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Diocese de Guaxupé.

Curso de Iniciação Teológica.


Módulo: III.
Disciplina: Cristologia.
Assessor: Pe. Henrique Neveston Silva1.
Carga Horária: 18h/a
Janeiro de 2010.

Ementa: o estudo pretende oferecer uma visão geral


do Jesus histórico ao Cristo da fé, abordando o mundo e o
ambiente de Jesus, sua pregação, sua vida pública, bem
como a Paixão e Morte, nos aspectos históricos e
teológicos; a Ressurreição; a singularidade da Pessoa e da
causa de Jesus.

Introdução Geral.
O texto que se segue está dividido em duas grandes
partes, a saber:
1ª Parte: A vida de Jesus e 2ª Parte: A Morte e
Ressurreição de Jesus. A divisão, contudo, é meramente

1
hneveston@yahoo.com.br . Pároco da Matriz Nossa Senhora da Assunção de Cabo Verde - MG.
didática, pois vida, morte e ressurreição se interpenetram e
se esclarecem mutuamente.
Entretanto, a primeira parte é resumo da obra Sempre
Jesus2 acrescido de reflexões pessoais a partir de estudo
teórico e da experiência pastoral de mais de uma década.
Para maior clareza e compreensão, iremos seguir o esquema
básico oferecido pelo próprio Pe. J. B. Libanio.
A segunda parte é resumo esquemático da obra do Pe.
FERRARO, que entendemos uma argumentação bastante
atual e com desdobramentos pastorais muito sugestivos.
O desfecho do presente estudo levanta alguns
questionamentos oportunos e, um deles, já será levantado
aqui: A morte de Jesus foi vista pelos dirigentes “piedosos”
como um sacrifício necessário, exigido pela Lei. Hoje, o
Mercado continua exigindo sacrifícios através da morte de
crianças de rua, sem terra, sem teto, índios, afirmando a
necessidade de se purificar a cidade. O que há em comum
nestas mortes?

2
LIBANIO, João Batista. Sempre Jesus. A caminho do Novo Milênio. São Paulo: Paulinas, 1998.
2
1ª. Parte – A Vida de Jesus.

1. Jesus e a História.

As celebridades, as genialidades, em qualquer campo


que seja, atraem os estudiosos. Temos, por exemplo,
aqueles que atraíram estudiosos por causa de suas idéias
filosóficas: PLATÃO, ARISTÓTELES, SANTO TOMÁS
de AQUINO, HEGEL e outros. Outros por causa de suas
qualidades artísticas (música, pintura, arquitetura): BACH,
BETHOVEN, LEONARDO da VINCI e outros. Outros
pelos dons espirituais e religiosos: fundadores de grandes
religiões. O cristianismo, sendo a maior religião mundial,
não faz exceção.
Milhões e milhões de pessoas dedicaram e dedicam sua
vida a estudar, em profundidade, a vida de JESUS, quer na
linha do conhecimento, quer em busca de seguimento mais
3
próximo e fiel. E a primeira pergunta que se levanta
imediatamente, gira em torno das fontes históricas da vida
de Jesus.

a)A tranqüila historicidade da vida de Jesus.


Num primeiro momento creu-se que tanto os escritores
sagrados (PAULO) quanto os escritores judeus (FLÁVIO
JOSEFO) ou como escritores romanos (TÁCITO) trataram
a vida de Jesus da mesma maneira histórica. O fato é que a
gigantesca desproporção informativa entre os livros
sagrados e os outros fez com que praticamente não se desse
importância a não ser aos autores sagrados.
Considerava-se a natureza histórica dos escritos do
Primeiro Testamento igual à da historiografia profana. A
Teologia Fundamental Tradicional procurava provar que os
quatro evangelhos eram íntegros, históricos, autênticos,
fidedignos, verazes, ao relatarem os fatos exatamente como
aconteceram. Daí surgiram muitas “vidas de Jesus”. Os
autores conciliavam as contradições dos próprios
evangelistas por meio de malabarismos interpretativos. Por
exemplo, o Sermão das Bem-Aventuranças: segundo
4
Mateus foi feito numa montanha e segundo Lucas foi feito
numa planície. Para resolver o impasse foi afirmado que
havia dois sermões. Esta e outras contradições, contudo,
não abalaram a convicção de que o leitor se defrontava com
relatos históricos descritivos da vida de Jesus.

b)A crise da historicidade dos Evangelhos.


As certezas, aparentemente inabaláveis, não resistiram
aos impactos da Modernidade. Já no século XVIII, o
humanismo e o racionalismo se aproximavam dos
evangelhos – não mais como relatos intocáveis, ditados por
Deus – mas como documentos históricos da antiguidade,
sujeitos às leis da historiografia e da linguagem. Aplicavam
a eles os métodos da pesquisa literária, verificando neles
um evoluir das tradições, das formas literárias e da própria
redação do livro.
Antes que os evangelhos fossem livros, foram
pregações. Criaram-se, então, tradições orais, Testemunhas
oculares da vida de Jesus, imediatamente depois da sua
morte e Ressurreição, sobretudo no círculo dos apóstolos e
discípulos, constituíram-se, de certa maneira, os guardiães
5
dessas tradições. Já bem cedo, em vista do anúncio de
Jesus, foram sendo traduzidas em grego.
Ao mesmo tempo que se fazia a transmissão oral,
outros membros da comunidade primitiva escreviam-nas.
Logo se organizaram pequenas coleções de narrações de
milagres, de relatos da paixão e das aparições, de parábolas,
de sermões, de palavras de Jesus. A mais famosa coleção de
ditos de Jesus, provavelmente feita em aramaico, se
constituiu fonte para os futuros evangelhos. Por isso, esta
coleção é chamada de Q, abreviatura da palavra alemã
“Quelle”, que significa fonte.
Estas coleções teciam pequenas peças literárias que
nasceram em diferentes contextos de vida. O conhecimento
dessas “formas literárias” primeiras, que depois serão
reestruturadas no conjunto dos evangelhos pelos redatores
finais, facilita muito entender-lhes o sentido. É a partir daí
que a narração aparentemente descritiva da vida de Jesus é
interpretada de maneira mais coerente.
Antes de tudo, os evangelhos, como um todo,
pertencem a um gênero literário diferente da mera narração
biográfica. São “proclamação de uma Boa Nova” – eu +
6
aggelion. Expressam a fé dos discípulos de Cristo e da
Comunidade Primitiva que foi se criando em seguida à sua
pregação. São anúncio da ação salvadora de Deus em Jesus
Cristo para toda a humanidade.
Dentro desse gênero literário maior, os ditos e atos de
Jesus, por sua vez, refletem diferentes momentos da sua
vida. São tecidos depois em textos maiores até formar o
conjunto dos evangelhos. Uns são ditos proféticos
referentes à salvação como em Lc 12,32: “Não temas,
pequeno rebanho, pois foi do agrado do vosso Pai dar-vos o
Reino”. Outros são mais sapienciais, especialmente em
forma de provérbio: Mc 6,4: “Um profeta só é desprezado
em sua pátria, entre os seus parentes e em sua casa”. Outros
revelam coloração jurídica: Mt 7,6: “Não deis aos cães o
que é sagrado, não atireis vossas pérolas aos porcos, não
aconteça que eles as calquem aos pés e, virando-se, vos
estraçalhem”. Ora Jesus usa comparações, por exemplo, em
forma de paradoxo (contradição): Mc 10,25: “É mais fácil
um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um
rico entrar no Reino de Deus”. Em alguns outros
momentos, algumas narrações se fazem a modo de
7
paradigma (modelo). Não interessa descrever um
acontecimento, mas propô-lo como exemplo a título de
lição espiritual. Espécie de estilo edificante. Portanto, o
leitor não se encontra diante de fatos acontecidos. Ou
mesmo se acontecidos, não narrados nos seus pormenores
históricos, mas com as cores de um exemplo contado numa
pregação. É o caso da cura do paralítico em Mc 2,1-12. Os
dados históricos são vagos. Interessa ilustrar a questão da fé
e do perdão dos pecados. Além do mais, os redatores dos
evangelhos não se preocuparam com o percurso histórico
da vida de Jesus, mas organizaram seus relatos em torno de
temas comuns, de palavras-chave, de uma visão teológica
central. Assim, Mateus estrutura a vida de Jesus em torno
de grandes sermões. Marcos vê na vida de Jesus o caminho
da fé do discípulo. Lucas considera Jesus o peregrino para
Jerusalém e em volta dessa grande viagem dispõe os outros
relatos. E João, mais teólogo ainda, apresenta-nos um Jesus
à luz da Transcendência do Ressuscitado, do pré-existente.
A partir daí se vê que os evangelhos são uma fonte
histórica da vida de Jesus de modo diferente da nossa atual
concepção de história. Numa palavra, foram escritos dentro
8
da estrutura teológica de cada evangelista para proclamar a
fé em Jesus Cristo salvador de Deus e chamar-nos a seu
seguimento. Daí a pergunta: fora do contexto da fé da Igreja
Primitiva haverá alguns documentos que confirmem, pelo
menos, alguns dados históricos da vida de Jesus?
Certamente que sim. É dado inconcusso da historiografia
profana que Jesus tenha realmente existido, morrido na cruz
sob PÔNCIO PILATOS. Entretanto, vale insistir que nossa
fé não se funda nesses documentos, mas na aceitação da
pregação do testemunho da Igreja primitiva. E esta nos é
possibilitada, em última análise, pela própria presença de
Cristo glorificado que, com sua graça, nos atrai a si.

c) A historicidade profana.
Jesus nasce em pleno apogeu do Império Romano.
Seus tentáculos alcançaram os extremos da Europa e
chegaram aos rincões perdidos da Palestina. Na cultura
romana, a história nutria duas preocupações fundamentais.
Registrar a vida dos “varões ilustres” e oferecer às gerações
futuras modelos de vida. A história era concebida como

9
uma grande pedagoga, “mestra da vida”, na expressão de
Cícero.
Que varão foi mais significativo para a história da
humanidade que Jesus Cristo? Dividiu-a em duas grandes
eras. Antes e depois de seu nascimento. Que vida mais
maravilhosa para servir de exemplo para as gerações
futuras?
No entanto, à historiografia romana passaram quase
totalmente despercebidos o nascimento e a vida de Jesus
nos territórios do Império. Em nenhum anal da história
profana romana registra-se diretamente o nascimento de
Jesus. Em vão se compulsa o elenco dos “varões ilustres” e
se pergunta à história-pedagoga por Jesus Cristo. O silêncio
das fontes judaicas sobre Jesus é ainda mais
impressionante. Que o Império não se preocupe com uma
colônia periférica, entende-se. Mas que os judeus não se
refiram a Jesus, surpreende-nos. Acostumados a ler os
evangelhos, teríamos a impressão de que a passagem de
Jesus produziu gigantesco abalo no mundo judaico. E que
os historiadores da época deveriam ter dado enorme espaço
a esse personagem singular, posto fosse para rejeitá-lo.
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d)A historicidade no mundo judaico.
O historiador judeu JOSÉ BEN MATHIAS, conhecido
pelo nome de FLÁVIO JOSEFO, viveu na nossa era entre
os anos 37/38 e 100, coincidindo com o período do início
do movimento de Jesus. Deixou-nos duas grandes obras:
Guerra dos judeus contra os romanos e Antigüidades
judaicas.
Este historiador segue também o espírito da
historiografia clássica, ao louvar a virtude, estigmatizar o
vício e desde sua fé judaica louvar a Deus.
Em algumas de suas versões, essas obras de FLÁVIO
JOSEFO mencionam a Jesus. A passagem mais explícita
aparece na versão eslavônia da Guerra dos judeus contra
os romanos. Contudo, há consenso hoje entre os
historiadores de que foi a mão de um cristão que interpolou
o trecho referente a Cristo. Por isso não vamos considerá-la.
As outras se encontram em As Antigüidades judaicas.
Numa passagem, menos discutida, FLÁVIO JOSEFO
refere-se à condenação de Tiago, irmão de Jesus,
cognominado o Cristo. Não deixa de ser intrigante para nós
11
que FLÁVIO JOSEFO somente fale de Jesus ao tratar
diretamente do sumo sacerdote Ananias que condena à
morte alguns inimigos seus, entre eles Tiago. Jesus entra
duplamente de passagem. No centro, está o impiedoso
saduceu Ananias no meio de uma trama política. Em
segundo lugar entra Tiago, condenado ilegalmente. E
finalmente e só indiretamente para especificar um nome
muito comum, como Tiago (Jacó), ele menciona o irmão
mais conhecido dele, isto é, Jesus.
Em outro texto, JOSEFO faz nova menção de Jesus.
Chama-o de homem sábio e autor de feitos surpreendentes.
Mestre que teve seguidores entre judeus e pessoas de
origem grega. Pilatos condenou-o à morte de cruz à base de
acusações de homens proeminentes. Mas Jesus continuou
sendo amado e uma tribo de cristãos, cujo nome se deve a
ele, não desapareceu. Esse núcleo parece remontar
autenticamente a Josefo, embora o texto completo tenha
interpolações de cristãos.
Essas passagens de FLÁVIO JOSEFO garantem-nos de
uma fonte não cristã a existência de Jesus, algo de sua

12
missão, da sua morte na cruz e do seguimento dos
discípulos.
O testemunho de JOSEFO é tanto mais importante
quanto na ampla e rica literatura religiosa judaica não se
encontra nenhuma menção direta sobre Jesus. A descoberta
dos documentos da seita de Qumran tinha aberto uma
esperança de encontrar conexões com a tradição cristã. Mas
nada. Eles não mencionam Jesus, embora ofereçam muitos
elementos para conhecer o contexto da vida de Jesus.
As fontes rabínicas mais antigas não se ocupam do
Jesus histórico. Textos mais tardios revelam antes reações
diante do Cristo proclamado pelo cristianismo que do Jesus
de Nazaré. Trata-se, portanto, de referência indireta. O
máximo que esta literatura judaica pode oferecer é uma
confirmação da existência de Jesus.

e) A historicidade no mundo pagão.


