
em ciência e espiritualidade, o que serviu para confundir ainda mais a percepção que a
população tem daquilo que chamamos ciência, como pode ser apreciado em inúmeros
comentários populares sobre esta película, bastando, para tanto, que você realize uma
pequena pesquisa na internet. O comentário abaixo é um exemplo típico:

Parabéns pela resenha do filme. Finalmente alguém com


conhecimento acadêmico e corajoso em expor sua opinião a favor.
Considero este filme um dos mais importantes para os dias de hoje. Não
interessa se os produtores são desta seita ou daquela seita religiosa
ou que um dos entrevistados diz manter contato com seres
lemurianos. Muito legal a física quântica estar esclarecendo e
provando cientificamente o que os grandes mestres já nos ensinavam
a milhares de anos. Parabéns mais uma vez e continue escrevendo.

51 
 
 

Todavia, como não poderia deixar de ser, o filme recebeu e continua recebendo ferozes
críticas de toda a comunidade científica. Físicos, em particular, reclamam que o filme
distorce de forma grosseira o significado de alguns princípios da mecânica quântica. Um
dos críticos da visão propagada pelo filme, e, consequentemente, das ideias de Goswami
é David Albert, professor da disciplina Fundamentos Filosóficos de Física da
Universidade de Columbia. Albert aparece de forma frequente no filme, o os
expectadores tem a clara percepção de que ele apoia as ideias apresentadas no
transcorrer da trama. Contudo, segundo um artigo da revista Popular Science (MONE,
2004), ele ficou bastante descontente com o produto final, e declarou que sua entrevista
foi editada e incorporada ao filme de maneira a deturpar seu posicionamento – que, diga-
se de passagem, é o posicionamento da maioria dos físicos da atualidade - quanto às
questões levantadas pelo filme acerca da relação da consciência com a espiritualidade.
No artigo também é possível apreciar os sentimentos de Albert quanto à sua ingenuidade
após ter sido "pego" pelos cineastas.

No ano de 2006 foi lançada uma versão estendida do filme: What the Bleep!?: Down
the Rabbit Hole - O que bleep!?: caindo no buraco do coelho, e nela é possível apreciar
uma entrevista muito elucidativa com David Albert. Seria bastante importante que você,
aluno (a), visse o filme na íntegra, para depois, retornar a esta parte do livro e reler os
escritos abaixo. Em inúmeras ocasiões tenho feito uso da entrevista de David Albert em
minhas aulas sobre metodologia e filosofia da ciência, pois acredito que Albert consegue
ser muito claro em sua exposição sobre como a ciência deve ser vista e tratada por nós.
Por acreditar e pactuar de sua visão, optei por reproduzi-la na íntegra nas páginas abaixo.

Entrevistador – Então, se puder falar sobre isso - onde o observador se encaixa e a


ligação ou não da consciência na mecânica quântica.

David Albert – Sim. Sim. Algo que acontece na mecânica quântica; uma das inovações
importantes da mecânica quântica é que superamos a fantasia que havia na física até
então sobre a possibilidade de observar algo de modo inteiramente passivo; observar
sem afetar o processo de observar. Seja como for, agora já está bem claro que a
mecânica quântica acabou com isso para sempre. Olhar as coisas envolve interagir com
elas de uma forma cujo efeito não pode ser minimizado por mais delicada que seja sua
tecnologia e por mais dinheiro que você gaste.

52 
 
 

Entrevistador – Você estava dizendo que concluíram que o observador não tinha
nenhum efeito?

David Albert – Não, não... O processo físico de fazer uma medição tem um efeito muito
profundo. Já se especulou muito na literatura sobre que elemento no processo de fazer
uma medição tem esse efeito e como o processo de fazer medição tem os efeitos que
tem. Uma das especulações sobre isso, e que teve o seu auge nos anos 50 e 60 na
literatura cientifica e filosófica foi que o agente ativo era a consciência e as pessoas se
empolgaram com isso por diversos motivos óbvios. Foi um novo elo entre a física e algo
que sempre pareceu estar fora dela. Muito do que se diz sobre a mecânica quântica no
filme trata dessas ideias e uma das coisas que eu quis dizer esta manhã é que essas
ideias não influenciaram o que considero a literatura cientifica e filosófica séria sobre o
assunto durante 30 anos. Houve um período em que as pessoas estavam especulando
desta forma. Havia, como eu disse esta manhã, ideias cada vez mais constrangedoras
do tipo: “Um gato pode produzir esses efeitos com a sua consciência? Um rato pode
produzir esses efeitos com sua consciência?”. No fim, fica claro que as palavras
envolvidas aqui eram tão imprecisas, tão escorregadias, que não se poderia construir
uma teoria cientifica útil com base nelas e essa ideia foi abandonada. E mesmo que essas
ideias fossem úteis e verdadeiras, elas não produziriam uma imagem do modo como me
parece que temos em Quem Somos Nós. Mesmo que a consciência seja o agente em
todas essas teorias, as operações da consciência são regidas por leis matemáticas
externas, concretas, secas, bem rígidas. O salto do envolvimento da consciência, mesmo
que houvesse, para essas afirmações maiores de que: “eu crio minha própria realidade”;
“eu escolho minha experiência”; “que a consciência é a base de todo ser”; “há espaço no
mundo para esse fenômeno intangível da liberdade”; e assim por diante, não teria este
resultado mesmo que a imagem da consciência na medição tivesse dado certo, mas essa
imagem da consciência na medição não deu certo. Então, foi sobre isso que tentei falar
esta manhã, isso de uma forma negativa. O positivo é que há uma quantidade enorme
de trabalhos interessantes feitos nos últimos 20 anos que tentam entender os efeitos que
elas têm. Todo esse trabalho tem um caráter que, nos termos deste filme, chamaríamos
de mecanicistas. Uma imagem bem mais mecanicista do mundo. Este trabalho tenta
entender como alterar as equações de forma a produzir essas mudanças; como
acrescentar coisas físicas a nossa imagem do mundo a fim de mostrar como ocorrem
essas mudanças. Nem tudo se baseia na questão de a consciência poder ser um agente.
53 
 
 

Entrevistador – Quanto às medições, hoje se considera que a medição é um sistema


acoplado com o objeto que se está tentando medir?

David Albert – Sim. Se você quiser explicar, uma das mais profundas mudanças
filosóficas entre a mecânica quântica é que a mecânica clássica é construída do chão
para cima com base no que hoje sabemos que é uma fantasia: a possibilidade de
observar as coisas passivamente. Certo? Ou a possibilidade de, ao menos se formos
cada vez mais cautelosos, nos aproximarmos cada vez mais de uma posição de observar
as coisas de forma completamente passiva, observar as coisas de forma que você tenha
certeza de que não esta no processo de observar algo alterando a própria coisa que está
tentando observar. A mecânica quântica pôs um ponto final nisso! Este fenômeno de
coisas observáveis incompatíveis de que falei esta manhã, deixa bem claro que, nas
medições, certamente é produzida uma perturbação mínima, finita, em qualquer sistema,
medindo qualquer uma de suas variáveis físicas e que não haverá nenhum modo,
nenhum tipo de progresso tecnológico que possa reduzir isso a um nível inferior a esse
nível finito definido. Veja só, todo mundo sempre soube que para medir um sistema é
preciso interagir com ele fisicamente de uma forma ou outra, mas havia a fantasia de que
se podia tornar essa interação cada vez mais delicada à medida que a tecnologia evoluía.
A mecânica quântica nos dá um nível teórico mínimo finito, insuperável de interação
necessária com o sistema para obter qualquer informação dele. Essa é uma mudança
muito decisiva. Então, esse quadro de uma observação desapareceu. Como eu disse,
era tentador em vista de uma descoberta como essa dizer “o que quer dizer observação?”
“o que é que está produzindo a perturbação?”. Era natural se agarrar a algo com a
consciência, e assim por diante. Houve outras coisas a que eles se agarraram
instintivamente, o caráter macroscópico do aparelho medidor em contraste com o caráter
microscópico do objeto medidor. O corte entre o sujeito e o objeto. As pessoas se
agarravam a todo tipo de coisa. A consciência foi uma das coisas que as pessoas
agarraram, mas de uma forma bem preliminar. Isso chegou bem depressa no ponto em
que parecia um beco sem saída no que se refere ao progresso da física e não teve mais
importância desde então, exceto em certas tentativas de se apropriar da mecânica
quântica em outros tipos de programas: programas da nova era; programas
desconstrucionistas; programas pós-estruturalistas, e assim por diante.

54 
 
 

Entrevistador – Você pode falar do fato de muitas pessoas terem uma ideia de que a
ciência é algo bem definido e que há um ponto em que os cientistas concordam que é
que a ciência avança de modo organizado fazendo experimentos, mas a história da
ciência nos conta algo bem diferente...

David Albert – Claro que você tem razão nisso e isso é algo que está bem mais no centro
das atenções das pessoas nos últimos 30 anos com obras como de Kuhn e assim por
diante. A ciência é uma instituição bem discutível, com idas e vindas bem complicadas.
Uma instituição social e humana como outras instituições. Claro que não há unanimidade
entre os cientistas quanto aos fundamentos da mecânica quântica. Claro que há
controvérsias sobre tudo isso. Mas se você só disser isso e deixar para lá, acho que não
está sendo justo com a situação. Eu acho - e isso é uma repetição do que já disse esta
manhã -, que ainda há uma distinção muito importante entre dois jeitos bem diferentes
de entender o mundo. Nenhum é perfeito. Os dois são complicados. Os dois têm idas e
vindas. Mas há uma postura de entender o mundo com a necessidade de encontrar algo
que o faça se sentir bem. Onde você almeja encontrar algo terapêutico. Você vai
descobrir que o que fica no centro do universo, o que existe na base de todo ser é uma
imagem atraente, poderosa, segura, acessível e reconfortante de si mesmo. Foi desta
maneira que o Vaticano entendeu a disputa com Galileu. Era desta maneira que os
vitorianos entendiam sua disputa com Darwin. O problema que o Vaticano teve com
Galileu é que a humanidade estava sendo desalojada do centro do universo. O problema
que os vitorianos tiveram com Darwin foi que os ancestrais do ser humano não eram tão
nobres e tão reconfortantes quanto às pessoas queriam que eles fossem. Parece-me que
uma distinção histórica importante a que a ciência tem direito é a de que ela sempre
representa a resistência a este impulso. É a ciência que sempre representa a exigência
de que nos coloquemos no mundo com uma admiração aberta e autêntica e com um
olhar aguçado, frio e claro de uma forma que dá uma atenção especial à descoberta da
verdade, quer ela seja reconfortante e terapêutica, quer não. As afirmações que há no
filme, como “a consciência é a base de todo ser” ou “nossa consciência se liga à
consciência do campo unificado” etc., devo dizer - e é isso que mais me perturbava -, que
eu ouço nisso ecos vívidos da posição do Vaticano segundo a qual a Terra é o centro do
universo; ou da posição antidarwiniana de que o homem foi criado por Deus; de que
temos uma importância especial; de que temos algum papel especial a desempenhar ou
uma ligação especial; uma conexão especial com o que está na base do universo. Nós
55 
 
 

não sabemos disso! E nosso trabalho ao examinar o mundo é verificar se isso é


verdade ou não, e não entender o mundo com a exigência de que isso seja
verdadeiro ou para escolhermos em que teoria parece defender esse tipo de
afirmação.

Entrevistador – E o que dizer do papel da intuição? Digamos... Como muitos textos


místicos, sábios e outros seres iluminados relatam coisas por que passaram.

David Albert – Está certo. Olhe, eu penso que há outras formas de se distinguir como
entendemos o mundo. Há grandes tradições intelectuais. Tradições intelectuais pelas
quais tenho enorme respeito. De acesso místico ao mundo. De acesso revelatório ao
mundo e tudo mais... E há também a tradição cientifica. E a tradição cientifica é, de modo
bem aproximado, uma abordagem do mundo. As pessoas falam de método cientifico
como um tipo diferente de raciocínio. Não me parece um tipo diferente de raciocínio. O
que se quer dizer com método cientifico é uma tentativa de compreender o mundo de
modo global, assim como entender o projeto de iniciar uma fogueira, ou construir uma
casa, ou tecer a sua própria roupa ou algo assim. Existe esse tipo de raciocínio que
chamamos de senso comum, certo? E o projeto científico é, em essência, ver se
conseguimos expandir o estilo do senso comum fazendo dele uma abordagem completa
do mundo, uma abordagem completa da existência. Penso que esse projeto é
interessante e atraente por dois motivos: Primeiro, porque o senso comum é uma forma
atraente de raciocínio. Segundo, porque o projeto de aplicar o senso comum ao mundo
já teve sucesso espetacular. Por outro lado, parece que poderíamos muito bem
argumentar que o senso comum, e não, por exemplo, a revelação mística, é de fato a
forma correta de consertar uma torradeira, mas não é a forma correta de decidir o que
você pensa de Deus ou coisa do gênero. Para isso, precisamos de métodos totalmente
diferentes. Essas duas afirmações são muito interessantes, são afirmações muito
respeitáveis. A única coisa que acho ruim é misturar as duas.

Entrevistador – Você acha que no futuro, com o tempo, as duas pretendem examinar a
natureza do universo, o grande U... Tudo?

David Albert – Certo.

56 
 
 

Entrevistador – Você acha que haja um modo de as duas convergirem em algum


momento?

David Albert – Não vejo nenhum motivo para acreditar nisso. O que penso de tudo que
se apregoa sobre essa convergência que vemos por toda parte acabou se revelando
vazio quando examinamos. Então... Não! Penso que não. Na verdade, acho que vejo o
contrario. E acho que vejo como outro modo de defender a ideia que tentei defender esta
manhã. No meu ponto de vista, a imagem do mundo e do nosso lugar nele que emerge
através da ciência está cada vez mais desconfortável para nós com o passar do tempo.
Está cada vez mais se distanciando da imagem de nós que existe nas grandes tradições
religiosas, nas grandes tradições místicas e assim por diante. Estamos vendo uma
imagem mecânica de nós mesmos pela ciência que não sabemos como absorver e penso
que o desafio interessante da ciência quanto a nossa imaginação não é ela reproduzir
outros tipos de conhecimento a que temos acesso, mas ela trazer algo totalmente
diferente de todas essas tradições, algo que vem com uma força enorme por causa do
sucesso e da autoridade conquistada pela técnica cientifica algo que é muito difícil
absorvermos. É muito difícil pensarmos sobre nós mesmos como o tipo de aparelhos
mecânicos que a ciência parece estar dizendo que nós somos. Então, não vejo nenhuma
evidencia de convergência nisso e o que considero empolgante no projeto cientifico é
exatamente a forma como ele se desenvolve, tornando a tensão cada vez mais aguda. A
tensão entre a imagem de nós mesmos que vem de varias tradições culturais e a imagem
de nós mesmos que a ciência está nos trazendo mais uma vez, se olharmos para o
progresso. Galileu nos tirou do centro do universo onde varias tradições religiosas
queriam nos colocar. Darwin nos tirou da criação divina onde varias tradições queriam
nos colocar. Freud nos deslocou de outra maneira. A ciência tem progredido se afastando
da convergência com essas tradições e penso que é isso que há de interessante e
desafiador nela. Se ela só convergisse com essas tradições, haveria algo de redundante.

Foto 10: David Albert

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Entrevistador – Em física, é claro que o Santo Graal é a teoria de tudo, então, você teria
de dizer que ela não é a teoria de tudo, ela é a teoria de tudo que há no espaço físico.

David Albert – Sim. Mas talvez queira acrescentar que há motivos para acreditar que o
universo físico é o único universo que existe.

Entrevistador – Certo. Certo. Mas agora será possível algum dia responder essa
pergunta?

David Albert – Se o universo físico é o único universo que existe?

Entrevistador – Sim.

David Albert – Não sei o que seria responder essa pergunta em definitivo, mas pode-se
imaginar que a física possa chegar ao ponto em que possa dizer que tem uma explicação
física completa de por que você movimentou o braço, uma explicação física completa de
por que esta produzindo esses sons, uma explicação física completa de por que se casou
com essa pessoa, uma explicação física completa de todas as palavras que escreveu em
toda a sua vida. Se a física chegar a esse ponto, cada vez haverá uma questão premente
como “Esse outro elemento em que você acredita... Esse elemento não físico em que
você acredita. Pra que serve? O que ele faz no mundo?”. Temos uma explicação física
completa de tudo que parece estar acontecendo. De por que você diz às pessoas que
acredita que tem livre-arbítrio. Teremos uma explicação física de por que você diz que
acredita que o mundo não é totalmente físico! Isso não provará que o mundo é totalmente
físico, mas levantará uma questão bem delicada para uma pessoa que queira negar o
fisicismo, se a física chegar a esse ponto, e veja que não sei se ela vai. Certo?! Mas se
ela chegar, então, haverá uma questão bem aguda do tipo: “Essa alma ou espírito em
que você acredita o que é isso? Pra que serve?” Temos uma explicação de tudo com
base em movimentos dessas partículas. Já verificamos que não é ela que faz você dizer
o que diz, não é ela que faz você escrever o que escreve, nem é ela que faz você casar
com quem casou. O que ela faz? É aí que as coisas podem chegar.

Note meu/minha amigo (a), para aprender as regras do campo científico e conseguir
sobreviver ileso nesta arena de batalhas, o cientista tem que despender alguns anos em
árduo treinamento técnico e emocional. Depois de longo período de aprendizado ele se
acostuma com esta dinâmica e passa a entender que ela está a serviço da humanidade,
58 
 
 

e não contra ele. Contudo, podemos entender o quanto deve ser perturbadora essa
dinâmica aos olhos de um indivíduo forjado no campo da espiritualidade, da autoajuda,
das crenças esotéricas, ou mesmo, porque não dizer, em alguns setores mais
fundamentalistas e dogmáticos da sociedade.

Há dez anos, antes de lançar um livro intitulado Neurofisiologia da Meditação estávamos,


eu e meu amigo e coautor da obra Roberto Serafim Simões ministrando uma aula em um
conhecido curso de formação de instrutores de Yoga. O referido curso sempre teve
pretensões de ser conhecido por sua abordagem científica do tema. Por esse motivo, em
algumas ocasiões, determinados professores eram convidados a palestrar sobre temas
cujo enfoque científico fosse necessário e a abordagem respeitasse os rigores que este
campo do saber solicita. Eu e Roberto éramos dois desses professores. Naquela
ocasião, o objetivo de nossa explanação era apresentar uma abordagem neurofisiológica
e neuroquímica das práticas meditativas e, como nosso público era composto quase que
exclusivamente por leigos no assunto - em sua maioria professores e simpatizantes do
yoga e das práticas meditativas -, adequamos nossa fala à linguagem da plateia e, na
medida em que construíamos nosso raciocínio, tentávamos apontar convergências e
divergências entre as descobertas das neurociências e alguns textos antigos que versam
sobre a prática do yoga, como o famoso Yoga Sutras de Patanjali. Patanjali é uma
personagem bastante conhecida do universo do yoga, a quem se atribui a escrita deste
importante documento. Existem muitas dúvidas quanto a sua existência, sendo até
mesmo propagada uma hipótese de que o texto teria sido escrito por mais de uma
pessoa, e em momentos distintos da história. Todavia, o documento é amplamente
conhecido e, pode-se dizer, serve como um manual que objetiva explicar ao leitor o que
é o yoga e como deve ser praticado. Palestrávamos para aproximadamente duzentas
pessoas quando, no meio de nossa apresentação, um rapaz trajando uma bata pintada
com uma divindade indiana chamada Shiva, alguns colares indianos, uma mancha de
tinta na testa e chinelos de couro desgastados pelo tempo põe-se a ficar em pé e brada
alto e em bom tom para todos os presentes, com especial ênfase a nós, palestrantes:
“Quem vocês pensam que são para ousar colocar em xeque as palavras do grande sábio
e mestre Patanjali!?” Olhei de soslaio para o Roberto - que incrédulo se recuperava do
inesperado golpe e sorrateiramente abaixava seu olhar para não desvalidar a crença do
rapaz com uma gargalhada incontida - e, muito respeitosamente, iniciei minha réplica que
verdadeiramente intencionava, em cinco minutos, explicar-lhe o supra sumo do que está
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contido em toda esta unidade que agora lês. Todavia, meus esforços foram vãos, pois o
discípulo de Shiva não se convenceu de que não éramos ateus impuros pregando a
indiferença, o ceticismo e a discórdia e, num gesto de revanchismo, abriu sua mochila,
retirando do seu interior inúmeros “badulaques”, chinelos de couro, desta feita novos e
perfeitamente embalados, e camisetas de Shiva, Buda, Ghandi e mahatmas diversos, e
começou a comercializar seus itens ali mesmo, no meio do anfiteatro, enquanto eu e
Roberto tentávamos cumprir com nossa obrigação finalizando a palestra para aqueles
que estavam interessados em nos ouvir. Neste momento, lembrei-me de Brian Magee:

O comentário crítico de terceiros, longe de causar ressentimento, deve


ser olhado como auxílio valiosíssimo e bem vindo, pois exerce, em notável
grau, papel libertador. Talvez seja difícil conseguir que as pessoas
condicionadas a receberem de mal grado as críticas e esperando que as
críticas sejam por outros mal recebidas e tendendo, portanto, a manter
silêncio acerca dos próprios erros e dos erros alheios, formulem as críticas
de que o aperfeiçoamento depende. Não obstante, pessoa alguma pode
prestar-nos maior serviço do que mostrando o que é errôneo na forma de
pensarmos ou agirmos. Quanto maior a falha, maior o aperfeiçoamento
que sua exposição torna possível. O homem que acolhe a crítica e age
em função dela a prezará a ponto de colocá-la acima da amizade. O
homem que repele a crítica, preocupado em manter a própria posição,
está fadado a estagnar. Se acolhêssemos em nossa sociedade as
atitudes popperianas em face da critica, as relações sociais e
interpessoais sofreriam uma revolução sem precedentes * (MAGEE,
1973, p.41-42).

Hoje, acho que compreendo muito mais o referido rapaz. A plateia como um todo não
estava devidamente preparada para nos ouvir, e alguns, como este menino, sentiram-se
agredidos em sua fé, quando o que se almejava, de fato, era somente discutir ideias à
luz do pensamento científico, de maneira reflexiva e não dogmática. Aprendendo a agir
desta maneira, não somente os cientistas podem se sentir libertados, mas todos nós, em
todas as atividades que nos propusermos realizar. Para aqueles cuja fé já não mais
auxilia, a ciência pode ser uma opção, pois podemos aperfeiçoar nossos procedimentos,
identificando assim, o que pode ser melhorado. Consequentemente, no interior do campo
científico, as falhas devem ser verdadeiramente procuradas e em hipótese alguma
contornadas.

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RESUMO

Nesta unidade você foi apresentado à história do pensamento científico. Versamos sobre
os aspectos metodológicos e a intersubjetividade da ciência. Delimitamos os campos de
atuação das ciências naturais e das ciências sociais e pontuamos as diferenças entre a
ciência moderna e a ciência realizada na antiguidade. Trabalhamos também com as
fases mais importantes daquilo que convencionalmente chamamos de revolução
científica, apontando para seus principais agentes, como Copérnico, Galileu, Francis
Bacon, René Descartes e Isaac Newton. Você também foi apresentado à filosofia da
ciência e algumas das ideias e agentes mais importantes deste campo do saber, como
as relações de ideias e as questões de fato; o problema humeano da indução; o método
científico: a concepção tradicional e a concepção de Karl Popper; o critério de
demarcação entre ciência e não ciência; a verificação e o falseamento; a natureza
provisória do conhecimento científico; as revoluções de Thomas Khun; os períodos de
normalidade e anormalidade da ciência, assim como o significado de paradigma
científico.

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EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM

1 - O que você entende da frase “Grandes poderes, grandes responsabilidades!” e qual


a relação dela com o conhecimento científico?

2 - Faça uma pesquisa na internet e nas bibliotecas à sua disposição e escreva algo que
diferencie as ciências naturais das ciências sociais.

3 - O que você compreende quando falamos sobre diferentes pontos de observação, e


qual a relação deste assunto com os dilemas que podemos ser vítimas?

4 - Explique o porquê de o campo científico ser intersubjetivamente controlado.

5 - Quais foram os momentos mais marcantes da revolução científica?

6 - O que são os testes controlados?

7 - Estabeleça alguns pontos que explicite as diferenças entre a ciência praticada na


antiguidade e a ciência moderna.

8 - O que vem a ser um pensamento dedutivo?

9 - O que vem a ser um pensamento indutivo?

10 - O que são os Ídolos, propostos por Francis Bacon?

11 - E você meu amigo aluno (a), já identificou quais são os seus ídolos? Seus ídolos se
manifestam na forma de ideias, livros, partidos, igrejas, crenças, professores, filósofos,
partidos políticos? Liste-os abaixo:

Você consegue perceber que durante a sua vida, provavelmente alguns deles foram
trocados por outros? O que acha da música A Lista, de Osvaldo Montenegro?

Faça uma lista de grandes amigos


Quem você mais via há dez anos atrás
Quantos você ainda vê todo dia
Quantos você já não encontra mais...
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Faça uma lista dos sonhos que tinha


Quantos você desistiu de sonhar!
Quantos amores jurados pra sempre
Quantos você conseguiu preservar..
.
Onde você ainda se reconhece
Na foto passada ou no espelho de agora?
Hoje é do jeito que achou que seria
Quantos amigos você jogou fora?

Quantos mistérios que você sondava


Quantos você conseguiu entender?
Quantos segredos que você guardava
Hoje são bobos ninguém quer saber?

Quantas mentiras você condenava?


Quantas você teve que cometer?
Quantos defeitos sanados com o tempo
Eram o melhor que havia em você?

Quantas canções que você não cantava


Hoje assovia pra sobreviver?
Quantas pessoas que você amava
Hoje acredita que amam você?
12 - De qual maneira o ceticismo ajudou Descartes a chegar às suas certezas?

13 - Faça uma pesquisa na internet e nas bibliotecas à sua disposição e escreva algo
que diferencie o ceticismo filosófico do ceticismo científico.

14 - Qual a diferença básica entre um pensador racionalista e um pensador empirista?

15 - Qual a importância do reducionismo para a ciência?

16 - Qual a importância da filosofia da ciência em nossos dias?

17 - Explique o que David Hume queria dizer quando nos falava sobre as relações de
ideias e as questões de fato.

18 - O que vem a ser o famoso problema humeano da indução?

19 - O que é um mecanismo de correção de erros? Dê um exemplo.

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20 - Qual vem a ser o critério de demarcação entre ciência e não ciência, segundo Karl
Popper?

21 - Diferencie verificação de falseamento?

22 - Falseie as seguintes frases:

Cavalo dado não se olha os dentes.


Quando um não quer, dois não brigam.
Para bom entendedor, meia palavra basta.
Águas passadas não movem moinhos.
Macaco velho não pula em galho seco.
Antes calar que mal falar.
Quem quer faz, quem não quer manda.
Cachorro que late não morde.
Quem usa cuida.
Deus ajuda quem cedo madruga.
Caiu na rede é peixe.
Casa de ferreiro, espeto de pau.
O seguro morreu de velho.
Cada macaco no seu galho.
Quem tudo quer nada tem.
Devagar se vai ao longe.
Falar é fácil, fazer é que é difícil.
Filho de peixe, peixinho é.
Onde há fumaça, há fogo.
Pela boca morre o peixe.
Quem espera sempre alcança.

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23 - Explique a razão das afirmações científicas poderem ser conclusivamente falseadas,


embora não possam ser conclusivamente verificadas.

24 - Qual é a razão da afirmação de que todo conhecimento científico é necessariamente


de natureza provisória?

25 - Comente a frase: “O que a ciência persegue são exatamente esses enunciados de


alto conteúdo informativo e de baixa probabilidade”.

26 - O que é a refutabilidade em ciência?

27 - O que são os períodos de normalidade e anormalidade propostos por Kuhn?

28 - Defina paradigma científico.

66 
 
 

Referencial Bibliográfico

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razao. Capturado em 01/11/2014.

Comentário popular à resenha do filme:


http://estadonoetico.blogspot.com.br/2008/03/resenha-do-filme-quem-somos-ns-
what.html . Capturado em 05/11/2014

68 
 
 

UNIDADE II
Uma Sociologia do Campo Acadêmico / Científico

“O mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive”

Bachelard

69 
 
 

MÓDULO 1

Como versamos na unidade 1, a ciência é oriunda da filosofia e esta também originou


um ramo conhecido como ética, que estuda as decisões que tomamos em nossa trajetória
existencial com vistas a alcançar a vida que vale a pena ser vivida e convivida. As ideias
filosóficas são perenes e suas abordagens continuam a nos presentear com o que há de
mais profundo no pensamento humano. Todavia, antes da filosofia houve os mitos, e eles
nos auxiliaram a pensar a vida e o nosso lugar natural, e ainda podem nos conceder
alguns insights encantadores, mesmo que saibamos que Zeus e seus correligionários há
muito já saíram de cena. Para Tales de Mileto e Heráclito, tudo no mundo flui de forma
incessante. Tudo passa, e aprender a viver a impermanência é um imperativo para o bem
viver. Parmênides buscava o ser das coisas, ou seja, suas essências, aquilo que fica e
permanece, o imutável e não a transitoriedade. Sócrates se alegrou com ele, seguiu seus
passos e influenciou seu pupilo Platão, para quem o certo e o errado da vida, a ética das
relações de convivência, dependem de ideias que transcendem a própria vida, pois são
eternas, independentes das circunstâncias. Absolutas. Aristóteles veio de Estagira para
estudar com Platão, mas diferente de seu mestre, acredita que o certo e errado da vida
é regido por uma rigorosa harmonia cósmica, e a inscrição neste cosmos é algo que já
vem marcada. Seu pensamento ético assemelha-se a uma espécie de mitologia
laicizada, temperada com os rigores de uma proto ciência oriunda de um sujeito de rara
genialidade. Epicuro nos lembra de que o certo na vida é não perder de vista os prazeres
simples. Alerta vermelho contra as “prostituições” dos sentidos que podem inviabilizar a
percepção da candura da existência e o desfrute das coisas singelas presentes no
cotidiano. Os estoicos por sua vez nos avisam que o certo é aceitar o destino de forma
imperturbável, e o errado é debater-se contra aquilo que não podemos controlar. Cristo,
nos fala que o certo é tratarmos a todos com igualdade, pois somos irmãos – fraternidade
-, e gozamos de liberdade para ponderar a vida que vale a pena ser vivida. O certo e o
errado da vida têm a ver com a missão que Deus nos deu. Devemos mobilizar nossos
talentos, não importam quais sejam eles, para cumprir o que Ele espera de nós. Os raios
de sol da modernidade principiam a iluminar a longa noite da idade média. Maquiavel é
um dos primeiros a acordar. Sem medo de subverter a ordem, ousa versar sobre a
natureza humana sem dissimular aquilo que observa. Para ele, o certo e o errado da vida
70 
 
 

tem a ver com o que se quer. A ação humana será boa em função do seu efeito.
Maquiavel inaugura o pragmatismo ao afirmar que vive bem quem consegue o que quer.
Descartes nos avisa que a vida será melhor na razão direta da nossa capacidade de
duvidar, pois por meio da dúvida diminuiremos a probabilidade de sermos vítima de
pensamentos enganadores e tirânicos. Spinoza chega para nos alertar sobre a ilusão da
liberdade e bradar que o conhecimento é o mais potente dos afetos. Vive bem aquele
que conhece as causas corretas de seus afetos. Só assim obteremos alguns “grauzinhos”
a mais da tão sonhada liberdade. Bentham e Mill nos convidam a pensar a alteridade,
pois para eles o certo e o errado têm a ver com a felicidade do maior número de pessoas.
Finalmente Kant, baluarte do Século das Luzes, afirma que o certo e errado da vida tem
a ver com a boa vontade. Inaugura o intencionalismo ao afirmar que agirá bem aquele
que intencionar o bem, uma vez que os resultados da ação, invariavelmente escapam a
qualquer um.

