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A decomposição do Escolasticismo
A incerteza e a conjuntura da época levaram a uma desintegração
da síntese medieval bem como de sua teologia, filosofia e arte. O início
desse processo foi marcado pela volta da discussão entre realistas e
nominalistas em universidades como Oxford e Paris. O grande feito de
Tomás de Aquino de conciliar Aristóteles com a fé cristã passou a ser
questionado por estudiosos como Guilherme de Ockham (falecido em
1349), que destruiu o sistema filosófico que havia dado base racional
para a Teologia.
Os platonistas medievais, conhecidos como “realistas”, ensinavam
que há certas formas ou idéias imutáveis (universais) que existem na
mente de Deus e podem ser percebidas através da iluminação divina, sem
uma referência a coisas determinadas. Aquino afirmava que a fim de
alcançar essas formas era preciso adquirir conhecimento através da
apreensão de objetos.
Ockham, porém, declarou que somente coisas individuais existem
de fato e que os universais não tem uma existência real; são
simplesmente nomes ou termos. Sua filosofia foi chamada de
“nominalismo”, da palavra latina nomem (“nome”). Ele rejeitava as
provas de Deus baseadas em dados observados, mas como franciscano
devoto ele não desejava destruir a fé em Deus. Assim, ele insistia que
estava libertando o Cristianismo dos grilhões da Razão. Deveria crer-se
em Deus não por causa de uma necessidade lógica.
Ockham também aplicou suas idéias à Igreja organizada de seu
tempo. Ele procurou mostrar que o imperador deveria ser completamente
independente do papa, que a única autoridade sobre assuntos espirituais
era a Bíblia e que um concílio geral da Igreja era superior ao papado.
Quando de sua morte, o nominalismo já estava firmemente estabelecido
na ordem franciscana e crescia no meio dos fiéis a convicção de que era
necessário haver um concílio geral para reformar a Igreja.
As críticas apresentadas por Marcílio de Pádua em sua obra
Defensor Pacis (1324) eram mais radicais do que as de Ockham. Para
ele, o inimigo não era a hierarquia clerical corrupta conforme Ockham
ensinava, mas sim a influência exercida pelo clero nos assuntos
seculares. Marcílio aplicou o nominalismo aos problemas de Estado e
perguntou: “Onde encontra-se, de fato, a autoridade política?” Sua
resposta estava no cidadão individual, não na idéia de Estado (universal).
Quanto à pergunta “O que é a Igreja?”, sua resposta era que compunha-
se de cristãos individuais e não era uma instituição sobrenatural com vida
própria.
O nominalismo foi o solo propício para o desenvolvimento de
idéias políticas que enfraqueceriam a autoridade do papado.
Os primórdios da Renascença
Durante os séculos 13 e 14 a Itália era uma área geográfica sem
unidade política. Enquanto a França e a Inglaterra estavam evoluindo
para estados dinásticos à medida em que seus monarcas centralizavam
sua autoridade às custas da nobreza, as cidades-estados territoriais da
Itália prosperavam graças ao seu comércio com o leste do Mediterrâneo.
Essas áreas ricas também lucravam com a hostilidade entre o imperador
alemão e o papa. Com o enfraquecimento do poder imperial e o
transferência do papado para Avignon, o vácuo político na Itália foi
preenchido pelas cidades-estados, sendo que cada uma governava uma
certa região ao seu redor e brigava com seus vizinhos por terras e pelo
controle das rotas de comércio.
Na Idade Média, a maioria delas tinha uma forma de governo
republicana. No início da Renascença, porém, passaram a ser governadas
pelos regimes de déspotas. Normalmente, um líder agressivo tomava o
poder por um certo tempo e então procurava estabelecer uma sucessão
hereditária. Esses governantes muitas vezes tentavam expandir seu
território, o que apelava para o orgulho dos cidadãos e também garantia
hostilidades com os estados vizinhos. O resultado disso era uma situação
de crise contínua que os ajudava a ficar no poder.
Um bom exemplo desse padrão de desenvolvimento foi Milão,
importante cidade no fértil vale do rio Pó. A economia em expansão
criou uma nova aristocracia econômica que desafiou a antiga aristocracia
agrária e exigiu uma parcela do poder político. Com o crescimento de sua
força comercial e base territorial, Milão tornou-se rival em riqueza e
prestígio tanto de Veneza como de Florença. Nos séculos 12 e 13 seu
governo era baseado num grande concílio no qual todos os cidadãos
livres eram representados e um grupo de doze homens servia de poder
executivo. Em 1277, Otto Visconti deu um golpe no sistema republicano
e em 1395 o imperador havia feito de sua família os governantes
hereditários de Milão.
Florença, a principal cidade-Estado italiana da Renascença era uma
república próspera com uma tradição política instável. Porém, o controle
da cidade não passou para a mão de líderes militares, mas foi mantido
pelos comerciantes de tecidos que aos poucos tornaram-se banqueiros
internacionais. A produção e exportação de tecidos de lã era a atividade
econômica mais importante da cidade e empregava em torno de um terço
da população. Os grandes comerciantes de tecidos criaram uma
constituição que destituía a nobreza de poder político significativo.
Aqueles de posses um pouco mais modestas que pertenciam às guildas de
artesãos apoiaram os comerciantes e em 1434 a família Médici, posando
como representantes do povo, assumiu o poder sobre a cidade.
Sob o governo dos Médici, especialmente de Cósimo (1434-64) e
de Lorenzo o Magnífico (1478-92) Florença buscou uma política de
diplomacia e manobras que fizeram dela o centro de uma sistema de
equilíbrio do poder na Itália. Os Médici, que eram generosos patronos do
ensino e das artes, também providenciaram para que sua próspera cidade
tivesse o papel de liderança na cultura da Renascença.
Localizados ao sul e estendendo-se como uma faixa transversal à
península estavam os estados papais. Durante a residência dos papas em
Avignon, esses territórios fragmentaram-se à medida em que as lutas
cresceram entre cidades e famílias rivais. Em 1353 Inocêncio VI enviou
um representante para restabelecer a autoridade papal na região central
da Itália e seu sucesso abriu caminho para a volta dos papas a Roma.
Porém, só depois de terem superado o movimento conciliar é que eles
poderiam voltar a dar atenção ao processo de formar uma administração
forte nos Estados Papais. Essa foi a realização de um grupo de indivíduos
conhecidos como “Os Papas Renascentistas”.
O crescimento do Humanismo
Apesar das contribuições artísticas e culturais da região norte da
Europa durante os séculos 14 e 15 terem sido substanciais, elas perdiam
sua importância quando comparadas ao que vinha da Itália. Durante
muitos anos historiadores têm procurado compreender esse período
através de uma obra do historiador suíço Jacob Burckhardt, A Civilização
da Renascença na Itália (1860). Ele afirmava que a Renascença foi
criação espontânea do povo italiano durante o século 15. Era algo de
novo, sem raízes no passado — uma expressão de individualidade e uma
explosão genial manifesta em obras artísticas brilhantes e literatura
imortal. Porém, estudiosos mais recentes têm mostrado que a
preocupação de Burckhardt com a cultura e as idéias o levaram a deixar
de lado os fatores religiosos, políticos, sociais e econômicos da História e
sua interpretação clássica da História exige uma certa restrição.
Certamente o povo daquela época achava que havia ocorrido um
renascimento das antigas civilizações da Grécia e Roma, mas os críticos
modernos tendem a enfatizar que aquele foi um período de transição
entre os tempos medievais e modernos. Eles concordam que algumas
idéias da Renascença foram tiradas do passado enquanto outras
voltavam-se para o futuro e previam como seria a vida moderna, mas
insistem que muitas coisas foram singulares a esse tempo. A maioria
concorda que a Renascença caracterizou-se por uma irriquieta
curiosidade, especialmente sobre a própria humanidade e foi dessa ênfase
que surgiram as características mais distintivas desse período. Assim,
Burckhardt estava certo em afirmar que a Renascença haviam explodido
em criatividade e que seus artistas estavam entre os melhores que já
existiram na civilização ocidental.
Dante Alighieri (1265-1321) talvez tenha sido um dos primeiros
indivíduos a mostrar características do individualismo renascentista, mas
em sua complexa personalidade havia elementos do medievalismo bem
como do mundo moderno. Ao que parece, Dante vinha de uma família
florentina respeitável e era ativo na política local. Porém, quando seu
partido perdeu ele foi banido de Florença e nunca mais voltou para casa.
Sua principal obra, A Divina Comédia, foi completada durante os longos
anos de exílio e viagens.
Seu poema é uma alegoria da tentativa do homem de alcançar a
salvação mas, ao contrário das obras medievais sobre o assunto, ele não
se concentra na abstração personificada. Ao invés disso, Dante usa
personagens históricas reais para descrever de maneira figurativa o que
ele considera como sendo as realidades do pensamento cristão — pecado
e punição, remorso e arrependimento, e o amor e misericórdia de Deus.
No poema, ele passa sucessivamente pelo Inferno, Purgatório e Paraíso
com três guias para orientá-lo. Nas duas primeiras regiões o poeta
Virgílio dirige seus passos; em grande parte do Paraíso é Beatriz e, para a
visão final de Deus, Bernardo de Clairveaux.
Na Divina Comédia Dante mostrou um surpreendente
conhecimento de Ciências, Teologia, História e dos clássicos. Ele
essencialmente criou a língua italiana moderna através dessa obra de arte
e ela é considerada a síntese da vida e do pensamento medieval. Porém,
alguns elementos do poema não se encaixavam na cosmovisão medieval.
Dante rejeitou a posição da Igreja em seu desejo de controlar todos os
aspectos da vida do indivíduo e destemidamente lançou vários papas no
inferno por heresia, simonia, covardia e avareza. O fato de tratar de
elementos pagãos e cristãos lado a lado mostrava um respeito pela
cultura clássica que não era característico dos escritores medievais. A
Divina Comédia exerceu um efeito tão profundo sobre o povo do século
14 que, cem anos depois da morte de Dante, já havia grupos de
estudiosos dedicando-se ao estudo do poema em Florença, Veneza,
Bolonha e Pisa.
O pioneiro do resgate da tradição clássica foi Petrarca (1304-74),
muitas vezes chamado de pai do Humanismo. Nascido em Arezzo, uma
pequena cidade próxima à Florença, ele estudou Direito nas
universidades de Montpellier e Bolonha. Depois da morte de seu pai
desistiu dos estudos da lei e tornou-se um monge de modo a ter o direito
a benefícios de patronos ricos. Ele viveu confortavelmente e viajou muito
por toda a Europa central e ocidental antes de estabelecer-se na Itália.
Petrarca já se interessava pelos clássicos desde a infância e
compartilhou sua paixão com muitos de seus conhecidos e através deles,
com um grupo cada vez mais surpreso de estudiosos. Descobriu
manuscritos das obras de Virgílio, Horácio, Lívio, Olvídio, Cícero,
Sêneca e Juvenal, entre outros e inspirou humanistas a procurar cópias
dos clássicos. Seu poema épico África, que exaltava o conquistador de
Aníbal — Scípio Africanus — deu-lhe a coroa de poeta em Roma e
começou a moda de glorificação dos tempos clássicos. Ele também
compilou esboços biográficos de romanos famosos em Sobre Homens
Ilustres, a fim de mostrar seus grandes feitos e sabedoria e virtude
superiores.
O que indivíduos como Dante e Petrarca fizeram foi encorajar o
crescimento do Humanismo. Essa termo teve origem em humanitas, a
palavra latina usada para descrever a força civilizadora da arte e da
literatura em seu sentido mais amplo. Estudiosos da Medicina conheciam
os clássicos, mas a Renascença abordou esses textos de maneira
diferente. Eles não serviam mais simplesmente como fonte de ilustração
para sermões ou ferramentas para a lógica, mas passaram a ser apreciados
por seus próprios méritos.
Antes que pudesse ter início o estudo dos clássicos, porém, era
necessário haver um programa que fosse mais sistemático na coleta de
manuscritos. Essa foi a contribuição dos governantes das cidades-estados
da Itália que gastaram altíssimas somas de dinheiro para obter obras
gregas e latinas. Muitas destas haviam sido copiados centenas de anos
antes e estavam danificadas por fogo, água ou traças. Em diversos casos,
os copistas medievais haviam feito adições e comentários que
precisavam ser retirados. Por fim, dicionários e enciclopédias foram
compostos para oferecer àqueles que estavam estudando os clássicos o
material que os ajudaria a entender as várias referências e alusões.
O reavivamento dos estudos clássicos começou com a literatura
latina, tendo em vista que os primeiros humanistas não sabiam ler grego,
mas logo o pioneiro do ensino da língua grega entrou em cena. Ele era
Manuel Chrysoloras, que em 1396 havia sido enviado como embaixador
à Itália pelo governo bizantino a fim de pedir ajuda militar contra os
turcos. No ano seguinte ele começou a lecionar em Florença e depois em
Milão e Pávia antes de voltar para Constantinopla em 1403.
O contato com estudiosos gregos incentivou Cósimo de Médici a
fundar a Academia Platônica em Florença. Esta era um pequeno grupo
que se encontrava para discutir a filosofia de Platão e os problemas
contemporâneos à luz de seus ensinamentos. A fim de facilitar essa
interatividade, Cósimo deu a Marsílio Ficino (1433-94) uma villa e um
fundo permitindo que ele passasse o resto de sua vida traduzindo e
interpretando Platão. A Academia Platônica desenvolveu-se ao longo do
século 15 e dentre seus estudiosos de destaque estava Pico Della
Mirandola (1463-94) que introduziu o estudo do hebraico à Europa cristã
e atraiu para Florença alunos de lugares distantes como a Alemanha e
Inglaterra. A fundação dos Médici serviu de protótipo para academias
semelhantes em outras partes da Itália e, mais tarde, em toda a Europa.
Uma importante contribuição humanista foi a ciência da criticismo
textual. O melhor exemplo dessa nova abordagem foi como Lorenzo
Valla demonstrou as origens falsas da “Doação de Constantino”. Esse
documento supostamente era um registro feito pelo imperador
Constantino que passava o controle da parte oeste do império para o
bispo de Roma e os papas medievais utilizaram-no como justificativa
para seu poder “temporal” (posse de terras). Valla usou argumentos
filológicos e históricos para mostrar que o documento não podia ter sido
escrito no 4º século, mas sim que era de origem bem mais recente. Ao
analisar as muitas palavras anacrônicas e os costumes no documento, ele
convenceu seus contemporâneos de que se tratava de uma falsificação do
século 8º. Seu método viria a ser amplamente utilizado na Alemanha
durante o século 16 quando Lutero e outros adotaram a abordagem crítica
da Renascença.
Cultura renascentista
A Renascença não apenas recuperou a grande literatura da
Antigüidade como também produziu obras de gênios da Pintura,
Escultura e Arquitetura. A nova abordagem artística começou com o
trabalho de Giotto (1266-1336). Antes das inovações de Giotto a pintura
italiana era de estilo plano e fluxo linear, baseada numa tradição que não
havia mudado em quinhentos anos. Durante esse tempo, a pintura tinha
sido uma arte da Igreja, que tinha como propósito ensinar aqueles que
não sabiam ler. Para isso, porém, todos os detalhes desnecessários eram
removidos a vim de evitar a distração do observador do tema central.
Muitas vezes, três ou quatro acontecimentos eram colocados em uma
mesma figura e os gestos eram exagerados para ressaltar uma
determinada idéia. Tendo em vista que a pintura era uma tentativa de
transmitir de forma bidimensional um mundo tridimensional, uma pessoa
na Idade Média considerava o retrato de um homem como algo “real” no
sentido de que lembrava um homem. Para apresentar uma ilusão mais
precisa de realidade, os artistas tinham que aprender como dar uma
sensação de perspectiva através do uso da proporção e de luz e sombra.
Giotto, porém, rompeu o mundo simbólico medieval e adotou uma
abordagem “naturalista” na qual os indivíduos eram pintados em
posições e grupos iguais aos da vida real, relacionando-se entre si como
normalmente fazem os seres humanos. Ainda assim, por não saber as leis
de perspectiva, suas pessoas parecem arredondadas e sólidas como
estátuas. Exemplos podem ser encontrados em muitas de suas figuras de
São Francisco como as da igreja em Assis e na capela Bardi em Florença.
A arte da Renascença não avançou num ritmo constante. Quando a
Peste Negra varreu a Itália, a ênfase de Giotto sobre o homem foi
ignorada e a arte voltou aos tipos mais tradicionais de expressão. No
final do século 14, porém, os artistas retomaram o realismo. O que
reavivou o movimento iniciado por Giotto foi uma competição em 1401
para selecionar um artista para desenhar as novas portas de bronze do
Batistério de São Giovanni em Florença. Dois dos mais respeitados
escultores da cidade, Fillipo Brunelleschi (1377-1446) e Lorenzo
Ghiberti (1378-1455) inscreveram-se no concurso. O painel da
competição devia ser um retrato de Abraão prestes a sacrificar Isaque.
Apesar do trabalho de Brunelleschi mostrar um sentimento religioso mais
intenso, os juízes escolheram a obra de seu rival por causa da unidade de
sensação e a maior atenção dedicada às linhas do corpo. Assim, Gilberto
pôs-se a produzir a famosa Portas do Paraíso que até os dias de hoje
surpreende o público com sua beleza indescritível.
Os afrescos de Masaccio (1401-28) também reavivaram a
abordagem realista de Giotto. Brunelleschi havia descoberto um
princípio da perspectiva no qual o tamanho dos objetos podia ser
reduzido ao fundo e Masaccio adotou-o em sua obra “Santa Trindade”
nas paredes da igreja de Santa Maria Novella em Florença, uma obra
excepcional por seu realismo físico e retrato de emoção e caráter. Ao
mesmo tempo, Donatello (1386-1466) rompeu com o padrão tradicional
de esculturas. Aluno de Ghiberti, ele libertou a escultura de sua função
medieval de embelezar a Arquitetura, reduziu a quantidade de detalhes
em suas estátuas e deu a elas um ar sólido, pesado e determinado. Muita
da inspiração para seu trabalho veio do estudo da anatomia do corpo
humano, uma ciência que estava começando a se desenvolver.
Quando os italianos já haviam dominado a arte de retratar a
natureza através da pintura, passaram a buscar significados mais
profundos. A princípio, os artistas da Renascença eram membros de
guildas de artesanato e não tinham muita educação formal. Mas à medida
em que garantiram patronos nas classes mais elevadas, eles começaram a
ter contato com filósofos e humanistas e a captar idéias da elite
intelectual. Na Academia Florentina os artistas aprendiam que o amor do
mundo físico era um dos passos que levava ao amor de Deus e eles
introduziram essa idéia em suas obras ao fazer o corpo humano parecer
mais atraente do que era. Eles acreditavam que quanto mais bela a
natureza ficasse, mais próxima de Deus estaria. Isso os levou a estudar o
corpo humano com mais cuidado do que nunca e a colocar grande ênfase
nos nus.
Os três artistas mais conhecidos da Alta Renascença, Leonardo da
Vinci (1452-1519), Michelângelo (1475-1564) e Rafael (1483-1520),
representam essa nova abordagem. Apesar de da Vinci estar mais
interessado na ciência experimental, seu afresco A Última Ceia, em
Milão e seu retrato da Mona Lisa são obras primas da arte ocidental.
Mas com Michelângelo foi o platonismo que venceu, tendo em
vista que ele idealizou a forma humana em estátuas como a de Davi em
Florença e na Pietá em Roma. Nascido em Florença e trazido para o
círculo familiar dos Médici quando ainda era jovem, ele deixou o lar para
ir a Roma em 1494 e lá passou grande parte do resto de sua vida. Um dos
maiores gênios artísticos de todos os tempos, além de esculpir, ele
pintava, desenhava edificações (a nova Basílica de São Pedro) e escrevia
poesia. Seu afresco no teto da Capela Sistina é, provavelmente, a pintura
mais imponente da Renascença. É uma síntese magnífica de formas
pagãs com pensamentos cristãos, um tema do Antigo Testamento que
fascina o observador com seu uso vívido da cor.
Rafael nasceu em Urbino mas estabeleceu-se em Roma em 1508.
Em suas várias madonnas ele procurou atingir uma beleza maior do que
aquela encontrada na natureza. Sua arte combina os objetivos naturalistas
dos artistas do início do século 15 com a idealização da forma humana
encontrada em Michelângelo.
O papado da Renascença
Os papas da época estavam entre os mais importantes patronos da
arte e cultura renascentista. Da ascensão de Nicolau V em 1447 até o
saque de Roma em 1527, o trono papal foi ocupado por homens que
preocupavam-se com aspectos mais mundanos dos estudos e da cultura e
com a construção de um Estado forte na região central da Itália. Nicolau
V (1447-55) não apenas colocou em prática um programa de construção
em Roma como também realizou a importante tarefa de colecionar livros.
Ele usava agentes que procuravam os manuscritos raros de clássicos e
humanistas que traduziam e corrigiam essas obras. Autores da Grécia
antiga, incluindo os patriarcas gregos, foram traduzidos para o latim e
assim tornaram-se acessíveis para o povo da Europa ocidental. Sua
coleção de milhares de manuscritos formou a base para a nova biblioteca
do Vaticano.
Talvez o mais fascinante dos papas da Renascença tenha sido Pio II
(1458-64), um competente humanista cujos Comentários oferecem uma
visão penetrante da vida em sua época. De família nobre mas sem
recursos, ele viajou incessantemente a serviço da Igreja e, antes de
tornar-se papa, havia se destacado como ensaísta e orador ciceroniano.