O historiador romano TÁCITO (56/57 a 118 d.C.)
cobre a história de Roma entre os anos 14 e 68 em seus
Anais. Em princípio tocaria os anos da vida pública e morte
de Jesus. Mas infelizmente perderam-se partes da obra,
13
deixando lacuna entre os anos 29 e 32, quando
provavelmente Jesus teria morrido.
Ao falar do grande incêndio de Roma no tempo de
NERO, menciona que o imperador escolhera os cristãos
como bodes expiatórios para evitar a suspeita levantada
pelo povo de que ele mesmo provocara o incêndio. E ao
referir-se aos cristãos, chama-os um grupo odiado por seus
crimes abomináveis. Faz o nome derivar de Cristo que,
durante o reinado de TIBÉRIO, tinha sido executado pelo
procurador PÔNCIO PILATOS. E esse movimento, que
tinha sido sufocado, irrompeu novamente não só na Judéia,
onde nascera, mas também em Roma. Cidade tolerante em
relação às diversas práticas horrendas e infames de todas as
partes do mundo.
É uma passagem considerada genuína pelos
historiadores. A própria atitude hostil e difamante em
relação aos cristãos abona sua autenticidade, já que não tem
sentido de ser interpolação cristã. De novo, a alusão se faz
diretamente por causa dos cristãos e não de Jesus mesmo.
Mas mesmo assim dados históricos sobre ele, fixando-lhe a
morte no tempo do imperador TIBÉRIO e do procônsul
14
PÔNCIO PILATOS, confirmando a narração dos
evangelhos.
Sem nenhuma novidade em relação ao testemunho de
FLÁVIO JOSEFO, é, no entanto, outra fonte primitiva não-
cristã da existência histórica de Jesus. Estabelece-lhe um
marco geográfico e histórico. Cita diretamente sua morte.
Constata a continuidade do movimento de Jesus, que ele
imagina ter já sido desencadeado antes de sua morte.
Outros historiadores romanos como SUETÔNIO,
PLÍNIO, o Jovem e LUCIANO também mencionam os
cristãos. SUETÔNIO refere-se à expulsão de judeus de
Roma por parte do imperador CLÁUDIO por causa de
distúrbios que causavam por instigação de “CRESTO”, que
certamente se tratava da pessoa de CRISTO. De novo,
temos no centro da referência os cristãos e só
indiretamente, Cristo. PLÍNIO, o Jovem, por sua vez, relata
o modo de o imperador TRAJANO comportar-se com os
cristãos. Ao falar dos cristãos, alude a suas práticas de
entoar cânticos a “Cristo como a um deus”. E LUCIANO
no relato ridicularizante da vida de um convertido ao
cristianismo e depois apóstata, alude ao fato de cristãos
15
cultuarem como a um deus alguém que foi crucificado na
Palestina.

f) Evangelhos Apócrifos.
Tem-se escrito muito sobre eles. Certos dados curiosos
sobre a história de Jesus, que se lançam na grande
imprensa, não raro são hauridos desta fonte. Mas para nosso
conhecimento de Jesus sua contribuição não é confiável, já
que a própria Igreja primitiva não os aceitou por causa de
sua forma exagerada e fantasiosa. E toda vez que uma
literatura se entrega à imaginação, às vezes desvairada, em
vez de ajudar o conhecimento da realidade, termina por
deturpá-lo.

g)Sentido profundo do silêncio da história profana


sobre Jesus.
Esse quase total silêncio da história profana sobre Jesus
tem duas facetas. A primeira, perigosa, deixa enorme
espaço para fantasias. Assim, ultimamente revistas como
Time, Veja, Galileu e outras têm publicado reportagens
sobre Jesus Cristo. Lá se lê que Jesus foi à Índia e aprendeu
16
muito da sabedoria oriental. Outros negam que tenha sido
crucificado, mas apedrejado. Outros insistem em ter
descoberto o corpo de Jesus. E assim somos surpreendidos
pelas informações mais contraditórias.
A segunda faceta aborda um sentido muito mais
profundo em todo o mistério de Jesus. Antes de tudo, nosso
maior acesso a ele se faz realmente pela fé no caminho do
seguimento. Jesus não é um objeto qualquer da história. Ele
é o Senhor da história que se deixa entender à medida que
nosso coração mergulha na sua vida de relação pessoal.
Da parte de Deus, há outra maravilha. Quer mostrar-
nos que o caminho escolhido pelo Filho e por ele não é o do
triunfo, da exibição, do impacto pelas grandezas mundanas,
mas do escondimento do silêncio, da entrega, do amor. Um
bom caminho para conhecer mais o mistério de Jesus Cristo
é passar pelo escondimento até chegar à luz fulgurante da
Ressurreição.

2. O nascimento e a infância de Jesus.

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A originalidade histórica de Jesus manifesta-se já desde
o seu nascimento. Em muitas situações humanas de guerra,
de repressão militar, de desaparecimentos, de migração,
sabemos do nascimento, mas ignoramos o fato da morte. É
o caso de tantos migrantes nordestinos que partem para São
Paulo deixando suas esposas, sem nunca mais darem
notícias. Estarão vivos? Já morreram? Sabe-se que
nasceram, mas não do seu destino último.
Com Jesus deu-se o contrário. O fato mais bem
atestado de que não se tem nenhuma dúvida é o de sua
morte na cruz sob o procurador romano Pôncio Pilatos.
Já, porém, sobre seu nascimento pairam incertezas
quanto à data, ao lugar, às circunstâncias. Evidentemente, o
fato não pode ser questionado, uma vez que só morre quem
nasceu. O contrário até seria pensável. Nascer e não morrer.
Esta é a lenda que nos conta a Escritura a respeito de Elias,
que partiu para o céu num carro de fogo. Sobre Nossa
Senhora há piedosa tradição de que teria dormido e sido
levada aos céus pelos anjos, sem passar pela morte.
Na interpretação tradicional não se duvidava nem da
data, nem do lugar, nem das circunstâncias do nascimento
18
de Jesus. Qualquer criança do “catecismo” responderia que
Jesus nasceu no dia 25 de dezembro do início da nossa era,
numa gruta em Belém da Judéia, de Maria Virgem.

a)O marco maior de interpretação das narrações da


infância.
Os evangelhos da infância na seqüência normal dos
acontecimentos se iniciam no trajeto da vida humana de
Jesus. As biografias começam por aí. Os escritores
investigam os inícios de uma vida para ir conduzindo-a até
a morte e suas influências posteriores. Numa perspectiva
científica, tanto a infância quanto as demais narrativas da
vida gozam da mesma garantia de autenticidade e
historicidade.
De novo, no caso de Jesus temos uma inversão e outro
traço de sua originalidade única. Tudo começa do fim. A
primeira experiência que funda o início de toda a narrativa
de Jesus resume-se nesta frase: “Jesus de Nazaré, o
crucificado: ele ressuscitou” (Mc 16,6).
Depois, o interesse pela vida de Jesus se alarga para
além da paixão do Ressuscitado, como aparece na escolha
19
de Matias, substituto de Judas, no colégio dos Doze.
Querem alguém que conviveu com Jesus e com os
Apóstolos durante todo o tempo que o Senhor Jesus
caminhou entre nós, “a começar pelo batismo de João até o
dia em que ele nos foi arrebatado” (At 1,22). É o percurso
que o evangelho de Marcos nos relata.
Mais tarde, a reflexão cristã sobre Jesus dá um salto
gigantesco. Pergunta-se por sua última origem e ser. Paulo e
João, numa retrospectiva da Salvação, ultrapassam o limite
da historicidade de Jesus para projetar-se no mistério da
preexistência (cf. Fl 2,6-11; Jo 1,1-18).
A vida pública de Jesus, terminada na morte e
ressurreição, e a preexistência deixaram em descoberto,
como se vê, os longos anos da infância e vida oculta de
Cristo. Lc 1,1-4 revela-nos o interesse da comunidade de
compor uma narração ordenada e aí inclui o evangelho da
infância.
Como coroa do evangelho, estas narrações visam a
mostrar que o Menino de Belém e o adolescente e jovem de
Nazaré é o Salvador, porque desde o nascimento, como

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desde sempre, ele é o Deus vivo! Tais narrativas desvelam a
identidade de Jesus à luz do evento pascal.

b)Aspectos literários.
Os estudos literários dos textos de Lucas e Mateus
sobre o nascimento de Jesus foram revelando-nos facetas
até então não percebidas. Um texto só pode ser entendido a
partir do gênero literário em que foi escrito. Destarte,
procurou-se esclarecer a natureza dos textos sobre a
infância no mundo bíblico. Jesus não é o único personagem
sobre o qual as escrituras do Primeiro e Segundo
Testamento relatam fatos do início da vida. Aí estão Isaac,
Jacó, Moisés, Sansão, Samuel, João Batista. Em geral, elas
restringem-se à concepção, ao nascimento, à imposição do
nome e à rápida alusão ao crescimento da criança.
Raramente aludem a algum outro fato.
Os relatos da infância pertencem ao gênero de escritos
narrativos MIDRASHIN HAGADÁ. Eles são tecidos com
textos bíblicos (do Primeiro Testamento) que visam antes a
ensinar que a contar como os eventos aconteceram de fato,
embora se apóiem em alguns fatos históricos. Os
21
evangelistas tinham conhecimento de midrashin hagadá em
torno da pessoa de Moisés. E ninguém melhor do que ele,
personagem central da história do povo escolhido, para
oferecer elementos para confeccionar os evangelhos da
infância de Jesus. Nestes textos sobre Moisés, fala-se de um
sonho do faraó que antevê a futura missão da criança que
vai nascer. Para evitar seu nascimento, ele decreta o
massacre das crianças hebraicas, usando recurso
imaginativo. Os soldados egípcios percorriam as ruas
levando com eles uma criancinha egípcia que faziam gritar,
de modo que os meninos israelitas ouvindo os gritos,
também gritavam e assim podiam ser descobertos. O parto
de Moisés foi tão sem dor que as parteiras egípcias não
ficaram sabendo.
Evidentemente Mateus não copiou sem mais esses
textos sobre Moisés. Eles nos ajudam a compreender a
mentalidade com que se escrevia então. Podem-se
literariamente perceber os contatos entre esta tradição
haggádica e as narrativas evangélicas: os sonhos, o anúncio
do anjo, o nome e a missão do Salvador, a presença dos
magos, a estrela, as perseguições dos inocentes.
22
Há uma diferença entre o uso dos midrashin pelos
judeus e pelos cristãos. Os judeus usavam os midrashin
para entender melhor o texto bíblico sagrado; este era o
ponto de referência. Os cristãos fizeram o contrário: no
centro não está o texto bíblico, mas JESUS
RESSUSCITADO, para cuja intelecção se usam os
midrashin. O texto da Escritura serve à intelecção do
mistério de Cristo, crucificado e ressuscitado.

c) Nome de Jesus.
Na tradição bíblica, a imposição do nome goza de
enorme relevância. Além de servir para designar a pessoa,
revela a vocação e missão que ela vai desenvolver. No caso
de Jesus, o Primeiro Testamento atribui-lhe importância
máxima, como uma antecipação de toda missão de Jesus.
Em Mateus, o anjo do Senhor aparece em sonho a José,
explica-lhe a origem misteriosa do Filho de Maria, gerado
pelo Espírito Santo, e dá-lhe a ordem de pôr-lhe o nome de
Jesus, cujo significado é: ele salvará o seu povo dos seus
pecados (cf. Mt 1,18-25). Em Lucas, anjo tem nome. É
Gabriel, mensageiro de Deus. A comunicação do nome se
23
faz à mãe. E associa-lhe a realeza do trono de Davi,
reinando para sempre sobre a família de Jacó (cf. Lc 1,26-
38).
Portanto, o nome de Jesus na leitura dos evangelistas
liga-se à salvação e ao reinado definitivo na casa de Davi.
Quanto à etimologia, Jesus corresponde à forma hebraica
abreviada Yesua do nome do líder de Israel Yehosua – Josué
–, sucessor de Moisés e que introduziu o povo na terra
prometida. O nome no sentido mais exato significa: “Jeová
ajuda, que Jeová ajude”, sendo depois popularmente
interpretado “Jeová salva”.
A beleza simbólica do nome de Jesus vem do sentido
teológico e da recordação histórica que evocava. No sentido
teológico, Jesus revela a ação de “Javé que salva”. Na
reminiscência (memória) histórica, Jesus é o novo Josué
que introduz a humanidade, o novo povo de Deus, na terra
prometida do Reino de Deus.