Com o Iluminismo surge a crença na infalibilidade da ciência. O pensamento


científico começa a influenciar uma significativa parcela de intelectuais e pensadores. A
filosofia, de cunho especulativo, passa a sofrer a concorrência de outras formas de
pensar a vida e as relações humanas. O século das luzes dá a luz à sociologia, e o
sociólogo, ao fazer uso de eficazes metodologias investigativas, passa a agir, como diria
Max Weber, como um desencantador do mundo, uma vez que muitas das especulações
filosóficas terão dificuldades frente às constatações empíricas – fruto do emprego do
método científico - que apontarão com lucidez algumas das características mais
perturbadoras da vida em sociedade, e consequentemente, do homem.

Uma nova forma de pensar as relações humanas

Se você se recorda caro (a) aluno (a), na unidade 1 versamos sobre o programa de
iniciação científica de nossa faculdade. Você terá à sua disposição aqui na UNIBR a
possibilidade de entrar em contato com o rico pensar científico, e independente de sua
opção de curso superior, saiba que a UNIBR contempla linhas de pesquisa em ciências
naturais e ciências humanas, e esta última ganhou notoriedade com o surgimento da
sociologia. Muitas vezes quando o assunto é sociedade tem-se em mente a ideia de seres
humanos em relações de intersubjetividade, interdependentes uns dos outros. Todavia,
a sociologia não se limita a esses tópicos. A sociologia também se baseia na observação
71 
 
 

atenciosa e metódica dos fenômenos sociais, e para isso preocupa-se em aplicar o


pensamento científico à apreciação e à explicação dos fenômenos sociais. Para Émile
Durkheim (1858 – 1917) a sociologia pode ser compreendida como a “ciência das
instituições, da sua gênese e de seu funcionamento, isto é, de toda a crença, todo o
comportamento instituído pela coletividade” (DURKHEIM 1974, p. 29).

Foto 11: Émile Durkheim

A sociologia enquanto ciência almeja compreender o que acontece na sociedade, e para


isso observa de forma sistemática os fatos que se desenrolam em seu interior. Foi a partir
das obras de Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber que a sociologia configurou-se
como uma área de conhecimento singular, com método e objetos próprios. Valores
morais e comportamentos que antes eram considerados naturais e compreendidos por
meio de um de um ponto de vista que não levava em consideração sua historicidade,
passam a ser entendidos como frutos da interação humana. Com isso, a dimensão
temporal de fenômenos que se pensava serem eternos, passa a ser levada em
consideração. Com o desenvolvimento da sociologia temas como o conceito de família;
as análises do dinamismo do mercado; a estrutura e formação do Estado; as religiões;
as concepções morais; os estudos sobre sexualidade; a divisão do trabalho; os modos
de agir; a dinâmica das populações; as estruturas das sociedades e seus modos de
transformação; o conceito de justiça; as questões relativas à violência; entre outros
assuntos não poderiam mais ser analisados sem que se levasse em consideração sua
vertente sociológica. Você gostou de algum desses temas? Que tal colocar em sua
agenda a intenção de pesquisar algo relacionado a eles em uma potencial iniciação
científica?

72 
 
 

Durante toda a Idade Média o homem tinha uma atitude de contemplação passiva do
universo, oriunda de sua submissão ao poder religioso exercido pela monarquia. Todas
as explicações sobre a sociedade estavam baseadas na vontade de Deus. Esse período
começou a ser questionado no Renascimento e no Iluminismo. O Renascimento se
iniciou em algumas cidades italianas no século XIV. Sua característica mais marcante é
a retomada dos valores da cultura greco-romana, e seu ideal preponderante foi o
Humanismo - valorização do homem. Os humanistas foram ferrenhos questionadores dos
valores e da organização social e política da Idade Média. O surgimento do
Renascimento deve ser considerado por meio da análise de dois fatores. O primeiro deles
foi a invenção da imprensa, que permitiu a propagação de vários clássicos greco-
romanos e também bíblicos, outrora somente acessíveis aos monges. O segundo diz
respeito às grandes navegações que ampliaram os horizontes culturais, contribuindo de
forma muito contundente para o questionamento de ideias até então tidas como verdades
absolutas.

Talvez não seja demasiado afirmar que o Renascimento pode ser considerado a
expressão do movimento Humanista em campos como a literatura, as artes, a arquitetura,
a filosofia e a ciência. Todavia, foi dentro do movimento filosófico conhecido como
Iluminismo que o questionamento das explicações do mundo atingiu seu ápice. Esse
movimento filosófico procurou usar a razão para elucidar os fenômenos sociais. Sua
origem é o século XVII, período de extrema fertilidade intelectual. Ao trocar Deus pelo
uso sistemático da razão, o período das luzes patrocinou uma austera crítica da cultura
e da política absolutista, difundindo a racionalidade e propagando que, com esse
instrumento, poderíamos dominar a natureza, alterar seu curso e produzir resultados que
nos levariam a um nível de progresso jamais sonhado em todos os aspectos da
existência.

Antes do Iluminismo, absolutamente tudo poderia ser explicado por meio do divino, do
transcendente, do metafísico. O Iluminismo arguiu e protestou contra isso, e
gradativamente os acontecimentos de nossa vida, tais como a vida política, a economia
das cidades, a cultura e nosso cotidiano, passaram a ser explicados pelo uso da razão,
e o triunfo desta autorizou o entendimento de que o mundo é forjado pela vontade
humana, podendo ser livremente questionado e, principalmente, transformado. O homem
passou a ser o centro do universo, surgindo assim o antropocentrismo.

73 
 
 

Como tinha pretensões de se desvencilhar das ideias absolutistas, a burguesia, classe


que estava em ascensão na Europa, procurou expandir os ideais iluministas, ajudando
assim esse período das luzes a solidificar as bases filosóficas de uma nova sociedade
que tinha como lema a liberdade, a igualdade e a fraternidade, valores outrora cristãos,
agora laicizados.

Apesar de ter ajudado a promover um gigantesco salto para a humanidade, auxiliando-


nos a sair do obscurantismo, já sabemos, principalmente por intermédio de Nietzsche,
que nem todas as promessas do período iluminista se concretizaram. Porém, continua
sendo inegável sua gigantesca contribuição para que pudéssemos nos reconciliar com
nossa humanidade. Além disso, o Iluminismo alavancou o desenvolvimento de novas
formas de pensar, e uma delas deu origem a uma abordagem científica da vida social,
que passou a ser conhecida como Sociologia.

Primeiros pensadores da Sociologia

Auguste Comte nasceu na França, em Montpellier no ano de 1798 e faleceu em Paris


em 1857. Oriundo de uma família católica monarquista teve sólida formação intelectual e
teve como um de seus principais projetos, conceder à sociedade uma análise pautada
nos métodos científicos que se desenvolviam rapidamente em sua época. Sendo assim,
o pensamento sociológico de Comte foi amparado pela ciência positivista, aquela que
se interessava por dados concretos, que pudessem ser mensurados, comparados,
aferidos, enfim, dados que passaram a ser chamados de positivos. Quanto a isso
Giddens nos fala:

Ele [Comte] acreditava que a sociologia deveria aplicar os mesmos


métodos científicos rigorosos ao estudo da sociedade que a física ou a
química usam no estudo do mundo físico. O positivismo sustenta que a
ciência deveria estar preocupada somente com entidades observáveis
que são conhecidas diretamente pela experiência. Baseando-se em
cuidadosas observações sensoriais, pode-se inferir as leis que explicam
a relação entre fenômenos observados. Ao entender a relação causal
entre os eventos, os cientistas podem então prever como os
acontecimentos futuros ocorrerão. Uma abordagem positivista da
sociologia acredita na produção de conhecimento sobre a sociedade,
baseada em evidências empíricas tiradas a partir da observação, da
comparação e da experimentação (GIDDENS, 2005, p.28).
74 
 
 

Para Comte a sociedade se estabelece da mais simples para a mais complexa e a


evolução não pode prescindir da ordem, pois sem ela não há progresso. A ordenação é
um dos princípios da ciência, e não é à toa que serviu como um dos pilares do
positivismo: “o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. Com os
primeiros trabalhos de Comte as instituições sociais começam a ser percebidas como
potentes instrumentos de ordenação comportamental, nos doutrinando para que
tenhamos um comportamento adequado. Todavia, na maioria das vezes, esse
ensinamento passa despercebido a nós e não nos damos conta quando cobramos de
outros indivíduos o mesmo comportamento que aprendemos.

Foto 12: Auguste Comte

Comte viveu em uma época embrionária no que diz respeito à sociologia. Essa, nem
mesmo era uma disciplina acadêmica. Contudo, seus passos não passaram
despercebidos por aquele que viria a se tornar o responsável pela implantação da
sociologia no cerne das universidades.

Émile Durkheim também era francês, e nasceu em 1858, em Épinal de Vosges, tendo
falecido em 15 de novembro de 1917. Realizou seus estudos no Liceu Louis Le Grand e
na École Normale Supérieure, onde se graduou em filosofia. Lecionou pedagogia e
ciência social em Bordeaux. No ano de 1902 foi convidado a lecionar na Universidade de
Sorbone, em Paris tornando-se titular da cadeira de pedagogia enquanto também
lecionava sociologia. Em 1913, a cadeira de Sociologia foi transformada em cátedra,
75 
 
 

sendo mérito de Durkheim ter transformado a sociologia numa disciplina amplamente


aceita nas universidades.

Durkheim acreditava que a sociologia deveria preocupar-se com a investigação dos fatos
sociais. Assim, os sociólogos deveriam estudar os aspectos da vida em sociedade que
moldam as ações individuais. Mas o que são os fatos sociais? São as maneiras de atuar,
pensar, agir e sentir que, como práticas da coletividade exercem, de forma amplamente
inconsciente, coerção sobre os indivíduos. Além disso, os fatos sociais são
independentes dos indivíduos e coube a Durkheim a primazia de demonstrar a
exterioridade dos fatos sociais, separando-os de razões pessoais ou consciência
individual. Segundo Durkheim:

Fato social é toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre
o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, que é geral na extensão de
uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente
das manifestações individuais que possa ter (DURKHEIM, 1978, p. 13).

Logo, a maneira como agimos é sempre condicionada pela sociedade, pois o agir
individual origina-se no exterior, na sociedade. É-nos imposto pela sociedade e por esta
razão fala-se em coerção social. Fatos sociais tem existência própria e independente da
do indivíduo. Não é difícil perceber, e Geraldo Vandré que nos perdoe ("Vem, vamos
embora / Que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora, / Não espera acontecer"),
mas para Durkheim, a hora já vem amplamente marcada pela sociedade.

Durkheim tinha a firme convicção de que a sociedade tem vida própria e vai além da
soma dos interesses mais comezinhos das ações individuais. O modo de organizar o
pensamento, de dar vazão aos sentimentos e de patrocinar ações em uma sociedade, já
existe antes dos indivíduos que nela se encontram, e continuará sendo posterior a eles,
pois tem vida própria. A sociedade é como um gigantesco animal que tem vida e
manifestações próprias e transcende em muito as manifestações de caráter individual.
Sendo assim, devemos atentar que os fatos sociais devem ser entendidos como
coisas, e é neste ponto que podemos encontrar ecos de Comte no pensamento de
Durkheim, pois os fatos sociais, sendo externos à vontade e à consciência dos indivíduos,
deveriam ser tratados como coisas materiais e seu estudo ser feito por meio da
observação e da experimentação, ou seja, por intermédio da ciência. Logo, é imperativo
76 
 
 

que o sociólogo tenha uma postura investigativa semelhante a dos pesquisadores das
ciências naturais, que estudam a biologia, a física ou a química. Para exercer a
sociologia Durkheim afirmava que era necessário livrar-se de conceitos pré-
concebidos e de paixões sobre os fenômenos sociais, pois somente assim o
sociólogo poderia investigar a exterioridade e a objetividade dos fatos sociais
como predicados da sua própria natureza.

Cada indivíduo que pertence à sociedade contém um pequeno fragmento dela, e por este
motivo, não é possível compreender a sociedade se olharmos somente para um sujeito
que a compõe. Neste caso, é o todo que tem primazia sobre as partes. É a sociedade
que deseja, pensa, sente e age por intermédio dos indivíduos que lhe dão forma. Do
mesmo modo que a “dureza do bronze não figura nem no cobre, nem no estanho, nem
no chumbo que serviram para formá-lo e que são corpos maleáveis ou flexíveis; figura
na mistura por eles formada” (DURKHEIM, 1978, p. 25). Para Durkheim os indivíduos
não atuam como gostariam de atuar, mas como a sociedade os permite atuar. É a
sociedade quem dita regras, e são os indivíduos que as seguem, na maioria das vezes
de forma automática, impensada, sem sequer perceber que estão seguindo regras que
lhe foram sovadas pelo tecido social.

História dos macaquinhos

Alguns cientistas almejavam fazer uma pesquisa. Para tanto colocaram seis
macaquinhos em uma jaula. Um cacho de bananas foi pendurado no teto desta mesma
jaula. Cada vez que um macaquinho tentava pegar uma banana, um cientista lançava um
forte e dolorido jato de água fria em todos eles. Com o tempo, nenhum macaquinho ousou
tentar pegar uma banana sequer, mesmo que a fome fosse grande. Passado certo tempo,
um dos cientistas apanhou um dos seis macaquinhos e o trocou por um diferente. Este,
ao chegar à jaula, imediatamente tentou apanhar uma banana, mas ao seu primeiro
movimento foi impedido e espancado pelos cinco macaquinhos antigos. Com o tempo,
os cientistas foram trocando todos os macaquinhos antigos por outros macaquinhos, até
chegar a um momento onde existiam seis macaquinhos novos e esfomeados na jaula, e
que nunca tinham levado sequer um único jato frio e dolorido. Todavia, nenhum deles
ousava pegar uma banana. Certo dia, um desses macaquinhos perguntou ao grupo: “Ei

77 
 
 

turma, qual o motivo de não podermos comer as bananas?”. A resposta foi certeira: “Não
sabemos bem, mas é melhor não arriscar, pois as coisas sempre foram assim por aqui”.

Figura 4: Como nascem as crenças

Para saber mais:


Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: https://www.youtube.com/ 
watch?v=g5G0qE7Lf0A 

78 
 
 

MÓDULO 2

Sociedade, Ética e Pesquisa Científica

Com o surgimento da sociologia entra em cena uma nova maneira de abordar os


fenômenos éticos, uma vez que passamos a encarar o certo e o errado por meio dos
fenômenos sociais, e a pesquisa científica nos ajuda sobremaneira a conhecer um pouco
mais sobre nós e as relações que vivenciamos no tecido social. A sociedade passa a
decidir o que é correto e o que é incorreto. A moral é vista como um fato social. A ética é
um fato social. A sociedade agora faz parte da equação do bem viver. Para muitos é
instância maior de definição da moralidade, pois quando ocorrem mudanças no seio da
sociedade, quase que invariavelmente essas mudanças são refletidas na codificação
moral outrora vigente. Transforma-se a sociedade, modifica-se o conceito de moralidade.

Agora, para explicar o que é certo ou errado a partir de um ponto de vista sociológico,
devemos, à maneira de Nietzsche, fazer a genealogia da moral. A genealogia dos
valores. E para isso teremos que examinar a sociedade em suas entranhas, abstendo-
nos de manifestar qualquer idealismo. A sociedade terá que ser “fatiada”, e em seu
interior poderemos ter maior clareza da gênese dos valores. O valor das coisas é oriundo
da sociedade. O critério de validação da vida que vale a pena ser vivida é fruto das
relações sociais.

Uma constatação inovadora

Vamos pegar um objeto de interesse de Durkheim para que nos sirva de exemplo de
como nossas inquietações e dúvidas podem ser sanadas por intermédio da pesquisa
científica séria. Uma das colaborações mais revolucionárias que Durkheim nos concedeu
foi sua ideia sobre o suicídio. Perceba caro (a) aluno (a), que quase qualquer assunto
pode ser problematizado pela ciência. Isso abre muitas possibilidades para sua atuação
nesta faculdade. Até o seu tempo acreditava-se que esta ação tinha causas
eminentemente individuais, pessoais. Todavia, Durkheim fez uso de metodologias

79 
 
 

científicas para afirmar que o suicídio era oriundo de causas sociais. Durkheim fez uso
de estatísticas oficiais, bem como das taxas de suicídio em diferentes arcabouços
familiares e em diferentes nacionalidades. Levou em consideração até mesmo as
distintas filiações religiosas. Com tudo isso chegou a conclusões bastante atraentes.
Percebeu uma frequência maior de suicídio entre solteiros, assim como entre os casais
sem filhos. Quanto à influência da religião, Durkheim afirma que a proteção contra o
suicídio não provém dos seus dogmas, mas sim da fundamentação que esta concede a
uma ordem social. Neste sentido, um grupo familiar, um partido político com forte
ideologia ou uma comunidade religiosa exercem proteção eficaz contra o suicídio.

Durkheim aponta para existência de três tipos distintos de suicídio. O primeiro deles é
chamado de suicídio egoísta e é advindo daquilo que chamamos individualismo,
consequência de uma fraca integração social. Quanto menor forem os vínculos sociais,
maior será a probabilidade de se cometer suicídio. No outro extremo da balança temos o
suicídio altruístico, que decorre exatamente do oposto, ou seja, é oriundo de uma
integração social muito forte e contundente. Lembremo-nos dos kamikazes japoneses,
da honra dos samurais, dos homens-bomba muçulmanos. Os vínculos sociais são tão
contundentes que em todos esses exemplos, seus agentes abdicam de suas liberdades
individuais para morrer pelos valores de sua comunidade social. Acompanhe:

[...] os guerreiros dinamarqueses consideravam uma vergonha o fato de


morrer na cama, de velhice ou de doença, e suicidavam-se para escapar
a essa infâmia. Os godos chegavam mesmo a acreditar que aqueles que
morriam de morte natural estavam destinados a viver eternamente em
cavernas cheias de animais venenosos. Nos limites das terras dos
visigodos havia um grande rochedo, chamado O Rochedo dos Ancestrais,
do alto do qual os velhos se lançavam quando estavam cansados da vida
(DURKHEIM, 2000, p. 230).

O terceiro tipo de suicídio foi chamado por Durkheim de suicídio anômico. Ele é fruto das
rápidas mudanças sociais, que segundo o autor andam junto com a desestruturação da
sociedade. Decadências econômicas e prosperidades súbitas ocasionam aumento da
taxa de suicídio, pois podem fragilizar os laços que unem o indivíduo à sua sociedade:

Em 1873 eclode em Viena uma crise financeira que atinge o ponto


culminante em 1874, o número dos suicídios imediatamente se eleva.
80 
 
 

Passa de 141 em 1872 para 153 em 1873 e 216 em 1874, o que


representa um aumento de 51% em relação a 1872 e de 41% em relação
a 1873. Isso bem demonstra que essa catástrofe é a causa única desse
aumento e que este é sensível, sobretudo no momento mais agudo da
crise, isto é, durante os quatro primeiros meses de 1874... não está
esquecido o famoso crack da bolsa de Paris durante o inverno de 1882.
As consequências se fizeram sentir não apenas em Paris, como em toda
a França. Entre 1874 e 1886, o crescimento médio anual da taxa de
suicídios era de apenas 2%; em 1882, de 7% além disso, não se dividiu
igualmente pelo diferentes momentos do ano, mas concentrou-se,
sobretudo nos três primeiros meses, isto é, no momento preciso em que
o crack se produziu. Devem-se a esse único trimestre o 59% do aumento
total (DURKHEIM, 2003, p. 257).

Desde a publicação do livro O suicídio, muitas pesquisas foram realizadas e muitas falhas
nas análises estatísticas foram encontradas. Todavia, a contribuição de Durkheim
permanece inabalável, pois sua percepção sobre a influência da sociedade neste
acontecimento perturbador foi, como já mencionamos, revolucionária.

Afinal, quem marca a hora?

Se Émile Durkheim afirmava que a hora já vinha marcada pela sociedade, Max Weber
(1864 - 1910), outro grande nome da sociologia, asseverava ser importante também levar
em conta o sentido que os indivíduos constroem para legitimar suas ações e suas
escolhas. Pensemos por exemplo na questão da dominação. Para Weber, alguém que
se deixe dominar pode fazê-lo devido a hábitos não refletidos, mas também por perceber
de forma racional que esta concessão pode trazer-lhe algum ganho. E isso também é
válido para o dominador. Segundo Weber, existe uma dinâmica social entre dominador e
dominado que permite o estabelecimento de certo equilíbrio entre as partes. É a
justificativa que o dominado concede para sua dominação, e não a maneira de execução
do poder por parte do dominador, a responsável pela legitimação do ato de dominação.
O dominado, desse modo, torna-se o sujeito de uma ação, cujo sentido construído por
ele pode legitimar o poder do dominador. Pode-se concluir que a dominação é passível
de ocorrer por convicções pessoais, por dependências de caráter afetivo ou econômico,
ou, ainda, porque os envolvidos nesta dinâmica desejam alcançar algum tipo de benefício
futuro, como por exemplo, ser reconhecido, apoiado ou receber algum ganho em
determinada esfera. Logo, Weber não descarta as inclinações pessoais na dinâmica
social. É a natureza dos desejos que motiva o tipo de dominação, e a natureza dos
81 
 
 

desejos pode ser encontrada na complexa relação entre a sociedade e os indivíduos que
a compõe. Isso não deixa de ser uma profunda relação social. Contudo, é constituída
pelos sentidos que os indivíduos concedem para sua ação.

Figura 5: Max Weber

Weber difere de Durkheim, para quem a sociedade estava sempre na frente dos
indivíduos. Em Weber, os indivíduos são participantes na construção da História. Seus
desejos se mesclam às regras sociais gerando padrões complexos de relação e
comportamento, ora conscientes, ora inconscientes. Nada surge meramente da cabeça
dos envolvidos, uma vez que todas as ações estão baseadas em relações sociais
(BOTTOMORE; NISBET,1980).

Na Sociologia de Weber não existe a oposição entre indivíduo e sociedade que


encontramos em Durkheim, uma vez que as normas sociais só se tornam sólidas quando
aparecem nos indivíduos sob a forma de uma motivação. Cada indivíduo age por um
motivo que é dado pela tradição, por interesses de caráter racional ou mesmo emocional.
Weber discorda de Durkheim, pois acredita que a hora não vem marcada pela sociedade.
Afirma que podemos entender a dinâmica social por meio de diferentes aspectos, e
nenhum deles é melhor que outro. Há sempre diversas interpretações possíveis quando
se trata de análise social.

Para saber mais: 

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MÓDULO 3

Os Campos Sociais de Pierre Bourdieu –

Parte 1

Pierre Félix Bourdieu (1930 – 2002) foi um renomado sociólogo francês. Sua fama foi
mundial, e teve seu período áureo no final do século XX. Herdeiro direto de Émile
Durkhein, Max Weber e também de Karl Marx, exerceu um enorme impacto em diversas
áreas do conhecimento, como a educação, as ciências sociais e a comunicação. Para
um aluno (a) mais atento (a) ficará evidente o quanto este autor nos é caro para que
possamos obter maior clareza quanto aos mecanismos subjacentes ao campo social que
agora começamos a conhecer, ou seja, o campo acadêmico, científico.

Figura 18: Pierre Félix Bourdieu

Como cientista que era, assim como seus predecessores, Bourdieu se diferencia dos
filósofos por abster-se de fazer especulações que não possam ser comprovadas
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empiricamente. Sua obra já seria densa mesmo se ele não acrescentasse a ela uma
gigantesca quantidade de informações colhidas ao longo dos anos em suas pesquisas
de campo. Números, tabelas, fórmulas, cálculos, gráficos, estatísticas e demais
instrumentais científicos concedem à sua produção intelectual um significativo peso,
assim como um ônus para aqueles que almejam criticá-la, pois, para argumentar com
este autor de forma séria, é indispensável contrapor seus achados empíricos, o que
dificulta sobremaneira a existência de um bom número de críticos abalizados e sérios.
Fora isso, sua escrita é desprovida de qualquer preocupação didática. Seu estilo literário
é inversamente proporcional à sua gigantesca genialidade, ou seja, tosco. Um de seus
livros mais emblemáticos é sem sombra de dúvidas A Distinção, Crítica Social do
Julgamento, que foi publicado na década de sessenta, sendo essa obra um exemplo
clássico do que foi dito (BOURDIEU, 2006). Para aqueles que entram em contato com
sua produção intelectual, a primeira impressão é que ela é por demais densa, enigmática,
obscura. Sua forma de escrever é radicalmente confusa e seu didatismo simplesmente
não existe. Kant e Heidegger provavelmente se sentiriam orgulhosos e representados
por Bourdieu, pois esses três senhores são de uma leitura um tanto quanto “indigesta”.

Todavia, antes de entrar em contato com seu pensamento, fui apresentado a ele por
intermédio de um grande professor chamado Clóvis de Barros Filho. Foi ele quem me
concedeu - como brinca o filósofo Luc Ferry -, as “chaves do castelo” de Bourdieu. Sem
elas, a leitura dos originais poderia ter se tornado um pesadelo de enormes proporções.
E é sempre prudente reiterar que muitas das ideias didáticas contidas nesta obra que
agora tens em mãos, são oriundas do professor Clóvis. E como ainda não existe uma
forma de se referenciar aulas, fica aqui um agradecimento a este professor admirável,
modelo a ser seguido por todos aqueles que ainda acreditam na força de um mestre
apaixonado pelo que faz e no poder que uma didática sem precedentes tem de introduzir
lucidez onde antes havia obscuridade e desconhecimento. E para você, querido (a) aluno
(a) que recém chegou, este é mais um aprendizado para você. Nenhum professor tira
suas ideias do nada e nenhum cientista elabora suas pesquisas a partir do zero. Por este
motivo, é sempre elegante e ético citar as fontes originais de onde suas ideias evoluem
ou de onde sua pesquisa científica emana. Lembre-se disso durante todo o transcorrer
de sua jornada acadêmica.

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Figura 19: Luc Ferry

O pensamento de Bourdieu é bastante perturbador para aquelas pessoas com


convicções idealistas muito arraigadas. Metafísicos podem ter facilmente um colapso
nervoso ao lê-lo. Bourdieu extrapola o quanto pode em realismo, aspereza, crueza, mas
isso não obscurece o fascínio de seu pensamento, pelo contrário, enaltece sua fertilidade.
Sigamos em frente, então.

A ilusão naturalista

Um dos conceitos com o qual Bourdieu colocou muito foco em sua carreira foi o da ilusão
naturalista, o que em sumo é uma crítica às afirmações da primazia da natureza sobre
o social. Em outras palavras, muitas coisas que na sociedade temos a tendência de
considerar como sendo genéticas, hereditárias, biológicas, são na verdade ecos de uma
socialização que nos foi imposta. O aparente natural tem sua origem no social. Bourdieu
acredita que nos acostumamos a naturalizar nossas ações do cotidiano, ignorando de
forma grosseira a maneira como o trabalho social vai sovando nossas convicções mais
profundas e vitimando nossa consciência de forma lenta e sorrateira. Como já dizia
Durkheim, e aqui começamos a ver as heranças de Bourdieu sendo expostas, muitas
coisas ditas naturais são fatos sociais, intervenções sociais tão profundas e arraigadas
que na maioria das vezes passam despercebidas para aqueles que se acostumaram a
viver suas vidas concedendo ao piloto automático a primazia da condução de suas
existências. Se quisermos escapar da quase inexorável teia de atos irrefletidos e crenças
disfuncionais, teremos que desenvolver a capacidade de identificar o socialmente
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explicável. Esse passo é um pré-requisito imperativo para todos que desejam fazer
ciência de maneira séria, e para todos aqueles que desejam despir-se de seus
moralismos ingênuos e de seus imaginários metafísicos que nos acorrentam ao senso
comum e a seu pensar ingênuo.

Para Bourdieu, a naturalização dos comportamentos humanos retira da sociedade o ônus


da responsabilidade dos resultados. Para Bourdieu, este tipo de comportamento é
excelente para os dominantes, e aqui revisitamos temas já desenvolvidos por seus
antecessores, como Weber. O conceito de natureza humana pode facilmente mascarar
os processos sociais de dominação, pois quando arrogamos ao indivíduo atributos inatos,
acabamos por rotulá-lo antes mesmo de nascer. Um dos aspectos mais facilmente
naturalizáveis diz respeito às questões relativas aos gêneros. Gênero social é algo
diametralmente diferente de sexo biológico. Neste momento, apenas considere que as
diferenças de gênero podem não ser biologicamente determinadas, mas culturalmente
produzidas. Homens e mulheres, desde a mais tenra idade, ou melhor, mesmo antes de
nascer, são socializados em papéis diferentes. O que encontramos na seção de
brinquedos para meninos? Super heróis lutadores e corajosos, carrinhos, blocos de
montar, bolas, acessórios para prática de esportes etc. E na seção das meninas?
Bonecas, produtos de maquiagem, carrinhos para bebês, cozinhas de brinquedo, tábua
de passar roupas de brinquedo etc. Aprendemos a comportar-nos de acordo com papéis
comunicados socialmente, e um deles é o de menino que aprende como ser um homem
e o de menina que aprende como comportar-se como uma futura mãe e dona de casa.
Bourdieu aponta por meio de suas pesquisas os mecanismos sociais que facilitam a
dominação masculina, tornando-a legitima e plenamente aceita tanto pelos homens
quanto pelas mulheres. Para mim, autor da obra que você agora lê, e que tenho formação
filosófica, mas também em neurobiologia, é impossível deixar de levar em consideração
as recentes descobertas das neurociências, da genética e de outras áreas que nos
presenteiam com uma cativante visão de nossa natureza. A biologia, por exemplo, nos
concede um suporte inato inquestionável e separa machos e fêmeas de forma bastante
evidente e inequívoca. Todavia, a diferenciação entre machos e fêmeas nada tem a ver
com os conceitos de masculinidade e feminilidade que estão intimamente atrelados aos
diferentes constructos sociais oriundos dos mais diversificados períodos históricos pelos
quais passamos. Para tanto, basta perceber que o que se esperava de um homem na
Era dos Vikings é bastante diferente do comportamento masculino atual. Sendo assim,
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Bourdieu afirma que grande parte da naturalização dos comportamentos humanos nada
mais é do que um pretexto para ocultar uma complexa edificação social que varia
amplamente de lugar para lugar. Mais ainda, que os constructos simbólicos oriundos da
sociedade subvertem constantemente os ditos suportes biológicos, ainda que para a
maioria das pessoas isso não seja evidente. Todavia, a ilusão naturalista não tem a ver
somente com gênero, ela também se estende para todas as declarações referentes às
diferenças étnicas, o que ajuda na propagação dos preconceitos raciais e na crença que
reforça posturas etnocêntricas nefastas.

