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Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.

QUANDO A TRAIÇÃO TORNA-SE UMA ENFERMIDADE: A INFIDELIDADE


POLÍTICA E A PRÁTICA DO MORBO GOTHORUM NO REINO HISPANO-
VISIGODO DE TOLEDO (SÉCULO VII)

WHEN BETRAYAL BECOMES AN ILLNESS: POLITICAL INFIDELITY AND


PRACTICE OF MORBO GOTHORUM IN THE HISPANO-VISIGOTH
KINGDOM OF TOLEDO (SEVENTH CENTURY).

Renan Frighetto
Universidade Federal do Paraná

_________________________________________________________________________________________________________

Resumo: Ao longo do século VII, o reino Abstract: Throughout the seventh century,
hispano-visigodo de Toledo foi palco de the Hispano-Visigoth kingdom of Toledo
diversas tentativas de usurpação do poder was the scene of several attempts of
régio por parte de segmentos aristocráticos e usurpation of royal power by aristocratic
nobiliárquicos rivais ao rei e aos seus mais and noble segments rivals to the king and
próximos aliados políticos. Atitudes que his closest political allies. Attitudes that
reforçam a ideia, presente na historiografia, reinforce the idea, present in the
da incontrolável sanha infiel de importantes historiography of uncontrollable infidel’s
grupos aristocrático-nobiliárquicos contra o rage important aristocratic-noble groups
monarca reinante e contra o reino. Esta against the reigning monarch and against
tendência à traição, com a ruptura dos the kingdom. This tendency to betrayal,
juramentos de fidelidade prestados ao rei, with the disruption of loyalty oaths
denominada como o morbo gothorum, provided the king, the morbo gothorum,
aparece nas fontes como uma autêntica appears in the sources as a true "political
“enfermidade política” que enfraqueceu a illness" that weakened the Hispano-
instituição monárquica hispano-visigoda, Visigoth monarchic institution, leading the
levando o regnum gothorum à confrontação regnum gothorum to the internal
interna e a consequente desaparição no início confrontation and consequent
do século VIII. disappearance in the early eighth century.
Palavras-chave: Antiguidade Tardia; Keywords: Late Antiquity; Hispano-
Reino Hispano-visigodo de Toledo; Visigoth Kingdom of Toledo; Political
Infidelidade Política; Traição Política; Infidelity; Political Betrayal; Morbo
Morbo Gothorum. Gothorum.
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Recebido em: 05/05/2016


Aprovado em: 25/06/2016

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“…lo que era más digno de ser historiado…”1

A escrita da história, os seus reflexos e suas relações com o poder.

A primeira vista pode parecer curioso que iniciemos nosso estudo evocando o
relevo que o conhecimento histórico deve ocupar na formação de cada individuo que
reverberará no aprimoramento do conjunto de toda a sociedade ou, como diriam os
autores da época clássica, da comunidade cívica2. De fato, desde os tempos de Heródoto
e Tucídides, conhecer o passado tinha uma concepção figurada no sentido de “tornar
claro” os mais importantes acontecimentos de outrora que foram, em alguns casos,
vivenciados pelo próprio autor daquela narrativa sendo, na maioria das vezes,
desconhecidos por aquele que os descobria através da declamação ou da leitura. Logo ao
“tornar claro” um acontecimento, descrevendo-o e explicando-o, aquele que escrevia a
história acabava oferecendo ao conjunto dos cidadãos uma perspectiva própria, particular,
que ao alcançar um público maior ganhava uma conotação e compreensão mais ampla,
exemplar e universal 3 . Lembramo-nos, por exemplo, das detalhadas descrições de
batalhas, cercos e destruições de cidades que revelavam, por certo, tanto o olhar
presencial daqueles episódios como a fascinação por determinados personagens e
sistemas políticos que destacavam-se naquele contexto que era objeto da abordagem do
autor da história4. Uma história escrita em primeira pessoa e que encontra ecos em outros
documentos, em outras fontes manuscritas e arqueológicas que a tornam, também, única

1
GASCÓ, Fernando, La crisis del siglo III y la recuperación de la Historia de Roma como un tema digno
de ser historiado, Studia Historica Historia Antigua, v. IV-V, 1986-1987, p.171.
2
CICERUS, DE PLINVAL, Georges (ed.). De Legibus, I, 5-6, Paris: Les Belles Lettres, 1959; CICERÓN, Sobre
el orador, II, 12, 51 ; 15, 62-63. Introdução, tradução e notas: José Javier Iso. Madrid: Editorial Gredos, 2002; ver
também PICAZO GURINA, Marina, Los hombres reunidos en la plaza: la toma de decisiones colectivas en el
mundo antiguo, Gerión, v. 31, 2013, pp. 211; ANDRÉS SANTOS, Francisco J. Roma. Instituciones e ideologías
políticas durante la República y el Imperio. Madrid: Editorial Tecnos, 2015, p.105-112.
3
PRADO, Anna, ROMILLY, Jacqueline. Tucídides. História da Guerra do Peloponeso: Livro I (=Tuc.,
HGP). São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. XXI; NICOLAI, Roberto. The place of history in the ancient
world. In: MARINCOLA, J. (ed.). A Companion to Greek and Roman Historiography. Oxford: Blackwell,
2007, v. I, p.14-15.
4
Como, por exemplo, no caso de Políbio ao narrar os cercos e destruição de Cartago e Numancia onde surge, de
forma destacada, o grande personagem da república romana no século II a.C., Cipião Emiliano. Para tanto, vide
MOMIGLIANO, Arnaldo. Os limites da helenização. A interação cultural das civilizações grega, romana, céltica,
judaica e persa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p.27-49; GABBA, Emilio, Aspectos culturales del
imperialismo romano. In: GABBA, Emilio, LAFFI, Umberto, Sociedad y política en la Roma republicana. Pisa:
Pacini Editore, 2000, p.209-234; ANDRÉS SANTOS, Francisco J. Roma. Instituciones e ideologías políticas
durante la República y el Imperio. Madrid: Editorial Tecnos, 2015, p. 126-131.

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e, ao mesmo tempo, universal e plena de vários exempla para “contribuir à formação do


cidadão e do homem de poder”5.

Esta perspectiva universal aparece, também, em muitas outras obras históricas ao


longo do processo histórico, motivo pelo qual a definição e o conceito de história ganharam
explicações bastante interessantes e acordes com o contexto histórico daqueles que tentaram
oferece-las. Vejamos um caso em particular relacionado com as nossas pesquisas e que faz
referência ao conceito de história na Antiguidade Tardia: referimo-nos aos escritos legados
pelo bispo Isidoro de Sevilha (560? – 636+), indubitavelmente um dos maiores baluartes
político-culturais do reino hispano-visigodo de Toledo e de todo o ocidente tardo-antigo dos
primórdios do século VII6. Em um de seus mais importantes tratados, as Etimologias, o
hispalense7 apresenta uma interessante explicação sobre o que seria a história:

História é a narração dos acontecimentos pela qual se conhecem os


sucessos que tiveram lugar no passado. O nome história deriva em
grego de historein que significa ‘ver’ ou ‘conhecer’. É que entre os
antigos escreviam histórias apenas aqueles que tinham sido
testemunhos e haviam visto os fatos que deviam ser narrados. Melhor
conhecermos os fatos que observamos com nossos próprios olhos que
aqueles que sabemos de ouvido8.