d)Aspectos históricos.
No que diz respeito à historicidade dos evangelhos da
infância, até há pouco tempo, rivalizavam duas posições
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extremas. A posição tradicional se apoiava na seriedade dos
evangelistas, na sua boa documentação. Lucas fala disso
expressamente. Além do mais, há afinidades literárias entre
Lucas e João. É sabido que João cuidou de Maria. Logo,
Lucas terá ouvido de Maria aquilo que ela guardava em seu
coração. Por que então duvidar da historicidade de tudo o
que se narra nesses evangelhos? Para os problemas do
recenseamento de Quirino e para a aparição da estrela,
buscava-se provar a presença de Quirino na Síria no tempo
de Herodes e apelava-se para os cálculos astronômicos para
concluir-se que no ano 07 a.C., quando do nascimento de
Jesus, houve uma conjunção de Júpiter e Saturno que
explicaria a estrela dos magos.
No extremo oposto, estavam os racionalistas que
negavam qualquer realidade transcendental, sobrenatural,
reduzindo a mitos e lendas aquilo que se narrava sobre a
concepção, nascimento e outros fatos concernentes à pessoa
de Jesus.
A exegese foi cavando um caminho difícil entre os
acontecimentos e as interpretações de cunho estritamente
teológico, que os inseriam no universo religioso da
25
comunidade. Acontecimento e interpretação não podem,
porém, ser pensados como dois momentos separáveis, como
duas realidades. Pois todo acontecimento se constitui
acontecimento, ao ser integrado ao mundo de compreensão
pela interpretação.
Os evangelhos da infância, no seu caráter tardio,
escritos entre 75 e 85 d.C., refletem a mentalidade das
comunidades cristãs desse último quartel do primeiro
século. Permitem perceber uma série de dados históricos
referentes à maneira de entender Cristo, os inícios da
devoção Mariana, certas práticas litúrgicas, o tipo de
interpretação dos textos bíblicos que se fazia.
Além disso, o fato de as narrações de Mateus e Lucas
sobre a infância não concordarem entre si, em vez de criar
problemas, traz enorme vantagem de obrigar-nos a
descobrir uma fonte anterior naquilo em que elas
convergem, reflexo do pensar das antigas comunidades
cristãs.
A concordância dos textos em alguns pontos não revela
sem mais o que realmente aconteceu. Pois não encontramos
a “historicidade profana” da infância – algo impossível –, já
26
que não há documentos para tal, mas algo
fundamentalmente importante para nós: a fé comum das
comunidades antigas. E isso serve para alimentar a nossa fé
hoje em comunhão com a fé daquelas comunidades.
Entre alguns elementos comuns aos dois evangelhos,
podem-se citar: Maria é uma virgem casada com José, filho
de Davi; o anúncio do anjo sobre a vinda, nome e missão do
menino, como Salvador e filho de Davi; Maria concebeu
pela força do Espírito Santo antes de conviver com José; ela
deu à luz Jesus, no tempo do rei Herodes; em Belém; isto
provocou uma grande alegria; eles vão morar em Nazaré.

e) Aspectos teológicos.
As genealogias de Mateus e Lucas arrancam de pontos
de vista teológicos diferentes. Mateus inscreve-a a partir de
José e relaciona Jesus com a história de Israel. Jesus
aparece como o ponto culminante da história. Mateus retém
de Jesus a sua identidade judaica, sua pertença ao
messianismo davídico. Jesus é o novo Moisés, que
proclama a nova lei e conduz o povo de Deus definitivo.

27
Lucas, por sua vez, inicia-a em Adão, que é filho de
Deus. Portanto, remonta à criação. Insere Jesus na história
da humanidade.
Marca a identidade humana de Jesus. Faz dele um
personagem envolvido com nossa história a ponto de ter
entre seus ancestrais pecadores e pecadoras célebres. Da
pureza criativa de Deus sai Adão, os pecadores se
intercalam, para tudo terminar no nascimento do Filho
verdadeiro de Deus. Jesus é o novo Adão. Os nomes,
evidentemente, não pretendem elencar a escala dos
ascendentes de Jesus até Adão. Hoje sabemos pelas ciências
que entre os primeiros seres humanos e Jesus Cristo há um
período de mais de um milhão e meio de anos. Os nomes
alistados são simbólicos. Refletem, na história conhecida
por Israel, a aventura da existência humana, no jogo de
graça e pecado.
A perspectiva teológica de Mateus é apresentar Jesus
como Messias davídico, daí a importância de José. Em
Cristo, cumprem-se as profecias do Primeiro Testamento.
Durante seu evangelho, várias vezes alude a tal
cumprimento, citando a Escritura. No anúncio a José,
28
Mateus frisa a filiação davídica de Jesus, ao chamar José de
filho de Davi. Relaciona a concepção virginal com a
realização da profecia de Isaías (cf. Is 7,14). A esperança de
Israel não é o futuro rei Ezequias, filho de Acaz, a que se
refere Isaías, mas Jesus, o filho de Maria, como plenitude
do Primeiro Testamento. Lá foi um nascimento normal,
aqui pela força do Espírito Santo. Lá foi uma esperança
passageira, aqui a esperança definitiva.
Mateus seleciona os fatos da infância na perspectiva de
mostrar a pessoa de Jesus no coração da história de Israel
como realizador de todas as suas promessas, como no Davi,
novo Moisés. Assim o nascimento em Belém, a perseguição
de Herodes, a fuga para o Egito, o massacre dos inocentes
revelam profunda sintonia com a história do povo de Israel
que conheceu a perseguição do faraó, o massacre dos filhos
egípcios, aqui, os dos judeus. Lá se foge do Egito, aqui se
vai ao Egito, lá o povo é perseguido por estrangeiros, aqui
Jesus, pelo seu próprio monarca.
No entanto, na passagem dos magos, Mateus abre os
horizontes para além de Israel. Mesmo que alguns exegetas
vejam também nessa cena alusão ao mago Balaão, vindo do
29
Oriente, prestar homenagem a Israel (cf. Nm 23,7), o
sentido profundo revela uma antecipação da missão
universal de Cristo, que é reconhecido pelos pagãos,
representados pelos magos. Mateus parte da própria
vocação universal de Israel para reforçar a de Jesus.
Lucas assume uma perspectiva Mariana. José cede o
lugar para Maria. No centro do anúncio do anjo estão duas
mulheres: Maria e Izabel. Mas não por elas. Pelos filhos
que vão ter: Jesus e João. A velha estéril, com o seu filho,
encerra o Primeiro Testamento. A jovem, virgem, abre o
Segundo Testamento. Ambas geram pela força de Deus, que
faz uma estéril e uma virgem conceberem.
Ainda mais teologicamente falando, o ponto máximo
do anúncio é glorificar a ação de Deus, Javé, que interpela,
através da história, a humanidade, oferecendo-lhe a
salvação. O profeta João Batista é o precursor. Jesus é o
realizador. Estas duas crianças trazem a alegria da salvação
ao mundo, preparando-a e realizando-a.
E toda essa maravilha dos evangelhos da infância
termina no silêncio de Nazaré, onde Jesus durante trinta
anos aprende a conviver conosco para romper, adulto, com
30
o anúncio: “cumpriu-se o tempo, e o Reinado de Deus
aproximou-se: convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc
1,15).

3. A família de Jesus.

A vida familiar diária é dura, afetivamente desgastante,


apesar de seus momentos de enorme gozo e prazer. Reflete
a ambivalência de nossa existência humana. A proximidade
maior dos que amamos é, ao mesmo tempo, fonte de
felicidade como de dor e sofrimento. Lá se vivem os
maiores amores e os piores crimes. Jesus viveu em Nazaré
as tensões próprias de uma vida de família.

3.1. Relação entre Jesus e José.


José aparece numa luz discreta. José Saramago
romanceia-lhe a vida. Morre crucificado, vítima da
perseguição romana quando da destruição de Séforis nos
anos da adolescência de Jesus.

31
Sem perder-se em imaginações, os dados do evangelho
permitem suspeitar que ele foi um migrante do Sul. Pois,
quando do recenseamento, teve de ir inscrever-se em sua
terra de origem, Belém da Judéia (cf. Lc 2,4-5).
A vida em Nazaré, região rural, supunha de todos um
mínimo de trabalho no campo para a própria subsistência.
Além do mais, José exerceu também o ofício de carpinteiro.
E Jesus será introduzido em tal arte (cf. Mc 6,3).
As crianças e adolescentes sentem enorme necessidade
de valer-se do nome de seu pai para impor-se, para ser
reconhecidos. A sua primeira identidade lhes vem dos pais.
Daí as idealizações, de um lado, e, de outro, a frustração,
quando os pais não correspondem às qualidades sonhadas.
Só lentamente vão aceitando os próprios limites,
começando com os dos próprios pais. Jesus não terá sido
exceção nesse processo humano. Em termos de qualidades
éticas, José foi um varão justo (cf. Mt 1,19). Jesus nunca
precisou envergonhar-se dele pelo lado moral. Quantas
crianças sofrem, e muito, porque seus pais voltam
embriagados para casa, espancam suas mães! Outras os
vêem acusados de crimes ou trancafiados em presídios.
32
Passam a vida em conflito, a fugir interiormente do
próprio pai e a buscar reconciliação e perdão com ele. Jesus
pôde na sua dupla consciência de filho alimentar seu
inconsciente e seu ego com a figura maravilhosa do Pai do
céu e do pai da terra. Sem isto, nunca nos teria deixado a
oração do Pai-nosso (cf. Lc 11,2-4; Mt 6,9-13), nem a
parábola do Pai Misericordioso (cf. Lc 15,11-32), nem um
retrato delicado do Pai que veste os lírios do campo, que
cuida dos pássaros do céu (cf. Mt 6,26-29).
O menino Jesus, porém, conviveu com crianças com
outros critérios de grandeza. Ostentavam imagens de pais
poderosos, uns proprietários de glebas rurais, outros
fazendo parte da hierarquia religiosa e política da época.
Jesus olhava para José e não podia gabar-se de nada. Talvez
lá longe houvesse alguma gota de sangue real, da estirpe
davídica (cf. Lc 2,5), mas agora não passava de pobre
carpinteiro desconhecido. De seu outro Pai, não podia falar
nada. Era o mistério dos mistérios. Só o silêncio do arcano
e a dor da pobreza sobravam-lhe no cotidiano com os
colegas de infância.

33
Jesus escolheu José, na sua pobreza e simplicidade,
como pai da terra, em vez de ter nascido na Grécia da
inteligência, na Roma do poder, na Jerusalém do templo,
onde teria sido acompanhado por um pai terrestre mestre
grego, ou patrício romano, ou sumo sacerdote judeu.
Este é o mistério de José, “varão justo e prudente”, que
velou e zelou pelo Menino Deus. Ajudou na sua
simplicidade e humildade de títulos e grandezas da terra a
povoar o inconsciente de Jesus elementos com que
traduzirá na sua pregação o mistério da preferência de Deus
Pai pelos mais pobres e marginalizados da terra.

3.2. Relação entre Jesus e Maria, sua mãe.


A piedade popular idealiza Maria. Estabelece
gigantesca confusão entre a sublimidade espiritual do
mistério de Maria e as glórias de grandezas terrenas. Ela
deixa de ser a donzela simples de Nazaré para vestir-se dos
mantos reais mais maravilhosos e coroar-se de diademas de
fazer inveja à famílias reais de ontem e de hoje.
Lucas, por sua vez, pinta-nos imagem mais matizada da
vida de Nazaré. Apresenta um “Jesus que progredia em
34
sabedoria e estatura, em graça diante de deus e dos
homens” (Lc 2,52), que era submisso aos pais (cf. Lc 2,51),
mas também que desconcertou seus pais, sobretudo Maria,
no templo, deixando-os sem compreender (cf. Lc 2,50).
Maria precisou ruminar em seu coração as palavras livres
de Jesus (cf. Lc 2,51) à busca de luz e compreensão.
A relação filho-mãe não só tem sido objeto de poesias e
romantismos, mas também vem sendo estudada pela
Psicologia do Profundo a uma luz muito diferente. Salienta-
se sua dupla valência, positiva quando estabelecem relações
sadias e, às vezes, catastroficamente negativa quando a mãe
assume ou uma posição de super-mãe protetora ou não
responde às demandas afetivas da criança.
O equilíbrio dessa relação torna-se decisivo para a
futura estrutura psíquica da criança. Maria terá também
exercido influência sobre Jesus. Viviam num ambiente
religioso rural. Aí terá predominado intensa presença da
mãe como educadora, como mediadora das regras e
costumes cultural-religiosos.

35
Jesus na idade adulta vai mostrar-se extremamente
livre diante dessas regras e conveniências que lhe terão
passado nos primeiros anos de vida.

3.3. Relação de Jesus com seus irmãos.


Os evangelhos falam dos irmãos de Jesus. O dogma da
virgindade perpétua de Maria exclui qualquer possibilidade
de que Jesus tenha tido irmãos pelo lado de Maria. Também
nada leva a crer que José tenha tido filhos antes de casar-se
com Maria. Portanto, não são irmãos de Jesus no sentido
próprio do termo, mas pessoas ligadas a ele por outro
parentesco.
A exegese permite os dois sentidos de irmãos. Com
efeito, na Escritura, “irmão” significa ora irmão mesmo, ora
algum parente próximo (cf. Gn 29,21: versão da LXX).
Sem a tradição de fé da Igreja, um mero historiador
afirmaria, sem dúvida, tratar-se de irmãos verdadeiros.
Assim o romancista José Saramago descreve a infância de
Jesus povoada de irmãos.
Nada impede encontrar uma solução intermédia
plausível. Nas culturas tradicionais, ocorrem com certa
36
freqüência a morte prematura dos pais e a adoção dos
órfãos por parentes próximos. É possível que os “irmãos”
de Jesus tenham de fato vivido com ele na infância sob o
mesmo teto. Maria e José poderiam muito bem ter adotado
primos em sua casa. E assim o menino Jesus viveu a
experiência humana de conviver com irmãos e irmãs de
diferentes idades na sua infância.
Esta proximidade valeu depois a esses irmãos de Jesus
um privilégio na Igreja primitiva, tal como Tiago (cf. Gl
1,19). Um simples título de primo talvez não fosse
suficiente para tanto prestígio.
É profundamente confortador ver Jesus crescendo ao
lado de outros irmãos. Experiência tão humana, importante
na construção do caráter, do espírito de partilha, da
consciência da sociabilidade, não teria faltado a Jesus. A
solidão dos filhos únicos é antes um fruto da modernidade
mais recente, enquanto as sociedades tradicionais, e
sobretudo a judaica, prezavam muito a família numerosa.
Os irmãos aprendem desde cedo a compartilhar entre si
espaços da casa, objetos comuns e até pessoais. E a

37
pregação de Jesus vai refletir muito dessa experiência
profunda de partilha e despreendimento.

