Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Renan Frighetto
Universidade Federal do Paraná
_________________________________________________________________________________________________________
Resumo: Ao longo do século VII, o reino Abstract: Throughout the seventh century,
hispano-visigodo de Toledo foi palco de the Hispano-Visigoth kingdom of Toledo
diversas tentativas de usurpação do poder was the scene of several attempts of
régio por parte de segmentos aristocráticos e usurpation of royal power by aristocratic
nobiliárquicos rivais ao rei e aos seus mais and noble segments rivals to the king and
próximos aliados políticos. Atitudes que his closest political allies. Attitudes that
reforçam a ideia, presente na historiografia, reinforce the idea, present in the
da incontrolável sanha infiel de importantes historiography of uncontrollable infidel’s
grupos aristocrático-nobiliárquicos contra o rage important aristocratic-noble groups
monarca reinante e contra o reino. Esta against the reigning monarch and against
tendência à traição, com a ruptura dos the kingdom. This tendency to betrayal,
juramentos de fidelidade prestados ao rei, with the disruption of loyalty oaths
denominada como o morbo gothorum, provided the king, the morbo gothorum,
aparece nas fontes como uma autêntica appears in the sources as a true "political
“enfermidade política” que enfraqueceu a illness" that weakened the Hispano-
instituição monárquica hispano-visigoda, Visigoth monarchic institution, leading the
levando o regnum gothorum à confrontação regnum gothorum to the internal
interna e a consequente desaparição no início confrontation and consequent
do século VIII. disappearance in the early eighth century.
Palavras-chave: Antiguidade Tardia; Keywords: Late Antiquity; Hispano-
Reino Hispano-visigodo de Toledo; Visigoth Kingdom of Toledo; Political
Infidelidade Política; Traição Política; Infidelity; Political Betrayal; Morbo
Morbo Gothorum. Gothorum.
__________________________________________________________________________________________________________
116
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
A primeira vista pode parecer curioso que iniciemos nosso estudo evocando o
relevo que o conhecimento histórico deve ocupar na formação de cada individuo que
reverberará no aprimoramento do conjunto de toda a sociedade ou, como diriam os
autores da época clássica, da comunidade cívica2. De fato, desde os tempos de Heródoto
e Tucídides, conhecer o passado tinha uma concepção figurada no sentido de “tornar
claro” os mais importantes acontecimentos de outrora que foram, em alguns casos,
vivenciados pelo próprio autor daquela narrativa sendo, na maioria das vezes,
desconhecidos por aquele que os descobria através da declamação ou da leitura. Logo ao
“tornar claro” um acontecimento, descrevendo-o e explicando-o, aquele que escrevia a
história acabava oferecendo ao conjunto dos cidadãos uma perspectiva própria, particular,
que ao alcançar um público maior ganhava uma conotação e compreensão mais ampla,
exemplar e universal 3 . Lembramo-nos, por exemplo, das detalhadas descrições de
batalhas, cercos e destruições de cidades que revelavam, por certo, tanto o olhar
presencial daqueles episódios como a fascinação por determinados personagens e
sistemas políticos que destacavam-se naquele contexto que era objeto da abordagem do
autor da história4. Uma história escrita em primeira pessoa e que encontra ecos em outros
documentos, em outras fontes manuscritas e arqueológicas que a tornam, também, única
1
GASCÓ, Fernando, La crisis del siglo III y la recuperación de la Historia de Roma como un tema digno
de ser historiado, Studia Historica Historia Antigua, v. IV-V, 1986-1987, p.171.
2
CICERUS, DE PLINVAL, Georges (ed.). De Legibus, I, 5-6, Paris: Les Belles Lettres, 1959; CICERÓN, Sobre
el orador, II, 12, 51 ; 15, 62-63. Introdução, tradução e notas: José Javier Iso. Madrid: Editorial Gredos, 2002; ver
também PICAZO GURINA, Marina, Los hombres reunidos en la plaza: la toma de decisiones colectivas en el
mundo antiguo, Gerión, v. 31, 2013, pp. 211; ANDRÉS SANTOS, Francisco J. Roma. Instituciones e ideologías
políticas durante la República y el Imperio. Madrid: Editorial Tecnos, 2015, p.105-112.
3
PRADO, Anna, ROMILLY, Jacqueline. Tucídides. História da Guerra do Peloponeso: Livro I (=Tuc.,
HGP). São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. XXI; NICOLAI, Roberto. The place of history in the ancient
world. In: MARINCOLA, J. (ed.). A Companion to Greek and Roman Historiography. Oxford: Blackwell,
2007, v. I, p.14-15.
4
Como, por exemplo, no caso de Políbio ao narrar os cercos e destruição de Cartago e Numancia onde surge, de
forma destacada, o grande personagem da república romana no século II a.C., Cipião Emiliano. Para tanto, vide
MOMIGLIANO, Arnaldo. Os limites da helenização. A interação cultural das civilizações grega, romana, céltica,
judaica e persa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p.27-49; GABBA, Emilio, Aspectos culturales del
imperialismo romano. In: GABBA, Emilio, LAFFI, Umberto, Sociedad y política en la Roma republicana. Pisa:
Pacini Editore, 2000, p.209-234; ANDRÉS SANTOS, Francisco J. Roma. Instituciones e ideologías políticas
durante la República y el Imperio. Madrid: Editorial Tecnos, 2015, p. 126-131.