A influência de Karl Marx

Bourdieu foi fortemente influenciado por Karl Marx (1818 - 1883), e de certa forma,
estendeu a análise social deste pensador. Por este motivo, valerá à pena conhecermos
um pouquinho da obra de Marx. Não é pequeno o número de pessoas que critica Marx
sem ao menos conhecer um fragmento de seu pensamento. É comum associá-lo com
comunistas comedores de criancinhas, com o colapso dos países do bloco socialista,
com as ditaduras de Josef Stalin, Nicolae Ceauşescu e companhia. O que poucos sabem
é que o pensamento de Marx é brilhante e revolucionário e que é praticamente impossível
compreender a sociedade e a dinâmica do comportamento das relações humanas sem
conceder-lhe o devido crédito. Marx foi um cientista e um idealista ao mesmo tempo.
Como cientista, realizou uma primorosa análise da sociedade que continua válida até os
dias atuais. Como idealista, sonhou com um mundo melhor que, infelizmente, não se
concretizou. Quando criticamos Marx, é provável que estejamos criticando o Marx
sonhador. Criticar o Marx cientista já é tarefa para poucos, pois sua análise social foi
requintada e bastante elegante. Provavelmente ainda ouviremos falar deste cidadão por
séculos. Todavia, é pertinente lembrá-los que nossa disciplina versa sobre Metodologia
e Filosofia da Ciência. Pontuo esta lembrança, pois acredito que alguns de vocês podem
estar se questionando se é realmente necessário adentrarmos nessas questões quando
nosso objeto de estudo parece ser de outra natureza. A resposta para esta inquietação é
um contundente SIM. Pois se não compreendermos a natureza social do campo
científico, não estaremos prontos para abraça-lo com entusiasmos e responsabilidade.
Daí a necessidade de uma análise social do campo acadêmico e científico. Então,

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revigore-se que o melhor ainda está por vir. Continuemos com nossa leitura. Escreva
suas dúvidas que em breve estaremos juntos para esclarecê-las mais uma vez.

Figura 20: Karl Marx

Marx afirma que os valores que concedemos às coisas do mundo não são explicáveis
por essas coisas em si. Seja uma prancha de surfe, um evento esportivo, uma obra
literária, uma composição musical, necessitamos de uma referência que facilite a
valoração, e esta referência é a infraestrutura econômica. Em outras palavras, a
produção dos bens materiais nos concede parâmetros para valorar as coisas como sendo
boas ou ruins, e consequentemente, como certas ou erradas. A economia seria assim o
lugar privilegiado para encontrar os valores das coisas do mundo. Quanto maior a
produção dos bens materiais, melhores serão as coisas. A produção de bens materiais
concede as respostas para tudo no mundo. Se existe produção de bens materiais a coisa
é boa, caso contrário, não tem valor algum!

Contudo, existe um conflito inserido nesta dinâmica de produção de bens materiais, e


esse conflito é polarizado entre a burguesia, dona dos meios de produção, e o
proletariado, grupo que vende sua força de trabalho. Se quisermos entender o valor das
coisas, devemos entender a relação de conflito entre esses dois grupos. Marx afirma que
a luta entre essas duas classes sociais nos concede a chave para entendermos a gênese
dos valores sociais, pois existe uma maneira burguesa de conferir valor ao mundo. Essa
maneira tende a universalizar-se, pois os burgueses são fortes para impor seus valores
à classe proletária. Gradativamente, esses valores se tornam irretorquíveis e absolutos.
Pense com parcimônia caro (a) aluno (a), para a maioria da população, o que a classe
dominante afirma ser bom e bonito, acabará sendo, pois os veículos midiáticos são, na
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sua maioria, veículos burgueses. Pense nas revistas de moda, nas revistas que expõe a
vida das celebridades. Recorde-se dos programas televisivos dos canais abertos, a
esmagadora maioria das rádios de cunho não alternativo, entre outros. Em resumo, se
nosso desejo é entender a gênese do certo e do errado, devemos estudar em
profundidade as formas como a burguesia oprime o proletariado e faz valer seus pontos
de vista. Bourdieu concorda com Marx, mas vai além, pois não acredita que seja somente
por esta via que entenderemos a genealogia dos valores. Dizer que a sociedade, dividida
em dois grandes grupos, é a fonte maior do bem e do mal, é ancorar a análise social em
algo muito amplo. A divisão da sociedade em classes burguesa e trabalhadora explica
muitas coisas, todavia, deixa muitas outras de fora. É deste ponto que Bourdieu continua
a análise social.

Os campos sociais

O conceito de campo social é provavelmente um dos mais fecundos e originais de Pierre


Bourdieu. Entendê-lo de forma clara poderá conceder a você, caro (a) estudante, uma
enorme ampliação em sua capacidade reflexiva e perceptiva, e isso facilitará bastante a
compreensão dos mecanismos de organização social que subjazem ocultos em uma
grande parcela dos conflitos sociais. Depois de absorver a lógica inerente a este conceito
é muito provável que você passe a ter maior clareza da dinâmica das relações humanas,
e que paulatinamente deixe de lado certo tipo de moral pueril fruto de crenças
relativamente ilusórias a respeito da natureza de nosso comportamento.

Mas afinal, o que vem a ser um campo? Um campo pode ser definido como um espaço
onde pessoas, ou agentes sociais, ocupam posições simbolicamente determinadas.
Essas posições sociais são as responsáveis pela forma como as relações entre as
pessoas são constituídas. É importante frisar que o espaço ocupado por um determinado
campo não é necessariamente um espaço físico, é um espaço abstrato. As relações
sociais de um determinado campo poderão acontecer em qualquer lugar onde os agentes
se encontrarem. Sendo assim, as posições sociais são muito mais atreladas ao
simbolismo do que a um determinado lugar geograficamente determinado, e mesmo
quando as distâncias físicas entre os agentes de um campo são aumentadas, ou
diminuídas, as distancias ditas simbólicas não sofrerão nenhuma alteração. Nas palavras
de Bourdieu:
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Eu não sou atopos, sem lugar, como Platão dizia de Sócrates, ou “sem
vínculos nem raízes”, como afirma um tanto às pressas, aquele que por
vezes se considera como um dos fundadores da sociologia dos
intelectuais, Karl Mannheim (BOURDIEU, 2001, p.160).

Não existe ninguém que não esteja caracterizado pelo lugar em que está situado de
maneira mais ou menos permanente (BOURDIEU, 2001 , p.165).

Durkheim afirma que a sociedade estabelece suas regras aos indivíduos, impondo a eles
muitas maneiras de agir que, por vezes, acabam sendo inconscientes. Desta maneira,
não nos damos conta da coerção social a que estamos sendo submetidos. Aprendemos
padrões de comportamento praticamente a cada instante. Alguns deles nos foram
ensinados, como por exemplo, as regras de convivência e etiqueta, como o uso dos
talheres à mesa, não falar com a boca cheia, entre outras. Contudo, pense na distancia
que você mantém ao falar com outra pessoa. Essa distância obedece a certo limite que
não costumamos subverter, e para a maioria das pessoas este comportamento foi
adquirido naturalmente, inconscientemente, sem que precisássemos de orientação para
realizá-lo. Distâncias físicas entre diferentes sujeitos são aprendidas inconscientemente,
e este é um bom exemplo de como, ao longo dos anos, a sociedade vai-nos sovando
gradativamente, subvertendo em muitos aspectos o livre arbítrio que muitos de nós
pensamos ter na maioria das ocasiões.

Mas, voltemos aos campos sociais. Sabemos que as posições sociais não podem ser
definidas pela forma clássica de definição de objetos, ou seja, de maneira universal e
própria, pois as posições sociais tornam-se estéreis quando analisadas em si mesmas.
Elas necessitam ser definidas por tautologia, uma vez que a presença do seu oposto é
indispensável para que possamos conceder-lhe um significado. As posições sociais são
sempre polarizadas, relacionais, pois algo é o que o outro não pode ser. Assim, um
soldado só é soldado em função do cabo, um burguês só o é em função da classe
proletária, um professor em função de seu aluno, um chefe só é chefe em função de seu
subordinado e assim por diante.

As estruturas do campo

Todo campo social é estruturado, ou seja, é cortado por eixos que lhe dão sentido e
conferem singularidade às posições sociais ocupadas por seus agentes. Pense por
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exemplo no campo político. Ele é cortado por um eixo que lhe confere a possibilidade de
identificarmos seus agentes sociais ao centro, à esquerda ou à direita. A partir desse eixo
é possível aproximar ou afastar os agentes sociais, e isso facilita a identificação do
posicionamento de cada um deles. Se tomarmos, por exemplo, um esporte, como o surfe,
perceberemos que ele é estruturado por meio de modalidades. Existem surfistas que
surfam deitados sobre pequenas pranchas de espuma, são chamados de bodyboarders.
Existem os que surfam em pé, com pequenas pranchas de fibra de vidro, conhecidos
como shortboarders. Encontramos surfistas que gostam de surfar em pé, com pranchas
muito grandes, são os longboarders. Existem ainda surfistas competidores profissionais
e surfistas profissionais que são pagos por grandes empresas somente para viajar e
produzir fotos em lugares espetaculares, esses são conhecidos como free surfers.
Apesar de tudo isso pertencer ao esporte surfe, essa estruturação concede uma enorme
diferenciação aos seus praticantes. Não somente no que diz respeito à técnica esportiva,
mas principalmente no comportamento, na forma como compreendem suas atividades,
no jeito de se vestir, de agir, de falar sobre suas modalidades. Enfim, são quase que
pertencentes a “tribos” diferentes. O campo jornalístico também apresenta vários eixos
estruturantes, como por exemplo, o jornalismo de massa da Rede Globo, das Revistas
Veja, Época, Istoé, e o jornalismo de cunho alternativo como o da Revista Carta Capital.
No campo da arte podemos contrapor a arte popular à arte apreciada e consumida pelas
elites. O campo jurídico tem uma grande diversidade de eixos estruturantes como o dos
advogados trabalhistas, advogados de empresas, juízes, promotores, delegados,
defensores públicos, etc. O campo acadêmico é traspassado por um eixo
estruturante que muito nos interessa e que cliva o campo em duas metades
bastante distintas, o das universidades particulares e o das faculdades, centros
acadêmicos e universidades privadas. Tradicionalmente, as universidades públicas
são o reduto privilegiado da produção científica, pois gozam de incentivos financeiros
advindos do Estado, e saiba caro (a) aluno (a), produzir pesquisa científica de
qualidade é bastante trabalhoso, desafiador e oneroso. Todavia, ainda que as
faculdades, centro acadêmicos ou mesmo universidades privadas não tenham
necessariamente a obrigação de serem os agentes principais no que tange a produção
de ciência e tecnologia, não podem se conceder o luxo de virar as costas para esta
gigantesca necessidade social. Daí a importância de conceder a todo e qualquer aluno
universitário, as noções mais basilares deste campo em particular. Fora isso, a

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identificação dos eixos estruturantes pertencentes a cada campo social facilita a


percepção das peculiaridades comportamentais de cada um dos seus agentes sociais –
em nosso caso, professores e alunos; professores orientadores de trabalhos científicos
e seus alunos orientandos; coordenadores de núcleos de pesquisa etc -, assim como a
possibilidade de identificar também a posição que cada um desses agentes exerce dentro
de seu respectivo campo.

As estruturas de pensamento do filósofo, do escritor, do artista ou do


erudito, bem como dos limites do que se lhes impõe como pensável ou
impensável, são sempre dependentes, em certa medida, das estruturas
de seu campo, portanto da história das posições constitutivas desse
campo e das disposições nele favorecidas (BOURDIEU, 2001, p.120).

Uma das coisas mais peculiares dentro da sociologia dos campos é a descoberta de que,
muitas vezes, o reconhecimento que um agente goza dentro de seu campo, nem sempre
é refletido no senso comum e vice versa. É preciso fazer parte do campo para
compreender a força e o poder simbólicos que determinados agentes são
detentores, pois, quando não se conhece o campo profundamente, quando não se tem
noção das regras inerentes a cada campo social, temos a tendência de imaginar
posicionamentos fantasiosos e irreais para determinados agentes. Lembre-se da unidade
1, quando versamos sobre Amit Goswami. Este senhor ganhou enorme popularidade
escrevendo livros sobre espiritualidade e física quântica. Todavia, a reputação dele não
é oriunda do campo da física, e sim do campo do esoterismo. Para um leitor menos
prudente e atencioso, conceder a Amit Goswami uma reputação dentro do campo
científico da física pode ser uma confusão bastante recorrente de ser encontrada. Logo,
para vocês que agora adentram o campo acadêmico, é imperativo que se saiba que o
reconhecimento de personalidades fora do seu campo, muitas vezes pode não refletir o
reconhecimento desta mesma personalidade dentro do campo. Fátima Bernardes pode
ser tida pelo senso comum como uma das maiores jornalistas do Brasil, todavia, se
perguntarmos ao povo quem foi Cláudio Abramo é provável que poucos o reconheçam.
Entretanto, dentro do campo jornalístico Abramo, ainda que falecido, detém uma
quantidade muito superior de capital simbólico.

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Todo campo tem regras

Um campo é um local onde invariavelmente ocorrem as disputas do jogo social. Uma


grande quantidade de regras é oriunda de algum tipo de jurisdição. Todavia, as regras
mais interessantes de serem analisadas são as de caráter tácito, ou seja, aquelas
que existem, mas não estão necessariamente impressas em nenhum manual e nem
tampouco podem ser baixadas com auxílio do “doutor Google”. Os campos são
verdadeiras arenas abstratas onde se desenrolam as contendas sociais. Eles são
repletos de agitação, conflito, competição, mas também são permeados de cooperação,
concordância, anuência e aquiescência explícitas quanto aos procedimentos internos do
campo. O americano Kelly Slater, onze vezes campeão mundial de surfe, teve em sua
carreira um rival bastante feroz, o havaiano Andy Irons. O campo social esportivo onde
ambos duelavam foi palco de acontecimentos memoráveis que oscilavam entre o conflito
aberto permeado de aspereza, e a proximidade quanto à atividade que concedia sentido
às suas vidas. Enquanto agentes do mesmo campo enfrentavam-se de forma cáustica e
apoiavam-se mutuamente em defesa das regras do jogo que permitia a continuidade do
arcabouço do campo onde duelavam e tiravam seu sustento. Foi assim também durante
a década de oitenta com os deputados constituintes Lula e Guilherme Afif Domingos, que
por razão de estruturação do campo eram ao mesmo tempo adversários, mas também
amigos sinceros, competidores e defensores das condições necessárias de manutenção
e reprodução das regras do jogo político. O campo científico também não é asséptico.
Kuhn – vimos isso na unidade 1 – já nos alertou sobre os jogos de poder que existem em
seu interior, e é importante que tenhamos ciência disso no momento em que decidimos
fazer parte de um determinado campo social. Contudo, por mais que a mídia insista em
nos enganar, sempre existirá muito mais afinidade entre Kelly Slater e Andy Irons, entre
Lula e Afif, entre Galvão Bueno e Luciano do Valle, entre Anderson Silva e Cris Weidman
do que entre pessoas que não jogam o mesmo jogo.

Permitirei-me citar-me como exemplo caro (a) aluno (a). Uma das atividades que exerço
em minha vida profissional é a docência universitária, e esta atividade me permitiu
conhecer um grande amigo, que por anos a fio foi diretor geral da nossa UNIBR, seu

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nome é Danilo Nunes. Além de amigo, sempre fui um grande admirador do professor e
líder Danilo Nunes. Todavia, ainda que sejamos amigos; ainda que ambos tenhamos uma
sincera e aberta admiração recíproca; socialmente somos competidores, pois
ministramos aulas na mesma faculdade e da mesma disciplina – comportamento
organizacional. Aos olhos de Bourdieu, seria ingenuidade imaginar que ambos, eu e
Danilo, não buscamos a consagração e os troféus simbólicos presentes no interior do
campo acadêmico, como já dito, perpassado pelo eixo que origina duas realidades
opostas, universidade pública e universidade privada. Ambas com universos, regras,
troféus e comportamentos distintos entre seus agentes, assim como detentoras de
consagrações simbólicas radicalmente diferentes. Siga Bourdieu abaixo:

Como o campo artístico, cada universo erudito possui sua doxa


específica, conjunto de pressupostos inseparavelmente cognitivos e
avaliativos cuja aceitação é inerente à própria pertinência.
Paradoxalmente, as grandes oposições taxativas acabam unindo os
mesmos que se opõe através delas, visto que é preciso concordar em
admiti-las para que se esteja apto a contrapor-se a seu propósito, ou,
valendo-se de sua mediação, de produzir então tomadas de posição
imediatamente reconhecidas como pertinentes e sensatas mesmo por
parte daqueles aos quais elas se opõem e que por sua vez lhes opõem.
Esses pares de oposições específicas (epistemológicas, artísticas etc.),
que são também pares de oposições sociais entre adversários cúmplices
no interior do campo, delimitam, inclusive em política, o espaço legítimo
de discussão, excluindo como absurdo, eclético ou simplesmente
impensável, qualquer tentativa de produzir uma posição não prevista
(quer se trate da intrusão absurda ou deslocada do “ingênuo”, do “amador”
ou do autodidata, ou da grande inovação subversiva do heresiarca,
religioso, artístico ou mesmo científico) (BOURDIEU, 2001, p.122).

As portas de entrada

A entrada em um campo social seja ele qual for, obedece a alguns critérios que não
podem ser facilmente subvertidos. Todo campo tem os jogadores que estão em plena
atividade, deleitando-se com o jogo, competindo pelos seus troféus. Em contrapartida,
existem os pretendentes, aqueles que ainda não estão nem sequer no banco de reservas,
mas almejam poder jogar. Por exemplo, a porta de entrada do seleto grupo dos surfistas
de ondas grandes, os denominados big riders, é um desempenho convincente quando o
mar atinge proporções épicas. A porta de entrada do campo jurídico é sem sombra de
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dúvidas o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). No caso do campo


acadêmico a porta de entrada é a aquisição da titulação conferida pela finalização
de um bom mestrado, e uma boa iniciação científica pode ser a anteporta de
entrada deste campo, PENSE NISSO COM CARINHO. Contudo, nesses três exemplos,
a transposição dessas portas configura somente o primeiro passo. Um passo que
credencia o agente social a jogar o jogo relativo a esse campo determinado. Mas a
patente ainda é baixa. A porta de entrada qualifica o jogador para jogar o jogo nas
posições mais inferiores, e a contundência com a qual a sociedade vai definindo os
próximos passos é bastante evidente àqueles com olhares atentos. O que poderá ser
feito e o que não poderá ser feito para galgar as próximas etapas é geralmente percebido
durante um processo longo e moroso, pois assim que se adentra um determinado campo,
fica evidente aos mais atentos que seus agentes sociais disputam os troféus do campo
dispondo de um capital simbólico radicalmente diferente. O capital simbólico pode ser
definido como um conjunto de recursos que cada agente social lança mão com vistas à
disputa dos prêmios específicos dos campos nos quais está inserido e já pode ser
considerado um agente legítimo.

Um fato que deve ser pontuado e apreciado com bastante parcimônia, é que os capitais
simbólicos tendem a ter validade somente dentro de campos específicos. Por exemplo,
um doutoramento pode ser considerado uma gigantesca aquisição de capital simbólico
no campo acadêmico. Todavia, este título tem validade quase nula no seio do mundo
corporativo. De forma inversa, um MBA pode conceder algumas preciosas fichas para
um executivo jogar o jogo das corporações, mas não será levado em consideração na
hora em que esse mesmo executivo almeje ministrar algumas aulinhas no curso de
Administração de Empresas de uma universidade qualquer. Em outras palavras, poderes
e capitais simbólicos adquiridos em um determinado campo, quase que invariavelmente
não tem validade em outros campos, ainda que muitos agentes sociais se esforcem no
sentido de validar esta conversão. Todavia, o preço a ser pago na forma de taxas
simbólicas de conversão de capital, na maioria das vezes inviabiliza o sucesso desses
esperançosos agentes sociais. Nas palavras de Bourdieu:

De outro lado, se é verdade que os ocupantes de posições dominantes


nos diferentes campos estejam unidos por uma solidariedade objetiva
fundada na homologia entre tais posições, eles também se opõe, no
interior do campo do poder, por relações de concorrência e de conflito,
sobretudo a respeito do princípio de dominação dominante e de “taxa de
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câmbio” entre diferentes espécies de capital que fundamentam as


diferentes espécies de poder (BOURDIEU, 2001, p.125).

Marília Gabriela não foi poupada quando fez incursões pelas telenovelas. Lobão foi
censurado quando se aventurou como apresentador da MTV. Antônio Ermírio de Moraes
e Silvio Santos fracassaram em suas tentativas de adentrar o campo político. No campo
acadêmico científico a taxa cobrada é ainda mais elevada, e os rigores que devem ser
obedecidos precisam ser conhecidos por todo e qualquer agente social que pretenda
fazer parte deste campo.

Dentro do campo a repartição do capital é intensamente desigual, díspar, e a quase


totalidade do que se aplaude em um agente social é a posição já conquistada, sua
história, seus troféus, seus feitos, em suma, o que já se fez, e não o que se almeja fazer.
O capital social é outorgado, pelos pares, pelos jogadores do campo, e como todos eles,
na maioria das ocasiões, concordam com as regras, sejam elas tácitas ou jurídicas, a
invasão abrupta de um determinado campo é invariavelmente vista como subversão das
regras. Logo, quanto maior o reconhecimento dos pares, dos demais jogadores do
campo, maior será o poder simbólico do agente que goza deste reconhecimento.

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MÓDULO 4

Os campos Sociais de Pierre Bourdieu – Parte 2

O conceito de Illusio

Que todo o jogo tem troféus, isso já falamos. Todavia, o que são esses troféus? Platão
nos fala que o homem comum é guiado pelos desejos e que com o uso da razão pode
transcendê-los. O filósofo nada mais seria, segundo este pensador, do que o sujeito que
supera suas inclinações mais viscerais, no intuito de conhecer a verdade. Todavia, muita
água rolou debaixo da ponte platônica, e apesar de sua inegável contribuição para o
aprimoramento do pensamento humano, hoje são poucos os pensadores sérios, sejam
eles filósofos, sociólogos ou neurobiólogos, que acreditam que o homem possa abdicar
de todas as suas inclinações e desejos, com vistas ao atingimento de ideias eternas e
verdades imutáveis. Somos seres humanos, e faz parte de nossa humanidade buscar
carinho, afeto, reconhecimento, algum status, certo tipo de diferenciação, uma premiação
aqui, uma promoção acolá, um título qualquer ali, um certificado pendurado na parede.
Todo o campo tem troféus, e eles são bastante específicos. O campo jornalístico os tem,
o jurídico, o artístico, o acadêmico, o esportivo, etc. E por mais que se tente explicar aos
agentes de outros campos, o valor do troféu só é percebido por quem joga o jogo, e isso
pode muito bem ser uma definição do conceito de illusio, ou seja, a naturalização do
valor dos troféus para os agentes inseridos no campo. Quem não joga o jogo, não
entende a motivação de quem joga.

Em lugar de se inserir na ordem dos princípios explícitos, das teses


formuladas e defendidas, a illusio faz parte da ação, da rotina, das coisas
que se faz e que se faz porque se fazem e na verdade sempre se fez
assim. Todos aqueles engajados no campo, defensores da ortodoxia ou
da heterodoxia, partilham a adesão tácita à mesma doxa que torna
possível a concorrência entre eles e lhes impõe seu limite. [...] ela impede
de fato o questionamento dos princípios da crença, que ameaçaria a
própria existência do campo. Os participantes não tem nada a responder
quanto às questões sobre as razões da pertinência, do engajamento
97 
 
 

visceral no jogo, e os princípios que podem ser invocados nesse caso não
passam de racionalizações post festum destinadas a justificar, tanto para
si como para os outros, um investimento injustificável (BOURDIEU, 2001,
p.124).

[...] cada campo confina assim os agentes a seus próprios móveis de


interesse os quais, a partir de um outro ponto de vista, ou seja, do ponto
de vista de um outro jogo, tornam-se invisíveis ou pelo menos
insignificantes ou até ilusórios (BOURDIEU, 2001, p.117).

Muitos troféus podem ser materializáveis, em taças, medalhas, placas etc. Porém, a
maioria dos troféus é simbólico, e quem não está inserido no campo, não está apto a
compreender suas regras, sua dinâmica, as relações entre seus agentes. Sendo assim,
terá grande dificuldade para compreender a motivação dos jogadores na disputa por
esses símbolos. Por exemplo, mestrados, doutorados, pós-doutorados, livres-docências,
são todos troféus do mundo acadêmico científico. Para conquistá-los, os agentes do
campo acadêmico abdicam anos de convívio com a família, de diversão e lazer, de
investimento em outros campos sabidamente mais rentáveis financeiramente do que o
campo acadêmico. Passados aproximadamente quinze anos de luta incessante, podem
qualificar-se para disputar uma vaga em uma universidade e desfrutar de um salário de
aproximadamente oito mil reais. Sim caro aluno (a), é pouco! Muito pouco! Comparado
ao esforço, é mesmo uma vergonha! Todavia, muitas pessoas passam a vida em busca
dessas titulações, e é importante que se perceba que por detrás delas existem valores
simbólicos que são incomensuráveis. Motivações advindas de outras esferas que não a
econômica. Reconhecimento de outras ordens. É assim no campo acadêmico, e é assim
também em inúmeros outros, onde as motivações transcendem interesses econômicos,
e isso, como veremos um pouco mais à frente, de certa forma subverte a perspectiva
social de Marx, que acreditava que estudando as relações de conflito entre burgueses e
proletários compreenderíamos a totalidade da sociedade.

O professor Clóvis de Barros Filho, assim como eu, um crítico das receitas prontas, das
fórmulas mágicas para atingir o sucesso, das universalizações de cases de sucesso, ao
criticar a efetividade das palestras motivacionais nos lembra em uma de suas aulas que:
“Toda motivação pressupõe um contexto social mais amplo do que uma palestra possa
proporcionar. A motivação é a quantidade de energia que você disponibiliza para buscar

98 
 
 

troféus em espaços específicos de convivência que são os teus. Espaços onde você se
sente um agente legítimo. A motivação pressupõe a inscrição em um contexto relacional
de jogo que é social, não é pessoal”.

Em suma, ninguém pode tirar proveito do jogo, nem mesmo os que


dominam, sem se envolver a fundo no jogo, sem se enredar nele: isto
significa dizer que não haveria jogo sem adesão (visceral, corporal) ao
jogo, sem o interesse pelo jogo enquanto tal, que constitui o princípio de
interesses diversos, até mesmo conflitantes, dos diferentes jogadores,
das vontades e aspirações que os animam e que, produzidas pelo jogo,
dependem da posição que nele ocupam (BOURDIEU, 2001, p.187).

Bourdieu chamava os desejos de eros, assim como Platão em sua obra O Banquete . Os
agentes sociais estão sempre erotizados, isto é, desejosos. E essa carga erótica é
recorrentemente direcionada para a busca dos troféus dos campos. Os agentes articulam
estratégias com vistas à aquisição dos capitais específicos do campo. Todavia, esses
desejos parecem não ser tão nefastos quanto Platão nos falou. Eles fazem parte de nossa
humanidade. Estão incrustados nas sinapses de nosso sistema nervoso central. E como
seres humanos, somos agentes de obras magníficas, obras não tão admiráveis e obras
pouco atraentes. Assim também é no seio dos campos sociais. Tem gente que joga
dentro das regras, tem gente que abusa das faltas, tem gente que subverte o aceitável
no afã da conquista do troféu. Tem sido assim desde o começo dos tempos. Faz parte
da natureza humana. Natureza temperada com pitadas de sociedade, ou quem sabe,
sociedade temperada com pitadas de natureza. Ponto de origem de conflitos, de inveja,
de ciúmes, de rancores e de mágoas, os troféus, mais especificamente os troféus do
campo acadêmico científico, também ajudaram na erradicação de doenças; no avanço
da tecnologia; na melhora sensível da qualidade de vida; pois foi buscando todos os tipos
de premiações, que o homem evoluiu. Saímos em busca do triunfo e fomos deixando as
marcas e os legados de nossas conquistas.
Uma vez inseridos na sociedade, a probabilidade de nos inscrevermos nas contendas
sociais é quase inexorável, pois isso é decorrência do nosso pertencimento e da nossa
inscrição no jogo da vida. Mas nem todos tem a sorte de fruir sua humanidade de forma
integral. Lembremo-nos de Émile Durkheim e sua obra O Suicídio. Nela, Durkheim afirma
pela primeira vez que o suicídio tem causas sociais e que, uma vez inscrito em um
contexto social, os riscos de cometê-lo são menores, excetuando-se, como visto
99 
 
 

anteriormente, os casos extremos de inscrições sociais muito incisivas. É possível que o


risco de por fim a própria existência esteja relacionado ao fato de não estarmos nem
sequer no banco de reservas. De não estarmos disputando nenhum jogo. De não nos
sentirmos agentes legítimos de nenhum ambiente social. É claro que existem casos de
suicídio que devem ter outras explicações que não as sociais. Mas as taxas de suicídio
são bastante elevadas, e é provável que uma grande parcela da população não se mate
quando perde um jogo, mas pode ter maiores chances de fazê-lo quando não se vê
disputando nada. Isso justifica olharmos a questão da inclusão com olhos mais
parcimoniosos e benevolentes. Trabalhar no afã de conceder à maioria das pessoas a
chance de participar dos jogos. Existem muitos campos, muitos troféus, muitos níveis de
disputa, muitas possibilidades de sucesso. Perseguir troféus pode afastar a depressão,
a sensação de isolamento, de falta de pertencimento. Isso já se sabe há muito tempo.
Não é ideia original. A vida tem que fazer algum sentido, mesmo que esse sentido seja
uma fantasia. Por isso caro aluno (a), lembre-se do que falamos na unidade 1: agora
você é um privilegiado. Desfrute de seus anos aqui dentro desta faculdade. Você é um
jogador, uma agente social do campo universitário, que é a antessala de inúmeros outros
campos. Não desperdice esta oportunidade que muitos querem e poucos conquistam.

A relatividade dos valores

Houve um tempo em que este professor que vos fala exerceu a atividade de surfista
profissional. Não é à toa que muitos de meus exemplos são advindos desta inserção no
campo esportivo. Ponto para Bourdieu. Contudo, isso foi há muito tempo. Nesta época
existiam dois surfistas profissionais muito competentes, um deles era Francisco Alfredo
Alegre Aranã, o Cisco. O outro, Alexandre “Picuruta” Salazar, ambos na casa dos vinte e
oito anos. A maneira como surfavam era soberba, e por anos a fio os tive como modelos
a ser seguidos, copiados, imitados, enfim, plagiados. Em algumas ocasiões meu estilo
de surfar foi comparado ao deles, e para mim, isso foi a glória.