Parte significativa desta definição segue, em linhas gerais, aquela já apresentada pelos
autores das épocas clássica e helenística9. Porém, a parte final da citação isidoriana aporta algo
de novo com relação aos autores do passado greco-romano, quando afirma que, do ponto de

5
NICOLAI, Roberto. The place of history in the ancient world. In: MARINCOLA, J. (ed.). A Companion
to Greek and Roman Historiography. Oxford: Blackwell, 2007, v. I, p.24.
6
DIAZ Y DIAZ, Manuel Cecilio. De Isidoro al siglo XI. Ocho estudios sobre la vida literaria peninsular.
Barcelona: El Albir Universal, 1976, pp.143-201; FONTAINE, Jacques. Isidoro de Sevilla. Génesis y
originalidad de la cultura hispánica en tiempos de los visigodos. Madrid: Ediciones Encuentro, 2002, p.85-
98; FRIGHETTO, Renan. A comunidade vence o indivíduo. A regra monástica de Isidoro de Sevilha (século
VII). Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 65-74.
7
Hispalense é “oriundo de Sevilha” ou “sevilhano”, epíteto aplicado pela historiografia a Isidoro por ter,
provavelmente, nascido e recebido sua formação erudita e ocupado a função episcopal em Hispalis/Sevilha.
8
As traduções ao português feitas neste artigo são do autor deste trabalho. Nesse sentido, oferecemos em nota as
citações latinas das mesmas. ISIDORUS HISPALENSIS, DIAZ Y DIAZ, Manuel (ed.), OROZ RETA, Jose (ed.),
MARCOS CASQUERO, Manuel(ed.). Etymologiarum Libri XX (= Isid., Etym.). Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1982. Isid., Etym, I, 41, 1: “Historia est narratio rei gestae, per quam ea, quae in praeterito facta sunt,
dinoscuntur. Dicta autem Graece historia (...), id est a videre vel cognoscere. Apud veteres enim nemo conscribebat
historiam, nisi is qui interfuisset, et ea quae conscribenda essent vidisset. Melius enim oculis quae fiunt
deprehendimus, quam quae auditione colligimus”.
9
Tuc., HGP, I, 22, 3-4; POLIBIUS, DIAZ TEJERA, A. (ed.), BALASH RECORT, Manuel, (ed). Historias,
I, 1-6. Madrid: Editorial Gredos – Biblioteca Clásica Gredos 38, 1981.

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vista da história, aquilo que vemos tem mais “veracidade” do que se a mesma informação fosse
ouvida. Ideia complementada pelo próprio hispalense com a seguinte afirmação:

As coisas que se veem podem narrar-se sem falsidade. Esta disciplina


(história) se integra na gramática porque às letras se confia tudo que é
digno de recordação...10.

Nesse caso, o pensamento isidoriano apresenta-se totalmente vinculado as


interpretações legadas por Agostinho de Hipona (354 – 430+) no seu tratado De Ordine,
onde a relação entre a história, a verdade e as letras levavam o conhecimento histórico a
ser integrado no âmbito da Gramática11. Mas, além disso, percebemos uma interessante
vinculação entre o escrito, manuscrito gravado pelas letras, como aquilo que é visto,
presenciado pelo ato de ler o documento escrito fazendo com que este seja um reflexo da
verdade e, ao mesmo tempo, signo evidente da história. Portanto, podemos dizer que
Isidoro de Sevilha oferece-nos uma concepção histórica transformada, atualizada com
relação ao mundo clássico-helenístico que o precedeu, acentuando a importância dada ao
documento manuscrito que legaria às gerações futuras a “verdade” da história nele
contida. Essa associação complementa-se com o destaque oferecido pelo hispalense ao
leitor das informações passadas pelas obras de história:

As histórias dos povos não deixam de proporcionar aos leitores coisas


úteis que nelas são ditas. Muitos sábios, tomando-as das histórias,
narraram acontecimentos humanos de épocas passadas para
ensinamento do momento presente...12

Assim, a história teria um papel fundamental ao formar e informar o indivíduo, na


medida em que o passado, registrado e preservado, ofereceria lições, ensinamentos e
alertas ao leitor no seu presente histórico. Certamente aquele, o leitor, pertenceria a um
grupo mais destacado do ambiente sociopolítico e cultural naquelas monarquias romano-
bárbaras onde circulavam as histórias dos mais variados grupos, fossem eles de

10
Isid., Etym., I, 41, 2: “Quae enim videntur, sine mendacio proferuntur. Haec disciplina ad Grammaticam
pertinet, quia quidquid dignum memoria est litteris mandatur...”.
11
AURELII AUGUSTINI HIPPONENSIS EPISCOPI, . MIGNE,J.-P. (ed.). De Ordine, II, 12, 37. Paris:
Patrologia Latina XXXII, 1861; sobre a importância da Gramática na obra isidoriana, FONTAINE, Jacques.
Isidoro de Sevilla. Génesis y originalidad de la cultura hispánica en tiempos de los visigodos. Madrid:
Ediciones Encuentro, 2002, p.116.
12
Isid., Etym., I, 43: “Historiae gentium non inpediunt legentibus in his quae utilia dixerunt. Multi enim
sapientes praeterita hominum gesta ad institutionem praesentium historiis indiderunt…”

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procedência “bárbara”, romana ou da fusão daquelas13, desvelando outra importantíssima


função da história, a de estabelecer ou “criar” identidades contemporâneas ao autor que a
escreveu. Por esse motivo, o hispalense estabeleceu uma distinção entre dois estilos de
escrita histórica que podem nos auxiliar na compreensão dessa criação identitária
personalizada pela lógica de um autor específico:

...A diferença entre história e anais fixa-se em que a historia tem por tema
tempos que presenciamos, enquanto que os anais se referem aos anos que
nós não conhecemos. Por isso que Salustio figura como autor de História;
e Livio, Eusébio e Jerônimo, de Anais e de História.14

Para “tornar clara” esta narrativa do passado/presente através das obras de história,
seria necessária a aplicação de um método que auxiliasse o autor de história em sua caminhada
redacional, aspecto este muitas vezes olvidado por aqueles que estudam a produção
historiográfica, lançando aos séculos XVIII, XIX e XX a “invenção” e a incorporação da
metodologia como princípio gerador do conhecimento histórico-científico. Embora sem a
conotação científica, mas amparado no preceito de disciplina voltada ao saber, a escrita da
história nos mundos antigo, tardo-antigo e medieval contemplava a existência de um método
com vistas a alcançar resultados, como os que são indicados pelo pensamento isidoriano:

...As histórias recebem também o nome de ‘monumentos’ porque


guardam a recordação dos acontecimentos ocorridos. Se chamam
‘séries’, graças ao sentido translato de guirlanda de flores, entrelaçadas
umas com as outras.15

...Durante muitos séculos foram governados por chefes, depois por reis,
cuja cronologia, nomes e atuação convêm expor por ordem e
sucessivamente, servindo-nos para isso de dados retirados das histórias.16

13
VELAZQUÉZ, Isabel. Pro Patriae Gentisque Gothorum statv (4th Council of Toledo, canon 75, a.633).
In: GOETZ, H. W. (org.), JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship
between Late Antique and Early Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world.
Leiden-Boston: Brill, 2003, p.165; GEARY, Patrick. O Mito das Nações. A invenção do nacionalismo. São
Paulo: Conrad Livros, 2005, p.149-158; FRIGHETTO, Renan, Identidade(s) e fronteira(s) na Hispania
visigoda, segundo o pensamento de Isidoro de Sevilha (século VII). In: FERNANDES, F. R. (org.).
Identidades e Fronteiras no Medievo Ibérico. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p.111-116.
14
Isid., Etym., I, 44, 4: “...Inter historiam autem et annales hoc interest, quod historia est eorum temporum
quae vidimus, annales vero sunt eorum annorum quos aetas nostra non novit. Vnde Sallustius ex historia,
Livius, Eusebius et Hieronymus ex annalibus et historia constant."
15
Isid., Etym., I, 41, 2: “...Historiae autem ideo monumenta dicuntur, eo quod memoriam tribuant rerum
gestarum. Series autem dicta per translationem a sertis florum invicem conprehensarum.”
16
ISIDORI HISPALENSIS EPISCOPI, De origine gothorum (=Isid.,HG), 2: “...Per multa quippe retro
saecula ducibus usi sunt, postea regibus, quorum oportet tempora per ordinem cursim exponere et quo
nomine actuque regnauerint, de historiis libata retexere”, RODRÍGUEZ ALONSO, Cr (ed.). Las Historias
de los Godos, Vandalos y Suevos de Isidoro de Sevilla. Leon, Colegiata de San Isidoro, 1975.