117
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
Parte significativa desta definição segue, em linhas gerais, aquela já apresentada pelos
autores das épocas clássica e helenística9. Porém, a parte final da citação isidoriana aporta algo
de novo com relação aos autores do passado greco-romano, quando afirma que, do ponto de
5
NICOLAI, Roberto. The place of history in the ancient world. In: MARINCOLA, J. (ed.). A Companion
to Greek and Roman Historiography. Oxford: Blackwell, 2007, v. I, p.24.
6
DIAZ Y DIAZ, Manuel Cecilio. De Isidoro al siglo XI. Ocho estudios sobre la vida literaria peninsular.
Barcelona: El Albir Universal, 1976, pp.143-201; FONTAINE, Jacques. Isidoro de Sevilla. Génesis y
originalidad de la cultura hispánica en tiempos de los visigodos. Madrid: Ediciones Encuentro, 2002, p.85-
98; FRIGHETTO, Renan. A comunidade vence o indivíduo. A regra monástica de Isidoro de Sevilha (século
VII). Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 65-74.
7
Hispalense é “oriundo de Sevilha” ou “sevilhano”, epíteto aplicado pela historiografia a Isidoro por ter,
provavelmente, nascido e recebido sua formação erudita e ocupado a função episcopal em Hispalis/Sevilha.
8
As traduções ao português feitas neste artigo são do autor deste trabalho. Nesse sentido, oferecemos em nota as
citações latinas das mesmas. ISIDORUS HISPALENSIS, DIAZ Y DIAZ, Manuel (ed.), OROZ RETA, Jose (ed.),
MARCOS CASQUERO, Manuel(ed.). Etymologiarum Libri XX (= Isid., Etym.). Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1982. Isid., Etym, I, 41, 1: “Historia est narratio rei gestae, per quam ea, quae in praeterito facta sunt,
dinoscuntur. Dicta autem Graece historia (...), id est a videre vel cognoscere. Apud veteres enim nemo conscribebat
historiam, nisi is qui interfuisset, et ea quae conscribenda essent vidisset. Melius enim oculis quae fiunt
deprehendimus, quam quae auditione colligimus”.
9
Tuc., HGP, I, 22, 3-4; POLIBIUS, DIAZ TEJERA, A. (ed.), BALASH RECORT, Manuel, (ed). Historias,
I, 1-6. Madrid: Editorial Gredos – Biblioteca Clásica Gredos 38, 1981.
118
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
vista da história, aquilo que vemos tem mais “veracidade” do que se a mesma informação fosse
ouvida. Ideia complementada pelo próprio hispalense com a seguinte afirmação:
10
Isid., Etym., I, 41, 2: “Quae enim videntur, sine mendacio proferuntur. Haec disciplina ad Grammaticam
pertinet, quia quidquid dignum memoria est litteris mandatur...”.
11
AURELII AUGUSTINI HIPPONENSIS EPISCOPI, . MIGNE,J.-P. (ed.). De Ordine, II, 12, 37. Paris:
Patrologia Latina XXXII, 1861; sobre a importância da Gramática na obra isidoriana, FONTAINE, Jacques.
Isidoro de Sevilla. Génesis y originalidad de la cultura hispánica en tiempos de los visigodos. Madrid:
Ediciones Encuentro, 2002, p.116.
12
Isid., Etym., I, 43: “Historiae gentium non inpediunt legentibus in his quae utilia dixerunt. Multi enim
sapientes praeterita hominum gesta ad institutionem praesentium historiis indiderunt…”
119
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
...A diferença entre história e anais fixa-se em que a historia tem por tema
tempos que presenciamos, enquanto que os anais se referem aos anos que
nós não conhecemos. Por isso que Salustio figura como autor de História;
e Livio, Eusébio e Jerônimo, de Anais e de História.14
Para “tornar clara” esta narrativa do passado/presente através das obras de história,
seria necessária a aplicação de um método que auxiliasse o autor de história em sua caminhada
redacional, aspecto este muitas vezes olvidado por aqueles que estudam a produção
historiográfica, lançando aos séculos XVIII, XIX e XX a “invenção” e a incorporação da
metodologia como princípio gerador do conhecimento histórico-científico. Embora sem a
conotação científica, mas amparado no preceito de disciplina voltada ao saber, a escrita da
história nos mundos antigo, tardo-antigo e medieval contemplava a existência de um método
com vistas a alcançar resultados, como os que são indicados pelo pensamento isidoriano:
...Durante muitos séculos foram governados por chefes, depois por reis,
cuja cronologia, nomes e atuação convêm expor por ordem e
sucessivamente, servindo-nos para isso de dados retirados das histórias.16
13
VELAZQUÉZ, Isabel. Pro Patriae Gentisque Gothorum statv (4th Council of Toledo, canon 75, a.633).
In: GOETZ, H. W. (org.), JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship
between Late Antique and Early Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world.
Leiden-Boston: Brill, 2003, p.165; GEARY, Patrick. O Mito das Nações. A invenção do nacionalismo. São
Paulo: Conrad Livros, 2005, p.149-158; FRIGHETTO, Renan, Identidade(s) e fronteira(s) na Hispania
visigoda, segundo o pensamento de Isidoro de Sevilha (século VII). In: FERNANDES, F. R. (org.).
Identidades e Fronteiras no Medievo Ibérico. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p.111-116.
14
Isid., Etym., I, 44, 4: “...Inter historiam autem et annales hoc interest, quod historia est eorum temporum
quae vidimus, annales vero sunt eorum annorum quos aetas nostra non novit. Vnde Sallustius ex historia,
Livius, Eusebius et Hieronymus ex annalibus et historia constant."