A corrupção cresceu assustadoramente no papado durante o reinado
de Inocêncio VIII (1484-92). Depois de passar uma juventude devassa
em Nápoles, ele foi ordenado sacerdote. Subindo de cargos dentro da
Igreja, acabou tornando-se papa, mas seus hábitos não mudaram. Ele era
pai de dezesseis filhos, que ele reconheceu abertamente e cujos
casamentos ele então celebrou no Vaticano. Estava constantemente
envolvido em guerras e disputas com outros estados italianos e o
financiamento dessas campanhas deixava a Igreja endividada.
Ao aproximar-se da morte, diz-se que ele implorou aos cardeais que
escolhessem um sucessor melhor do que ele. Porém, eles ignoraram sua
súplica e com o pontificado de Alexandre VI (1492-1503) o papado
chegou ao ponto espiritual mais baixo. Rodrigo Bórgia havia progredido
rapidamente dentro da Igreja e feito cardeal aos 25 anos de idade. Um
homem de negócios perspicaz, ele acumulou uma fortuna que usou então
para ganhar o papado. Sua vida pessoal era tão imoral que na época de
sua eleição ele já era pai de vários filhos. Apesar de ter administrado com
prudência as finanças papais, seu objetivo era um fundar um principado
para sua família na região central da Itália. Ele entregou o projeto ao seu
filho, César Bórgia, que foi um assassino tão lendário quanto
inescrupuloso. Alexandre deu o controle do palácio papal à sua filha
Lucrécia que, aos 22 anos, já havia se casado três vezes. Depois da morte
de Alexandre, César foi obrigado a deixar a Itália. Apesar de ter apoiado
o trabalho missionário dos portugueses em outras partes do mundo e ter
negociado a famosa linha de demarcação que evitou a guerra entre
Espanha e Portugal por causa de questões imperiais (ver capítulo 12), ele
foi uma completa desgraça para a Igreja.
Seu sucessor Júlio II (1503-13) tentou reparar os danos ao refrear a
prática da simonia e reduzir o nepotismo. Porém, ele pessoalmente
liderava o exército papal e era um homem de tamanha inquietação e
temperamento colérico que as pessoas o chamavam de “terribilita”. O
mais importante, porém, é que quando de seu pontificado, Roma havia
substituído Florença como centro da cultura renascentista. Para enfatizar
a grandiosidade de Roma, ele demoliu a antiga Basílica de São Pedro e
orientou Bramante para projetar a planta do que viria a ser a maior igreja
do Cristianismo. Ao longo do enorme projeto de construção, Júlio
comissionou Michelângelo para fazer os afrescos da Capela Sistina e
Rafael para decorar os aposentos papais.
Leão X (1513-21), sucessor de Júlio, era o segundo filho de
Lorenzo, o Magnífico, e havia sido feito arcebispo aos 8 anos de idade,
cardeal aos 13 e papa aos 37. Um homem de gostos caros, ele estava
convencido de que o cabeça da Igreja não devia ter a vida austera e
simples como a de Cristo e seus apóstolos. Em sua coroação ele entrou
em Roma com mantos deslumbrantes, passando por arcos erigidos em
sua homenagem como se fosse uma antiga procissão triunfal. Durante
seu pontificado, Leão abarrotou a cúria e a administração dos Estados
Papais com membros da família Médici e justificou seu alto padrão de
vida com a memorável frase: “Deus nos deu o papado, então vamos
aproveitá-lo”. Seu amor pela arte, música e teatro fez de Roma o centro
cultural da Europa, o que foi conseguido a um custo extremamente alto.
Júlio II tinha sido um papa frugal, mas o dinheiro que ele juntou foi logo
esgotado por Leão e o papado viu-se profundamente endividado.
Conforme foi mostrado, a maioria dos papas da Renascença foi
culpada de nepotismo. Parentes que com freqüência eram incompetentes
ou não tinha idade suficiente recebiam cargos na Igreja. Por vezes, eles
eram “sobrinhos” ou filhos bastardos como César Bórgia, enquanto
muitos dos próprios papas começaram sua carreira na igreja por causa do
nepotismo. Seus gostos exóticos, estilos de vida caros e envolvimentos
políticos levaram a muitos abusos fiscais. Cargos eclesiásticos eram
comprados e vendidos. Júlio II e Alexandre V foram eleitos ao
subornarem a maior parte do colégio de cardeais. As indulgências eram
vendidas regularmente e alguns até tentavam forjar e vender bulas
papais. Os papas da Renascença compartilhavam a cosmovisão de seus
companheiros da nobreza que achavam que uma existência luxuosa traria
mais respeito ao cargo. Enquanto isso possibilitou o melhor da arte
renascentista, também levou a críticas gerais.
Muitos, especialmente das classes mais baixas, não aprovavam o
estilo de vida do alto clero. Pregadores do arrependimento que
denunciavam os abusos tanto de leigos quanto do clero atraíam grandes
multidões. Dentre esses evangelistas fervorosos, nenhum é mais
conhecido do que Girolamo Savonarola (1452-98). Sua vida e ministério
ilustram como a Renascença italiana não foi tão secular e mundana como
já se afirmou. Nascido numa família de poucos recursos em Ferrara,
educado na tradição humanista e destinado a uma carreira na Medicina,
aos 22 anos de idade ele decidiu entrar para a ordem dos dominicanos.
Em 1482 foi enviado a Florença e lá começou a clamar por
arrependimento e conversão em seus sermões que eram repletos de
profecias apocalípticas. A época era propícia para essa mensagem pois o
governo dos Médici estava em guerra com a França e as condições
econômicas encontravam-se seriamente deprimidas. Os Médici haviam se
tornado poderosos demais e não só as classes mais baixas, mas também
as famílias de comerciantes passaram a reagir contra sua ostentação de
riqueza e luxo. A igreja de São Marcos se enchia de pessoas ansiosas
para ouvir Savonarola fazer seu mais recente pronunciamento contra os
Médici e outros príncipes e eclesiásticos que viviam no luxo. Muitos
penitentes entregavam símbolos de vaidade como livros indecentes,
figuras de nus, bijuterias, perucas e roupas frívolas para serem
queimados em grandes fogueiras.
A popularidade de Savonarola chegou ao seu ápice quando ele
convenceu o rei Carlos VIII da França, que havia invadido a Itália, a não
saquear Florença. O governo dos Médici entrou em colapso e foi
substituído por um novo regime republicano que era fortemente
influenciado pelas pregações de Savonarola. Ele previu que um grande
desastre atingiria a Itália, mas uma era dourada iria raiar sobre Florença e
espalhar-se para o mundo todo. Os florentinos, incluindo os estudiosos
humanistas Ficino e Pico Dela Mirandola, apoiavam essas profecias com
entusiasmo. O papa Alexandre VI, preocupado com a amizade recente de
Florença com a França não queria ter um aliado dos franceses como
vizinho dos Estados Papais. Assim, o austero dominicano viu-se em
oposição ao papa mais infame da Renascença. Alexandre tentou
persuadir Savonarola a deixar a cidade e, quando não teve sucesso,
ofereceu-lhe um suborno, a saber, um posto de cardeal. Quando falhou
novamente, o papa excomungou Savonarola em 1497. O frade, porém,
declarou que a excomunhão não tinha valor pois somente Deus podia
cortá-lo da comunhão. Ele continuou a pregar e a rezar missas, mas o
governo da cidade, ameaçado de interdição pelo papa, pediu que ele
suspendesse seus deveres clericais. Savonarola havia perdido o apoio dos
cidadãos abastados de Florença e os franciscanos, que nunca se
entenderam muito bem com os dominicanos, também voltaram-se contra
ele. Em seguida, foi acusado de heresia, julgado e executado.
A Renascença no norte
As idéias da Renascença italiana logo se espalharam para a região
norte da Europa e o principal expoente desse novo aprendizado foi o
“príncipe dos humanistas”, Desidério Erasmo (1469-1536). Como muitos
outros de seus contemporâneos, ele acreditava que o estudo de um texto
de fontes cristãs corretas juntamente com os clássicos gregos e latinos
traria uma renovação do Cristianismo. Nascido em Roterdã, Erasmo
viajou muito e estudou incessantemente. Aluno de uma escola dos
Irmãos da Vida em Comum em Deventer, ele foi orientado para uma vida
religiosa, mas uma breve experiência como monge o convenceu de que
ele não era adequado para a vida monástica. Estudos posteriores em Paris
e na Itália o levaram a voltar-se para o Humanismo. Sua amizade com
John Colet e Thomas More na Inglaterra fortaleceram sua determinação
de buscar a reconciliação entre a fé e a Razão, a devoção e os estudos, as
Escrituras e a literatura. Assim, ele tornou-se símbolo e síntese da
Renascença no norte.
Tanto os escritos de Erasmo como sua vida pessoal refletiam essa
harmonia entre pensamento secular e religioso. Na obra Enchiridion ele
suplicava ao povo que se preocupasse com o significado da devoção
religiosa e que colocasse suas crenças em prática ao invés de
simplesmente professá-las. Declarou: “Que sentido faz ser aspergido com
água benta se a poluição interna do coração não é lavada?” Continuou
dizendo: “Vocês veneram os santos e deleitam-se em tocar suas relíquias,
mas desprezam o melhor daquilo que deixaram para trás, o exemplo de
vida santificada”. Erasmo promoveu o estudo da Bíblia ao publicar em
1516 sua própria tradução e a primeira edição impressa do Novo
Testamento em grego. Também editou as obras de vários Patriarcas da
Igreja primitiva.
As preocupações de Erasmo e de outros cristãos humanistas
repercutiram por toda a Europa no início do século 16. Eles publicaram
extensivamente, promoveram e influenciaram a educação na escola
primária e até mesmo ocuparam cátedras de literatura, línguas e estudos
clássicos nas universidades. Johannes Reuchlin, por exemplo, foi o
principal estudioso da Bíblia em hebraico e lecionou na Universidade de
Tübingen. Juan Luís Vives, o brilhante humanista espanhol foi, durante
algum tempo professor da Universidade de Louvain e depois de Oxford.
Outros humanistas espanhóis lecionaram na nova Universidade de
Alcala, fundada em 1509 pelo Cardeal Ximénez de Cisneros. Assim
também, John Colet fundou a escola St. Paul em Westminster, que era
dirigida para o ensino humanista.
Talvez a contribuição mais importante da Renascença no norte da
Europa tenha sido a descoberta da impressão com tipos móveis. Dois
reavivamentos clássicos já haviam acontecido na Europa, um sob o
reinado de Carlos Magno no século 8º e um durante o século 12 liderado
por estudiosos como João de Salisbury. A Renascença teve um efeito
duradouro, coisa que não aconteceu com os movimentos anteriores,
porque o movimento clássico do século 15 foi disseminado através de
material impresso. A impressão possibilitava livros mais baratos, um
público leitor mais amplo e uma nova cosmovisão.
Papel, tinta e a técnica de imprimir usando blocos de madeira
entalhados ou tipos feitos de metal já eram conhecidos há tempo, mas o
processo era lento e caro pois cada letra tinha que ser entalhada
separadamente. Por volta de 1450, Johann Gutenberg de Mainz, na
Alemanha começou a fazer letras de metal intercambiáveis ao invés dos
blocos de madeira; como esses tipos feitos de metal podiam ser
reutilizados muitas vezes, a produção de livros tornou-se relativamente
barata. Essa técnica espalhou-se pela Europa com incrível rapidez e em
1500 havia impressoras funcionando em pelo menos cem comunidades.
Mais de trinta mil obras haviam sido publicadas, totalizando por volta de
seis a nove milhões de volumes. Com a chegada da Reforma protestante,
a palavra impressa provou ser de valor incalculável para a disseminação
das novas idéias religiosas.
Esses dois séculos foram um tempo de avaliação de paradigmas que
haviam se mantido durante séculos. O conceito da Europa como
Republica Christiana — tendo o papado como seu governo espiritual e o
Sacro Império Romano como governo secular — havia se desintegrado;
mesmo tentando redefinir o seu papel, a Igreja Católica Romana perdeu a
liderança espiritual. Os novos estados dinásticos eram apoiados pela
classe média que, com a ajuda de avanços tecnológicas e melhora dos
procedimentos de crédito, tornou-se rapidamente a classe dominante. Na
esfera não-material, a era preparou a sociedade para o futuro. Enquanto
os humanistas lutavam para recuperar aquilo que acreditavam ser a
grandeza intelectual e moral da antigüidade clássica, deixaram para a
posteridade novas idéias e atitudes. Os métodos de governo articulados
por eles foram a base das teorias modernas de constitucionalismo. A
tentativa de pintores, escultores e arquitetos de reproduzir obras primas
clássicas levou a importantes descobertas de técnicas e desenho. Em seu
esforço para entender a obra da Antigüidade, os humanistas não apenas
desenvolveram uma visão histórica moderna como também deram início
a uma iniciativa paralela de volta às origens no Cristianismo. Assim, o
caminho estava aberto para a Reforma.
A Reforma luterana
No dia 31 de outubro de 1517 um professor alemão de Teologia
chamado Martinho Lutero (1483-1546) afixou uma folha de papel
contendo noventa e cinco proposições, “teses” para discussão, na porta
da Igreja do Castelo em Wittenberg. Na sua época esse era um
procedimento normal pois aqueles que desejavam iniciar um debate culto
sobre um assunto, usavam a porta da igreja como quadro de avisos.
As teses questionavam a validade das indulgências, uma prática que
a Igreja medieval havia desenvolvido para ajudar na salvação das almas.
Elas baseavam-se na crença de que Cristo, a Virgem Maria e os santos
haviam acumulado um excedente de boas ações (o “tesouro de méritos”)
do qual, de acordo com a Igreja, o papa podia lançar mão para perdoar a
quantidade de castigo temporal (no purgatório) pelo pecado que as
pessoas comuns teriam que sofrer. A princípio, essas reduções de tempo
no purgatório antes de se entrar no céu eram oferecidas àqueles que
haviam participado de cruzadas, peregrinações ou tinha realizado algum
ato de grande mérito. Aos poucos, as condições para se conceder esses
perdões forem relaxando e no final do século 15 eles podiam ser obtidos
através da oferta de dinheiro para a Igreja. Para todos os efeitos, a
distribuição de indulgência havia se tornado um negócio que empregava
vendedores quase profissionais. As questões que Lutero levantou sobre
essa prática não tinham a intenção de causar uma divisão na Igreja, mas
foi o que aconteceu.
Lutero era filho de um mineiro de cobre na Saxônia. Como seu pai
desejava que ele seguisse uma carreira na área de Direito, Lutero
começou a estudar na Universidade de Erfurt em 1501 e recebeu um
Mestrado em Ciências Humanas em 1505. Porém, no último ano uma
experiência aterradora durante uma tempestade levou o jovem Lutero a
abandonar suas ambições seculares e entrar para um mosteiro de eremitas
agostinianos em Erfurt. Em 1507 ele foi ordenado para o sacerdócio, mas
sua primeira missa foi uma experiência de tal modo intimidante que ele
sentiu-se completamente inadequado.
A natureza introspectiva e questionadora de Lutero era tal que seu
superior monástico, Johann von Staupitz, recomendou que ele
continuasse seus estudos na Universidade de Wittemberg e em 1512 ele
recebeu o doutorado em Teologia. Foi então nomeado professor nessa
universidade, uma instituição fundada pelo duque da Saxônia em 1502.
Além de lecionar, Lutero trabalhava como pastor da igreja da cidade e
como supervisor administrativo de um mosteiro agostiniano na Saxônia.
Certa vez foi enviado para tratar de assuntos monásticos em Roma, onde
o caráter mundano da cidade que ele acreditava ser o centro da
espiritualidade o deixou profundamente desiludido e desgostoso.
1484-1531 1521 1497-1560
Ulrico Dieta de Melanchthon
Zuínglio Worms
1466-1536 1483-1546 1513-21 1525 1491-1556 1509-64 1514-72
Erasmo Martinho Papado de Execução Inácio de João John Knox
Lutero Leão X de Thomas Loyola Calvino
Muntzer
1450 1500 1550 1600
1486-1525 1509-47 1519-56 1542-87 1558-87
Frederico da Henrique Carlos V Maria da Elizabeth I
Saxônia VIII Escócia
1515-47
Francisco I
Eu ansiava compreender a epístola de Paulo aos Romanos e não havia nada que me
impedisse a não ser aquela expressão “a justiça de Deus”, pois eu entendi que significava
que se havia justiça então Deus era justo e agia com justiça ao punir os injustos. Minha
situação era tal que, apesar de ser um monge impecável,, eu estava diante de Deus como
um pecador com a consciência perturbada e não tinha confiança de que meu mérito iria
aplacar esse Deus.
Ponderava dia e noite até que enxerguei a ligação entre a justiça de Deus e a declaração de
que “o justo viverá pela fé”. Então, compreendi que a justiça de Deus é aquela retidão
através da qual a graça e a misericórdia de Deus nos justificam pela fé. A partir de então
senti que havia nascido de novo e passado por portas abertas para o paraíso. As Escrituras
como um todo adquiriram um novo significado e se antes a “justiça de Deus” havia me
enchido de ódio, agora tornara-se inexprimivelmente doce em maior amor. Essa passagem
de Paulo tornou-se para mim o portal do céu.
Se você tem uma fé verdadeira de que Cristo é seu Salvador, então imediatamente você
tem um Deus cheio de graça, pois a fé o guia e abre o coração de Deus bem como sua
vontade para que você possa ver a graça pura e transbordar de amor.
Esse abuso da pregação sobre os perdões não facilita nem para o mais cultos dos homens
proteger das calúnias a reverência devida ao papa ou, de um modo geral, dos
questionamentos perspicazes dos leigos.
Como por exemplo: Por que o papa não esvazia o purgatório por amor à mais santa
caridade e à suprema necessidade das almas — sendo esta a mais justa de todas as razões
— se ele redime um número infinito de almas por amor àquela que é a mais fatal de todas
as coisas, dinheiro para ser gasto na construção de uma basílica — sendo esta uma razão
tão pouco importante?
Apesar da cuidadosa escolha de palavras, as teses desencadearam
uma grande controvérsia pois não concentravam-se apenas em assuntos
morais e teológicos, mas também chamavam a atenção para os abusos
econômicos e políticos da Igreja. Lutero enviou cópias das teses para
vários conhecidos e para alguns líderes da igreja na Alemanha, incluindo
Alberto de Hohenzollen que ele considerava responsável pelo abuso de
indulgências. O que ele não sabia era que a campanha de venda de
indulgências em 1517 era resultado de um acordo financeiro entre o
papado e o príncipe alemão. Alberto era um típico aristocrata que
progredia em sua carreira através da Igreja. Ele já era arcebispo de
Magdeburg, mas queria acrescentar às suas conquistas a posição de
arcebispo de Mainz pois quem tinha esse cargo também era um dos setes
eleitores do Sacro Império Romano. Conforme foi observado
anteriormente, o império não era governado por direito hereditário, mas
sim através da escolha de um imperador dentre um grupo de candidatos.
O problema de Alberto era que, ao ter mais de um cargo eclesiástico ele
estava cometendo o pecado de pluralismo e portanto era necessário ter
uma permissão especial de Roma. Como uma isenção dessa importância
exigia o pagamento de uma enorme soma em dinheiro, Alberto e o papa
Leão X concordaram que o príncipe da Alemanha faria uma generosa
contribuição para a construção da Basílica de São Pedro em Roma. O
papa autorizou Alberto a usar dos lucros de uma venda de indulgências
na Alemanha para cumprir sua contribuição.
Johann Tetzel era frade dominicano e trabalhava como
administrador da campanha. A abordagem extravagante de Tetzel
deixava Lutero irado, tendo em vista que ele estava oferecendo às
pessoas indulgências “plenárias”, ou seja, a remissão total do purgatório
e entrada imediata no céu quando de sua morte. O lema da campanha era
particularmente irritante e soava como o produto de uma agência de
propaganda moderna: “Cada moeda que retine é uma alma que do
purgatório se redime”. Foi para desafiar esse abuso que Lutero afixou as
teses para debate. As indulgências eram uma contradição óbvia de sua
descoberta que o justo viverá somente pela fé. Os representantes papais,
porém, achavam que a prática de indulgências era valiosa demais para ser
deixada e começaram a atacar Lutero.
Daquele momento em diante o “reformador” alemão e seus
oponentes conservadores entraram em rota de colisão. Convencido da
veracidade de sua posição, Lutero agitou a opinião pública através de
panfletos impressos e livretos escritos na linguagem popular e ilustrados
com xilogravuras dramáticas. Em 1518 ele foi convocado a se apresentar
diante de uma reunião geral de sua ordem e ganhou muitos de seus
companheiros agostinianos para a usa “teologia da cruz”.
Logo depois, foi chamado para ir a Roma e responder às acusações
feitas contra ele, mas a pedido de Frederico da Saxônia essa solicitação
não foi uma convocação obrigatória. Esse eleitor protegeu Lutero em
parte porque tinha orgulho de seu jovem professor de Teologia mas,
principalmente porque não gostava da prática de vender indulgências.
Isso porque ele queria manter o dinheiro em sua própria terra natal para
que pudesse aumentar sua própria coleção de relíquias dos santos e fazer
de Wittenberg um importante centro para peregrinos. Esse era um
aspecto incomum no homem que apoiou Lutero contra a Igreja
tradicional. Então, o caso foi apresentado a um embaixador do papa em
Augsburg, mas isso não levou a nada tendo em vista que Lutero recusou
retratar-se e ao invés disso apelou para um concílio geral da Igreja cristã.
Em 1519, durante um debate com John Eck em Leipzig, Lutero foi
forçado a admitir abertamente que muitas das idéias de Jan Hus não eram
heréticas e que ele não deveria ter sido condenado. Assim, Lutero
reconheceu que não apenas o papado mas também os concílios gerais da
Igreja podiam estar errados e que a única base de autoridade oficial eram
as Escrituras. Em 1520 uma bula papal condenou sua obra como sendo
herética e Lutero respondeu queimando o documento em praça pública.