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Logo, de acordo com estas citações isidorianas, o recurso da consulta aos


documentos manuscritos, dentre os quais encontramos as histórias, seria a via
preferencial para o desenvolvimento da própria história, sempre relatada segundo o
seu curso cronológico. Assim, a história concilia-se com a cronologia e podemos dizer
que a primeira inexiste sem a segunda aparecendo, na perspectiva do hispalense, de
forma lógica, sequencial e explicativa. Para tanto, as histórias necessitavam alimentar-
se de outros documentos que seriam complementares e confirmadores das
informações oferecidas. Estes seriam de caráter múltiplo, legislativos, epistolares,
panegirísticos, biográficos e autobiográficos que contribuiriam decisivamente à
elaboração e confirmação das afirmações apresentadas nas histórias. O próprio
hispalense oferece-nos um exemplo desta busca ao informar um aspecto, apontado
como relevante, que fora desenvolvido pelos godos a partir do reinado de Eurico (466
– 484+): “...Em seu reinado, os godos começaram a ter leis escritas, pois
anteriormente se regiam somente segundo seus usos e costumes...” 17. É evidente que
o relato histórico isidoriano recuperava um dado inquestionável, o da formulação do
código de Eurico, conjunto de leis válidas aos godos redigido entre 469 e 481 e
paralelo ao conjunto legislativo maior representado pelo código imperial reunido pelo
imperador romano-oriental Theodosio II (422 – 450+) aplicado aos súditos de origem
romana18. Por outro lado, observamos certas “lacunas” deixadas na história isidoriana
sobre as informações relativas a outros monarcas godos, caso do antecessor de Eurico,
seu irmão Theodorico II (430 – 466+) que de acordo com o bispo de Clermont-Ferrand
e contemporâneo ao crescimento da hegemonia goda sobre a Galia, Sidônio
Apolinario, já teria promulgado leis entre os godos antes de Eurico:

...Exaltando os godos e insultando os romanos, zombando dos prefeitos


por fazerem acordos com os oficiais do tesouro, atropelavam as leis de

17
Isid., HG, 35: “...Sub hoc rege Gothi legum instituta scriptis habere coeperunt, nam antea tantum
moribus et consuetudine tenebantur...”.
18
WARMALD, Patrick. The Leges Barbarorum: law and ethnicity in the post-roman west, in: GOETZ, H.
W. (org.), JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship between Late Antique
and Early Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world. Leiden-Boston: Brill,
2003, p.27-28; DUMÉZIL, Bruno. Le comte et l’administration de la cité dans le Bréviaire d’Alaric. In:
ROUCHE, M., DUMEZIL, B. (dir.). Le Bréviaire d’Alaric. Aux origines du Code civil Paris: Press
Universitaire Paris-Sorbonne, 2008, p.85; HILLGARTH, Jocelyn. The Visigoths in history and legend.
Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 2009, p.8-9.

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Theodosio substituindo-as pelas de Theodorico, buscavam antigos


delitos e novos impostos...19 .

É possível que este “esquecimento” no relato histórico isidoriano tivesse relação


direta com a recuperação e atualização das leges antiquas existentes no código de Eurico
a partir do reinado de Leovigildo (569 – 586+), promotor da grande ação hegemônica
goda sobre a Hispania e que leva-nos a sugerir a existência de uma monarquia hispano-
visigoda a partir de então20. Como nos indica Isidoro:

...Além disso, em matéria legislativa (Leovigildo) corrigiu tudo aquilo


que parecia haver ficado confusamente estabelecido por Eurico,
agregando muitas leis omitidas e tirando as supérfluas...21.

Dessa forma podemos dizer que a história dos godos do hispalense tinha, como
foco central, refletir o seu presente histórico como produto dos acontecimentos
selecionados, ou por ele conhecidos, ocorridos no passado mais distante e diretamente
vinculado aos godos e a sua supremacia política sobre o império romano e as monarquias
romano-bárbaras dele herdeiras no ocidente tardo-antigo. Com isso a “verdade” histórica
proposta pelo relato isidoriano relacionava-se ao fortalecimento da monarquia hispano-
visigoda fundamentado, por um lado, nas vitórias militares iniciadas no tempo de
Leovigildo e “concluídas” no reinado de Suinthila (621 – 631) e, por outro, pela
conversão ao catolicismo realizada no III concílio de Toledo de 589 durante o reinado do
filho e sucessor de Leovigildo, Recaredo (586 – 601+). De fato, estes últimos
acontecimentos são apresentados pelo relato isidoriano de uma forma quase épica,

19
SIDONII APOLINARIS, LOYEN, André (ed.). Epistularum, Paris: Les Belles Lettres, 2003, livre I. Ep., II, 1,
3: “...exsultans Gothis insultansque Romanis, inludens praefectis conludensque numerariis, leges Theodosianas
calcans Theudoricianasque proponens ueteres culpas, noua tribute perquirit...”. Na opinião de VALVERDE
CASTRO, Maria Rosario. Ideología, simbolismo y ejercicio del poder real en la monarquía visigoda: un proceso
de cambio. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2000, p. 71, “…Es más probable pensar, por lo tanto,
que fuera Teodorico II el otro de los monarcas legisladores, anteriores a Eurico, a los que parece hacer referencia el
Codex Euricianus…”; WARMALD, Patrick. The Leges Barbarorum: law and ethnicity in the post-roman
west, in: GOETZ, H. W. (org.), JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship
between Late Antique and Early Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world.
Leiden-Boston: Brill, 2003, p.26.
20
GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Madrid: Catedra, 1989, p. 113-131; VELAZQUÉZ,
Isabel. Pro Patriae Gentisque Gothorum statv (4th Council of Toledo, canon 75, a.633). In: GOETZ, H. W. (org.),
JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). .). Regna and Gentes. The relationship between Late Antique and Early
Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world. Leiden-Boston: Brill, 2003, p.173-174;
FRIGHETTO, Renan. Símbolos e rituais: os mecanismos do poder político no reino hispano-visigodo de Toledo
(séculos VI – VII), Anos 90, v. 22, n. 42, 2015, p.250-253; FRIGHETTO, Renan. A comunidade vence o indivíduo.
A regra monástica de Isidoro de Sevilha (século VII). Curitiba: Editora Prismas, 2016, p.36.
21
Isid., HG, 51: “...In legibus quoque ea quae ab Eurico incondite constituta uidebantur correxit, plurimas
leges praetermissas adiciens plerasque superfluas auferens...”

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direcionando toda a sua energia para realçar a grandeza dos monarcas responsáveis por
tais iniciativas e, consequentemente, da monarquia hispano-visigoda:

...Desde os primórdios de seu reinado Recaredo se converteu à fé católica


e levou ao culto da verdadeira fé a todas as gentes godas, apagando assim
a mancha de um erro enraizado. Em seguida, reuniu um sínodo de bispos
das diferentes províncias da Hispania e da Galia para condenar a heresia
ariana. A este concílio assistiu o próprio religiosíssimo principe e com
sua presença e subscrição confirmou suas atas...22.

...Mas, depois que ascendeu à dignidade do poder real (Suinthila)


ocupou, em um combate, as cidades restantes que administrava o
exército romano na Hispania, alcançou por seu feliz êxito a gloria de
um triunfo superior ao dos demais reis, visto que foi o primeiro que
obteve o poder monárquico sobre toda a Hispania peninsular, fato que
não se deu com nenhum principe anterior...23.

Ao mesmo tempo, verificamos que as informações contidas tanto nos escritos


isidorianos como nos de outros autores hispano-visigodos encontram ecos na legislação
laico-eclesiástica publicada ao longo do século VII, especialmente quando o tema centra-
se nas tentativas de usurpação desferidas contra o poder régio hispano-visigodo e as suas
consequências que incluíam, também, penalizações e castigos24. Sabemos que algumas
ações usurpatórias perpetradas resultaram na vitória dos promotores da usurpação que
alcançaram a condição régia, casos de Sisenando (631 – 636+), Chindasvinto (642 –
651+) e Ervigio (680 – 687+), enquanto outras, como a liderada pelo conde Froya (652)
e a conduzida pelo duque Paulo (672), foram duramente aplacadas pela força do poder
régio vigente. Estas últimas, marcadas pela derrota dos usurpadores, apresentam-nos um
denominador comum que será analisado a partir de agora: ambas aparecem marcadas nas
fontes históricas por uma prática consuetudinária que sempre esteve associada aos grupos
aristocráticos godos, o morbo gothorum, que pode ser visto como uma atitude de traição

22
Isid., HG, 52-53: “...In ipsis enim regni sui exordiis catholicam fidem adeptus totius Gothicae gentis
populos inoliti erroris labe detersa ad cultum rectae fidei reuocat. Synodum deinde episcoporum ad
condemnationem Arrianae haeresis de diuersis Spaniae et Galliae prouinciis congregat, cui concilio idem
religiosissimus princeps interfuit gestaque eius praesentia sua et subscriptione firmauit...”
23
Isid., HG, 62: “...Postquam uero apicem fastigii regalis conscendit, urbes residuas, quas in Spaniis
Romana manus agebat, proelio conserto obtinuit auctamque triumphi gloriam prae ceteris regibus
felicitate mirabili reportauit, totius Spaniae intra oceani fretum monarchiam regni primus idem potitus,
quod nulli retro principum est conlatum...”
24
FRIGHETTO, Renan, El exilio, el destierro y sus concepciones políticas en la Hispania visigoda: los ejemplos
de Juan de Bíclaro e Isidoro de Sevilla (siglos VI – VII). In: VALLEJO GIRVÉS, Margarita (ed.), BUENO
DELGADO, Juan Antonio (ed.), SÁNCHEZ-MORENO ELLART, Carlos (ed.). Movilidad forzada entre la
Antigüedad Clásica y Tardía. Alcalá de Henares: Ediciones Universidad de Alcalá de Henares, 2015, p.111-134.