Recentemente Lulu Santos gravou um CD com músicas de Roberto Carlos. Pode-se


afirmar que Lulu “plagiou” Roberto. Todavia, com autorização prévia do Rei e de suas

100 
 
 

gravadoras. Plágio na forma de homenagem. Plágio negociado previamente. Todos


aplaudiram Lulu. Bela obra como sempre.

No campo científico, não tem conversa! Plágio sem autorização, à maneira de


Marcello em sua prancha de surfe, fim de carreira para o cientista plagiador.
Picuruta se enaltece com o plágio de Marcello. Marcello se aborrece com o plágio
de seus textos! Plágio autorizado, no mundo científico? Impossível! Não existe!

Logo, voltemos aos valores. Voltemos à moral. Voltemos à ética. Plagiar é bom ou ruim?
Para Platão existe uma verdade absoluta habitando o mundo das ideias. A forma do
plágio é uma só. O que ele é? Só o filósofo poderá um dia descobrir. Para Kant, teríamos
que perguntar a nós mesmos: “O mundo seria viável com todos plagiando a todos?” Se
a resposta for não, vale o imperativo categórico! Não plagie nunca! Para Bourdieu, tudo
depende do campo em questão. Messi é idolatrado, pois copiou Maradona. Marisa Monte
canta Cartola e é aplaudida. Rod Stewart americanizou o teteretê do Benjor, mas
esqueceu de avisá-lo. Deu “treta”! Pintor que reproduz Renoir, Vincent van Gogh,
Picasso, não sofre grandes críticas, desde que assine seu próprio nome e caracterize a
obra como “estudo”. E cientista quando arrisca um plagiozinho, provavelmente começa a
decretar o fim de sua carreira.

Nos campos existe uma severa proteção às regras do jogo e seus agentes, e como vimos,
o capital simbólico de cada campo só vale mesmo dentro do campo original. Por este
motivo, as estratégias para a conquista desses capitais variam na exata medida em que
variam os campos. Nos campos os jogadores articulam meios e recursos para obter seus
troféus, e na maioria das vezes são conscientes disso. Suas estratégias obedecem à
dinâmica proposta por Maquiavel, mas também as transcendem, pois o comportamento
dos agentes em sociedade é muito mais significativo naquilo que tange as ações não
articuladas, não pensadas, não realizadas na forma de estratégias conscientes. Para
Pierre Bourdieu, aquilo que não nos damos conta em nossa vida social é o que de mais
significativo um sociólogo pode investigar. Maquiavel limitou sua análise social ao que
era percebido com clareza. Bourdieu foi ainda mais requintado em sua investigação, e

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percebeu que muitos comportamentos sociais são inconscientes. Sendo assim, não
podem ser manifestados em termos estratégicos, a isso se denomina habitus.

O conceito de habitus

O conceito de habitus não é novo. David Hume, filósofo britânico que já estudamos na
unidade 1, o investigou com bastante perspicácia. Todavia, com relação a este tema,
Bourdieu nos apresenta uma visão ainda mais profunda que a de Hume, pois sua análise
foi científica e não meramente especulativa. O habitus é um conjugado de inclinações
para agir, todas elas construídas socialmente, mas que não orbitam a consciência de
seus agentes.

O conceito de habitus tem por função primordial lembrar com ênfase que nossas ações
possuem mais frequentemente por princípio o senso prático do que o cálculo racional
(BOURDIEU, 2001, p.78).

Temos a tendência de respeitar regras sociais sem pensar na conveniência disso, como
os seis macaquinhos dos quais já falamos. O habitus é um saber prático incorporado em
nosso comportamento devido a toda trajetória de nossas vidas. Quase nada, quando
versamos sobre estar no mundo, tem a ver com heranças biológicas. Para Bourdieu,
olhos azuis podem até ser explicados pela genética, mas não existe sangue azul, e sim
socializações azuis. Saberes que se sabem sem que saibamos que os sabemos.
Deliberações que foram feitas sem a parcimônia da escolha abalizada.

A lógica específica de um campo se institui em estado incorporado sob a


forma de um habitus específico, ou melhor, de um sentido do jogo,
ordinariamente designado como um “espírito” ou um “sentido” (“filosófico”,
“literário”, “artístico” etc.), que praticamente jamais é posto ou imposto de
maneira explícita. Pelo fato de operar de modo insensível, ou seja,
gradual, progressiva e imperceptível, a conversão mais ou menos radical
(conforme a distância) do habitus originário requerido pela entrada no jogo
e consequentemente a aquisição do habitus específico acaba passando
despercebida quanto ao essencial (BOURDIEU, 2001, p.21).

Todavia, tudo aquilo que não sabemos bem de onde vem, temos a tendência naturalizar.
E assim vamos “biologizando” todos os aspectos da vida, sejam eles “biologizáveis” ou
102 
 
 

não. E assim vamos nos dispondo a agir sem nos sentirmos obrigados a pensar na ação.
Um acadêmico se comportará como um acadêmico por toda sua vida, pois age como um
acadêmico sem que perceba que o faz de forma automática, pois foi forjado em um
espaço específico de massificação de mentes. Tenderá a ministrar aulas nos botecos da
vida, mesmo nas situações mais inapropriadas. Assim também será com os agentes do
campo esportivo, do jurídico, do artístico etc. O habitus prescinde do pensar estratégico.
Por este motivo, quem age por habitus é rápido, ligeiro, acelerado. Acompanhe:

Cada campo é a institucionalização de um ponto de vista nas coisas e nos


habitus. O habitus específico, imposto aos novos postulantes como um
direito de entrada, não é outra coisa senão um modo de pensamento
específico (um eidos), princípio de uma construção específica da
realidade fundada numa crença pré-reflexiva no valor indiscutível dos
instrumentos de construção e dos objetivos assim construídos (um ethos)
(BOURDIEU, 2001, p.121).

Mas, se por um lado o habitus nos concede eficácia e eficiência, por outro lado pagamos
o preço da homogeneização comportamental. Tornamo-nos autômatos sem muita
inovação. Restringimos nossa capacidade de pensar, e com isso nos ancoramos em
pontos de vista desgastados, corroídos. E isso pode acontecer até mesmo entre
cientistas! Habitus é um jeito de agir oriundo do campo, e como existem muitos campos,
haverá sempre muitos habitus. Nesse sentido, todos nós somos, invariavelmente, vítimas
dos campos aos quais pertencemos. Propagamos cegamente seus dogmas, suas doxas,
muitas vezes sem perceber que o fazemos. Caminhamos pela vida como escravos dos
campos específicos em que fomos modelados como argila.

Muitas pessoas têm resistência a aceitar o conceito de habitus, pois muitos de nós fomos
forjados em um sistema de crenças que nos fez acreditar que temos total controle sobre
nossos atos. Todavia, desde Spinoza: “Podemos ter somente graus de liberdade”;
Nietzsche: “Algo pensa em mim!”; Freud: “O eu não é senhor nem mesmo em sua própria
casa”; e Durkhein: “A primeira regra e a mais fundamental é considerar os fatos sociais
como coisas”, essa crença vem sendo constantemente posta a prova. Bourdieu também
não deixou por menos:

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Sob as aparências mais triviais, quais sejam as da banalidade cotidiana


tão apreciadas pela imprensa e tão acessível a qualquer repórter, o
mundo social esconde as revelações mais inesperadas sobre o que
menos queremos saber acerca do que somos (BOURDIEU, 2001, p.18).

[...] o agente nunca é por inteiro o sujeito de suas práticas: por meio das
disposições e da crença que estão na raiz do envolvimento no jogo,
quaisquer pressupostos constitutivos da axiomática prática do campo (a
doxa epistêmica, por exemplo) se introduzem até nas intenções
aparentemente mais lúcidas (BOURDIEU, 2001, p.169).

Não somos tão responsáveis quanto a nossa moral cristã, Descartes e Kant nos fizeram
pensar. Quase nada é biológico, a não ser o suporte sináptico que dá possibilidade ao
social se manifestar em nós. Somos movidos por células e neurônios sociais. Somos
resultados de uma trajetória de vida inscrita em um determinado campo social. Todavia,
apesar de não sermos cem por cento agentes de nossas ações, podemos como vimos
acima, dar algum crédito a Spinoza quando nos alerta de que por intermédio da razão
podemos adquirir maiores graus de liberdade. Liberdade deliberativa - ainda que em
pequenos graus; consciência ampliada; responsabilidade para perceber que nossa
presença, mesmo que não acreditemos, também afeta o mundo; e abertura para novas
aprendizagens. As passagens do livro Meditações Pascalianas, onde Bourdieu cita
Gilbert Ryle são perfeitas para encerrarmos, ao menos por ora, o assunto habitus, uma
vez que nos lembram de que fazemos parte de um grande sistema onde cada efeito só
ocorre, na razão direta da permissão do objeto afetado:

Poder-se-ia então estender à explicação das condutas humanas uma


proposição de Gilbert Ryle: assim como não se deve dizer que o vidro
quebrou porque uma pedra o atingiu, mas que ele se quebrou, quando a
pedra o atingiu, porque ele era quebrável, tampouco se deve dizer que
um acontecimento histórico determinou uma conduta, sendo preferível
mostrar que ele teve esse efeito determinante porque um habitus
suscetível de ser afetado por tal acontecimento lhe conferiu tamanha
eficácia. Aliás, tudo isso pode ser visto de maneira particularmente clara
quando um acontecimento insignificante, aparentemente fortuito,
desencadeia enormes consequências, capazes de parecer
desproporcionais àqueles dotados de habitus diferentes (BOURDIEU,
2001, p.181).

As disposições não conduzem de modo determinado a uma ação


determinada: elas só se revelam e se realizam em circunstâncias
apropriadas e na relação com uma situação. Pode então ocorrer que elas

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permaneçam sempre em estado de virtualidade, assim como a coragem


guerreira na falta de guerra (BOURDIEU, 2001, p.182).

Dominantes e dominados

Se o campo é um espaço abstrato onde agentes se posicionam, alguns desses agentes


estão muito melhor posicionados do que outros. Estes são os dominantes. Os que estão
em uma localização inferior são chamados de dominados. Para Bourdieu - e isso é
bastante impactante aos idealistas da igualdade -, as pessoas não se equivalem. O
alemão Jürgen Habermas, filósofo e sociólogo contemporâneo, advoga a necessidade
de um espaço público, onde os agentes sociais debatam abertamente com vistas à
escolha do melhor argumento (HABERMAS, 2012). Bourdieu, e suas pesquisas
chacoteiam de tal pretensão. Para ele os fatos sociais dizem tudo. Basta olhar a
sociedade com olhos descontaminados de ilusões vãs para perceber que quem manda
decide e ponto final.

[...] Habermas submete as relações sociais a uma dupla redução ou, o


que dá no mesmo, a uma dupla despolitização, fazendo com que a política
se desloque, sem dar disso impressão, para o terreno da ética: ele reduz
as relações de força políticas a relações de comunicação (e à “força sem
violência do discurso argumentativo que permite realizar o entendimento
e suscitar o consenso”) (BOURDIEU, 2001, p.81).

O campo é um espaço de diferenças marcantes e de dominação candente. Nele, não


existe espaço para igualdades à moda cristã. Lembre, contudo, caro leitor, que não
estamos a falar de indivíduos isolados. O assunto aqui é mais abstrato, porém de grande
objetividade. Estamos a falar de algo muito maior do que o sonho de meia dúzia de
indivíduos. O assunto é o campo social, e nele, não existe equidade, justeza. Quando se
almeja ouvir uma posição filosófica para um assunto qualquer, buscamos a opinião de
uma Marilena Chauí, ou de uma Scarlett Marton, e não do professor de filosofia do ensino
médio de seu filho. Quando o assunto é história, procuramos por um Leandro Karnal, e
não pelo tio José, leitor assíduo da enciclopédia Barsa e Mirador. Quando o assunto é
música popular brasileira, recorremos a Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano
Veloso, e não ao Falcão, nem tão pouco a Tiririca, pois os primeiros agentes de cada
exemplo concedido são detentores de um gigantesco capital simbólico, sendo os demais,
agentes cuja posição no campo é significativamente inferior. Da mesma maneira, quando
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quiséssemos entender de ciência, deveríamos consultar um verdadeiro cientista, e não o


professor universitário de Metodologia da Pesquisa Científica que nunca publicou uma
pesquisa científica sequer.

Maquiavel, em sua obra O Príncipe, nos fala que quem tem o poder deseja ardentemente
mantê-lo. Bourdieu nos ensina que um dominante, seja ele quem for e esteja ele inserido
em qualquer campo, desejará sempre continuar a dominar. Por isso adotará de forma
irrestrita, uma postura conservadora, pois deseja conservar seu capital, e se possível
adquirir ainda mais. O dominado, por sua vez, não tem o poder, e isso o leva a querer
subverter as rígidas regras e estruturações do campo com vistas à aquisição de capital
simbólico que o permita ascender posições. Todo dominado é um subversivo! Todo
dominante é um conservador.

Quando um subversivo, independente de qual campo estejamos falando, passa a ser


dominante, invariavelmente adotará estratégias de conservação. O caminho até o topo
de qualquer campo é árduo e cheio de desafios e intempéries. Quando se chega à
posição de dominante, muitos anos já se passaram desde que outrora o dominado tinha
esperanças de revolucionar as leis e normatizações do campo em questão. Quando se
chega à posição de dominante o que se almeja é conservá-la para desfrutar das
benesses do poder. Quando se chega ao topo tem-se a impressão de que ele é seu por
merecimento. Por esse motivo, todo revolucionário tende a virar conservador. Toda a
esquerda tende a transmutar-se em direita. Toda a ideologia destinada a tornar o mundo
um lugar mais justo, equânime, igualitário se esfacela impiedosamente. E mesmo que os
subversivos estejam em número muito maior, a subversão é inglória. Os conservadores
detém o poder nas portas de entrada do campo, e também tem as “chaves do inferno”,
para onde podem jogar os subversivos a qualquer momento. Os conservadores, por
serem influentes, dificultam o caminho ao topo. Os conservadores, por estarem alinhados
com conservadores de outros campos - homologia de campos -, organizam cartéis de
todos os tipos com vistas a dificultar e impedir toda e qualquer tentativa de subversão da
ordem jurídica ou tácita dos campos.

O poder se diferencia e se dispersa. [...] ele só se realiza e se manifesta


por meio de todo um conjunto de campos unidos por uma verdadeira
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solidariedade orgânica, ao mesmo tempo diferentes e interdependentes


(BOURDIEU, 2001, p.124).

Hoje, caro (a) aluno (a), se você desejar adentrar o campo acadêmico científico, por
exemplo, terá que entrar pela única porta de acesso a esse campo, ou seja, o mestrado
– ainda que a iniciação científica seja uma antessala, como já foi pontuado. Quem optar
fazê-lo terá primeiro que se sujeitar aos estágios probatórios. Passará por muitas
sabatinas. Será impedido de trabalhar, pois se espera dedicação exclusiva aos estudos
científicos do campo acadêmico. Terá que estudar uma quantidade considerável de
assuntos para as provas de admissão ao mestrado, e todos os livros de leitura obrigatória
foram escritos pelos dominantes do campo acadêmico. Uma vez admitidos no mestrado,
terá que pesquisar os assuntos de interesse dos dominantes do campo acadêmico,
quase nunca os seus. Participará de congressos e simpósios que são organizados pelos
mesmos dominantes do campo acadêmico. Dependerá desses mesmos dominantes para
conseguir uma bolsa de estudos que mal dará para a alimentação. Sendo assim, serão
anos e anos de refeições nos famosos “bandejões universitários”, onde a dificuldade de
saber se o que se come é frango, carne ou porco é, via de regra, tão desafiadora quanto
a defesa pública de sua dissertação de mestrado. Aliás, essa mesma dissertação deverá
ser publicada na forma de artigos científicos, e o aval final sobre a pertinência ou não em
publicá-la será concedido pelos editores e revisores dos periódicos científicos em
questão, não por coincidência, cargos de responsabilidade dos dominantes do campo.
Tudo isso se repetirá no doutoramento e no pós-doutoramento. Depois de anos, você
prestará um concurso público e será aprovado como o mais novo acadêmico de uma
universidade qualquer. Parabéns, você acaba de se tornar um dominante! E tudo o que
você mais odiou em toda a sua vida. Todas as mazelas pelas quais passou e julgou
injustas, censuráveis e desonestas. Todos os encontros entristecedores que você teve
na vida acadêmica por conta das posturas reacionárias, conservadoras e retrógradas
daqueles que um dia foram seus dominantes, serão exatamente reproduzidas por você.
Isso vale para o campo artístico, jurídico, jornalístico, esportivo etc. As regras pouco ou
nada mudam. As estruturas em quase nada se alteram. Os dominantes, ainda que outros,
seguirão incólumes, segurando seus baluartes conservadores e desfilando seus
comportamentos reacionários.

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Espere! Não me abandone! Não vá embora! Eu sei! Você ficou com um pouco de raiva
do que leu agora. Com você seria diferente. Foi diferente. Não tenho o direito de falar
isso de você. Mas não sou eu quem fala! É Pierre Bourdieu! E não é bem de você
enquanto indivíduo que ele está se referindo, é de uma massa esmagadoramente maior
do que suas ideologias mais pessoais e comezinhas. É de um espírito coletivo, social,
admiravelmente enorme chamado campo social, que foi por anos investigado com os
requintes e instrumentos forjados neste mesmo campo acadêmico ao qual nos referimos,
e onde Bourdieu, como dominante que foi, fez carreira durante toda a metade do século
XX.

O sociólogo tem a particularidade, de modo algum um privilégio, de ser


aquele que possui a tarefa de dizer as coisas do mundo social, dizendo-
as, tanto quanto possível, tal como elas são: nada disto destoa do normal,
do trivial. O que torna sua situação paradoxal, por vezes impossível, é o
fato de estar cercado por pessoas que ignoram (ativamente) o mundo
social e nada falam a seu respeito [...] ou, então, que se inquietam e falam,
por vezes até bastante, mas sem saber grande coisa a respeito [...] Desta
maneira, quando faz simplesmente o que tem que fazer, o sociólogo
rompe o círculo encantado da negação coletiva (BOURDIEU, 2001, p.14).

Você pode discordar dele, mas lembre-se, a obra deste senhor é enorme. Os dados
pesquisados são tantos que causam vertigens nos não iniciados. Prepare-se muito bem
para argumentar com Bourdieu, será um desafio de proporções abissais.

Mas, voltemos à questão da dominação. Como ela se sustenta? Vimos que na medida
em que você vai tendo condições de subverter o campo, vai gradativamente perdendo o
interesse em subvertê-lo. É sabido, desde os escritos de Max Weber, que se um
dominado é dominado, provavelmente percebe algum tipo de vantagem em sua posição
na estrutura do campo, pois se essa posição lhe fosse insuportável, as estruturas sociais
entrariam em colapso. Sendo assim, o gradativo acúmulo de capitais simbólicos vai
outorgando aos agentes sociais a percepção de que a chegada ao topo é franqueada a
qualquer um. Além disso, a existência de troféus intermediários permite que muitos
agentes se alegrem no transcorrer do percurso. Logo, para que exista legitimidade na
dominação é imperativo que a grande maioria dos agentes compartilhe desse tipo de
illusio, ou seja, a naturalização não somente do valor dos troféus almejados, mas acima
de tudo, a crença de que eles são plenamente acessíveis a todos aqueles que se
esforçarem para atingi-los. Isso torna a dominação aceitável.

108 
 
 

O poder será legítimo quando for exercido por alguém que é entendido como autorizado
a exercer tal posto. Esse tipo de poder necessita que os pares do dominante que ocupam
posições inferiores na estrutura do campo reconheçam-no como alguém que chegou ao
topo obedecendo às regras inerentes ao seu campo social. Nada pode ser percebido
como arbitrário e despótico, ainda que muitas vezes o seja de forma velada, como nos
processos seletivos que nos fazem crer que os agentes sociais disputam troféus em pé
de igualdade, quando na realidade, tais disputas tendem a mascarar as gigantescas
diferenças sociais pré-existentes ao referido processo. Pense bem, e responda: Quem
está mais bem preparado para concorrer a uma vaga em uma universidade pública, o
filho de um banqueiro ou um estudante de escola pública da periferia da zona leste de
São Paulo? Os processos seletivos tendem a conceder um ar de retidão, de justeza, de
lisura às disputas sociais, mas na esmagadora maioria das vezes são ações que tendem
a conservar no poder os dominantes de ontem, ainda que representados por seus filhos,
netos e bisnetos. Sendo assim, segundo Pierre Bourdieu, legitimar é somente tornar
aceitáveis situações fáticas de grande injustiça. [...] o reconhecimento, que não é outra
coisa senão o desconhecimento do arbitrário de seu princípio (BOURDIEU, 2001, p.126).

Talvez um dos maiores interesses da sociologia seja o estudo das mudanças sociais.
Mas as permanências seduziram Bourdieu durante toda a sua trajetória, e se Zygmunt
Bauman, com muita elegância advoga que vivemos na impermanência líquida, a solidez
das permanências dos dominantes no ápice de seus respectivos campos não pode ser
negada tão facilmente.

Foto 13: Zygmunt Bauman

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Uma sociologia do pensamento

Bourdieu era um filósofo de formação, mas sua carreira foi gradativamente enveredando
para a investigação social. Foi obcecado pelo trabalho e apresentou no decorrer de sua
trajetória um genuíno interesse em esclarecer as ideias filosóficas a partir de uma
perspectiva sociológica. Esse interesse colocou a filosofia em uma situação vulnerável,
pois para o filósofo tradicional, sovado nas crenças deste campo, sua função primordial
é descobrir a verdade. Entretanto, quando analisada pelo ponto de vista da sociologia de
Bourdieu, nenhuma ideia filosófica, por mais elegante que possa parecer, é desprovida
dos interesses pessoais de quem a propõe, e isso também vale para o campo acadêmico
científico, ao qual Bourdieu consagrou um livro inteiro Homo Academicus (BOURDIEU,
2011). Logo, diria Bourdieu, “Não existem atos desinteressados”. Todas as ideias
filosóficas e mesmo científicas, por mais belas e atraentes que sejam, estão a serviço
dos interesses pessoais de seus proponentes. As três passagens abaixo explicitam
claramente esse ponto de vista em Bourdieu:

Ora, para além dos conflitos que os opõe, nossos filósofos “modernos” ou “pós-
modernos” têm em comum esse excesso de confiança nos poderes do discurso
(BOURDIEU, 2001, p.11).

Na ordem do pensamento, não existe, como lembrava Nietzsche, concepção imaculada


(BOURDIEU, 2001, p.12).

Os que gostam de acreditar no milagre do pensamento “puro” devem


resignar-se a admitir que o amor à verdade ou à virtude, como qualquer
outra espécie de disposição, deve necessariamente algo às condições em
meio às quais se formou, ou seja, a uma posição e a uma trajetória sociais
(BOURDIEU, 2001, p.12).

Se você conceder o devido crédito às ideias de Bourdieu, deverá durante sua trajetória
universitária fazer uma análise social das ideias proferidas por todos os seus professores.
Todas elas, por mais desinteressadas que possam parecer, camuflam desejos,
inclinações, pretensões, ambições e aspirações daquele que fala. Todos nós somos
interessados, e isso não é necessariamente algo ruim, egoísta, mesquinho. A natureza é
amoral, e evoluiu graças à tendência, essa sim genuinamente biológica, de lutarmos pela
110 
 
 

nossa autopreservação. Bourdieu faz renascer na sociologia o que Nietzsche já tinha


introduzido na filosofia, pois para eles, tudo que se produz intelectualmente, tudo o que
se desnuda na linguagem, está diretamente relacionado à potência de agir. Em outras
palavras, está relacionado à erotização do comportamento, ancorado nas águas nem
sempre transparentes da libido desejante. Spinoza, um dos poucos filósofos respeitados
e admirados por Nietzsche, afirmava que da mesma forma que o corpo necessita alegrar-
se e busca o conforto para si, a alma também busca incessantemente os encontros
alegradores por meio dos pensamentos que possam aumentar sua potência, seu
conatus. Não existem atos desinteressados. Não há cognição pura. Não há pensamentos
virgens.

Bourdieu acredita que se entendermos o que um filósofo deseja, ou o que qualquer


agente social deseja, entenderemos o seu pensamento com muito mais clareza.
Entender as inclinações desejantes das pessoas colabora sobremaneira para que
possamos entender a maneira como seu pensamento é manifesto. Se você quiser
aprender a fazer ciência de verdade, seja ela natural ou social, você não deveria
“comprar” as primeiras falas de ninguém, seja ele quem for. Lembremo-nos de Francis
Bacon e de Descartes. E tem mais, para Bourdieu, só seremos bem sucedidos na
construção de uma genealogia do pensamento a partir do momento em que aceitarmos
que o que as pessoas querem são fatos sociais. Seus desejos são definidos no campo.
Não há espaço para veleidades de cunho pessoal.

Para entender um jornalista, é imperativo realizar uma sociologia do campo jornalístico.


Para entender a fala de um advogado, de um médico, de um artista plástico, de um
professor universitário, de um cientista, de um poeta, de um chefe de cozinha será
imperativo investigar a genealogia dos valores de cada uma dessas pessoas, e isso
pressupõe um mergulho em todos esses campos sociais. Definindo e clarificando os
espaços onde cada agente transita, teremos maiores chances de entender suas agruras
e seus conflitos existenciais. Sendo assim, alerta-nos Bourdieu, toda interpretação do
texto pelo texto, quando se trata de entender os filósofos, por exemplo, um professor
orientador de pesquisas científicas, ignora o que existe de mais importante em suas
ideias, ou seja, as questões sociais que forjaram seu pensar. O que importa é o que está
111 
 
 

fora do texto, diria Bourdieu com relação aos filósofos. Todo sentido de algo estará
sempre fora desse algo. O professor Clóvis de Barros exemplifica isso de forma
primorosa ao nos perguntar: “Qual o sentido da cidade de São Vicente?”. Para
respondermos a esta questão é necessário estarmos fora da cidade de São Vicente. O
mesmo vale para agentes sociais, pois o sentido lhes escapa, pois o habitus ofusca suas
inteligências, privando-os de graus mais elevados de racionalidade. Para saber o sentido
de um texto necessitamos investigar a circunstância social em que esse texto foi gerado.
Só uma sociologia séria da linguagem dará conta de uma atribuição de sentido mais
contundente. Os campos sociais facilitam o encontro com as lógicas de produção de
sentido. É necessário recuar, olhar de fora, abster-se de envolvimentos especulativos
grosseiros, amparar-se em metodologias menos subjetivas que permitam olhar a questão
dentro de uma perspectiva de significação mais sólida.

Últimas considerações

Como foi dito acima, não existem atos desinteressados. Por detrás de toda ação existe
interesse. Dalai Lama, por mais que possa aparentar aos espiritualistas ser uma pessoa
desapegada, tem também seus interesses. Competiu arduamente pelo poder político
espiritual do Tibet e ainda cultiva um ego, pois é um homem, um ser humano como todos
nós. Mesmo as pessoas que aparentam não ter interesses, ainda assim os tem em
grande medida com as coisas que as alegram. Todas as ações que fazemos dentro da
sociedade geram efeitos. Ações egoístas podem gerar efeitos nefastos. Ações
aparentemente desprovidas de interesses pessoais podem trazer muitos ganhos para
seus agentes. Brad Pitt e Angelina Jolie são bons exemplos. Os ganhos sociais que esse
casal teve devido as suas posições engajadas frente aos assuntos sociais que
sensibilizam o senso comum são evidentes. Essas afirmações podem parecer muito
fortes, mas simplesmente representam o homem em toda a sua crueza, ainda que a
sociedade mascare essas obviedades.

Bourdieu faz uso de premissas que concedem ao homem o direito de se preocupar com
a sua alegria. Não há nenhum crime nisso, uma vez que o homem também tem

112 
 
 

inclinações desejantes como todos os outros animais. Todavia, seus desejos


transcendem às aspirações por comida e sexo. Ao homem também cabe buscar os
troféus de seu campo. Brinquedos de gente grande. E levando isso em consideração,
uma das coisas que um estudante universitário deve ter em mente diz respeito à dinâmica
dessa busca. Em todas as civilizações o homem direcionou sua energia desejante com
vistas à conquista dos troféus que vimos falando. Mas muitos de nós canalizamos a libido
para a direção errada, e passamos a vida buscando premiações que pouco ou quase
nada tem a ver conosco. Muitas vezes alguns estudantes podem não perceber que sua
busca e suas metas podem ser insensatas, pois eles podem estar querendo se inserir
em um campo que não é necessariamente um lugar alegrador e alavancador de suas
potências de agir, mesmo na conquista dos troféus. Pode-se ficar tão absorto na dinâmica
do jogo e na sedução da competição, que se deixa ofuscar pelo brilho dos troféus, sem
perceber que esses podem transmutar-se em meros entulhos acumuladores de pó e de
ácaro, em nada colaborando para a concessão de sentido último às nossas existências.
Forma nefasta de canalização erótica. Por isso, caro (a) aluno (a), aproveite que você
está iniciando sua jornada acadêmica e avalie se o campo social relativo à futura
profissão que você escolheu é, de fato, o que mais lhe agrada. Pondere também se sua
inserção no campo acadêmico / científico pode alegrar-lhe no futuro, pois você pode ser
um administrador, um educador físico, um médico ou um advogado e, paralelamente,
atuar na área científica.

Por último, vale à pena afirmar que a compreensão das ideias de Bourdieu pode ter a
força necessária para redimir o homem. Como os estoicos, Maquiavel, Spinoza, Hume,
Nietzsche e Freud, esse autor não se esquivou de investigar o homem em toda a sua
crueza e aspereza. Absorver suas ideias pode não lhe acrescentar uma visão muito doce
da vida, mas sem sombra de dúvidas te concederá uma sagacidade muito além da média,
capacitando-o para jogar o jogo da vida com muito mais instrumentos, assim como a
exercer sua atividade profissional com maior lucidez.

Para saber mais:

Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-


marcelloarias.com.br 113 
   
 

114 
 
 

RESUMO

Nesta unidade aprendemos como surgiu a crença na infalibilidade da ciência estudando


o Renascimento e o Iluminismo. Estudamos muitos pensadores da sociologia, como
Auguste Comte, Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. Aprendemos com Pierre
Bourdieu importantes conceitos como o conceito de campo social, a ilusão naturalista, as
estruturas do campo social, a força e o poder simbólicos dos agentes do campo social, o
conceito de Illusio, a relatividade dos valores e das regras que norteiam cada campo
social - entre eles o acadêmico científico -, o conceito de habitus, o conceito de
dominantes e dominados e de conservadores e subversivos.

115 
 
 

EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM

1 - Qual a relação do Iluminismo com a ciência moderna?

2 - Faça uma pesquisa na internet e nas bibliotecas e responda o motivo que os


iluministas a crerem na infalibilidade da ciência?