15
Isid., Etym., I, 41, 2: “...Historiae autem ideo monumenta dicuntur, eo quod memoriam tribuant rerum
gestarum. Series autem dicta per translationem a sertis florum invicem conprehensarum.”
16
ISIDORI HISPALENSIS EPISCOPI, De origine gothorum (=Isid.,HG), 2: “...Per multa quippe retro
saecula ducibus usi sunt, postea regibus, quorum oportet tempora per ordinem cursim exponere et quo
nomine actuque regnauerint, de historiis libata retexere”, RODRÍGUEZ ALONSO, Cr (ed.). Las Historias
de los Godos, Vandalos y Suevos de Isidoro de Sevilla. Leon, Colegiata de San Isidoro, 1975.
120
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
17
Isid., HG, 35: “...Sub hoc rege Gothi legum instituta scriptis habere coeperunt, nam antea tantum
moribus et consuetudine tenebantur...”.
18
WARMALD, Patrick. The Leges Barbarorum: law and ethnicity in the post-roman west, in: GOETZ, H.
W. (org.), JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship between Late Antique
and Early Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world. Leiden-Boston: Brill,
2003, p.27-28; DUMÉZIL, Bruno. Le comte et l’administration de la cité dans le Bréviaire d’Alaric. In:
ROUCHE, M., DUMEZIL, B. (dir.). Le Bréviaire d’Alaric. Aux origines du Code civil Paris: Press
Universitaire Paris-Sorbonne, 2008, p.85; HILLGARTH, Jocelyn. The Visigoths in history and legend.
Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 2009, p.8-9.
121
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
Dessa forma podemos dizer que a história dos godos do hispalense tinha, como
foco central, refletir o seu presente histórico como produto dos acontecimentos
selecionados, ou por ele conhecidos, ocorridos no passado mais distante e diretamente
vinculado aos godos e a sua supremacia política sobre o império romano e as monarquias
romano-bárbaras dele herdeiras no ocidente tardo-antigo. Com isso a “verdade” histórica
proposta pelo relato isidoriano relacionava-se ao fortalecimento da monarquia hispano-
visigoda fundamentado, por um lado, nas vitórias militares iniciadas no tempo de
Leovigildo e “concluídas” no reinado de Suinthila (621 – 631) e, por outro, pela
conversão ao catolicismo realizada no III concílio de Toledo de 589 durante o reinado do
filho e sucessor de Leovigildo, Recaredo (586 – 601+). De fato, estes últimos
acontecimentos são apresentados pelo relato isidoriano de uma forma quase épica,
19
SIDONII APOLINARIS, LOYEN, André (ed.). Epistularum, Paris: Les Belles Lettres, 2003, livre I. Ep., II, 1,
3: “...exsultans Gothis insultansque Romanis, inludens praefectis conludensque numerariis, leges Theodosianas
calcans Theudoricianasque proponens ueteres culpas, noua tribute perquirit...”. Na opinião de VALVERDE
CASTRO, Maria Rosario. Ideología, simbolismo y ejercicio del poder real en la monarquía visigoda: un proceso
de cambio. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2000, p. 71, “…Es más probable pensar, por lo tanto,
que fuera Teodorico II el otro de los monarcas legisladores, anteriores a Eurico, a los que parece hacer referencia el
Codex Euricianus…”; WARMALD, Patrick. The Leges Barbarorum: law and ethnicity in the post-roman
west, in: GOETZ, H. W. (org.), JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship
between Late Antique and Early Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world.
Leiden-Boston: Brill, 2003, p.26.
20
GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Madrid: Catedra, 1989, p. 113-131; VELAZQUÉZ,
Isabel. Pro Patriae Gentisque Gothorum statv (4th Council of Toledo, canon 75, a.633). In: GOETZ, H. W. (org.),
JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). .). Regna and Gentes. The relationship between Late Antique and Early
Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world. Leiden-Boston: Brill, 2003, p.173-174;
FRIGHETTO, Renan. Símbolos e rituais: os mecanismos do poder político no reino hispano-visigodo de Toledo
(séculos VI – VII), Anos 90, v. 22, n. 42, 2015, p.250-253; FRIGHETTO, Renan. A comunidade vence o indivíduo.
A regra monástica de Isidoro de Sevilha (século VII). Curitiba: Editora Prismas, 2016, p.36.
21
Isid., HG, 51: “...In legibus quoque ea quae ab Eurico incondite constituta uidebantur correxit, plurimas
leges praetermissas adiciens plerasque superfluas auferens...”
122
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
direcionando toda a sua energia para realçar a grandeza dos monarcas responsáveis por
tais iniciativas e, consequentemente, da monarquia hispano-visigoda:
22
Isid., HG, 52-53: “...In ipsis enim regni sui exordiis catholicam fidem adeptus totius Gothicae gentis
populos inoliti erroris labe detersa ad cultum rectae fidei reuocat. Synodum deinde episcoporum ad
condemnationem Arrianae haeresis de diuersis Spaniae et Galliae prouinciis congregat, cui concilio idem
religiosissimus princeps interfuit gestaque eius praesentia sua et subscriptione firmauit...”
23
Isid., HG, 62: “...Postquam uero apicem fastigii regalis conscendit, urbes residuas, quas in Spaniis
Romana manus agebat, proelio conserto obtinuit auctamque triumphi gloriam prae ceteris regibus
felicitate mirabili reportauit, totius Spaniae intra oceani fretum monarchiam regni primus idem potitus,
quod nulli retro principum est conlatum...”