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endêmica ou, pelo contrário, como demonstração das disputas aristocrático-


nobiliárquicas pelo acesso ao poder régio no reino hispano-visigodo de Toledo.

O morbo como sinônimo de traição: a enfermidade política entre os godos.

Inicialmente, devemos buscar uma definição etimológica apresentada pelos


autores hispano-visigodos sobre o termo morbo. Para Isidoro de Sevilha, morbo tinha
uma evidente vinculação aos problemas adquiridos por um corpo adoentado e debilitado
por uma enfermidade:

No nome genérico de ‘enfermidade’ se resumem todas as mazelas do


corpo (morbi). Os antigos lhe deram o nome de morbus, para mostrar
com esta denominação a mortis vis ou a força da morte que da
enfermidade se origina...25.

Ou seja, seguindo a descrição oferecida pelo hispalense encontramos uma relação


entre os morbi/mazelas relacionados às doenças e enfermidades que assolavam o corpo
humano e que sem o tratamento adequado poderiam leva-lo a morte. Ao que tudo indica,
esse foi o caso relatado pelo próprio Isidoro sobre a morte do rei Sisebuto (612 – 621+)
que “para uns morreu de morte natural, para outros como consequência de ter ingerido
uma dose excessiva de medicamentos”26, realçando a ideia de que a enfermidade poderia
incrementar-se tanto pelos excessos como pelas ausências.

Outro exemplo, mais genérico, encontramos na crônica de Máximo de Zaragoza


que se refere à morte do rei Leovigildo ocorrida após uma grave enfermidade27 e que,
curiosamente, aparece intimamente vinculada com a condição herética do falecido
monarca hispano-visigodo. Aqui encontramos uma interessante analogia entre a
enfermidade que debilita e elimina a vida com aquela que, desde uma perspectiva moral,
destrói a alma e os valores que se destacam pelas virtudes próprias do homem defendidas
pela visão católica que, corroídas pela ambição, se transformam em vícios e pecados. Ao
defender e promover o arianismo, Leovigildo apresentava-se, aos olhos dos autores

25
Isid., Etym., IV, 5, 2: “Morbi generali vocabulo omnes passiones corporis continentur; quod inde veteres
morbum nominaverunt, ut ipsa appellatione mortis vim, quae ex eo nascitur, demonstrarent...”
26
Isid., HG, 61: “...Hunc alii proprio morbo, alii inmoderato medicamenti haustu asserunt interfectum...”
27
MAXIMI CAESARAUGUSTANI, MIGNE, J.-P. (ed.). Chronicon. Paris: Patrologia Latina LXXX,
1849. Chronicon, a.587: “...Leovigildus, ingravescente morbo...”.

124
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católicos hispano-visigodos, como o maior inimigo da verdadeira fé, infiel e traidor em


potencial. Sua apresentação por Isidoro reforça essa imagem negativa e pejorativa:

Com efeito, cheio de furor da perfídia ariana, (Leovigildo) promoveu


uma perseguição contra os católicos, relegou ao exílio a muitíssimos
bispos e suprimiu as rendas e privilégios das igrejas. Empurrou,
também, muitos à pestilência ariana com ameaças e a maior parte
seduziu sem perseguição atraindo-os com ouro e riquezas. Entre outros
contágios de sua heresia, se atreveu a rebatizar os católicos...28.

Nesta mesma direção é apresentada a descrição oferecida pelo anônimo autor da


Vida dos Santos Padres de Mérida. Conjunto de pequenas hagiografias dos bispos
emeritenses escrita no primeiro terço do século VII29, esta obra refletia o clima de grande
animosidade e confrontação existente na cidade de Mérida entre os grupos católico,
liderado pelo bispo Masona, e ariano, comandado pelo bispo Sunna, no final do reinado
de Leovigildo30. Acusado de ter provocado inúmeros flagelos e castigos aos católicos, o
monarca defensor do arianismo faleceu após “uma gravíssima enfermidade provocada
pelo juízo de Deus com uma pena perpétua de uma cruel morte de corpo e alma” 31 ,
enfermidade ocasionada, segundo o anônimo autor, como decorrência do castigo divino
contra o “pérfido” Leovigildo32. A relação morbo/enfermidade associada com os males
provocados à alma por causa da conduta moral equivocada e da infidelidade à fé católica

28
Isid., HG.,50: “Denique Arrianae perfidiae furore repletus in catholicos persecutione commota plurimos
episcoporum exilio relegauit, ecclesiarum reditus et priuilegia tulit. Multorum quoque terroribus in
Arrianae pestilentiam inpulit, plerosque sine persecutione inlectos auro rebusque decepit. Ausus quoque
inter cetera haeresis suae contagia etiam rebaptizare catholicos...”
29
MAYA SANCHEZ, A. Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium. Turnholti: Corpus Christianorum Series Latina
116 – Brepols, 1992, p. VIII; VELÁZQUEZ, Isabel. Hagiografía y culto a los Santos en la Hispania Visigoda:
Aproximación a sus manifestaciones literarias. Mérida: Cuadernos Emeritenses 32, 2002, p.177-178.
30
ALONSO CAMPOS, J.J. , Sunna, Masona y Nepopis. Las luchas religiosas durante la dinastía de Leovigildo.
In: UNIVERSIDAD DE MURCIA. Antigüedad y Cristianismo: monografias historicas sobre la antigüedad
tardia. III. Los Visigodos. Historia y civilización. Murcia: Universidad de Murcia, 1986, p.151-157;
CASTELLANOS, Santiago. Poder social, aristocracias y hombre santo en la Hispania visigoda. La Vita
Aemiliani de Braulio de Zaragoza. Logroño: Universidad de La Rioja, 1998, p.127-129; VELAZQUÉZ, Isabel.
Pro Patriae Gentisque Gothorum statv (4th Council of Toledo, canon 75, a.633). In: GOETZ, H. W. (org.),
JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship between Late Antique and Early
Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world. Leiden-Boston: Brill, 2003, p. 176;
DUMÉZIL, Bruno. Les racines chrétiennes de l’Europe. Conversion et liberté dans les royaumes barbares Ve –
VIIIe siècle. Paris: Fayard, 2005, p.274-278; SANZ, Rosa. Historia de los Godos. Una epopeya histórica de
Escandinavia a Toledo. Madrid: La esfera de los libros, 2009, p.281-288.
31
ANONIMUS, MAYA SANCHEZ, A. (ed.). Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium, (= VSPE)
Turnholti: Corpus Christianorum Series Latina 116 – Brepols, 1992. VSPE V, 9, 5-8: “...grauissimoque
morbo Dei iudicio correptus uitam fedissimam amisit et mortem sibi perpetuam adquisiuit crudeliterque e
corpore eius anima resoluta, perpetuis penis detenta...”. Uma versão espanhola recente é a de
VELÁZQUEZ, Isabel. Vidas de los Santos Padres de Mérida. Madrid: Editorial Trotta, 2008.
32
VSPE, V, 9, 14-15: “...uir denique ortodoxus et per omnia catholicus, qui non patrem perfidum...”.