3 - Defina o que vem a ser um fato social.

4 - Comente o parágrafo abaixo:

Para exercer a sociologia Durkheim afirmava que era necessário livrar-se de conceitos
pré-concebidos e de paixões sobre os fenômenos sociais, pois somente assim o
sociólogo poderia investigar a exterioridade e a objetividade dos fatos sociais como
predicados da sua própria natureza.

5 - O que Pierre Félix Bourdieu quer nos dizer quando apresenta o conceito de ilusão
naturalista?

6 - Comente de maneira resumida tudo que você compreende sobre os campos sociais.

7 - Comente a maneira como o campo acadêmico é estruturado.

8 - Comente de maneira resumida e objetiva o que vem a ser capital simbólico dos
agentes sociais.

9 - Bourdieu, quando nos apresenta o conceito de campo social fala sobre regras de
caráter jurídico e tácito. O que são essas regras?

10 - Na sociologia de Bourdieu o que vem a ser a Illusio?

11 - Comente o conceito de habitus da sociologia de Bourdieu.

116 
 
 

12 - Os campos sociais são compostos por agentes sociais que Pierre Bourdieu costuma
denominar de dominantes e de dominados. Comente a respeito do comportamento de
cada um desses agentes, tomando por base o campo acadêmico científico.

13 - A qual campo ou campos sociais você acredita pertencer?

14 - O curso superior que você escolheu pertence a qual campo social?

15 - De que forma ele é estruturado?

16 - Qual o seu posicionamento atual dentro deste campo?

17 - Qual é a sua parcela de capital simbólico dentro deste campo?

18 - Quão satisfeito você está atualmente em seu campo social?

19 - A quais fatores você atribui o seu atual posicionamento dentro das estruturas de seu
campo?

20 - Quais são as regras que normatizam o jogo que é jogado no interior de seu campo?

21 - Qual o seu nível de conhecimento das regras jurídicas e tácitas de seu campo social?

22 - Como se comportam essas regras na medida em que o posicionamento de seus


agentes é alterado?

23 - Você saberia discursar com clareza sobre o que é permitido, o que é tolerado e o
que é abominado em seu campo social?

24 - E no campo social acadêmico científico?

25 - Você saberia aferir a quantidade de capital simbólico que você detém no campo ou
nos campos em que atua?

26 - Quais métodos você utiliza para realizar essa aferição?

27 - Qual foi a porta de entrada do campo social que você atua hoje?

117 
 
 

28 - Você deseja mudar de campo?

29 - Pensa em converter capital simbólico de seu campo atual para o desejado?

30 - Tem ciência das taxas de conversão que lhe serão cobradas?

31 - Quais são as portas de entrada do campo social que você almeja entrar?

32 - Qual a trajetória que deverá ser seguida rumo à aquisição dos troféus inerentes a
este campo? E com relação ao campo acadêmico científico?

33 - O que lhe motiva na vida? Essa motivação está a serviço da conquista de qual troféu?

34 - Você se sente desmotivado em algum aspecto da sua vida? Caso afirmativo, em


quais espaços de convivência você acredita que pode estar desperdiçando sua energia?

Referencial Bibliográfico

118 
 
 

BOTTOMORE, T & NISBET, R. História da análise sociológica. Rio de Janeiro: Zahar,


1980.

BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

_______. Questões de sociologia. Lisboa: fim de Século, 2003.

_______. A distinção. Crítica social do julgamento. 2ª. Edição. Porto Alegre: Editora Zouk,
2006.

_______. Homo academicus. 2ª. Edição. Florianópolis: Editora UFSC, 2011.

COMTE, A. Curso de filosofia positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

_______. Curso de filosofia positiva. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

DURKHEIM, E. Educação e sociologia. 7ª. Edição São Paulo: Melhoramentos, 1967.

_______. As regras do método sociológico: São Paulo: Martins Fontes, 1978.

_______. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

GIDDENS, A. Sociologia: Uma breve, porém crítica introdução. Rio de Janeiro: Zahar,
1984.

GIDDENS, A. Sociologia. 4ª. Edição. Porto Alegre: Artmed, 2005.

HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização


social. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

MAGEE B. Confissões de um filósofo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

119 
 
 

UNIDADE III
Lógica, a Linguagem da Ciência

“A maior parte das pessoas prefere morrer a pensar; na verdade, é isso que fazem”

Bertrand Russell

120 
 
 

MÓDULO 1

Introdução

Parabéns! Chegamos à unidade 3 e agora você será apresentado a alguns assuntos de


grande relevância para todos aqueles que querem aproveitar ao máximo seu período
acadêmico. Até o presente momento você conheceu algumas ideias bastante complexas,
assim como alguns dos pensadores mais importantes de nossa história, e ainda assim
continua firme em sua leitura, que a partir de agora intenciona esclarecer um pouquinho
uma ferramenta que subjaz a todos os grandes pensamentos apresentados até aqui. A
argumentação é provavelmente a ferramenta mais eficaz de qualquer pensador. A
filosofia não seria possível sem ela e, consequentemente, também não o seriam outras
formas de saber e de raciocínio, como os utilizados na ciência. Todavia, por que a
argumentação é tão necessária? Teóricos da comunicação respondem a esta pergunta
afirmando ser a argumentação necessária quando o intento é persuadir e vencer seus
oponentes por meio de batalhas linguísticas. Outros asseveram que a boa argumentação
ajuda a ampliar o conhecimento, pois faz diferentes ideias interagirem gerando novas
sínteses. Contudo, é importante frisar que bons argumentadores sabem que a
competição argumentativa tem como foco as ideias e não as pessoas que as propõe. Se
o debate for parcimonioso e respeitoso, o objetivo final não será simplesmente
vencer, mas acima de tudo, conhecer.

Quando entramos em contato com as regras da argumentação, imediatamente


começamos a identificar algumas falhas em nossa maneira de raciocinar. Muitas crenças
que propagamos durante nossas vidas podem ser desprovidas de um arcabouço
argumentativo que as tornem válidas. Por este motivo, conhecer um pouco mais as regras
para elaboração de argumentos mais consistentes pode ser de grande valia para aqueles
que desejam expor suas ideias de forma mais clara e compreensível ou até mesmo
colocá-las à prova. Durante sua jornada acadêmica você será convidado a realizar
trabalhos. Participará de debates. Apresentará suas ideias publicamente. Por estes
121 
 
 

motivos, é importante que entenda que, no campo acadêmico - como vimos na unidade
2 -, as regras são outras. O senso comum não tem espaço neste ambiente, nem
tampouco a religião. No mundo acadêmico científico as ideias são discutidas tendo como
pano de fundo as regras da lógica argumentativa. Sendo assim, é prudente que você
se familiarize com elas o quanto antes, para que possas ser um jogador mais eficaz e
eficiente e aproveite ao máximo sua estadia neste ambiente.

O exercício da argumentação pressupõe o domínio dos rudimentos da lógica. Porém,


apesar da origem do pensamento lógico já contar com mais de dois mil e quinhentos
anos, poucas pessoas são capazes de fazer uso dela com relativa competência.
Apostolos Doxiadis e Christos H. Papadimitriou escreveram um agradável livro em forma
de quadrinhos cujo nome é Logicomix: Uma Jornada Épica em Busca da Verdade
(DOXIADIS & PAPADIMITRIOU, 2013). Este projeto bastante inovador e ousado é
baseado na vida de um dos mais importantes filósofos e lógicos de todos os tempos, o
inglês Bertrand Russell. Logo no início da história em quadrinhos podemos apreciar o
professor Russell iniciando uma palestra em uma universidade com a seguinte fala:

Bom, o reitor me pediu para falar sobre “o papel da Lógica nas questões humanas”. Mas
se eu levar seu pedido ao pé da letra vocês vão assistir à palestra mais curta da história!

A lógica, de modo bem genérico, é parte da filosofia, e investiga os tipos de raciocínios


como válidos ou inválidos. Para tal investigação, a lógica considera uma série de
elementos que abrangem o entendimento do que é raciocínio. A lógica investiga, por
exemplo, o que é proposição, o que é premissa, o que é conclusão, o que é uma relação
de consequência e, mesmo, o que é raciocínio. Lógica, neste sentido, é a reflexão sobre
a validade do raciocínio a partir da análise dos seus aspectos formais.

Explicar a origem de seus pontos de vista, defendendo suas conclusões de forma não
dogmática tem sido uma característica dos bons pensadores, principalmente na tradição
filosófica. Juvenal Savian Filho, em seu pequeno, mas esclarecedor livro Argumentação:
A Ferramenta do Filosofar, nos apresenta uma boa introdução a este tema:

122 
 
 

Na atividade filosófica, o filósofo pode chegar a novas interpretações de


nossa experiência do mundo, assim como pode renovar antigas
interpretações. Mas, antes de tudo, ele é um “especialista” da
argumentação e da demonstração. Como sua atividade é sempre feita em
diálogo com outros pensadores, cientistas, artistas etc., ele desenvolve a
habilidade própria de analisar a maneira como argumentamos para
justificar nossas certezas e opiniões. Certamente vem daí a imagem do
filósofo como alguém que sempre duvida ou pergunta. Essa imagem é
parcialmente verdadeira, pois, como dissemos, o filósofo também pode
chegar a certezas. Sua dúvida não é aquela dúvida infantil e gratuita, que
pergunta a todo tempo “por quê?”, pelo puro prazer de perguntar ou sem
ter interesse pela resposta. Ao contrário, é uma dúvida que busca
explicitar os motivos pelos quais pensamos o que pensamos (FILHO,
2011, p.10-11).

A lógica formal também é uma das ferramentas utilizadas pelo filósofo clínico em seu
trabalho (PACKTER, 1997, p.34). Por meio dela é possível estudar os conceitos, os
raciocínios e os juízos do partilhante, ou seja, do indivíduo que busca auxílio de um
filósofo clínico com vistas a resolver suas questões existenciais. Por meio da lógica o
filósofo clínico pode observar como seu partilhante estrutura seu pensamento, justifica
suas crenças e defende seus valores.

Como a lógica pressupõe o uso de regras e a valorização do pensamento racional, seu


uso consciente pode beneficiar todos que buscam melhorar sua comunicação. Pense
bem caro (a) aluno (a), quando um aprendiz de cientista escreve um artigo de iniciação
científica ou seu trabalho de conclusão de curso, ou quando um cientista publica seus
artigos científicos ou sua dissertação de mestrado ou sua tese de doutorado, seu maior
desafio é discutir os dados que foram colhidos durante os experimentos. Essa discussão
precisa obedecer às regras da boa argumentação. Todavia, o pensamento lógico e
racional pode não ser suficiente para dar conta da complexidade da vida, principalmente
quanto o assunto é a subjetividade das relações humanas. Por este motivo é bom que
fique claro que a lógica tem sua importância, mas também tem seus limites. Mas não
adentraremos nesta questão agora. Acredito que a argumentação lógica e racional não
é garantia de vida boa para nenhum de nós, mas não podemos esquecer que a fala de
Russell é bastante reveladora do pouco uso que alguns de nós fizemos desta ferramenta
até o presente momento. Sendo assim, em um primeiro momento enaltecerei esta
123 
 
 

intrigante e sedutora maneira de pensar, deixando para o final deste capítulo algumas
das críticas mais comuns que o pensamento lógico pode sofrer.

Mas afinal, o que é um argumento?

Há alguns anos tive a grata surpresa de me deparar com um livro que abordava a questão
da argumentação de uma maneira bastante divertida e de fácil compreensão. Tratava-se
da obra do professor Sergio Navega, intitulada Pensamento Crítico e Argumentação
Sólida: Vença suas Batalhas pela Força das Palavras (NAVEGA, 2005). Acredito já ter
deixado claro no decorrer desta obra que admiro bastante os professores que se
esforçam para transmitir conteúdos densos de maneira palatável e aprazível. Contudo,
nem sempre este tipo de trabalho é bem compreendido no mundo acadêmico.
Infelizmente, muitos acadêmicos associam clareza, simplicidade e didática com falta de
rigor acadêmico e pobreza de conteúdo. Um bom exemplo disso foram as constantes
críticas que ainda hoje são dirigidas a Jostein Gaarder, autor de O Mundo de Sofia:
Romance da História da Filosofia (GAARDER, 2004). Graças à Gaarder milhares de
pessoas tiveram a oportunidade de compreender pensamentos desafiadores de maneira
singela e poética. Mas, voltando à lógica, são inúmeros os textos de peso e fôlego que
poderiam ter sido utilizados por mim na elaboração das bases desta unidade. Entretanto,
foi a generosa didática do professor Sergio Navega que me pareceu mais adequada aos
objetivos que eu tinha em mente quando escrevi estas linhas. Muitos exemplos abaixo
são oriundos da sua obra.

Porém, precisamos voltar aos nossos argumentos. Os constituintes fundamentais dos


argumentos são as proposições, frases que se colocadas em uma sequência ordenada
presenteiam-nos com ideias elaboradas. São exemplos de proposições: Ontem teve
muitas ondas; todos os homens são mortais; nosso curso de coaching ontológico tem
vinte e cinco alunos. Já os seguintes exemplos não podem ser confundidos com
proposições: Se quiser surfar, aprenda a nadar!- isto é uma forma imperativa; Onde fica
a cidade de Santos? - isso é uma questão; Eu vos declaro marido e mulher! - isso é uma
declaração.

124 
 
 

As proposições são os alicerces de todo argumento, e um argumento pode ser


entendido como um tipo de alegação suportada por outras alegações. O objetivo de um
argumento é promover suporte para que uma conclusão seja considerada válida. Sendo
assim, não podem ser considerados argumentos: as opiniões; as descrições; os fatos; as
histórias; as questões; as expressões afetivas; as explicações, etc. Veja abaixo um
exemplo de argumentação:

Premissa 1 - Todos os filósofos clínicos tem que estudar com um professor desta
área por no mínimo três anos antes de começar a clinicar.

Premissa 2 - Germano estudou como um professor de filosofia clínica por mais de


três anos.

Conclusão - Portanto, Germano já pode clinicar.

Contudo, preste bastante atenção no exemplo abaixo:

Premissa 1 - Meu despertador do celular não tocou hoje cedo.

Premissa 2 – Minha esposa saiu cedo com meu carro e não me avisou.

Conclusão - Logo, não pude estudar filosofia pela manhã.

Note que a conclusão acima pode confundi-lo e até fazê-lo acreditar que é decorrente
das premissas, mas isso não é verdade. O exemplo acima não é um argumento válido.
A conclusão é somente um fato isolado, facilmente verificável sem que seja necessário
recorrer às premissas. É importante entender que um argumento bem apresentado é
composto por uma alegação que é antecedida por uma série de premissas que lhe
validam. Agora, pense e responda caro (a) aluno (a): suas opiniões têm sido
apresentadas na forma de argumentos válidos? Saiba que no campo acadêmico
científico isso lhe será constantemente cobrado, pois “achismos” e
“achologismos” não costumam ser tolerados dentro desse campo.

Toda opinião pode ser transformada em argumento, e talvez, mais importante do que o
direito a opinião, seja o dever de transformá-la em bons argumentos. Em se tratando de
125 
 
 

professores, estudantes universitários, aprendizes de cientista, cientistas, líderes, isso


poderia ser tido como um imperativo categórico? O que você acha?

Os filósofos e professores Michael Bruce e Steve Barbone elaboraram uma obra de


grande importância para todos aqueles interessados em compreender melhor as
questões filosóficas e a maneira como os pensadores as apresentam em seus
argumentos. O livro Os 100 Argumentos mais Importantes da Filosofia Ocidental
condensa alguns dos principais argumentos utilizados para defender pontos de vista
sobre lógica, ética, metafísica, filosofia da religião, ciência, linguagem, epistemologia,
entre outros. Dentro em breve reproduziremos alguns desses argumentos. Porém, é
interessante ver como Bruce e Barbone iniciam essa obra:

[...] “Mostre-me os argumentos” é o grito de guerra dos filósofos. Como


todo mundo tem sentimentos, opiniões e experiências pessoais
subjetivas, a filosofia apela à base comum quando se trata de avaliar
objetivamente as alegações. O raciocínio lógico é independente de
compromissos políticos ou religiosos. Para simplificar, um argumento é
válido ou não é (BRUCE & BARBONE, 2013, p.17).

Um argumento será considerado inválido se não for possível identificarmos nexos


de causalidade entre as premissas e a conclusão. Aprecie novamente o exemplo
abaixo e veja se consegue contra argumentar á ponto de colocar em xeque a conclusão:

Premissa 1 - Meu despertador do celular não tocou hoje cedo.

Premissa 2 – Minha esposa saiu cedo com meu carro e não me avisou.

Conclusão - Logo, não pude estudar filosofia pela manhã.

Também é possível encontrarmos um argumento logicamente válido, ainda que


suas premissas e suas conclusões sejam totalmente falsas. Sendo assim, é
importante entender que a validade de um argumento não garante a sua veracidade. Por
exemplo:

Premissa falsa 1 – Todos os cientistas bebem suco de uva.

Premissa falsa 2 - Todos os bebedores de suco de uva são tenistas.

126 
 
 

Conclusão falsa – Portanto, todos os cientistas são tenistas.

Já no exemplo abaixo todas as premissas e a conclusão são verdadeiras, mas o


argumento em si não é válido, pois não existe nexo de causalidade entre as premissas e
a conclusão:

Premissa 1 – Todos os leões comem carne.

Premissa 2 – Todas as vacas comem capim.

Conclusão – Logo, todas as focas e golfinhos vivem no mar.

No estudo da lógica o conceito de validade só é aplicado a argumentos. Quando


duvidamos da validade de um deles, pode-se dizer que é um argumento fraco. Todavia,
o conceito de validade é restrito aos argumentos. Não faria sentido algum analisar a
validade de nossas opiniões - quando não expressas na forma de argumentos - ou dos
fatos que se desenrolam em nosso cotidiano, por exemplo. Também não faria sentido
algum afirmar que uma determinada descrição não é válida, ou afirmar que uma
expressão emotiva é inválida. As proposições também não podem ser válidas ou
inválidas, pois a elas caberá a denominação de verdadeiras ou falsas. Agora pense bem
amigo (a) estudante, é possível discordar da conclusão de um argumento válido? Sim! É
possível. Por exemplo:

Premissa 1 – Psiquiatras precisam ajudar seus pacientes.

Premissa 2 – Psiquiatras admitem que não existem testes objetivos para se


detectar psicopatologias.

Premissa 3 – Psiquiatras admitem que nunca curaram nenhum paciente.

Conclusão – Logo, a Psiquiatria não tem ajuda os pacientes.

Note que, no exemplo acima, a conclusão é oriunda das premissas, e sendo assim, o
argumento é válido. Todavia, podemos discordar da conclusão, uma vez que não é
necessário curar um paciente para que ele se sinta melhor, ou para que sua vida social

127 
 
 

seja mais plena etc. Ainda que a psiquiatria não cure seus pacientes, ela pode estar a
serviço de muita coisa boa para seus pacientes.

Você costuma apresentar seus argumentos obedecendo a este formato padrão, ou seja,
premissa 1, premissa 2, premissa X, conclusão? Nem todas as pessoas tem este hábito,
ainda que o formato padrão facilite muito a comunicação e a compreensão das ideias.
Líderes, professores e cientistas que dominam formas mais eficazes de comunicação
podem colaborar com seus com a compreensão de seus interlocutores se estiverem
dispostos a apresentar seus pontos de vista desta forma, ou ainda a ajudar seus
interlocutores a apresentar seus argumentos no formato padrão:

Formato Padrão

Já que [premissa 1].

E [premissa 2].

E [premissa 3].

Portanto [conclusão].

Vamos brincar um pouco? Leia o pequeno texto abaixo.

Acabei de receber a informação de que, infelizmente, não é possível aceitar a inscrição


do surfista Kelly Slater nos torneios do circuito mundial de surfe deste ano de 2015. Como
pode ser comprovado, Kelly Slater é um extraterrestre e chegou ao planeta Terra
pilotando sua nave espacial há trinta anos. Além do mais, pelo que me foi dito, Kelly Slater
entrou no Havaí de forma ilegal, e, de acordo com o regulamento do circuito mundial de
surfe, isso impede a efetivação de sua inscrição nos torneios que compõe este circuito.
Assim, eu gostaria que você informasse a ele que não podemos acolher sua inscrição e
que ele deve guardar já a sua arma de plasma*.

128 
 
 

Foto 14: Kelly Slater

Curiosidade

* Nota: exemplo adaptado de Navega (2005, p.38).


Kelly Slater é um surfista norte americano ganhador de onze títulos mundiais. É sem sombra
de dúvidas o maior surfista de todos os tempos e um dos maiores esportistas que o mundo
já viu. Suas conquistas e suas performances foram e são tão espetaculares que muitos de
seus adversários o chamam de E.T.
 

Qual a conclusão?

Quais são as premissas?

Premissa 1 – Extraterrestres ilegais não podem se inscrever para competir no


circuito mundial de surfe.

Premissa 2 – Kelly Slater é um extraterrestre ilegal.

Conclusão – Kelly Slater não pode se inscrever para participar dos torneios do
circuito mundial de surfe.

Agora caro (a) estudante, gostaria que você criticasse o argumento. Lembre-se que, no
senso comum, muitas pessoas afirmariam que E.Ts não existem. Todavia, isso não seria
criticar o argumento, pois não é este assunto que está em pauta. Além do mais, você
teria que provar que E.Ts não existem – lembre-se de Karl Popper -, e isso o colocaria
em uma situação bastante complicada, uma vez que a existência ou não de E.Ts ainda
é uma questão em aberto e de difícil, para não dizer impossível falseamento. Uma forma

129 
 
 

mais eficaz de criticar o argumento seria perguntar: Onde está a lei ou o decreto que
determina que extraterrestres ilegais não podem se inscrever nos torneis do circuito
mundial de surfe? Se a lei não existir, o argumento inteiro destruído. Se Kelly Slater não
for um extraterrestre, mas um ser humano dotado de qualidades excepcionais para a
realização destas tarefas específicas, o argumento é colocado em xeque. Se Kelly Slater
for de fato um extraterrestre, mas esteja devidamente registrado e legalizado no planeta
Terra, o argumento inteiro é descartado.

Se você almeja melhorar seus argumentos é possível fazer uso de algumas abordagens
que podem auxiliá-lo (a). Vamos a elas.

Para Saber mais: 

 Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-marcelloarias.com.br 

130 
 
 

MÓDULO 2

Cuidados Básicos na Construção de


Argumentos

O encargo da prova

Um tema bastante peculiar quando versamos sobre argumentação diz respeito ao que
ficou conhecido como o encargo da prova. Em um debate argumentativo aquele que
propõe a alegação por meio de um argumento será sempre o responsável em
providenciar o seu suporte. Quando um cientista defende sua tese de doutorado terá que
fazer o mesmo. E você também! Terá que argumentar de forma exemplar em seu
Trabalho de Conclusão de Curso – TCC. Todavia, no dia a dia encontramos muitas
falácias argumentativas como a explicitada abaixo:

Paulo - Minha teoria afirma que no fundo dos oceanos habitam hominídeos muito
inteligentes. É um desmembramento da raça humana que deu origem ao mito e as
estórias de sereias. Todavia, eles têm medo de nós e se escondem muito bem.

José - Tenho dificuldade de acreditar nisso. Você pode providenciar algumas


evidências sobre essa teoria?

Paulo - Não entendo por que você duvida de mim? Qual a prova você tem de que
não pode haver uma civilização de “sereias” vivendo no fundo dos oceanos?

O encargo da prova é algo tão importante em nossa sociedade que é um dos princípios
básicos que devem ser respeitados quando a justiça julga os cidadãos. Assumimos que
todos são inocentes até prova em contrário. Não cabe ao réu provar a sua inocência, e
sim o promotor provar que esse é culpado. E você, acredita que tem concedido
evidências suficientes para suas teorias, seus pontos de vista, suas teses morais, suas
opiniões?
131 
 
 

Se você claudicou ao responder a pergunta acima, vamos enfrentar o problema de


frente? Para que um argumento seja considerado bom as premissas devem respeitar
quatro tópicos: aceitabilidade; suficiência; relevância e refutabilidade.

Aceitabilidade

As premissas que dão suporte ao argumento tem que ser aceitáveis, não apenas para
quem defende o argumento, mas também para quem o contesta. Todavia, não esqueça
que quando falamos em aceitabilidade não estamos nos referindo ao conceito de
verdade. Premissas aceitáveis não garantirão a veracidade do argumento. Por fim, a
aceitação das premissas dependerá bastante das pessoas que estão argumentando. Em
um debate franco e respeitoso, o que está em jogo são as ideias, e é importante que
todos os debatedores estejam dispostos a aceitar o melhor argumento, ainda que não
seja o seu. No final, todos ganharão, pois a ideia passará a ser utilizada por todos os que
veem nela um bom modelo de representação da verdade relativa de ponta. Note o
exemplo abaixo:

Premissa 1 - Tudo o que comemos ou mata ou engorda.

Premissa 2 – Comer brócolis não mata.

Conclusão – Portanto, comer brócolis engorda.

Esse argumento é logicamente válido, pois sua conclusão decorre das premissas
utilizadas. Todavia, a primeira de suas premissas é inaceitável. Muita coisa que
comemos, nem mata e nem engorda. Um bom exemplo são as fibras, que passam
incólumes pelo trato digestório.

Relevância

As premissas podem ser aceitáveis, mas ainda assim, irrelevantes. Para que o argumento
seja um bom argumento é necessário que as premissas sejam relevantes, ou seja,
tenham implicação direta na veracidade ou falsidade da conclusão. Por exemplo:
132 
 
 

Premissa 1 - O filme “Matrix” teve ótimos efeitos especiais.

Premissa 2 - Os atores atuaram com muita competência.

Conclusão – Logo, o filme conta uma história real.

Suficiência

Ainda que algumas premissas sejam aceitáveis e relevantes, podem não conceder
suporte suficiente para a conclusão. O que você acha do exemplo abaixo?

Premissa 1 – Sal em excesso causa hipertensão.

Premissa 2 – O Ministério da Saúde tem obrigação de zelar pela saúde das


pessoas.

Conclusão – Logo, o Ministério da Saúde deve controlar a venda de sal.

Note que apesar de aceitável e relevante, as premissas acima não são suficientes para
suportar a conclusão. Se o Ministério da Saúde tivesse a incumbência de controlar a
venda de sal, provavelmente deveria controlar a venda de todos os alimentos, pois, em
excesso, quase tudo faz mal a saúde, até a água.

Refutabilidade

Argumentos bons devem ser refutáveis. Quando fazemos uso de argumentos que não
nos permitem realizar experiências para tentar falseá-lo estamos no âmbito dos
fundamentalismos irrefutáveis, logo, não filosóficos e muito menos científicos. Sendo
assim, voltemos à questão da melhora dos argumentos. Como é possível aprimorar a
capacidade argumentativa? Pensar antes de falar pode ser um bom começo. Pense
em seus argumentos. Prepare-os com antecedência. Analise as premissas que lhe
parecem mais frágeis e organize suporte adicional para elas. Se o argumento lhe parecer
demasiadamente complexo, solidarize-se com seu interlocutor, apresentando-o de forma
lenta. Construa seu raciocínio gradativamente. Outra estratégia prudente é evitar as
133 
 
 

declarações categóricas. Opte pelo uso das declarações qualificadas, como no exemplo
abaixo.

Categórica: Concluímos que todos os fiscais são corruptos.

Qualificada: Concluímos que existem alguns fiscais corruptos.

Como já mencionado, na medida do possível tente eliminar ambiguidades e frases de


caráter vago de seus argumentos. Seja claro. A utilização do formato padrão pode auxiliá-
lo bastante. Muitos bons argumentadores também optam por declarar antecipadamente
os pontos fracos de seus argumentos. Isso evita que seu oponente possa demonstrar
força durante o debate. Esse tipo de estratégia é muito utilizado por acadêmicos nas
defesas de suas dissertações de mestrado e teses de doutoramento. Ao apontar as falhas
do próprio trabalho, a banca examinadora fica fragilizada, pois, findada a apresentação,
não terá muitas “críticas novas” para fazer ao trabalho. Lembre-se disso na hora em que
for defender seus trabalhos durante sua estadia por aqui. Todavia, antes disso é
necessário desenvolver a competência para identificar as falhas de seu próprio trabalho
com antecedência, e é para isso que serve uma boa iniciação científica. Por último,
prepare-se da melhor forma possível para ser capaz de refutar todas as possibilidades
contrárias à sua hipótese de pesquisa. Para isso é necessário desapegar-se de seu
argumento. Tente você mesmo encontrar fragilidades nele. Identifique em seu argumento
a premissa mais forte, mais contundente, mais exuberante e, tente anulá-la você mesmo
(a), contrapondo-a a um novo argumento. Somente por meio deste tipo de desapego
poderemos nos tornar bons argumentadores. Em última análise, um bom argumentador
está em busca da melhor representação momentânea da verdade e não da vitória no
debate.

Para Saber mais: 

 Assista a vídeo aula com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-marcelloarias.com.br 

134 
 
 

MÓDULO 3

Um pouco de História

Os primeiros estudos sobre a lógica datam da Grécia antiga, e foi Aristóteles (384-322
a.C.) que a levou a um outro patamar. Aristóteles, diferentemente dos pré-socráticos, dos
sofistas, de Sócrates e de seu professor Platão concede à lógica um tratamento singular,
transformando-a em uma disciplina que merece uma investigação rigorosa e sistemática.
Por isso, Aristóteles é considerado o pai fundador da lógica. Em sua obra Organon,
Aristóteles defende que a lógica serve de instrumento para a filosofia, facilitando a
distinção entre os padrões de raciocínios corretos e os incorretos. Sendo assim, a lógica
foi concebida como um instrumento de análise e compreensão do pensamento, algo
essencial para o filósofo e, posteriormente, para todo e qualquer cientista, seja ele ligado
às ciências naturais ou às ciências humanas, pois o auxilia a pensar com rigor, clareza e
coerência.

A lógica aristotélica engloba duas tarefas distintas: a formulação de conclusões


teóricas a partir de outras proposições igualmente teóricas - teoria do silogismo -, e a
formulação de conclusões teóricas a partir de observações empíricas -indução. Sua
maneira de abordar a lógica foi hegemônica durante quase dois mil anos. Foi somente
no século XVII que Gottfried W. Leibniz (1646-1716), filósofo e matemático alemão ensaia
uma mudança significativa no rumo do desenvolvimento histórico da lógica. Em sua obra
Dissertatio de Arte Combinatória de 1666, Leibniz sugere a construção de um sistema
exato de notação, um tipo de linguagem simbólica universal semelhante à álgebra, que
representaria o pensamento. O intento de Leibniz era conceber uma escrita formal
composta de um pequeno número de signos suscetíveis de representar, segundo regras
combinatórias, todos os conceitos pensáveis. Para tanto, bastaria aplicar certas
operações para obter, por meio de simples cálculos, a resposta para qualquer pergunta
- calculus ratiocinator (DELACAMPAGNE, 1997, p. 18). Contudo, Leibniz veio a falecer

135 
 
 

antes de atingir seu objetivo e o posterior sucesso da filosofia de Kant ofuscou o projeto
de uma formalização matemática do raciocínio.

