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Parte 2 - A Igreja reformada e reavivada (1300-1789)

Capítulo 9 - A Igreja Medieval Entra em Declínio


Com o final do século 13 quase todas as estruturas características
da Igreja Católica Romana já estavam definidas até à Reforma, duzentos
anos depois. Porém, essas instituições foram tanto um atraso como uma
ajuda para o Cristianismo organizado durante os séculos 14 e 15 pois
dependiam de uma sociedade estável e sem mudanças. Mas esse período
foi repleto de rápidas transformações trazidas por guerras, pragas e crises
econômicas.

O outono da Idade Média


Quando os papas ficaram no lugar dos imperadores como líderes do
Cristianismo, reis fortes estavam surgindo no oeste da Europa. Apesar de
não poderem competir com o papa pela liderança européia, eles eram
poderosos o suficiente para resistir à interferência papal dentro de seus
reinos. A questão não era mais se o imperador ou o papa eram supremos,
mas sim, se o Cristianismo em si podia ser mais do que uma expressão
vaga para um conjunto de nações separadas.
Os ingleses e franceses desenvolveram uma consciência nacional
durante a longa e cansativa luta conhecida como Guerra dos Cem Anos
(1337-1453). O conflito teve início com o desejo de Eduardo III de
controlar a França bem como a Inglaterra. Suas palavras para os
franceses declarando que o trono na França era sustentado por direitos
legais muito frágeis e a resistência francesa levaram à guerra. Cavaleiros
e arqueiros ingleses invadiram a França repetidamente e a superioridade
tecnológica dos arcos foi demonstrada em suas grandes vitórias em
Crécy, Poitiers e Agincourt. Em 1419 os ingleses controlavam a maior
parte do norte da França e Henrique V era reconhecido como seu
herdeiro ao trono. Mas então, ele faleceu e foi sucedido por seu filho de
nove meses, o que deu ao rei francês Carlos VII a oportunidade de
reascender o conflito.
Ele foi impelido por Joana d’Arc, uma jovem camponesa analfabeta
e religiosa devota que foi convencida por visões que era seu dever
derrotar os ingleses. Em 1429, aos 17 anos de idade, ela recebeu
permissão para liderar um exército que não tardaria a reconquistar o
controle de grande parte do norte da França, permitindo a coroação de
Carlos em Rheims. Porém, os ingleses capturaram Joana e o ingrato
Carlos não fez nenhum esforço para resgatá-la. Ela foi entregue à
Inquisição que a julgou tendo como base falsas acusações de heresia e
bruxaria e ordenou que fosse queimada. A morte trágica da santa
“Donzela de Orleans” em maio de 1431 deixou os franceses tão
enraivecidos que seus exércitos continuaram os ataques. Em 1453 os
ingleses haviam sido expulsos de toda a França, exceto Calais e a Guerra
dos Cem Anos chegava ao fim.
O conflito enfraqueceu a nobreza feudal de ambos os países, tendo
em vista que muitos deles morreram em combate e não deixaram
herdeiros. De acordo com a lei feudal, suas terras eram passadas para o
rei, que as concedia então para súditos leais e criava uma nova nobreza.
Os novos métodos de guerra também desvalorizaram a cavalaria que era
composta de aristocratas.
Os reis franceses que consolidaram seu poder estendendo os
domínios reais receberam o apoio de um povo que associou paz, ordem e
a expulsão dos ingleses com a monarquia. Os impostos de guerra
continuaram sendo cobrados a fim de financiar um exército permanente
usado em campanhas contra os mercenários desempregados que vagavam
pelo país. O povo não se importava de pagar pela proteção contra esses
bandos foragidos.
Na Inglaterra, por outro lado, a autoridade do Parlamento
aumentou. Sempre que o rei precisava de dinheiro para a guerra, tinha
que obter o consentimento dos representantes do povo sendo que estes
exigiam certas concessões antes de votar sobre os fundos. A classe de
barões da Inglaterra dividiu-se em duas facções: a casa de Lancaster e a
casa de York. O emblema de Lancaster era a rosa vermelha e o de York a
rosa branca. Ao lutarem pelo controle do parlamento e da monarquia na
Guerra das Duas Rosas (1453-85), a nobreza feudal praticamente
exterminou a si mesma. Isso permitiu que Henrique VII da família Tudor
tomasse o poder e sua dinastia, através de Henrique VIII e Elizabeth I
acabou transformando a Inglaterra num Estado forte.
1321 1378 1508 1508-1511
Guilherme de Início do Grande Cisma Michelangelo Rafael pinta a
Ockham começa a Madonna Sistina
Controvéria pintar a
realista- Capela
nominalista Sistina
1330- 1369- 1380- 1414- 1460- 1498 1513
1384 1414 1471 1417 1536 Leonardo da Leão X torna-se
John Jun Jus Thomas à Concílio Desidério Vinci pinta a papa
Wicliffe Kempis de Erasmo Última Ceia
Constança
1300 1400 1500 1550
1337 1347-1348 1434 1450 1494 1494-1498
Começa a Primeira onda Começa Invenção Carlos Savonarola em
Guerra dos Cem da Peste Negra em dos tipos VIII Florença
anos Florença móveis invade a
o período Itália
Médici
1431 1453
Execução de Joana Queda de
D'Arc Constantinopla

Durante esse período a Alemanha desenvolveu-se de maneira


bastante diferente da França e Inglaterra. Ao contrário da centralização e
nacionalismo incipiente do Oeste, as forças do particularismo
prevaleceram na Alemanha. O conflito medieval entre o império e o
papado criou uma situação em que as unidades territoriais individuais da
Alemanha e suas cidades cada vez maiores mantinham um alto grau de
independência. Os príncipes dessas unidades regionais tinham direito de
participar da escolha do imperador e eram, portanto, chamados de
“eleitores”. Durante a luta, vários imperadores preocuparam-se mais com
o aumento de controle sobre a Itália do que com as condições da
Alemanha, enquanto os papas por vezes apoiavam imperadores rivais
num esforço de encontrar um líder com o qual pudessem entender-se
politicamente. O hiato imperial entre 1254-73 foi crítico pois intensificou
ainda mais a fragmentação política.
Em 1273 os eleitores escolheram o príncipe suíço Rodolfo de
Habsburgo pois este aparentava ser política e financeiramente fraco e,
portanto, não ameaçaria sua independência. Rodolf sabiamente colocou
de lado qualquer ambição de governar sobre a Itália e voltou sua atenção
para a construção de um domínio real forte no sudeste da Alemanha
através da apropriação de terras de senhores feudais que haviam morrido
sem deixar herdeiros. Formou-se assim a base territorial para o futuro
dinástico dos Habsburgos. Logo depois de sua morte em 1291 os
herdeiros escolheram imperadores de várias casas. Em termos práticos
isso significou uma paralisação do governo imperial e colocou o
equilíbrio de poder de volta nas mãos dos príncipes.
Para lidar com a situação caótica, o imperador Carlos IV introduziu
um mecanismo eleitoral através da Bula de Ouro de 1356. (O título foi
dado por causa do selo de ouro afixado no documento.) Ela designava
sete indivíduos que iriam sempre escolher o imperador: os arcebispos de
Mainz, Trier e Colônia; o rei da Boêmia; o duque da Saxônia, o margrave
de Brandenburg e o conde palatino do Reno. Quando o imperador
falecesse, esses sete “eleitores” se reuniriam imediatamente para nomear
um sucessor. Eles possuíam direitos soberanos dentro de seus domínios e
cada território eleitoral deveria ser herdado como uma unidade e não
dividido entre os herdeiros. Ao omitir qualquer referência ao direito do
papa de confirmar ou vetar uma eleição ou de administrar o império
durante um hiato, a Bula de Ouro eliminou eficazmente o envolvimento
papal nos assuntos imperiais. Mas, ao reconhecer a soberania territorial
dos estados, não existia nenhuma estrutura importante para manter a
segurança interna e a paz.
Nessa época, a Europa também entrou num período de mudança
econômica e social. Na Alta Idade Média, juntamente com a expansão do
comércio e da indústria ocorreu um aumento na disponibilidade de terras
aráveis. Camponeses alemães foram para o Leste, para áreas
escassamente assentadas por povos eslavos e derrubaram florestas e
drenaram pântanos. Muitas dessas atividades foram organizadas,
financiadas e realizadas por ordens religiosas, especialmente dos
beneditinos e cistercianos, cujas regras estipulavam que eles deveriam
ganhar a vida através do cultivo da terra. O reavivamento do comércio
deu tanto a senhores quanto a camponeses um incentivo para produzir
mais do que precisavam para si mesmos. A comutação, substituição de
pagamentos em dinheiro por trabalhos braçais dos servos, começou a
destruir o sistema senhorial e no século 13 muitos servos que não eram
livres estavam tornando-se fazendeiros de terras arrendadas. Com a
valorização das terras e o aumento de preço dos produtos agrícolas, os
pequenos servos livres saíram lucrando, mas os senhores que viviam de
rendas fixas e cobrança de taxas tiveram uma redução no faturamento
real.
Depois da metade do século 14, a agricultura européia caiu numa
séria depressão que afetou senhores e camponeses. A expansão
econômica estacionou-se quando um declínio populacional reduziu tanto
a oferta de mão-de-obra quanto o mercado para os bens que eram
produzidos. Quando o preço dos produtos agrícolas caiu, os camponeses
que pagavam uma taxa fixa aos senhores não conseguiram manter em dia
seus compromissos. Tendo em vista que o antigo laço que havia prendido
o camponês ao solo já não existia mais, muitos simplesmente se
mudaram e deixaram seus campos sem cultivo. Alguns foram para áreas
mais prósperas e outros assentaram-se nas cidades. Como os preços dos
produtos não-agrícolas tendiam a manter-se estáveis ou subir, a classe
proprietária de terras viu-se num aperto causado pela grave crise da
relação entre custo e preço. Alguns senhores contrataram trabalhadores
para cultivar as terras, mas com a falta de mão-de-obra rural os salários
tendiam a subir. As tentativas de cortar os custos com salários através da
intervenção governamental fracassaram.
Um fator-chave para o declínio da população foi a epidemia de
peste bubônica — a “Peste Negra” — uma doença transmitida através de
lêndeas de ratos e que foi trazida para a Europa do Oriente em 1347. A
peste manifestou-se primeiro na Sicília e então varreu a região central e o
oeste da Europa, seguindo as principais rotas comerciais. A vítima
apresentava febre alta, dores nas juntas, inchaço dos nódulos linfáticos e
um escurecimento da pele causado por sangramentos subcutâneos.
Depois de alguns dias de dores excruciantes a vítima morria. A peste
negra acabou com trinta a quarenta por cento da população de algumas
regiões. Depois de um breve intervalo, a peste voltou nas décadas de
1360 e 1370 e em intervalos regulares depois disso.
Um dos resultados da peste foi o surgimento de flagelantes, um
movimento bizarro que atraiu milhares de pessoas que viajavam de um
lugar para outro se flagelando na esperança de obter o perdão divino e
evitar a morte. Na Alemanha, a população em pânico desvairado culpou
os judeus pela Peste Negra e quase metade deles morreu, vítima de
ataques de seus vizinhos, bem como da própria doença.
Por causa da morte de tantos camponeses, não havia gente
suficiente para cultivar as terras e os sobreviventes cobravam salários
mais altos. Assim, os resultados da peste, a miséria causada pela Guerra
dos Cem Anos e as tentativas de reduzir os salários provocaram diversas
revoltas de camponeses. Na França, a mais séria foi a Jacquerie, nome
normalmente dado para o camponês francês. Nessa insurreição,
multidões de trabalhadores rurais desesperados atacaram as mansões
senhoriais e cometeram muitas atrocidades.
A principal revolta camponesa da Inglaterra teve início em 1381.
Seu líder, Wat Tyler, foi ajudado por John Ball, um padre excomungado
que muito tempo antes havia se tornado um ativista lutando pelos direitos
do povo. Ball incitou o furor das multidões enraivecidas de Kent com seu
discursos sobre a igualdade e sobre um dia em que não haveria ricos nem
pobres. Eles marcharam para Londres e muitos cidadãos simpatizantes os
receberam de braços abertos na cidade. Tendo em vista que o governo
real estava desorganizado naquela época por causa dos conflitos no
norte, o rei Ricardo II negociou com os revoltosos. Ele emitiu decretos
dando emancipação civil e anistia para os revolucionários, mas seus
ministros não tinham nenhuma intenção de honrar os acordos que ele
havia feito. Depois que Wat Tyler foi morto traiçoeiramente, os rebeldes
sem líder foram persuadidos a deixar Londres e sua revolta foi sufocada
com enorme brutalidade. John Ball, o profeta do povo, foi enforcado,
eviscerado e esquartejado. Na Alemanha as revoltas camponesas
começaram aproximadamente um século depois, sendo que estas tiveram
um forte efeito sobre a Reforma.