Uma outra bula o excomungou e deixou sua punição por conta das
autoridades locais.
O imperador Carlos V permitiu que Lutero se defendesse na
reunião (ou dieta) de príncipes da Alemanha e governantes territoriais
que aconteceu em Worms em 1521. Na assembléia, Lutero reconheceu
que alguns de seus livros eram abusivos e outros tratavam de assuntos
discutíveis, mas recusou-se a negar suas convicções evangélicas mais
básicas.
A menos que eu seja convencido pelas Escrituras ou pela Razão — não aceito a autoridade
dos papas e concílios, pois um contradiz o outro — minha consciência é cativa da Palavra
de Deus. Eu não posso e não vou voltar atrás em nada, pois ir contra a consciência não é
nem certo e nem seguro. Aqui estou, não posso agir de outra forma. Que Deus me ajude,
amém.2
Protestantismo reformado
Apesar de Lutero ter oferecido a faísca que acendeu o fogo da
Reforma protestante, naquela época houve outros impulsos em direção às
mudanças religiosas. Um deles foi na Suíça, que era então um conjunto
flexível de cidades e pequenos estados chamados de “cantões”. Um dos
primeiros suíços protestantes, Ulrico Zuínglio (1484-1531), estudou com
alguns humanistas em Viena antes de tornar-se sacerdote em Zurique. Lá
ele rejeitou os aspectos mais aristocráticos do Humanismo e começou a
criticar os abusos em sua própria Igreja. Porém, nunca abandonou
completamente sua antiga instrução e as mudanças que ele trouxe para a
Igreja misturavam a devoção prática de Erasmo com o biblicismo de
Lutero. Ele também estava mais disposto a deixar a tradição e agir
política e militarmente a fim de defender a sua versão do Cristianismo.
Assim, Zuínglio combinou Humanismo, Teologia e radicalismo.
A ocasião para a sua ruptura com Roma apresentou-se quando ele
começou a defender que se comesse carne durante a Quaresma. Ao fazê-
lo, levantou uma série de questões sobre as regras e práticas da Igreja e o
concílio da cidade de Zurique convocou um debate formal para resolver a
controvérsia. Realizado em 1523, o debate entre Zuínglio e os católicos
resultou numa vitória de Zuínglio. Uma segunda controvérsia naquele
mesmo ano levou à destruição de imagens nas igrejas e ao fim da reza de
missas. Apesar de ter sido inspirado por Lutero, conforme foi
mencionado anteriormente, ele seguiu um caminho diferente do
reformador alemão no tocante ao significado da Santa Ceia.
Zuínglio não apenas exerceu influência na Suíça como também
comandou um grupo de seguidores do sudoeste da Alemanha. Mas ele
saiu repentinamente de cena quando em 1531 foi morto durante uma
batalha entre os católicos e protestantes na Suíça. Apesar de seus
sucessores terem sido pessoas competentes como Heinrich Bullinger em
Zurique, John Oecolampadius e Oswald Myconius na Basiléia e Martin
Bucer em Estrasburgo, a liderança da Reforma na Suíça e no sul da
Alemanha foi passada para outro em Genebra: João Calvino.
A mais poderosa força da segunda geração de reformadores,
Calvino (1509-1564) não era de origem suíça, mas sim francesa. Filho de
um tabelião em Noyon, na Picardia, ele começou a estudar Direito por
insistência de seu pai. Mas então o pai faleceu e o jovem estava livre para
dedicar-se ao seu primeiro amor, a saber, os estudos literários
humanistas. Ele chegou até a escrever um comentário da obra Sobre a
Clemência do filósofo estóico Sêneca. A argumentação do livro em favor
da existência de uma providência sobrenatural e onipotente havia
impressionado profundamente o jovem estudioso.
Por identificar-se com a causa da Reforma religiosa, a carreira de
Calvino como acadêmico da Renascença não durou muito. Idéias
luteranas haviam se espalhado entre os estudantes universitários
franceses e, em 1553, desenvolveu-se uma importante controvérsia entre
conservadores e reformadores. Depois de um período de indecisão, o rei
Francisco I apoiou os conservadores pois ele temia que os protestantes
fossem uma ameaça à segurança nacional. Como Calvino havia aderido
ao novo movimento religioso, teve que deixar a França para morar na
Basiléia. Nessa época ele já havia se convertido a Cristo, mas sua
experiência parecia um tanto prosaica se comparada com a de Lutero.
Não houve nenhum drama ou grande trauma emocional como o que
acompanhou a mudança de rumo do reformador alemão. Calvino
simplesmente desenvolveu uma convicção absoluta da onipotência de
Deus e de que ele havia sido escolhido para fazer o reino de Deus crescer
na terra. Porém, uma coisa estava clara. Mesmo depois de sua conversão,
a combinação de educação legal e humanista que ele havia recebido
seriam determinantes para a expressão escrita e para a metodologia de
seu estudo da Bíblia.
Calvino foi profundamente influenciado por Lutero e concordava
com grande parte de sua teologia. Suas diferenças surgiam da forma
como Calvino se apoiava mais no Antigo Testamento e de sua crença na
dupla predestinação. Seguindo os passos de Agostinho de Hipona, ele
enfatizava a majestade de Deus e o completo desamparo da humanidade
perante o Senhor. Numa tentativa de responder à pergunta feita por todo
o cristão que já tentou compartilhar o evangelho com outros — a saber,
por que alguns crêem na Palavra e outros a rejeitam — Calvino ensinava
que Deus oferece o dom da fé para alguns e o nega para outros. De
acordo com Efésios 1.4, essas decisões foram tomadas antes da fundação
do mundo e não podem ser mudadas. Apesar de ser verdade que Cristo
morreu por todos, ele intercede junto ao Pai apenas por aqueles que
foram eleitos para a salvação. Para os que compartilhavam de tal
segurança, a predestinação criava um senso de propósito missionário e
um desejo de enfrentar qualquer poder do mundo que se opusesse aos
planos dos eleitos de Deus. Com efeito, essa crença incentivou os povos
da Holanda a rebelarem-se contra seu governante espanhol e levou a
importantes transformações de religião e governo em vários outros
países.
Calvino apresentou sua teologia naquela que viria a ser a
declaração clássica do pensamento protestante, as Institutas da Religião
Cristã,1 sendo que a primeira edição foi publicada em 1536. Ela revelava
1
Ou, A Instituição da Religião Cristã, obra publicada em português pela Editora Cultura Cristã (N. do E.).
que o Protestantismo tinha um novo líder que possuía um domínio
impressionante das Escrituras e dos Patriarcas da Igreja. Ao longo dos
anos, de tempos em tempos ele revisou e expandiu sua obra mas a
estrutura básica não foi alterada. A obra oferecia uma firme declaração
de fé à qual seus seguidores podiam voltar-se em sua luta contra os
católicos.
Durante uma breve anistia, Calvino voltou para a França mas foi
logo forçado a fugir mais uma vez. Com a intenção de ir para
Estrasburgo, onde os protestantes eram bem-vindos, ele parou
rapidamente em Genebra em 1536. Guilherme Farel, um sacerdote local,
reconheceu-o em um dos cultos e desafiou-o a ficar lá e ajudá-lo na
reforma religiosa daquela cidade. Com exceção de uma estadia de três
anos em Estrasburgo (1538-41), Calvino passou o resto de sua vida em
Genebra onde realizou um amplo programa de reforma e consolidou uma
comunidade protestante exemplar. A igreja de Genebra serviu de modelo
para os calvinistas, que já possuíam centros na França, oeste da
Alemanha, Países Baixos, Escócia, Inglaterra, Polônia e Hungria.
O tipo de Protestantismo de Calvino era conhecido como
“reformado”. Diferia do sistema luterano no sentido de que a Igreja era
uma instituição paralela ao Estado e não subordinada a ele. A Igreja era
uma organização independente que mantinha sua vida própria e usava
sua posição para corrigir o Estado quando necessário. Calvino rejeitava o
ofício de bispo (que foi mantido em várias formas de Luteranismo) e o
substituiu por um governo formado de um conjunto de assembléias
cuidadosamente estruturadas (mais tarde chamadas de classes ou
presbitérios) que incluía tanto ministros quanto leigos. As igrejas
reformadas davam grande ênfase à disciplina eclesiástica pois
reconheciam que a Igreja incluía a sociedade como um todo, os eleitos
bem como os condenados.
À medida em que refugiados protestantes foram reunindo-se em
Genebra, Calvino começou a dar palestras para instruir esses indivíduos
sobre a fé reformada. Essas aulas informais levaram à fundação da
Universidade de Genebra, que tornou-se o centro intelectual do
Protestantismo. Os pastores que ali recebiam treinamento eram enviados
de volta para seus lugares de origem a fim de pregar o evangelho. Como
disse Calvino: “Enviem madeira para mim e eu mandarei flechas de
volta”. Um dos primeiros destinos dos missionários calvinistas foi a
França e, em 1555, congregações de huguenotes, como eram chamados
os reformadores franceses, já estavam presentes por toda a parte. Naquele
mesmo ano eles encontraram-se em Paris para fundar uma organização
nacional e fazer o esboço de uma confissão de fé. Em 1562 muitos
nobres havia se tornado huguenotes, dando à fé uma característica
aristocrática e subversiva, conforme as Guerras Religiosas logo
demonstraram.
Na Holanda o Calvinismo foi introduzido por missionários da
França e de Genebra. A Confissão Belga foi adotada em 1566 e a
aceitação da fé reformada levou a uma longa guerra contra os espanhóis
pela independência. A Escócia foi ganha para o Calvinismo em grande
parte pelos esforços de John Knox (cerca de 1514-72). Treinado em
Genebra pelo próprio Calvino, o “escocês trovejante” liderou uma
incansável e, finalmente, vitoriosa cruzada contra os nobres católicos e o
governo de Mary, Rainha dos Escoceses. Ele conseguiu alcançar um alto
grau de conversão à fé reformada em todo o reino. O Calvinismo também
influenciou profundamente a teologia da Igreja da Inglaterra e serviu de
base para o pensamento puritano.
A Reforma inglesa
Em muitas aspectos, a Reforma inglesa foi um movimento
independente, resultante da iniciativa do rei, apesar de que, durante a
década de 1520, diversos estudiosos das Universidades de Oxford e
Cambridge demonstraram grande interesse nas idéias de reforma de
Lutero. Um dos mais importantes elos intelectuais entre a Inglaterra e os
luteranos da Alemanha foi William Tyndale. Sua importância se deve aos
muitos panfletos que escreveu e à sua brilhante tradução do Novo
Testamento. Além disso, alguns remanescentes dos seguidores de
Wycliffe tinham sobrevivido e continuavam a espalhar seus
ensinamentos contra o papa. Porém, a Reforma na Inglaterra não foi, em
seus primeiros estágios, anticatólica, mas resultou do desejo de Henrique
VIII de ter um herdeiro do sexo masculino. Apesar de manter o
rompimento com Roma, a seu próprio ver, ele era católico. Mas depois
de 1534 não havia lugar para um papa em sua versão da fé cristã.
Henrique desejava o divórcio de sua esposa, Catarina de Aragão,
tendo em vista que depois de dezoito anos de casamento sua única
criança era uma menina, Mary. Nenhuma mulher havia se assentado no
trono da Inglaterra há séculos e tendo em mente as memórias de brutais
guerras civis do século anterior, Henrique sentia que era essencial ter um
governante masculino. Além de querer determinar uma sucessão ordeira,
sua afeição por Catarina havia se transformado em aversão, tendo em
vista que ele estava apaixonado por Ana Bolena, uma jovem dama de
companhia da rainha. Talvez para racionalizar os seus atos, ele tinha
passado a acreditar que seu casamento era errado. Catarina era viúva de
seu irmão mais velho e eles haviam se casado por motivos diplomáticos.
A Lei Eclesiástica, baseada em textos das Escrituras como Levítico
20.21, proibia esse tipo de união, mas o papa havia concedido permissão
especial para o casamento.
Em 1527 Henrique pediu ao papado uma anulação, mas pelo fato de
Catarina ser tia de Carlos V, cujas tropas ocupavam Roma naquele
tempo, nenhuma atitude foi tomada. Uma pessoa impaciente e
determinada, Henrique decidiu que já havia esperado o suficiente. Crente
de que a Inglaterra havia sido sempre um lugar onde o rei não tinha
superiores a não ser o próprio Deus, ele considerou desnecessária a
aprovação do papa para seu divórcio tendo em vista que ela podia ser
concedida pela igreja inglesa. Assim, em 1533, Thomas Crammer,
arcebispo de Canterbury, anulou o casamento e validou a união secreta já
existente com Ana Bolena. O papa reagiu declarando a excomunhão de
Henrique. Por isso, os católicos também consideraram ilegítima a filha de
Henrique e Ana — Elizabeth.
Em 1534, a adoção da Lei de Supremacia, que tornava o rei — e
não o papa — “o único líder supremo no mundo da Igreja da Inglaterra”,
mostrou o rompimento definitivo com Roma. Apesar da maioria dos
ingleses ter aceito a divisão sem protestos, alguns como Sir Thomas
More, o brilhante humanista e autor de Utopia, recusaram-se a renunciar
a lealdade a Roma e conseqüentemente foram decapitados por traição.
Muitas das mudanças que se seguiram na Igreja tinha a aprovação das
classes mais influentes, especialmente a dissolução dos mosteiros.
Depois que um relatório os acusou de corrupção, em 1536 e 1537 eles
foram fechados e suas propriedades confiscadas, dando assim ao governo
uma fonte adicional de renda e eliminando possíveis núcleos de oposição
católica. Muitas propriedades monásticas foram doadas ou vendidas por
valores irrisórios para as classes mais altas fazendo delas, desse modo,
simpatizantes do rompimento com Roma.
Mesmo tendo o rei se tornado líder da Igreja da Inglaterra, suas
doutrinas e práticas em grande parte continuaram as mesmas. Apesar de
algumas inovações, como a existência de uma Bíblia em inglês em cada
paróquia para ser usada pelos leigos, Henrique reafirmou a crença e as
práticas católicas na Lei dos Seis Artigos (1539). Essa lei aprovada pelo
Parlamento a pedido do rei, confirmava a transubstanciação, o celibato
do clero, as missas particulares e as confissões.
Henrique continuou sua busca por um herdeiro e finalmente sua
terceira esposa deu-lhe um filho, Eduardo VI, que o sucedeu no trono em
1547, com 10 anos de idade. Um garoto sempre doente, Eduardo
governou através de conselheiros que eram predominantemente
protestantes. O novo regime cancelou a Lei dos Seis Artigos, tornou o
inglês a língua oficial dos cultos e permitiu o casamento do clero. Para
substituir a liturgia católica, Cranmer produziu o Book of Common
Prayer [Livro Comum de Orações]. Ele era escrito num inglês belo e
imponente e, numa segunda edição, expressava claramente a doutrina
protestante. No breve reinado de Eduardo, a Inglaterra mudou do
Catolicismo para o Protestantismo reformado.
Essa tendência, porém, foi revertida depois que Eduardo faleceu em
1553 e sua sucessora, Lady Jane Grey, foi executada. Mary Tudor subiu
ao trono. Como filha de Catarina de Aragão, sua grande ambição era
levar a Inglaterra de volta para a Igreja Católica. Ela forçou a aprovação
de leis no Parlamento que revertiam as mudanças feitas por seu pai e seu
irmão e, teoricamente, a Inglaterra voltou a ser católica. Na verdade,
porém, a situação havia mudado de maneira tão drástica que Mary não
conseguiu fazer voltar o relógio. Um dos grandes obstáculos era a falta
de fundos para projetos como a reabertura dos mosteiros. Até mesmo a
rainha sabia que essas terras não podiam ser tomadas de seus
proprietários influentes. Ela também perdeu o apoio dado aos monarcas
Tudor quando casou-se com Filipe II da Espanha, o qual os ingleses
repugnavam.
Outro de seus erros foi perseguir os protestantes. Mais de trezentas
pessoas, incluindo o arcebispo Cranmer, foram queimadas nas fogueiras.
Essas execuções conferiram a ela o apelido de “Mary a Sanguinária”,
como indicação do desprezo que seus súditos lhe votavam. Os
protestantes que fugiram para o continente, os chamados exilados
marianos — como John Foxe, autor do Book of Martyrs [Livro dos
Mártires] — certificaram-se de que o povo jamais esquecesse daqueles
que haviam perecido por causa de sua fé. Mary morreu em 1558, amarga
e desanimada, sabendo que sua meia-irmã Elizabeth seria sua sucessora
ao trono.
Quer Elizabeth desejasse ser protestante ou não, as circunstâncias a
forçaram a tomar uma posição reformada. Apesar dos católicos
considerarem-na ilegítima e, portanto, sem direito de ser rainha da
Inglaterra, ela permitiu uma pequena diversidade religiosa para o bem da
unidade nacional. Quando os exilados marianos voltaram para casa e
ajudaram a restaurar o Protestantismo, o rompimento com Roma foi
renovado e o livro de orações de Cranmer voltou a ser usado. Porém, o
acordo religioso de 1559 foi cuidadosamente ponderado de modo que
aqueles de preferência católica não fossem deixados de fora
desnecessariamente. Elizabeth foi declarada “Suprema Governadora da
Igreja” ao invés de “Suprema Líder” para evitar ofender aqueles que
achavam que uma mulher não podia ser líder da igreja ou acreditavam
que seu líder era o papa ou Cristo. Quanto ao ministério, os cargos
tradicionais católicos de bispos, sacerdotes e diáconos foram mantidos.
Em 1571 o Parlamento aprovou uma declaração de fé essencialmente
protestante, os Trinta e Nove Artigos. Uma obra-prima de ambigüidade
calculada, trata-se de um sumário das crenças anglicanas que continua
sendo oficial até hoje. Em resumo, a Igreja da Reforma inglesa foi um
tanto anômala devido à sua união da doutrina reformada com uma
estrutura católica medieval não-reformada.
A Reforma radical
Alguns entusiastas do movimento evangélico, pessoas que a
princípio aprovavam as idéias de Lutero e Zuínglio, desejavam mudanças
mais radicais do que aquelas que os principais reformadores haviam
considerado sábias ou até mesmo possíveis. Eles eram normalmente
chamados de anabatistas por causa de suas idéias sobre o batismo, mas
na verdade faltava coesão aos grupos e eles constituíam uma porção de
seitas pequenas e divergentes. Porém, pode-se fazer algumas
generalizações úteis a seu respeito. Os anabatistas ensinavam que a Igreja
“visível” deveria incluir somente aqueles que haviam experimentado a
regeneração através da fé em Jesus Cristo e testemunhado publicamente
sua fé através do “batismo do crente”. Tendo em vista que é preciso
compreender a mensagem cristã a fim crer, só eram batizados aqueles
com idade suficiente para ter consciência do que estavam fazendo. Como
eles já haviam sido batizados quando criança, os críticos os chamavam de
anabatistas, pessoas que praticavam o re-batismo. Mas do ponto de vista
desses crentes, o batismo infantil não tinha valor.
Os anabatistas também eram pessoas profundamente morais e éticas
que, em grande parte, insistiam na primazia das Escrituras e na separação
entre a Igreja e o Estado. Além disso, repudiavam o conflito armado, a
pena capital e prática de juramentos.
A maioria dos cristãos dessa época ainda considerava o batismo das
crianças como um sacramento muito importante e o rito de iniciação na
Igreja que incluía todos dentro dos limites do Estado. Além disso, mesmo
que alguns de seus líderes fossem extremamente cultos, a maioria dos
anabatistas pertencia às classes mais baixas. Em decorrência disso, eram
vistos como radicais anti-sociais e perseguidos tanto pelos luteranos e
reformados como pelos católicos. Apesar do castigo cruel ao qual eram
submetidos, eles continuaram a confessar sua fé pois acreditavam que os
verdadeiros cristãos devem esperar ser maltratados pelas autoridades
seculares.
Os anabatistas apareceram pela primeira vez em 1523 entre os
seguidores de Zuínglio em Zurique. Dois de seus líderes eram Conrad
Grebel e Felix Manz cujo sucesso em ganhar convertidos exasperava os
líderes das cidades. Manz foi executado por afogamento (um cínico “re-
bastismo”) e Grebel, juntamente com seus seguidores, foi exilado.
Aqueles que ficaram na Suíça tornaram-se clandestinos, permitindo que o
movimento sobrevivesse até o século seguinte, enquanto os refugiados
espalhavam o anabatismo para o sul da Alemanha e Morávia.
Estrasburgo foi o centro do movimento de 1527 a 1533 quando Martin
Brucer, o líder da igreja protestante daquela cidade ficou apreensivo com
os separatistas e ordenou que fossem expulsos.
Um dos que trabalhavam lá era Melchior Hoffmann (1500-43), que
afirmava ser uma das duas testemunhas de Apocalipse 11.3 e conclamava
os anabatistas a deixar o pacifismo e estabelecer o reino de Cristo à
força. Apesar de ele ter sido preso, um de seus discípulos — Jan Matthys
— liderou um grupo até Münster, na Westphalia, onde sua pregação fez
tanto sucesso que eles ganharam o controle da cidade inteira e forçaram o
rebatismo dos moradores. Afirmando ser Enoque, enviado a fim de
preparar o caminho para Cristo, Matthys fundou uma ordem comunitária
e introduziu um novo código de leis. Depois de sua morte em combate
em 1534, John de Leiden proclamou-se Rei de Sião, introduziu a
poligamia e matou ou expulsou aqueles que não se submeteram a ele.