3.4. Jesus e a Escola.


Jesus foi um verdadeiro mestre de enorme sabedoria.
Possuía arte maravilhosa dos discursos, dos ditos, das
pregações, das histórias, das discussões. Disto não se tem
nenhuma dúvida histórica. Pela fé, sabemos, é claro, a
última fonte de tão maravilhosa sabedoria. Mas qual terá
sido sua formação escolar?
Pessoalmente não escreveu coisa alguma. Nem por isso
se deduz que não soubesse ler nem escrever. Passagens do
evangelho aludem a Jesus lendo (cf. Lc 4,16-30),
escrevendo no chão (cf. Jo 8,6) ou surpreendendo os
ouvintes por saber letras sem ter freqüentado as grandes
escolas rabínicas da época (cf. Jo 7,15). Apesar dos reparos
dos exegetas a respeito destas passagens, é mais provável
que Jesus tenha sabido ler e escrever.
Embora no tempo de Jesus a organização e difusão das
escolas não fosse o que será mais tarde, no entanto ele terá
tido acesso a um tipo de escola em Nazaré, que poderia ter
38
sido a própria sinagoga. Ou, pelo menos, deve ter aprendido
do pai ou de algum adulto letrado. Mais dificilmente da
mãe. As mulheres, em geral, não tinham acesso ao
aprendizado da escritura e leitura. Parece certo, sim, que
Jesus não terá freqüentado nenhuma escola de educação
superior, regalia das famílias abastadas. Ele era pobre. Daí a
surpresa de seus conterrâneos a respeito de seu saber (cf.
Mc 6,1).
Jesus extremou-se na arte de pregar. Em que língua
teria feito suas pregações? Viveu num universo
plurilingüístico. O aramaico era, sem dúvida, a língua mais
falada, sobretudo no mundo camponês da Galiléia. Terá
sido a sua língua com sotaque do Norte e nela terá
normalmente pregado. Alguns discípulos seus, oriundos da
mesma região, serão reconhecidos em Jerusalém pela
pronúncia (cf. Mt 26,73).
Depois do exílio da Babilônia (499 a.C.), houve queda
no uso popular da língua hebraica. O povo falava a língua
aramaica e textos da Escritura foram influenciados por ela
(Esdras e Daniel, p. ex.). Apesar disto, o hebraico era
cultivado por causa da leitura da Tora. Jesus provavelmente
39
terá tido o suficiente domínio desta língua para as leituras
bíblicas e até mesmo para discussões com os fariseus e
doutores da lei.
Quanto ao grego, Jesus terá adquirido alguns
conhecimentos impostos pelo convívio comercial, pelas
idas a Jerusalém, pelo defrontar-se com inscrições em grego
nas lápides mortuárias até mesmo nos lugares sagrados do
templo e das sinagogas. Em Jerusalém e em cidades
helenizadas da Palestina era forte a influência da cultura
grega e muitos se expressavam em tal língua. Entre os
discípulos de Jesus, figuram alguns nomes gregos como
ANDRÉ e FELIPE. Terão tido eles alguma formação
helenística?
O latim também feriu, pelo menos, os olhos de Jesus.
Os dominadores romanos faziam, com enorme desprezo
pelos colonizados, suas inscrições em latim. Ninguém pode
isentar Jesus da curiosidade normal de ter perguntado pelo
sentido delas. Sem nunca ter aprendido tal idioma,
certamente terá aprendido algumas palavras isoladas ou te-
las-á ouvido de algum soldado romano. A inscrição de sua
morte foi redigida nas três línguas: hebraico, grego e latim
40
(cf. Jo 19,20). Dado revelador do mundo plurilingüístico de
Jesus e do sentido universal da sua morte, quanto ao mundo
da religião (hebraico), da cultura profana (grego) e do poder
político-militar (latim).
Jesus, profundamente religioso, conhecia as leis, as
tradições, as orações, os comentários da Torá. Mostrou
grande familiaridade com esse universo desde criança
graças à família, à freqüência da sinagoga e eventualmente
da escola.
Aprendeu os hábitos religiosos da oração, do jejum, da
esmola, que constituíam a tríade ética de Israel. Essa
formação humana permitiu que Jesus pudesse exprimir a si
mesmo sua consciência e vocação profunda de Filho de
Deus. Estava então preparado para iniciar sua missão!

3.5. Infância e os medos de Jesus.


Jesus adulto teve enorme medo da morte, como
atestam, de modo indubitável, os evangelhos. No horto
sentiu tristeza mortal, angústia (cf. Mt 37ss), pavor, tédio
(cf. Mc 14,33s), agonia e suor de sangue (cf. Lc 22,43).

41
Mas nada se fala dos medos da infância de Jesus. No
entanto, ele, como toda criança, terá sido assaltado por
muitos medos. Os contos de fadas estão aí para falar-nos de
lobo mau, de bruxas, de pessoas maldosas e assustadoras
que as crianças identificam, ao ouvi-los, com os medos que
as assaltam.
São os medos da perda, da ausência dos pais. Não
sabemos quando Jesus fez a experiência da perda de José.
Tudo leva a crer que tenha sido no período de Nazaré, pelo
estranho silêncio sobre ele durante a vida pública. Há
também os medos dos animais, das tempestades, da
escuridão, então muito mais tenebrosa sem as iluminações
de hoje.
As crianças captam desde cedo as inseguranças dos
pais. A família de Jesus viveu momentos de enorme
insegurança. A viagem a Belém nas condições delicadas de
Maria grávida, a fuga para o Egito, a volta sob o governo de
ARQUELAU na Judéia. É claro, os exegetas consideram
estes fatos um MIDRASH, isto é, narrações cujo
fundamento pode ser histórico, mas que visam a ensinar
uma doutrina. Portanto, não há garantia da sua historicidade
42
factual, mas somente oferecem uma base para reflexão de
cunho teológico.
No entanto, a base histórica, e é isto que nos interessa,
mostra-nos, sim, uma realidade política ameaçadora,
sobretudo para os camponeses pobres. Daí a insegurança da
família de Nazaré e os seus medos.
O HERODES do nascimento de Jesus (37-34 a.C.) foi
homem violento. Posto que tenha conseguido com sua
subserviência a Roma uma certa tranqüilidade, assumiu,
contudo, em relação a seu povo atitudes repressoras. Nascer
sob o poder de um tirano-capacho não oferecia nenhuma
segurança. Seu sucessor, ARQUELAU, será ainda mais
violento. Não hesita em massacrar três mil pessoas na praça
do templo no dia de sua posse.
É verdade que Jesus vai viver em outra província. Mas
as rebeliões se estendiam por todo o território da Palestina.
A capital da Galiléia, SÉFORIS, situada a oito quilômetros
de Nazaré, é violentamente arrasada pelos romanos e sua
população está escravizada. Jesus era adolescente naquela
época e dificilmente não terá sabido do fato. É muito
provável que tenha tido colegas, conhecidos, filhos de
43
pessoas que foram perseguidas e mortas pelos romanos,
especialmente se faziam parte dos zelotas. Quem viveu em
tempos de guerra e repressão entende muito bem a
circulação de rumores de desaparecidos, torturados e
assassinados. ERA O CLIMA DA INFÂNCIA DE JESUS.
Entre os discípulos de Jesus contavam-se zelotas, como
SIMÃO, talvez, segundo alguns exegetas, JUDAS
ISCARIOTES, PEDRO e JOÃO. Eles estavam por toda a
parte. E por toda a parte andava a repressão romana a seu
encalço.
Os evangelhos aludem ao morticínio dos “galileus cujo
sangue PILATOS misturava ao dos seus sacrifícios” (Lc
13,1). A violência política atingirá seu clímax no ano 70
com a destruição do templo e da cidade.
Há outros medos. Medo de si mesmo, de sua vocação,
de sua originalidade. Medo religioso. Medo da pobreza.
Jesus enfrentou todos esses medos. Mas, sem dúvida, no
mais profundo de sua consciência de filho e educado numa
atmosfera religiosa de respeito e confiança, terá trabalhado
positivamente tais medos.

44
Na idade adulta, não temerá enfrentar a morte,
assumindo a subida para Jerusalém, apesar da relutância
dos apóstolos. E quando o medo o assaltou no HORTO
DAS OLIVEIRAS, venceu-o caminhando corajosamente ao
encontro de seus inimigos. Só uma infância bem vivida,
uma adolescência em que rompeu com as exterioridades da
infância em busca da própria verdade e liberdade permitiu
que Jesus adulto realizasse a missão de MESSIAS com
destemor, liberdade e sem medo.

4. Jesus pronto para a vida missionária.


A preparação foi longa. Trinta anos na forja de Nazaré.
O aço já está bem temperado. Jesus sai de casa deixando
atrás de si a mãe e os familiares. É o corte com a família,
com o estilo de vida passado. Deixa de ser camponês e
artesão de Nazaré. Faz-se missionário andarilho.

a)O Batismo: rito inicial.


Marcos e Mateus narram claramente o batismo
administrado por João. Lucas omite o gesto do Batista. O
45
evangelho de João deixa o fato na penumbra, com mera
alusão ao descer do Espírito. Apesar disto, a narração de um
fato tão embaraçador deve basear-se em algo acontecido.
Não passaria pela cabeça de ninguém criar um MIDRASH
que antes dificulta que ajuda a teologia de Jesus Senhor,
desenvolvida pela primeira comunidade. Os evangelistas
reduzem o incômodo fato a seu mínimo real.
A Comunidade Primitiva se sente meio desconfortada
em abordar o batismo de Jesus tendo em vista a experiência
do Cristo Ressuscitado. Este desconforto vinha tanto da
natureza do batismo como da dependência à pessoa de
João Batista. O batismo era um sinal de penitência e de
conversão dos pecados diante do dramático apelo
escatológico de João. Deste modo, Jesus ao enfileirar-se
entre os pecadores, não estaria, também, confessando
pecador e desejoso de escapar da cólera de Deus? Não
estaria, também, se vinculando ao discipulado de João? Que
escândalo para a fé no Senhor da Comunidade!
Diante desse duplo escândalo, os evangelistas –
teologicamente – trabalham o texto de modos diferentes.

46
Mateus descarta, logo de início, qualquer possibilidade
de inferioridade de Jesus em relação a João. Logo que Jesus
se aproximou com a intenção de fazer-se batizar, João
afirma categoricamente a inversão da situação. Ele que
deve ser batizado por Cristo.
Lucas resolve o problema, relatando o batismo de Jesus
depois da prisão de João, tirando-o de cena.
João evangelista vai mais longe. Omite totalmente o
batismo. E afirma fortemente a superioridade absoluta de
Jesus sobre João, desde o prólogo. João não era a luz, mas
simples testemunha da luz. Esta é o Verbo feito carne, Jesus
Cristo (cf. Jo 1,9-14).
Posto desta forma, os evangelistas eliminam o
problema da inferioridade de Cristo em relação ao Batista.
Ficava ainda a questão do fato mesmo do batismo. Os três
relatam uma teofania que oferece o sentido teológico do
batismo. Três sinais marcam a cena. Os céus se rasgam,
uma voz do céu ecoa o Espírito desce em forma de pomba.
Israel vivera longa experiência sem profetas. Os céus
pareciam fechados. Alastrava, deste modo, uma literatura