A decomposição do Escolasticismo
A incerteza e a conjuntura da época levaram a uma desintegração
da síntese medieval bem como de sua teologia, filosofia e arte. O início
desse processo foi marcado pela volta da discussão entre realistas e
nominalistas em universidades como Oxford e Paris. O grande feito de
Tomás de Aquino de conciliar Aristóteles com a fé cristã passou a ser
questionado por estudiosos como Guilherme de Ockham (falecido em
1349), que destruiu o sistema filosófico que havia dado base racional
para a Teologia.
Os platonistas medievais, conhecidos como “realistas”, ensinavam
que há certas formas ou idéias imutáveis (universais) que existem na
mente de Deus e podem ser percebidas através da iluminação divina, sem
uma referência a coisas determinadas. Aquino afirmava que a fim de
alcançar essas formas era preciso adquirir conhecimento através da
apreensão de objetos.
Ockham, porém, declarou que somente coisas individuais existem
de fato e que os universais não tem uma existência real; são
simplesmente nomes ou termos. Sua filosofia foi chamada de
“nominalismo”, da palavra latina nomem (“nome”). Ele rejeitava as
provas de Deus baseadas em dados observados, mas como franciscano
devoto ele não desejava destruir a fé em Deus. Assim, ele insistia que
estava libertando o Cristianismo dos grilhões da Razão. Deveria crer-se
em Deus não por causa de uma necessidade lógica.
Ockham também aplicou suas idéias à Igreja organizada de seu
tempo. Ele procurou mostrar que o imperador deveria ser completamente
independente do papa, que a única autoridade sobre assuntos espirituais
era a Bíblia e que um concílio geral da Igreja era superior ao papado.
Quando de sua morte, o nominalismo já estava firmemente estabelecido
na ordem franciscana e crescia no meio dos fiéis a convicção de que era
necessário haver um concílio geral para reformar a Igreja.
As críticas apresentadas por Marcílio de Pádua em sua obra
Defensor Pacis (1324) eram mais radicais do que as de Ockham. Para
ele, o inimigo não era a hierarquia clerical corrupta conforme Ockham
ensinava, mas sim a influência exercida pelo clero nos assuntos
seculares. Marcílio aplicou o nominalismo aos problemas de Estado e
perguntou: “Onde encontra-se, de fato, a autoridade política?” Sua
resposta estava no cidadão individual, não na idéia de Estado (universal).
Quanto à pergunta “O que é a Igreja?”, sua resposta era que compunha-
se de cristãos individuais e não era uma instituição sobrenatural com vida
própria.
O nominalismo foi o solo propício para o desenvolvimento de
idéias políticas que enfraqueceriam a autoridade do papado.

O declínio da Igreja institucional


A Igreja havia se transformado numa monarquia que rivalizava com
aquelas das nações-estados que estavam surgindo na época. O papa
Bonifácio VIII (1294-1303) acendeu um conflito ao insistir que os
governantes seculares deviam obediência à Igreja e ao proibir que
cobrassem impostos do clero sem a permissão do papa. Tanto o rei da
Inglaterra quanto o da França desafiaram essa postura. Eduardo I
conseguiu que o Parlamento aprovasse uma lei proibindo o clero de
reconhecer o suposto poder secular do papa enquanto Filipe IV proibiu a
saída de qualquer dinheiro da França. Essas ações forçaram o papa a
rescindir suas ordens.
Então, uma luta mordaz entre Filipe e Bonifácio irrompeu por causa
da condenação de um bispo francês por traição e, em 1302, o papa
desafiou o rei com a bula Unam Sanctam, talvez a argumentação mais
radical da Idade Média em favor da autoridade papal. A bula declarava
que “a sujeição ao pontífice romano é absolutamente necessária à
salvação de cada ser humano”. Filipe reagiu enviando um agente à Itália
para prender Bonifácio, mas seu tentativa não funcionou e o pontífice
idoso morreu alguns dias depois. Nenhum governante europeu havia
oferecido ajuda e nenhum papa sucessor puniu Filipe. Isso serviu para
mostrar o quanto o poder das monarquias nacionais havia aumentado.
Em 1305 um francês, Clemente V, foi escolhido para ser papa e foi
residir nos ambientes mais confortáveis de Avignon, no sudeste da
França. Posteriormente, críticos chamaram isso de “cativeiro babilônio
da Igreja”. Os papados desse período foram franceses e suas políticas
favoreceram a França. Finalmente, Gregório XI deixou Avignon em
1377 e voltou para Roma. Quando ele faleceu no ano seguinte, os
romanos estavam decididos a manter o papado a todo custo. Sob a
ameaça de violência das multidões, os cardeais escolheram um italiano,
Urbano VI, mas ele os alienou a tal ponto com sua falta de tato e planos
de reforma do colégio sagrado que sua eleição foi declarada inválida e
ele foi substituído por Clemente VI, que voltou a Avignon.
Assim teve início o Grande Cisma que dividiu o Cristianismo
durante quase quarenta anos e deferiu um golpe severo sobre o prestígio
papal. Havia, então, dois papas, cada um afirmando ter o poder sobre as
chaves do céu e ninguém tinha como saber ao certo se os sacramentos
estavam sendo administrados por um sacerdote devidamente ordenado. O
dinheiro necessário para manter duas cortes papais significava que era
preciso haver um aumento da arrecadação e os governantes europeus
tomavam o partido do papa que pudesse favorecer seus interesses
políticos.
Todos concordavam que o cisma precisava acabar, mas somente um
papa podia convocar o concílio geral necessário. Nenhum dos papas
queria fazer isso. Uma sugestão para resolver o dilema veio de alguns
estudiosos da Universidade de Paris. Conhecidos como “conciliaristas”,
eles insistiam que um concílio geral tinha autoridade superior à do papa
e, portanto, podia agir independentemente. Eles lançaram mão da obra de
Marcílio para apoiar a idéia de que o papado é uma instituição humana e
todas as questões de fé importantes deve ser levadas a um concílio que
represente a comunidade cristã como um todo.
Cardeais de ambas as facções tentaram resolver o impasse num
concílio em Pisa em 1409. Infelizmente nenhum dos pontífices
concordou em renunciar em favor daquele que havia sido eleito por esse
concílio e portanto havia três papas. O resultado desse fiasco foi que o
imperador Sigismundo decidiu que era necessário um concílio geral e
forçou o papa escolhido em Pisa, João XXIII, a convocá-lo.
O Concílio de Constance realizado entre 1414 e 1418, tinha três
tarefas a cumprir — dar um fim ao cisma, reprimir as heresias e reformar
a Igreja. Ele depôs os três papas e colocou em seu lugar Martinho V
(1417-31), que passou a ser o único cabeça da Igreja. Ele tratou do
problema de heresia ao executar os defensores boêmios da reforma de
Jan Hus e Jerônimo de Praga, mas seus seguidores continuaram a lutar
em favor dos seus ideais (ver adiante). Quanto à reforma, o concílio não
conseguiu fazer absolutamente nada. Ele emitiu o decreto Sacrosanta
Frequens, que determinava reuniões periódicas dos concílios das igrejas,
mas os papas subseqüentes ignoraram completamente esses encontros.
Eles não tinham intenção de permitir qualquer diminuição de seu poder,
como era a intenção velada do movimento conciliar.