24
FRIGHETTO, Renan, El exilio, el destierro y sus concepciones políticas en la Hispania visigoda: los ejemplos
de Juan de Bíclaro e Isidoro de Sevilla (siglos VI – VII). In: VALLEJO GIRVÉS, Margarita (ed.), BUENO
DELGADO, Juan Antonio (ed.), SÁNCHEZ-MORENO ELLART, Carlos (ed.). Movilidad forzada entre la
Antigüedad Clásica y Tardía. Alcalá de Henares: Ediciones Universidad de Alcalá de Henares, 2015, p.111-134.
123
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
25
Isid., Etym., IV, 5, 2: “Morbi generali vocabulo omnes passiones corporis continentur; quod inde veteres
morbum nominaverunt, ut ipsa appellatione mortis vim, quae ex eo nascitur, demonstrarent...”
26
Isid., HG, 61: “...Hunc alii proprio morbo, alii inmoderato medicamenti haustu asserunt interfectum...”
27
MAXIMI CAESARAUGUSTANI, MIGNE, J.-P. (ed.). Chronicon. Paris: Patrologia Latina LXXX,
1849. Chronicon, a.587: “...Leovigildus, ingravescente morbo...”.
124
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
28
Isid., HG.,50: “Denique Arrianae perfidiae furore repletus in catholicos persecutione commota plurimos
episcoporum exilio relegauit, ecclesiarum reditus et priuilegia tulit. Multorum quoque terroribus in
Arrianae pestilentiam inpulit, plerosque sine persecutione inlectos auro rebusque decepit. Ausus quoque
inter cetera haeresis suae contagia etiam rebaptizare catholicos...”
29
MAYA SANCHEZ, A. Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium. Turnholti: Corpus Christianorum Series Latina
116 – Brepols, 1992, p. VIII; VELÁZQUEZ, Isabel. Hagiografía y culto a los Santos en la Hispania Visigoda:
Aproximación a sus manifestaciones literarias. Mérida: Cuadernos Emeritenses 32, 2002, p.177-178.
30
ALONSO CAMPOS, J.J. , Sunna, Masona y Nepopis. Las luchas religiosas durante la dinastía de Leovigildo.
In: UNIVERSIDAD DE MURCIA. Antigüedad y Cristianismo: monografias historicas sobre la antigüedad
tardia. III. Los Visigodos. Historia y civilización. Murcia: Universidad de Murcia, 1986, p.151-157;
CASTELLANOS, Santiago. Poder social, aristocracias y hombre santo en la Hispania visigoda. La Vita
Aemiliani de Braulio de Zaragoza. Logroño: Universidad de La Rioja, 1998, p.127-129; VELAZQUÉZ, Isabel.
Pro Patriae Gentisque Gothorum statv (4th Council of Toledo, canon 75, a.633). In: GOETZ, H. W. (org.),
JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship between Late Antique and Early
Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world. Leiden-Boston: Brill, 2003, p. 176;
DUMÉZIL, Bruno. Les racines chrétiennes de l’Europe. Conversion et liberté dans les royaumes barbares Ve –
VIIIe siècle. Paris: Fayard, 2005, p.274-278; SANZ, Rosa. Historia de los Godos. Una epopeya histórica de
Escandinavia a Toledo. Madrid: La esfera de los libros, 2009, p.281-288.
31
ANONIMUS, MAYA SANCHEZ, A. (ed.). Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium, (= VSPE)
Turnholti: Corpus Christianorum Series Latina 116 – Brepols, 1992. VSPE V, 9, 5-8: “...grauissimoque
morbo Dei iudicio correptus uitam fedissimam amisit et mortem sibi perpetuam adquisiuit crudeliterque e
corpore eius anima resoluta, perpetuis penis detenta...”. Uma versão espanhola recente é a de
VELÁZQUEZ, Isabel. Vidas de los Santos Padres de Mérida. Madrid: Editorial Trotta, 2008.
32
VSPE, V, 9, 14-15: “...uir denique ortodoxus et per omnia catholicus, qui non patrem perfidum...”.
125
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
surgem de forma evidente nesse caso que terá uma importante inflexão no entendimento
do termo morbo que, a partir da nossa compreensão, será também relacionado como
sinônimo de enfermidade política. Podemos observar este vínculo através da afirmação
presente no Tomo régio, documento exarado pelo rei para a abertura de uma reunião
conciliar e que neste caso antecede as atas do VIII Concílio de Toledo de 653, nos
primórdios do reinado de Recesvinto (652 – 672+), onde o monarca oferece uma imagem,
pautada no pensamento paulino33, da sociedade política hispano-visigoda equiparada a
um corpo onde a cabeça – o rei – rege a todos os demais membros – a sociedade política:
Parece-nos certo afirmar que ao mencionar a saúde que deveria existir entre a
cabeça/rei e os demais membros do corpo/sociedade política do reino hispano-visigodo a
mensagem régia apresentada no Tomus do VIII concílio de Toledo dirigia-se no sentido
de consolidar a relação política “saudável” que deveria existir entre a monarquia e os
segmentos aristocráticos e nobiliárquicos do reino uma vez que:
33
O preceito paulino sobre o corpo aparece em I, Coríntios, 12, 12-30: “Com efeito, o corpo é um e, não obstante,
tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um só corpo (...). Mas
Deus dispôs cada um dos membros do corpo, segundo a sua vontade (...). Mas Deus dispôs o corpo de modo a
conceder maior honra ao que é menos nobre, a fim de que não haja divisão no corpo, mas os membros tenham
igual solicitude uns com os outros. Se um membro sofre, todos os membros compartilham o seu sofrimento...”.