Figura 6: Gottfried W. Leibniz

No transcorrer do século XIX a ideia de Leibniz foi retomada por vários filósofos-
matemáticos como Bolzano, Boole, De Morgan, Peirce e, finalmente, por Gottlöb Frege
(1848 – 1925) que concretiza a criação da lógica matemática. A obra de Frege influenciou
os trabalhos de grandes filósofos e matemáticos como George Cantor, Alfred North
Whitehead e Bertrand Russell, e o trabalho de todos esses pensadores culminou com o
desenvolvimento de diversas áreas da filosofia, da ciência e da tecnologia, tornando-se
a base das linguagens da computação, tão difundidas e necessárias nos dias atuais.
Saiba caro (a) aluno (a), seu Facebook, seu Instagram e seu WhatsApp são todos filhos
dos trabalhos dessa turminha da pesada. Todavia, neste momento não nos interessa
adentrar neste ramo específico da lógica matemática. Meu objetivo aqui é mais singelo e
me limitarei a investigar algumas peculiaridades de nossa linguagem verbal cotidiana.

A lógica busca uma maneira específica de estruturação do pensamento. Procura


obter frases com um tipo de arcabouço que prescinda dos pensamentos originais,
bastando a apresentação de formas genéricas para que aceitemos sua lógica interna.
Vamos entender melhor isso. Veja como a frase abaixo é intuitiva e óbvia:

Premissa 1 – Todos os homens são mortais.


136 
 
 

Premissa 2 – Sócrates é um homem.

Conclusão – Portanto, Sócrates é mortal.

O que caracteriza a lógica é que ela ainda é óbvia e intuitiva mesmo que possa parecer
estranha e incompreensível. Note que a estrutura dos argumentos abaixo são iguais a
utilizada no argumento acima, com exceção de que, nos exemplos abaixo identificamos
o nexo de causalidade, mas não compreendemos o conteúdo:

Premissa 1 - Todos os Bligs blofam

Premissa 2 - Blég é um Blig

Conclusão - Logo, Blég blófa

Premissa 1 – Todos os A têm um B

Premissa 2 – Um C é um A

Conclusão – Logo, os C têm um B

O pensamento lógico pode seduzir, ainda que seja impessoal. Suas formas ainda serão
válidas mesmo na ausência de qualquer característica pessoal. Ela pode ser utilizada
como instrumento de qualquer área do conhecimento, da filosofia à física. Da geografia
ao direito etc. Por não depender das informações do mundo, a lógica é autossuficiente.
Ao aceitarmos as premissas, sejam elas claras ou obscuras, poderemos ter que aceitar
a conclusão. Sendo assim, a lógica é a arte de estudar a validade ou não das
estruturas gerais do pensamento independente do seu conteúdo - significado.

A lógica pode estar presente tanto em raciocínios dedutivos, quanto em indutivos. Vamos
recordar um pouco este assunto discutido na unidade 1? Fazemos uso de deduções e
induções rotineiramente, ainda que muitos de nós não saibamos dos limites que cada
uma dessas formas de pensar pode esconder. De maneira genérica, podemos afirmar
que o pensamento dedutivo é um método de raciocinar um pouco mais forte, pois permite
137 
 
 

que obtenhamos conclusões mais certeiras. Já os pensamentos indutivos nos concedem


apenas probabilidades. Vamos ver alguns exemplos.

Dedução

Premissa 1 – Todos os golfinhos são mamíferos.

Premissa 2 – Todos os mamíferos têm pulmões.

Conclusão – Sendo assim, todos os golfinhos têm pulmões.

Indução

Premissa 1 – Este ganso é preto.

Premissa 2 – Os gansos que vimos ontem no parque do Ibirapuera eram pretos.

Conclusão – Sendo assim, todos os gansos são pretos.

Lembre-se que a indução é um tipo de raciocínio que sugere como será o futuro com
base em algumas poucas ocorrências do passado. Por este motivo a indução é entendida
como uma forma de argumentação que parte do particular - ocorrências ou amostras
específicas -, em direção ao genérico com vistas ao atingimento de determinações gerais.
Todavia, apesar de ser muito utilizado não somente no senso comum, mas também nas
ciências, o pensamento indutivo pode nos fazer correr sérios riscos:

Premissa 1 - Meu amigo sempre surfa em uma praia do Recife que é infestada de
tubarões.

Premissa 2 – Meu amigo nunca foi mordido por um desses tubarões.

Conclusão – Logo, eu também vou surfar naquela praia.

A generalização indutiva de algumas evidências pode ser bastante arriscada. Sendo


assim, estamos em uma situação um pouco constrangedora, pois as deduções são
138 
 
 

formas de argumentar que só nos serão benéficas se as premissas que a compõe sejam
de qualidade e validem a conclusão, e as induções, por sua vez, só nos concedem
probabilidades. Na verdade, o termo “provar” muito utilizado no senso comum, só
tem mesmo sentido em lógica e em matemática, e mesmo assim, existem
restrições. Nem mesmo nas ciências podemos provar nada. Poderemos, quando muito,
suportar empiricamente hipóteses por meio de cálculos probabilísticos. Voltaremos a este
assunto em breve.

Aristóteles foi o primeiro pensador que fez uso dessas estruturas de pensamento. O
silogismo aristotélico é uma maneira de raciocinar por meio da utilização de três
proposições, sendo as duas primeiras chamadas premissas e a última conclusão. É um
tipo de argumento dedutivo, onde a conclusão é uma consequência lógica das premissas
que estão ligadas a ela por uma relação de consequência. Neste tipo de raciocínio, o
sujeito e o predicado das três proposições estão sempre inter-relacionados. Sendo assim,
os silogismos são discursos que com certas coisas postas, outra coisa necessariamente
decorrerá delas. Isso é bem intuitivo. Vejamos os exemplos abaixo:

Premissa 1 – Todos os seres humanos são mortais.

Premissa 2 – Os santistas são seres humanos.

Conclusão – Portanto, os santistas são mortais.

Premissa 1 – Todos os S são P.

Premissa 2 – Os C são S.

Conclusão – Portanto, C são P.

Os silogismos permitem que se obtenham formas genéricas que são válidas em todas as
situações:

139 
 
 

Premissa 1 – Todos os A são B.

Premissa 2 – Todos os B são C.

Conclusão – Portanto, todos os A são C.

Premissa 1 – Todos os A são B.

Premissa 2 – Nenhum B é C.

Conclusão – Portanto, nenhum A é C.

Premissa 1 – Alguns A são B.

Premissa 2 - Todos os B são C.

Conclusão – Portanto, alguns A são C.

Premissa 1 – Alguns A são B.

Premissa 2 - Nenhum B é C.

Conclusão – Portanto, alguns A não são C.

Todavia, é preciso cautela, pois nem sempre funciona de maneira tão perfeita. Atende
para os exemplos abaixo e perceba que o último deles, apesar de ter a mesma estrutura
que os dois que o antecedem é bastante falho:

Premissa 1 - Um X pode ser um Y.

Premissa 2 - Um Y pode ser um Z.


140 
 
 

Conclusão - Logo, um X pode ser um Z.

Premissa 1 - Um homem pode ser um surfista.

Premissa 2 - Um surfista pode ser um brasileiro.

Conclusão - Logo, um brasileiro pode ser um surfista.

Premissa 1 - Um homem pode ser um surfista.

Premissa 2 - Um surfista pode ser uma mulher.

Conclusão - Logo, um homem pode ser uma mulher.

Uma coleção de argumentos falaciosos

Falácias são falhas no processo argumentativo. Todos nós a cometemos em alguns


momentos de nossas vidas. É verdade que alguns de nós a cometem com bastante
constância, e isso pode ser constrangedor se ocupamos cargos de docência, de
liderança, ou mesmo se atuamos como cientistas ou aprendizes de cientistas. Por este
motivo, é prudente olharmos para nossas limitações argumentativas com bastante
parcimônia, pois, como tudo na vida, a capacidade de apresentar argumentos com
clareza e isentos de falhas é algo que pode ser conseguido com treino.

As falácias denunciam a ineficácia do argumentador em atacar as premissas do


argumento de seu interlocutor. Vale à pena relembrar que quando estamos em um
debate, o que queremos analisar são ideias. Qualquer tentativa de invalidar o caráter do
argumentador oponente, de desviar o assunto ou de desqualificar a ideia sem atacar
coerentemente suas premissas será visto como uma falha argumentativa. Vejamos
alguns exemplos de falácias:

141 
 
 

Exemplo 1:

Todos sabem que o altivo vereador é um vigarista costumaz, logo como podemos
concordar com sua ideia de redução de impostos?

Nome da falácia: ad hominem; ataque ao homem.

Essa falácia ocorre quando se opta por atacar a pessoa que proferiu o argumento e não
as premissas do argumento. Não se discute a ideia por detrás do argumento. Isso mostra
fraqueza argumentativa. É muito mais fácil atacar uma pessoa do que seus argumentos.
O vereador pode ser um trapaceiro e ainda assim sua proposta pode ser boa.

Exemplo 2:

Esta instituição comporta-se me maneira paternalista, porque ela trata seus funcionários
como crianças.

Nome da falácia: argumento circular; circularidades reflexivas.

Note que, quem faz uso do argumento acima está afirmando que X é verdadeiro porque
X é verdadeiro.

Exemplo 3:

Como posso acatar o argumento de que fumar faz mal a saúde, se o médico que me
informou sobre este assunto também é fumante?

Nome da falácia: tu quoque; você também; ad hominem tu quoque.

Essa falácia se funda quando se utiliza os erros cometidos por outros - principalmente os
do argumentador oponente - para desqualificar o argumento apresentado.

Tenha sempre em mente caro (a) aluno (a), que todas as críticas que você receber em
sua trajetória acadêmica serão, ou ao menos devem ser direcionadas aos seus trabalhos,
às suas ideias, aos seus argumentos. Faça o mesmo com seus professores. Esforce-se

142 
 
 

para não levar nada para o âmbito pessoal, afinal, estamos em um ambiente propício
para se discutir ideias sem melindres. No final, todos saem ganhando.

Exemplo 4:

Como não provaram que extraterrestres não existem, então eles devem existir.

Nome da falácia: apelo à ignorância; ad ignorantium; prova por ignorância.

Aqui o argumentador conclui que algo é verdadeiro só porque não pode ser provado como
falso, ou vice versa.

Exemplo 5:

O Doutor Drauzio Varela afirmou que o PIB deve crescer 6% no ano de 2015. Ele é muito
inteligente, deve saber do que está falando.

Nome da falácia: apelo à autoridade; ad verecundiam; falácia da especialidade universal.

Perceba que o suporte do argumento acima não é oriundo das premissas, mas da
autoridade que o argumentador tem em outro campo do saber, ou campo social, para
recordarmos de Bourdieu. O apelo à autoridade tenta estender a especialidade de origem
e a popularidade de um dado pensador a outros campos de atuação que não são os
seus.

Exemplo 6:

Devemos destinar recursos do Estado com vistas a fomentar a arte e a cultura em nosso
país, pois todas as grandes potências da história da humanidade agiram desta maneira.

Nome da falácia: apelo à tradição; ad antiquitatem; apelo ao velho; apelo ao passado.

Perceba que a neste caso, a conclusão pode até ser boa, todavia as premissas não dão
o devido suporte a ela. O argumento justifica sua aceitação afirmando que no passado

143 
 
 

sempre foi assim. O apelo à tradição ancora-se na noção indutiva de que tudo o que
funcionou no passado irá funcionar no futuro. Porém, vimos anteriormente que o
raciocínio indutivo pode ocasionar sérios problemas.

Exemplo 7:

[após um bom argumento sobre porque não deve ser enviado dinheiro para a Etiópia]:

Como você pode ser cruel e não destinar recursos internacionais à Etiópia? Pense em
todos os homens, mulheres e crianças que estão morrendo de fome por lá! (NAVEGA,
2005, p.150)

Nome da falácia: apelo à pena; ad misericordian.

No exemplo acima se faz uso de termos que apelam para a emocionalidade do


interlocutor. Não se pode analisar a força de um argumento com base no sentimento
de pena, pois o envio de dinheiro para a Etiópia pode não resolver a questão, uma vez
que o mesmo pode ser desviado para milícias, pode não chegar a ser utilizado para suas
finalidades, etc. Este contra-argumento falacioso clama pela piedade do interlocutor e se
abstém de apresentar premissas contundentes que possam se opor às premissas
utilizadas anteriormente no argumento contrário.

Exemplo 8:

Devemos baixar os impostos e as taxas dos serviços públicos, pois a maioria do povo
deste país apoia essa medida.

Nome da falácia: apelo ao público; ad populum; ad numerum.

O argumento se apoia na popularidade, ou seja, já que a maioria concorda com o que se


está sendo alegado devemos acatar o desejo da maior parte. É sempre bom recordar
que o desejo da maioria nem sempre aponta para a melhor decisão, uma vez que a
maioria foi a responsável pela crucificação de Jesus Cristo, pelo equívoco no julgamento
de Sócrates, pela eleição do Tiririca, pela aceitação de Hitler da Alemanha nazista, enfim,

144 
 
 

na história da humanidade a maioria também tem feito uma quantidade inestimável de


besteiras.

Exemplo 9:

João: Eu acredito que o capitalismo é bom porque ele incentiva as pessoas a trabalhar
e a poupar.

José: Você acha que o capitalismo é bom porque diz que a riqueza vem à mão de quem
trabalha, mas isso é claramente falso, já que muitas pessoas ricas simplesmente herdam
suas fortunas sem nunca trabalhar, por isso o capitalismo é um fracasso (NAVEGA, 2005,
p.153).

Nome da falácia: espantalho.

Na falácia acima o argumentador altera o argumento oponente distorcendo a ideia


original. Em outras palavras, o argumento é transformado em um “espantalho”, que por
ser feito de palha pode pegar fogo facilmente.

Exemplo 10:

A discussão da proibição de fumantes em ambientes fechados não é oportuna. Todos


nós desejamos melhorar a qualidade do ar que respiramos, mas não é justo que se faça
isso com os fumantes se há coisas mais graves a atacar. A poluição do ar de nossa
cidade é muito mais grave por causa dos automóveis que nela circulam. Seria muito mais
importante concentrarmos nossos esforços no estabelecimento de mecanismos de
redução da poluição de veículos automotores (NAVEGA, 2005, p.156).

Nome da falácia: red herring; missing the point; conclusão irrelevante.

O red herring introduz tópicos irrelevantes no assunto que está em pauta. Agindo desta
maneira o adversário tenta desviar o assunto inicial, mudando o foco do debate. A
questão introduzida pode até ser pertinente e digna de discussão, todavia, isso não

145 
 
 

justifica a fuga da questão inicial. A falácia red herring diferencia-se da do espantalho,


pois nesta última o argumento é deformado e no red hering o argumento é desviado

Exemplo 11:

A inteligência inata dos brasileiros é claramente maior agora do que há quarenta anos, já
que durante esse período nosso índice de alfabetização cresceu muito devido aos
programas educacionais implantados pelos sucessivos governos (NAVEGA, 2005, p.
157).

Nome da falácia: non sequitur; não há implicação.

O non sequitur pode ser facilmente identificado quando não há conexão lógica entre as
premissas e a conclusão. É um tipo de falácia engraçada, pois a falta de relação entre os
tópicos do argumento pode caracterizar certo tipo “ingenuidade alucinada”. Lembre-se
que todo argumento necessita que as premissas conduzam para a veracidade da
conclusão. As falácias non sequitur falham totalmente neste quesito. No exemplo acima
fica clara a confusão. Se a inteligência é inata, como pode ser melhorada com os
programas de educação?

Exemplo 12:

A competição é a melhor forma de educarmos as crianças, pois representa de forma


bastante clara e inequívoca as regras da natureza.

Nome da falácia: apelo à natureza.

Alega-se que um argumento é verdadeiro devido a sua referência à natureza. Todavia,


raciocine comigo caro (a) amigo (a) estudante. Você encontra celulares na natureza?
Liquidificadores? Vacinas? Antibióticos? Naves espaciais? Geladeiras? Livros? Skates?
Sendo assim, apelar para a natureza pode não ser uma boa estratégia, uma vez que
parece não haver razões suficientes nem para aceitar, nem para rejeitar as soluções ditas
naturais.

Exemplo 13:
146 
 
 

Desde que comecei a tomar comprimidos de creatina minha energia aumentou. Logo, a
creatina é um potente energético.

Nome da falácia: post hoc ergo propter hoc; falácia da falsa causa.

Assume-se que por anteceder um episódio, este deve necessariamente ser a sua causa.
O aumento de energia pode ser advindo de infinitas causas e sua determinação necessita
de investigações mais parcimoniosas, ou seja, científicas!. Nosso “tomador de creatina”
pode estar dormindo um pouco mais, ou ainda tenha mudado para um trabalho mais
agradável, ou quem sabe esteja namorando a Deborah Secco. Tudo isso pode ajudar
bastante no aumento da energia do rapaz. À noite segue-se o dia, mas não podemos
dizer que a noite provoca o dia (NAVEGA, 2005, p. 162).

Para tornar ainda mais clara esta ideia, veja o exemplo:

Mais pessoas morrem em hospitais do que em qualquer outro lugar. Portanto, internar-
se em hospitais causa a morte (NAVEGA, 2005, p. 163).

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147 
 
 

MÓDULO 4

Os limites da lógica

A lógica pode falhar?

Já vimos que algumas construções aparentemente lógicas podem conter armadilhas para
nós. Vamos analisar mais algumas dessas possibilidades? O que você acha do seguinte
exemplo? Ele pode falhar?

Premissa 1 – X está à direita de Y.

Premissa 2 – Y está à direita de W.

Conclusão - Logo, X está à direita de W.

WYX

Todavia, satisfazer-se ao encontrar um exemplo que valide o argumento pode ser uma
grande armadilha. Pense, por exemplo, em um sujeito X, um Y e um W conversando em
uma mesa redonda! Note como o silogismo é facilmente refutado.

Isso nos alerta para certo tipo de automatismo que muitos de nós somos vítimas, pois
quando queremos defender nossos pontos de vista, quase que invariavelmente
buscamos exemplos que possam validá-los. Todavia, esta é uma maneira bastante frágil
de raciocinar, como já nos alertou o grande filósofo Karl Popper. Lembre-se que ele
argumentava que na ciência, o conhecimento só consegue crescer por meio da falseação
de hipóteses. Não basta tentar confirmar a veracidade de uma ideia, é necessário pensar
constantemente em sua refutação. Aquilo que confirma uma teoria, não é algo que possa
ser utilizado para garantir a sua veracidade. Por outro lado, aquilo que a falseia, por meio
da evidência contrária, confere uma irrefutável confirmação de que a teoria é falha.

148 
 
 

Em ciência é imprescindível que as alegações sejam passíveis de ser falseadas. Essa


falseabilidade é essencial por motivos óbvios, pois, se não há como reprovar uma
alegação qualquer, então a alegação está fora do universo da crítica e é invulnerável a
qualquer contra argumentação. Alegações que não possam ser testadas são inúteis, ao
menos para a Ciência. Todavia, mesmo fora do universo científico, quando, por
exemplo, estamos á frente de uma empresa tendo que escolher a ação mais
adequada em uma dada circunstância, buscar argumentos contrários à hipótese
escolhida pode ser uma ação necessária para que se possam evitar prejuízos
advindos de uma investigação pobre em termos de lógica.

Muitos daqueles que se familiarizam com as regras do debate e da argumentação


acabam desenvolvendo a capacidade de detectar os pontos fracos da defesa de um
oponente. Isso é o que buscam fazer muitos pensadores críticos desde a Antiguidade.
Um exemplo deste tipo de abordagem nos é dado por Brian Magee em seu livro
Confissões de um Filósofo. Por ter sido bastante próximo de Karl Popper, Magee afirma
que sua forma de debater era oposta à dos filósofos que o antecederam. Popper
buscava encontrar o argumento mais forte do seu oponente e o atacava de forma
impiedosa. Porém, sempre que possível Popper aperfeiçoava o argumento de seus
adversários antes de atacá-lo. Para tanto, fazia uso de diversas páginas de exame
preliminar onde procurava extrair fraquezas ou contradições, permitindo assim que
a argumentação do seu oponente ficasse ainda melhor. Somente depois de agir
desta maneira começava a investir com ferocidade contra ele. O resultado era, na
maioria das ocasiões, devastador. No final, não restava nada da argumentação
contrária a não ser os créditos e concessões que o próprio Popper já apontara
(MAGEE, 2001, p.135).

Outro problema que pode surgir diz respeito à complexidade da linguagem. Nossa
linguagem é concreta, mas também pode ser permeada de muitos devaneios, uma vez
que somos seres abstratos que se compreendem em suas abstrações. Isso pode
ocasionar enormes problemas para os silogismos, que foram, por séculos, considerados
formas perfeitas de raciocinar. Veja o exemplo abaixo:

149 
 
 

Premissa 1 – Nenhum animal com rabo de peixe é uma sereia.

Premissa 2 – Todas as sereias tem rabo de peixe.

Conclusão – Alguns animais com rabo de peixe não são animais com rabo de
peixe.

Como pode ser observado, poderemos produzir silogismos paradoxais sempre que
fizermos uso de termos concretos misturados com termos abstratos. Por este motivo caro
(a) aluno (a), abstrações não tem lugar na ciência. Isso também poderá ocorrer quando
fizermos uso de termos vagos. Veja só como isso funciona:

Premissa 1 – Nada é melhor que a eudaimonia (o bem supremo; a felicidade).

Premissa 2 – Mas um espetinho de frango é melhor do que nada.

Conclusão – Portanto, um espetinho de frango é melhor que a eudaimonia.

A construção do raciocínio acima fez uso da palavra nada. Mas, dependendo do contexto
essa palavra pode ser possuir diversos significados. O filósofo Wittgenstein afirmava que
nossa linguagem é um apanhado de muitos jogos diferentes, e com muitas regras
distintas. A nossa linguagem tem tanta flexibilidade que pode originar uma infinidade de
jogos. A linguagem pode ser jogada para tantos lados que os silogismos aristotélicos,
que por séculos foram os modelos de perfeição linguística, podem ser facilmente
invalidados.

Foto 15: Ludwig Wittgenstein


150 
 
 

O pensamento do senso comum carece muito da lógica, e muitos problemas


educacionais e corporativos poderiam ser evitados se levássemos Bertrand Russell um
pouquinho mais a sério. Entretanto, existem situações que podem ser logicamente
erradas e ainda assim ter relevância prática inegável. Isto ocorre devido a inúmeros
motivos, e um deles diz respeito à dependência de nosso raciocínio daquilo que ocorreu
no passado e também das nossas intenções pragmáticas específicas. Veja um raciocínio
lógica e pragmaticamente inválido:

Premissa 1 – Se aquilo é um pombo (A), então aquilo é um animal (B).

Premissa 2 – Aquilo não é um pombo (Negação do antecedente – A).

Conclusão – Portanto, aquilo não é um animal (Negação indevida do


consequente – B).

Aquilo poderia ser um gato, um cachorro, um pato etc. Logo, a negação do consequente
é indevida. Contudo, preste atenção ao seguinte exemplo e note que a estrutura é
exatamente a mesma do exemplo dado acima, porém, seu conteúdo é plenamente
aceitável:

Premissa 1 – Se você lavar o meu carro (A), eu lhe pago trinta reais (B).

Premissa 2 – Você não lavou o meu carro (negação do antecedente – A).

Conclusão – Portanto, não vou lhe pagar trinta reais (negação indevida do
consequente? – B. Negação devida do consequente? – B).

Se analisarmos o argumento acima em termos puramente formais perceberemos que ele


comete o mesmo erro de negação do antecedente com a indevida negação do
consequente. Porém, a estrutura argumentativa também pode ser analisada em termos
práticos. Agindo assim pode-se perceber que o argumento respeita as nossas maneiras
de condução das atividades do cotidiano, onde temos o hábito de esperar pagamento
apenas quando se realiza o serviço contratado. No dia a dia isso é aceitável, contudo,
em termos puramente lógicos, isso é insatisfatório, pois eu poderia lhe dever trinta reais

151 
 
 

por outros trabalhos, por exemplo. Sendo assim, o argumento acima é logicamente falho,
mas é pragmaticamente aceitável.

Podemos também analisar a lógica por meio da neurobiologia. Nosso cérebro não evoluiu
para trabalhar com a lógica! Os seres humanos estão no planeta a duzentos mil anos, e
por quase todo esse período nosso cérebro teve que lidar com desafios bem menos
complexos do que os impostos pela lógica, como fugir de um predador, por exemplo. A
necessidade de se trabalhar com a lógica é algo muito recente em termos evolutivos.
Muito provavelmente, na medida em que nosso cérebro continue evoluindo, teremos
cada vez mais facilidade em lidar com problemas de ordem lógica. Nossas linguagens
ainda não são muito adequadas para suportar esses desafios. Nosso mundo é caótico e
nos surpreende a cada instante. Definitivamente a lógica nos é cara e imprescindível em
inúmeras situações e contextos, mas definitivamente também, nosso mundo não opera
de forma lógica!

Que tal um desafio? O exemplo abaixo foi retirado do livro Pensamento Crítico e
Argumentação Sólida. Como será que você vais se sair?

Duas cartas foram retiradas de um baralho e colocadas com a face para baixo em uma
mesa. Alguém que viu as duas cartas, diz para você que somente uma das proposições
abaixo é verdadeira:

Proposição 1 - Existe um Rei ou um Ás ou ambos na mesa.

Proposição 2 - Existe uma Dama ou um Ás ou ambos na mesa.

Dado que somente uma das proposições acima é a verdadeira, quais as cartas mais
prováveis de termos na mesa?

Qual carta você escolheu? Parece que uma delas seria o Ás, pois existem duas chances
de tê-la na mesa, certo?

152 
 
 

Sinto muito! Se você escolheu o Ás, você errou! Veja o que nos diz o professor Sergio
Navega em seu exemplo:

Suponhamos que a proposição 1 seja verdadeira. Se ela for verdadeira,


então uma carta é um Rei, ou um Ás ou ambos. É isso que diz a
proposição 1. Se for um Rei e um Valete, por exemplo, a proposição 1
será verdadeira, e a proposição 2 será falsa, o que satisfaz o nosso
enunciado: Somente uma das proposições é verdadeira. Logo, Rei e
Valete são soluções aceitáveis para o problema. Mas se o Ás for uma das
cartas – não importa qual é a outra – então a proposição 1 será
verdadeira, mas a 2 também será! Portanto, não podemos ter um Ás na
proposição 1 e da mesma maneira na proposição 2. O Ás é a única carta
que não pode ocorrer dadas essas circunstâncias! Temos grandes
dificuldades de escapar da tendência de achar provável algo que é, na
verdade, logicamente impossível (NAVEGA, 2005, p.76).

Um dos pontos altos da lógica na história do pensamento humano diz respeito ao


movimento intelectual que o positivismo lógico defendia. Bryan Magee nos conta que o
depois da Segunda Guerra Mundial o centro da filosofia britânica era a universidade de
Oxford. Nela, a influência dominante era o positivismo lógico, e a obra de maior impacto
neste período foi o livro Linguagem, Verdade e Lógica de A.J Ayer. Os positivistas lógicos
interessavam-se na distinção entre sentido e falta de sentido. Este movimento intelectual
teve início na Alemanha, no chamado Círculo de Viena e estendeu-se a outras
localidades. Seus integrantes estavam convencidos de que a maioria dos pensadores
metafísicos - aqueles que filosofam com coisas que não se pode fazer experiência - mais
conhecidos falava tolices em tom bombástico. Os positivistas lógicos britânicos nutriam
a mesma convicção com respeito à obra de muitos filósofos (MAGEE, 2001, p.38). Mas,
o que queriam os positivistas lógicos?

O positivismo lógico ou empirismo lógico foi desenvolvido por membros do Círculo de


Viena tendo como base o desenvolvimento da lógica moderna. Em seu início, o Círculo
de Viena foi liderado por Moritz Schlick, que ajudou a constitui-lo na medida em
que serviu como catalisador de um grupo de discussão formado por cientistas e
filósofos com o objetivo de criar uma nova filosofia da ciência que apoiasse de
maneira rigorosa uma demarcação do científico e do não científico. O Círculo de

153 
 
 

Viena teve influências de Ernst Mach, Percy Bridgman e Ludwig Wittgenstein, sendo este
último autor do Tractatus Logico-Philoshophicus, obra seminal que os membros do
Círculo se inspiraram para a construção das suas premissas.

A filosofia deste grupo restringia todo conhecimento à ciência. Naquele momento da


história é bastante compreensível que um grupo de cientistas e filósofos atraídos e
seduzidos pela lógica intencionasse aplicá-la a toda e qualquer forma de pensamento
que almejasse atingir algum tipo de conhecimento. Para tanto, fizeram uso do
verificacionismo para rejeitar qualquer pensamento metafísico, não necessariamente
como uma farsa, mas como algo destituído de significado. Todavia, não podemos
esquecer que o ser humano é dotado de afetos, paixões, emoções, que pouco ou nada
tem a ver com a lógica. Esta é um instrumento necessário para alguns momentos de
nossa vida. Como dissemos, para determinar se um argumento era significativo ou não,
os positivistas lógicos faziam uso do verificacionismo como critério para fazer a
demarcação entre o que era científico e o que não era. Asserções só seriam
cognitivamente significativas se fosse possível determinar um procedimento finito para
obter sua verdade de forma conclusiva. Sendo assim, afirmações metafísicas, teológicas
e até mesmo éticas eram consideradas como pseudoproblemas.