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surgem de forma evidente nesse caso que terá uma importante inflexão no entendimento
do termo morbo que, a partir da nossa compreensão, será também relacionado como
sinônimo de enfermidade política. Podemos observar este vínculo através da afirmação
presente no Tomo régio, documento exarado pelo rei para a abertura de uma reunião
conciliar e que neste caso antecede as atas do VIII Concílio de Toledo de 653, nos
primórdios do reinado de Recesvinto (652 – 672+), onde o monarca oferece uma imagem,
pautada no pensamento paulino33, da sociedade política hispano-visigoda equiparada a
um corpo onde a cabeça – o rei – rege a todos os demais membros – a sociedade política:

...a potencia divina submeteu à mim a totalidade do poder que Ele me


deixou como herança, pelo qual e dado que a saúde da cabeça é a causa
do bom estado dos membros e a felicidade dos povos consiste na
mansidão dos príncipes...34.

Parece-nos certo afirmar que ao mencionar a saúde que deveria existir entre a
cabeça/rei e os demais membros do corpo/sociedade política do reino hispano-visigodo a
mensagem régia apresentada no Tomus do VIII concílio de Toledo dirigia-se no sentido
de consolidar a relação política “saudável” que deveria existir entre a monarquia e os
segmentos aristocráticos e nobiliárquicos do reino uma vez que:

...em tempos passados, vós e todo o povo juraram que a pessoa de


qualquer ordem e honra que comprovadamente tiver maquinado ou
trabalhado contra a vida dos reis e para a ruína do povo dos godos e da
pátria, seja castigada com uma grave e irrevocável pena, não mereça
nunca o perdão e nem alcançará diminuição alguma da pena...35.

Ora, esta mensagem estava diretamente vinculada aos acontecimentos ocorridos


entre os anos de 651 e 652, quando a rebelião liderada pelo conde Froya, em aliança com
as tribos vascas, provocou uma grande instabilidade na província da Tarraconense ao

33
O preceito paulino sobre o corpo aparece em I, Coríntios, 12, 12-30: “Com efeito, o corpo é um e, não obstante,
tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um só corpo (...). Mas
Deus dispôs cada um dos membros do corpo, segundo a sua vontade (...). Mas Deus dispôs o corpo de modo a
conceder maior honra ao que é menos nobre, a fim de que não haja divisão no corpo, mas os membros tenham
igual solicitude uns com os outros. Se um membro sofre, todos os membros compartilham o seu sofrimento...”.
34
VIVES, José (ed.), MARÍN, Tomás (ed.), MARTINEZ, Gonzalo (ed.). Concilios Visigoticos e Hispano-
Romanos (= Conc.). Barcelona-Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1963. = Conc.
VIII Tol., a.653, Tomus: “...divina mici potentia subiugavit. Unde quia regendorum membrorum causa
salus est capitis, et felicitas populorum non nisi mansuetudo est principum....”.
35
Conc. VIII Tol., a.653, Tomus: “...retro temporibus ita vos omnique populum iurasse recolimus, ut
cuisquumque ordinis vel honoris persona in necem regiam excidiumque Gothorum gentis ac patriae detecta
fuisset cogitasse noxia vel egisse, inrevocabilis sententiae multatus atrocitate nusquam mereretur venia
remedium vel alicuius temperantiae perciperet qualequumque subsidium...”

126
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.

ponto de sitiar a capital provincial, Zaragoza, colocando em interdito a autoridade do


recém-aclamado rei Recesvinto36. Este episódio recuperava um tema muito candente na
história política hispano-visigoda do século VII, o das sucessivas atitudes de traição
cometidas por setores aristocráticos e nobiliárquicos contra o poder régio e que tiveram
um impacto direto nas práticas adotadas pela realeza que visavam coibir os atos de
infidelidade, entendidos na perspectiva teórica como verdadeiras enfermidades que
desequilibravam tanto a cabeça/rei como o corpo/sociedade política do reino. Nesse
sentido, o caso de Froya é eloquente e a descrição do conde traidor oferecida por Taio de
Zaragoza está pejada de termos evocativos desse ato de infidelidade, equiparando-o com
uma enfermidade pessoal, moral e política:

...naqueles tempos tortuosos e pestíferos nos quais a mente virulenta


espalhava a cizânia e a decepcionante fraude das mentes perdidas no
caminho correto: aquele homem pestífero e de cabeça insana, o
criminoso, perverso e tirano Froya, inimigo do magno, devoto a Deus e
ortodoxo principe Recesvinto...37.

O resultado da reação régia culminou com a eliminação de Froya que teve “uma
atrocíssima e ignominiosa morte, destruído pela destra de Deus”38 seguindo, nesse caso,
o estabelecido por uma lei que fora editada pelo pai e antecessor de Recesvinto, a LV, II,
1, 6 de Chindasvinto relativa aos prófugos e desterrados que desde o exterior causavam
danos e prejuízos ao reino e as gentes hispano-visigodas39. De acordo com a lei, “todo o

36
GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Madrid: Catedra, 1989, p.165; VELAZQUÉZ,
Isabel. Pro Patriae Gentisque Gothorum statv (4th Council of Toledo, canon 75, a.633). In: GOETZ, H. W. (org.),
JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship between Late Antique and Early
Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world. Leiden-Boston: Brill, 2003, p.209;
FRIGHETTO, Renan, O rei e a lei na Hispania visigoda: os limites da autoridade régia segundo a Lex
Wisigothorum, II, 1-8 de Recesvinto (652-670), in: GUIMARÃES, Marcella Lopes (org.), FRIGHETTO, Renan
(org.). Instituições, Poderes e Jurisdições. I Seminário Argentina-Brasil-Chile de História Antiga e Medieval.
Curitiba: Juruá Editora, 2007, p.123-124; SANZ, Rosa. Historia de los Godos. Una epopeya histórica de
Escandinavia a Toledo. Madrid: La esfera de los libros, 2009, p.312-313.
37
TAIONIS CAESARAUGUSTANI EPISCOPI, MIGNE, J. -P (ed.). Sententiarum libri quinque (=Taio, Sent.).
Patrologia Latina LXXX. Paris: Migne,1849. Taio, Sent. Praef., 2, 1-10: “...tempus illud quo tortuosus anguis ore
pestiferoin quorumdam mentibus virulenta seminum suorum sparserat zizania, fraudulentaque deceptione a tramite
recti itineris gressum removerat mentium perditarum: in quo quidam homo pestifer atque insani capitis Froja
tyrannidem sumens, assumptis sceleris sui preversis fautoribus, adversus orthodoxum magnumque Dei cultorem
Recesvinthum principem...”.
38
Taio, Sent., Praef., 3, 15-16: “...illi vero inferens atrocissimae mortis ignominiam. Destruxit eum dextera
sua Deus...”.
39
LEX VISIGOTHORUM, (= L.V.).In: ZEUMER, K. ed.. Monumenta Germaniae Historica. Legum Sectio
I. Legum Nationum Germanicarum. Tomus I. Hannover-Leipzig, Impensis Bibliopolii Hahniani, 1902.
L.V., II ,1 ,6 (Flavius Gloriosus Chindasvindus rex), “De his, qui contra principem vel gentem aut patriam
refugi sive insulentes existunt”

127
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.

criminoso acusado (daquele ato) será sentenciado com a morte (...). E se a ele for
concedida a vida por causa da piedade do principe, serão vazados os seus olhos” 40 ,
castigos extremos e dirigidos aos que fossem acusados de cometerem alguma traição ou
infidelidade contra o rei, contra as gentes hispano-visigodas e o reino.

O desfecho da ação tirânica promovida por Froya provocou uma tentativa de


contenção de possíveis abusos régios na aplicação do castigo para os traidores por parte
dos integrantes da aristocracia e, principalmente, do episcopado hispano-visigodo que via
com muitas ressalvas a utilização da pena de morte para tais casos. Ao participarem como
juízes nos tribunais laicos os bispos, ao menos desde o IV Concílio de Toledo de 633,
colocavam-se contrários a execução da pena capital para crimes de traição:

Muitas vezes os principes encomendam seus assuntos aos


bispos contra alguns réus de alta majestade; mas, por serem eleitos por
Cristo para o ministério da salvação, os bispos somente admitirão que
os reis lhes nomeiem juízes quando se prometa sob juramento o perdão
da pena capital, não quando se prepara uma sentença de pena de morte.
E se algum bispo, ao contrário do estabelecido nesse decreto, participar
nas condenações capitais de outros, seja réu diante de Cristo do sangue
derramado e ante a Igreja perca seu próprio grau41.