As pressões pela Reforma


Nessa época, que recebeu dos historiadores o nome de Renascença
(renascimento), a Igreja Católica enfrentou muitos problemas, mas talvez
o mais sério de todos tenha sido o fracasso dos papas em oferecer
liderança espiritual. Para todos os efeitos, eles haviam se transformado
em príncipes da Renascença, com sua esperança de construir um Estado
forte na região central da Itália para que o desastre de Avignon não se
repetisse. Na época a idéia parecia sensata, mas na verdade ela preparou
o cenário para a revolta protestante do século 16.
PAPADO MEDIEVAL POSTERIOR

Bonifácio VIII (1294-1330)


Benedito XI (1303-4)
Início do Papado em Avignon
Clemente V (1305-14)
João XXII (1316-34)
Benedito XII (1334-42)
Clemente VI (1342-52)
Inocêncio VI (1352-62)
Urbano V (1362-70)
Gragório XI (1370-78)
O GRANDE CISMA
Papas em Roma Papas em Pisa Papas em Avignon
Urbano VI (1378-89) Clemente VII (1378-94)
Bonifácio IX (1389-1404)
Inocêncio VII (1404-6) Alexandre V (1409-10)
Gregório XII (1406-15) João XXIII (1410-15) Benedito XIII (1394-1423)
O CONCÍLIO DE CONSTANÇA REUNIFICA A IGREJA, 1415-17
Os papas da Renascença
Martinho V (1417-31)
Eugênio IV (1431-47)
Nicolau V (1447-55)
Calisto III (1455-58)
Pio II (1458-64)
Paulo II (1464-71)
Sisto IV (1471-84)
Inocêncio VIII (1484-92)
Alexandre IV (1492-1503)
Júlio II (1503-13)
Leão X (1513-1521)

Alguns contemporâneos, de fato, protestaram contra o rumo que a


Igreja estava tomando. Os mais importantes deles foram John Wycliffe,
Jan Hus e místicos como os Irmãos da Vida em Comum. Wycliffe (1330-
84), um estudioso do final da Idade Média, é muitas vezes chamado de
“Estrela d’Alva da Reforma”. Nascido em Yorkshire, passou a maior
parte de sua vida na Universidade de Oxford. Em dois livros importantes,
On Divine Dominion [Sobre o Domínio Divino] e On Civil Dominion
[Sobre o Domínio Civil], ele declarou que o domínio (senhorio sobre
todas as coisas) pertence somente a Deus. Apesar de Deus ter concedido
um certo senhorio para os seres humanos em troca de serviços, a pessoa
que peca perde esse direito. Um clérigo cuja vida demonstra uma falta de
graça deve ser privado de seu cargo. Se a Igreja fracassar nessa ação
disciplinar, então o Estado deve fazê-lo. Ao insistir que todos os poderes,
civis e eclesiásticos, dependem daqueles que os exercem estarem num
relacionamento correto com Deus, Wycliffe sugeriu que mesmo a
autoridade do papa dependia de seu caráter pessoal.
Em On the Church [Sobre a Igreja] Wycliffe afirmou que o fato de
ser formalmente membro de uma igreja não garante a salvação. A Igreja é
o conjunto espiritual de crentes, sendo Cristo o seu cabeça. A salvação é
uma questão entre o indivíduo e Cristo e o papa dirige apenas a Igreja
visível em Roma. Em seu último ano de vida, ele chegou à conclusão
radical de que o papa era o Anticristo e a ensinar que a transubstanciação
era errada e que a ceia era simplesmente a celebração da presença
espiritual do corpo e sangue de Cristo.
Wycliffe era um professor eloqüente e persuasivo e formou um
grupo de “pregadores pobres” itinerantes que espalharam-se pela
Inglaterra propagando suas doutrinas. Além disso, como um
conhecimento da Bíblia era essencial para sua abordagem, ele incentivou
a tradução das Escrituras do latim para o inglês. Essa versão da Bíblia,
juntamente com seus estudos e tratados, foi amplamente difundida pelos
lolardos, como eram chamados os seguidores de Wycliffe. O parlamento
declarou a ilegalidade dos lolardos em 1401, o que fez com que o
movimento se tornasse clandestino e alguns estudiosos argumentam que
a duradoura simpatia pelas idéias de Wycliffe explica porque a Reforma
inglesa começou com tanta facilidade.1
Seus ensinamentos tiveram influência especial na Boêmia. Carlos
IV (1346-73), Sacro Imperador Romano bem como, possivelmente, o
maior rei boêmio, havia feito de Praga o centro da cultura internacional
ao fundar uma universidade em 1348 e ao ter incentivado o crescimento
da consciência nacional checa. Quando sua filha Anne casou-se com
Ricardo II da Inglaterra em 1382, um grande número de checos a
acompanharam. Entre eles havia estudantes que voltaram para a Boêmia
com cópias dos escritos de Wycliffe e que encontraram uma recepção
favorável.
A personalidade marcante nesse caso foi Jan Hus (1369-1415).
Pregador da capela de Belém e professor da universidade em Praga, ele
aderiu às idéias de Wycliffe e começou a exigir reformas semelhantes.
Também pregou contra a venda de indulgências, desafiou a primazia do
papa e enfatizou a autoridade suprema das Escrituras. Ganhou muitos
seguidores ao atacar o papado e a detestada classe alta alemã. De fato,
em 1409 ele induziu o rei boêmio a mudar a constituição da universidade
de modo a dar aos professores checos a voz decisiva sobre assuntos
acadêmicos e assim os professores e alunos alemães mudaram-se para a
Saxônia onde fundaram a Universidade de Leipzig. Como reitor da
universidade, Hus entrou em choque com a Igreja quando condenou a
cruzada papal na Itália e foi excomungado pelo arcebispo de Praga em
1412. Isso custou-lhe o apoio do rei e ele passou os dois anos seguintes
fora da capital, pregando, escrevendo e ganhando cada vez mais
ouvintes.
No desejo de resolver o conflito da Boêmia, o imperador
Sigismundo convidou Hus para o concílio de Constance a fim de
defender suas idéias. Apesar do imperador ter-lhe dado uma carta de
salvo conduto, os cardeais o acusaram de heresia e o prenderam. Para não
colocar em perigo o sucesso do concílio, Sigismundo decidiu sacrificar
Hus, que foi então julgado, condenado e queimado na fogueira em 6 de
julho de 1415.
Ultrajados, os seguidores de Hus revoltaram-se contra o imperador
e lançaram a Boêmia numa guerra religiosa. Sob a liderança de seu
brilhante comandante Jan Zizka, os hussitas, que eram minoria,
conquistaram várias vitórias seguidas. Porém, uma divisão entre a ala
radical taborita e a maioria moderada (os calistinos) enfraqueceu a
campanha dos hussitas contra as forças imperiais. Então, os moderados
derrotaram os taboritas e fizeram as pazes com Roma em 1436. Eles
aceitaram a supremacia papal, mas em troca os leigos teriam permissão
de receber tanto o pão quanto o vinho da ceia e os abusos no clero checo
seriam eliminados. O movimento dos hussitas manteve viva a idéia de
reforma na Igreja até que ela surgiu com força total entre os protestantes.
Também foram importantes os movimentos de devoção popular,
comumente agrupados sob o termo “misticismo”. Trabalhando fora da
estrutura formal da Igreja, os místicos reagiram contra a rígida
institucionalização de Roma, especialmente os ensinamentos de que a
salvação se dá através dos sacramentos somente quando estes são
administrados por um sacerdote ordenado. Ao invés disso, eles
ressaltavam a moralidade pessoal e a vida interior do espírito. No lugar
dos sacramentos e do sacerdócio, eles enfatizavam o próprio Cristo como
mediador entre a alma e Deus. O movimento concentrou-se nas cidades
onde a educação secular havia criado um público de leitores para seus
sermões e livros de devocional.
O principal místico alemão foi o dominicano Johannes Eckhars von
Hochheim (1260-1337), normalmente conhecido como Meister Eckhart.
De sua experiência pessoal e convicção nasceu uma capacidade de
expressar suas idéias com clareza bem como sua convicção fizeram dele
uma poderosa força espiritual. Seus sermões atingiam uma vasta
audiência pois eram copiados por freiras que ouviram-no pregar nos
conventos e trechos desses discursos foram incluídos em livros de
devocional.
Através de Gerard Groote (1340-84), o misticismo tornou-se uma
força vital na Holanda. Ele urgia o povo a lutar pela comunhão com Deus
e alcançar a transformação pessoal ao imitar a vida de Cristo. Ao invés
de complicadas especulações teológicas, ele enfatizava a moralidade, a
devoção e as boas obras. Depois de sua morte, o grupo de seguidores que
haviam se reunido ao seu redor formaram uma associação conhecida
como os Irmãos da Vida em Comum. Era uma ordem de leigos que
viviam sob regulamentos impostos por eles mesmos mas que não
estavam presos a votos monásticos. Eles serviam os pobres e fundaram
mais de duzentas escolas na Holanda e na Alemanha. Deventer, sua
principal academia tinha o nível de ensino mais avançado a norte dos
Alpes e grandes escritores como John Gerson, Desidério Erasmo e
Thomas à Kempis foram alunos das escolas dos Irmãos.
A expressão mais clara do misticismo dos Irmãs é o livro de
devocionais A Imitação de Cristo escrito por Thomas à Kempis (1380-
1471). Ele ressaltava o estudo profundo da Bíblia, oração, introspeção e
esforço sincero de levar uma vida santa. Só os puros de coração
poderiam alcançar o objetivo de todo místico, a saber, a comunhão íntima
com Deus que transcende as barreiras do intelecto humano. Apesar dos
Irmãos da Vida em Comum e outros místicos por toda a Europa não
criticarem as doutrinas ortodoxas em si, ainda assim eram uma ameaça à
Igreja organizada. Sua ênfase sobre a ética e o desprezo pela teologia
especulativa reduziam a importância dos ensinamentos católicos oficiais
e levavam a uma laicização da religião.
Infelizmente, a devoção popular do século 15 também tinha um
lado obscuro, isto é, a crença em bruxas. A maneira mais fácil de explicar
os problemas da época era colocar a culpa sobre uma bruxa. Supunha-se
que esses seres tinham pactos especiais com o diabo que lhes davam o
poder de atormentar pessoas retas. Eles também possuíam imagens e
amuletos que eram usados para destruir lavouras e matar rebanhos. Numa
época em que a mortalidade infantil era alta, as parteiras muitas vezes
eram acusadas de ser feiticeiras. Dizia-se que outras bruxas podiam
transformar-se em animais ou possuir o corpo de homens a fim de
seduzir mulheres. O papa Inocêncio VIII lançou uma bula em 1484 que
definia a bruxaria como heresia e instruía a Inquisição a erradicá-la. Mais
tarde, dois inquisidores publicaram um manual chamado O Martelo das
Bruxas, que explicava como lidar com o fenômeno e milhares de pessoas
morreram por supostamente praticarem bruxaria.