34
VIVES, José (ed.), MARÍN, Tomás (ed.), MARTINEZ, Gonzalo (ed.). Concilios Visigoticos e Hispano-
Romanos (= Conc.). Barcelona-Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1963. = Conc.
VIII Tol., a.653, Tomus: “...divina mici potentia subiugavit. Unde quia regendorum membrorum causa
salus est capitis, et felicitas populorum non nisi mansuetudo est principum....”.
35
Conc. VIII Tol., a.653, Tomus: “...retro temporibus ita vos omnique populum iurasse recolimus, ut
cuisquumque ordinis vel honoris persona in necem regiam excidiumque Gothorum gentis ac patriae detecta
fuisset cogitasse noxia vel egisse, inrevocabilis sententiae multatus atrocitate nusquam mereretur venia
remedium vel alicuius temperantiae perciperet qualequumque subsidium...”
126
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
O resultado da reação régia culminou com a eliminação de Froya que teve “uma
atrocíssima e ignominiosa morte, destruído pela destra de Deus”38 seguindo, nesse caso,
o estabelecido por uma lei que fora editada pelo pai e antecessor de Recesvinto, a LV, II,
1, 6 de Chindasvinto relativa aos prófugos e desterrados que desde o exterior causavam
danos e prejuízos ao reino e as gentes hispano-visigodas39. De acordo com a lei, “todo o
36
GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Madrid: Catedra, 1989, p.165; VELAZQUÉZ,
Isabel. Pro Patriae Gentisque Gothorum statv (4th Council of Toledo, canon 75, a.633). In: GOETZ, H. W. (org.),
JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship between Late Antique and Early
Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world. Leiden-Boston: Brill, 2003, p.209;
FRIGHETTO, Renan, O rei e a lei na Hispania visigoda: os limites da autoridade régia segundo a Lex
Wisigothorum, II, 1-8 de Recesvinto (652-670), in: GUIMARÃES, Marcella Lopes (org.), FRIGHETTO, Renan
(org.). Instituições, Poderes e Jurisdições. I Seminário Argentina-Brasil-Chile de História Antiga e Medieval.
Curitiba: Juruá Editora, 2007, p.123-124; SANZ, Rosa. Historia de los Godos. Una epopeya histórica de
Escandinavia a Toledo. Madrid: La esfera de los libros, 2009, p.312-313.
37
TAIONIS CAESARAUGUSTANI EPISCOPI, MIGNE, J. -P (ed.). Sententiarum libri quinque (=Taio, Sent.).
Patrologia Latina LXXX. Paris: Migne,1849. Taio, Sent. Praef., 2, 1-10: “...tempus illud quo tortuosus anguis ore
pestiferoin quorumdam mentibus virulenta seminum suorum sparserat zizania, fraudulentaque deceptione a tramite
recti itineris gressum removerat mentium perditarum: in quo quidam homo pestifer atque insani capitis Froja
tyrannidem sumens, assumptis sceleris sui preversis fautoribus, adversus orthodoxum magnumque Dei cultorem
Recesvinthum principem...”.
38
Taio, Sent., Praef., 3, 15-16: “...illi vero inferens atrocissimae mortis ignominiam. Destruxit eum dextera
sua Deus...”.
39
LEX VISIGOTHORUM, (= L.V.).In: ZEUMER, K. ed.. Monumenta Germaniae Historica. Legum Sectio
I. Legum Nationum Germanicarum. Tomus I. Hannover-Leipzig, Impensis Bibliopolii Hahniani, 1902.
L.V., II ,1 ,6 (Flavius Gloriosus Chindasvindus rex), “De his, qui contra principem vel gentem aut patriam
refugi sive insulentes existunt”
127
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
criminoso acusado (daquele ato) será sentenciado com a morte (...). E se a ele for
concedida a vida por causa da piedade do principe, serão vazados os seus olhos” 40 ,
castigos extremos e dirigidos aos que fossem acusados de cometerem alguma traição ou
infidelidade contra o rei, contra as gentes hispano-visigodas e o reino.
40
L.V., II, 1, 6: “...horum omnium scelerum vel unius ex his quisque reus inventus inretractabilem
sententiam mortis excipiat (...). Quod si fortasse pietatis intuitu a principe fuerit illi vita concessa, non
aliter quam effossis oculis...”
41
Conc. IV Tol., a.633, c.31: “Saepe principes contra quoslibet maiestatis obnoxious sacerdotibus negotia
sua conmittunt; sed quia sacerdotes a Christo ad ministerium salutis electi sunt, ibi consentiant regibus
fieri iudices, ubi iureiurando supplicii indulgentia promittitur, non ubi disciminis sententia praeparatur. Si
quis ergo sacerdotum contra hoc commune consultum discussor in alienis periculis extiterit, sit reus effusi
sanguinis apud Christum, et apud ecclesiam perdat proprium gradum.”