47
sapiencial e apocalíptica em lugar da profecia. A falta de
profeta era vista como prova e castigo de Deus (cf. Sl 74,9).
A vinda de João Batista, profeta, já foi maravilhoso
sinal de esperança. Mas o interesse do evangelista é mostrar
o significado original e superior de Jesus. O rasgar-se dos
céus indica a inauguração de uma “nova era”. O mundo dos
homens pode comunicar-se com o mundo de Deus, não por
meio da pretensão de construir uma torre até os céus, mas
pela disposição de os céus descerem até os homens.
O sinal mais significativo, porém, é a voz do céu. Só
pode ser de Javé, o Senhor Deus de Israel. Ele pronuncia o
versículo 7 do Salmo 2, muito conhecido dos judeus,
referente à entronização do rei Davi em Jerusalém. É um
salmo de realeza, com perspectiva messiânica, aplicado
diretamente a Jesus. Marcos e Mateus ainda acrescentam ao
substantivo “filho” o adjetivo “predileto”. Quem sabe uma
longínqua alusão a Isaac, o filho predileto de Abraão (cf.
Gn 22), numa antevisão do Jesus a caminho da morte?!
Um paradoxo do batismo de Jesus atravessa toda a sua
vida: o jogo de humilhação e de glória. Enquanto os
sinóticos carregam as tintas na humilhação, o Quarto
48
Evangelho destaca a glória. Na verdade trata-se de uma
completude e não de uma contradição dos textos sagrados,
já que Jesus é – ao mesmo tempo – o esvaziamento do
Divino e a sublimidade do Humano.
b)O teste das tentações.
Jesus foi verdadeiramente tentado na sua vida terrestre
a afastar-se do cumprimento de sua missão. Em vários
momentos, os evangelhos mostram-nos Jesus colocado em
situação em que é provocado a seguir um caminho
diferente. O diferente veste-se de ambigüidade para Jesus:
ora expressa o Projeto do Pai, ora é real tentação. Aquele
que começara livremente a pregar à multidões – diante da
recusa de tantos de ouvi-lo, da crescente oposição ferrenha
de seus inimigos, do claro plano de mata-lo – passa a
dedicar-se ao círculo restrito de seus discípulos. O anúncio
do Reino vai se transformando lentamente na preparação da
Igreja. Ele estava convicto de restringir-se à pregação e às
ações simbólicas do Reino dirigidas unicamente ao povo de
Israel. Mas uma mulher Cananéia – duplamente diferente –
mulher e pagã, provoca Jesus. Jesus lê este gesto de fé da
mulher como sinal de Deus e faz o milagre, mudando sua
49
posição anterior (cf. Mt 15,21-28). A realidade –
sacramento da vontade de Deus – vai modificando as
atitudes de Jesus. Com relação a Pedro – o discípulo que
havia escolhido para chefiar o grupo dos Doze – Jesus
identifica a presença da tentação (cf. Mt 16,23): Pedro tenta
dissuadir Jesus da Páscoa.
Inúmeras outras vezes, fariseus e outros adversários
aproximam-se de Jesus para tentá-lo, colocando-o à prova a
respeito da Lei e dos Princípios Morais do Judaísmo. O
autor da epístola aos Hebreus resume teologicamente essa
dimensão (tentações) da vida de Jesus. Ele é este “sumo
sacerdote eminente que atravessou os céus, Jesus, o Filho
de Deus”, capaz de compadecer-se de nossas fraquezas
porque “foi provado em tudo, sem todavia pecar” (cf. Hb
4,14-15).
Os sinóticos adotaram uma teologia narrativa. Criaram
três situações de tentação que traduzem muito bem três
propostas messiânicas, presentes na expectativa do povo,
mas que entravam em frontal confronto com a perspectiva
de Jesus. Moisés dera ao povo o maná no deserto durante
anos. O Messias deveria fazer algo ainda maior nesse
50
campo dos bens materiais. Povo pobre, necessitado. O
poder dos milagres de Jesus podia transforma-lo num
Messias que arrastaria as multidões atrás de si na busca do
pão material. Ali estava o verdadeiro demônio a tentar Jesus
transformar pedras em pão. Jesus mesmo sente essa
solicitação: “Eu vos digo, não é porque vistes sinais que me
procurais, mas porque comestes pães à saciedade” (Jo
6,26). Ele promete um pão que dura para a vida eterna.
Antes de tudo, sua palavra. Mais tarde, na Ceia, ficará claro
o sentido mais profundo do pão de seu corpo. Aí está a
tentação a rondar toda a vida de Jesus. Diante da tentação
da Glória, a resposta de Jesus é a Páscoa: “Sabendo Jesus
que a sua hora tinha chegado, a hora de passar deste mundo
para o Pai” (Jo 13,1), “ele, que amara os seus que estavam
no mundo, amou-os até o extremo”.
Não poderia ser algo mais glorioso caminhar para a
morte na lucidez do amor! A tentação de Jesus consistirá
em querer a glória antes do momento da entrega total de
amor e sem passar por ela. Antecipação frustrante do
mistério pascal. A revelação do esplendor eterno de Jesus

51
não se fará em nenhum Tabor terrestre, mas aos olhos dos
que crêem no mistério da morte e Ressurreição.
A tentação do poder: a mais feroz e mais descarada. É o
poder na sua face de domínio. Jesus viu-se confrontado
com o poder. Diante de Herodes, calou-se. Não se impôs,
não advogou sua causa, não quis jogar e brincar com a
supersticiosa visão de Herodes, que o julgava o Batista
redivivo. Diante de Pilatos, Jesus mostrou o significado
profundo de seu poder: não se origina da raiz dominadora
das forças do mal, mas de Deus, fonte de amor e liberdade.
Poder é serviço, é liberdade, é entrega de si.

5. A pregação do Reino por Jesus.


Depois que João é encarcerado, Jesus inicia sua vida
missionária: “Completou-se o tempo. Chegou o Reino de
Deus. Convertei-vos e crede no evangelho”.

a)A expectativa do Reino e sua realização.


O Reino de Deus enchia o horizonte do povo de Israel.
Encontrava repercussões profundas nas pessoas. Carregado
52
de experiências passadas, significativo para o presente,
anunciava sonhos utópicos e escatológicos para o futuro.
O Reino é o poder de Deus em ação; é atividade
concreta de Deus, como rei, como soberano último e
definitivo de todo o criado e da história.
Jesus proclama em alto e bom som que o Reino está
próximo, que já chegou. Os olhos das pessoas brilham ao
toque mágico desta palavra. A novidade desse Reino,
anunciado por Jesus, manifesta-se de muitas maneiras.

b)As bem-aventuranças do Sermão da Montanha.


Fazendo paralelo com Moisés, Mateus descreve as
semelhanças e a indiscutível superioridade de Jesus sobre
Moisés desde o nascimento. Lá no Egito, as mães judias,
sob o jugo do Faraó, tinham obrigação de matar todo filho
varão. Moisés é colocado pela mãe nas águas e uma das
filhas do Faraó o salva. Em Belém da Judéia, é o iníquo
Herodes que decreta a morte de todos os meninos recém-
nascidos e a intervenção do anjo salva o Menino Jesus.
Quando adulto Moisés trazia escrito numa pedra o decálogo
dado por Deus. Não era criação sua. Era simples
53
intermediário. Já Jesus, o Novo Moisés, com sua própria
autoridade, cercado de seus discípulos, proclama as bem-
aventuranças. Ambos se encontram numa MONTANHA:
lugar da intimidade com Deus; lugar da tentação; lá Jesus
rezava e apareceu glorioso na Transfiguração.
Lucas cria outro cenário. Na véspera, Jesus se retira à
montanha para rezar. Dois acontecimentos o esperam. A
escolha dos doze e o sermão das bem-aventuranças. Na
montanha escolhe os discípulos e depois, como um grande
Mestre, desce, cercado deles, até a planície, onde um grupo
maior de discípulos e grande massa de povo se lhe ajuntam.
Eis o cenário para o sermão da planície! Os seus horizontes
intermináveis simbolizam a universalidade do significado
do sermão.

c) A versão de São Lucas.


Em vez de oito como em Mateus, Lucas apresenta
quatro. No centro estão os POBRES, os FAMINTOS, os
que CHORAM, os PERSEGUIDOS. Em oposição às bem-
aventuranças estão as mal-aventuranças, as lamentações no
sentido de compaixão e de admoestação, nunca, porém de
54
maldição. Lucas entende os pobres, os famintos, os que
choram no sentido bem concreto e material, sem
espiritualizações. O seu discurso é feito na segunda pessoa.
Aqui está a concepção do “monarca oriental” que é
defensor e justiceiro do pobre; faz-lhe justiça unicamente
porque é pobre e ele, rei, generoso. Os ricos sabem e podem
defender-se.

d)A versão de São Mateus.


São oito bem-aventuranças. Revelam o olhar de Deus
sobre os humanos. Olhar escatológico que manifesta uma
atitude atual de Deus e um juízo definitivo que vai para
além da história humana.
Como já foi dito acima, Mateus amplia as bem-
aventuranças a partir dos ditos de Jesus. Seguindo não o
discurso interpelador de Lucas, Mateus coloca as bem-
aventuranças na terceira pessoa, a modo de sentenças
sapienciais, que brotam do coração do Novo Moisés,
Mestre dos mestres: Jesus.
As bem-aventuranças giram, com diferentes nomes, em
torno do REINO DE DEUS. Refere-se às pessoas mais
55
abertas interiormente à ação de Deus na história, quer
porque Deus se dispõe mais a favorecê-las, quer porque, de
sua sorte, elas oferecem mais disposição.
Bem-aventurados os pobres em espírito ou pelo
espírito ou de coração! No mais profundo de si (espírito),
são pessoas pobres, que, mesmo não tendo as mãos mais
limpas, as têm mais vazias. Por isso, são mais receptivas
aos dons de Deus. Aí aparece o mais profundo da teologia
da graça.
Para ser amados por Deus, não precisamos fazer nada.
Não se conquista o amor de Deus. Vem-nos gratuitamente.
O que muito tem dificilmente se coloca na posição de
gratuidade. Prefere barganhar, comercializar com Deus.
Aposta e acredita em suas obras, em seus bens. O pobre
nada tem, não pode confiar em si. Mais facilmente confia
no outro. Nesse mesmo espírito, Jesus, em outro lugar, dirá
que o REINO é das crianças (cf. Mt 18,1-5;19,13-15).
Pobres e crianças comungam na mesma atitude básica de
dependência radical do dom de Deus com o qual
unicamente contam.

56
Bem-aventurados os mansos! Mansidão e doçura no
trato com os pecadores, com os inimigos. Os momentos de
cólera e irritação representam exceção de um
comportamento predominantemente manso. A doçura é uma
“coragem sem violência, uma força sem dureza, um amor
sem cólera... É uma paz sempre desprovida de ódio, de
dureza, de insensibilidade”. Só a doçura pode “dominar a
violência, a cólera, a agressividade”. Esta doçura,
mansidão, possuirá a Terra, o Reino, o lugar da felicidade
humana, aqui e para além.
Bem-aventurados os que choram e serão
consolados! Estes aceitam a sua pequenez, seus limites e
suas dores. Não são super-heróis, que tantos filmes
constroem e com isso destroem no fundo do coração da
juventude a bem-aventurança das lágrimas. Jesus não se
poupou esta experiência maravilhosa de chorar junto ao
túmulo de Lázaro (cf. Jo 11,35). As lágrimas estão perto dos
olhos, mas ativadas pelo coração, pelo desejo, pelo
sentimento, pela humanidade que existe em nós.
Bem-aventurados os que têm sede e fome de justiça!
Fome e sede refletem desejo intenso. O desejo é a fonte do
57
bem e do mal. É a alma tanto virtude quanto do vício. Por
isso, a bem-aventurança especifica a orientação do desejo.
E de justiça. Este termo soa-nos hoje bem diferente do
tempo de Jesus. Justo era o observante da Lei. Estamos no
contexto da nova Lei, portanto da Vida Cristã. Justo é, por
conseguinte, o fiel às práticas da vida cristã. A Justiça
Social, naturalmente, é uma delas mas não a única.
Bem-aventurados os misericordiosos! A misericórdia
na perspectiva do Segundo Testamento relaciona-se com o
perdão oferecido a quem nos ofendeu, e recebido de Deus,
a quem ofendemos. Lc 15 retrata o coração misericordioso
de Deus, simbolizado no pai e a pequenez de nosso coração
na figura do irmão mais velho. Perdoar é desejar que o
outro que me ofendeu viva e não morra. O desejo não inclui
a justificativa e o esquecimento do erro cometido pelo
outro, mas antes favorece que ele se converta e assim se
reabilite. Não guarda ódio, nem ressentimento, mas oferece
nova chance de amor e de vida. Supõe confiar no que a
pessoa tem de positivo, de força de regeneração.
Bem-aventurados os puros de coração! São as
pessoas sinceras, honestas, leais, transparentes, que evitam
58
os caminhos tortuosos da mentira, do fingimento, da
duplicidade, da ambigüidade, da falsidade. O seu sim é
SIM, seu não é NÃO (cf. Mt 5,37; Tg 5,12).
Bem-aventurados os construtores da paz! Mateus
dirige-se, primeiramente, à vida interna da comunidade;
num segundo momento, pensa na relação dos perseguidores
e perseguidos e, finalmente, amplia o sentido para toda
tarefa pacificadora. A paz é dom e esforço de todos os
homens e mulheres. Não é, simplesmente, ausência da
“guerra”. Contudo, o círculo da guerra só se suprime na sua
radicalidade: um NÃO absoluto à guerra. Dizendo não à
guerra, diremos sim à promoção e defesa da vida,
alicerçada na Justiça e na Misericórdia.
Bem-aventurados os perseguidos por causa do
Reino! Retrato da vida de Jesus e de seus seguidores. É a
mais exigente das bem-aventuranças.

As bem-aventuranças têm um lado autobiográfico de


Jesus. São traços privilegiados de sua pessoa e vida. Cada
uma delas pode ser entendida como descrição do seu agir.
Precisamente o caráter cristológico lhes dá o significado
59
último. Os cristãos, ao viverem as atitudes apontadas nas
bem-aventuranças, estão, ao mesmo tempo, seguindo a
Jesus. Há vinculação profunda entre o seguimento de Cristo
e a vivência das bem-aventuranças.

6. Jesus e os Grupos Sociais de seu tempo.


No centro da pregação de Jesus estava o Reino.
Anunciou-o em palavras e gestos. As bem-aventuranças
foram uma revelação da câmara oculta do coração do filme
dos sonhos de Jesus e de sua própria vida.
l
a)Jesus e os Fariseus, Escribas e Doutores da Lei.
O grupo religioso dos fariseus dedicava-se seriamente
ao estudo da Lei Mosaica e das Tradições Orais dos
antepassados, a que davam enorme autoridade. Defendia a
observância rigorosa de uma interpretação estrita, sobretudo
do sábado, da pureza ritual e dos dízimos. Os fariseus
originaram-se dos hassideus, grupo mencionado em
Macabeus. Tanto os termos hassideu como fariseu conotam
a idéia de “separados”, i.é., afastados da raia miúda. Além
60
disso, constituíam-se em juízes severos daqueles que não
podiam observar a lei ou não o queriam. Apesar dessa
distância e do caráter de leigo, gozavam de autoridade junto
ao povo por causa do conhecimento da lei que possuíam.
Os escribas também eram entendidos nas coisas da Lei.
Chamados doutores da Lei ou legisperitos (cf. Lc 5,17; Mt
22,35); recebiam o título honorífico de rabi, mestre, senhor,
professor. No judaísmo moderno, fala-se de RABINO.
Constituíram verdadeiro poder de guia espiritual do povo
em Israel, paralelo ao poder sacerdotal. O silêncio do
PROFETISMO permitiu que eles crescessem em
importância e assumissem a função de intérpretes oficiais
da Escritura.

b)Jesus e os Herodianos.
O projeto herodiano do Reino muito se distancia do de
Jesus. Eram os cortesãos de Herodes Antipas, tetrarca da
Galiléia e Peréia (4 aC.-39 dC.). Homem sanguinário e
frívolo que manda decapitar João Batista para satisfazer o
capricho ciumento de Salomé (cf. Mt 14,1-12). Sem o seu

61
apoio o processo contra Jesus não poderia ter sido levado a
cabo.
Os herodianos não aparecem no evangelho a não ser
simplesmente conspirando a morte de Jesus juntamente
com os fariseus (cf. Mc 3,6). É o poder na sua face mais
degradante. A única proposta que poderiam fazer a Jesus
era de livrá-lo da morte à custa de um gesto cortesão. Jesus,
diante de tanta futilidade, simplesmente calou-se,
merecendo em troca as galhofas de Herodes e de toda a sua
corte (cf. Lc 23,11).

c) Jesus e os Saduceus e os Sacerdotes.