Os primórdios da Renascença
Durante os séculos 13 e 14 a Itália era uma área geográfica sem
unidade política. Enquanto a França e a Inglaterra estavam evoluindo
para estados dinásticos à medida em que seus monarcas centralizavam
sua autoridade às custas da nobreza, as cidades-estados territoriais da
Itália prosperavam graças ao seu comércio com o leste do Mediterrâneo.
Essas áreas ricas também lucravam com a hostilidade entre o imperador
alemão e o papa. Com o enfraquecimento do poder imperial e o
transferência do papado para Avignon, o vácuo político na Itália foi
preenchido pelas cidades-estados, sendo que cada uma governava uma
certa região ao seu redor e brigava com seus vizinhos por terras e pelo
controle das rotas de comércio.
Na Idade Média, a maioria delas tinha uma forma de governo
republicana. No início da Renascença, porém, passaram a ser governadas
pelos regimes de déspotas. Normalmente, um líder agressivo tomava o
poder por um certo tempo e então procurava estabelecer uma sucessão
hereditária. Esses governantes muitas vezes tentavam expandir seu
território, o que apelava para o orgulho dos cidadãos e também garantia
hostilidades com os estados vizinhos. O resultado disso era uma situação
de crise contínua que os ajudava a ficar no poder.
Um bom exemplo desse padrão de desenvolvimento foi Milão,
importante cidade no fértil vale do rio Pó. A economia em expansão
criou uma nova aristocracia econômica que desafiou a antiga aristocracia
agrária e exigiu uma parcela do poder político. Com o crescimento de sua
força comercial e base territorial, Milão tornou-se rival em riqueza e
prestígio tanto de Veneza como de Florença. Nos séculos 12 e 13 seu
governo era baseado num grande concílio no qual todos os cidadãos
livres eram representados e um grupo de doze homens servia de poder
executivo. Em 1277, Otto Visconti deu um golpe no sistema republicano
e em 1395 o imperador havia feito de sua família os governantes
hereditários de Milão.
Florença, a principal cidade-Estado italiana da Renascença era uma
república próspera com uma tradição política instável. Porém, o controle
da cidade não passou para a mão de líderes militares, mas foi mantido
pelos comerciantes de tecidos que aos poucos tornaram-se banqueiros
internacionais. A produção e exportação de tecidos de lã era a atividade
econômica mais importante da cidade e empregava em torno de um terço
da população. Os grandes comerciantes de tecidos criaram uma
constituição que destituía a nobreza de poder político significativo.
Aqueles de posses um pouco mais modestas que pertenciam às guildas de
artesãos apoiaram os comerciantes e em 1434 a família Médici, posando
como representantes do povo, assumiu o poder sobre a cidade.
Sob o governo dos Médici, especialmente de Cósimo (1434-64) e
de Lorenzo o Magnífico (1478-92) Florença buscou uma política de
diplomacia e manobras que fizeram dela o centro de uma sistema de
equilíbrio do poder na Itália. Os Médici, que eram generosos patronos do
ensino e das artes, também providenciaram para que sua próspera cidade
tivesse o papel de liderança na cultura da Renascença.
Localizados ao sul e estendendo-se como uma faixa transversal à
península estavam os estados papais. Durante a residência dos papas em
Avignon, esses territórios fragmentaram-se à medida em que as lutas
cresceram entre cidades e famílias rivais. Em 1353 Inocêncio VI enviou
um representante para restabelecer a autoridade papal na região central
da Itália e seu sucesso abriu caminho para a volta dos papas a Roma.
Porém, só depois de terem superado o movimento conciliar é que eles
poderiam voltar a dar atenção ao processo de formar uma administração
forte nos Estados Papais. Essa foi a realização de um grupo de indivíduos
conhecidos como “Os Papas Renascentistas”.

O crescimento do Humanismo
Apesar das contribuições artísticas e culturais da região norte da
Europa durante os séculos 14 e 15 terem sido substanciais, elas perdiam
sua importância quando comparadas ao que vinha da Itália. Durante
muitos anos historiadores têm procurado compreender esse período
através de uma obra do historiador suíço Jacob Burckhardt, A Civilização
da Renascença na Itália (1860). Ele afirmava que a Renascença foi
criação espontânea do povo italiano durante o século 15. Era algo de
novo, sem raízes no passado — uma expressão de individualidade e uma
explosão genial manifesta em obras artísticas brilhantes e literatura
imortal. Porém, estudiosos mais recentes têm mostrado que a
preocupação de Burckhardt com a cultura e as idéias o levaram a deixar
de lado os fatores religiosos, políticos, sociais e econômicos da História e
sua interpretação clássica da História exige uma certa restrição.
Certamente o povo daquela época achava que havia ocorrido um
renascimento das antigas civilizações da Grécia e Roma, mas os críticos
modernos tendem a enfatizar que aquele foi um período de transição
entre os tempos medievais e modernos. Eles concordam que algumas
idéias da Renascença foram tiradas do passado enquanto outras
voltavam-se para o futuro e previam como seria a vida moderna, mas
insistem que muitas coisas foram singulares a esse tempo. A maioria
concorda que a Renascença caracterizou-se por uma irriquieta
curiosidade, especialmente sobre a própria humanidade e foi dessa ênfase
que surgiram as características mais distintivas desse período. Assim,
Burckhardt estava certo em afirmar que a Renascença haviam explodido
em criatividade e que seus artistas estavam entre os melhores que já
existiram na civilização ocidental.
Dante Alighieri (1265-1321) talvez tenha sido um dos primeiros
indivíduos a mostrar características do individualismo renascentista, mas
em sua complexa personalidade havia elementos do medievalismo bem
como do mundo moderno. Ao que parece, Dante vinha de uma família
florentina respeitável e era ativo na política local. Porém, quando seu
partido perdeu ele foi banido de Florença e nunca mais voltou para casa.
Sua principal obra, A Divina Comédia, foi completada durante os longos
anos de exílio e viagens.
Seu poema é uma alegoria da tentativa do homem de alcançar a
salvação mas, ao contrário das obras medievais sobre o assunto, ele não
se concentra na abstração personificada. Ao invés disso, Dante usa
personagens históricas reais para descrever de maneira figurativa o que
ele considera como sendo as realidades do pensamento cristão — pecado
e punição, remorso e arrependimento, e o amor e misericórdia de Deus.
No poema, ele passa sucessivamente pelo Inferno, Purgatório e Paraíso
com três guias para orientá-lo. Nas duas primeiras regiões o poeta
Virgílio dirige seus passos; em grande parte do Paraíso é Beatriz e, para a
visão final de Deus, Bernardo de Clairveaux.
Na Divina Comédia Dante mostrou um surpreendente
conhecimento de Ciências, Teologia, História e dos clássicos. Ele
essencialmente criou a língua italiana moderna através dessa obra de arte
e ela é considerada a síntese da vida e do pensamento medieval. Porém,
alguns elementos do poema não se encaixavam na cosmovisão medieval.
Dante rejeitou a posição da Igreja em seu desejo de controlar todos os
aspectos da vida do indivíduo e destemidamente lançou vários papas no
inferno por heresia, simonia, covardia e avareza. O fato de tratar de
elementos pagãos e cristãos lado a lado mostrava um respeito pela
cultura clássica que não era característico dos escritores medievais. A
Divina Comédia exerceu um efeito tão profundo sobre o povo do século
14 que, cem anos depois da morte de Dante, já havia grupos de
estudiosos dedicando-se ao estudo do poema em Florença, Veneza,
Bolonha e Pisa.
O pioneiro do resgate da tradição clássica foi Petrarca (1304-74),
muitas vezes chamado de pai do Humanismo. Nascido em Arezzo, uma
pequena cidade próxima à Florença, ele estudou Direito nas
universidades de Montpellier e Bolonha. Depois da morte de seu pai
desistiu dos estudos da lei e tornou-se um monge de modo a ter o direito
a benefícios de patronos ricos. Ele viveu confortavelmente e viajou muito
por toda a Europa central e ocidental antes de estabelecer-se na Itália.
Petrarca já se interessava pelos clássicos desde a infância e
compartilhou sua paixão com muitos de seus conhecidos e através deles,
com um grupo cada vez mais surpreso de estudiosos. Descobriu
manuscritos das obras de Virgílio, Horácio, Lívio, Olvídio, Cícero,
Sêneca e Juvenal, entre outros e inspirou humanistas a procurar cópias
dos clássicos. Seu poema épico África, que exaltava o conquistador de
Aníbal — Scípio Africanus — deu-lhe a coroa de poeta em Roma e
começou a moda de glorificação dos tempos clássicos. Ele também
compilou esboços biográficos de romanos famosos em Sobre Homens
Ilustres, a fim de mostrar seus grandes feitos e sabedoria e virtude
superiores.
O que indivíduos como Dante e Petrarca fizeram foi encorajar o
crescimento do Humanismo. Essa termo teve origem em humanitas, a
palavra latina usada para descrever a força civilizadora da arte e da
literatura em seu sentido mais amplo. Estudiosos da Medicina conheciam
os clássicos, mas a Renascença abordou esses textos de maneira
diferente. Eles não serviam mais simplesmente como fonte de ilustração
para sermões ou ferramentas para a lógica, mas passaram a ser apreciados
por seus próprios méritos.
Antes que pudesse ter início o estudo dos clássicos, porém, era
necessário haver um programa que fosse mais sistemático na coleta de
manuscritos. Essa foi a contribuição dos governantes das cidades-estados
da Itália que gastaram altíssimas somas de dinheiro para obter obras
gregas e latinas. Muitas destas haviam sido copiados centenas de anos
antes e estavam danificadas por fogo, água ou traças. Em diversos casos,
os copistas medievais haviam feito adições e comentários que
precisavam ser retirados. Por fim, dicionários e enciclopédias foram
compostos para oferecer àqueles que estavam estudando os clássicos o
material que os ajudaria a entender as várias referências e alusões.
O reavivamento dos estudos clássicos começou com a literatura
latina, tendo em vista que os primeiros humanistas não sabiam ler grego,
mas logo o pioneiro do ensino da língua grega entrou em cena. Ele era
Manuel Chrysoloras, que em 1396 havia sido enviado como embaixador
à Itália pelo governo bizantino a fim de pedir ajuda militar contra os
turcos. No ano seguinte ele começou a lecionar em Florença e depois em
Milão e Pávia antes de voltar para Constantinopla em 1403.
O contato com estudiosos gregos incentivou Cósimo de Médici a
fundar a Academia Platônica em Florença. Esta era um pequeno grupo
que se encontrava para discutir a filosofia de Platão e os problemas
contemporâneos à luz de seus ensinamentos. A fim de facilitar essa
interatividade, Cósimo deu a Marsílio Ficino (1433-94) uma villa e um
fundo permitindo que ele passasse o resto de sua vida traduzindo e
interpretando Platão. A Academia Platônica desenvolveu-se ao longo do
século 15 e dentre seus estudiosos de destaque estava Pico Della
Mirandola (1463-94) que introduziu o estudo do hebraico à Europa cristã
e atraiu para Florença alunos de lugares distantes como a Alemanha e
Inglaterra. A fundação dos Médici serviu de protótipo para academias
semelhantes em outras partes da Itália e, mais tarde, em toda a Europa.
Uma importante contribuição humanista foi a ciência da criticismo
textual. O melhor exemplo dessa nova abordagem foi como Lorenzo
Valla demonstrou as origens falsas da “Doação de Constantino”. Esse
documento supostamente era um registro feito pelo imperador
Constantino que passava o controle da parte oeste do império para o
bispo de Roma e os papas medievais utilizaram-no como justificativa
para seu poder “temporal” (posse de terras). Valla usou argumentos
filológicos e históricos para mostrar que o documento não podia ter sido
escrito no 4º século, mas sim que era de origem bem mais recente. Ao
analisar as muitas palavras anacrônicas e os costumes no documento, ele
convenceu seus contemporâneos de que se tratava de uma falsificação do
século 8º. Seu método viria a ser amplamente utilizado na Alemanha
durante o século 16 quando Lutero e outros adotaram a abordagem crítica
da Renascença.