128
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
Contudo, devemos notar que a LV, II, 1, 6 continuou sendo válida à luz do direito régio
de reagir à “presunção tirânica” dos grupos aristocráticos que se lançavam contra a autoridade
monárquica e apontada claramente desde o IV Concílio de Toledo de 63343. Tanto assim que
os castigos previstos na lei promulgada por Chindasvinto surgem como possibilidade de serem
aplicados em outra importante rebelião aristocrática e nobiliárquica contra o poder régio
hispano-visigodo levada a cabo pelo duque Paulo contra o rei Wamba (672 – 680) no primeiro
ano de seu reinado. Centrada nas regiões da Galia Narbonense e da Tarraconense, a rebelião
liderada por Paulo pode ser considerada como a mais intensa ocorrida no reino hispano-
visigodo de Toledo ao longo de todo o século VII na medida em que envolveu, para além dos
grupos aristocráticos hispano-visigodos, agentes externos como vascos, aquitanos e francos
em confrontações diretas e muito bem descritas pelo bispo Juliano de Toledo em sua Historia
Wambae44. Após uma rápida campanha, marcada pela habilidade estratégica e militar quando
impôs diversas derrotas aos rebeldes e seus aliados externos, Wamba conseguiu capturar o
duque Paulo e uma significativa parcela de seus apoiantes godos após a derradeira batalha que
42
Conc. VIII Tol., a.653, c.2: “…opus in gloriosi principis potestate redigimus, ut quia Deus illi miserendi
aditum patefecit, remedia pietatis ipse quoque non deneget, quae ita principali discretion moderata
persistant, ut et illis sit aliquatenus misericordia contributa et nusquam gens aut patria per eosdem aut
periculum quodquumque perferat aut iacturam (…). Ceterum quaequumque iuramenta pro regiae
potestatis salute vel contutatione gentis et patriae vel hactenus sunt exacta vel deinceps extiterint exigenda,
omni custodia omnique vigilantia insolubiliter decernimus observanda, a membrorum truncatione
mortisque sententia religione penitus absoluta…”.
43
Conc. IV Tol., a.633, c.75: “...praesumtione tyrannica regni fastigium usurpaverit...”; Conc.VI Tol.,
a.638, c.17: “...Rege uero defuncto nullus tyrannica praesumtione regnum adsumat...” ; c.18: “...nemo
regi eum gubernaculis privet, nemo tyrannica praesumtione apicem regis sibi usurpet...”; Conc. XVI Tol.,
a.693, c.10: “...Quicumque amodo ex nobis vel cunctis Hispaniae populis quolibet tractatu vel studio
sacramentum fidei suae (...) aut praesumtione tyrannica regni fastigium usurpare delegerit...”; Conc. XVII
Tol., a. 694, c.8: “…verum etiam ausu tyrannico inferre conati sunt ruinam patriae ac populo uniuerso
(...). Unde crudelis et stupenda praesumptio crudeliori debet exstirpari supplicio...”.
44
COLLINS, Roger. Julian of Toledo and the royal succession in late seventh century Spain. In: SAWYER,
P. H. (ed.), WOOD, I. N. (ed.). Early Medieval Kingship. Leeds: University of Leeds, 1977, pp.40-49;
TEILLET, Susane, L’Historia Wambae est-elle une oeuvre de circunstance?. In: UNIVERSIDAD DE
MURCIA. Antigüedad y Cristianismo: monografias historicas sobre la antigüedad tardia. III. Los
Visigodos. Historia y civilización. Murcia: Universidad de Murcia, 1986, p.415-424; FRIGHETTO, Renan,
Legitimidade e poder da realeza hispano-visigoda, segundo a Historia Wambae de Juliano de Toledo
(segunda metade do século VII). Revista Espaço Plural, n. 30, v.1, 2014, p.89-116.
129
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
teve como palco a cidade de Nimes: “No primeiro dia das calendas de Setembro teve início a
guerra contra a cidade de Nimes. No dia seguinte, a cidade foi invadida. E no terceiro dia (...)
o tirano Paulo foi capturado (...)”45. Três dias após a vitória ocorreu em Nimes o juízo dos
rebeldes que de acordo com o relato de Juliano contou com a presença de todos os combatentes
vitoriosos e do próprio rei Wamba. Nesta assembleia evocou-se exatamente a aplicação da
pena de morte contra os rebeldes e traidores do reino, tal qual aparece na LV, II, 1, 6 de
Chindasvinto, indicando que tratava-se de uma tradição comum aos godos:
No terceiro dia após a vitória, Paulo foi acorrentado junto com os seus e
todos foram levados a presença do principe. De acordo com os costumes
antigos (Paulo) foi prostrado junto com os seus e foi-lhes imposto o juízo
universal de morte, pois prepararam a morte do principe...46.
Atentar contra a vida do principe tinha relação direta com o rompimento do juramento
de fidelidade proferido publicamente e feito em nome de Deus para proteger o rei, as gentes
hispano-visigodas e o reino sendo, por isso, um ato de traição e de infidelidade imperdoável.
Mas no lugar da pena de morte ou de outras penalizações cruéis como a extirpação da destra e
o vazamento ocular para estes crimes, observamos que tanto a legislação laica como a
eclesiástica apontavam penas e castigos substitutivos para os acusados de cometerem
infidelidades contra o rei que tentavam, de todas as formas, eliminar a opção capital47. Uma
45
IULIANUS TOLETANUS, Historia Wambae (= Iul.Tol.,HW). In: LEVISON, W. (ed.), Corpus Christianorum.
Series Latina CXV. Turnholti: Brepols, 1976. Iul.Tol.,HW 26, 660-665: “...Primo quippe die pridie Kalendarum
Septembrium contra Neumasensem urbem a nostris initum est bellum. Sequenti die Kalendarum Septembrium
ciuitatis ipsius inruptio facta est. Tertio quoque die (...), Paulus tyrannus celebri captus detentione deuincitur...”.