Os saduceus, oriundos da aristocracia sacerdotal,
presidiam a liturgia do templo. Apesar de terem
divergências teológicas com os fariseus, compartilhavam
com eles uma posição conservadora e fundamentalista da
Lei. Rejeitavam qualquer inovação. Nesse sentido eram
mais conservadores que os fariseus, restringindo-se à Lei, e
rejeitando as tradições dos antepassados, certas
interpretações tradicionais e a evolução da Lei. Por outro
lado, adotavam uma atitude mais livre e mundana tanto
62
diante da cultura helenística como da dominação romana.
Eram oportunistas e colaboracionistas com o poder romano.
Homens ligados à ordem política do “arranjo”
rejeitavam, por isso, qualquer messianismo como
perturbador da ordem. Exerciam influência no sinédrio,
detinham muito poder no judaísmo no tempo de Jesus.
Nesta época, os sumos sacerdotes saíam do seu meio ou
estavam ligados com eles. Foi o sumo sacerdote saduceu
Caifás que condenou Jesus à morte.
Com muito mais razão Jesus afastou-se dos saduceus.
Além do rigorismo literalista da lei e ritualismo, valiam-se
do poder religioso, político e econômico para imporem-se.
Jesus assumiu uma posição diametralmente oposta de
despojamento e liberdade diante do poder.
O projeto do Reino dos saduceus e sacerdotes girava
em torno do culto no templo. Lugar de oração, mas também
do poder econômico. Jesus, pelo contrário, diz à
samaritana: “Vem a hora, e é agora, na qual os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade...” (Jo
4,23)

63
d)Jesus e os Essênios.
Um movimento que era uma espécie de “vida monacal
religiosa” com tendências ascéticas. Havia um rigor
exacerbado com relação à Lei. Davam enorme importância
aos ritos de purificação a fim de viverem como “os puros”.
Nesse espírito de pureza, opunham-se ao sacerdócio oficial,
considerado, por eles, como decadente.
Exerciam forte influência sobre o povo pelo seu poder
espiritual. Pensavam-se como “filhos da Luz” em oposição
aos “filhos das Trevas”. Afastavam-se do convívio das
pessoas comuns e fechavam-se em comunidades religiosas
em vida de pobreza e celibato. Este isolamento
(segregação) possuía sentido simbólico e escatológico:
revelava que os membros da comunidade eram puros e, ao
mesmo tempo, anunciava o grande combate final com a
vitória dos filhos da luz e a aniquilação definitiva do mal
com a restauração do mundo.
Resistiam ao processo de helenização, de
mundanização e de colaboração com os romanos. Mais
64
tarde os romanos destruirão o mosteiro essênio de Qumran
na guerra contra a Palestina.
Jesus também defendeu a iminência do Reino (cf. Mc
1,15); defendeu uma conversão profunda para entrar no
Reino de Deus, comparada – inclusive – com o nascer de
novo (cf. Jo 3,3).
Contudo, Jesus afastou-se anos-luz dos essênios. Deus
é Pai e não vingador. É misericórdia, perdão e não castigo.
A luz e as trevas estão misturadas, como o trigo e o joio.
Das trevas nasce a luz e vai vencendo-as ao longo do
tempo. A vitória sobre o mal se faz pelo amor, pela graça, e
não pela destruição dos pecadores. O pecador é convidado à
conversão e não rejeitado. A presença salvífica de Deus está
em todas as partes. O Verbo plantou sua tenda entre nós.
Não se refugiou em nenhum rincão privilegiado. Jesus está
no meio dos pecadores, pobres, doentes, bem misturado
com o povo.

e) Jesus e os Zelotas.
No zelo pela autonomia do povo judeu e do território
de Israel, os zelotas envolviam-se em ações violentas e
65
armadas contra o poder romano; concebiam o Reino como
dominação terrena e política de Javé. Foi a tentação de
Jesus na montanha. “Tudo isso te darei, se, prostando-te,
me adorares” (cf. Mt 4,9). Jesus não pensa e nem vivencia o
Reino como domínio. Para ele o Reino é serviço. “O Filho
do Homem veio, não para ser servido, mas para servir” (cf.
Mc 10,45). Os zelotas defendiam um nacionalismo estrito;
a proposta de Jesus, exceto no início de sua missão (cf. Mt
15,24), é universalista.
f) Jesus e o movimento do Batista.
Jesus reconheceu o valor e santidade de João Batista.
Teceu-lhe elogios. Chamou-o de mais que profeta, o
mensageiro precursor, o maior entre os nascidos de mulher
(cf. Mt 11,9-11). Contudo, a concepção de Reino distancia
Jesus de João Batista. A veemência e rudeza profética de
João cedeu lugar à misericórdia paciente de Jesus.
Jesus entrou no movimento de João Batista e o levou à
plenitude, fazendo-o desaparecer. O movimento do Batista
foi “preparação”. Chegando à festa, a preparação cede o
lugar para a alegria e gozo dos convivas (cf. Jo 3,29).

66
7. A pedagogia de Jesus.

a)Homem piedoso e cheio de fé: sua relação com


Deus Pai.
Jesus era filho de uma família tradicional e religiosa.
José e Maria praticavam a religião nas suas prescrições
fundamentais: jejuavam, rezavam, davam esmolas,
freqüentavam a sinagoga e iam ao templo. Jesus aprendeu
tudo isso em casa. E conservou esses hábitos ao longo de
sua vida.
Quanto ao jejum, a atitude de Jesus é paradoxal. Por
uma parte, os evangelhos iniciam a vida pública de Jesus
com longo jejum no deserto (cf. Mt 4,2). Jejum, aqui, é uma
atitude de piedade. Por outra parte, os judeus perceberam a
diferença entre os discípulos de Jesus e os de João Batista.
Interpelam-nos por que não jejuavam. Jesus os dispensa
dessa obrigação no momento de convivência íntima com o
Mestre, mas anuncia momentos difíceis para depois de sua
morte (cf. Mc 18-22). A palavra jejum, neste contexto,
possui o sentido de renúncia e sofrimentos.

67
Por ter uma vida sóbria, Jesus não precisava fazer
jejuns protocolares. Era como raposa sem toca, pássaro sem
ninho, passageiro sem pedra para reclinar a cabeça (cf. Mt
8,20). Portanto, praticava mais que o jejum. Muitos exibiam
o fato de jejuar, enquanto Jesus preferia a aparência limpa e
perfumada, velando os sacrifícios no interior do coração
(cf. Mt 6,16-18).
Quanto à oração, os evangelhos fizeram questão frisar.
Jesus rezava (cf. Lc 3,21; 5,16). Esta insistência revela uma
surpresa admirável dos discípulos de verem Jesus rezando,
não pelo fato em si, mas pelo modo, momento e lugar de
suas orações.
Os evangelhos mencionam à noite: Jesus passou a noite
a rezar (cf. Lc 6,12). Lucas insiste nas longas orações de
Jesus antes de grandes decisões. Na noite da escolha dos
apóstolos, Jesus teria passado nome por nome, pessoa por
pessoa (cf. Lc 6,12). Lá estava Judas entre aqueles por
quem rezou. É terrível constatar que até a oração de Jesus
não é onipotente à revelia da liberdade humana.
Deus encolheu-se no seu poder com a criação e
sobretudo com a do ser humano livre. Ele não se impõe
68
nem a pedido do Filho. Deus se oferece como dom, graça e
solicitação. Dito de maneira humana e imperfeita, mas com
verdade. Deus parece fraco diante da arrogância do ser
humano que não lhe acolhe o dom. Não muda uma
realidade que não queremos mudar. Pois, basta conferir.
Jesus rezou na Última Ceia para que nós fôssemos UM
como ele o Pai o são (cf. Jo 17,21); que aconteceu? Guerras
de religião, ódio entre cristãos...
Jesus rezou antes do Sermão da Montanha (cf. Lc 6,12);
Jesus rezou antes de ensinar-nos o Pai-Nosso (cf. Lc 11,1);
rezou antes das tentações. A sua impecabilidade não era
mágica, mas fruto de sua luta contínua, de sua entrega sem
limite, de sua confiança no Pai, de suas orações. Ele vai
dizer aos apóstolos: “rezai para não cairdes em poder da
tentação” (cf. Lc 22,40).

Jesus rezou durante a sua agonia (cf. Mc 14,35): Deus


era o seu alimento (cf. Jo 6,34), sua companhia, sua vida.

b)Celibatário comprometido: a causa maior.


69
Jesus vive uma vida singular: jovem, não se casa. As
diferentes fontes do Segundo Testamento convergem para o
fato de Jesus ter permanecido, misteriosamente, celibatário.
Evidentemente não foi por nenhuma razão de desprezo pela
obra de seu pai que pensou na prolongação da vida humana
por meio da relação sexual entre homem e mulher. Jesus
conhecia o mais profundo do mistério de Deus. Ele só
poderia admirar essa sabedoria. O amor conjugal envolve o
início de cada vida humana. Este é o plano de Deus.
Entretanto, ele marcou uma dupla exceção. Sua
concepção foi diferente. Sua vida celibatária afasta-se na
liberdade desse projeto divino. Só pode ser para manifestar
uma dimensão dessa mesma realidade e não sua negação. O
celibato de Jesus foi seu matrimônio com toda a
humanidade. Desposou-a numa fidelidade até a morte. Não
se trata de nenhuma universalidade abstrata, mas muito
concreta. Cada ser humano, homem e mulher, foi amado
por ele com amor apaixonado, como o esposo ama a sua
esposa.

70
c) Homem simples do cotidiano: pequenos prazeres,
amizades e sofrimentos.
O cotidiano de Jesus transcorria em pregações, viagens,
visitas, conversas, contato com as pessoas, freqüência à
sinagoga, subida ao templo nas grandes festas, orações em
particular. Num tempo e país machista e patriarcal, a figura
de Jesus de um relacionamento livre e amigo com as
mulheres causou profundo impacto (cf. Lc 8,1-3). Elas, de
sua parte, acompanhando-o com ajudas durante a sua vida
de missionário itinerante e na hora trágica da subida ao
calvário, morte e sepultamento. Isso só se torna inteligível
se a relação de Jesus foi realmente de extraordinária
densidade humana e desprovida de preconceitos. No trato
com as crianças manifesta outro toque original do seu
comportamento (cf. Mc 9,36). Se depois de dois mil anos
de caminhada humanizante, ainda vemos no Brasil, país
considerado como tolerante, afável e comunicativo,
tratamentos violentos contra as crianças até seu extermínio,
imaginemos o que deveria ser em tempos antigos. Os
evangelhos tocam neste problema ao mostrar a atitude
hostil dos apóstolos, enxotando as crianças de Jesus (cf. Lc
71
18,15). Contudo, os evangelhos fazem questão de mostrar
Jesus acolhendo, acariciando e abençoando as crianças (cf.
Mc 10,16).
E o tratamento com os pecadores, os pobres e os
desprezados deste mundo? Excesso sublime de bondade e
acolhimento humano. Em Jesus, o excesso de humanidade
não era nenhum contraponto à divindade. Antes sua
manifestação. “Tão humano assim só pode ser Deus
mesmo” (Leonardo Boff).

72
2ª. Parte – A Morte e Ressurreição de Jesus.
8. A significação política e teológica da morte de
Jesus3.
A morte de Jesus na cruz faz parte de nossa profissão de
fé: “padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e
sepultado”. Para compreender melhor a morte de Jesus
vamos analisar os motivos históricos da condenação de
Jesus – o “por que matam Jesus?” – e buscar a compreensão
dos motivos teológicos – o “por que Jesus morre” –
presentes nos textos sagrados.