Com o tempo, as doutrinas do positivismo lógico foram sendo cada vez mais atacadas
por diversos pensadores, um dos críticos era o já citado Karl Popper. Popper, apesar de
franco defensor da lógica, não aceitava que o verificacionismo pudesse ser uma das
bases do conhecimento. Já sabemos que para ele, buscar aquilo que pode falsear uma
teoria, uma ideia, uma crença, um ponto de vista, um argumento é uma atitude muito
mais científica do que buscar aquilo que os confirme. Com esse tipo de procedimento
Popper chegou mesmo a afirmar que nada pode ser provado, nem mesmo em ciência. O
que podemos obter são meras probabilidades. A grande citação abaixo foi retirada da já
citada obra de Magee. No meu entender, a leitura que Magee faz do legado deixado por
Karl Popper é bárbara. Nela é possível perceber a lucidez de Popper, que buscou durante
toda a sua vida conceder a Ciência uma base rigorosa, sem cair na armadilha de acreditar
que por meio dela chegaríamos às certezas absolutas:

154 
 
 

Foi com relação à filosofia da ciência que Popper elaborou suas ideias
mais fundamentais: que nunca somos capazes de estabelecer com
segurança a veracidade de qualquer enunciado irrestritamente geral
sobre o mundo e, portanto, de nenhuma lei ou teoria científica (é
importante deixar claro que ele não está falando de enunciados
singulares, mas de enunciados irrestritamente gerais; é possível às vezes
ter certeza de uma observação direta, mas não da estrutura explanatória
que a explica; as observações diretas e os enunciados singulares são
sempre suscetíveis a mais de uma interpretação); que, por ser impossível
em termos lógicos chegar a estabelecer a veracidade de uma teoria,
qualquer tentativa nesse sentido é uma tentativa de fazer o impossível em
termos lógicos; portanto, não é só o positivismo lógico que deve ser
abandonado em virtude de seu verificacionismo, mas também toda a
filosofia e toda a ciência envolvidas com a busca da certeza, busca que
dominou o pensamento ocidental de Descartes até Russell; que por não
conhecermos, e nunca podermos conhecer no sentido tradicional dessa
palavra, a verdade de qualquer uma de nossas ciências, todo o nosso
conhecimento científico é, e sempre será falível e corrigível; que nosso
conhecimento não aumenta, como ao longo dos séculos como se
acreditou que acontecesse, pelo perpétuo acréscimo de novas certezas
existentes, mas pela repetida derrubada de teorias existentes por teorias
melhores, o que significa principalmente teorias que explicam mais ou que
geram previsões mais exatas; que devemos esperar que essas teorias
melhores, por sua vez, sejam um dia substituídas por teorias ainda
melhores; e que o processo jamais terá fim, de modo que o que
chamamos de nosso conhecimento somente pode chegar a ser
constituído de nossas teorias; que nossas teorias são produto de nossa
mente; que somos livres para inventar absolutamente qualquer teoria,
mas que, antes que qualquer teoria dessas possa ser aceita como
conhecimento, é preciso que se demonstre que ela é preferível a qualquer
outra ou quaisquer outras que substituiria caso a aceitássemos; que uma
preferência dessa ordem somente pode ser estabelecida por testes
rigorosos; que, embora os testes não possam estabelecer a veracidade
de uma teoria, eles podem determinar sua falsidade – ou revelar falhas
nela – e, portanto, embora não possamos nunca ter elementos para
acreditar na veracidade de uma teoria, podemos ter elementos decisivos
para preferir uma teoria a outra; que, por conseguinte, o comportamento
racional consiste em basear nossas escolhas e decisões no “que nos é
dado saber” ao mesmo tempo que procuramos substituí-lo por algo
melhor. Logo, se quisermos progredir, não devemos lutar até a morte em
defesa de teorias existentes, mas acolher as críticas a elas e permitir que
nossas teorias morram no nosso lugar (MAGEE, 2001, p.212).

155 
 
 

Popper, tido como uma das maiores mentes do século XX, quiça da história do homem
na Terra, concede-nos durante o transcorrer de toda a sua enorme obra “pílulas de
modéstia”, tão necessárias em um mundo onde as certezas “pipocam” por todos os lados.
A grande crítica endereçada aos livros de autoajuda é que a quase totalidade dos títulos
existentes fazem uso da mesma estratégia: 1-buscam encontrar em nossa sociedade
exemplos de pessoas que se adequem às “teorias” propostas na obra; 2- uma vez
encontrados os exemplos, esses são imediatamente universalizados, como se a
aplicação da fórmula utilizada por uma pessoa ou por um pequeno grupo de indivíduos
pudesse garantir o sucesso de todos os que seguissem seus passos. Sendo assim, o
que a autoajuda nos propõe é um tipo bastardo e medíocre de verificacionismo de terceira
categoria, sem perceber que até mesmo os argumentos dos positivistas lógicos - sem
exceção, todos filósofos e cientistas brilhantes -, foram solapados pelos potentes
argumentos de Karl Popper há muitos e muitos anos. Ainda assim, os títulos abaixo
continuam a seduzir milhões e milhões de leitores pelo mundo afora, autoajudando
assim, os autores das referidas obras:

Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, de Dale Carnegie.

A Chave Mestra do Sucesso. 24 Lições Para Alcançar Tudo o que Deseja, de


Charles F. Haanel.

Deixe Os Homens aos seus Pés. Como se Tornar uma Mulher Poderosa e
Irresistível, de Marie Forleo.

Trabalhe 4 Horas por Semana. Fuja da Rotina, Viva Onde Quiser e Fique Rico, de
Timothy Ferriss.

Casamento Blindado. O Seu Casamento à Prova de Divórcio, de Renato e


Cristiane Cardoso.

Como Motivar as Pessoas, de Ian Maitland.

156 
 
 

A Chave do Segredo. Use a Lei da Atração Para Obter Tudo o que Quiser, de Jerry
e Esther Hicks.

A Magia do Marketing Pessoal. O Segredo das Pessoas Bem Sucedidas, de


Edmundo Vieira Cortez.

O Segredo da Mente Milionária. Aprenda a Enriquecer Mudando os Seus


Conceitos Sobre Dinheiro e Adotando os Hábitos das Pessoas Bem Sucedidas, de T.
Harv Eker.

Os Sete Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes, de Stephen Covey.

A obra de Popper, apesar de revolucionária, ainda é bastante desconhecida do público


em geral e até mesmo entre professores universitários. Sendo assim, é compreensível
que muitos autores de autoajuda acreditem em suas teorias e continuem propagando em
alto e bom tom ideias que foram descartadas pelo gênio de Popper há décadas.

Karl Popper faleceu num sábado, dia 17 de setembro de 1994, aos 92


anos de idade. No dia seguinte, três dos quatro maiores jornais dominicais
da Grã-Bretanha o descreveram, ou publicaram citações que o
descreviam, como o mais importante filósofo do século XX. Antes que
terminasse o mês, artigos com o mesmo tom foram publicados no mundo
inteiro. É claro que não será decidido pelos jornais quem acabará sendo
considerado o maior filósofo do século XX. No entanto, a lista de indicados
é de fato curta: Russell, Wittgenstein, Heidegger, Popper (MAGEE, 2001,
p.225).

Bem caro (a) aluno (a), até aqui pontuei e enalteci a lógica, pois afinal, estamos a falar
sobre a ciência. Todavia, não é minha intenção erigir mais um fundamentalismo ao estilo
dos positivistas lógicos. Para tanto, mais uma vez chamo Brian Magee para fazer um
salutar contraponto. Ao pontuar suas limitações Magee de certa forma nos alerta
para os limites da lógica em nossa vida. Russell estava certo ao afirmar que as
pessoas em geral não fazem uso do pensamento lógico e com isso acabam deixando de
fruir insights de grande profundidade e que poderiam auxiliá-las nos desafios do
cotidiano. Por outro lado, uma significativa parcela de acadêmicos, formadores de
opinião, passou a agir como se tudo pudesse ser avaliado por meio de análises lógicas

157 
 
 

de termos e proposições, e isso maculou o que de mais significativo existia dentro da


filosofia.

A questão original da filosofia ao longo da maior parte de sua história foi


“em última análise, o que existe?”. Essa foi a pergunta predominante para
os pré-socráticos; e, quando não dominou, ela esteve subjacente à maior
parte da melhor filosofia desde aquela época. Em busca de uma resposta,
os filósofos fizeram uma grande quantidade de perguntas secundárias,
tais como: Qual a natureza dos objetos físicos?; O que é o espaço?; O
que é a relação causal?; O que é o tempo? E, por uma progressão natural
a partir daí, passaram a preocupar-se profundamente com a possibilidade
do conhecimento humano: Como podemos descobrir essas coisas?;
Podemos conhecer algumas delas com certeza?; Em caso positivo, qual?;
E como poderemos ter certeza de conhecer quando realmente
conhecermos? [...] E ao longo de dois milênios e meio, a maioria dos
filósofos engajados nessas buscas teria considerado ridícula, se não
incompreensível, a opinião de que todos os problemas filosóficos eram,
em última análise, questões a respeito do uso – lógico - da linguagem. Um
ou dois deles, Locke, por exemplo, acreditavam que considerações
acerca da linguagem desempenhavam um papel muito importante na
investigação filosófica, mas jamais passou pelas suas cabeças imaginar
que tais considerações constituíssem o principal problema da filosofia
(MAGEE, 2001, p. 76).

[...] O que não aceito é que as características do nosso sistema de


representação sejam linguísticas em qualquer sentido fundamental ou
primordial. [...] Se ergo os olhos quando escrevo esta frase, minha visão
absorve imediatamente metade de um aposento contendo dezenas, se
não centenas, de itens e formas multicores em relações desordenadas
entre si. Vejo tudo com clareza, nitidez, instantaneamente e sem esforço.
Não existe forma concebível de palavras nas quais eu pudesse condensar
esse ato visual simples e unitário. [...] não há palavras para descrever as
formas irregulares dos objetos que vejo, nem há palavras para descrever
as relações espaciais tridimensionais múltiplas e concomitantes nas quais
vejo objetos diretamente uns em relação aos outros. Não há palavras para
as gradações e nuances diferentes de cor que eu vejo, nem para as
densidades variadas de luz e sombra. Sempre que vejo, tudo o que a
linguagem pode fazer é indicar, com generalidade extrema e nos termos
mais amplos e grosseiros, o que eu estou vendo (MAGEE, 2001, p.85).

Perceba caro (a) aluno (a), que Bryan Magee nos fala da visão, mas poderia falar-nos
igualmente sobre todos os cinco sentidos e as dificuldades em colocar nossas
percepções em palavras continuariam a ser as mesmas. Nota-se ai um limite da lógica
argumentativa, pois sendo essa constituída de proposições - premissas e conclusão -, e
sendo as premissas e conclusões dependentes das palavras que as compõe, fica
evidente que em alguns momentos teremos dificuldades em representar nosso mundo
158 
 
 

de maneira lógica e congruente. Se introduzirmos nesta equação nossos sentimentos,


paixões, alegrias, sofrimentos, a falta de palavras pode assumir proporções épicas.
Pensemos em um exemplo que julgo bastante elucidativo. Uma mulher que perde seu
amado marido torna-se viúva. Todavia, a viuvez dessa mulher não representa sua dor e
seu sofrimento. Um filho que perde o pai torna-se órfão, mais seu estatuto de órfão não
concede a nós a percepção de sua saudade. Um pai que perde um filho... O que é mesmo
um pai que perde um filho? Como se designa um pai que perde um filho? Parece que
neste caso a própria sabedoria popular se incumbiu de calar-se. A perda de um filho é
algo tão brutal que optamos por não nomear a situação. Esse fato é inominável. Não há
palavras, asserções, argumentos, análise, lógica que de conta desse dado de realidade.
E neste ponto podemos começar a perceber o grande desafio a que estamos submetidos,
todos nós, mas em especial os terapeutas, os filósofos clínicos, os filósofos coachs, os
professores, os líderes e todos aqueles profissionais que lidam diretamente e
profissionalmente com a complexidade da linguagem humana. A verdade, assevera
Magee, é que nenhuma das nossas experiências diretas pode ser posta em palavras de
modo adequado (MAGEE, 2001, p. 86). Talvez não seja demasiado afirmar que o
raciocínio lógico e a análise linguística ainda sejam as ferramentas menos utilizadas
pelos seres humanos. Seu desconhecimento nos impõe gigantescas mazelas. Todavia,
caberá a você caro (a) aluno (a), agora aprendiz de cientista, a identificação das
circunstâncias em que tal análise possa ser-nos útil. Não podemos esquecer que em
algumas ocasiões devemos procurar o modo correto de sentir o problema em questão,
pois se não procurarmos o modo correto de raciocinar, talvez possamos nos decepcionar
com o resultado de nossa busca.

A Lógica e as argumentações sólidas e consistentes podem ser bênçãos em nossas


vidas. Há muito para aprender com elas. Muitos pensadores nos legaram insights
preciosos que nos auxiliam a detectar falhas em nosso processo argumentativo, e ao
identificá-las abrimos a possibilidade de reavaliá-las com vistas à elaboração de
pressupostos existenciais mais adequados às nossas mais profundas convicções.
Entretanto, este livro versa sobre filosofia e ciência, e esses campos do saber não
aceitam dogmatismos de qualquer espécie. Por este motivo tenho me esmerado em

159 
 
 

ajudar você a construir um bonito castelo, mas também tenho me policiado para que você
não se esqueça de que ele é feito de areia:

Toda a argumentação de qualquer natureza, incluindo a demonstração


matemática, tem de começar por algum ponto. Precisa não só ter uma
premissa (ou premissas), mas também uma norma (ou normas) de
procedimento. Ora, essas premissas, bem como essas normas de
procedimento, não podem elas mesmas ser validadas pela
argumentação, porque, se o fossem, a argumentação seria circular –
estaria dando por certo aquilo que pretenderia provar. Isso quer dizer que
toda a argumentação, toda prova, toda demonstração lógica, por mais
rigorosa que seja, deve inevitavelmente pressupor pelo menos uma
premissa e pelo menos uma norma de procedimento para as quais não
forneça nenhuma justificação (MAGGE, 2001, p.188-189).

Contudo, ainda que falha; ainda que limitada; ainda que restrita; a lógica é imprescindível
ao cientista, ao estudante, ao administrador de empresas, ao líder, ao professor etc. É
certo que ela não dará conta de tudo. Nada da conta de tudo. Mesmo assim é uma
competência da qual não podemos nos dar ao luxo de prescindir:

Vale, porém, esclarecer o que o próprio Russell acreditava ser o ponto


principal da análise filosófica. Russell partia do pressuposto de que a
tarefa principal da filosofia era a compreensão do mundo. A seu ver, isso
implicava ter convicções que pudéssemos justificar, o que por sua vez nos
impunha duas necessidades filosóficas: em primeiro lugar, a análise das
nossas convicções mais importantes, de modo a deixar claro para nós
mesmos, bem como para os outros, exatamente o que elas significavam
e acarretavam; e, em segundo lugar, o fornecimento de fundamentos
adequados para mantê-las, o que significava produzir provas
convincentes ou argumentação válida para elas, além da capacidade de
responder com eficácia às críticas contra elas (MAGEE, 2001, p. 80).

Acompanhe abaixo alguns exemplos de grandes argumentos.

Argumento de Parmênides: A refutação da mudança

Premissa 1 – A mudança é real (suposição de reductio*)

160 
 
 

Premissa 2 – Se a mudança é real, então envolve (a) um objeto chegando à


existência ou começando a ter alguma propriedade ou (b) um objeto se tornando
não existente ou deixando de ter alguma propriedade.

Premissa 3 – Se (Premissa 2), então há diferentes tempos, ou seja,


passado/presente/futuro.

Conclusão 1 – Há diferentes tempos, ou seja, passado/presente/futuro (silogismo


hipotético, Premissa 1, 2, 3).

Premissa 4 – Não há diferentes tempos – só o presente existe.

Conclusão 2 – Há diferentes tempos e não há diferentes tempos (conjunção


Conclusão 1, Premissa 4).

Conclusão 3 – A mudança não é real (reductio, Premissa 1, Conclusão 2)


(BARDON, 2013, p.84-85)..

Curiosidade:  

*Nota: Reductio ad absurdun é uma tática indireta utilizada para provar que uma
proposição é verdadeira, assumindo como correta a proposição oposta, ou seja, sua
contradição e depois mostrando que esta induz a uma conclusão que é falsa,
justificando desta forma a proposição original. É importante notar que, para qualquer
proposição, ou essa proposição é verdadeira, ou a sua negação é verdadeira.
 

Argumento de Jean Paul Sartre: a favor da liberdade

Premissa 1 – Para que um dado estado de coisas cause deterministicamente uma


ação humana, a eficácia causal desse estado de coisas teria que derivar
exclusivamente de características desse estado de coisas.

Premissa 2 – Um dado estado de coisas não tem significado em sim mesmo.


161 
 
 

Premissa 3 – Se um dado estado de coisas não tem significado em si mesmo,


então seu significado tem que lhe ser conferido pela pessoa que o experimenta.

Conclusão 1– O significado de um dado estado de coisas tem que lhe ser


conferido pela pessoa que o experimenta.

Premissa 4 – O significado de um estado de coisas é a fonte do seu poder de


motivar (ou causar) a ação.

Premissa 5 – Se o significado de um estado de coisas é a fonte do seu poder de


motivar (ou causar) a ação, então, no caso de uma ação humana, a eficácia causal
do estado de coisas não deriva exclusivamente de características desse estado
de coisas.

Conclusão 2 – No caso de uma ação humana, a eficácia causal do estado de


coisas não deriva exclusivamente de características desse estado de coisas.

Conclusão 3 – Nenhum estado de coisas pode causar deterministicamente uma


ação humana.

Premissa 6 – Nenhum estado de coisas pode causar deterministicamente uma


ação humana, então nossas ações são livres.

Conclusão 4 – Os seres humanos são inescapavelmente livres (GORDON, 2013,


p.165).

Argumento de Aristóteles: a favor da liberdade do perfeccionismo

Premissa 1 – Há um bem supremo para a humanidade, visto em geral como


felicidade..

Premissa 2 – Se um bem é desejado, então esse bem constitui felicidade.

Premissa 3 – A vida virtuosa realiza a função de um ser humano ao atualizar o


pleno potencial dessa pessoa.
162 
 
 

Premissa 4 – Se algum bem realiza a função de um ser humano atualizando o


pleno potencial dessa pessoa, então esse bem é desejado como um fim em si
mesmo.

Conclusão 1– A vida virtuosa é desejada pelos seres humanos como um fim em


si mesma.

Premissa 5 – Se algum bem realiza a função de um ser humano, então é suficiente


para tornar boa a vida da pessoa.

Conclusão 2 – A vida virtuosa é suficiente para tornar boa a vida de um ser


humano.

Conclusão 3 – A vida virtuosa é desejada como um fim em si mesma e é suficiente


para tornar a vida boa.

Conclusão 4 – A vida virtuosa constitui a felicidade, o bem supremo para a


humanidade (SILVERMAN, 2013, p.263).

Argumento de Si Karl Popper: da demarcação

Premissa 1 – Se uma teoria é científica, então faz afirmações ou previsões que


podem ser refutadas.

Premissa 2 – Uma teoria que garante apenas confirmação (e ignora evidências


refutáveis) não pode ser refutada.

Conclusão 1 – Uma teoria que só pode ser confirmada e não refutada não é
científica, mas pseudocientífica. (SWAN, 2013, p.407).

Seja bem vindo (a) amigo (a) estudante. Agora você é um dos nossos. É um (a)
acadêmico (a)!

Para Saber mais: 

Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-marcelloarias.com.br


163 
 
 
 

RESUMO

Nesta unidade estudamos as regras da lógica argumentativa e as condições para que


um argumento seja considerado válido. Versamos sobre o formato padrão de exposição
de ideias, assim como sobre o encargo da prova. Discutimos os critérios de validação de
argumentos: aceitabilidade, relevância, suficiência e refutabilidade. Estudamos um pouco
de história da lógica com ênfase na lógica aristotélica. Definimos o que são falácias
argumentativas concedendo exemplos para cada uma delas. Por último, apontamos
alguns limites do pensamento lógico.

164 
 
 

EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM

1 - Qual o objetivo final de um debate pautado nas regras lógicas da boa da


argumentação?

2 - Quais as regras da lógica argumentativa?

3 - Quando um argumento pode ser considerado válido?

4 - Defina o que vem a ser um argumento.

5 - O que são proposições?

6 - Comente a afirmação abaixo:

Também é possível encontrarmos um argumento logicamente válido, ainda que suas


premissas e suas conclusões sejam totalmente falsas.

7 - O que vem a ser formato padrão quando versamos sobre montagem de argumentos?

8 - Explique o que vem a ser o “encargo da prova”?

9 - Explique o critério da boa argumentação conhecido como aceitabilidade

10 - Explique o critério da boa argumentação conhecido como relevância

11 - Explique o critério da boa argumentação conhecido como relevância

12 - Explique o critério da boa argumentação conhecido como suficiência

13 - Como é possível aprimorar a capacidade argumentativa?

14 - O que vem a ser uma declaração categórica?

165 
 
 

15 - O que vem a ser uma declaração qualificada?

16 - Quais as duas tarefas distintas que engloba a lógica aristotélica?

17 - O que vem a ser o calculus ratiocinator ?

18 - Defina o que vem a ser lógica?

19 - Comente o texto abaixo:

Na verdade, o termo “provar” muito utilizado no senso comum, só tem mesmo sentido em
lógica e em matemática, e mesmo assim, existem restrições.

20 - O que são falácias argumentativas?

21 - Faça uma pesquisa em jornais impressos, revistas, internet e televisão e identifique


ao menos dez falácias argumentativas propagadas por esses veículos de comunicação.

22 - A lógica pode falhar? Caso afirmativo, em quais momentos?

23 - Comente o parágrafo abaixo:

Todavia, mesmo fora do universo científico, quando, por exemplo, estamos á frente de
uma empresa tendo que escolher a ação mais adequada em uma dada circunstância,
buscar argumentos contrários à hipótese escolhida pode ser uma ação necessária para
que se possam evitar prejuízos advindos de uma investigação pobre em termos de lógica.

24 - Comente o parágrafo abaixo:

Popper buscava encontrar o argumento mais forte do seu oponente e o atacava de forma
impiedosa. Porém, sempre que possível Popper aperfeiçoava o argumento de seus
adversários antes de atacá-lo. Para tanto, fazia uso de diversas páginas de exame
preliminar onde procurava extrair fraquezas ou contradições, permitindo assim que a
argumentação do seu oponente ficasse ainda melhor. Somente depois de agir desta
maneira começava a investir com ferocidade contra ele. O resultado era, na maioria das

166 
 
 

ocasiões, devastador. No final, não restava nada da leitores menos atentos e pouco
críticos? argumentação contrária a não ser os créditos e concessões que o próprio
Popper já apontara (MAGEE, 2001, p.135).

25 - O que foi o Círculo de Viena?

26 - De que maneira os livros de autoajuda podem ser perniciosos para leitores menos
atentos e pouco críticos?

167 
 
 

Referencial Bibliográfico

AIUB, M. Para entender Filosofia Clínica: o apaixonante exercício do filosofar. Rio De


janeiro: Wak Editora, 2004.

BRUCE, M & BARBONE, S. (orgs). Os 100 argumentos mais importantes da Filosofia


ocidental. São Paulo: Cultrix, 2013.

DELACAMPAGNE, C. História da filosofia no século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

DOXIADIS, A & PAPADIMITRIOU, C.H. Logicomix: Uma jornada épica em busca da


verdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

GAARDER, J. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. 53ª Reimpressão. São


Paulo: Cia das Letras, 2004.
GORDON, J. O argumento de Sartre a favor da liberdade. In: BRUCE, M & BARBONE,
S. (orgs). Os 100 argumentos mais importantes da Filosofia ocidental. São Paulo:
Cultrix, 2013.

FILHO, J.S. Argumentação: a ferramenta do filosofar. São Paulo: Editora WMF Martins
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MAGEE, B. Confissões de um filósofo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

NAVEGA, S. Pensamento crítico e argumentação sólida: Vença suas batalhas pela


força das palavras. São Paulo: Publicações Intelliwise, 2005.

PACKTER, L. Filosofia Clínica: Propedêutica. Porto Alegre: AGE Editora, 1997.

SEARLE, J. O que é a linguagem: algumas observações preliminares. TSOHATZIDIS,


S.L (org.) A Filosofia da Linguagem de John Searle. São Paulo: Editora UNESP, 2012.

SILVERMAN, E.J. O argumento de Sartre a favor da liberdade. In: BRUCE, M &


BARBONE, S. (orgs). Os 100 argumentos mais importantes da Filosofia ocidental. São
Paulo: Cultrix, 2013.

SWAN, L.S. Sir Karl Popper e o argumento da demarcação. In: BRUCE, M &
BARBONE, S. (orgs). Os 100 argumentos mais importantes da Filosofia ocidental. São
Paulo: Cultrix, 2013.

WOLK, L. Coaching, a arte de soprar brasas. São Paulo: Qualitymark Editora Ltda,
2008.

168 
 
 

UNIDADE IV
Aspectos Básicos da Metodologia da Pesquisa

169 
 
 

MÓDULO 1

Conhecimento Científico e Pesquisa – Uma introdução

Agora que você já foi apresentado à filosofia e à sociologia do campo acadêmico


científico, e que já tem conhecimento sobre a maneira como se deve discutir as ideias no
campo científico, ou seja, obedecendo as regras da lógica argumentativa, podemos
versar sobre as questões de âmbito metodológico que podem ser relevantes para sua
trajetória acadêmica Todavia, caso você anseie adentrar no campo da pesquisa científica
com mais contundência, é imprescindível que você entre em contato com os livros de
metodologia sugeridos em nossas referências bibliográficas, uma vez que o objetivo no
presente momento é simplesmente fazer uma pequena introdução ao tema.

Já afirmamos que dentre as diversas formas de fruir o mundo, e dentre os diversos


campos que interpretam os fenômenos do universo objetivo e subjetivo, é a ciência que
se propõe a descobrir a realidade de modo preciso e sistemático. Sendo assim, o
conhecimento científico intenciona preencher uma lacuna no conhecimento disponível
em uma determinada área do conhecimento. Os objetivos de uma pesquisa científica
podem ser, entre outros: estabelecer a coerência interna entre conceitos no interior de
uma dada teoria; demonstrar a existência ou a ausência de relações entre diferentes
fenômenos; desenvolver novas tecnologias ou mesmo descobrir novos usos para
tecnologias já conhecidas; descrever em detalhes as condições sob as quais um
fenômeno ocorre (LUNA, 2002).

As faces do desenvolvimento de um projeto de pesquisa científica

Fase 1 – Identificação do tema e do problema

Toda e qualquer pesquisa científica deve começar com uma inquietação, um incomodo,
uma dúvida, ou seja, um problema a ser solucionado. E seria bastante interessante que
esse problema produzisse no pesquisador uma grande vontade de solucioná-lo. Esses
problemas que são investigados pelos cientistas habitam o interior de determinadas
170 
 
 

áreas de conhecimento que indicam o tema da pesquisa. São exemplos de tema em


ciências humanas: educação infantil; lógica; filosofia da ciência; filosofia política; etc. São
exemplos de temas em ciências naturais: codificação genética; fisiologia do exercício;
nutrição esportiva; etc. Logo, a primeira coisa que você deve fazer quando intenciona
aprender a pesquisar de maneira científica é reconhecer o seu problema de pesquisa,
lembrando que ele se insere dentro de um tema. Contudo, pense bem amigo (a)
estudante, quase nunca uma pesquisa parte do zero, uma vez que existem milhares de
pessoas espalhadas pelo mundo pesquisando o mesmo tema. Sendo assim, nesta fase
o pesquisador deve principiar o levantamento bibliográfico com vistas a familiarizar-se
com os dados que seus colegas pesquisadores já descobriram previamente. Dos
anteriores saberes, que na ciência são sempre vistos como insuficientes e limitados,
espera-se que nasça o desejo de conhecer mais sobre a questão investigada. A maneira
mais simples de se colocar um problema de pesquisa é por meio de uma interrogação,
uma pergunta. No entanto, é importante frisar que uma questão em si, não é suficiente
para caracterizar um problema. O que caracteriza um problema científico são as
questões cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer (SAVIANI apud
GROPPO; MARTINS, 2007). Groppo e Martins (2007) pontuam alguns processos
básicos para uma boa delimitação do problema de pesquisa:

1 - O problema deve ser formulado como pergunta.

2 - O problema deve estar situado no tempo e no espaço.

3 - O problema deve ser uma pergunta cuja busca da resposta seja viável.

4 - O problema deve manifestar uma dúvida com um mínimo de originalidade.

Já para Laville e Dionne (1999) uma boa pergunta deve ser:

1 - Significativa: ou seja, deve estar a serviço do desenvolvimento progressivo do


conhecimento do tema.

171 
 
 

2 - Clara: uma pergunta de pesquisa deve ser clara. O que você compreende quando
ouve a seguinte pergunta: “Quais serão os efeitos da musculação sobre os idosos?” A
quais efeitos o pesquisador se refere? Estéticos? Efeitos sobre o sistema ósseo?
Cardiovascular? Endócrino? Neural? A quais idosos? Do sexo feminino? Masculino?
Saudáveis? Portadores de necessidades especiais? A qual método da musculação o
pesquisador se refere? Resistência muscular localizada? Hipertrofia?

Veja agora um exemplo bem delimitado:

Quais seriam os efeitos de um programa de hipertrofia muscular - realizado com auxílio


dos aparelhos de musculação -, de três meses de duração, duas vezes por semana, uma
hora por sessão, sobre o sistema cardiorrespiratório de idosos saudáveis do sexo
feminino?
3 - Exequível: é prudente que o pesquisador se assegure de que dispõe dos meios -
tempo, colaboradores, recursos financeiros, instrumental adequado etc - para concretizar
a pesquisa que está sendo proposta. É preciso prever com bastante lucidez as diversas
dificuldades práticas que podem surgir no decorrer da pesquisa.

Fase 2 – Planejamento

O próximo passo é a elaboração do projeto de pesquisa, que se caracteriza como uma


ferramenta imprescindível para o desenvolvimento da pesquisa, uma vez que concede
ao pesquisador uma rota clara que deve ser seguida. Um projeto de pesquisa é composto
pelos seguintes itens: tema; formulação do problema; objetivos; justificativa;
referencial teórico; metodologia; cronograma; referências.

a) Tema: o tema deve ser o primeiro item a ser explicitado no projeto de pesquisa. O
título do projeto, em geral, já apresenta o tema da pesquisa.

b) Formulação do problema ou introdução: a formulação do problema é apresentada


por meio da revisão da literatura pertinente ao tema em questão. É no interior dos
conhecimentos atuais sobre um determinado tema que se encontrarão as lacunas a
serem preenchidas com as próximas pesquisas.

172 
 
 

c) Objetivos: caracterizam-se por aquilo que se pretende com a investigação. Como o


pesquisador não pode preencher todas as lacunas de conhecimento presentes no interior
de um dado tema, precisará delimitar seus objetivos de forma clara e sucinta. Os objetivos
serão mais bem compreendidos se você pensar na resposta que se concede à pergunta:
para que?

d) Justificativa: todo projeto tem sua relevância, e a explicitação dela é função da


justificativa da pesquisa. Nesse item do projeto você defenderá a sua pesquisa,
pontuando por que ela deve ser realizada. A justificativa é mais bem compreendida
quando se pensa na resposta concedida a pergunta: por que?

e) Referencial teórico: caracteriza-se pela apresentação de uma compilação das


pesquisas já realizadas sobre o tema em questão, assim como dos autores que servirão
de suporte nas análises dos dados coletados pela pesquisa - discussão dos resultados.
É importante frisar que o referencial teórico só pode ser feito após o pesquisador ter
realizado um bom levantamento bibliográfico.

f) Metodologia: aqui o pesquisador deve descrever como a sua pesquisa será realizada
definindo o tipo de pesquisa, o campo, os sujeitos e o tipo de abordagem que será
utilizada: qualitativa, quantitativa ou qualiquantitativa.

g) Cronograma: o cronograma servirá como instrumento orientador do tempo estipulado


para cada uma das etapas do desenvolvimento da pesquisa.

h) Referências: devem ser apresentadas as referências utilizadas na elaboração do


projeto, em ordem alfabética, respeitando de maneira rigorosa as normas da
Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT. Disponível no portal da UNIBR.