Isso perturbou tanto os luteranos e também os católicos que eles
uniram forças para sitiar a cidade. Apesar de uma defesa heróica, ela foi
capturada em 1535 e a maioria dos habitantes de sexo masculino foi
executada com uma crueldade reservada aos revolucionários sociais. Os
corpos dos líderes chegaram a ser colocados em jaulas de ferro e
penduradas na torre da igreja. Esse episódio não só deu ao movimento
má fama como também ofereceu uma desculpa para outras perseguições.
Porém, o remanescente espalhado e desprezado renunciou a todas
as formas de violência e passou a viver de modo simples, tranqüilo e
humilde. Seu mais importante novo líder foi um sacerdote holandês,
Menno Simons. Convertido em 1536, ele juntou os anabatistas
desanimados que viviam nos Países Baixos e norte da Alemanha.
Enfatizando o pacifismo e a demonstração de uma vida de fé através das
boas obras, ele organizou seus seguidores em comunidades cristãs que
eram separadas das instituições sociais e políticas seculares. Para ele, o
foco da vida cristã era a Igreja e não o Estado; os cristãos deveriam estar
no mundo, mas não ser do mundo. Eles ficaram conhecidos como
menonitas e prosperaram apesar de seu sofrimento. Numa certa ocasião,
constituíam dez por cento da população da Holanda. Então, migraram
para a Europa oriental e mais tarde para a Rússia e o Novo Mundo.
Outro núcleo de anabatistas foi a Morávia onde Balthasar Hubmaier
e Jacob Hutter representavam as duas alas do movimento. Hubmaier, o
mais importante intelectual entre os anabatistas, havia sido aluno de John
Eck e professor na Universidade de Ingolstadt antes de sua conversão em
1525. Depois de deixar o sacerdócio ele assentou-se na Morávia. Lá ele
converteu e batizou dois importantes nobres que, em troca, permitiram
que ele pregasse em seus territórios. Ele ganhou centenas de convertidos
para Cristo e escreveu vários panfletos que mostravam de modo
competente a posição dos anabatistas. Entre os que se juntaram a ele
estava Hans Hut, um defensor dos bens comunitários e do pacifismo.
Pelo fato dos seguidores de Hubmaier não aceitarem o pacifismo de Hut
e sua rejeição da sociedade contemporânea, ocorreu uma cisão entre os
anabatistas morávios. Enquanto isso, os Habsburgos católicos assumiram
o controle da Morávia e eliminaram tudo o que consideravam heresia.
Com a execução tanto de Hubmaier quanto de Hut, parecia que o
movimento estava acabado.
Porém, Jacob Hutter, que ofereceu liderança durante os anos
cruciais de 1533-36, salvou o assentamento morávio da destruição. Ele
organizou os irmãos em congregações unidas, com a posse comum de
bens baseada na prática da Igreja apostólica conforme registrado em Atos
5. Os hutteritas, como eram chamados, tornaram-se uma comunidade
viável, socialmente coesa e ativa. Apesar do próprio Hutter ter sido
martirizado e do movimento ter passado por tempos difíceis, ele continua
sendo um dos sobreviventes dos anabatistas de mais sucesso. Da Morávia
os hutteritas dirigiram-se para a Europa oriental e acabaram indo para a
América do Norte, mantendo sempre suas instituições comunitárias.
Dois outros grupos da Reforma radical dignos de menção foram os
espiritualistas e os evangélicos racionalistas. Os primeiros rejeitavam as
formas externas de religião e enfatizavam a comunhão interior com o
Espírito Santo. Seu líder, o nobre silesiano Caspar Schwenkenfeld (1490-
1561) ensinava que os crentes autênticos deviam sair da Igreja e formar
grupos de oração dos verdadeiramente regenerados. Ele pedia aos seus
seguidores que se tornassem ávidos estudiosos da Bíblia apesar de não
insistir que fossem batizados novamente. Um vestígio dos
Schwenkenfelders ainda existe na Pensilvânia.
O segundo grupo, dos evangélicos racionalistas, rejeitava as
doutrinas tradicionais da Trindade e da Divindade de Cristo. Um adepto
de destaque foi Miguel Servetus que foi executado por heresia em
Genebra. Na Polônia e Europa oriental a teologia racionalista foi
institucionalizada pela influência de Faustus Socinus (1539-1604). Os
socianos organizaram suas igrejas dentro das linhas calvinistas, mas
deram menos ênfase à disciplina eclesiástica. Perseguições lideradas
pelos jesuítas levaram à sua expulsão da Polônia em 1658 mas um
remanescente sobreviveu na Transilvânia sob o domínio turco. O
unitarismo moderno está intelectualmente ligado aos socianos.
A Reforma católica
Na década de 1540 o Catolicismo romano parecia ser uma fé em
extinção. Os protestantes haviam convertido a maior parte da Alemanha
e aparentemente, governantes de outras partes da Europa estavam
seguindo o exemplo de Henrique VIII e fundando igrejas nacionais. Mas,
por causa da Reforma católica (também conhecida como Contra-
Reforma), isso não aconteceu.
Ao invés disso, a renovação liderada por um papado regenerado
que enfatizava a liderança espiritual e diversas novas ordens religiosas
permitiram a Roma responder à altura ao desafio protestante.
No redemoinho revolucionário causado por Lutero é fácil esquecer
que o sucesso protestante nunca foi mais do que parcial. Apesar de ter
ficado profundamente abalado, o papado era de uma resistência
surpreendente. Por ironia, o papa saiu dessa luta com mais controle sobre
o território que havia lhe restado do que seus predecessores haviam tido
sobre toda a igreja ocidental. A Reforma dividiu a Igreja mas forçou
Roma a organizar-se para a guerra, o que significou dar mais poder para
seus líderes.
Entre as ordens religiosas que trabalharam na reforma estavam os
barnabitas, capuchinhos, teatinos, carmelitas (sendo seus principais
destaques Teresa d’Ávila e João da Cruz, figuras excepcionais do
misticismo) e, acima de tudo, os jesuítas. Inácio de Loyola (1491-1556),
o fundador dos jesuítas (Sociedade de Jesus) que era do país basco no
noroeste da Espanha, entrou para o serviço militar do rei espanhol. Em
1521, enquanto lutava numa guerra contra a França, Loyola foi
gravemente ferido na perna por uma bala de canhão. Durante sua
recuperação, ele leu um livro de devocionais que mudou sua vida e o
inspirou a tornar-se um soldado de Cristo. Ele entrou para um mosteiro
onde passou quase um ano realizando práticas ascéticas, tendo visões
místicas e compondo a essência de seu grande manual sobre a guerra
espiritual, Os Exercícios Espirituais. Depois de uma peregrinação em
Jerusalém e de estudos na Espanha, em 1528 ele entrou para a
Universidade de Paris onde atraiu diversos companheiros que estudaram
os Exercícios e se empolgaram com seus ideais. Depois de completar
seus estudos, Loyola e seis colegas fizeram votos de viver em pobreza,
castidade e servindo na Terra Santa ou, se isso não fosse possível, ir a
qualquer lugar aonde o papa os enviasse. Como uma guerra no Oriente os
impediu de ir para Jerusalém, eles fizeram uma petição ao papa Paulo III
que em 1540 aprovou seu pedido de tornar-se uma ordem da Igreja. Em
1548, eles escolheram Loyola como “general” da Sociedade de Jesus. Ele
deu ao grupo uma “Constituição” que criava uma estrutura paramilitar
tendo como principais idéias a obediência, disciplina e eficiência. Ao
contrário de outras ordens religiosas, os jesuítas faziam um quarto voto
que era de obediência incondicional ao papa e trabalhavam inseridos no
mundo ao invés de retraírem-se na clausura. Colocavam muita ênfase na
educação e no trabalho missionário como formas de fortalecer e propagar
a fé católica.
A Igreja também esclareceu e redefiniu seus ensinamentos. O
processo foi complicado por divisões doutrinárias medievais,
especialmente pelo conflito entre nominalistas e realistas. Os
nominalistas, exemplificados por Guilherme de Ockham, tinham idéias
muito semelhantes às de Lutero, enquanto os realistas, como Tomás de
Aquino, seguiam uma teologia que oferecia prova lógica e baseava-se no
método e pensamento aristotélico. O esclarecimento doutrinário ocorreu
no Concílio de Trento, que se reuniu periodicamente entre 1545 e 1563.
Composto principalmente de bispos e abades italianos que tendiam a
seguir a liderança do papa, ele foi presidido por dois representantes
papais e totalmente influenciado pelos jesuítas.
As Reformas Tridentinas (do nome latino de Trento) podem ser
agrupadas em duas categorias, disciplinares e dogmáticas. As questões
disciplinares incluíam luxúria, simonia, nepotismo e outros abusos
clericais. Mais importantes, porém, foram as reformas dogmáticas. Eles
seguiram as linhas traçadas por Tomás de Aquino que foi, com efeito,
transformado em teólogo oficial da Igreja. Cada cânone doutrinário
declarava o ponto de vista protestante e depois a refutação católica, que
muitas vezes, pelo menos superficialmente, procurava agradar a ambas as
partes. A autoridade deveria basear-se nas Escrituras e tradições, sendo a
Vulgata — incluindo os livros apócrifos do Antigo Testamento —
reconhecida como Bíblia oficial da Igreja. Traduções na linguagem
popular só podiam ser usadas com a aprovação do papa. A salvação
combinava as obras de Deus e do homem e incluía tanto a predestinação
quanto o exercício do livre arbítrio. A justificação não era só pela fé mas
também pelas boas obras. A prática das indulgências continuaria, mas
com reformas para evitar abusos. O sistema de sete sacramentos também
seria mantido. A aplicação dos decretos conciliares ficava nas mãos do
Vaticano. Isso significava que a resistência da realeza ou de autoridades
locais iria impedir sua implantação em algumas áreas.
A fim de disseminar o que havia sido decretado em Trento, todos os
bispos foram orientados a fundar uma escola e um seminário em sua
diocese. Os jesuítas mais que depressa tomaram a iniciativa de
desenvolver esse sistema educacional e até hoje continuam sendo os
principais educadores católicos. Uma ilustração da nova política foi o
trabalho realizado na Suíça por Charles Borromeo (1538-84), arcebispo
de Milão. Ele enviou dois representantes papais para aquela região,
sendo que eles voltaram com relatos desanimadores sobre as condições
da Igreja Católica lá. Eles acusaram o clero de ser preguiçoso, imoral e
ignorante e afirmaram que os protestantes estavam lucrando com essas
condições miseráveis. Borromeo prosseguiu fundando a Faculdade
Helvética de Milão para treinar sacerdotes que iriam trabalhar nos
cantões suíços. Criou então faculdades na própria Suíça, sendo que uma
delas ainda existe em Lucerna. Em 1600 os esforços de Borromeo já
haviam estacionado os avanços da Reforma no país dos Alpes.
Como a imprensa havia espalhado o Protestantismo com tanta
eficácia por toda a Europa, o papa Paulo IV decidiu estabelecer em 1559
um “Índice de Livros Proibidos”. O Concílio de Trento ratificou essa
medida e ela tornou-se a famosa lista negra de obras cujas filosofias e
doutrinas eram consideradas contrárias aos ensinamentos da Igreja
romana. O Índice acabou incluindo de tudo, desde os escritos de Karl
Marx e Martinho Lutero até romances de Albert Camus e só saiu de
circulação em 1966. O Vaticano também fundou sua própria imprensa
que mais tarde teve um papel crucial na propagação da fé católica.
Na Idade Média, a repressão dos desvios doutrinários era tratada
pelo Santo Ofício da Inquisição romana. Em 1480 esse órgão foi
reativado na Espanha para lutar contra a heresia. Fernando e Isabel
patrocinaram a instituição que tinha como objetivo reagir às influências
de judeus e mouros, tornando-a um fator chave na conversão e expulsão
desses povos desafortunados. Durante a Reforma, a Inquisição espanhola
concentrou-se nos erasmianos e até em místicos como Teresa d’Ávila.
Em 1542 o Santo Ofício foi reativado nos Estados Papais por Paulo III e
uma das vítimas do século seguinte foi Galileu.
A Inquisição era uma corte eclesiástica que conduzia julgamentos
de heresia sob a liderança de um Grão-Inquisidor. Na Espanha, essa
pessoa era nomeada pelo rei e aprovada pelo papa. Ela, por sua vez,
escolhia um supremo concílio de cinco homens que eram confirmados
pelo rei. Havia também dezenove cortes locais em cada província. A
Inquisição foi conduzida pelos ortodoxos e estudiosos dominicanos. As
provas eram oferecidas por leigos devotos que recebiam recompensas por
denunciar a heresia.
Cada pessoa acusada tinha um mês para preparar sua defesa e
alguém só podia ser mandado para a prisão pelo voto unânime dos
inquisidores. O julgamento era conduzido em segredo e o acusado não
ficava frente a frente com os acusadores, apesar de haver algumas
exceções ocasionais. A tortura era usada para extrair as confissões. Se o
acusado se arrependesse logo no começo do processo, podia ser libertado
e teria que fazer penitência pública. Se fosse declarado culpado ou
tivesse voltado a praticar heresia, ele era entregue ao Estado para ser
punido, normalmente pelo fogo. Na Espanha as execuções públicas
aconteciam durante um grande espetáculo chamado auto-da-fé (ato de
fé), ao qual o rei comparecia com freqüência. Por vezes, muitos acusados
de heresia eram queimados ao mesmo tempo. A Inquisição mostrou-se
um baluarte eficaz contra a expressão de opiniões divergentes.
As muitas mudanças do século 16 tornaram a Igreja Católica
Romana uma instituição mais disciplinada e governada com mais
restrição. Além disso, apesar do Protestantismo ter trazido esperanças e
um espírito de alegria a muitos, ele deixou outros sem instrumentos da
graça como as peregrinações e a realização de pequenos atos concretos
que são tão mais fáceis do que passar pelos conflitos interiores que
trazem a nova vida em Cristo. A reação inicial de Roma tinha sido
simplesmente de condenar os ensinamentos protestantes, mas uma vez
que ficou claro o fracasso dessa abordagem, a antiga fé renovou-se
internamente e começou sua própria reforma. Se suas ações foram uma
“Contra-Reforma” ou uma “Reforma católica” é uma questão que fica
aberta para discussão. Se a Igreja tivesse se contentado com uma simples
rejeição dos ensinamentos “heréticos” dos reformadores, então tratar-se-
ia apenas de uma Contra-Reforma. Porém, as decisões do Concílio de
Trento, a renovação da vida religiosa e o desenvolvimento de um melhor
sistema de treinamento do clero apontaram para uma reação mais positiva
ao Protestantismo e uma renovação do compromisso com a mensagem
cristã. Nesse sentido, foi de fato uma Reforma que mudou a essência do
Catolicismo e o transformou em uma instituição moderna. Ele estava
pronto, então, para lutar contra as forças protestantes nas guerras
religiosas.
A controvérsia arminiana
Mesmo enquanto soldados matavam-se uns aos outros em nome do
evangelho de Cristo, os líderes de suas igrejas lutavam com palavras para
definir a fé de modo mais preciso. As brigas doutrinárias eram muitas
vezes misturadas com as lutas políticas e levavam a conflitos entre vários
grupos dentro das igrejas. Um deles foi a disputa entre arminianos e
calvinistas rígidos, sediados na Holanda. Os primeiros tomaram o nome
de Jacobus Arminius (1560-1609), um teólogo que havia estudado em
Leiden e Genebra antes de tornar-se pastor em Amsterdã. A teologia
reformada de sua época havia sido desenvolvida a partir da visão de
Calvino por Theodore Beza (1519-1605) e outros escolásticos
reformados. Esses homens enfatizavam o literalismo bíblico, rígida dupla
predestinação e governo da Igreja presbiteriana. Armínio reagiu contra
esse sistema inflexível, proclamando que a oferta da graça de Deus era
universal e que os indivíduos possuíam a liberdade de responder a Deus
pela fé.
Em 1603 ele foi nomeado professor de Teologia na Universidade
de Leiden apesar do protesto de Francis Gomar (1563-1641), outro
teólogo da instituição. A controvérsia entre os dois girou em torno do
significado exato da predestinação. Armínio expressou de maneira clara
e direta sua oposição a certos aspectos da teologia de Calvino e sugeriu
que Calvino tornava Deus o autor do pecado e negava a verdadeira
liberdade do ser humano. Gomar, um rígido calvinista, contra-atacou
essas idéias incansavelmente e o debate que se seguiu levou à divisão da
igreja Reformada. Armínio queria a convocação de um sínodo nacional a
fim de reunir os dois lados. Até políticos foram incluídos no debate, mas
quando de sua morte, não havia se chegado a um acordo.
Os seguidores de Armínio continuaram a propagar os seus
ensinamentos e em 1610 emitiram um documento chamado “Objeção”
que pedia tolerância e apresentava os cinco pontos principais do
Arminianismo: (1) o decreto eterno da salvação aplica-se a todos que
crêem e perseveram na fé; (2) Cristo morreu por todos; (3) o Espírito
Santo deve ajudar o indivíduo a fazer aquelas coisas que são realmente
boas como ter fé em Cristo para a salvação; (4) A graça salvadora de
Deus não é irresistível; e (5) é possível cair da graça. Muitas
personalidades proeminentes na Holanda, incluindo o teólogo Simão
Epíscopo (1538-1640), o estadista Jan van Oldenbarneveldt e o principal
acadêmico da época, Hugo Grotius, tomaram publicamente partido da
causa arminiana.
O Sínodo de Dort (Dordrecht) reuniu-se em 1618-19 para resolver a
controvérsia. Foram enviados convites para todas as igrejas calvinistas da
Europa e vinte e sete dentre os mais de cem representantes eram da
Alemanha, Suíça, Inglaterra e Escócia. Os arminianos ou Opositores
como eram muitas vezes chamados, foram condenados por um conjunto
de cinco cânones (decretos). Essa refutação de cada ítem da Objeção de
1610 definia os ensinamentos da fé calvinista ortodoxa como sendo a
total pecaminosidade, eleição incondicional, expiação limitada, graça
irresistível e perseverança dos santos na graça. Sínodos provinciais e
presbitérios locais receberam ordens de expulsar as igrejas Opositoras
que estivessem sob seus cuidados. Nos anos que se seguirem, a Igreja
Reformada na Holanda aderiu com rigidez à doutrina definida em Dort e
seus teólogos interpretaram essas declarações ao elaborar sobre seu
significado de acordo com os elementos aristotélicos.
A controvérsia entre os arminianos e os calvinistas rígidos tinha
uma dimensão política. Os dois principais políticos holandeses da época
tomaram partidos diferentes na disputa. Maurício de Nassau apoiava os
gomaristas e Jan van Oldenbarneveldt favorecia os Opositores. Não era
só a religião que separava os dois pois Maurício desejava que sua família
(a Casa dos Orange) fizesse parte da monarquia enquanto
Oldenbarneveldt queria que a aristocracia mercantil controlasse o país. A
religiosidade sincera de Maurício era particularmente dúbia pois alega-se
que ele dizia não estar certo da predestinação, mas sua posição ortodoxa
firme o colocou como aliado dos fortes calvinistas holandeses. Na época
do Sínodo, Maurício agiu contra seus inimigos. Oldenbarneveldt foi
preso, julgado por traição e executado; Episcópio foi exilado e outros
como Grótio foram encarcerados.
O movimento parecia ter acabado na Holanda, mas quando
Maurício faleceu em 1625, os arminianos tiveram permissão de voltar.
Episcópio foi o guia da nova fundação da Igreja Opositora que existe até
hoje. Frederik Henry, sucessor de seu irmão Maurício como líder
político, percebeu que uma ortodoxia rígida era inadequada para o país
como também o era uma monarquia absolutista e que forçar os adeptos
de várias cranças à conformidade poderia produzir a falência econômica.
O resultado a longo prazo dessa luta mordaz foi uma política oficial de
tolerância. Apesar da disputa arminiana na Holanda ter chegado ao fim, o
debate continuou em outros lugares. A Inglaterra foi um solo fértil para o
crescimento do Arminianismo. Muitos seguidores do arcebispo William
Laud aceitaram a manifestação mais liberal do Calvinismo e passaram o
ensinamento para os latitudinarianos (como aqueles que aceitavam a
variação de doutrinas) que surgiram no começo do século 18. Os
unitários ingleses também eram arminianos, como também o era o grande
evangelista John Wesley. Através do Metodismo de Wesley, a doutrina
chegou até o presente como uma importante corrente teológica e a
discussão entre arminianos e reformados ainda é uma preocupação para
muitos.
Controvérsias luteranas
Os luteranos também foram assolados pelas controvérsias durante o
final da era reformada. Assim como havia ocorrido no estágio inicial da
Reforma, problemas políticos e teológicos estavam entretecidos. A Paz
de Augsburg (1555) foi concluída com a promessa de que um acordo
definitivo seria feito posteriormente, mas isso deu aos protestantes
alemães pouca segurança política e legal. Assim, quando os teólogos que
representavam os luteranos e católicos se encontraram em Worms em
1557 para esclarecer diferenças confessionais, as divisões entre os
protestantes incentivaram os católicos a postergar o acordo.
A situação dos protestantes foi complicada por uma disseminação
do Calvinismo na Alemanha, tendo em vista que vários governantes,
sendo o mais importante Frederico III do Palatinado, haviam introduzido
a fé em seus principados. Apesar de desviar da posição luterana,
Frederico afirmava que seguia a Confissão de Augsburg para que
pudesse ser protegido pelos direitos garantidos àqueles que aderiam a
essa declaração. Outros teólogos alemães reformados e príncipes
seguiram o seu exemplo.
Outra divisão dentro do protestantismo alemão era a dos gnésio-
luteranos (“verdadeiros luteranos”), um grupo que seguia Matthias
Flacius Illyricus (1520-73), um conhecido estudioso e historiador da
Igreja. Eles rejeitavam as idéias de Melanchthon e de seus seguidores
que eram chamados de “filipistas” em função do nome de Melanchthon.