8.1. Por que matam Jesus?


A morte de Jesus na cruz é o fato mais bem atestado de
todo o Segundo Testamento por Tácito, Flávio Josefo,
Plínio, o moço, Suetônio. Sua morte é baseada numa
acusação política (cf. Lc 23,2-5; Mt 26,63; At 10,34-43),
fruto de tensões econômicas, sociais, políticas e religiosas
da época (cf. Mc 2,1-3,6). A partir deste fato é possível
notar os seguintes pontos significativos: a) Jesus é
condenado por Pôncio Pilatos como zelota; b) o caráter
3
Faremos uso do texto de FERRARO, Benedito Cristologia. Petrópolis: Vozes, 2004, pp. 121-159. Como no texto de
LIBÂNIO, faremos um resumo seguindo a divisão sugerida pelo próprio autor.
73
judiciário da época não permitia a declaração da sentença
de morte pelos judeus (cf. Jo 18,31); c) a morte de Jesus é
experimentada como um escândalo a ser superado (cf. 1Cor
1,17-31); d) a Ressurreição dá sentido à morte (cf. At 2,36;
Jo 20,30-31).
O próprio contexto da época indica os motivos da
condenação. Aspectos importantes deste contexto: a) a
liberdade cerceada na Palestina dependente do I século; b)
os movimentos populares de resistência (defesa das
tradições e da cultura; preocupação social – eliminação do
tributo a Roma [cf. Mc 12,13-17; Lc 23,2-5]; destruição das
grandes propriedades; decretação da libertação dos escravos
e do ano do Jubileu [cf. Lc 4,16-19; Mc 1,4-20]); c)
significação essencialmente política de toda e qualquer
pretensão messiânica: crime de lesa-majestade (cf. At 5,34-
39; Mt 26,61; Mc 14,58; Jo 2,19; cf. Jr 7-8). A questão do
titulus que revela os motivos da condenação (cf. Mc15,26;
Mt 27,37; Lc 23,38; Jo 19,19); d) o processo que levou
Jesus à morte deve ser entendido dentro de um contexto de
dependência e dominação: o jurídico é normalmente visto a

74
partir do poder e do prestígio dos dominantes. É algo legal,
mas ilegítimo. Neste contexto:
 Jesus é visto como profeta e como um líder popular, na
continuidade dos profetas: Jeremias, Amós e outros.
 Jesus suscita esperanças messiânico-apocalípticas e atrai
seguidores: sua prática representa um desafio (cf. Jo
11,43-52) e um perigo para a estabilidade social.
 A vida de Jesus é coerente sem se desviar do caminho
(cf. Mc 8,22-11,8; Lc 9,51), mesmo sabendo que isto o
levaria ao enfrentamento com as autoridades judaicas e
romanas.
 Não tendo o poder de condenar (cf. Jo 18,31), pois a
sentença de morte era reservada a Roma, os judeus são
forçados a apelar a Pilatos. Embora julguem Jesus digno
de morte (cf. Jo 19,7) pelo fato de ser blasfemo (cf. Mt
26,61; Mc 14,58), os sacerdotes forçam a condenação
alegando motivos políticos (cf. Lc 23,2-5; Jo 19, 12b).
Esta declaração é a negação da messianidade do povo
de Israel! Declaram-se súditos de Roma opressora e
decretam a morte de Jesus, caindo na idolatria.

75
 A rejeição da prática e do projeto de Jesus demonstra a
não aceitação do Anúncio do Reino.

Motivos que influenciaram os relatos da Paixão.


É sabido que os textos evangélicos são frutos da vivência
das comunidades que procuram relançar o QUERIGMA:
centro de toda a tradição evangélica. Portanto, estão
enraizados nas tradições das primeiras comunidades. Estes
textos são fruto da experiência pascal e neles a atmosfera
pascal desempenha um papel preponderante, descobrindo a
vitória onde só se encontrariam fracasso e escândalo (cf. 1
Cor 1,17-31). Papel especial, para se compreender a morte
de Jesus, têm os relatos da paixão com vários motivos aí
inseridos. Eis alguns:

1. Dogmático.
Os evangelistas procuram mostrar que a paixão e morte
de Jesus são a realização da vontade de Deus. São paixão e
morte do Messias. Nos relatos da paixão há uma dupla
insistência: procura esconder o caráter trágico do evento
(cf. os ultrajes dos soldados romanos: Mt 27,27-30; Mc
76
15,16-20; Lc 23,11.36; o grito na cruz: Mt 27,46; Mc 15,34;
Lc 23,46; Jo 19,30) e, por outro lado, explicita o caráter
divino de Jesus. Este caráter divino é manifestado em: a)
profissões de fé: Mc 14,61; 15,32; 14,21.41; Mt 26,2;
27,17.22.40.43.53; Lc 22,61; 23,47; Jo 13,13-14.16; b) na
presciência de Jesus e seu poder: Mt 26,2-5.53; Jo 18,4-9;
Mt 26,20-25; Jo 13,21-30; Lc 22,32; Jo 18,19; c) na entrega
livre de Jesus: Mt 26,53; Jo 18,11; Mt 26,26-29; Mc 14,22-
25; Lc 22,15-20.

2. Biográfico.
Este motivo procura ressaltar traços da vida de Jesus,
mostrando seu enraizamento histórico (cf. Mt 26,1-5; 26,6-
13.14-16; 26,48-51).

3. Cúltico e Catequético.
Motivos ligados à vida de oração e do culto, com clara
dimensão catequética: Mc 15,1.25.33; Mt 26,26-29; Mc
14,22-25; Lc 22,15-20; 1 Cor 11,23-25.

77
4. Parenético.
A paixão e morte de Jesus são apresentadas como modelo
de sofrimento e morte (Jesus é a testemunha fiel), aceito
como realização da vontade de Deus. A partir da morte de
Jesus, aplica-se sua forma de enfrentamento a outros
personagens: cf. Estevão (At 6,11-15; 7,55-56.59-60);
negação de Pedro (Mt 26,69-75, indicando a necessidade de
arrependimento, pois se até Pedro pode negar, como não
será a situação dos outros); oração de Jesus (Mt 26,36-46,
mostrando a importância da oração nos momentos de maior
enfrentamento); anúncio da traição (Mt 26,22-25, onde todo
seguidor de Jesus deverá se colocar na mesma situação de
Judas); cena da crucificação (Mt 27,39-42; Lc 23,39,
mostrando a atitude a ser desprezada e evitada e Mc 15,39-
40; Lc 23,40-48, indicando atitude a seguir).

5. Apologético.
Fazendo uso das Escrituras como referencial de sua fé e
de sua tradição, as comunidades procuram ultrapassar as
dificuldades advindas da morte de Jesus, o Messias, na
cruz:
78
 Anúncio da traição de Judas: Mc 14,17-21 (Sl 41,10).
 Pagamento da traição: Mt 26,15 (Ex 21,32; Gn 37,28).
 Fuga dos discípulos: Mt 26,31-35 (Zc 13,7).
 Tentativa de desculpar os romanos e culpabilizar os
judeus ao mostrar que a incredulidade dos judeus já
estava no plano de Deus.A crucificação é apresentada
como o resultado final da incredulidade (Mt 23,32.37;
Lc 13,33-34). Esta linha apologética chega até a mostrar
Pilatos declarando Jesus inocente (cf. Lc 23,4.14.23; Jo
18,38; 19,4.6, embora acabe condenando-o à morte).
Também em Lc 23,25-26 e Jo 19,16-17, são os judeus e
não os romanos que conduzem Jesus para ser
crucificado. Entretanto, há outro corrente, retomando a
história, onde se mostra os ultrajes dos soldados
romanos (Lc 22,63-65), as atitudes diversificadas das
autoridades do povo (Lc 23,35) e a participação dos
romanos na prisão de Jesus (Jo 18,3.12).
 Os dirigentes judeus confessam sua responsabilidade na
morte de Jesus: (Mt 27,25), escolhem Barrabás (Lc
23,25) e declaram César o único rei (Jo 18,39-40;
19,15), negando a messianidade do povo.

8.2. Por que Jesus morre?


A ressurreição coloca Jesus definitivamente na história e
mostra que Deus estava com ele (cf. At 10,34-43). A
ressurreição recupera a fé no Senhor e mostra a elevação do
Justo e sua Entronização no Reino e na Glória. As
interpretações a partir da experiência pascal procuram
79
ultrapassar o fracasso da cruz e devem, pois, ser entendidas
a partir da fé das comunidades. Segundo L. BOFF estas
interpretações contidas nos Evangelhos constituem o
resultado final de todo um processo de reflexão da
comunidade primitiva sobre o escândalo da sexta-feira
santa. A morte vergonhosa de Jesus na cruz (cf. Gl 3,13),
que no tempo significava sinal evidente do abandono de
Deus e da falsidade do profeta, fora para os primeiros
discípulos um grande problema. À luz da ressurreição e da
releitura e meditação da Escritura do Primeiro Testamento
(cf. Lc 24,13-25), começaram a fazer inteligível aquilo que
antes era absurdo.
Não há dúvida de que a morte de Jesus causou uma
grande ruptura na comunidade que vivia ao seu redor (cf.
1Cor 1,17-31), embora não se tenha dados documentais que
comprovem esta questão. Esta ruptura pode ser sentida
através de vários textos dos Evangelhos e que traduzem esta
decepção frente à morte de Jesus: a) a fuga dos discípulos
(Mc 14,50); b) decepção dos discípulos de Emaús (Lc
24,21); c) medo dos judeus (Jo 20,19).

80
A ressurreição fez com que os discípulos se constituíssem
novamente como grupo, como comunidade e conseguissem
superar o fosso cavado pela morte. Entretanto, esta
superação se fez através de muita reflexão e fazendo uso
das Escrituras. Esta reflexão procurava conciliar a morte de
Jesus na cruz, com a ressurreição, vista como sua
glorificação e exaltação. Este foi o trabalho das primeiras
comunidades: superar o paradoxo entre a morte-maldição
de Jesus (Dt 21,23; Gl 3,13) e sua glorificação-ressurreição.
Basicamente, em resumo, existem duas categorias de
interpretações sobre o significado teológico da morte de
Jesus: a partir da experiência pascal e na tradição teológica.
A- Interpretações a partir da Experiência
Pascal.
 A morte de Jesus vista como morte de um profeta.
As primeiras comunidades interpretam a morte de Jesus
na linha da tradição do martírio dos profetas. Sua morte está
diretamente articulada com a morte dos profetas. Um
primeiro passo foi considerar a cruz como o destino de um
profeta (1 Ts 2,14s; Rm 11,3), explicação que os evangelhos
retomarão (Mt 23,37; Mc 12,2s) explicitando a fonte Q que
81
se trata da rejeição de Israel aos profetas (Lc 11,49-50; Mt
23,34s), e acrescentando todos os sinóticos que o profeta
rejeitado retornará para julgar seus verdugos (Lc 12,8-9; Mt
10,32-33; Mc 8,38). Ao mesmo tempo, por estarem sendo
perseguidas, as comunidades se compreendem no
seguimento de Jesus.

 A morte de Jesus como morte do Messias


crucificado.
Esta interpretação, fazendo recorrência ao Primeiro
Testamento, procura mostrar que a morte de Jesus se insere
dentro da ambigüidade da história e que Deus nunca
abandonou seu Filho. Diante da grande expectativa de um
Messias glorioso e triunfador, era difícil compreender sua
morte na cruz. Como afirma L. BOFF: “Numa dimensão
mais profunda, Deus não o abandonou. Estava com ele no
sofrimento e na morte; não o abandonou, permaneceu com
ele na morte, de tal forma que a ressurreição mostrou a
presença de Deus nele. A ressurreição revela o escondido: o
que era escandaloso para os outros se iluminou pela
ressurreição. As profecias da morte e da ressurreição
82
querem deixar isso bem claro. Começou-se ver tudo a partir
de Deus: a atuação de Jesus, sua atividade missionária, sua
morte e ressurreição. Deus estava agindo salvificamente em
Jesus, no seu caminho, não exclusivamente na morte, mas
em tudo o que lhe aconteceu, fez, falou e viveu. Em tudo,
mesmo na morte”.
 A morte de Jesus como expiação e sacrifício.
Há muitos textos do Segundo Testamento que apontam
para o sentido da morte de Jesus como expiação dos
pecados e do sacrifício para a salvação do gênero humano.
Esta interpretação acabou também influenciando os relatos
da Ceia (cf. Mc 14,22-25; Mt 26,26-29; Jo 6,51-58; 1 Cor
11,23-26).
 A morte de Jesus como ato de solidariedade.
Há muitos textos no Segundo Testamento que apontam na
direção da morte de Jesus como um ato de solidariedade e
criador de solidariedade. Sua morte, livre e solidária, é
apontada como dom de si (Jo 3,16; 12,49-50); dom de amor
(Jo 10,11.15; 15,13); dom gratuito (1 Jo 3,16). Como
acontecimento gerador de solidariedade, a morte de Jesus, a
partir desta interpretação, exige o seguimento. Ela nos
83
liberta da Lei e mostra que estamos livres para amar.
Liberta-nos da falsa imagem de Deus e do terror paralisante
e libertando-nos do político, torna-nos co-responsáveis pela
implantação da Justiça no mundo. É neste sentido que se
pode compreender a entrega do Espírito que indica a
possibilidade de refazermos o caminho de Jesus.

B- Interpretações na Tradição Teológica.


 Teologia na mentalidade grega.
A Teologia que se deixa levar pela mentalidade grega
acaba concentrando na encarnação todo o peso da salvação,
da redenção e da libertação. Para esta mentalidade não
interessa tanto o homem concreto Jesus de Nazaré, seu
caminho pessoal, o conflito que provocou, mas sim a
humanidade universal que ele representa. Esta tradição faz
abstração do histórico em Jesus de Nazaré. A encarnação é
entendida estaticamente, como o primeiro momento da
concepção virginal de Jesus, Deus-Homem.
 Teologia na mentalidade romana ético-jurídica.
Esta mentalidade, de caráter mais jurídico, considera
como ponto central da redenção a paixão e morte de Jesus.
84
Para o pensar romano o mundo é imperfeito não tanto pelo
fato ontológico da criação, mas pela presença do pecado e
da liberdade abusada do homem. Este ofendeu a Deus e à
reta ordem da natureza. Deve reparar o mal causado. Daí
ser necessário o mérito, o sacrifício, a conversão e
reconciliação. Somente então a ordem antiga será
restabelecida e vigorará a tranqüilidade da ordem. Deus
vem ao encontro do homem: envia seu próprio Filho para
que de forma substitutiva repare com sua morte a ofensa
infinita perpetrada pelo homem. Cristo veio para morrer e
reparar. A encarnação e a vida de Jesus só possuem valor
enquanto preparam e antecipam sua morte. O protagonista
não é tanto Deus, mas o homem Jesus que, com sua ação,
repara o mal causado. Não se trata de introduzir algo de
novo, com a divinização, mas para restaurar a primitiva
ordem justa.
 Teologia na mentalidade da libertação latino-
americana.
Nesta mentalidade começa-se a pensar a salvação,
redenção e libertação a partir de toda a vida de Jesus. Toda
sua vida é libertadora; tudo em Jesus é salvífico e
85
libertador; toda a sua vida é um caminho de solidariedade:
nascimento, prática, paixão, morte e ressurreição. Nesse
caminho histórico do judeu Jesus de Nazaré ocorreu a
máxima comunicação de Deus e máxima revelação da
abertura do homem. Esse ponto alto alcançado pela história
humana é irreversível e escatológico: representa o termo de
chegada do processo humano em direção a Deus. Deu-se a
unidade, sem perda de identidade de nenhuma das partes,
entre Deus e o homem. Esse ponto ômega significa a
máxima hominização e também a plenitude da salvação e
da libertação do homem.