Tal recomendação foi recuperada no cânone 2 do VIII Concílio de Toledo de 653


como consequência da aplicação estrita da LV, II, 1, 6 por parte do rei Recesvinto para
justiçar a infidelidade cometida pelo conde Froya. Logo, podemos dizer que a prática de
imposição da pena capital àqueles que cometessem atitudes de infidelidade contra a figura
régia seria mais comum e corrente, culminando com a sua efetivação na lei promulgada
no reinado de Chindasvinto. Apesar do reconhecimento na legislação laica, tanto a
imposição da pena de morte como a extirpação de membros dos corpos dos condenados
por traição foram, uma vez mais, repudiadas pelos bispos conciliares:

...deixamos nas mãos do glorioso principe a realização da mesma


misericórdia, pois já que Deus lhe abriu a possibilidade de ter
misericórdia não negue ele mesmo os remédios da piedade, os quais

40
L.V., II, 1, 6: “...horum omnium scelerum vel unius ex his quisque reus inventus inretractabilem
sententiam mortis excipiat (...). Quod si fortasse pietatis intuitu a principe fuerit illi vita concessa, non
aliter quam effossis oculis...”
41
Conc. IV Tol., a.633, c.31: “Saepe principes contra quoslibet maiestatis obnoxious sacerdotibus negotia
sua conmittunt; sed quia sacerdotes a Christo ad ministerium salutis electi sunt, ibi consentiant regibus
fieri iudices, ubi iureiurando supplicii indulgentia promittitur, non ubi disciminis sententia praeparatur. Si
quis ergo sacerdotum contra hoc commune consultum discussor in alienis periculis extiterit, sit reus effusi
sanguinis apud Christum, et apud ecclesiam perdat proprium gradum.”

128
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.

perdurarão moderados pela discrição do principe que concederá a


misericórdia em certo grau, mas sem que jamais o povo ou a patria
sofram algum perigo ou perda por causa dos indultados (...). Ademais,
quaisquer juramentos feitos em favor do poder real ou na defesa do
povo ou da pátria, inclusive aqueles anteriores ou mesmo os posteriores
a este decreto, devem ser observados irremissivelmente com toda a
custódia e vigilância, mas completamente livres daqueles que incluam
a amputação de um membro ou a sentença de morte...42.

Contudo, devemos notar que a LV, II, 1, 6 continuou sendo válida à luz do direito régio
de reagir à “presunção tirânica” dos grupos aristocráticos que se lançavam contra a autoridade
monárquica e apontada claramente desde o IV Concílio de Toledo de 63343. Tanto assim que
os castigos previstos na lei promulgada por Chindasvinto surgem como possibilidade de serem
aplicados em outra importante rebelião aristocrática e nobiliárquica contra o poder régio
hispano-visigodo levada a cabo pelo duque Paulo contra o rei Wamba (672 – 680) no primeiro
ano de seu reinado. Centrada nas regiões da Galia Narbonense e da Tarraconense, a rebelião
liderada por Paulo pode ser considerada como a mais intensa ocorrida no reino hispano-
visigodo de Toledo ao longo de todo o século VII na medida em que envolveu, para além dos
grupos aristocráticos hispano-visigodos, agentes externos como vascos, aquitanos e francos
em confrontações diretas e muito bem descritas pelo bispo Juliano de Toledo em sua Historia
Wambae44. Após uma rápida campanha, marcada pela habilidade estratégica e militar quando
impôs diversas derrotas aos rebeldes e seus aliados externos, Wamba conseguiu capturar o
duque Paulo e uma significativa parcela de seus apoiantes godos após a derradeira batalha que

42
Conc. VIII Tol., a.653, c.2: “…opus in gloriosi principis potestate redigimus, ut quia Deus illi miserendi
aditum patefecit, remedia pietatis ipse quoque non deneget, quae ita principali discretion moderata
persistant, ut et illis sit aliquatenus misericordia contributa et nusquam gens aut patria per eosdem aut
periculum quodquumque perferat aut iacturam (…). Ceterum quaequumque iuramenta pro regiae
potestatis salute vel contutatione gentis et patriae vel hactenus sunt exacta vel deinceps extiterint exigenda,
omni custodia omnique vigilantia insolubiliter decernimus observanda, a membrorum truncatione
mortisque sententia religione penitus absoluta…”.
43
Conc. IV Tol., a.633, c.75: “...praesumtione tyrannica regni fastigium usurpaverit...”; Conc.VI Tol.,
a.638, c.17: “...Rege uero defuncto nullus tyrannica praesumtione regnum adsumat...” ; c.18: “...nemo
regi eum gubernaculis privet, nemo tyrannica praesumtione apicem regis sibi usurpet...”; Conc. XVI Tol.,
a.693, c.10: “...Quicumque amodo ex nobis vel cunctis Hispaniae populis quolibet tractatu vel studio
sacramentum fidei suae (...) aut praesumtione tyrannica regni fastigium usurpare delegerit...”; Conc. XVII
Tol., a. 694, c.8: “…verum etiam ausu tyrannico inferre conati sunt ruinam patriae ac populo uniuerso
(...). Unde crudelis et stupenda praesumptio crudeliori debet exstirpari supplicio...”.
44
COLLINS, Roger. Julian of Toledo and the royal succession in late seventh century Spain. In: SAWYER,
P. H. (ed.), WOOD, I. N. (ed.). Early Medieval Kingship. Leeds: University of Leeds, 1977, pp.40-49;
TEILLET, Susane, L’Historia Wambae est-elle une oeuvre de circunstance?. In: UNIVERSIDAD DE
MURCIA. Antigüedad y Cristianismo: monografias historicas sobre la antigüedad tardia. III. Los
Visigodos. Historia y civilización. Murcia: Universidad de Murcia, 1986, p.415-424; FRIGHETTO, Renan,
Legitimidade e poder da realeza hispano-visigoda, segundo a Historia Wambae de Juliano de Toledo
(segunda metade do século VII). Revista Espaço Plural, n. 30, v.1, 2014, p.89-116.

129
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.

teve como palco a cidade de Nimes: “No primeiro dia das calendas de Setembro teve início a
guerra contra a cidade de Nimes. No dia seguinte, a cidade foi invadida. E no terceiro dia (...)
o tirano Paulo foi capturado (...)”45. Três dias após a vitória ocorreu em Nimes o juízo dos
rebeldes que de acordo com o relato de Juliano contou com a presença de todos os combatentes
vitoriosos e do próprio rei Wamba. Nesta assembleia evocou-se exatamente a aplicação da
pena de morte contra os rebeldes e traidores do reino, tal qual aparece na LV, II, 1, 6 de
Chindasvinto, indicando que tratava-se de uma tradição comum aos godos:

No terceiro dia após a vitória, Paulo foi acorrentado junto com os seus e
todos foram levados a presença do principe. De acordo com os costumes
antigos (Paulo) foi prostrado junto com os seus e foi-lhes imposto o juízo
universal de morte, pois prepararam a morte do principe...46.