Cultura renascentista
A Renascença não apenas recuperou a grande literatura da
Antigüidade como também produziu obras de gênios da Pintura,
Escultura e Arquitetura. A nova abordagem artística começou com o
trabalho de Giotto (1266-1336). Antes das inovações de Giotto a pintura
italiana era de estilo plano e fluxo linear, baseada numa tradição que não
havia mudado em quinhentos anos. Durante esse tempo, a pintura tinha
sido uma arte da Igreja, que tinha como propósito ensinar aqueles que
não sabiam ler. Para isso, porém, todos os detalhes desnecessários eram
removidos a vim de evitar a distração do observador do tema central.
Muitas vezes, três ou quatro acontecimentos eram colocados em uma
mesma figura e os gestos eram exagerados para ressaltar uma
determinada idéia. Tendo em vista que a pintura era uma tentativa de
transmitir de forma bidimensional um mundo tridimensional, uma pessoa
na Idade Média considerava o retrato de um homem como algo “real” no
sentido de que lembrava um homem. Para apresentar uma ilusão mais
precisa de realidade, os artistas tinham que aprender como dar uma
sensação de perspectiva através do uso da proporção e de luz e sombra.
Giotto, porém, rompeu o mundo simbólico medieval e adotou uma
abordagem “naturalista” na qual os indivíduos eram pintados em
posições e grupos iguais aos da vida real, relacionando-se entre si como
normalmente fazem os seres humanos. Ainda assim, por não saber as leis
de perspectiva, suas pessoas parecem arredondadas e sólidas como
estátuas. Exemplos podem ser encontrados em muitas de suas figuras de
São Francisco como as da igreja em Assis e na capela Bardi em Florença.
A arte da Renascença não avançou num ritmo constante. Quando a
Peste Negra varreu a Itália, a ênfase de Giotto sobre o homem foi
ignorada e a arte voltou aos tipos mais tradicionais de expressão. No
final do século 14, porém, os artistas retomaram o realismo. O que
reavivou o movimento iniciado por Giotto foi uma competição em 1401
para selecionar um artista para desenhar as novas portas de bronze do
Batistério de São Giovanni em Florença. Dois dos mais respeitados
escultores da cidade, Fillipo Brunelleschi (1377-1446) e Lorenzo
Ghiberti (1378-1455) inscreveram-se no concurso. O painel da
competição devia ser um retrato de Abraão prestes a sacrificar Isaque.
Apesar do trabalho de Brunelleschi mostrar um sentimento religioso mais
intenso, os juízes escolheram a obra de seu rival por causa da unidade de
sensação e a maior atenção dedicada às linhas do corpo. Assim, Gilberto
pôs-se a produzir a famosa Portas do Paraíso que até os dias de hoje
surpreende o público com sua beleza indescritível.
Os afrescos de Masaccio (1401-28) também reavivaram a
abordagem realista de Giotto. Brunelleschi havia descoberto um
princípio da perspectiva no qual o tamanho dos objetos podia ser
reduzido ao fundo e Masaccio adotou-o em sua obra “Santa Trindade”
nas paredes da igreja de Santa Maria Novella em Florença, uma obra
excepcional por seu realismo físico e retrato de emoção e caráter. Ao
mesmo tempo, Donatello (1386-1466) rompeu com o padrão tradicional
de esculturas. Aluno de Ghiberti, ele libertou a escultura de sua função
medieval de embelezar a Arquitetura, reduziu a quantidade de detalhes
em suas estátuas e deu a elas um ar sólido, pesado e determinado. Muita
da inspiração para seu trabalho veio do estudo da anatomia do corpo
humano, uma ciência que estava começando a se desenvolver.
Quando os italianos já haviam dominado a arte de retratar a
natureza através da pintura, passaram a buscar significados mais
profundos. A princípio, os artistas da Renascença eram membros de
guildas de artesanato e não tinham muita educação formal. Mas à medida
em que garantiram patronos nas classes mais elevadas, eles começaram a
ter contato com filósofos e humanistas e a captar idéias da elite
intelectual. Na Academia Florentina os artistas aprendiam que o amor do
mundo físico era um dos passos que levava ao amor de Deus e eles
introduziram essa idéia em suas obras ao fazer o corpo humano parecer
mais atraente do que era. Eles acreditavam que quanto mais bela a
natureza ficasse, mais próxima de Deus estaria. Isso os levou a estudar o
corpo humano com mais cuidado do que nunca e a colocar grande ênfase
nos nus.
Os três artistas mais conhecidos da Alta Renascença, Leonardo da
Vinci (1452-1519), Michelângelo (1475-1564) e Rafael (1483-1520),
representam essa nova abordagem. Apesar de da Vinci estar mais
interessado na ciência experimental, seu afresco A Última Ceia, em
Milão e seu retrato da Mona Lisa são obras primas da arte ocidental.
Mas com Michelângelo foi o platonismo que venceu, tendo em
vista que ele idealizou a forma humana em estátuas como a de Davi em
Florença e na Pietá em Roma. Nascido em Florença e trazido para o
círculo familiar dos Médici quando ainda era jovem, ele deixou o lar para
ir a Roma em 1494 e lá passou grande parte do resto de sua vida. Um dos
maiores gênios artísticos de todos os tempos, além de esculpir, ele
pintava, desenhava edificações (a nova Basílica de São Pedro) e escrevia
poesia. Seu afresco no teto da Capela Sistina é, provavelmente, a pintura
mais imponente da Renascença. É uma síntese magnífica de formas
pagãs com pensamentos cristãos, um tema do Antigo Testamento que
fascina o observador com seu uso vívido da cor.
Rafael nasceu em Urbino mas estabeleceu-se em Roma em 1508.
Em suas várias madonnas ele procurou atingir uma beleza maior do que
aquela encontrada na natureza. Sua arte combina os objetivos naturalistas
dos artistas do início do século 15 com a idealização da forma humana
encontrada em Michelângelo.