46
Iul. Tol., HW, 27, 683-689: “Tertia iam post uictoriam uictoribus aduenerat dies, et Paulus ipse onustus
ferro cum ceteris consedenti in throno principi exibetur. Tunc antiquorum more curba spina dorsi uestigiis
regalibus sua colla submittit, deinde coram exercitibus cunctis adiudicatur cum ceteris, quum uniuersorum
iudicio et mortem exciperent, qui mortem principi praeparassent...”
47
Uma passagem da obra de Valério do Bierzo evoca alguns destes castigos, Val., De Van.Saec.Sap., 6: “...sendo
também por ele torturados na própria carne, trazendo-lhes tormento e violência para os seus corpos: como o fogo
(queimaduras); golpes corporais; setas; extirpação das unhas; prisão; correntes; pedras; flagelos com espada.../
...se persecutoribus atque carnificibus oferentes tradiderunt uiolentis corpora sua tormentis, ignibus, feris, eculeis,
ungulis, carceribus, catenis, lapidibus, flagellis et gladiis..”.; há uma ótima edição desta obra valeriana feita por
DIAZ Y DIAZ, Manuel Cecílio. Valerio del Bierzo. Su persona. Su obra. León: Centro de Estudios e Investigación
“San Isidoro”, 2006, p.172-193; e também são nominados no Conc. XIII Tol., a.683, c.2: “...Pelo qual, tomando
uma medida conforme os desejos do rei, decretamos em comum que nenhum dos integrantes do ofício palatino, ou
aqueles pertencentes a santa religião, por estratagema urdido pelo rei ou por instigação de outro poder secular,
ou com apoio da maliciosa vontade de qualquer outro homem, seja privado de sua honra e de seu grau ou de servir
no palácio real, fora o caso de manifesto e evidente indício de sua culpa, não se lhe aprisione, nem o acorrente,
nem lhe submeta a tormento, nem se lhe castigue com qualquer classe de pena corporal ou açoite.../...Unde
congruam devotioni eius sententiam decernentes hoc in commune decrevimus ut nullus deinceps ex palatini ordinis
gradu vel religionis sanctae conventum, regia subtilitatis astu vel profanae potestatis instictu sive quorumlibet
hominum malitiosae volumptatis obnisu citra manifestum et evidens culpae suae indicium ab nonore sui ordinis vel
servitio, domus regiae arceatur, non ante vinculorum nexibus inligetur, non quaestioni subdatur, non quibuslibet
tormentorum vel flagellorum generibus maceretur...”.
130
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
delas seria a imposição do anátema divino que repercutiria sobre o traidor e toda a sua
descendência:
...que ninguém pretenda a morte do rei; que ninguém atente contra a vida
do príncipe (...). E se algum de nós temerariamente incorrer em alguma
destas coisas, seja ferido com o anátema divino e condenado no eterno
juízo sem remédio algum...48.
Outro castigo, o da decalvação, mencionado por Juliano de Toledo, era de fato mais
marcante e estava associado com a ideia do triunfo do vitorioso e da humilhação do derrotado.
Esta foi a punição escolhida por Wamba para castigar o traidor Paulo e os seus seguidores:
“Sem impor a sentença de morte, para substituir a vindicta, se impôs a decalvação”49. O
próprio relato do bispo toledano mostra-nos o que seria a imposição da decalvação: “No
quarto miliário distante da cidade régia, o tirano Paulo e os seus apoiantes na sedição tiveram
a cabeça decalvada, barbas mal cortadas e os pés descalços...”50. Ou seja, todos os traidores
tiveram seus cabelos raspados de forma irregular51, signo evidente da insanidade e da loucura
do traidor, além de ser um sinal reconhecido nas atas conciliares de que o indivíduo que sofreu
a decalvação jamais poderia aceder à condição régia52. Com este ato o legítimo e vitorioso
rei Wamba marcava, de maneira indelével, que o traidor e pérfido Paulo jamais poderia
almejar ou reclamar o trono para si. Ademais, a atitude do monarca de poupar as vidas dos
traidores acentuava uma das virtudes essenciais do bom governante, a clemencia régia
dirigida àqueles que se levantaram contra a sua autoridade: “...graças a clemencia do principe
foram poupados e não tiveram os olhos vazados...”53.
Tanto no caso da fracassada rebelião de Paulo como na levada a cabo pelo conde
Froya, encontramos certos elementos comuns e recorrentes que os coligavam, como a
pertença de ambos os rebeldes ao círculo aristocrático e nobiliárquico hispano-visigodo,
48
Conc. VI Tol., a.638, c.18: “...ut nemo intendat in interitum regis, nemo vitam principis nece adtrectet
(...). Quod si dein quisppiam horum quisquam nostrorum temerario ausu praesumtor extiterit, anathemate
divino perculsus absque ullo remedii loco habeatur condemnatus aeterno iudicio...”
49
Iul. Tol., HW, 27, 689-690: “...Sed nulla mortis super eos inlata sententia, decaluationis tantum, ut
praecipitur, sustinuere uindictam...”
50
Iul. Tol., HW, 30, 768-770: “Etenim quarto fere ab urbe regia miliario Paulus princeps tyrannidis uel
ceteri incentores seditionum eius, decaluatis capitibus, abrasis barbis pedibusque nudatis... “
51
DU CANGE. Glossarium Mediae et Infimae Latinitatis. Paris: Libraire des Sciences et des Arts, 1938, v.III, p.17.