Fase 3 – Desenvolvimento da pesquisa

Esta fase deve ser iniciada apenas após a conclusão da fase 2 e a aprovação da pesquisa
pelos Comitês de Ética e Pesquisa que analisarão se a metodologia não fere direitos
humanos ou mesmo direitos básicos dos animais, caso a pesquisa envolva a utilização

173 
 
 

deles. Compreende as etapas de coleta, análise dos dados e interpretação das


informações.

a) Coleta: caracteriza-se pelo momento em que o pesquisador colhe os dados por meio
das fontes e técnicas definidas no projeto de pesquisa. Não se pode esquecer que a
coleta deve estar totalmente relacionada ao problema de pesquisa e aos objetivos da
investigação.

b) Análise: após a coleta o pesquisador deverá organizar os dados coletados,


agrupando-os, apresentando-os, descrevendo-os. Existem inúmeras maneiras de fazer
isso, uma vez que existem muitas formas de coletar informações. A forma com que os
dados serão analisados deverá ter sido prevista no projeto e estar relacionada com
o problema e aos objetivos da pesquisa.

c) Interpretação: é nesta etapa que os pesquisadores realmente se diferenciam, pois


aqui, a capacidade crítica é imperativa. A ação de interpretar as informações está
relacionada ao significado que o pesquisador concederá aos seus dados. É aqui
que as possíveis respostas ao problema proposto serão explicitadas.

Fase 4 - Comunicação da pesquisa

Um processo científico só será finalizado quando for feita a comunicação de seus


resultados. Todo conhecimento científico deve tornar-se público para que possa ser
criticado e aproveitado, não somente pela comunidade científica, mas por toda a
população. Há várias maneiras de divulgar o resultado de uma pesquisa. Todavia,
primeiramente ela deverá ser divulgada internamente, dentro do campo científico por
meio de artigos científicos, relatórios, teses de doutoramento, dissertações de mestrado,
monografias etc. Somente em uma segunda etapa os resultados chegarão ao grande
público, por meio das mídias de massa.

Para saber mais:


Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-
marcelloarias.com.br
 

174 
 
 

MÓDULO 2

Levantamento Bibiográfico e Redação Científica

O levantamento bibliográfico ou a revisão da literatura é uma parte de grande


importância para todo e qualquer pesquisador, pois, como vimos, nenhum conhecimento
científico deriva “do nada”, uma vez que tecem relação com as descobertas feitas
anteriormente pelos agentes sociais do campo acadêmico/científico. Isto aponta para o
grande cuidado que todos os pesquisadores devem ter ao citar as fontes originais dos
conhecimentos que embasarão suas pesquisas. Lembrem-se do que foi falado
anteriormente quanto às regras do campo científico. O plágio é crime e não pode ser
tolerado. Portanto, é imperativo que muita atenção seja concedida a esta questão.

Luna (2002) afirma que o levantamento científico está a serviço de vários objetivos.
Vamos acompanhar quais são eles:

a) Determinação do “estado da arte”: objetiva descrever o estado atual de uma dada


área de pesquisa, delimitando o que já se sabe, quais as lacunas existentes, assim como
onde se encontram os principais dilemas metodológicos ou teóricos.

b) Revisão teórica: objetiva delimitar um dado problema de pesquisa dentro de um


quadro de referência teórico que intencione explicá-lo.

c) Revisão de pesquisa empírica: objetiva explicar como o problema em questão vem


sendo abordado, especialmente do ponto de vista metodológico.

d) Revisão histórica: objetiva a recuperação da evolução de um conceito, área, tema


etc ao longo do tempo.

Talvez uma das informações mais importantes que você, caro (a) aluno (a), necessita ter
neste seu momento inicial de flerte com o campo acadêmico/científico, diga respeito aos
lugares onde se deve procurar pelas referências de seu trabalho. Logo, para que
175 
 
 

possamos iniciar nossa conversa é imperativo que você saiba que os dias de busca no
Google findam aqui! Uma pesquisa científica precisa ser muitíssimo mais elaborada e
rebuscada do que uma simples e pouco eficaz visita ao Google. Moroz e Gianfaldoni
(2006) nos concedem algumas dicas sobre onde procurar as obras e publicações que
serão referenciadas por você em seus futuros trabalhos científicos:

Nas bibliotecas físicas, devem-se buscar:

a) Os arquivos das próprias bibliotecas, comumente organizados por autor e assunto,


que relacionam as obras disponíveis naquela biblioteca;

b) Os índices bibliográficos, catálogos ou boletins, anualmente organizados na forma de


sumários por autor e/ou assunto, e que disponibilizam o que foi publicado em revistas e
livros especializados;

c) As dissertações de mestrado e teses de doutorado.

d) Os periódicos científicos especializados em diversos temas e que são publicados


sistematicamente são imprescindíveis, pois o material divulgado é, sem sombra de
dúvidas, o mais atualizado. São milhares e milhares de periódicos científicos distintos e,
na maioria das vezes, o senso comum desconhece inteiramente a existência dessas
publicações por não se tratar de literatura disponibilizada em veículos midiáticos de
massa, e sim destinada aos agentes específicos do campo científico.

Seria bastante prudente que você iniciasse suas primeiras jornadas de busca de tais
periódicos. Para tanto, seguem abaixo algumas indicações de onde obter referências on-
line.

a) Portal de periódicos da Capes: disponibiliza textos completos de diversos periódicos,


tanto brasileiros quanto internacionais; No Brasil o sistema Qualis avalia os periódicos.
Ele pertence a CAPES – Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior,
do Governo Federal. O Qualis dá uma qualificação, ou seja, uma nota, aos periódicos
produzidos no Brasil. Sim! É isso mesmo! Os periódicos têm pesos distintos. Eles não se

176 
 
 

equivalem! Existem periódicos que concedem grande prestígio aos cientistas que
publicam neles – capital simbólico, você se recorda? – e outros bem menos exuberantes.

b) SciELO – Scientific Electronic Library Online: é uma biblioteca em formato


eletrônico e que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos brasileiros.
A SciELO é fruto de um projeto de pesquisa da FAPESP - Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo, juntamente com a BIREME - Centro Latino-Americano
e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde. A partir de 2002, o Projeto conta com
o apoio do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

c) BIREME - O Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da


Saúde, também conhecido por meio da sigla BIREME - de sua denominação original
Biblioteca Regional de Medicina -, é um órgão internacional ligado a Organização Pan-
Americana da Saúde e Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS). Busca
democratizar o acesso à informação, conhecimento e evidências científicas na área da
saúde. Localiza-se na cidade de São Paulo, junto à Universidade Federal de São Paulo
- UNIFESP. A Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) é desenvolvida pela BIREME em
cooperação com outras instituições locais, nacionais e internacionais das áreas da saúde,
e intenciona disponibilizar através de seu portal o acesso a referências bibliográficas em
espanhol, português e inglês. Por meio do portal da BVS pode-se te acesso a
documentos como artigos científicos, teses, monografias, trabalhos de congressos etc. É
possível ter acesso a esses textos a partir do portal da BVS ou mesmo por meio da
solicitação de serviços como fotocópias, quando não disponíveis online.

Outra dica de extrema relevância é a seguinte, atente-se sempre em consultar as


referências citadas nos artigos que você encontrar, assim como nas teses e nos livros
que você estiver pesquisando. Agindo assim você terá facilmente acesso ao
levantamento bibliográfico realizado por outro colega seu para efetuar seu trabalho.
Mesmo quando o tema das teses, artigos e livros não tenha ligação direta com seu objeto
de pesquisa, ainda assim vale a pena consultar as suas referências. A melhor fonte desse
tipo são os artigos de revisão de literatura.

177 
 
 

A redação científica

Na unidade 2 você estudou algumas considerações sobre a lógica argumentativa e sua


relevância para o campo acadêmico/científico, principalmente no que diz respeito à
comunicação de ideias. Todavia, existem ainda mais alguns aspectos que precisam ser
abordados quando versamos sobre a redação de uma pesquisa científica. Os processos
escritos de comunicação são parte integrante do processo de produção da ciência. Os
cientistas precisam escrever, e, apesar de não ser cobrado deles a primorosa escrita de
um Gabriel Garcia Marquez ou de um José Saramago, ainda assim sua escrita precisa
ser boa o suficiente para cumprir com seus objetivos de maneira efetiva. A escrita permite
a liberdade, quer seja de posicionamento no mundo, quer seja de deliberação da própria
vida, caso as pesquisas científicas não fossem devidamente redigidas e publicadas,
seríamos prisioneiros das opiniões propagadas por aqueles que detém o poder
econômico. “Só quando sabemos que podemos confiar na pesquisa de outros somos
capazes de nos libertar daqueles que, controlando nossas crenças, controlariam nossa
vida” (BOOTH; COLOMB; WILLIAMS, 2005, p. 9). Os autores citados agora também nos
concedem suas percepções a respeito de três fatores que relevam a importância da
escrita em uma pesquisa. São eles:

a) Deve-se escrever para lembrar, caso contrário, nossos estudos se perderão na


vastidão da memória.

b) Deve-se escrever para entender, pois ao colocar as ideias no papel elas


gradativamente vão se tornando mais claras.

c) Deve-se escrever para ter perspectiva, pois ao projetarmos nossos pensamentos no


papel, podemos ter a possibilidade de vê-los por meio de diferentes olhares.

Quanto ao estilo do texto científico também podemos Gil (2002) nos pontua algumas
considerações:

a) Busque a impessoalidade evitando referências pessoais como “meu projeto”, “minha


pesquisa”. Opte por expressões como “este projeto”, “a presente pesquisa”, etc.

178 
 
 

b) Persiga a objetividade, evitando desvios desnecessários.

c) Seja claro. Evite ambiguidades. Evite fazer uso de expressões com duplo sentido,
palavras supérfluas, repetições desnecessárias, prolixidade em geral.

d) Busque a precisão, escolhendo palavras e expressões que traduzam com primazia e


exatidão o que se quer transmitir.

e) Persiga a coerência, esmerando-se para apresentar as ideias em uma sequência


lógica e ordenada.

f) Seja conciso e expresse suas ideias com poucas palavras. Frases longas atrapalham
a compreensão e tornam a leitura mais morosa e cansativa.

g) Busque a simplicidade. Ainda que alguns possam crer que simplicidade seja sinônimo
de pouco requinte e sofisticação, esta é uma das qualidades mais difíceis de serem
alcançadas. Aquele que sabe verdadeiramente consegue se expressar de maneira
simples, porém, sem abrir mão do conteúdo requintado e profundo.

Durante todo o processo, e ao final da redação, faça algumas perguntas a você mesmo:
a pergunta formulada está bem clara e compreensível?; Minha pergunta é realmente
original?; Tenho domínio sobre todos os termos que utilizei no texto?; Outros poderiam
ter feito a mesma pergunta de modo diferente?; Esses termos são dominados e
compreendidos por todos ou é necessário algum tipo de esclarecimento adicional?;
(LAVILLE; DIONNE, 1999). Provavelmente você terá dificuldades para responder a essas
perguntas sozinho (a). Sendo assim, participe de grupos de estudo e discussão. Ampare-
se em seus professores. Busque auxílio em seu orientador. Enfim, legitime seu
pertencimento no campo acadêmico/científico e não tenha vergonha de pedir ajuda aos
seus pares. Ao final, todos nós sairemos ganhando.

Para saber mais:


Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-
marcelloarias.com.br
 

179 
 
 

MÓDULO 3

Os Tipos de Pesquisa

Pesquisa

O sujeito que conduz a pesquisa científica e o objeto por ele investigado podem se
relacionar de diversas maneiras, e esta relação faz com que o conhecimento científico -
por mais que o pesquisador se esforce para impedir que isto aconteça -, seja ao mesmo
tempo objetivo e subjetivo. É objetivo pelo fato de envolver um dado objeto de
investigação, e ao mesmo tempo é subjetivo, pois envolve um indivíduo que esquematiza,
planeja, desenvolve, analisa, interpreta e comunica suas descobertas. A relação sujeito-
objeto pode ser interpretada a partir de três diferentes modelos teóricos. Acompanhe o
que nos diz Ghedin e Franco (2008):

Modelo objetivista

Aqui a relação estabelece-se a partir do objeto, pois parte-se do pressuposto que o


pesquisador pode ter uma postura passiva, ou seja, sem nenhuma interferência na
pesquisa. O modelo objetivista parte de alguns princípios norteadores, que não deixam
de ser sistemas de crenças, e ancora-se muito na visão moderna da ciência:

a) A exterioridade da realidade, composta de fatos isolados, ilhados;


b) A busca de relações causais entre os fatos, e de uma neutralidade científica;
c) Abstenção de envolvimentos e compromissos sociais e coletivos;
d) Uma aberta associação entre verdade e comprovação empírica;
e) O pressuposto de que os fenômenos da natureza e os fenômenos sociais são regidos
pelas mesmas leis;

180 
 
 

f) Somente o conhecimento empírico e lógico é considerado conhecimento válido, sendo


o rigor científico aferido por meio de medições. Conhecer é quantificar;
g) A crença de que o todo é composto da somatória de partes e que, basta dividi-lo para
entender que se possa compreender a totalidade (lembre-se de Descartes);
h) O foco na compreensão do funcionamento das coisas em detrimento de sua finalidade;
i) Os fatos sociais são percebidos como desprovidos de movimento, contradição e
historicidade.

Modelo subjetivista

Neste modelo observamos uma inversão total quanto ao modelo objetivista. Parte-se do
pressuposto de que o sujeito tem supremacia sobre o objeto de conhecimento. Sendo
assim, assume-se que a realidade é percebida como criação do sujeito. Segundo Ghedin
e Franco (2008), os princípios norteadores do modelo subjetivista são os seguintes:

a) A supremacia do sujeito sobre o objeto de conhecimento;


b) Valoriza-se mais a subjetividade do pesquisador;
c) O objeto a ser conhecido guarda relação com o que é significativo ao sujeito que o
investiga;
d) O sujeito é o criador da realidade;
e) Abole procedimentos quantificáveis, diferente do modelo objetivista que os privilegia.

Pode-se, entre outras coisas, incorrer nas seguintes falhas:

a) Identificação excessiva do pesquisador com o próprio ambiente de trabalho, sem


manter um distanciamento minimamente necessário do objeto de pesquisa;
b) Falta de estabelecimento de relações e confrontações necessárias com teorias já
existentes;
c) Confundir relatos pessoais com interpretações significativas de um dado contexto
social, como pode acontecer no caso das pesquisas denominadas “história de vida”, por
exemplo.

181 
 
 

Modelo subjetivista

Este modelo supera a dicotomia das duas abordagens anteriores. Sujeito e objeto estão
em ininterrupta e dialética relação, não de maneira determinista, mas como resultado da
intervenção humana na prática. Os princípios desse modelo são:

a) Parte-se do pressuposto de que o homem é um ser social e histórico, intensamente


determinado por seus contextos, criador de sua realidade social e transformador de suas
condições de vida;

b) A realidade empírica é tida como o ponto de partida na construção do conhecimento,


mas não pode ser o ponto de chegada;

c) Não há possibilidade de separação entre o sujeito que conhece e seu objeto de


pesquisa, pois o sujeito também faz parte daquela realidade. Aqui podemos nos lembrar
das críticas que fiz ao meu próprio trabalho de doutoramento na unidade 1, você se
recorda de algumas delas? Que tal revistar a unidade 1?;

d) O processo de conhecimento não se limita à mera descrição de dados estatísticos,


mas intenciona conceder explicações mais profundas sobre tais números, relacionando-
os aos singulares contextos dos quais emanam.

Quão profundo pode ser o estudo científico?

Pesquisa exploratória

A maior característica deste tipo de pesquisa é o fato de ter como principal objetivo a
aquisição de uma maior familiaridade com o objeto de estudo. Na maioria das vezes ela
é realizada quando o pesquisador não encontra na literatura específica, dados suficientes
para formular uma pergunta adequada ao seu projeto de pesquisa. Pense bem amigo (a)
estudante, sabemos muita coisa a respeito de vários assuntos, tais como, distribuição de
renda no país, evasão escolar, cursos universitários mais procurados. Sendo assim, não

182 
 
 

seria pertinente realizar mais estudos exploratórios sobre tais temas. Todavia, investigar
os efeitos bulling digital realizado por intermédio do facebook pode nos trazer
informações preciosas e que ainda não dispomos de forma adequada.

Pesquisa explicativa

Já a pesquisa explicativa tem como objetivo principal analisar e correlacionar aspectos


que envolvem fatos já conhecidos, esmerando-se para explicar os motivos da ocorrência
destes fatos. Sendo assim, na pesquisa exploratória descobrem-se fatos novos e na
explicativa desnudam-se os seus motivos, sendo, portanto, a pesquisa explicativa mais
profunda do que a exploratória.

Pesquisa quantitativa e qualitativa

Podemos abordar os problemas das pesquisas de maneira quantitativa, qualitativa ou


mesmo fazendo uso de uma mistura de abordagens conhecida como modelo
quantiqualitaivo.

Pesquisa quantitativa

A pesquisa do tipo quantitativa é uma das características mais antigas da ciência, pois
como a ciência teve início com a investigação dos fenômenos naturais, quantificá-los,
prevê-los e, posteriormente, dominá-los, era o objetivo de todo e qualquer cientista. Este
tipo de pesquisa afirma que todos os dados podem ser quantificados, até mesmo os de
caráter subjetivo, como opiniões, posicionamentos políticos, pontos de vista etc, pois se
pode traduzir todos esses dados em números, tabelas e gráficos. Busca-se, desta
maneira, uma generalização de caráter indutivo. Quantificar os dados permite a
mensuração das variáveis estabelecidas, explicando, posteriormente, suas mútuas
influências por meio da análise de suas frequências e correlações estatísticas. Assim,
termos como variáveis, desvio padrão, porcentagem, média, probabilidade, moda,
mediana farão parte do seu dia a dia. É isso mesmo amigo (a), se você não entende de
estatística, precisará do auxílio de um profissional da área. Por este motivo, as pesquisas
científicas quase nunca são publicadas com um único autor, pois este precisará do apoio
183 
 
 

e amparo de inúmeros especialistas, todos considerados coautores da referida pesquisa.


Sendo assim, saber trabalhar em grupo, legitimar pontos de vistas diferentes dos seus e
amparar com parcimônia as diferenças são habilidades imprescindíveis ao futuro
cientista.

É bastante comum que no início de sua carreira de cientista você cometa alguns
equívocos, como acreditar que a mera aplicação de um questionário constitui uma
pesquisa, ou mesmo confundir uma simples descrição dos dados encontrados com uma
análise interpretativa parcimoniosa e profunda amparada nos dados já existentes na
literatura. Todavia, tranquilize-se! Você está adentrando agora o campo
acadêmico/científico, e com, um pouco de boa vontade e muito apoio de seus professores
orientadores você poderá aprender a fazer ciência de uma maneira bastante exemplar.

Pesquisa qualitativa

A pesquisa qualitativa é muito utilizada em ciências humanas. Mas como as ciências


humanas surgiram bem depois das ciências naturais, durante muito tempo fizeram uso
das metodologias utilizadas pelos cientistas que investigavam os fenômenos naturais.
Contudo, as ciências humanas têm características distintas das ciências naturais e, ao
ponderar a realidade social como sendo portadora de relações entre sujeitos que estão
inseridos em contextos históricos bastante circunstanciais e singulares, ficou evidente
que os métodos quantitativos não supriam as expectativas dos pesquisadores das
humanidades. Surgiu assim a pesquisa qualitativa, iniciando a utilização de métodos
alternativos aos modelos quantitativos empiricistas oriundos das ciências naturais. Aqui
o pesquisador é um participante ativo que se esforça para compreender e interpretar os
dados, fazendo uso daquilo que chamamos de hermenêutica. Que tal fazer uma
pesquisa na internet sobre este termo?

Na pesquisa qualitativa cada situação é tida como única. Logo, o método indutivo é muito
pouco útil, pois não se busca estabelecer leis gerais e universais e sim compreender um
determinado indivíduo ou grupo dentro de características circunstanciais que são
bastante específicas. Pense, por exemplo, em um pesquisador que se insira por um

184 
 
 

tempo no universo dos usuários da droga crack da Praça da Sé na cidade de São Paulo.
Este é um exemplo de investigação de um grupo social muito específico, que usa termos
específicos em sua fala, que são portadores de jogos de linguagem bastante peculiares
e de comportamentos que só fazem sentido dentro deste contexto singular. A situação
investigada pode tão somente auxiliar na compreensão parcial de casos similares, pois
cada grupo é único em suas qualidades de manifestação.

Em resumo, a análise qualitativa investiga os contextos fluentes das relações entre os


sujeitos investigados - relações intersubjetivas - Os dados coletados não se restringem
ao que aparentemente emana e salta aos olhos do pesquisador, pois estes revelam, ao
pesquisador mais competente, dados ocultos, regras tácitas – lembra-se de Bourdieu? –
e inúmeros “não ditos” de grande relevância e pertinência para a compreensão do objeto
estudado.

Pesquisa “quanqualitativa”

Não podemos esquecer que a ciência e seus métodos não estão prontos. A cada
momento percebemos lacunas e impropriedades em nossas maneiras de investigar o
mundo e a realidade. A pesquisa qualitativa, por exemplo, emergiu de uma visão
dicotômica entre quantidade e qualidade, e esta visão ainda pode ser percebida em
muitos campos de pesquisa. Ainda existem pesquisadores que acreditam que as ciências
naturais são “mais ciência” do que as ciências humanas. A contrapartida também pode
ser percebida com bastante facilidade. Bourdieu novamente nos auxilia nesta
compreensão, pois o campo científico é transpassado por eixos que facilitam o
posicionamento de seus agentes e, um dos eixos é o que separa os pesquisadores
adeptos do método quantitativo daqueles adeptos dos métodos qualitativos. Entretanto,
gradativamente já se reconhece que quantidade e qualidade são propriedades
interdependentes de um mesmo fenômeno, o que, de certa maneira, enfraquece a tensão
que já foi bem maior há alguns anos (GHEDIN & FRANCO, 2008).

185 
 
 

Pesquisa pura versus pesquisa aplicada

Podemos ainda abordar a pesquisa como sendo de natureza pura ou de natureza


aplicada. Este é mais um eixo que transpassa o campo científico. A pesquisa pura,
também chamada de fundamental tem como característica mais marcante a condução
de estudos que estão a serviço de satisfazer a curiosidade intelectual do pesquisador.
Em outras palavras, a pesquisa não está a serviço de nada, “não serve para nada”. A
curiosidade intelectual e investigativa é sua primeira motivação, e a compreensão de um
fenômeno natural particular é seu único objetivo. Sendo assim, suas consequências são
meramente teóricas e conceituais, não tendo nenhuma aplicação social imediata.

Os maiores incentivadores da pesquisa pura são os países desenvolvidos, e isto se deve


a um único motivo: lá dinheiro não é o problema! Pesquisa científica de qualidade é
bastante onerosa em termos financeiros. Sendo assim, é compreensível que países não
desenvolvidos optem pelas pesquisas aplicadas. Contudo, saiba que os resultados
meramente teóricos e conceituais da pesquisa pura de hoje, geralmente tornam-se
aplicáveis no futuro. Por este motivo, os países em desenvolvimento estão sempre atrás
dos países desenvolvidos em termos de ciência e tecnologia, o que os coloca em um
lugar de vulnerabilidade quando o assunto é dependência externa. A pesquisa aplicada,
por sua vez, é uma investigação amparada e motivada pela necessidade concreta de
solucionar problemas imediatos. As consequências desse tipo de pesquisa estão a
serviço dos problemas sociais mais agudos.

Para saber mais:

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186 
 
 

MÓDULO 4

Para finalizar

Como Analisar e Organizar os Dados Obtidos

Uma vez realizada a coleta dos dados, é necessário que o pesquisador organize-os, para
posteriormente efetuar uma boa análise, tornando-os compreensíveis para si mesmo e
para todos os leitores que venham a se interessar por seu assunto. Para tanto é
imperativo explicar adequadamente seus achados, pois é neste momento que os bons
pesquisadores diferenciam-se dos medianos, uma vez que a capacidade crítica do
pesquisador fica evidente na forma como discute seus dados.

Depois da organização e discussão dos resultados é preciso deixar claro quais são as
conclusões da pesquisa. Na maioria das vezes elas devem ser sucintas. Partindo-se dos
objetivos que foram elencados no início da pesquisa é possível conceder um significado
aos resultados que emergem dos dados, discutindo a pertinência deles, suas
implicações, quer sejam de caráter científico puro ou sociais aplicadas, e se as
conclusões corroboram ou não os estudos anteriores que serviram de referência no início
da investigação (MOROZ; GIANFALDONI, 2006).

Como dito acima, esta etapa diz muito sobre a capacidade crítica do pesquisador, uma
vez que nela o pesquisador dialoga com os resultados encontrados, esforçando-se para
responder a todas as dúvidas explicitadas nos parágrafos anteriores de seu texto
científico. Como não poderia deixar de ser, é neste momento que a subjetividade do
pesquisador se mostra com mais contundência, uma vez que ele estará indo além de
seus dados, estabelecendo relações com toda a bibliografia do campo escolhido,
identificando áreas de convergência e possíveis lacunas a serem preenchidas em futuras
pesquisas.

187 
 
 

A comunicação da pesquisa

Como já foi falado aqui, a pesquisa científica precisará ser transformada em um texto
sucinto, claro, compreensível e objetivo. Os textos científicos formais podem ser
produzidos em diversos formatos, e dependendo da situação serão escritos na forma de
artigo, relatório, projeto de pesquisa, monografia de conclusão de curso superior,
dissertação de mestrado, tese de doutorado etc. A escolha do formato dependerá da
situação na qual o pesquisador se encontre.

É importante lembrar que escrever para os outros é sempre mais desafiador do que
escrever para si mesmo. Logo, enquanto se escreve é pertinente imaginar quais são as
necessidades e expectativas daqueles que entrarão em contato com seu texto científico.
Lembre-se que você adentrará um campo social específico, e nele existem algumas
normas que devem ser respeitadas. Para fazer parte do campo científico você terá que
obedecê-las.

Outro ponto importante e que deve ser lembrado é o fato de que, ao publicar a sua
pesquisa, o pesquisador deixa automaticamente de ser o “dono” de suas descobertas,
uma vez que, como o próprio nome diz, a publicação as torna públicas, incorporando-as
no vastíssimo espaço de conhecimento desenvolvido pelos agentes sociais que compõe
a comunidade científica. Logo, a comunicação é etapa final de um processo de pesquisa,
e todo o pesquisador deve, para respeitar seus colegas, coautores, professores,
orientadores e órgãos financiadores de sua pesquisa, cumprir com esta obrigação. Ainda
será cobrado do pesquisador sua participação em encontros científicos, seminários,
congressos, simpósios e debates acadêmicos. Mas caberá ao autor da pesquisa decidir
se sua comunicação terminará nos limites do campo científico ou se ele se esforçará para
expandir esses limites acadêmico-científicos, divulgando-a nos veículos midiáticos de
massa, o que concederá à referida pesquisa uma abrangência social ainda maior.

Chegamos ao final de nossa jornada que objetivou apresentar as bases históricas,


filosóficas, sociológicas e metodológicas da pesquisa científica. O assunto, como você
pôde observar, é extenso e bastante profundo, e ainda que eu tenha me esmerado para
apresentar os aspectos que julgo mais importantes para uma compreensão inicial do
assunto, muitos tópicos ficaram de fora, de modo que seria muito relevante que você, a
188 
 
 

partir de agora, caminhasse de maneira autodidata, realizando pesquisas, efetuando


leituras, formando grupos de estudo e procurando estabelecer contatos mais próximos
com os professores com quem você tem maior afinidade.

Uma última dica pode auxiliá-lo um pouco mais nessa sua jornada inicial pelo campo
acadêmico/científico. Existe uma plataforma disponível na internet conhecida como
Plataforma Lattes. Nela você encontrará o currículo de todos os professores e cientistas
brasileiros. Vale à pena navegar um pouco por lá, pois esta plataforma colocará você em
contato com a trajetória profissional de todos os professores que ministrarão aulas para
você aqui na UNIBR, assim como com um número muito significativo de pesquisadores
brasileiros que tem ajudado a fomentar o conhecimento, a ciência e a tecnologia em
nosso país. Seja bem vindo ao campo acadêmico/científico! Seja bem vindo à UNIBR!
Desfrute desta maravilhosa etapa de sua vida e, parabéns! Agora você é um acadêmico!

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RESUMO

Nesta unidade estudamos as fases do desenvolvimento de um projeto científico: tema;


formulação do problema; objetivos; justificativa; referencial teórico; metodologia;
cronograma; referências. Versamos sobre ética e investigação científica, assim como as
fases da pesquisa científica propriamente dita. Discutimos a pertinência do levantamento
bibliográfico, os desafios da redação científica e os principais tipos de pesquisa científica
existentes.

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EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM

1 - Quais são as fases do desenvolvimento de uma pesquisa científica?

2 - O que você entende por identificação do tema e do problema?

3 - O que caracteriza um problema científico? Segundo Groppo e Martins (2007), quais


seriam os processos básicos para uma boa delimitação do problema de pesquisa?

4 - Uma boa pergunta deve conter quais critérios?

5 - Um projeto de pesquisa deve ser composto por quais itens?

6 - Quais são as principais funções de um Comitê de Ética e Pesquisa?

7 - Quais as etapas de uma boa pesquisa científica?

8 - Para que serve a realização de um bom levantamento bibliográfico antes do início da


pesquisa científica?

9 - O que vem a ser o Portal de periódicos da Capes?

10 - O que vem a ser o SciELO?

11 - O que vem a ser a BIREME?

12 - Verse sobre o modelo objetivista de pesquisa cientifica.

13 - Verse sobre o modelo subjetivista de pesquisa cientifica.

14 - Verse sobre o modelo dialético de pesquisa cientifica.

15 - O que vem a ser uma pesquisa exploratória?

16 - O que vem a ser uma pesquisa explicativa?

17 - O que vem a ser uma pesquisa pura?

18 - O que vem a ser uma pesquisa aplicada?

19 - O que vem a ser uma pesquisa quantitativa?

20 - O que vem a ser uma pesquisa qualitativa?

21 - O que vem a ser uma pesquisa qualiquantitativa?

191 
 
 

22 - O que vem a ser a Plataforma Lattes?

192 
 
 

Referencial Bibliográfico

BOOTH, W.C.; COLOMB, G.G.; WILLIAMS, J.M. A arte da pesquisa. 2a Edição. São
Paulo: Martins Fontes, 2005.

GHEDIN, E & FRANCO, M.A.S. Questões de método na construção da pesquisa em


educação. São Paulo: Cortez, 2008.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4a Edição. São Paulo: Atlas,
2002.
GROPPO, L.A & MARTINS, M.F. Introdução à pesquisa em educação. 2a Edição.
Piracicaba: Biscalchin Editor, 2007.
LAVILLE, C & DIONNE, J. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa
em ciências humanas. Porto Alegre: Artes Médicas Sul; Belo Horizonte: Editora UFMG,
1999.

LUNA, S.V. Planejamento de pesquisa: uma introdução. São Paulo: EDUC, 2002.
MOROZ, M & GIANFALDONI, M.H.T.A. O processo de pesquisa: iniciação. 2a Edição.
Brasília: Líber Livro, 2006.

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