Atentar contra a vida do principe tinha relação direta com o rompimento do juramento
de fidelidade proferido publicamente e feito em nome de Deus para proteger o rei, as gentes
hispano-visigodas e o reino sendo, por isso, um ato de traição e de infidelidade imperdoável.
Mas no lugar da pena de morte ou de outras penalizações cruéis como a extirpação da destra e
o vazamento ocular para estes crimes, observamos que tanto a legislação laica como a
eclesiástica apontavam penas e castigos substitutivos para os acusados de cometerem
infidelidades contra o rei que tentavam, de todas as formas, eliminar a opção capital47. Uma

45
IULIANUS TOLETANUS, Historia Wambae (= Iul.Tol.,HW). In: LEVISON, W. (ed.), Corpus Christianorum.
Series Latina CXV. Turnholti: Brepols, 1976. Iul.Tol.,HW 26, 660-665: “...Primo quippe die pridie Kalendarum
Septembrium contra Neumasensem urbem a nostris initum est bellum. Sequenti die Kalendarum Septembrium
ciuitatis ipsius inruptio facta est. Tertio quoque die (...), Paulus tyrannus celebri captus detentione deuincitur...”.
46
Iul. Tol., HW, 27, 683-689: “Tertia iam post uictoriam uictoribus aduenerat dies, et Paulus ipse onustus
ferro cum ceteris consedenti in throno principi exibetur. Tunc antiquorum more curba spina dorsi uestigiis
regalibus sua colla submittit, deinde coram exercitibus cunctis adiudicatur cum ceteris, quum uniuersorum
iudicio et mortem exciperent, qui mortem principi praeparassent...”
47
Uma passagem da obra de Valério do Bierzo evoca alguns destes castigos, Val., De Van.Saec.Sap., 6: “...sendo
também por ele torturados na própria carne, trazendo-lhes tormento e violência para os seus corpos: como o fogo
(queimaduras); golpes corporais; setas; extirpação das unhas; prisão; correntes; pedras; flagelos com espada.../
...se persecutoribus atque carnificibus oferentes tradiderunt uiolentis corpora sua tormentis, ignibus, feris, eculeis,
ungulis, carceribus, catenis, lapidibus, flagellis et gladiis..”.; há uma ótima edição desta obra valeriana feita por
DIAZ Y DIAZ, Manuel Cecílio. Valerio del Bierzo. Su persona. Su obra. León: Centro de Estudios e Investigación
“San Isidoro”, 2006, p.172-193; e também são nominados no Conc. XIII Tol., a.683, c.2: “...Pelo qual, tomando
uma medida conforme os desejos do rei, decretamos em comum que nenhum dos integrantes do ofício palatino, ou
aqueles pertencentes a santa religião, por estratagema urdido pelo rei ou por instigação de outro poder secular,
ou com apoio da maliciosa vontade de qualquer outro homem, seja privado de sua honra e de seu grau ou de servir
no palácio real, fora o caso de manifesto e evidente indício de sua culpa, não se lhe aprisione, nem o acorrente,
nem lhe submeta a tormento, nem se lhe castigue com qualquer classe de pena corporal ou açoite.../...Unde
congruam devotioni eius sententiam decernentes hoc in commune decrevimus ut nullus deinceps ex palatini ordinis
gradu vel religionis sanctae conventum, regia subtilitatis astu vel profanae potestatis instictu sive quorumlibet
hominum malitiosae volumptatis obnisu citra manifestum et evidens culpae suae indicium ab nonore sui ordinis vel
servitio, domus regiae arceatur, non ante vinculorum nexibus inligetur, non quaestioni subdatur, non quibuslibet
tormentorum vel flagellorum generibus maceretur...”.

130
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.

delas seria a imposição do anátema divino que repercutiria sobre o traidor e toda a sua
descendência:

...que ninguém pretenda a morte do rei; que ninguém atente contra a vida
do príncipe (...). E se algum de nós temerariamente incorrer em alguma
destas coisas, seja ferido com o anátema divino e condenado no eterno
juízo sem remédio algum...48.

Outro castigo, o da decalvação, mencionado por Juliano de Toledo, era de fato mais
marcante e estava associado com a ideia do triunfo do vitorioso e da humilhação do derrotado.
Esta foi a punição escolhida por Wamba para castigar o traidor Paulo e os seus seguidores:
“Sem impor a sentença de morte, para substituir a vindicta, se impôs a decalvação”49. O
próprio relato do bispo toledano mostra-nos o que seria a imposição da decalvação: “No
quarto miliário distante da cidade régia, o tirano Paulo e os seus apoiantes na sedição tiveram
a cabeça decalvada, barbas mal cortadas e os pés descalços...”50. Ou seja, todos os traidores
tiveram seus cabelos raspados de forma irregular51, signo evidente da insanidade e da loucura
do traidor, além de ser um sinal reconhecido nas atas conciliares de que o indivíduo que sofreu
a decalvação jamais poderia aceder à condição régia52. Com este ato o legítimo e vitorioso
rei Wamba marcava, de maneira indelével, que o traidor e pérfido Paulo jamais poderia
almejar ou reclamar o trono para si. Ademais, a atitude do monarca de poupar as vidas dos
traidores acentuava uma das virtudes essenciais do bom governante, a clemencia régia
dirigida àqueles que se levantaram contra a sua autoridade: “...graças a clemencia do principe
foram poupados e não tiveram os olhos vazados...”53.

Tanto no caso da fracassada rebelião de Paulo como na levada a cabo pelo conde
Froya, encontramos certos elementos comuns e recorrentes que os coligavam, como a
pertença de ambos os rebeldes ao círculo aristocrático e nobiliárquico hispano-visigodo,

48
Conc. VI Tol., a.638, c.18: “...ut nemo intendat in interitum regis, nemo vitam principis nece adtrectet
(...). Quod si dein quisppiam horum quisquam nostrorum temerario ausu praesumtor extiterit, anathemate
divino perculsus absque ullo remedii loco habeatur condemnatus aeterno iudicio...”
49
Iul. Tol., HW, 27, 689-690: “...Sed nulla mortis super eos inlata sententia, decaluationis tantum, ut
praecipitur, sustinuere uindictam...”
50
Iul. Tol., HW, 30, 768-770: “Etenim quarto fere ab urbe regia miliario Paulus princeps tyrannidis uel
ceteri incentores seditionum eius, decaluatis capitibus, abrasis barbis pedibusque nudatis... “
51
DU CANGE. Glossarium Mediae et Infimae Latinitatis. Paris: Libraire des Sciences et des Arts, 1938, v.III, p.17.
52
Conc. VI Tol., a.638, c.17: "...nullus sub religionis habitu detonsus aut turpiter decalvatus..."
53
IULIANUS TOLETANUS, Iudicium (= Iul.Tol.Iud.). In: LEVISON, W. (ed.), Corpus Christianorum.
Series Latina CXV. Turnholti: Brepols, 1976. Iul.Tol.Iud. 1, 8-9: “...quibus ex clementia princeps dederit
uiuere, effossionem luminum non euadant”.

131
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o apoio oferecido aos dois traidores por significativos grupos aristocráticos hispano-
visigodos que concorriam com o poder régio e a utilização da aliança com agentes
externos em ambas as confrontações ocorridas no interior dos territórios hispano-
visigodos. Rivalidades e antagonismos, incluindo os de extensão regional, que
favoreceram as atitudes de insurgência contra a monarquia hispano-visigoda ao longo do
século VII. Essa tendência à insubordinação e à infidelidade, com o consequente
rompimento dos juramentos de fidelidade, por parte de setores do conjunto aristocrático-
nobiliárquico do reino hispano-visigodo de Toledo é que aparece como sinônima de
enfermidade/doença de fundo político. As sucessivas leis e decretos, fossem de natureza
laica, fossem de natureza eclesiástica, que condenavam veementemente as traições, as
rebeliões, as sedições, as revoltas e as conjuras palacianas contra o poder régio hispano-
visigodo, reforçam ainda mais a ideia de que a sociedade política hispano-visigoda
padecia do morbo traidor, a doença comum e característica dos godos, o morbo gothorum
que enfraquecia as instituições políticas ao fazer com que seus atores, rei, aristocratas e
nobres, se digladiassem para manter ou tentar alçar ao ápice do poder. Uma contaminação
que adoecia os principais agentes políticos do reino de forma contínua e que foi
esplendidamente diagnosticada pela crônica franca do Pseudo Fredegário ao apresentar-
nos, de forma breve, a atitude usurpatória promovida por Chindasvinto contra o jovem
rei Tulga entre os anos de 641-642:

Naquele ano Chintila, rei da Hispania, que sucedeu Sisenando no reino,


faleceu. Seu filho, de nome Tulga e de tenra idade, foi elevado ao reino a
pedido de seu pai. A gens dos godos fica impaciente quando sobre si não
há um forte jugo. Por conta da adolescência de Tulga e graças ao costume
comum na Hispania, muitos cometiam insolências. Um dos mais
importantes, de nome Chindasvinto, reuniu vários aristocratas godos e
alçou ao reino destituindo Tulga e obrigando-o a fazer a tonsura: todos
reconheceram o seu poder seguindo o morbo dos godos de degradarem
coletivamente a autoridade régia, um vício contra os reis...54.