52
Conc. VI Tol., a.638, c.17: "...nullus sub religionis habitu detonsus aut turpiter decalvatus..."
53
IULIANUS TOLETANUS, Iudicium (= Iul.Tol.Iud.). In: LEVISON, W. (ed.), Corpus Christianorum.
Series Latina CXV. Turnholti: Brepols, 1976. Iul.Tol.Iud. 1, 8-9: “...quibus ex clementia princeps dederit
uiuere, effossionem luminum non euadant”.
131
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
o apoio oferecido aos dois traidores por significativos grupos aristocráticos hispano-
visigodos que concorriam com o poder régio e a utilização da aliança com agentes
externos em ambas as confrontações ocorridas no interior dos territórios hispano-
visigodos. Rivalidades e antagonismos, incluindo os de extensão regional, que
favoreceram as atitudes de insurgência contra a monarquia hispano-visigoda ao longo do
século VII. Essa tendência à insubordinação e à infidelidade, com o consequente
rompimento dos juramentos de fidelidade, por parte de setores do conjunto aristocrático-
nobiliárquico do reino hispano-visigodo de Toledo é que aparece como sinônima de
enfermidade/doença de fundo político. As sucessivas leis e decretos, fossem de natureza
laica, fossem de natureza eclesiástica, que condenavam veementemente as traições, as
rebeliões, as sedições, as revoltas e as conjuras palacianas contra o poder régio hispano-
visigodo, reforçam ainda mais a ideia de que a sociedade política hispano-visigoda
padecia do morbo traidor, a doença comum e característica dos godos, o morbo gothorum
que enfraquecia as instituições políticas ao fazer com que seus atores, rei, aristocratas e
nobres, se digladiassem para manter ou tentar alçar ao ápice do poder. Uma contaminação
que adoecia os principais agentes políticos do reino de forma contínua e que foi
esplendidamente diagnosticada pela crônica franca do Pseudo Fredegário ao apresentar-
nos, de forma breve, a atitude usurpatória promovida por Chindasvinto contra o jovem
rei Tulga entre os anos de 641-642:
54
FREDEGARII SCHOLASTICI, Chronicum. MIGNE, J.-P. (ed.) Paris: Patrologia Latina LXXI, 1849,
82: “Eo anno Sintela rex Spaniae, qui Sisenando in regno successerat, defunctus est. Hujus filius, nomine
Tulga, sub tenera aetate Spaniis petitione patris sublimatur in regno. Gotthorum gens impatiens est,
Quando super se forte jugum non habuerit. Hujus Tulganis adolescentia ominis Spania more solito vitiatur,
diversa committens insolentia. Tandem unus ex primatibus, nomine Chintasindus, collectis plurimis
senatoribus Gotthorum, caeteroque populo, in regnum Spaniae sublimatur, qui Tulganem degradatum ad
onus clericatos tonsorari fecit: cumque omne regnum Spaniae suae ditioni firmasset, cognitio morbo
Gotthorum, quem de regibus degradandis habebant, unde saepius cum ipsis in consilio fuerat, quoscunque
ex eius hujus vitii promptum contra reges...”
132
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
Nos tempos gloriosos deste principe (Wamba), a terra das Galias, mãe da
perfídia, sempre atormentada por uma incompreensível febre de
infidelidade nascida em si mesma é marcada por um infame veredito, por
causa do qual devorava os membros dos traidores (...). Por muito tempo
foi acossada por diversas febres quando, de repente, se levantou o turbilhão
da infidelidade pelo erro de uma única e nefasta cabeça e a conspiração da
traição passou de um em um55.
55
Iul. Tol., HW, 5, 70-73; 80-83: “Huius igitur gloriosis temporibus Galliarum terra, altrix perfidiae,
infami denotatur elogio, quae utique inextimabili infidelitatis febre uexata genita a se infidelium depasceret
membra (...). Etenim dum multo iam tempore his febrium diuersitatibus ageretur, subito in ea unius nefandi
capitis prolapsione turbo infidelitatis adsurgit, et consensio perfidiae per unum ad plurimos transit.”
56
Isid., Etym., IX, 3, 4: "...Rex eris si recte facias, si non facias non eris..."
57
Conc. VIII Tol., a.653, Tomus: “…Vos etiam inlustres viros, quos ex officio palatino huic sanctae synodo
interesse mos primaevus obtinuit ac non vilitas exspectabilis honoravit et experientia aequitatis plebium
rectores exegit, quos in regimine socios, in adversitate fidos et in prosperis amplecturos strenuous…"
133
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
Conclusões parciais
134
Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.
Além das fontes de caráter jurídico, como as leis civis e eclesiásticas, obtemos
importantes informações provenientes das histórias, crônicas e biografias que corroboram
significativamente a prática do morbo político entre os grupos aristocráticos e
nobiliárquicos hispano-visigodos. De fato, a traição e a infidelidade aos juramentos
prestados ao rei, à pátria e ao regnum eram constantes e motivavam, naturalmente, uma
reação por parte da autoridade régia e de seu grupo de apoio. Uma afirmação que reforça a
caracterização de que as gothicae gentes sofriam da enfermidade política da traição
endêmica contra a instituição monárquica que demonstrava uma aversão ao poder
centralizado na figura do rex que, desde o ponto de vista ideológico, seria um primus super
pares. Antagonismos aristocrático-nobiliárquicos, fricções e lutas pelo poder régio, temas
que circundam o morbo gothorum e que por esse motivo merecem a atenção do historiador.
135