O papado da Renascença
Os papas da época estavam entre os mais importantes patronos da
arte e cultura renascentista. Da ascensão de Nicolau V em 1447 até o
saque de Roma em 1527, o trono papal foi ocupado por homens que
preocupavam-se com aspectos mais mundanos dos estudos e da cultura e
com a construção de um Estado forte na região central da Itália. Nicolau
V (1447-55) não apenas colocou em prática um programa de construção
em Roma como também realizou a importante tarefa de colecionar livros.
Ele usava agentes que procuravam os manuscritos raros de clássicos e
humanistas que traduziam e corrigiam essas obras. Autores da Grécia
antiga, incluindo os patriarcas gregos, foram traduzidos para o latim e
assim tornaram-se acessíveis para o povo da Europa ocidental. Sua
coleção de milhares de manuscritos formou a base para a nova biblioteca
do Vaticano.
Talvez o mais fascinante dos papas da Renascença tenha sido Pio II
(1458-64), um competente humanista cujos Comentários oferecem uma
visão penetrante da vida em sua época. De família nobre mas sem
recursos, ele viajou incessantemente a serviço da Igreja e, antes de
tornar-se papa, havia se destacado como ensaísta e orador ciceroniano.
A corrupção cresceu assustadoramente no papado durante o reinado
de Inocêncio VIII (1484-92). Depois de passar uma juventude devassa
em Nápoles, ele foi ordenado sacerdote. Subindo de cargos dentro da
Igreja, acabou tornando-se papa, mas seus hábitos não mudaram. Ele era
pai de dezesseis filhos, que ele reconheceu abertamente e cujos
casamentos ele então celebrou no Vaticano. Estava constantemente
envolvido em guerras e disputas com outros estados italianos e o
financiamento dessas campanhas deixava a Igreja endividada.
Ao aproximar-se da morte, diz-se que ele implorou aos cardeais que
escolhessem um sucessor melhor do que ele. Porém, eles ignoraram sua
súplica e com o pontificado de Alexandre VI (1492-1503) o papado
chegou ao ponto espiritual mais baixo. Rodrigo Bórgia havia progredido
rapidamente dentro da Igreja e feito cardeal aos 25 anos de idade. Um
homem de negócios perspicaz, ele acumulou uma fortuna que usou então
para ganhar o papado. Sua vida pessoal era tão imoral que na época de
sua eleição ele já era pai de vários filhos. Apesar de ter administrado com
prudência as finanças papais, seu objetivo era um fundar um principado
para sua família na região central da Itália. Ele entregou o projeto ao seu
filho, César Bórgia, que foi um assassino tão lendário quanto
inescrupuloso. Alexandre deu o controle do palácio papal à sua filha
Lucrécia que, aos 22 anos, já havia se casado três vezes. Depois da morte
de Alexandre, César foi obrigado a deixar a Itália. Apesar de ter apoiado
o trabalho missionário dos portugueses em outras partes do mundo e ter
negociado a famosa linha de demarcação que evitou a guerra entre
Espanha e Portugal por causa de questões imperiais (ver capítulo 12), ele
foi uma completa desgraça para a Igreja.
Seu sucessor Júlio II (1503-13) tentou reparar os danos ao refrear a
prática da simonia e reduzir o nepotismo. Porém, ele pessoalmente
liderava o exército papal e era um homem de tamanha inquietação e
temperamento colérico que as pessoas o chamavam de “terribilita”. O
mais importante, porém, é que quando de seu pontificado, Roma havia
substituído Florença como centro da cultura renascentista. Para enfatizar
a grandiosidade de Roma, ele demoliu a antiga Basílica de São Pedro e
orientou Bramante para projetar a planta do que viria a ser a maior igreja
do Cristianismo. Ao longo do enorme projeto de construção, Júlio
comissionou Michelângelo para fazer os afrescos da Capela Sistina e
Rafael para decorar os aposentos papais.
Leão X (1513-21), sucessor de Júlio, era o segundo filho de
Lorenzo, o Magnífico, e havia sido feito arcebispo aos 8 anos de idade,
cardeal aos 13 e papa aos 37. Um homem de gostos caros, ele estava
convencido de que o cabeça da Igreja não devia ter a vida austera e
simples como a de Cristo e seus apóstolos. Em sua coroação ele entrou
em Roma com mantos deslumbrantes, passando por arcos erigidos em
sua homenagem como se fosse uma antiga procissão triunfal. Durante
seu pontificado, Leão abarrotou a cúria e a administração dos Estados
Papais com membros da família Médici e justificou seu alto padrão de
vida com a memorável frase: “Deus nos deu o papado, então vamos
aproveitá-lo”. Seu amor pela arte, música e teatro fez de Roma o centro
cultural da Europa, o que foi conseguido a um custo extremamente alto.
Júlio II tinha sido um papa frugal, mas o dinheiro que ele juntou foi logo
esgotado por Leão e o papado viu-se profundamente endividado.
Conforme foi mostrado, a maioria dos papas da Renascença foi
culpada de nepotismo. Parentes que com freqüência eram incompetentes
ou não tinha idade suficiente recebiam cargos na Igreja. Por vezes, eles
eram “sobrinhos” ou filhos bastardos como César Bórgia, enquanto
muitos dos próprios papas começaram sua carreira na igreja por causa do
nepotismo. Seus gostos exóticos, estilos de vida caros e envolvimentos
políticos levaram a muitos abusos fiscais. Cargos eclesiásticos eram
comprados e vendidos. Júlio II e Alexandre V foram eleitos ao
subornarem a maior parte do colégio de cardeais. As indulgências eram
vendidas regularmente e alguns até tentavam forjar e vender bulas
papais. Os papas da Renascença compartilhavam a cosmovisão de seus
companheiros da nobreza que achavam que uma existência luxuosa traria
mais respeito ao cargo. Enquanto isso possibilitou o melhor da arte
renascentista, também levou a críticas gerais.
Muitos, especialmente das classes mais baixas, não aprovavam o
estilo de vida do alto clero. Pregadores do arrependimento que
denunciavam os abusos tanto de leigos quanto do clero atraíam grandes
multidões. Dentre esses evangelistas fervorosos, nenhum é mais
conhecido do que Girolamo Savonarola (1452-98). Sua vida e ministério
ilustram como a Renascença italiana não foi tão secular e mundana como
já se afirmou. Nascido numa família de poucos recursos em Ferrara,
educado na tradição humanista e destinado a uma carreira na Medicina,
aos 22 anos de idade ele decidiu entrar para a ordem dos dominicanos.
Em 1482 foi enviado a Florença e lá começou a clamar por
arrependimento e conversão em seus sermões que eram repletos de
profecias apocalípticas. A época era propícia para essa mensagem pois o
governo dos Médici estava em guerra com a França e as condições
econômicas encontravam-se seriamente deprimidas. Os Médici haviam se
tornado poderosos demais e não só as classes mais baixas, mas também
as famílias de comerciantes passaram a reagir contra sua ostentação de
riqueza e luxo. A igreja de São Marcos se enchia de pessoas ansiosas
para ouvir Savonarola fazer seu mais recente pronunciamento contra os
Médici e outros príncipes e eclesiásticos que viviam no luxo. Muitos
penitentes entregavam símbolos de vaidade como livros indecentes,
figuras de nus, bijuterias, perucas e roupas frívolas para serem
queimados em grandes fogueiras.
A popularidade de Savonarola chegou ao seu ápice quando ele
convenceu o rei Carlos VIII da França, que havia invadido a Itália, a não
saquear Florença. O governo dos Médici entrou em colapso e foi
substituído por um novo regime republicano que era fortemente
influenciado pelas pregações de Savonarola. Ele previu que um grande
desastre atingiria a Itália, mas uma era dourada iria raiar sobre Florença e
espalhar-se para o mundo todo. Os florentinos, incluindo os estudiosos
humanistas Ficino e Pico Dela Mirandola, apoiavam essas profecias com
entusiasmo. O papa Alexandre VI, preocupado com a amizade recente de
Florença com a França não queria ter um aliado dos franceses como
vizinho dos Estados Papais. Assim, o austero dominicano viu-se em
oposição ao papa mais infame da Renascença. Alexandre tentou
persuadir Savonarola a deixar a cidade e, quando não teve sucesso,
ofereceu-lhe um suborno, a saber, um posto de cardeal. Quando falhou
novamente, o papa excomungou Savonarola em 1497. O frade, porém,
declarou que a excomunhão não tinha valor pois somente Deus podia
cortá-lo da comunhão. Ele continuou a pregar e a rezar missas, mas o
governo da cidade, ameaçado de interdição pelo papa, pediu que ele
suspendesse seus deveres clericais. Savonarola havia perdido o apoio dos
cidadãos abastados de Florença e os franciscanos, que nunca se
entenderam muito bem com os dominicanos, também voltaram-se contra
ele. Em seguida, foi acusado de heresia, julgado e executado.

A Renascença no norte
As idéias da Renascença italiana logo se espalharam para a região
norte da Europa e o principal expoente desse novo aprendizado foi o
“príncipe dos humanistas”, Desidério Erasmo (1469-1536). Como muitos
outros de seus contemporâneos, ele acreditava que o estudo de um texto
de fontes cristãs corretas juntamente com os clássicos gregos e latinos
traria uma renovação do Cristianismo. Nascido em Roterdã, Erasmo
viajou muito e estudou incessantemente. Aluno de uma escola dos
Irmãos da Vida em Comum em Deventer, ele foi orientado para uma vida
religiosa, mas uma breve experiência como monge o convenceu de que
ele não era adequado para a vida monástica. Estudos posteriores em Paris
e na Itália o levaram a voltar-se para o Humanismo. Sua amizade com
John Colet e Thomas More na Inglaterra fortaleceram sua determinação
de buscar a reconciliação entre a fé e a Razão, a devoção e os estudos, as
Escrituras e a literatura. Assim, ele tornou-se símbolo e síntese da
Renascença no norte.
Tanto os escritos de Erasmo como sua vida pessoal refletiam essa
harmonia entre pensamento secular e religioso. Na obra Enchiridion ele
suplicava ao povo que se preocupasse com o significado da devoção
religiosa e que colocasse suas crenças em prática ao invés de
simplesmente professá-las. Declarou: “Que sentido faz ser aspergido com
água benta se a poluição interna do coração não é lavada?” Continuou
dizendo: “Vocês veneram os santos e deleitam-se em tocar suas relíquias,
mas desprezam o melhor daquilo que deixaram para trás, o exemplo de
vida santificada”. Erasmo promoveu o estudo da Bíblia ao publicar em
1516 sua própria tradução e a primeira edição impressa do Novo
Testamento em grego. Também editou as obras de vários Patriarcas da
Igreja primitiva.
As preocupações de Erasmo e de outros cristãos humanistas
repercutiram por toda a Europa no início do século 16. Eles publicaram
extensivamente, promoveram e influenciaram a educação na escola
primária e até mesmo ocuparam cátedras de literatura, línguas e estudos
clássicos nas universidades. Johannes Reuchlin, por exemplo, foi o
principal estudioso da Bíblia em hebraico e lecionou na Universidade de
Tübingen. Juan Luís Vives, o brilhante humanista espanhol foi, durante
algum tempo professor da Universidade de Louvain e depois de Oxford.
Outros humanistas espanhóis lecionaram na nova Universidade de
Alcala, fundada em 1509 pelo Cardeal Ximénez de Cisneros. Assim
também, John Colet fundou a escola St. Paul em Westminster, que era
dirigida para o ensino humanista.
Talvez a contribuição mais importante da Renascença no norte da
Europa tenha sido a descoberta da impressão com tipos móveis. Dois
reavivamentos clássicos já haviam acontecido na Europa, um sob o
reinado de Carlos Magno no século 8º e um durante o século 12 liderado
por estudiosos como João de Salisbury. A Renascença teve um efeito
duradouro, coisa que não aconteceu com os movimentos anteriores,
porque o movimento clássico do século 15 foi disseminado através de
material impresso. A impressão possibilitava livros mais baratos, um
público leitor mais amplo e uma nova cosmovisão.
Papel, tinta e a técnica de imprimir usando blocos de madeira
entalhados ou tipos feitos de metal já eram conhecidos há tempo, mas o
processo era lento e caro pois cada letra tinha que ser entalhada
separadamente. Por volta de 1450, Johann Gutenberg de Mainz, na
Alemanha começou a fazer letras de metal intercambiáveis ao invés dos
blocos de madeira; como esses tipos feitos de metal podiam ser
reutilizados muitas vezes, a produção de livros tornou-se relativamente
barata. Essa técnica espalhou-se pela Europa com incrível rapidez e em
1500 havia impressoras funcionando em pelo menos cem comunidades.
Mais de trinta mil obras haviam sido publicadas, totalizando por volta de
seis a nove milhões de volumes. Com a chegada da Reforma protestante,
a palavra impressa provou ser de valor incalculável para a disseminação
das novas idéias religiosas.
Esses dois séculos foram um tempo de avaliação de paradigmas que
haviam se mantido durante séculos. O conceito da Europa como
Republica Christiana — tendo o papado como seu governo espiritual e o
Sacro Império Romano como governo secular — havia se desintegrado;
mesmo tentando redefinir o seu papel, a Igreja Católica Romana perdeu a
liderança espiritual. Os novos estados dinásticos eram apoiados pela
classe média que, com a ajuda de avanços tecnológicas e melhora dos
procedimentos de crédito, tornou-se rapidamente a classe dominante. Na
esfera não-material, a era preparou a sociedade para o futuro. Enquanto
os humanistas lutavam para recuperar aquilo que acreditavam ser a
grandeza intelectual e moral da antigüidade clássica, deixaram para a
posteridade novas idéias e atitudes. Os métodos de governo articulados
por eles foram a base das teorias modernas de constitucionalismo. A
tentativa de pintores, escultores e arquitetos de reproduzir obras primas
clássicas levou a importantes descobertas de técnicas e desenho. Em seu
esforço para entender a obra da Antigüidade, os humanistas não apenas
desenvolveram uma visão histórica moderna como também deram início
a uma iniciativa paralela de volta às origens no Cristianismo. Assim, o
caminho estava aberto para a Reforma.

Capítulo 10 - A Reforma atinge a Igreja


Em 1500 ainda era possível se falar de cristandade no lugar de
Europa. Ao invés de ser uma descrição geográfica, esse termo era um
conceito espiritual que envolvia sujeição a um conjunto de pensamentos.
Ele expressava a unidade dos europeus sob a Igreja Católica Romana.
Todo o povo, exceto alguns grupos minoritários — judeus, muçulmanos,
cristãos ortodoxos orientais e membros de seitas extremistas —
cultuavam de acordo com o mesmo ritual, aceitando a reivindicação da
Igreja para si mesma do monopólio da salvação e reconhecendo o papa
como autoridade suprema sobre a fé e a moral. Mas em cinqüenta anos, a
Reforma protestante havia desintegrado essa unidade religiosa. Roma
havia perdido para sempre o norte da Alemanha, a Escandinávia e partes
da Suíça, Holanda, Escócia e Inglaterra, sendo que também havia grupos
de tamanho considerável na França, Boêmia, Polônia e Hungria que
aceitavam a nova visão de salvação ensinada pelos reformadores. Até
mesmo a Igreja Católica Romana foi profundamente afetada pela
Reforma e sobreviveu somente porque tornou-se uma organização bem
diferente daquela que havia sido na Idade Média.