Os gnésio-luteranos acusavam os filipistas de serem tolerantes demais em
relação aos católicos romanos e puseram-se a desenvolver o ensinamento
luterano de modo a distingui-lo tanto do Catolicismo como das idéias dos
filipistas. Na controvérsia adiaforista eles acusaram seus oponentes de
fazer concessões ao Catolicismo em questões como as cerimônias de
confirmação, extrema unção, veneração dos santos e a missa. Os
“verdadeiros luteranos” afirmavam que nada é uma adiafora (uma
questão de indiferença) no que diz respeito a qualquer aspecto da
verdade cristã.
Talvez o conflito luterano mais importante tenha sido aquele em
torno da Ceia do Senhor. Apesar dos ensinamentos luteranos rejeitarem o
dogma da transubstanciação, declaravam firmemente a presença real do
corpo de Cristo dentro, com e sobre o pão e o vinho. Calvino tentou
harmonizar as idéias de Lutero e Zuínglio ao declarar que o crente
verdadeiramente recebia o corpo e o sangue de Cristo nos elementos da
Ceia, mas de maneira espiritual.
Numa controvérsia de idéias sobre a Eucaristia que teve início em
1552 e ocorreu entre o luterano Joachim Westphal e o próprio Calvino,
as diferenças entre reformados e luteranos ficaram ainda mais claras.
Melanchthon e seus seguidores, que recusaram-se a ser envolvidos no
debate, foram acusados de simpatizar com a posição calvinista e foram
denunciados por ser cripto-calvinistas. Assim, a presença de
ensinamentos reformados na Alemanha foi além dos debates dentro do
Luteranismo. Na verdade, calvinistas e luteranos concordava quanto a
várias questões, mas os reformados normalmente rejeitavam o culto
litúrgico, dando mais ênfase à participação na solução de problemas
sociais e tinham posições diferentes quanto à cristologia e os
sacramentos.
Um grupo de teólogos proeminentes das Universidades de Leipzig,
Marburg e Tübingen procurou impedir a fragmentação do Luteranismo
tomando uma posição intermediária entre os extremos. Sua iniciativa
levou à adoção da Fórmula de Concórdia em 1577, uma declaração
confessional criada para resolver as controvérsias ao substituir os credos
separados que haviam sido adotados nas várias igrejas territoriais
luteranas. A raiz do problema eram as muitas interpretações diferentes da
Confissão de Augsburg. A Fórmula de Concórdia, com sua linguagem
precisa e enfática procurava o meio termo entre essa diversidade a fim de
declarar exatamente em que os luteranos acreditavam. Em 1580 a
Fórmula foi publicada junto com três credos ecumênicos (dos Apóstolos,
de Nicéia e de Atanásio), a Confissão de Augsburg (1530) e sua
Apologia (1531), o Pequeno e o Grande Catecismo de Lutero, os Artigos
da Smalkaldia (1537) e três dos primeiros esboços da Fórmula no Livro
de Concórdia. Essa obra, que foi adotada por dois terços do
Protestantismo luterano, definia claramente as diferenças entre os
ensinamentos luteranos e católicos e também entre luteranos e
reformados. Foi a declaração definitiva da ortodoxia luterana e
correspondeu a um ato semelhante realizado por parte dos católicos no
Concílio de Trento.
A sistematização da doutrina dentro do Luteranismo podia então
prosseguir e foi feita através de declarações elaboradas baseadas em
textos de esboço. Esse método, usado de uma forma mais simples pelos
primeiros teólogos luteranos, desenvolveu-se nas obras dos estudiosos
ortodoxos do século 17. Ao contrário dos luteranos, os reformados
alemães não conseguiram elaborar sua própria fórmula de concórdia e
continuaram voltando-se para o catecismo de Heidelberg de 1563 como
sua principal declaração doutrinária. A essa altura, a Universidade de
Heidelberg havia tornado-se o centro intelectual de um movimento que
incluía diversos territórios e cidades em Rhineland e no oeste da
Alemanha. Um marco importante na propagação da fé reformada foi a
conversão do eleitor John Sigismund de Brandenburg do Luteranismo
para o Calvinismo. Em parte como consequência dessa mudança, os
laços do país com a Saxônia e os Habsburgos foram rompidos, o que
seria um fato crucial na ascensão de Brandenburg e Prússia a uma
elevada posição de poder depois da Guerra dos Trinta Anos.
A propaganda
O ritmo cada vez mais acelerado do trabalho missionário católico
levou à criação de uma agência especial na cúria romana para coordenar
essa iniciativa tão abrangente. Não havia unidade na metodologia
missionária das diversas ordens religiosas e o controle excessivo que as
coroas espanhola e portuguesa exerciam através de seu patrocínio tinha
impacto negativo sobre o alcance das missões. Além disso, uma falta de
obreiros havia se desenvolvido porque as forças ibéricas normalmente
excluíam do serviço missionário em seu território qualquer um que não
fosse nascido na Espanha ou em Portugal.
Apesar da idéia de Roma assumir um controle firme no lançamento
e direção de iniciativas missionárias já vir sendo discutida desde a década
de 1560, foi em 1622 que Gregório XV criou a Congregação para a
Propagação da Fé, mais conhecida por Propaganda, seu título abreviado
em latim. A princípio, ela era composta de treze cardeais e outros oficiais
inferiores. Tendo em vista que sua jurisdição englobava todos os
assuntos relacionados à atividade missionária, a Propaganda tinha amplos
poderes. Ela começou solicitando de todas as ordens missionárias e
núncios papais informação sobre as condições e o progresso da obra
missionária, um resumo dos métodos usados para propagar a fé e uma
lista dos missionários. Esse órgão passou então a separar, classificar e
analisar os dados para determinar quais eram os principais problemas
enfrentados pelas missões. Depois de identificar os obstáculos e
insucessos, a Propaganda pôs-se a melhorar a metodologia, aumentar o
número de obreiros e incentivar o desenvolvimento de clérigos nativos.
A fim de assegurar que se fizesse um esforço unificado, a
Congregação insistia que a autorização para os trabalhos missionários só
fosse obtida dela mesma. Os missionários deveriam fazer relatórios
regulares sobre as condições, perspectivas e recursos de suas iniciativas.
Ela examinava candidatos para avaliar se eram adequados e encorajava
as ordens a montarem escolas para aqueles que desejassem servir no
Oriente. Em 1627, sob o papado de Urbano VIII, a Propaganda fundou
um seminário em Roma, o Collegium Urbanum, para treinar homens de
várias nações para o sacerdócio que iriam exercer em qualquer parte do
mundo a pedido do papa para propagar ou defender a fé. Criou também
sua própria imprensa em 1627 a fim de produzir literatura cristã para as
obras missionárias e, no final do século 18, já publicava livros em
quarenta e quatro línguas asiáticas e africanas, tornando-se a mais
importante imprensa da Europa.
Para contrabalancear o patrocínio ibérico, a Propaganda deu início
à prática de fazer com que a Santa Sé nomeasse “vigários apostólicos”
para o Oriente. Estes eram bispos que exerciam o poder diretamente sob
o papa. Como eles não eram bispos de dioceses no sentido comum,
estavam menos vulneráveis às pressões dos governantes seculares. Na
verdade eles eram missionários itinerantes que recebiam suas ordens
através da Propaganda e esperava-se que trabalhassem em favor da
preservação da autonomia cultural e social nas terras não-ocidentais onde
serviam. Porém, a Propaganda nunca foi capaz de tirar todo o controle
exercido pela coroa da Espanha e de Portugal sobre os missionários em
suas colônias, mas foi responsável por obras no norte da Europa, na
América do Norte (até 1908) e na maioria dos lugares na África, Ásia e
Ilhas do Pacífico.
Uma figura importante foi o jesuíta Alexandre de Rhodes (1591-
1660) que cultivou laços de amizade com a corte real no Vietnã e fundou
uma igreja auto-sustentável. Ele criou a linguagem escrita do Vietnã com
seu dicionário, gramática e catecismo anamita. Depois de voltar para
Roma em 1645, ele encorajou a Propaganda a nomear vigários
apostólicos para dar continuidade ao trabalho missionário no leste da
Ásia. Também teve contato com um grupo de sacerdotes devotos em
Paris, os chamados “bons amigos” e através de seu incentivo dois deles
— François Pallu (1628-84) e Pierre Lambert de La Motte foram
nomeados vigários apostólicos. Em 1664 eles começaram um trabalho no
Sião e fundaram uma escola para treinar sacerdotes.
Do crescimento desse círculo nasceu uma importante organização, a
Société des Missions Étrangère (Sociedade das Missões Estrangeiras),
formada em Paris em 1663. Ela era diferente das outras ordens religiosas
que se dedicavam ao trabalho missionário, pois propagar a fé entre os
povos não-cristãos era seu único objetivo. Ela pôs em prática a visão de
Pallu de criar um clero nativo secular para as jovens comunidades cristãs
do sudeste da Ásia. A sociedade acreditava que padres “comuns”,
membros de ordens religiosas dirigidas pela Europa não tinham como
oferecer a liderança necessária para fazer a igreja criar raízes em solo
fora da Europa. Mesmo quando ordenavam sacerdotes nativos seculares
para suas missões, as ordens os controlavam e não permitiam que
desenvolvessem suas aptidões naturais de liderança. Assim, a solução era
que o clero paroquial fosse secular e escolhido entre nativos e sob a
direção de bispos também nativos.
Foi com esse fim que a sociedade abriu um seminário em Paris que
treinava sacerdotes seculares para pregar o evangelho e desenvolver
líderes cristãos nativos. Uma instituição parecida foi criada em Quebec
em 1668, sendo que esta mantinha contato com a sociedade de Paris até
que os ingleses conquistaram o Canadá francês. O grupo contava com
alguns obreiros na China, mas seu principal foco de atenção era a
Indochina, onde, de acordo com relatórios, no final do século 18 havia
150 mil cristãos. Porém, tanto a Espanha quanto Portugal criticaram a
nomeação dos dois vigários apostólicos como sendo uma violação do
direito de patrocínio concedido por Roma. Também temiam que isso
fosse abrir uma brecha para o imperialismo francês, o que obviamente foi
o caso. Em 1787 o vigário apostólico da sociedade Pigneau de Behaine
garantiu auxílio naval francês para restaurar ao cargo o monarca deposto
de Annan em troca de concessões territoriais, fato que marcou o início de
um longo envolvimento com a França nessas terras.
Apesar dos esforços da Propaganda para desenvolver mais clérigos
nativos, o processo era tão lento nos territórios sob sua jurisdição quanto
nos reinos onde prevalecia o governo ibérico. O clero europeu continuou
a ser predominante em todo o mundo.
Ortodoxia protestante
Apesar de gerações posteriores terem estereotipado a ortodoxia
como se estivesse morta, esse era um conceito equivocado. Dentro de
ambas as comunidades pós-Reforma na Europa surgiram diversos
pensadores teológicos cujas obras eram recebidas com grande
consideração e cuja influência entre seus contemporâneos era
considerável. Johann Gerdard (1582-1637), professor de Teologia em
Jena era o principal dogmatista luterano daquela época. Sua obra
Confessio Catholica (1634-37) era uma forte defesa da fé protestante e
Loci Theologici (1610-22) uma obra excepcional sobre a Teologia
dogmática luterana. Abraham Calov (1612-86), professor em Wittenberg,
produziu dezenas de trabalhos tratando dos principais tópicos da
Teologia. Além de conduzir uma luta contínua contra as tentativas de se
unir as diversas igrejas reformadas e católicas, ele foi autor de um
importante comentário bíblico e dos doze volumes de Systema locorum
theologicorum, uma teologia sistemática que foi a principal expressão do
Escolasticismo luterano. Johann Andreas Quenstedt (1617-88), também
professor de Wittenberg, escreveu Theologia didactico-polemica, tão
completa, concisa e sistemática que poucas obras teológicas luteranas
posteriores se equipararam a ela.
A Igreja Reformada também contribui com estudiosos do mesmo
nível. Johann Heinrich Alsted (1588-1638), um estudioso em Rhineland
e mais tarde na Transilvânia, procurou unificar todo o conhecimento
através de uma abordagem que combinava o aristotelianismo com o
Escolasticismo do filósofo francês Petrus Ramus (falecido em 1572) e
outras correntes intelectuais. Numa única obra, Encyclopedia Septem
Tomis Distincta, ele juntou toda a gama de conhecimentos — Metafísica,
Lógica, Geologia e outras ciências — e esses volumes foram usados por
todo o mundo acadêmico do século. Gisbert Voetius (1588-1676), um
professor em Utrecht, foi o principal expoente do Calvinismo escolástico.
Ele defendeu fervorosamente a independência e pureza da Igreja,
argumentou que a verdade na religião e Filosofia começava com a
Palavra, condenou a tolerância de doutrinas errôneas e insistiu numa vida
pessoal de devoção e rígida moralidade. François Turretin (1623-87),
professor em Genebra, publicou a obra Institutio Theologiae Elencticae,
um importante texto sobre as Escrituras baseado em Calvino e nos
Cânones de Dort que moldaram profundamente a teologia de Charles
Hodge em Princeton no século 19.
O objetivo da ortodoxia protestante era unificar toda a Teologia e
harmonizar todo o conhecimento com sua visão de Deus. Os teólogos
ortodoxos produziram extensas obras literárias que eram cuidadosamente
esboçadas com muitas divisões e subdivisões que as tornam de difícil
leitura nos dias de hoje. Escritores ortodoxos normalmente apresentavam
seus pontos de vista num formato padronizado que se centrava na
doutrina da salvação, passando pela história da salvação e concentrando-
se sempre em como ela é obtida. Esses ensinamentos apoiavam-se
fortemente em Aristóteles e certos lógicos medievais para a estruturação
de seus argumentos mas suas bases eram sempre as Escrituras.
1575 1600 1650 1650 1723 1725
Phillip Johann Jacques- Rembrandt Johann Sebastian George Frederick
Nicolai Heinrich Benigne van Rijn Bach torna-se cantor Handel brilha na
Alsted Bossuet domina a em Leipzig Inglaterra
arte
holandesa
1500 1600 1700 1800
1575 1598 1625 1640 1688 1702-10
Ivan IV (O Édito de Cardeal Frederico Frederic Revolta
Terrível) Nantes Richelieu é Guilherme, oI dos
Primeiro o Grande assume Camisar
Ministro de Eleitor o poder dos
Luís XIII assume o
poder
1661 1689
Luís XIV obtém Pedro I (O
Maioridade Grande
torna-se
Czar
A espiritualidade ortodoxa
Ao observar-se os enormes tomos produzidos pelos teólogos
ortodoxos pode-se ter a impressão de que era um movimento de
intelectualismo morto, mas na verdade, sua época foi marcada por uma fé
viva e vibrante. Do meio do redemoinho, do sofrimento e dos conflitos
do século 17 fluíram algumas das declarações mais espirituais já vistas
sobre a fé cristã. Phillip Nicolai (1556-1608) foi um pastor na Westphalia
que enterrou mais de 1300 párocos durante a terrível praga e, ainda
assim, escreveu dois dos hinos mais lindos do hinário luterano Desperta
pois a Noite se Vai e Quão Brilhante é a Estrela D'Alva. Johann
Heermann (1585-1647) era pastor na cidade de Koeben, na Silésia, que
foi praticamente destruída por um incêndio, varrida pela peste e saqueada
por exércitos na Guerra dos Trinta Anos. Durante essa época em ele
perdeu todos os seus bens e fugiu para não ser morto, Johann escreveu o
hino Querido Jesus, que a Lei Quebraste.
Sem dúvida, o maior escritor de hinos desse período foi Paul
Gerhardt (1607-76), cuja importância para a hinologa na Alemanha
equipara-se a de Charles Wesley para a igreja de língua inglesa. Primeiro
ele foi tutor, depois diretor em Mittenwalde em Brandenburg e
finalmente pastor da prestigiosa igreja de São Nicolau em Berlim. Então,
perdeu sua posição com a queda do governante da Prússia por causa de
sua forte posição luterana e recusa a adaptar-se ao Calvinismo. Depois de
um tempo de grandes dificuldades ele acabou sendo nomeado
arquidiácono em Lueben, na Saxônia, onde permaneceu até o fim de sua
carreira. Seus últimos anos foram marcados pela tragédia pessoal: sua
esposa e quatro de seus cinco filhos faleceram antes dele.
Na fornalha da aflição Gerhard escreveu mais de 140 hinos. Eles
refletiam sua experiência pessoal e a calamidade social de seu tempo. Ele
venceu suas dúvidas através de uma forte fé baseada na obra de Deus na
natureza, na Igreja e nas Escrituras. Tinha uma consciência profunda do
pecado e ainda mais profunda da graça de Deus e do poder de seu
perdão. Entre seus textos mais conhecidos estão: Ó, Fronte
Ensagüentada; Jesus, Teu Amor Infinito por Mim e Senhor, Como Irei
Encontrá-lo?.
A hinologia calvinista diferia da luterana no sentido de que era
dirigida quase que exclusivamente aos Salmos do Antigo Testamento.
Escritores criativos produziram versões “métricas” dos textos sagrados,
isto é, adaptavam em forma de verso poético, compunham a música e
depois a cantavam sem o acompanhamento de instrumentos, exceto na
Holanda onde o órgão continuou sendo usado. O Saltério de Genebra era
uma coleção de salmos métricos em francês que foram traduzidos para o
alemão e holandês e durante muito tempo foi o único hinário usado pelas
igrejas reformadas do continente. Em algumas igrejas escocesas e
inglesas que não tinham condições de comprar livros ou onde os párocos
eram, em sua maioria, analfabetos os salmos eram “declamados em
linhas”. Um líder lia uma linha de cada vez e a congregação a cantava.
Sentimentos religiosos profundos também foram expressos através
das obras devocionais da época da ortodoxia. Estas eram apresentações
populares da fé cristã voltadas para o uso individual ou em grupos para
ajudar na oração e meditação. Muitas delas seguiam o modelo de A
Imitação de Cristo escrita por Thomas à Kempis. Escritores luteranos
chegaram a produzir livros de orações especiais para soldados, viajantes
e gestantes.
Sem dúvida, o autor mais influente de obras devocionais foi o
pastor Johann Arndt (1555-1621). Seus quatro (mais tarde seis) Livros
sobre o Verdadeiro Cristianismo e a obra Pequeno Jardim do Paraíso
eram amplamente usados e o primeiro título foi um dos livros
devocionais mais importantes da história cristã. Ele enfatizava a união
mística do crente com Cristo — isto é, não era suficiente simplesmente
mostrar a fé através de uma crença correta, era preciso dedicar-se à
purificação moral e a um viver de retidão. Assim, a penitência e um
relacionamento íntimo com o Pai celeste que redimiu a humanidade
também eram necessários. Outras obras devocionais importantes do
século 17 incluem A Prática da Piedade de Lewis Bayly, Meditações
Sagradas de Johann Gerhard, Prática da Piedade de Johann Heermann e
O Beijo de Amor do Céu de Heinrich Mueller.
A renovação católica
À medida em que a era da ortodoxia estabeleceu-se na Europa, o
zelo das duas confissões protestantes foi diminuindo e a fé tornou-se
muito mais voltada para dentro. Até mesmo os calvinistas franceses aos
quais o Édito de Nantes havia concedido direitos legais e civis e
liberdade de culto público, perderam muito de seu zelo e o mesmo
aconteceu com os calvinistas holandeses que viviam num país que,
naquela época já possuía políticas relativamente avançadas em relação à
tolerância religiosa. Porém, paralelo ao declínio dos protestantes, ocorreu
um importante reavivamento do Catolicismo e a condição revigorada da
Igreja Católica e do clero na França coincidiu com realizações nacionais
em outras áreas. O século 17 foi a era de ouro da literatura francesa, o
que encorajou o clero a ser mais artístico em suas pregações e escritos
religiosos.
A atmosfera política e social incentivada pelo rei Luís XIV também
foi um fator contribuinte. Ele expressava o prazer que sentia quando
ouvia a pregação de um ministro que não era apenas eloqüente mas
acreditava com todas as suas forças naquilo que dizia. O clero esperava
fazer dele uma pessoa melhor e, através do rei, alcançar toda a nação e
seu interesse pessoal pela religião tornou a freqüência às missas uma
moda na corte, ajudando a igreja a exercer influência sobre a vida
francesa.
A liberdade que os huguenotes gozaram durante grande parte do
século (Luís começou a persegui-los no final da década de 1670)
empurrou o clero católico da França no sentido de uma fidelidade maior.
Tendo em vista que não podiam depender da perseguição para enfrentar
os protestantes, eles foram forçados a usar a pregação e um ministério de
cuidado para ganhar as pessoas e encarar, assim, o desafio dos
huguenotes. François de Sales (1567-1622) foi especialmente importante
pois dedicou-se à obra missionária em Savóia, uma área de forte
influência huguenote. Sua diligência em ganhar o povo de volta para o
Catolicismo o levou a ser nomeado bispo de Genebra. Suas pregações e
escritos especialmente a obra Introdução à Vida Devocional (1609) que
procurava mostrar a possibilidade de se levar uma vida de devoção cristã
mesmo em meio às distrações do mundo, teve uma influência profunda
na devoção católica. Ele foi o mentor espiritual de uma viúva
profundamente devota, Jeanne Françoise de Chantal (1572-1641). Em
1610 ela formou a Ordem da Visitação (também conhecida como as
visitandinas ou irmãs salesianas), que dedicou-se à educação e ao
cuidado dos enfermos. João Bosco, um admirar do século 19, fundou em
1859 a Sociedade de São Francisco de Sales (Padres Salesianos) que
acabou tornando-se uma das três maiores ordens católicas missionárias e
de ensino.