54
FREDEGARII SCHOLASTICI, Chronicum. MIGNE, J.-P. (ed.) Paris: Patrologia Latina LXXI, 1849,
82: “Eo anno Sintela rex Spaniae, qui Sisenando in regno successerat, defunctus est. Hujus filius, nomine
Tulga, sub tenera aetate Spaniis petitione patris sublimatur in regno. Gotthorum gens impatiens est,
Quando super se forte jugum non habuerit. Hujus Tulganis adolescentia ominis Spania more solito vitiatur,
diversa committens insolentia. Tandem unus ex primatibus, nomine Chintasindus, collectis plurimis
senatoribus Gotthorum, caeteroque populo, in regnum Spaniae sublimatur, qui Tulganem degradatum ad
onus clericatos tonsorari fecit: cumque omne regnum Spaniae suae ditioni firmasset, cognitio morbo
Gotthorum, quem de regibus degradandis habebant, unde saepius cum ipsis in consilio fuerat, quoscunque
ex eius hujus vitii promptum contra reges...”

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Portanto, a ação usurpatória de destituição do monarca legítimo, por mais fraco


politicamente que ele fosse, equivalia a uma atitude de traição e de infidelidade
considerada como uma “doença” política que, certamente, provocava instabilidades no
tabuleiro político hispano-visigodo. Enfermidade que é apresentada, também, por Juliano
de Toledo quando se refere aos habitantes da Galia Narbonense, berço da infidelidade
contra Wamba:

Nos tempos gloriosos deste principe (Wamba), a terra das Galias, mãe da
perfídia, sempre atormentada por uma incompreensível febre de
infidelidade nascida em si mesma é marcada por um infame veredito, por
causa do qual devorava os membros dos traidores (...). Por muito tempo
foi acossada por diversas febres quando, de repente, se levantou o turbilhão
da infidelidade pelo erro de uma única e nefasta cabeça e a conspiração da
traição passou de um em um55.

Porém, devemos questionar quais seriam os motivos que levavam os grupos


aristocráticos e nobiliárquicos hispano-visigodos a serem portadores desta “febre” pérfida
contra o poder régio que entendemos como uma enfermidade política desestabilizadora
das instituições. Para tanto, vale recordarmos do famoso dito isidoriano sobre a figura
régia que, na verdade, é uma extensão do pensamento do poeta romano Horácio: “Rei és
se reto agires, se não o fizeres, não serás”56. A retidão régia envolvia uma série de atitudes,
pautadas nas virtudes que deveriam culminar com as ações inerentes ao exercício do
poder por parte do bom governante, que poderiam provocar reações positivas ou
negativas dos integrantes dos grupos políticos hispano-visigodos que participavam, tanto
de maneira direta como indireta, na tomada das decisões régias. Como bem apresenta-
nos as atas do Concílio VIII de Toledo de 653:

...E também vós, varões ilustres, que um antiquíssimo costume escolheu


dentre os integrantes do ofício palatino para assistir a este santo sínodo,
aos que adorna uma ilustre ancestralidade e um sentido de equidade que os
designou como cabeças do povo e aos que tenho como parceiros no
governo, leais nos contratempos e esforçados na prosperidade...57.

55
Iul. Tol., HW, 5, 70-73; 80-83: “Huius igitur gloriosis temporibus Galliarum terra, altrix perfidiae,
infami denotatur elogio, quae utique inextimabili infidelitatis febre uexata genita a se infidelium depasceret
membra (...). Etenim dum multo iam tempore his febrium diuersitatibus ageretur, subito in ea unius nefandi
capitis prolapsione turbo infidelitatis adsurgit, et consensio perfidiae per unum ad plurimos transit.”
56
Isid., Etym., IX, 3, 4: "...Rex eris si recte facias, si non facias non eris..."
57
Conc. VIII Tol., a.653, Tomus: “…Vos etiam inlustres viros, quos ex officio palatino huic sanctae synodo
interesse mos primaevus obtinuit ac non vilitas exspectabilis honoravit et experientia aequitatis plebium
rectores exegit, quos in regimine socios, in adversitate fidos et in prosperis amplecturos strenuous…"

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A participação aristocrático-nobiliárquica aparece como elemento essencial para o


desenvolvimento efetivo do poder régio, sempre que este último fosse apontado como
portador da piedade, da misericórdia, da justiça e da autoridade junto à sociedade política
hispano-visigoda. Assim, requeria-se ao rei que atuasse e governasse em prol do bem
comum, atitude mais teórica que prática na medida em que o próprio governante apoiava-
se em determinados grupos aristocráticos e nobiliárquicos que lhe prestavam auxílio
incondicional em troca de determinados benefícios que contrariariam interesses de outros
grupos alijados do centro das decisões políticas. Para além das rivalidades consuetudinárias
entre os vários grupos políticos, talvez tenhamos nessa predileção régia de oferecer
benesses aos seus mais próximos apoiantes outra causa muito evidente daquele morbo
próprio dos godos que os transformava em “traidores compulsivos”, uma enfermidade
política que corroía os alicerces institucionais da própria monarquia hispano-visigoda.

Conclusões parciais

Logo, podemos afirmar que o morbo gothorum, entendido como enfermidade


política ocasionada pela reincidente prática de infidelidade cometida pelo conjunto
aristocrático-nobiliárquico contra o rei, foi um dos motores para o enfraquecimento da
instituição monárquica hispano-visigoda e a consequente desaparição do regnum gothorum
nos primórdios do século VIII. Um sintoma dessa fragilidade pode ser observado graças a
constante promulgação, ao longo do século VII, de normas legais, tanto laicas como
eclesiásticas, que tentavam alertar e coibir atitudes consideradas como traição e crime contra
o rex gothorum, sua família e seus aliados políticos. Os castigos impostos aos traidores, que
iam desde a pena capital, passando pela decalvação e chegando ao exílio e redução da
condição sociojurídica do condenado, revelam uma tentativa extrema de controle político
por parte da instituição régia sobre os agentes aristocráticos e nobiliárquicos que
participavam, ao lado do rei, nas ações governativas de administração do reino hispano-
visigodo de Toledo. Se, do ponto de vista teórico, o discurso jurídico coadunava-se com o
ideal do bom governante onde o rei aparecia como o portador das mais elevadas virtudes
morais e políticas, todas voltadas ao bem comum, na prática encontramos reis que ora agiam
favoravelmente ao seu grupo de apoio, ora atuavam de forma virulenta para impedir ações
de seus opositores que eram enquadradas no âmbito da infidelidade e da traição.

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Por outro lado, é importante notarmos que o segmento aristocrático-nobiliárquico


hispano-visigodo tentava promover uma contenção dos excessos ocasionados pela ação régia
contra aqueles grupos políticos opositores e que poderiam ser colocados na condição de
infiéis e traidores do reino. Nesse caso, destacava-se o papel intermediador do episcopado
hispano-visigodo que por meio das reuniões conciliares buscava reduzir o impacto da
imposição de penas e castigos mais severos advindos das práticas consuetudinárias e que
envolvessem a eliminação física ou a extirpação de membros dos acusados de traição e
infidelidade. Tentativa que obteve algum sucesso sem, contudo, eliminar de vez reações mais
contundentes da parte de um poder régio pressionado pelas disputas entre os grupos
aristocráticos e nobiliárquicos hispano-visigodos que acabavam atingindo-o de forma direta.

Além das fontes de caráter jurídico, como as leis civis e eclesiásticas, obtemos
importantes informações provenientes das histórias, crônicas e biografias que corroboram
significativamente a prática do morbo político entre os grupos aristocráticos e
nobiliárquicos hispano-visigodos. De fato, a traição e a infidelidade aos juramentos
prestados ao rei, à pátria e ao regnum eram constantes e motivavam, naturalmente, uma
reação por parte da autoridade régia e de seu grupo de apoio. Uma afirmação que reforça a
caracterização de que as gothicae gentes sofriam da enfermidade política da traição
endêmica contra a instituição monárquica que demonstrava uma aversão ao poder
centralizado na figura do rex que, desde o ponto de vista ideológico, seria um primus super
pares. Antagonismos aristocrático-nobiliárquicos, fricções e lutas pelo poder régio, temas
que circundam o morbo gothorum e que por esse motivo merecem a atenção do historiador.

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