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25/03/2019 Tratado das relíquias | Ensaio | PÚBLICO

ENSAIO

Tratado das relíquias


Hoje, as crenças continuam baralhadas e há muitas religiões
sem Deus: o sagrado e o profano não se entendem.

Álvaro Domingues • 24 de Março de 2019, 7:48

ÁLVARO DOMINGUES

— Aqui está! — declarou a Titi. — Se


entendes que mereço alguma coisa, pelo
que tenho feito por ti, desde que morreu
tua mãe, já educando-te, já vestindo-te, já
dando-te égua para passeares, já
cuidando da tua alma, então traze-me
desses santos lugares uma santa relíquia,
uma relíquia milagrosa que eu guarde,
com que me fique sempre apegando nas
minhas aflições e que cure as minhas
doenças.

E pela vez primeira, depois de cinquenta


anos de aridez, uma lágrima breve
escorregou no carão da Titi, por sob os
seus óculos sombrios. (1)

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Em tempos de grandes rigores ortodoxos,


intransigências e protestos com os papas e
o catolicismo de Roma, João Calvino
(1509-1564) publica em Genebra o seu
Tratado das Relíquias (1543) com uma
recomendação inicial sobre o grande
benefício que seria para a cristandade se
se fizesse o inventário de todos os corpos
de santos e relíquias que se encontrassem
na Itália, França, Alemanha, Espanha e
outros reinos e países. A lista é
interminável, especialmente no que diz
respeito aos despojos da Paixão de Cristo:
verónicas, pregos, cruzes, túnicas, cabelos,
coroa de espinhos, sangue, lágrimas,
esponjas, etc. Reunindo as relíquias do
Santo Lenho espalhadas por catedrais,
abadias, igrejas e capelas, diz Calvino que
se teria de arranjar um barco bem grande
para carregar tudo (2).

A questão era séria. A tradição medieval da


veneração das relíquias tinha atingido uma
proliferação incontrolável e aquilo que era
resultado de um sentimento de veneração
tinha-se tornado um negócio vultuoso para
a hierarquia da igreja e uma idolatria
corrompida para os crentes. Não havia
corporação, cidade ou região que não
tivesse os seus santos patronos, confrarias,
os seus símbolos, crenças e rituais de
devoção que ofuscavam e distorciam a
verdadeira mensagem de Cristo, focando a
fé e a veneração em pedacinhos de osso,
restos de tecido, corpos embalsamados,
cabeças, unhas…, prodígios
fervorosamente venerados, milagreiros,
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propiciadores de indulgências plenárias,


remissão de pecados e salvadores de almas
tolhidas, iluminados por velas e candeias,
incensados, transportados em procissões,
expostos com grande pompa, sermões e
missas, verdadeiros tesouros, a maior parte
falsos, guardados em relicários de cristal de
rocha, madeiras finas, prata, ouro e pedras
preciosas.

Por esses tempos, Emanuel Felisberto,


duque de Sabóia e suserano feudal de
Genebra (1528-1580), tratava de levar a
suprema relíquia, o Santo Sudário, para a
catedral de Turim, legitimando o poder da
casa de Sabóia. O seu filho, Carlos Emanuel
I, não olhou a despesas para que a
arquitectura e o urbanismo de Turim
reflectissem a magnificência da família, o
poder e a importância cultural de Turim. A
Piazza Castello era um dos pontos altos
dessa cenografia que culminava com o
brilhantismo barroco da capela do Santo
Sudário de Guarino Guarini (3).

Hoje, as crenças continuam baralhadas e


há muitas religiões sem Deus: o sagrado e o
profano não se entendem, não se sabendo
ao certo o que se sacraliza ou o que é para
uns a profanação que outros não
vislumbram; as ortodoxias e os
extremismos religiosos aparecem em todo
o lado; o povo perdeu a inocência; as
cruzes e os altares entraram nos videoclips;
os vampiros e lobisomens andam em todas
as televisões; o outro mundo vai na Fox em
episódios; a natureza estáASSINE
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seus génios e demónios; os lugares


sagrados nunca tiveram tanta gente; a
frequência das missas anda por baixo mas
os concertos e os estádios nunca tiveram
tantos fiéis; a fé inundou o ciberespaço; os
anjos nem sempre têm asas; a Terra Santa
está a ferro e fogo como sempre; também
há romarias nos centros comerciais ao
domingo à tarde e nos festivais de Verão
regados com cerveja; festas há sempre, mas
os santos padroeiros medem concorrência
com o festival da castanha, da alheira, do
vinho ou do chocolate; o Pai Natal é
patrocinado pela Coca-Cola; os génios dos
lugares dedicam-se ao turismo; a
globalização mistura as divindades exóticas
com as dos panteões oficiais; os cultos
domésticos mudaram-se para junto dos
ecrãs e para devoções individuais e não é
tudo o que há.

Coloquem-se então as relíquias profanas


em arcas cristalinas expostas nos lugares
públicos para que o povo organize
procissões motorizadas em infinitos
giratórios, à volta, à volta,
incessantemente, 2π r num perímetro
perfeito de roda da fortuna em sentido
único. Se Calvino aparecer, que circule e
que deixe a cada um as suas crenças e
rodopios. Se lhe der para a mística, alguém
que lhe explique o tratado do
interaccionismo simbólico, o papel da
partilha de significantes e significados na
organização da sociedade e nas suas
representações colectivas.
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Como as cidades se dissolveram em


territorialidades difusas, é necessário
colocar os relicários nos lugares certos;
naqueles, como nas antigas praças, por
onde circula mais gente. Os fiéis
atormentados e os iconoclastas devem dar
tantas voltas quanto a duração das
ladainhas que constantemente vociferam
em surdina.

1. Eça de Queiroz (1951), A Relíquia, Porto, Lello & Irmãos Editores, pp.81/82
(1.ª ed., 1887)

2. In Jean Calvin, Traité des Reliques suivi de L’Excuse a Messieurs les


Nicodémites, Introduction et notes para Albert Autin, Paris: Editions Bossard,
1921, p.113

3. John Beldon Scott (2003), Architecture for the Shroud: Relic and Ritual in Turin, Chicago:
University of Chicago Press

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