Outra figura de grande devoção foi Vicente de Paulo (1580-1660)
que logo no início de sua carreira como sacerdote resolveu dedicar sua
vida aos pobres. Ele criou duas importantes ordens religiosas, os
lazaristas (ou vicentinos) em 1625, uma congregação missionária e de
pregação e as irmãs da caridade em 1633. Membros desta última
dedicaram-se totalmente aos enfermos e pobres. Durante o conflito civil
conhecido como Fronde, ele organizou amplos trabalhos de assistência
entre a população agonizante. Em sua pregação, ele enfatizava a
encarnação e a dependência total dos méritos de Cristo.
A figura mais proeminente da renovação católica na França foi
Jacques-Béningne Bossuet (1627-1704). Ele não apenas foi o maior
pregador do século 17 como também possuíam um conhecimento
admirável da Bíblia, dos Patriarcas da Igreja e das tendências intelectuais
de sua época. Ele foi bispo em Meaux, tutor do príncipe e pregador da
corte, teve um papel ativo nas controvérsias com os protestantes e alas
fora dos padrões dentro do Catolicismo e foi autor de vários livros.
Bossuet é lembrado especialmente por sua defesa vigorosa do
direito divino dos reis. Ele afirmava que o rei (referindo-se, é claro, a
Luís XIV) recebia do alto o seu mandato para governar e que seria
responsável diante de Deus, e não dos representantes eclesiásticos na
Terra, pela forma como conduziu sua missão. Como a instituição da
monarquia era de origem divina, esperava-se que todos os súditos
dedicassem sua lealdade ao soberano. Se ele não fosse capaz de governar
com sabedoria, seria julgado por Deus. Não cabia ao povo ou a Igreja
fazer tais avaliações.2
O absolutismo monárquico
O caráter do Cristianismo europeu foi profundamente afetado pelos
governantes de seu tempo. O absolutismo monárquico surgiu no início do
século 17 na França, chegou ao seu ápice durante o reinado de Luís XIV,
que durou até 1715 e foi imitado pela maioria dos soberanos do
continente. A estratégia dos primeiros arquitetos do absolutismo era dar
um fim às incessantes lutas que haviam rasgado a França durante as
Guerras Religiosas ao sustentar o ideal de unidade nacional como sendo
superior à unidade religiosa e o monarca como a única pessoa ao redor da
qual o país poderia se reunir.
Assim, conforme foi mencionado anteriormente, o Huguenote
Henrique IV, que subiu ao trono em 1589, converteu-se formalmente ao
Catolicismo pois essa era a fé da grande maioria de seus súditos. Mas em
seguida ele deu liberdade religiosa e política para seus antigos
correligionários com o Édito de Nantes. Ele era um “politique”, ou seja,
ele via o Estado e a continuação de sua existência como sendo da maior
importância e a questão religiosa simplesmente teve que ficar em
segundo plano em relação às preocupações políticas seculares do Estado.
Como resultado, o terrível conflito entre protestantes e católicos
franceses arrefeceu.
O cardeal Richelieu, cuja posição na Igreja foi resultado de
influência política e cujas preocupações eram em sua grande maioria
seculares, emergiu na metade da década de 1620 como ministro do
sucessor de Henrique, Luís XIII e levou o processo ainda mais adiante.
Como governante virtual da França, em nome do rei ele reduziu o poder
da nobreza ao proibir o envolvimento em duelos e guerras particulares e
a fortificação de suas residências (castelos). Ele também tirou dos
huguenotes o direito de usar armas em defesa própria depois de reprimir
brutalmente sua rebelião em La Rochelle em 1628. Para diminuir a
influência da nobreza, Richelieu deu início à prática de nomear oficiais
para as províncias, os chamados intendentes que pertenciam à classe
média e respondiam ao governo real.
Depois da morte de Luís e Richelieu, outro líder eclesiástico
político, o cardeal Jules Mazarin, tornou-se primeiro ministro. Os nobres
apelaram para as armas em Fronde (1648-53) a fim de reconquistar sua
posição de proeminência e Luís XIV, que tornou-se rei em 1643 aos
cinco anos de idade, sujeitou-se à regência durante esse período
desagradável, determinado a nunca mais tolerar tal situação.
Em 1661 Mazarin faleceu e Luís obteve a maioridade. Pôs-se então
a identificar-se totalmente com o Estado francês (seu famoso lema era
“L'Etat cest moi" [Eu sou o Estado]) e implantar um governo absoluto.
Ele escolhia intendentes e outros oficiais que eram fiéis a ele, dirigia
grande parte das operações de governo através de concílios que
reportavam-se pessoalmente a ele e tomava todas as decisões
importantes. Legislava através de decretos que eram devidamente
registrados pelas principais cortes da lei e até mesmo prendia pessoas por
ordem real sem julgamento.
O talentoso ministro das finanças de Luís, Jean Baptiste Colbert
(1619-83) dirigia o comércio, a indústria, a agricultura e as finanças. Ele
também administrava as colônias através do sistema de mercantilismo,
um conceito de nacionalismo econômico que envolvia uma cuidadosa
regulamentação governamental. Sob sua liderança competente as rendas
do governo triplicaram mas as guerras de Luís tornavam impossível um
orçamento equilibrado. Os dois também incentivavam a literatura, as
ciências e as artes e fundaram academias que levaram a expressão na
língua francesa ao ápice de perfeição. O francês tomou o lugar do latim
como língua do povo educado e culto da Europa. O emblema de Luís era
o Sol, o centro do universo e seus súditos referiam-se a ele como o “Rei
Sol” enquanto outros na Europa o chamavam de “Grande Monarca”.
Ele apreciou a caracterização do bispo Bossuet na qual o rei era
escolhido por Deus para governar e só respondia diretamente a ele.
Como ele era o agente de Deus na Terra, o povo era obrigado a se
submeter a ele sem questionamentos. Para garantir que a nobreza não
seria mais uma fonte de resistência, Luís construiu um enorme complexo
com um palácio e um parque em Versalhes, próximo a Paris. Foi o
projeto arquitetônico mais magnífico do século e milhares de nobres
viviam nos suntuosos cômodos e eram atendidos por quatro mil
empregados. Tendo em vista que gostavam de cerimônias e ostentação, a
vida da corte girava em torno do elaborado calendário social sendo o rei
Sol o centro de todas as atividades. Os nobres passavam a vida no ócio
— participando de cerimônias reais, recepções, jogos, caça; indo a
concertos, peças e bailes ou entregando-se à licenciosidade e fofocando
sobre os outros. Lisonja e hipocrisia eram as chaves para o sucesso na
corte e as pessoas mais sensíveis eram desmoralizadas. Versalhes
praticamente marcou a ruína da aristocracia francesa como classe social
e, apesar dos nobres terem passado por um ressurgimento depois da
morte de Luís, estavam num caminho que levaria ao declínio e teria
como destino a grande revolução um século mais tarde.
Em sua determinação de centralizar o controle, Luís decidiu
abandonar a tolerância aos não-católicos. Os huguenotes, com seus
direitos especiais, pareciam mais um Estado à parte dentro da França e os
católicos pediam ao rei uma restauração da unidade religiosa no país.
Mesmo que no período pós-Reforma o poder nas relações entre Igreja e
Estado tivesse, sem dúvida, mudado para o lado do Estado, ainda assim
persistia a idéia de que os dois eram inseparáveis e Luís via a existência
dos huguenotes como uma ameaça tanto para seu governo como para a fé
católica romana. Assim, a partir de 1679 foi tirando aos poucos os seus
privilégios. Fechou igrejas e escolas e colocou soldados para viver em
suas casas. Esta última ordem tornava a vida tão desagradável que alguns
chegaram a converter-se ao Catolicismo para escapar dela.
Finalmente, em 22 de outubro de 1685, uma ordem real revogou o
Édito de Nantes. Ela exigia que todos os pastores reformados saíssem do
país e que igrejas fossem destruídas. As escolas huguenotes não eram
mais permitidas, as crianças deviam ser mandadas para a missa
regularmente e qualquer um que nascesse numa família da “falsa
religião” deveria ser batizado novamente. Não seria permitida nenhuma
outra prática religiosa formal fora da Igreja Católica Romana, mas os
adultos ainda poderiam gozar de “liberdade de consciência”. Ao
contrário do clero, os leigos foram proibidos de imigrar pois suas
aptidões eram necessárias para fortalecer a economia nacional. Aqueles
que fossem pegos tentando fugir teriam suas propriedades confiscadas e
seriam sentenciados às galés.
O resultado foi uma grande resistência. Muitos dos reformados
continuaram adorando em silêncio ou fazendo cultos clandestinos em
casas ou nas florestas. Os pastores que não partiram foram caçados e, na
maioria das vezes, enforcados. Crianças huguenotes foram arrancadas de
seu lar e entregues a pais católicos. Apesar da perseguição, uma igreja
subterrânea começou a crescer. Místicos apocalípticos do sul da França
conhecidos como camisards revoltaram-se em 1710. Eles foram
inspirados pelos escritos do conhecido teólogo reformador Pierre Jurieu
(1637-1713), um defensor da liberdade plena de consciência e do uso de
armas para combater aqueles que recorriam à violência para negar a
liberdade religiosa. Apesar da oposição oficial, Antoine Court (1696-
1760) reuniu o que restou dos franceses reformados no primeiro sínodo
provincial em 1715. Não tardou para que uma escola de treinamento de
ministros fosse fundada na Suíça e a disciplina e ordem voltassem nas
congregações dispersadas. Com o surgimento do Iluminismo, as pressões
diminuíram rapidamente, os huguenotes recuperaram direitos civis
limitados e durante a Revolução Francesa e era napoleônica a total
liberdade religiosa foi concedida.
Porém, cerca de duzentos mil franceses partiram depois que o Édito
foi revogado em 1685, sendo a maioria deles artesãos competentes ou
soldados e marinheiros experientes. Os refugiados foram cordialmente
recebidos em terras protestantes como a Holanda, Prússia, Inglaterra e
nas colônias da África do Sul e América do Norte e contribuíram
imensuravelmente para a vida econômica e cultural de seus novos países
de residência. A França perdeu apenas um por cento de sua população
nessa imigração ilegal, mas estes estavam entre os cidadãos mais
produtivos, o que danificou a estrutura social e econômica do país. Os
gastos exagerados de Versalhes, os maus tratos aos huguenotes e a
ambição insaciável de Luís por poder nacional fazendo com que a França
se envolvesse numa sucessão de guerras (incluindo o primeiro conflito
realmente global) desfizeram muito daquilo que tinha sido realizado no
absolutismo francês.
Absolutismo alemão
Os métodos de Luís XIV foram imitados em outras partes da
Europa, especialmente na colcha de retalhos composta de vários estados
que formava a Alemanha pós-Westphalia. Imitações de Versalhes
surgiram em lugares como Potsdam, Dresden, Munique, Hanover e
Ludwigsburg (próximo a Sttutgart).
Os príncipes alemães estabeleceram o serviço público, introduziram
o mercantilismo e sistemas eficientes de coleta de impostos, criaram
exércitos permanentes, mantiveram a Igreja sob controle e, na corte,
adotaram os modos, estilos e até a língua da França. A principal
diferença nesse caso era que a nobreza estava incorporada no sistema e
tinha recebido cargos proeminentes no serviço público. Em troca da
submissão à autoridade absoluta do rei ou príncipe e fidelidade em seu
serviço, eles tinham liberdade administrativa sobre suas propriedades.
Assim, a posição social da classe média e dos camponeses deteriorou-se
na era de absolutismo alemão.
A aplicação mais bem-sucedida dos métodos absolutistas foi feita
pela família Hohenzollern em Brandenburg-Prússia. O eleitor de
Brandenburg, Frederico Guilherme, herdou em 1640 uma série de
territórios arenosos espalhados pelo norte da Alemanha e indo do Reno
até a Polônia. Conseguiu formar um exército tendo como base a pequena
nobreza (classe dos Junkers) que era eficiente e completamente leal a ele
e foi capaz de aumentar admiravelmente a base territorial e a força
econômica de seu Estado.
A atitude de Guilherme em relação à religião foi particularmente
importante. Apesar do Calvinismo, ele reconheceu que muitos de seus
súditos no oeste da Alemanha eram católicos e os de Brandenburg e do
leste da Prússia eram luteranos. Tendo em vista que ele estava
procurando infundir a unidade em seus domínios ao mudar de lugar
oficiais e soldados, ele entendeu que qualquer iniciativa no sentido de
impor a uniformidade confessional iria enfraquecer seus esforços pela
unidade. Frederico Guilherme seguiu o exemplo de Georg Calixtus
(1586-1659), um professor da Universidade de Helmstedt que havia
desenvolvida uma teoria chamada de “sincretismo”. A doutrina tinha
sido criada para trazer a reconciliação entre luteranos, calvinistas e
católicos tendo como base as Escrituras, o Credo dos Apóstolos e a fé
aceita durante os cinco primeiros séculos da Igreja. Assim, o “Grande
Eleitor” adotou uma política de tolerância forçada sobre seus súditos,
quer o clero gostasse ou não. Isso também explica porque foi tão fácil
integrar milhares de refugiados huguenotes no país em 1685, sendo que
eles enriqueceram grandemente a economia.
Seu filho, Frederico I (1688-1713) adquiriu o título de rei da
Prússia e fundou uma nova universidade em Halle que estava para tornar-
se o principal centro do Pietismo alemão. Seu neto, Frederico Guilherme
I (1713-40) fez de seu exército o quarto maior da Europa, mesmo que a
Prússia só ocupasse o décimo segundo lugar em população. Aperfeiçoou
a idéia de limitar os grupos de oficiais à pequena nobreza proprietária de
terras, desenvolveu um esquema para alistar soldados dentre os
camponeses e fundou, assim, o militarismo prussiano. Um governante
profundamente devoto, ele detestava a preguiça e frivolidade e chegou a
fechar teatros pois os considerava “templos de Satanás”. Assim como
seus predecessores, porém, ele não tinha intenção de impor a hegemonia
confessional em seus domínios. Para ele, as igrejas não eram apenas
lugares onde se pregava o evangelho, mas também instituições públicas
de utilidade que podiam inculcar valores como integridade, lealdade,
submissão e obediência. No seu reino também foi fundado o primeiro
programa de escola primária sustentado pelo Estado. As matérias
ensinadas eram Religião, Leitura, Escrita e Aritmética.
Na verdade, Frederico Guilherme I era um disciplinador tão severo
e cruel, tão ávaro e sem profundidade espiritual que quando seu filho
Frederico II (1740-86), conhecido como Frederico o Grande, assumiu o
poder, rejeitou a religião do pai e manteve o menor contato possível com
a Igreja. Ao mesmo tempo, ele usou o poderoso exército passado a ele
em duas grandes guerras que transformaram a Prússia numa grande
potência e prepararam a cena para a manifestação posterior do
nacionalismo alemão. Quanto à igreja na Prússia, ao contrário da França,
ela claramente não ganhou nada com o absolutismo monárquico e como a
religião era usada para apoiar a posição social, sua vitalidade dissipou-se.
Em lugar algum isso ficou mais evidente do que na Rússia.
Puritanismo inglês
As idéias calvinistas haviam criado raízes profundas na Grã-
Bretanha. O presbiterianismo escocês era uma fé cheia de vigor e líderes
como Andrew Melville (1545-1622) desafiaram os reis Stuart a
abandonar sua aliança com o sistema episcopal. No século 17 o
presbiterianismo havia se tornado, para todos os efeitos, a igreja nacional
da Escócia e teve imensa contribuição na formação do caráter desse povo
robusto do norte. Pelo fato de terem unido-se em alianças em 1638 e
1643 para resistir à imposição do governo e liturgia da igreja episcopal,
eles foram chamados de “cristãos da aliança”. Importantes teólogos como
George Gillespie (1613-49) e Samuel Rutherford (1600-61) rejeitaram o
exercício da autoridade real sobre as questões da Igreja.
Dentro da Igreja da Inglaterra também havia um forte elemento
reformado e seus representantes ficaram cada vez mais insatisfeitos com
as concessões do Acordo Elizabetano. Eles desejavam “purificar” a
igreja livrando-se dos “papistas” que ainda restavam e sua luta assumiu
cada vez mais um caráter político. Conforme foi mencionado
anteriormente, esses “puritanos” estavam intimamente envolvidos nos
conflitos entre os Stuarts e o Parlamento que acabaram levando à guerra
civil e ao regime ditatorial militar de Cromwell.
Em resumo, os puritanos queriam excluir do culto anglicano
qualquer coisa que não fosse ordenada pelas Escrituras. Eles enfatizavam
a importância da conversão, que significava uma transformação
fundamental de todo o ser e das atitudes e a expectativa de que o crente
viveria de forma reta e disciplinada. Os puritanos também acreditavam
que todo o trabalho estava dentro da esfera do Cristianismo e que
pastores e sacerdotes não deveriam ser colocados em posição superior
aos membros. Seu objetivo era que a Igreja da Inglaterra tivesse um
pastor em cada paróquia que proclamaria fielmente a Palavra de Deus,
administraria corretamente os sacramentos e disciplinaria os membros
imorais da igreja. A aplicação da doutrina protestante à vida do crente era
tarefa da Igreja e aqueles que não alcançassem os altos padrões de fé e
obediência à lei de Deus deviam ser excluídos da Igreja. Apesar de
muitos terem condenado e ridicularizado o estilo de vida que era a marca
distintiva do puritanismo, para indivíduos do século 17 tratava-se de uma
experiência gratificante. Estava ligada à alegria que encontravam na
adoração e numa vida a serviço de Deus. Os puritanos foram uma força
profundamente disruptiva na Igreja da Inglaterra que, sob o governo de
Elizabeth I havia sido constituída como uma hierarquia centralizada sob
o controle de bispos e uma instituição inclusiva. Os puritanos, por outro
lado, defendiam a idéia de igreja “reunida”, composta somente de fiéis
que estavam em aliança com Deus e uns com os outros. O puritanismo —
que havia começado como um movimento de reforma girando em torno
das formas de adoração, pregação bíblica e conversão — passou a
enfatizar cada vez mais a “independência” (liberdade do controle
episcopal) e a forma congregacional de governo dentro da Igreja.
No final do século 16 alguns puritanos estavam convencidos de que
a única maneira de completar a Reforma era separando-se da Igreja
Anglicana.
1647 1675 1698
É adotada a Confissão de Fé de Philipp Jacob Spener August Hermann
Westminster publica Pia Desideria Francke abre o
primeiro orfanato
em Halle
1600 1625 1650 1650 1675 1708 1722
Thomas Helwys Cornelius John John Joachin Alexander Mack N.L. von
estabelece a Jansen Owen Bunyan Neander funda a Igreja Zinzerdorf
primeira Igreja dos Irmãos funda a
Batista comunidade
Herrnhut
1600 1700 1800
1629 1650 1670 1681
Começa a John Pascal William Penn funda a
colonização Milton publica Pennsylvania
puritana em Pensées
Massachussets
1642-1649
Guerra Civil
Inglesa
Os irmãos e os morávios
O Pietismo foi um movimento de reforma dentro das igrejas oficiais
ou territoriais da Alemanha, mas dois importantes ramos separatistas
surgiram dele, a Igreja dos Irmãos e a Igreja Morávia, como são
conhecidos hoje em dia na América do Norte. Os Irmãos começaram em
1708 em Schwarzenau em Hesse, onde Alexander Mack (1679-1735)
batizou oito pessoas num rio da região. Mack havia sido influenciado
pelo Pietismo radical, especialmente aquele de Ernst Christoph
Hochmann von Hohenau (1670-1721) que tinha se convertido quando
era aluno em Halle. Era um forte místico que via a Igreja como sendo
primeiramente de caráter espiritual e minimizava a importância das
estruturas. Ao contrário de outros pietistas luteranos, Hochmann era um
separatista. Ele viajou pela Alemanha pregando o reavivamento e muitas
vezes sofreu perseguição e confinamento.
Como seu amigo, Mack havia concluído que o Novo Testamento
fazia necessário um grupo separado de crentes que não pertencessem à
Igreja do Estado. Ele assentou-se numa das poucas áreas da Alemanha
em que era permitido aos dissidentes religiosos praticar suas crenças, o
condado de Wittgenstein. O governante local havia adotado a política de
tolerância, em parte por causa de suas convicções pessoais mas
principalmente porque precisava de colonos. Os primeiros Irmãos
decidiram restaurar aquelas práticas que consideravam apostólicas. Estas
incluíam o batismo trino (ou triplo) por imersão (com o rosto colocado
primeiro na água para cada Pessoa da Trindade), o banquete de amor
(que consistia de uma refeição comunal, lava-pés e Ceia do Senhor), a
unção dos enfermos com óleo, a imposição de mãos para o serviço
cristão, o governo congregacional da igreja e oposição à guerra, aos
juramentos e ao uso de roupas enfeitadas ou “mundanas”.
O longo braço da intolerância do Sacro Império Romano acabou
alcançando aquela pequena região e os irmãos foram perseguidos,
mesmo que seus pregadores itinerantes estivessem fundando outras
igrejas em várias partes do oeste da Alemanha e da Suíça. Com a piora na
situação da Europa, eles consideraram a possibilidade de emigrar para a
América. William Penn havia incentivado os sectários a irem para sua
colônia e seus agentes distribuíam literatura na Alemanha apresentando-a
como um lugar atraente de se viver. Em 1719 o primeiro grupo de Irmãos
foi morar em Germantown, nas cercanias da Filadélfia e em 1729 o
próprio Mack liderou um grupo na travessia do Atlântico. Em 1735
quase todos os Irmãos haviam se mudado para o Novo Mundo. Aqueles
que ficaram para trás juntaram-se aos menonitas ou desapareceram. Os
imigrantes espalharam-se pela fronteira da Pensilvânia e com seu estilo
de vida distintivo os Irmãos — também conhecidos como Dunkards,
Dunkers ou Tunkers (do alemão “dunk” que significa “imergir”) —
tornaram-se uma parte permanente da vida religiosa americana.