Articulação das imagens para exprimir a ação


salvadora.
 Expiação-sacrifício.
Esta imagem é retirada da experiência ritual e cúltica dos
sacrifícios do Templo. Com a encarnação de Jesus, Filho de
Deus, criou-se a possibilidade de um sacrifício perfeito.
Esta imagem aponta para o limite da representação que é a
figura de Deus Pai exigindo a morte de seu Filho. E por

86
outro lado, mostra seu valor, na medida em que a vida
humana tem uma estrutura sacrificial.
 Redenção-resgate-libertação.
Esta imagem está ligada ao modo de produção
escravocrata. Libertar é alforriar , pagar um resgate, para
que a pessoa possa retomar a liberdade. O limite desta
representação é tomar a redenção como um drama que se
passa entre Deus e o demônio. A pessoa se torna mero
expectador. Seu valor reside no fato de que necessitamos,
continuamente, ser salvos, pois a libertação acontece no
terreno de uma captividade profunda em que se encontra a
humanidade.
 Satisfação representativa.
Esta imagem traduz a visão jurídica do direito romano e
tem sua raiz em Tertuliano, Agostinho e Anselmo. Traduz a
necessidade irrevogável da encarnação para que a satisfação
frente ao pecado possa se realizar. Seu limite está no fato de
beber do modo de produção feudal, onde Deus é
apresentado como um Senhor Feudal absoluto que quer
cobrar a dívida a qualquer custo. Seu valor reside no fato da
pessoa ser sempre um ser não-satisfeito.
87
9. Teologia da Ressurreição.
A ressurreição está no coração do cristianismo. É
possível fazer Cristologia por causa da fé pascal, que
possibilitou o seguimento de Jesus no Espírito. Esta é a
condição indispensável de toda e qualquer Teologia. Nossa
fé depende da fé dos primeiros seguidores e seguidoras de
Jesus, homens e mulheres que, aceitando sua proposta,
acreditaram na sua presença em seu meio. É o encontro
com o Ressuscitado que fundamenta a fé dos discípulos e
discípulas. Os relatos das aparições são produzidos a partir
da fé pascal e não para provar a fé. Estamos diante da
atmosfera cultual, procurando mostrar a fé da comunidade
que acredita que o crucificado é o ressuscitado. O túmulo
vazio ou aberto não fundamenta a ressurreição de Jesus
mas, antes, indica o modo do encontro com o ressuscitado,
que se deixa encontrar na vida.
Os relatos das aparições fazem parte de um gênero
literário próprio. Eles buscam passar o querigma da
comunidade. Não são relatos de tipo histórico, mas
procuram mostrar a nova forma de presença do
ressuscitado. Há nos relatos uma continuidade e uma
88
descontinuidade, revelando que estamos diante de um
mistério que somente será captado pela fé. Somente quem
tem fé é que pode ver o ressuscitado (cf. 1 Jo 1,1-4).
A ressurreição ratifica o caminho histórico de Jesus e
manifesta a aceitação por Deus Pai da sua vida, sua prática
e sua morte (Jo 8,14; 14,6). A ressurreição confirma que a
morte não tem a última palavra sobre a vida de Jesus. Esta
certeza de que Jesus venceu a morte abre a possibilidade de
se proclamar o seu senhorio e seu reinado sobre toda a
história sobre todo o universo. A ressurreição aponta que
toda a humanidade tem um horizonte definido, caminhando
para a perspectiva da plenitude onde Deus será tudo em
todos (1 Cor 15,24-28). Assumindo a causa do oprimido e
aproximando-se dos deserdados e excluídos, o crucificado
que é o ressuscitado torna-se a esperança dos que esperam
contra toda esperança.

O Evento Bíblico da Ressurreição.


 O túmulo vazio (Mc 16,1-8; Mt 28,1-8; Lc 24,1-8; Jo
20,1-10).

89
Estamos diante de textos que são escritos a partir da fé e
não para provar a fé. A perspectiva dominante é cultual.
Não se está preocupado em provar nada, mas sim mostrar a
fé da comunidade que venera o sepulcro vazio de Jesus.
SOBRINO prefere o termo sepulcro aberto. O Segundo
Testamento nunca fundamenta a ressurreição de Jesus no
fato de que o sepulcro estivesse vazio, mas sim, no
encontro com o ressurreto. O Catecismo da Igreja Católica
no nº 640 diz: “No conjunto dos acontecimentos da Páscoa,
o primeiro elemento com que se depara é o sepulcro vazio.
Ele não constitui em si uma prova direta. A ausência do
corpo de Cristo no túmulo poderia explicar-se de outra
forma. Apesar disso, o sepulcro constitui para todos um
sinal essencial”.

 O testemunho das mulheres (Mt 28,1-8; Mc 16,1-8; Lc


24,1-12; Jo 20,1-2.11-18), dos apóstolos (Jo 20,3-10.19-
20), dos guardas (Mt 27,62-66;28,4).
Estes relatos mostram a relação da ressurreição de Jesus
com sua história. Além de indicar o papel da mulher e dos
discípulos na vida de Jesus, manifestam que a páscoa está
90
em relação direta com a vida de Jesus e quem experimenta
a experiência pascal são aquelas e aqueles que o seguiram
em vida. Segundo SCHILLEBEEKX: “o caminho de vida
de Jesus é, com efeito, em si mesmo práxis do reino de
Deus e antecipação histórica da ressurreição, e sua morte é
parte integrante deste caminho de sua vida”.
Depois da morte de Jesus, os discípulos se dispersam (cf.
Mc 14,27): fogem e têm medo. Estão mais mortos que o
próprio Jesus. Afinal, morreu neles a esperança. A
experiência da ressurreição aconteceu primeiro para as
mulheres e depois aos homens (cf. Mt 28,9-10; Mc 16,9; Lc
24,4-11.23; Jo 20,13-16). Estes textos retratam que a
“esperança venceu o medo”. Eles mesmos ressuscitaram.
A ressurreição de Jesus é a confirmação de que, para
Deus, a última palavra não é a morte. Jesus, que sempre
defendeu a vida, foi morto pelos poderes deste mundo, mas
Deus o ressuscitou. Vida vivida como Jesus viveu, em
obediência ao Pai e a serviço do povo, é vida vitoriosa.
Deus a ressuscita. Esta é a mensagem central do Evangelho
em torno do qual surgiram as comunidades.

91
Em resumo, pode-se afirmar que crer na ressurreição
é:
 Voltar para Jerusalém, de noite, reunir a comunidade e
partilhar as experiências, sem medo dos judeus e dos
romanos (cf. Lc 24,33-35).
 Receber a força do Espírito Santo, abrir as portas e
anunciar a Boa Nova à multidão (cf. At 2,4).
 Ter coragem de dizer: “É preciso obedecer antes a Deus
que aos homens” (At 5,29).
 Reconhecer o erro e voltar para a casa do Pai (cf. Lc
15,32).
 Sentir a mão de Jesus ressuscitado que, nas horas
difíceis, nos diz: “Não tenha medo! Eu sou o Primeiro e
o Último. Sou o Vivente. Estive morto, mas eis que
estou vivo para sempre. Tenho as chaves da morte e da
morada dos mortos” (cf. Ap 1,17s).

Questões para pensar e trocar idéias.

92
1. A morte de Jesus não foi da vontade de Deus Pai. A
morte de Jesus foi a conseqüência de sua vida – plena
adesão ao Reino.
2. “De tão humano assim, só poderia ser divino” (F.
Pessoa e L. Boff). Refletir sobre a verdade de fé que
diz: Jesus é verdadeiramente humano e
verdadeiramente divino.
3. Como falar da Cruz como “penhor de salvação” sem se
cair em fatalismo ou masoquismo religioso?
4. A morte de Jesus foi vista pelos dirigentes “piedosos”
como um sacrifício necessário, exigido pela Lei. Hoje,
o Mercado continua exigindo sacrifícios através da
morte de crianças de rua, sem terra, sem teto, índios,
afirmando a necessidade de se purificar a cidade. O que
há em comum nestas mortes?
5. O que dizer do filme “Paixão” de M. Gibson. Você o
recomenda a seus amigos? Porquê?
6. O que dizer de Maria, a mãe de Jesus?

93
A Ressurreição de Jesus4.
Até hoje a ressurreição acontece. Ela nos faz
experimentar a presença de Jesus na comunidade, no
cotidiano e nos leva a cantar: “quem nos separará, quem vai
nos separar, do amor de Cristo, quem nos separará? Se ele é
por nós, quem será, quem será contra nós? Quem vai nos
separar do amor de Cristo, quem será?” (cf. Rm 8,23).
Nada, ninguém, autoridade alguma é capaz de neutralizar o
impulso criador da Ressurreição (Rm 8,38-39). A
experiência da Ressurreição ilumina a cruz e a transforma
em sinal de vida (cf. Lc 24,25-27). Abre os olhos para
entendermos o significado das Sagradas Escrituras (cf. Lc
24,44-48) e ajuda a entendermos as palavras e os gestos do
próprio Jesus (cf. Jo 2,21-22; 5,39;14,26).
Com a força que vem da fé na ressurreição, as
comunidades enfrentam hoje a ameaça do caos e da morte e
contribuem para que o mundo seja um lugar favorável à
vida. Uma comunidade que quiser ser testemunho fiel da
Boa Nova da Ressurreição deve ser sinal de vida, deve lutar
pela vida contra as ameaças de morte.

4
DIOCESE DE GUAXUPÉ. Tempo de Ver. Tempo de Crer e amar! Módulo II. Guaxupé, 2003, pp. 103s.
94
Não é fácil seguir Jesus e andar com ele na contramão da
sociedade. Ele exige muito. Pede que a gente esteja disposta
a perder a vida por amor a ele e ao Evangelho (cf. Mc
8,35). O Evangelho de Marcos, escrito no ano 70 d.C., é
escrito para uma comunidade que corria o perigo de
desanimar e queria saber como seguir Jesus naquela
situação difícil. Marcos responde apresentando a caminhada
dos primeiros discípulos de Jesus, como um espelho para
todo aquele que deseja seguir Jesus. Vejamos.
No início da caminhada o entusiasmo era grande, aos
poucos aparecem as falhas. Muitas vezes os discípulos não
entendiam nada (cf. Mc 4,13.41). Jesus teve muita
paciência com eles (cf. Mc 9,19). No fim, Judas o traiu,
Pedro o negou (cf. Mc 14,37-39.45.68-72), e todos o
abandonaram (cf. Mc 14,50). Fugiram. Romperam com
Jesus.
Mas Jesus não rompeu com eles. Continuou acreditando
neles. Depois da ressurreição pediu que fossem reencontrá-
lo na Galiléia (cf. Mc 16,7). Os discípulos tinham
desanimado de seguir Jesus. Jesus não desanima de chamá-
los de novo. Se isto não estivesse escrito, não daria para a
95
gente acreditar. Ora, a mesma atitude, Jesus a conserva para
conosco. Ele nos manda o mesmo recado. Jesus continua
esperando por nós à beira do lago. Tem esperança.
E o Verbo se fez carne
No ventre de Maria
Deus se fez homem.
Mas na oficina de José
Deus também se fez classe.

E o verbo se fez índio


O Verbo se fez carne
O Verbo se fez pobre
O Verbo se faz índio...
Planta em nós
A sua maloca.
(Dom Pedro Casaldáliga)

10. Bibliografia.
1. LIBANIO, João Batista. Sempre Jesus. A caminho do
Novo Milênio. São Paulo: Paulinas, 1998. Existe,

96
também, a versão vídeo-texto exposta pelo próprio
autor.
2. FERRARO, Benedito. Cristologia. Petrópolis: Vozes,
2004.
3. FELLER, Vitor Galdino. Jesus de Nazaré. Homem
que é Deus. Petrópolis: Vozes, 2004.
4. MESTERS, Carlos. Com Jesus na contramão. São
Paulo: Paulinas, 1995.
5. BOFF, Leonardo. Paixão de Cristo, paixão do mundo.
Petrópolis: Vozes, 1977.
6. ______________. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis:
Vozes, 1972.
7. SOBRINHO, João. A fé em Jesus Cristo – Ensaio a
partir das vítimas. Petrópolis: Vozes, 2000.
8. SEGUNDO, Juan Luiz. A História perdida e
recuperada de Jesus de Nazaré. São Paulo: Paulus,
1997.
9. CNBB. Caminhamos na Estrada de Jesus. São Paulo:
Paulinas, 1996.
10. DIOCESE DE GUAXUPÉ. Tempo de Ver.
Tempo de Crer e amar! Módulo II. Guaxupé, 2003.
97

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