Os morávios, liderados pelo conde Nikolaus Ludwig Zinzerdorf
(1700-60) foram uma outra seita de pietistas radicais. O conde havia
nascido em uma família nobre muito devota. Spener era seu padrinho e a
avó que o criou sabia ler a Bíblia nas línguas originais e entrava em
profundas discussões teológicas. O jovem aristocrata passou seis anos na
escola preparatória de Franke em Halle. Então, estudou Direito na
Universidade de Wittenberg (ele queria ter entrado para o ministério mas
sua família não permitiu) e depois da formatura em 1721, tornou-se um
oficial na corte do rei da Saxônia. Foi por essa época que recebeu uma
herança, a qual usou para comprar uma propriedade em Berthelsdorf,
menos de oitenta quilômetros de Dresden. Frustrado por não ter se
tornado um ministro, o jovem devoto sentiu que poderia servir a Deus ao
orientar a vida espiritual dos inquilinos que ocupavam suas terras.
Pouco tempo depois um grupo de refugiados protestantes cruzou a
fronteira que ficava ali perto e, a convite de Zinzerdorf, assentou-se em
sua propriedade. Eles eram remanescentes da antiga igreja morávia ou
hussita (conhecida como Unitas Fratrem ou Brüder-Unität) que haviam
sido expulsos de seus lares pela perseguição dos Habsburgos. Sob sua
liderança eles fundaram uma vila chamada Herrnhut (protegida pelo
Senhor), adotaram um estilo de vida comunitário modificado e
introduziram práticas que consideravam apostólicas como o rito de lavar
os pés, o ósculo da paz e o lançar a sorte para determinar a vontade de
Deus. Sua vida religiosa comunal incluía cultos diários, divisão em
grupos “corais” (baseados em idade, estado civil e gênero), educação
religiosa e um programa ativo de missões estrangeiras. Passavam a vida
diária em ocupações comuns e também dedicavam-se à música vocal e
instrumental. Aqueles que não eram casados eram separados por sexo,
mas as famílias viviam juntas e as crianças eram educadas em
organizações semelhantes a creches.
Em 1727 Zinzerdorf deixou o cargo que ocupava no governo para
dedicar-se à colônia em tempo integral. À medida em que seus
pensamentos teológicos amadureceram, ele foi gradativamente
afastando-se dos pietistas de Halle. Enfatizava a “religião do coração” —
uma experiência de fé profunda e mística — bem como a comunidade
cristã, o evangelismo mundial e a formação de relações ecumênicas.
Apesar de ter continuado a ser luterano, demonstrou uma tolerância
excepcional em relação a outros credos e chegou a traçar um plano para
unir as igrejas protestante, católica romana e ortodoxa oriental. Também
foi criticado por ter algumas crenças místicas consideradas extremas até
mesmo pelos pietistas. Em 1737 recebeu a ordenação luterana, mas, antes
disso, diversas circunstância forçaram Zinzerdorf e seus morávios a
formar uma organização eclesiástica separada. Durante onze anos ele
chegou a ser exilado de Herrnhut. Passou os últimos anos de sua vida
fazendo muitas viagens e dedicando-se à obra pastoral e missionária e
aos escritos.
Zinzerdorf havia criado uma igreja exemplar — ecumênica, livre,
missionária e voltada para o serviço — que se baseava na experiência em
comum da salvação, no amor mútuo e na ênfase de uma expressão
religiosa profunda e emocional. Esta última foi ilustrada especialmente
em seus hinos, orações, poesias e “lemas” ou Losungen. Até hoje muitas
pessoas em várias comunidades cristãs usam seleções de lemas diários
morávios como um exercício devocional.
A literatura pietista
Os hinos pietistas e a literatura devocional tinham muito em comum
com o material produzido pelos ortodoxos. Uma grande influência foi o
escritor de hinos Joachim Neander (1650-80), um professor e pastor na
Igreja Reformada. Em 1674 ele começou a usar a idéia de Spener de
pequenos grupos que se encontravam para cultos na Escola Reformada
de Gramática em Düsseldorf e foi demitido por fazê-lo. Tornou-se então
pastor em Bremen. Em sua curta vida, escreveu mais de sessenta hinos,
incluindo o tão querido Lobe den Herren [Louvai a Deus].2 Mais
importante porém foi o fato de ele ser o primeiro músico reformado a
romper com a prática do Calvinismo de usar somente salmos métricos em
seus cultos. Nessa época, até mesmo hinos luteranos eram proibidos na
Igreja Reformada. Os calvinistas achavam que eles eram composições
humanas e que Deus só podia ser adorado corretamente através de hinos
divinamente inspirados, a saber, os Salmos.
Gerhard Tersteegen (1697-1769) foi outro pietista Reformado
importante. Ele havia sido aprendiz de um comerciante em
Mülheim/Ruhr e foi convertido em 1716. Apesar de suas origens serem
da Igreja Reformada, ele tornou-se cada vez mais um místico desligado
dessa igreja. Durante alguns anos ele trabalhou no ofício solitário de
2
Novo Cântico (Editora Cultura Cristã, 1991) nº 16.
fazer fitas de tecido e passava seu tempo livre como conselheiro
espiritual — escrevendo cartas, visitando pessoas e, às vezes, falando em
público. Mais tarde tornou-se tutor e assistente social na área médica mas
nunca se casou nem entrou para o ministério. Fortemente influenciado
pelo Quietismo, Tersteegen foi um dos místicos protestantes mais
profundos, como se pode ver em seus cem hinos.
Um importante escritor de hinos luterano foi o genro de Franke,
Johann A. Freylinghausen (1670-1739). Apesar de ser professor de
Teologia e Homilética e de estar envolvido com a administração da
fundação, ele também era conhecido pela obra Geistreiches Gesangbuch,
a mais importante coleção de hinos pietistas. A primeira edição foi
lançada em 1704 com 683 hinos. A edição de 1741 foi expandida para
1.582 hinos, dos quais ele havia composto quarenta e quatro. Estes
caracterizavam-se pela profundidade de sentimento e pela clara
compreensão das Escrituras.
Alguns dos primeiros hinos pietistas foram produzidos pelos grupos
de Württemberg, sendo Phillip Friedrich Hiller (1699-1769) o mais
notável autor. Aluno de Bengel e pastor, ele escreveu 1.073 hinos de
qualidade variável, que foram publicados no Geistliches Liederkästlein
(1762-67). O líder morávio Zinzerdorf também compôs mais de dois mil
hinos, alguns dos quais podem ser encontrados em hinários modernos
(Jesus, Teu Sangue e Retidão).
A obra devocional ortodoxa encontrou grande aceitação entre os
pietistas. O Verdadeiro Cristianismo de Arndt e outros escritos eram
bastante populares. Sermões de Spener e Franke foram publicados e
distribuídos em larga escala. A coleção devocional de Johann Friedrich
Starck (1680-1756), um pastor de Frankfurt am Main, Manual Diário do
Bem e do Mal (1727-31) ainda é usada nos dias de hoje. Em 1730 o
primeiro jornal devocional alemão, Notícias Espirituais, foi publicado
em Berleburg e entre 1726 e 1742 foram produzidos os setes volumes da
Bíblia de Berleburg. Tratava-se de uma tradução original acompanhada
de um comentário e uma exposição do texto nas linhas do Pietismo
radical. Tersteegen também escreveu muito material devocional,
incluindo a obra altamente mística Biografias Selecionadas dos Santos.
A Ciência Medieval
A visão medieval de Ciência era uma síntese das idéias da Grécia
antiga com a teologia cristã. Os escolásticos ficaram profundamente
impressionados com a obra de Aristóteles pois esta explicava a natureza
de forma ordenada. Seguindo o grande pensador grego, eles acreditavam
que toda criatura, de acordo com seu grau de perfeição, tinha um lugar
determinado no universo. Uma “grande corrente de seres” vinha
descendo de Deus, passando pelos anjos, pelas estrelas, planetas, Sol e
Lua fisicamente perfeitos para os quatro elementos deste mundo — terra,
água, ar e fogo. Nesse sistema a Terra encontrava-se parada no centro de
nove esferas vazias que giravam em torno dela diariamente. Mais tarde
chamada por estudiosos de explicação “geocêntrica” do universo, a visão
medieval era de que sete “esferas” misteriosas, transparentes como cristal
rodeavam a Terra, sendo que cada uma continha um corpo celeste,
ordenados da seguinte forma pela ordem de distância — a Lua, Mercúrio,
Vênus, o Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Uma oitava esfera continha as
estrelas fixas e um anel externo chamado de “primeiro movedor” (em
latim, Primum mobile) que fazia todas as esferas se moverem ao redor da
Terra de modo preciso e regular a cada 24 horas.
Ao contrário do conceito moderno de universo, a distância dentro
desse sistema não era vasta e infinita. Um escritor medieval afirmou que
se uma pessoa pudesse viajar sessenta quilômetros por dia, chegaria à
esfera das estrelas fixas em oito mil anos. Apesar de Deus ser a fonte de
todo o poder e movimento, ainda assim, de acordo com a astrologia
popular, acreditava-se que as esferas podiam influenciar os
acontecimentos na Terra. Saturno, por exemplo, fazias as pessoas ficarem
tristes e causava desastres, Marte produzia guerras, Vênus encorajava o
amor e Júpiter trazia prosperidade. O Sol iluminava a Terra
constantemente e a noite era a sombra em forma de cone feita pela Terra.
Pelo fato do Sol se mover enquanto a Terra permanecia parada, pensava-
se que a noite era um longo dedo escuro que girava como os ponteiros de
um relógio. O espaço não era escuro nem silencioso e quando as pessoas
olhavam para o céu à noite, viam através da escuridão e não a escuridão
em si. A maior parte dos estudiosos do final da Idade Média tinha
chegado à conclusão de que a Terra não era plana, mas sim um globo,
mas supunha-se que havia criaturas estranhas em outras regiões pois o
contato com lugares fora da Europa era muito limitado.
A idéia medieval era muito diferente da cosmologia do século 20,
mas parecia encaixar-se nos fenômenos observados. Qualquer um podia
ver claramente o movimento dos corpos celestes traçando um caminho
circular ao redor da Terra. Além disso, o mundo parecia estar parado no
meio de todo esse movimento. Os cristãos transpuseram sua teologia para
dentro da Ciência e o maior de todos os poemas medievais, A Divina
Comédia, de Dante, descrevia o universo em termos geocêntricos,
colocando o céu acima da Terra e o inferno abaixo, no hemisfério sul. No
centro desse sistema estava a Terra, lar da humanidade, o ápice da
criação de Deus. Aqui foi o lugar para onde Cristo veio sofrer e morrer
pela redenção humana. Além disso, a estrutura hierárquica do universo
assegurava às pessoas que Deus estava no controle. A teoria geocêntrica
encontrou bases na ordem de Josué para que o Sol não se movesse (Josué
10.12,13), em Eclesiastes 1.5 e em várias declarações em Salmos.
1500 1600 1700 1800
1543 1550 1600 1650 1687 1735 1750 1778
Revolução Tycho Johann John Locke Isaac Voltaire fala em Benjamin Fundação
das Esferas Brahe Kepler Newton favor da liberdade Franklin dos
Celestes, publica de religião Iluminati
de Principia
Copérnico
1632 1740 1780 1781
O Diálogo sobre os Dois Sistemas Frederico II (o Grande) Joseph II, Kant e a
Principais do Mundo assume o poder na rei da Crítica da
Prússia Áustria Razão
Pura
O Iluminismo
A nova visão científica do mundo no século 17 caracterizava-se
pela certeza da habilidade da Razão e da experiência humanas de
resolver todos os problemas. Impressionados com as realizações dos
cientistas naturais ao descobrir as leis do universo físico, os homens do
esclarecido século 18 acreditavam que podiam encontrar leis que
governavam a sociedade e o comportamento humano. Ao tentar colocar
isso em prática, de seu método do uso da Matemática eles passaram para
uma abordagem mais literária.
O novo movimento de transformações sociais teve como centro a
França, onde havia um grupo de escritores radicais chamados de
philosophes ou filósofos. É preferível usar o termo francês para fazer
referência a esses indivíduos pois eles não dedicavam-se à especulação
filosófica em si, mas sim eram propagandistas e popularizadores. Não
estavam tão interessados em expandir as fronteiras do conhecimento
como estavam em reconstruir a sociedade de acordo com leis naturais e
com a Razão. Para isso, os philosophes escreviam peças, histórias,
romances, tratados políticos, obras de crítica literária e estudos
científicos. Tendo como alvo um público mais amplo, usavam a
linguagem popular ao invés do latim e desenvolveram um estilo
interessante e claro de se escrever. Muitos deles ganhavam o suficiente
com a venda de seus livros para viver confortavelmente, enquanto outros
tinham meios próprios ou eram sustentados por patronos abastados.
Começando na França, o Iluminismo espalhou-se para outras partes
da Europa — Alemanha, Áustria, Rússia, Grã-Bretanha, Itália e Espanha
— e até mesmo para as colônias na América, onde indivíduos
influenciados pelos philosophes foram os principais líderes da
Revolução. O porta-voz mais famoso do novo movimento social foi
François-Marie Arouet (1694-1778), que usava o nome de Voltaire.
Nascido numa família de classe média e educado numa escola jesuíta,
estudou Direito durante algum tempo mas depois abandonou esse projeto
para seguir uma carreira literária. Formou sua reputação como escritor de
tragédias clássicas e ao longo de toda sua vida escreveu para o teatro.
Voltaire foi um dos primeiros autores de best-sellers. Durante um
período de sete anos foram vendidas um milhão e meio de cópias dos
seus livros. Ele escreveu sua primeira obra aos 17 anos de idade e,
quando de sua morte, seus escritos publicados tomavam mais de setenta
volumes.
Quando jovem, Voltaire ficou preso na infame Bastilha, em Paris
por insultar um nobre e foi forçado ao exílio na Inglaterra. Ele gostou da
liberdade que tinha lá e entusiasmou-se com as idéias de Newton e John
Locke. Dedicou-se à tarefa de esclarecer sua terra natal bem como o resto
do mundo ao aplicar seus ensinamentos às antigas sociedades
aristotélicas. Ao voltar para França, publicou Cartas Filosóficas sobre os
Ingleses (1734), obra na qual ele comparava a liberdade de expressão e
religião, igualdade perante a lei e impostos iguais — que ele acreditava
existirem na Inglaterra — com as injustiças e desigualdades da França. O
governo obrigou-o a fugir de sua terra natal mais uma vez e dessa vez ele
foi morar logo depois da fronteira, na Suíça. Apesar de sua amizade com
aristocratas, príncipes e reis, ele nunca abandonou a crença na justiça
social para todas as pessoas, que se baseava no princípio da liberdade
pessoal, igualdade legal e liberdade de pensamento e expressão.
Outro filósofo importante, Denis Diderot (1713-84), divulgou a
nova abordagem científica através de uma extensa obra conhecida como
Encyclopédie. A série de vinte e oito volumes foi escrita durante um
período de dois anos (1751-52) e sete volumes complementares foram
elaborados alguns anos depois. Entre os contribuidores estavam quase
todas as principais figuras do Iluminismo francês. Mais do que uma
simples coleção de fatos, os artigos explicavam que as pessoas só podiam
se desenvolver se substituíssem a fé pela Razão como princípio
norteador. Tendo em vista que suas idéias eram uma ameaça contra a
autoridade vigente, os primeiros volumes sofreram repressão. Porém,
quando foi lançado o último livro da série, a Encyclopédie tinha vencido
a intolerância e podia ser distribuída livremente. Uma característica
singular da obra prima de Diderot foi a inclusão de três mil páginas de
ilustrações que eram especialmente úteis para médicos, cientistas e
artesãos. Os contribuidores criticavam constantemente as idéias e
instituições existentes. O artigo sobre a deusa Juno, por exemplo,
ridicularizava a adoração à Virgem Maria; o item sobre sal demonstrava
a injustiça dos impostos regressivos sobre os pobres e um outro artigo,
este sobre a cidade suíça de Genebra, condenava o governo da França.
Deísmo
A cumplicidade da Igreja Católica Romana nas injustiças sociais da
época levou a maioria dos philosophes a adotar uma nova perspectiva
religiosa conhecida como “deísmo”. Expressada pela primeira vez por
um grupo de escritores ingleses começando com Lord Herbert de
Cherbury na primeira metade do século 17, essa visão rejeitava a crença
na revelação especial. Esta última havia, supostamente, corrompido a
pureza da religião natural ao introduzir conflitos e superstição no lugar
de acordos e da verdade. Lord Herbert declarou que as seguintes idéias
eram comuns a todas as religiões: (1) a existência de um Ser Supremo,
(2) a necessidade ou obrigação de adorar a esse Deus, (3) a importância
da virtude e da devoção como parte da adoração, (4) a necessidade de
arrependimento dos pecados e (5) a recompensa ou castigo divinos tanto
na vida presente quanto na futura. Aqueles que se baseiam na Razão
reconhecem a validade desses pontos. Esses eram os ensinamentos da
verdadeira Igreja que existia antes do povo ser iludido pelos sacerdotes e
profetas das várias religiões. Os ritos e doutrinas da religião institucional
foram a origem das perseguições mais terríveis da História. O deísmo
também negava qualquer intervenção direta de Deus sobre a ordem
natural. Sua função era de “primeira causa”, o relojoeiro que havia criado
o mundo para funcionar como um relógio. Então ele deu corda na sua
criação e de acordo com seu plano ela agora funciona tranqüilamente
sem a necessidade de mais envolvimento divino.
As idéias de Lord Herbert encontraram na Europa do século 18 um
ambiente propício para se desenvolver pois a expansão geográfica havia
ampliado o conhecimento sobre outras fés. Durante a Idade Média, o
Cristianismo parecia ser o centro da História, mas quando os navegantes,
comerciantes e missionários voltaram para a Europa com histórias sobre
milhões de pessoas na China, Índia e em outras partes que jamais tinham
ouvido falar de Cristo, alguns começaram a duvidar sobre as afirmações
de exclusividade do Cristianismo. A adoração ao “Deus da natureza” e o
uso da “teologia natural” (conhecimento do divino que não é derivado de
uma revelação como, por exemplo, as Escrituras) pareciam oferecer uma
solução para o problema.
A história natural havia tido uma longa e respeitável história dentro
da Igreja, mas algo aconteceu com ela por causa da revolução científica.
A revolução havia desenvolvido uma visão mecânica e matemática do
universo dentro da qual as abstrações dos matemáticos eram cada vez
mais consideradas verdade enquanto a cosmovisão da Bíblia ia perdendo
sua credibilidade. Quando comparados com a regularidade mecânica da
nova ciência, os milagres relatados na Bíblia pareciam fantásticos e
irracionais. O tempo e o espaço haviam se expandido para dimensões tão
vastas que o relato cristão da criação até o julgamento, concentrado numa
pequena entidade no universo, parecia pequeno e irrelevante. O deísmo
oferecia uma forma de ser religioso e ao mesmo tempo estar em sintonia
com a nova perspectiva científica.
Durante a primeira metade do século 18, deístas e teólogos
ortodoxos da Inglaterra discutiram os milagres e as profecias sobre Cristo
encontradas no Antigo Testamento. Alguns deístas como o Terceiro
Conde de Shaftesbury, declaravam que todas as descrições de Deus que
retratavam seus ciúmes e índole vingativa eram blasfêmias e que Ele era
um Ser gentil, amoroso e benevolente que desejava que a humanidade
também se comportasse com bondade e tolerância. Mas os deístas saíram
perdendo na luta contra os defensores do Cristianismo que
demonstravam uma vitalidade em sua fé que não era encontrada na
religião natural desprovida de revelação. O deísmo mostrou ser um
conjunto de idéias e não uma fé viva. Se alguém procurasse provas
racionais para a religião, acabaria tornando-se um cético. A validade da
fé cristã estava numa experiência interior com Deus e não na existência
de uma primeira causa vaga e impessoal. Assim, na Inglaterra a escolha
ficava entre o Cristianismo ou o ceticismo. Aqueles que continuavam
com o Cristianismo tinham a tendência de juntar-se ao reavivamento
wesleyano ou evangélico enquanto aqueles que optavam pelo ceticismo
abandonavam completamente a religião e dedicavam sua atenção a outras
atividades que consideravam mais produtivas.
Apesar do debate ter se encerrado na Inglaterra, ainda era disputado
com grande vigor no continente. Na França, o principal porta-voz do
racionalismo foi Voltaire. Ele era mais competente que os deístas
ingleses e o Catolicismo francês tinha poucos defensores de habilidade.
Voltaire acreditava ter identificado os problemas da Igreja como sendo a
exploração por parte dos sacerdotes, superstição, intolerância e
perseguição. Ele defendia a tolerância para todas as religiões exceto para
a Igreja institucional, a qual ele denunciava com frases de efeito como
“esmagar essa coisa infame”. Ele esperava “ver o último rei ser
estrangulado com as entranhas do último padre”. Voltaire era inimigo da
religião de revelação, argumentando que a Bíblia estava repleta de
absurdos, contradições, erros e imoralidade e retratava um Deus que não
era digno do título de Ser Supremo. Também defendia a religião natural,
na qual as virtudes morais do amor e da bondade iriam resolver os males
sociais causadas pelas crenças equivocadas.
Os defensores do deísmo também podiam ser encontrados na
Alemanha. Hermann Samuel Reimarus (1694-1768), um estudioso
dedicado ao antigo Oriente Próximo e que vivia em Hamburg, foi um dos
“fundadores” do criticismo bíblico, afirmando que o elemento
miraculoso havia sido introduzido nas Escrituras por causa do fanatismo
e do engano dos escritores bíblicos. Ele explicava as origens do
Cristianismo pela perspectiva naturalista. Para ele, o grande milagre da
revelação era o mundo e na natureza podia-se encontrar Deus, a
moralidade e a imoralidade.
Gothold Ephraim Lessing (1729-81), o conhecido dramaturgo e
filho de um pastor da Saxônia, havia sido educado na ortodoxia luterana,
a qual tinha trocado pelo Iluminismo. Publicou um das obras de
Reimarus e abriu a porta para o estudo crítico da Bíblia. Lessing insistia
que a vida e a personalidade de Jesus talvez fossem diferentes daquilo
que era retratado nos evangelhos e nos subseqüentes ensinamentos da
Igreja. Também questionava se uma crença autêntica podia estar ligada a
acontecimentos históricos e negava que a revelação tivesse um lugar na
História. Se a verdade religiosa era autêntica, tinha que ser assim
universalmente e também ser uma ordem diferente daquela dos
acontecimentos históricos.
Em duas importantes obras, Natã o Sábio (1779) e A Educação da
Raça Humana (1780) Lessing pedia aos seus leitores que adotassem uma
religião “natural” ou “positiva”, uma que reconhecesse Deus, formasse
conceitos nobres sobre Ele e orientasse os indivíduos a ter esses
conceitos em mente em tudo o que fizessem e pensassem. A “verdade
interior” da religião não podia ser derivada de uma tradição escrita, mas
era possível ser sentida e experimentada. Porém, Lessing dizia, não havia
um Senhor dentro da História que daria às pessoas a verdade definitiva.
Para ele as diretrizes da Bíblia eram infantis e as da Razão eram maduras.
O racionalismo alemão não ficou isento de reações. O principal
filósofo do século 18, Immanuel Kant (1724-1804) — um professor em
Königberg, no leste da Prússia, que havia sido educado como pietista —
procurou combinar o racionalismo com o Cristianismo ortodoxo. Em
obras como Crítica da Razão Pura (1781) ele afirmava que a Ciência e a
Razão não ofereciam provas da existência de Deus, da lei moral ou da
imortalidade. A Ciência descrevia o mundo mas não podia oferecer um
guia para o viver ético. Experiências humanas como a percepção da
beleza, a consciência e o sentimento religioso eram reais mesmo que não
pudessem ser tratadas pela Ciência. Havia instintos implantados por
Deus que ensinavam aos seres humanos o bem e o mal e os forçavam a
escolher entre o certo e o errado. A isso ele chamava de “imperativo
categórico”. A insistência de Kant no fato de que a Ciência era limitada e
de que a verdade moral era encontrada de forma diferente do
conhecimento científico, foi uma resposta ao racionalismo ingênuo dos
philosophes.
O deísmo também era popular nas colônias da América. A religião
natural foi introduzida no Novo Mundo através dos escritos dos
racionalistas ingleses e transformou-se ainda mais em moda deste lado do
Atlântico. As obras dos philosophes franceses também eram muito lidas.
Alguns estudiosos afirmam que a maioria dos líderes da revolução e da
nova nação eram deístas. Dentre os mais conhecidos estão George
Washington, Thomas Jefferson e Benjamin Franklin.
O estilo de vida de Washington era semelhante ao de um cavalheiro
inglês de sua época, tendo em vista que ele era membro do conselho de
sua igreja e um participante freqüente, porém não regular dos cultos. Mas
ele nunca tomava a Santa Ceia e seus escritos mostram claramente suas
idéias iluministas em relação à religião. Ele muitas vezes referia-se a
Deus como “o grande Árbitro dos Acontecimentos” ou “Pai das Luzes”
mas raramente como “divino Autor de nossa abençoada religião”. Com
uma mente aberta, um forte senso de dignidade e uma convicção da
liberdade religiosa, ele não demonstrava nenhum interesse na teologia
cristã ou crença na divindade de Cristo.
Assim como Washington, Jefferson também era adepto do
Anglicanismo cômodo praticado pelos ricos da Virgínia e também foi
membro do conselho de sua igreja, como era costume para aqueles de sua
classe social. Gostava de ler material deísta e concordava com sua
cosmovisão. Rejeitando os escritos de Paulo, Agostinho, Platão e dos
platonistas, ele passou sua vida procurando aquilo que considerava “os
ensinamentos puros de Jesus” que haviam sido obscurecidos pelos
teólogos e místicos. Jefferson acabou indo além do deísmo e tornou-se
um unitário, seguindo as idéias de Joseph Priestley.
Quando seus inimigos políticos o acusaram de ser um incrédulo,
Jefferson respondeu que de fato era cristão e, para provar, falou seu
compromisso com os ensinamentos puros e nobres de Jesus. Ele pôs-se a
eliminar o trabalho de Paulo e outros teólogos e tirar dos evangelhos
apenas as palavras do próprio Jesus. Ele afirmava que as coisas que Jesus
tinha dito e feito, revelam a marca de uma mente superior e sublime que
se destaca do resto como “um diamante no meio do estrume”. O que
ainda resta dos ensinamentos de Jesus é um código moral que determina
as obrigações em relação aos outros e em relação a si mesmo. Jesus não
afirmou que era Deus e sua missão foi ensinar a irmandade, corrigindo
assim as idéias distorcidas dos judeus do 1º século.
Sua visão de Jesus pode ser melhor demonstrada na Jefferson Bible
[Bíblia de Jefferson], que ficou enterrada entre seus papéis e só foi
publicada no século 20. Trata-se de um livro de colagens no qual as
passagens “autênticas” dos quatro evangelhos foram recortadas e
arrumadas lado a lado. Segmentos que relatavam milagres (inclusive a
ressurreição de Cristo) e discursos teológicos foram deixados de fora.
Um outro importante líder na colônia, Benjamin Franklin, foi ainda
mais longe, usando de um ligeiro cinismo em relação à fé evangélica.
Como muitos dos cidadãos de Boston, Franklin abandonou o Calvinismo
puritano logo no começo de sua carreira. Como impressor e publicador
na Filadélfia, tornou-se amigo de George Whitefield, mas o famoso
evangelista não foi capaz de ganhá-lo para o Cristianismo evangélico.
Franklin registrou suas observações sobre os quakers, batistas, irmãos,
judeus e católicos romanos com o tom de um aluno desprendido que faz
um estudo comparativo das religiões. Durante algum tempo ele foi
atraído pelo Anglicanismo, mas raramente ia à igreja. Rejeitando
qualquer credo ortodoxo, ele adotou algumas afirmações simples que
incluíam a crença num Ser Supremo, uma outra vida e recompensas e
castigos.
Como típico deísta americano, Franklin considerava a divindade de
Cristo uma questão de indiferença tolerante. Como ele mesmo afirmou
em sua carta a Ezra Stiles:
É uma questão sobre a qual não dogmatizo, tendo em vista que nunca a estudei e acho
desnecessário ocupar-me com isso agora, quando espero que em breve terei a
oportunidade de saber a Verdade com menos dificuldade. Não vejo mal, porém, em que se
acredite nisso, se essa Crença tem a Conseqüência positiva — como provavelmente é o
caso — de tornar suas doutrinas mais respeitadas e melhor observadas; especialmente
porque não creio que o Supremo leve a mal aqueles que não o fazem, distinguindo os
Incrédulos em seu Governo do Mundo com qualquer tipo peculiar de Marca do seu
Desprazer.3
Maçonaria
Outra tentativa de se aplicar a Razão à religião durante o
Iluminismo deu-se através da ordem maçônica. A maçonaria organizada
teve início em 1717 com a fundação do Grande Loja em Londres. Para os
cristãos desiludidos, a maçonaria tornou-se uma nova fé baseada sobre a
crença no poder da natureza e oferecia cerimônias e rituais que ficavam
abertos a várias interpretações. Sua natureza essencialmente social,
reforçada pelo segredo, davam um forte senso de comunidade àqueles
que estavam alienados da Igreja cristã.
As raízes do movimento maçônico remontam à Idade Média,
quando cada ofício tinha uma guilda ou organização semelhante que
oferecia benefícios e apoio mútuo para seus membros. No século 18,
porém, o mercado livre já havia passado a dominar a sociedade e a velha
estrutura econômica sucumbiu. Com o passar do tempo, a maioria das
guildas havia se tornado apenas instituições puramente cerimoniais e seu
poder de controlar os salários, a qualidade dos produtos e a força de
trabalho tinha desaparecido. Só as guildas dos maçons, que enfatizavam
as habilidades de seus membros na Matemática e Arquitetura foram
capazes de continuar desempenhando um papel histórico novo e
dinâmico.
No final do século 17, várias “lojas” maçônicas — como essas
guildas estavam sendo chamadas — na Escócia e na Inglaterra
começaram a aceitar em sua ordem cavalheiros que não exerciam o
ofício. Muitos desses novos membros eram ricos e podiam contribuir
com capital para a construção de projetos daqueles que já eram membros
das lojas. A tradição antiga dos maçons deu-lhes ainda mais prestígio
pois eram responsáveis pela construção de grandes igrejas e catedrais,
bem como dos palácios dos reis e de suntuosos prédios nas cidades.
Também faziam uso de uma história lendária que afirmava que suas
origens eram do tempo da construção das pirâmides egípcias e do templo
de Salomão.
Os mesmos documentos que continham informações sobre os
primórdios míticos da guilda especificavam responsabilidades morais e
decretavam que os ensinamentos maçônicos deveriam ser mantidos em
segredo para que as técnicas de construção dos mestres ficassem apenas
entre os membros da guilda. Então, à medida em que elementos neo-
platônicos e rosacrucianos foram sendo introduzidos às idéias dos
maçons medievais, a tradição transformou-se em loja para indivíduos de
qualquer origem. Essas mudanças levaram a uma nova interpretação das
ferramentas do maçom como um sistema de símbolos de moralidade
pessoal e transformação. Os praticantes da “arte real”, como era chamada
a maçonaria, adoravam o Deus da ciência newtoniana, o grande arquiteto
do universo, como um símbolo poderoso de ordem, regularidade e
estabilidade.
Grande parte da atração da maçonaria no século 18 devia-se ao fato
desse sistema afirmar que estava em contato com a sabedoria universal,
revelada nas habilidades matemáticas e arquitetônicas mostradas nas
antigas construções. O prestígio ligado às lojas maçônicas atraiu um
grupo impressionante de membros que transpunham o profundo abismo
das diferenças sociais. Começou a surgir uma nova forma de
relacionamento social, fascinando os europeus mais cultos, tanto nobres
quanto comuns. Seus membros procuravam aplicar na sociedade como
um todo as idéias maçônicas de mobilidade social, tolerância religiosa e
dedicação à Ciência.
Não poderia haver melhor exemplo da importância de seus ideais
do que as colônias americanas. A ordem maçônica é o denominador
comum por trás dos movimento por independência e a fundação de uma
nova república na América. Durante a revolução, as lojas tornaram-se
ponto de encontro para os colonos em sua luta contra os governantes
ingleses. Na realidade, a maçonaria havia chegado na América pouco
depois da fundação da Grande Loja de Londres. Benjamin Franklin
juntou-se a uma das primeiras lojas em 1731 e foi eleito grão-mestre da
ordem da Pensilvânia em 1734. George Washington foi iniciado na Loja
Número Quatro de Fredericksburg (Virgínia) em 1752. Dentre outros
patriotas americanos que pertenciam à ordem maçônica podemos citar
Alexander Hamilton, Patrick Henry, John Paul Jones e Paul Revere.
A propagação da maçonaria na França e em outras partes da Europa
levou a uma identificação mais próxima entre seus ideais e o Iluminismo.
Os rituais e simbolismos da tradição dos maçons ganharam sofisticação e
transformaram-se num sistema de graus mais elevados e ritos que
incorporavam lendas como os Cavaleiros Templários, os Cavaleiros
Teutônicos e os Cavaleiros Hospitaleiros de St. John. Os grupos
maçônicos do continente não apenas representavam o deísmo e a
igualdade como também tornaram-se absolutamente anticlericais e
funcionavam como núcleos de reforma política e social.
O mais radical dentre esses grupos era o Illuminati, uma seita
maçônica fundada na Bavária em 1778 por Adam Weishaupt (1748-
1830), que havia sido educado numa escola jesuíta e durante algum
tempo foi professor de lei canônica. A seita buscava propagar o
conhecimento e incentivar os ideais humanistas e o amor fraternal entre
seus membros e seu objetivo era uma sociedade sem classes e um Estado
patriarcal. Os Illuminati repudiavam as afirmações de todas as
organizações religiosas existentes e diziam ser aqueles nos quais a graça
de Cristo habitava (Hb 6.4). Por serem organizados num sistema
complexo dentro do qual exigia-se obediência absoluta aos superiores
(semelhante aos jesuítas) e por defenderem uma forma indefinida de
revolução social, os Illuminati serviram de símbolo conveniente e bode
expiatório para aqueles que temiam movimentos conspiradores que
pudessem derrubar a classe dominante.
Rousseau: o intruso
Uma exceção radical da visão geral dos philosophes foi a obra de
Jean-Jacques Rousseau (1712-78). Em muitos aspectos, ele foi a ponte
entre o Iluminismo e a era revolucionária que se seguiu. Também foi
precursor do Romantismo, o movimento intelectual predominante no
começo do século 19. Nascido em Genebra, ele fugiu de casa aos 16 anos
de idade e sempre se sentiu alienado da sociedade ao seu redor. Sua
própria vida infeliz sem dúvida deu forma à sua cosmovisão.
Rousseau afirmava que os indivíduos em um estado natural são
basicamente bons, tendo em vista que a natureza caracteriza-se pelo calor
de sentimentos e de amor por outros. Porém, o progresso e o crescimento
da civilização corromperam as pessoas. As boas qualidades da
humanidade originam-se da emoção e os maus hábitos procedem da
Razão portanto e intuição e emoção constituem guias mais apropriados
para nos conduzir que a Filosofia e a Razão. Em Nova Heloise (1761) e
Emile (1762) ele descreveu um programa educacional que permitiria às
pessoas manter intactos seus sentimentos de virtude e justiça.
Em sua obra mais importante, O Contrato Social (1762), Rousseau
apresentou a idéia de um governo que preservaria o máximo possível a
igualdade natural das pessoas. Afirmou que os cidadãos no processo de
formar um governo unem a vontade individual de cada um e formam uma
“vontade geral” e concordam em aceitar as decisões desta. Se os
indivíduos tentam colocar aquilo que crêem ser os seus próprios
interesses acima da vontade geral, o resultado são as injustiças e
desigualdades. Aqueles que tentam proceder dessa forma devem ser
forçados a obedecer a vontade geral. Porém, ele não explicou o
mecanismo que seria usado para colocar essa política em prática e não
parece ter percebido que obrigar uma pessoa a se comportar de acordo
com a vontade geral pode levar à negação da liberdade individual e à
tirania. Seu Contrato Social é tão ambíguo que já foi usado para
justificar tanto a democracia quanto o totalitarismo.
Despotismo esclarecido
Apesar dos philosophes em geral argumentarem em favor da
liberdade individual e dos direitos naturais, ele não defendiam
necessariamente a democracia. Estavam dispostas a aceitar reis que
aplicassem os princípios do Iluminismo. Em outras palavras, eles
achavam que um Estado podia alcançar o melhor funcionamento possível
sob o governo de um “déspota esclarecido” que, com a ajuda de um
grupo de pessoas cultas, determinaria a liberdade de pensamento e
promoveria a educação e o progresso material. Vários monarcas do
século 18 pareciam se encaixar no papel descrito pelos philosophes.
Entre eles estavam Frederico II da Prússia (1740-86), Catarina II da
Rússia (1762-96) e Joseph II da Áustria (1780-90). Na verdade, eles
adotaram programas mais benevolentes não porque concordavam com os
philosophes, mas porque o uso da Razão em seus Estados ia de encontro
aos seus próprios interesses.
A prosperidade nacional significava um aumento nos impostos
recolhidos e uma administração eficiente podia fortalecer o controle do
governo. Assim, esses monarcas melhoraram as técnicas agrícolas,
reformaram as leis, acabaram com a tortura e promoveram a saúde
pública através da construção de hospitais e asilos. Eles almejavam
elevar o nível educacional do povo, estabelecer uma tolerância religiosa
mais ampla e, em países católicos, reinar com o poder do papado.
O Reavivamento do século 18
Foi só uma questão de tempo antes que o Pietismo abrisse espaço
em meio ao Anglicanismo, tendo em vista que a Igreja oficial sofria de
problemas semelhantes aos que afligiam o Luteranismo alemão. Seu
ensinamento favorecia a ordem existente, onde cada pessoa havia sido
divinamente escolhida para ocupar um lugar e uma posição social e era
preciso contentar-se com essa posição. Receber o sacramento na Igreja
Anglicana era o teste formal de lealdade ao sistema. As novas ondas de
pensamento — racionalismo, deísmo, latitudinarismo (uma visão
tolerante que não enfatizava a importância da doutrina correta) e
unitarianismo (rejeição da divindade de Cristo) — bem como a corrupção
e imoralidade que assolavam a Igreja contribuíram ainda mais para o
enfraquecimento espiritual. Em outras palavras, “a deterioração da
religião vital”, como colocou o escritor de hinos Isaac Watts, havia
transformado a Igreja numa casca vazia.
O primeiro desafio para a Igreja de fala inglesa veio dos
reavivamentos ou “despertamentos” que varreram a Grã-Bretanha e as
colônias americanas no segundo terço do século 18. Foram
acontecimentos paralelos mas houve um considerável intercâmbio entre
os movimentos, especialmente no ministério de Whitefield. Na Grã-
Bretanha, a primeira explosão de reavivamento ocorreu em Gales, sob a
liderança de Howel Harris (1714-73), um professor que converteu-se em
1735 e começou a pregar nos lares, tendo em vista que não era ordenado.
Em 1737 ele uniu forças com Daniel Rowland (1713-90), um sacerdote
anglicano que havia experimentado um despertamento espiritual quase
na mesma época e através do evangelismo itinerante eles deram início ao
que veio a ser conhecido como Metodismo Calvinista Galês. Harris
assentou-se em Trevecca em 1752 e formou uma comunidade que foi um
centro do evangelicalismo. Um outro reavivamento, apesar de não ter
sido tão espetacular quando o de Gales, ocorreu na Escócia em 1741-42.
Sem dúvida o marco desse movimento de revitalização foi John
Wesley (1703-91). Ele e seu irmão Charles nasceram na casa paroquial
anglicana de Epworth, em Linconshire. Sua mãe, Susanna (1703-1742)
exerceu uma influência decisiva na formação do caráter dos dois através
de sua profunda fé pessoal, do uso parcimonioso da disciplina e do
costume de apresentar literatura devocional cristã para a família. John
preparou-se para o ministério em Oxford, foi ordenado e trabalhou como
professor do Lincoln College. Em 1729, ele formou o “Clube Santo” em
Oxford do qual Charles, George Whitefield e outros alunos faziam parte.
Eles dedicavam-se à oração, ao estudo do Novo Testamento em grego, às
obras de caridade e receberam o apelido de “metodistas” pois haviam
adotado um método disciplinado de aprimoramento espiritual.
Em 1735 ele e Charles foram nomeados para a capelania da SPE na
Geórgia e lá chegaram no ano seguinte. Eles viajaram no mesmo navio
que um grupo de morávios e John foi questionado por Spangenberg
sobre a certeza da sua salvação. Ele deveria ir trabalhar entre os índios,
mas depois de dois anos frustrantes, voltou para casa. Logo depois disso
conheceu Peter Böhler, líder dos morávios de Londres, que lhe falou
sobre a necessidade de uma fé mais profunda. Wesley anotou em seu
diário que ele foi a reunião de oração desse grupo na rua Aldersgate no
dia 24 de maio de 1738 e enquanto eles liam um trecho do prefácio de
Lutero ao livro de Romanos, “Senti meu coração estranhamente
aquecido. Senti que confiava em Cristo e só em Cristo para a salvação”.
(Apenas três dias antes, Charles que também havia voltado para a
Inglaterra teve uma experiência evangélica semelhante sob a influência
de Böhler.) No mês seguinte, John foi para a Alemanha e visitou Halle e
Herrnhut, firmando assim o laço espiritual entre o Pietismo e o
Metodismo.
Isso abriu caminho para os irmãos Wesley percorrerem a terra para
levar a mensagem de Deus às pessoas onde quer que estivessem. Depois
de vinte anos de itinerância, Charles assumiu um ministério fixo, mas
como autor de 7.270 composições, ele é lembrado como possivelmente o
mais talentoso e prolífico escritor de hinos na língua inglesa. Dentre os
mais conhecidos estão Jesus Lover of My Soul [Jesus o Amado de
Minh'alma], Oh, for a Thousand Tongues to Sing [Quem Dera Saber Mil
Línguas para Cantar] e Love Divine, All Loves Excelling [Amor Divino,
que Excede Qualquer Outro Amor].
Seguindo uma sugestão de Whitefield, John começou a pregar ao ar
livre. Isso dava-lhe mais flexibilidade, tendo em vista que não era bem-
vindo em muitas igrejas pois estava constantemente viajando, falando
onde quer que houvesse um público. Durante os cinqüenta anos seguintes
ele viajou mais de 375 mil quilômetros (a maior parte à cavalo) e pregou
quarenta mil sermões. Em seu diário Wesley observou:
Vejo o mundo todo como minha paróquia; até agora, em qualquer parte dele que me
encontre, julgo cumprir meu dever: declarar a todos que mostram-se dispostos a ouvir as
boas novas da salvação. Esta é a obra para a qual sei que Deus me chamou; certo estou de
que é acompanhada de sua bênção.