A Reforma luterana
No dia 31 de outubro de 1517 um professor alemão de Teologia
chamado Martinho Lutero (1483-1546) afixou uma folha de papel
contendo noventa e cinco proposições, “teses” para discussão, na porta
da Igreja do Castelo em Wittenberg. Na sua época esse era um
procedimento normal pois aqueles que desejavam iniciar um debate culto
sobre um assunto, usavam a porta da igreja como quadro de avisos.
As teses questionavam a validade das indulgências, uma prática que
a Igreja medieval havia desenvolvido para ajudar na salvação das almas.
Elas baseavam-se na crença de que Cristo, a Virgem Maria e os santos
haviam acumulado um excedente de boas ações (o “tesouro de méritos”)
do qual, de acordo com a Igreja, o papa podia lançar mão para perdoar a
quantidade de castigo temporal (no purgatório) pelo pecado que as
pessoas comuns teriam que sofrer. A princípio, essas reduções de tempo
no purgatório antes de se entrar no céu eram oferecidas àqueles que
haviam participado de cruzadas, peregrinações ou tinha realizado algum
ato de grande mérito. Aos poucos, as condições para se conceder esses
perdões forem relaxando e no final do século 15 eles podiam ser obtidos
através da oferta de dinheiro para a Igreja. Para todos os efeitos, a
distribuição de indulgência havia se tornado um negócio que empregava
vendedores quase profissionais. As questões que Lutero levantou sobre
essa prática não tinham a intenção de causar uma divisão na Igreja, mas
foi o que aconteceu.
Lutero era filho de um mineiro de cobre na Saxônia. Como seu pai
desejava que ele seguisse uma carreira na área de Direito, Lutero
começou a estudar na Universidade de Erfurt em 1501 e recebeu um
Mestrado em Ciências Humanas em 1505. Porém, no último ano uma
experiência aterradora durante uma tempestade levou o jovem Lutero a
abandonar suas ambições seculares e entrar para um mosteiro de eremitas
agostinianos em Erfurt. Em 1507 ele foi ordenado para o sacerdócio, mas
sua primeira missa foi uma experiência de tal modo intimidante que ele
sentiu-se completamente inadequado.
A natureza introspectiva e questionadora de Lutero era tal que seu
superior monástico, Johann von Staupitz, recomendou que ele
continuasse seus estudos na Universidade de Wittemberg e em 1512 ele
recebeu o doutorado em Teologia. Foi então nomeado professor nessa
universidade, uma instituição fundada pelo duque da Saxônia em 1502.
Além de lecionar, Lutero trabalhava como pastor da igreja da cidade e
como supervisor administrativo de um mosteiro agostiniano na Saxônia.
Certa vez foi enviado para tratar de assuntos monásticos em Roma, onde
o caráter mundano da cidade que ele acreditava ser o centro da
espiritualidade o deixou profundamente desiludido e desgostoso.
1484-1531 1521 1497-1560
Ulrico Dieta de Melanchthon
Zuínglio Worms
1466-1536 1483-1546 1513-21 1525 1491-1556 1509-64 1514-72
Erasmo Martinho Papado de Execução Inácio de João John Knox
Lutero Leão X de Thomas Loyola Calvino
Muntzer
1450 1500 1550 1600
1486-1525 1509-47 1519-56 1542-87 1558-87
Frederico da Henrique Carlos V Maria da Elizabeth I
Saxônia VIII Escócia
1515-47
Francisco I

As primeiras palestras teológicas de Lutero eram sobre Salmos,


Romanos, Gálatas e Hebreus. As anotações que fazia para estas indicam
que ele havia abandonado a forma medieval tradicional de analisar o
texto. Concentrando-se em questões de pecado, graça e retidão, ele
seguia os ensinamentos de Agostinho de Hipona, rejeitando desse modo
a abordagem escolástica. O que levou Lutero a repensar a Teologia foi o
estado de desespero no qual ele se viu diante da presença de Deus. Ele
queria a segurança da aceitação divina, mas consciente da enormidade do
pecado, ele viu Deus apenas com uma justiça implacável que condenava
todos os esforços da humanidade em encontrar perdão. Seu desejo de
pagar o preço do pecado através das várias obras recomendadas pela
Igreja e pela ordem agostiniana só fazia aumentar essa frustração.
Por fim, a solução da crise espiritual de Lutero veio de sua sensação
de total desamparo diante de Deus e dos escritos do apóstolo Paulo. Sua
“descoberta evangélica” foi de que uma pessoa não é justificada pelas
obras, mas sim pela fé na obra consumada de Cristo. Não há nada que um
indivíduo possa fazer para merecer o perdão de Deus, mas se ele crer em
Cristo, Deus lhe concederá a salvação e a vida eterna através do dom do
Espírito Santo. Tudo isso acontece por meio da fé — ao entregar-se
completamente à mensagem do evangelho. Aqui, Lutero descreve sua
experiência:

Eu ansiava compreender a epístola de Paulo aos Romanos e não havia nada que me
impedisse a não ser aquela expressão “a justiça de Deus”, pois eu entendi que significava
que se havia justiça então Deus era justo e agia com justiça ao punir os injustos. Minha
situação era tal que, apesar de ser um monge impecável,, eu estava diante de Deus como
um pecador com a consciência perturbada e não tinha confiança de que meu mérito iria
aplacar esse Deus.
Ponderava dia e noite até que enxerguei a ligação entre a justiça de Deus e a declaração de
que “o justo viverá pela fé”. Então, compreendi que a justiça de Deus é aquela retidão
através da qual a graça e a misericórdia de Deus nos justificam pela fé. A partir de então
senti que havia nascido de novo e passado por portas abertas para o paraíso. As Escrituras
como um todo adquiriram um novo significado e se antes a “justiça de Deus” havia me
enchido de ódio, agora tornara-se inexprimivelmente doce em maior amor. Essa passagem
de Paulo tornou-se para mim o portal do céu.
Se você tem uma fé verdadeira de que Cristo é seu Salvador, então imediatamente você
tem um Deus cheio de graça, pois a fé o guia e abre o coração de Deus bem como sua
vontade para que você possa ver a graça pura e transbordar de amor.

A descoberta de Lutero da justificação somente pela fé e a doutrina


que a acompanhava — o sacerdócio de todos os crentes — foi um tanto
revolucionária. Se uma pessoa podia ir diretamente a Deus e pedir perdão
pelos pecados, então toda a estrutura da Igreja, que existia com o
propósito fundamental de mediar os homens e Deus, tornava-se
desnecessária. Apesar de rejeitar o sacerdócio e hierarquia da Igreja,
Lutero nunca mudou sua visão conservadora de que a sociedade
precisava de uma estrutura duradoura. Mas seu ataque à Igreja foi
progredindo de uma questão para outra até que restava muito pouco da
antiga instituição que fosse imune às críticas. Ele argumentava, por
exemplo, que os pastores não eram sacerdotes, mas sim pessoas cujo
papel era de pregar a Palavra de Deus. Quanto aos diversos níveis de
clero, eles eram vistos como uma forma dos italianos corruptos roubarem
dinheiro dos alemães honestos.
Lutero acabou mostrando ser um indivíduo extremamente
competente que comunicava suas idéias de modo muito eficaz. Durante
os trinta anos seguintes ele produziu uma quantidade inacreditável de
livros, panfletos, sermões, cartas e hinos. Calcula-se que publicava
alguma coisa a cada duas semanas e hoje a coletânea de suas obras (a
edição oficial de Weimar) compreende mais de cem enormes volumes.
Em certas ocasiões ele conseguia ser rude e malicioso, mas isso não
diminui o apelo de seus escritos. Sem Lutero, a Reforma protestante não
teria alcançado o sucesso.
Foram as noventa e cinco teses que lançaram esse estudioso e
monge desconhecido a uma posição de proeminência. Essas proposições
não tinham a intenção de ser controversas, mas foram colocadas sob a
forma de questionamento. Ele tocou, por exemplo nestes assuntos:

Esse abuso da pregação sobre os perdões não facilita nem para o mais cultos dos homens
proteger das calúnias a reverência devida ao papa ou, de um modo geral, dos
questionamentos perspicazes dos leigos.
Como por exemplo: Por que o papa não esvazia o purgatório por amor à mais santa
caridade e à suprema necessidade das almas — sendo esta a mais justa de todas as razões
— se ele redime um número infinito de almas por amor àquela que é a mais fatal de todas
as coisas, dinheiro para ser gasto na construção de uma basílica — sendo esta uma razão
tão pouco importante?
Apesar da cuidadosa escolha de palavras, as teses desencadearam
uma grande controvérsia pois não concentravam-se apenas em assuntos
morais e teológicos, mas também chamavam a atenção para os abusos
econômicos e políticos da Igreja. Lutero enviou cópias das teses para
vários conhecidos e para alguns líderes da igreja na Alemanha, incluindo
Alberto de Hohenzollen que ele considerava responsável pelo abuso de
indulgências. O que ele não sabia era que a campanha de venda de
indulgências em 1517 era resultado de um acordo financeiro entre o
papado e o príncipe alemão. Alberto era um típico aristocrata que
progredia em sua carreira através da Igreja. Ele já era arcebispo de
Magdeburg, mas queria acrescentar às suas conquistas a posição de
arcebispo de Mainz pois quem tinha esse cargo também era um dos setes
eleitores do Sacro Império Romano. Conforme foi observado
anteriormente, o império não era governado por direito hereditário, mas
sim através da escolha de um imperador dentre um grupo de candidatos.
O problema de Alberto era que, ao ter mais de um cargo eclesiástico ele
estava cometendo o pecado de pluralismo e portanto era necessário ter
uma permissão especial de Roma. Como uma isenção dessa importância
exigia o pagamento de uma enorme soma em dinheiro, Alberto e o papa
Leão X concordaram que o príncipe da Alemanha faria uma generosa
contribuição para a construção da Basílica de São Pedro em Roma. O
papa autorizou Alberto a usar dos lucros de uma venda de indulgências
na Alemanha para cumprir sua contribuição.
Johann Tetzel era frade dominicano e trabalhava como
administrador da campanha. A abordagem extravagante de Tetzel
deixava Lutero irado, tendo em vista que ele estava oferecendo às
pessoas indulgências “plenárias”, ou seja, a remissão total do purgatório
e entrada imediata no céu quando de sua morte. O lema da campanha era
particularmente irritante e soava como o produto de uma agência de
propaganda moderna: “Cada moeda que retine é uma alma que do
purgatório se redime”. Foi para desafiar esse abuso que Lutero afixou as
teses para debate. As indulgências eram uma contradição óbvia de sua
descoberta que o justo viverá somente pela fé. Os representantes papais,
porém, achavam que a prática de indulgências era valiosa demais para ser
deixada e começaram a atacar Lutero.
Daquele momento em diante o “reformador” alemão e seus
oponentes conservadores entraram em rota de colisão. Convencido da
veracidade de sua posição, Lutero agitou a opinião pública através de
panfletos impressos e livretos escritos na linguagem popular e ilustrados
com xilogravuras dramáticas. Em 1518 ele foi convocado a se apresentar
diante de uma reunião geral de sua ordem e ganhou muitos de seus
companheiros agostinianos para a usa “teologia da cruz”.
Logo depois, foi chamado para ir a Roma e responder às acusações
feitas contra ele, mas a pedido de Frederico da Saxônia essa solicitação
não foi uma convocação obrigatória. Esse eleitor protegeu Lutero em
parte porque tinha orgulho de seu jovem professor de Teologia mas,
principalmente porque não gostava da prática de vender indulgências.
Isso porque ele queria manter o dinheiro em sua própria terra natal para
que pudesse aumentar sua própria coleção de relíquias dos santos e fazer
de Wittenberg um importante centro para peregrinos. Esse era um
aspecto incomum no homem que apoiou Lutero contra a Igreja
tradicional. Então, o caso foi apresentado a um embaixador do papa em
Augsburg, mas isso não levou a nada tendo em vista que Lutero recusou
retratar-se e ao invés disso apelou para um concílio geral da Igreja cristã.
Em 1519, durante um debate com John Eck em Leipzig, Lutero foi
forçado a admitir abertamente que muitas das idéias de Jan Hus não eram
heréticas e que ele não deveria ter sido condenado. Assim, Lutero
reconheceu que não apenas o papado mas também os concílios gerais da
Igreja podiam estar errados e que a única base de autoridade oficial eram
as Escrituras. Em 1520 uma bula papal condenou sua obra como sendo
herética e Lutero respondeu queimando o documento em praça pública.
Uma outra bula o excomungou e deixou sua punição por conta das
autoridades locais.
O imperador Carlos V permitiu que Lutero se defendesse na
reunião (ou dieta) de príncipes da Alemanha e governantes territoriais
que aconteceu em Worms em 1521. Na assembléia, Lutero reconheceu
que alguns de seus livros eram abusivos e outros tratavam de assuntos
discutíveis, mas recusou-se a negar suas convicções evangélicas mais
básicas.

A menos que eu seja convencido pelas Escrituras ou pela Razão — não aceito a autoridade
dos papas e concílios, pois um contradiz o outro — minha consciência é cativa da Palavra
de Deus. Eu não posso e não vou voltar atrás em nada, pois ir contra a consciência não é
nem certo e nem seguro. Aqui estou, não posso agir de outra forma. Que Deus me ajude,
amém.2

Seu discurso foi um grande sucesso entre o povo alemão, mas


depois de um período de deliberação, a dieta imperial declarou Lutero e
seus seguidores foragidos políticos e ordenou a supressão dos seus
ensinamentos. Carlos honrou o passe de salvo-conduto que havia dado a
Lutero para que este comparecesse à dieta, mas Frederico, não querendo
se arriscar, seqüestrou Lutero quando ele estava voltando para casa. Para
sua proteção, foi levado para um castelo isolado em Wartburg, onde
passou quase um ano escondido.
O tempo livre do qual Lutero gozava depois de uma vida agitada o
levou a ficar deprimido e a questionar sua posição contra a Igreja. Uma
declaração de Eck voltou para perturbar Lutero: “Como você pode
afirmar ser o único a entender as Escrituras? Será que tantos séculos
estiveram errados? E se você está enganado e levando tantos outros junto
para a perdição eterna? "3 Até o diabo apareceu para escarnecê-lo, pelo
menos foi o que ele pensou e jogou no fantasma seu vidro de nanquim.
Ao perceber que precisava de algum projeto para preencher suas horas de
solidão, ele transformou o período de dúvidas sobre si mesmo em um
tempo de grande realização ao traduzir a Bíblia para o alemão. Lutero
baseou-se fortemente no Novo Testamento em grego anotado de Erasmo
e trouxe a Bíblia para o leitor através de seu estilo vigoroso e clareza de
expressão. Como ele mesmo colocou: “Quando traduzo Moisés... quero
fazê-lo tão alemão que ninguém saberá que ele era judeu”. O resultado
foi uma versão que podia ser compreendida tanto pelo homem humilde
do mercado quanto pelos estudiosos cultos da universidade e com
eficácia ela consolidou o alemão como linguagem literária.
Lutero foi confrontado por uma nova crise quando voltou a
Wittenberg. Durante sua ausência seus seguidores haviam alterado
radicalmente a forma dos cultos, destruído relíquias, imagens e quadros e
danificado propriedades da Igreja — tudo isso em nome do evangelho.
Ele respondeu com uma série de sermões nos quais insistiu que pode-se
continuar qualquer prática religiosa desde que ela não seja condenada
especificamente pelas Escrituras. Seus discípulos mais zelosos reagiram
negativamente a essa posição conservadora e disseram que era permitido
fazer o que era ordenado pela Bíblia. Essas discussões levaram Lutero a
trabalhar mais junto com as autoridades locais a fim de construir uma
nova Igreja para substituir o Catolicismo que estava desmoronando na
Alemanha. A fim de oferecer pastores para as igrejas “evangélicas” (o
termo usado pelos luteranos), ele contou com a Universidade de
Wittenberg onde continuou a lecionar. Muitas pessoas ajudaram-no nessa
tarefa, sendo a de maior destaque Paul Melanchthon (1497-1560), um
estudioso clássico que foi seu mais leal apoio e companheiro constante.
Melanchthon foi nomeado professor de grego e hebraico em Wittenberg
quando tinha apenas 21 anos de idade e sua mente sistemática e analítica
foi de grande utilidade no processo de esboçar as declarações da doutrina
luterana, como a confissão de Augsburg de 1530.
Em 1521 o desenvolvimento teológico de Lutero, em sua essência,
estava completo; suas obras posteriores amplificavam e esclareciam as
idéias originais. Os principais pontos de sua teologia foram resumidos
em três obras escritas em 1520. A primeira Discurso à Nobreza Cristã da
Nação Alemã, argumentava que as autoridades civis deveriam reformar a
Igreja pois a hierarquia jamais permitiria mudanças que ameaçassem sua
posição privilegiada. Ele não apenas apoiava a liderança leiga em geral
como também fazia várias propostas específicas, incluindo a afirmação
da necessidade do clero de se casar, ressaltando a necessidade do
governo de alimentar os pobres, pedindo a paz com os hussitas e
abolindo a prática ultrapassada das missas. Num comentário profético ele
instou que os hereges deveriam ser convencidos a mudar suas idéias
através de livros e discussões e não pela perseguição, de outro modo “o
carrasco seria o homem mais culto do mundo e não haveria a necessidade
de estudar”.
O segundo tratado O Cativeiro Babilônio da Igreja era um ataque
ao sistema sacramental da Igreja romana. Lutero aceitava apenas dois
sacramentos, o batismo e a ceia, e rejeitava os outros cinco pois seu
cumprimento não era ordenado por Cristo numa declaração específica na
Bíblia. No terceiro livro Liberdade de um Homem Cristão, ao mesmo
tempo em que se opunha à tirania papal, Lutero advertia os crentes que
não ignorassem os aspectos éticos da vida cristã. Lançando mão do
ensinamento de Paulo aos Gálatas, ele aconselhava os cristãos a não cair
em extremos de legalismo ou hedonismo. Explicava que a vida cristã
deve ser caracterizada pela fé e o amor. Um crente é senhor de todos e
não está sujeito a ninguém através da fé, mas é servo de todos e está
sujeito a todos por causa do amor. A fé prende o cristão a Deus e o amor
o prende aos outros cristãos. Uma pessoa deve nascer de novo em Cristo
antes que possa fazer boas obras, pois elas são resultado de uma vida de
fé. Conforme está escrito em Mateus 7.18: “Não pode a árvore boa
produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons”.
O ano de 1525, quando Lutero envolveu-se em duas controvérsias
— uma com Erasmo e a outra com Thomas Müntzer — foi um ponto
crítico da Reforma. Durante vários anos, humanistas como Erasmo
tinham recebido bem as atividades reformadoras de Lutero, mas depois
de 1521 a maioria deles começou a pensar que ele havia ido longe
demais e, de alguém que queria dar conselhos amigáveis à Igreja, havia
se transformado em um inimigo da fé tradicional. Em 1524, o abismo
havia crescido tanto que Erasmo rejeitou o ponto de vista luterano sobre
a graça em seu Ensaio Sobre o Livre Arbítrio. Ele afirmou que as
Escrituras apoiavam a posição católica de que a salvação é alcançada
através da fé e das obras; advertiu Lutero para que fosse menos
dogmático e mais pronto a aceitar ser corrigido. Enfurecido, o
reformador respondeu com sua obra Servidão do Arbítrio (1525), que
enfatizava a depravação humana e condenava o humanista holandês. O
debate mordaz com Erasmo sobre o livre arbítrio relevou exatamente
quanto apoio dos humanistas Lutero havia perdido.
O problema com Müntzer foi ainda mais sério para o futuro da
Reforma. Essa controvérsia surgiu de uma iniciativa para melhorar as
condições dos camponeses da Alemanha que, assim como seus iguais em
outras parte da Europa do século 16, eram abusados e explorados sem
piedade por seus senhores. Alguns desses pobres coitados escreveram
suas frustrações na obra Os Doze Artigos dos Camponeses da Suábia.
Eles exigiam o direito de escolher seus próprios pastores; de ser liberados
de impostos exorbitantes, dízimos e aluguéis; de poder caçar, pescar e
cortar lenhas das florestas comunitárias. Incentivados pela posição
desafiadora de Lutero em relação às autoridades eclesiásticas e por suas
declarações sobre a igualdade de todos diante de Deus, eles imaginaram
equivocadamente que ele iria apoiar sua causa.
Liderados por Thomas Müntzer (1489-1525) — que havia sido
seguidor de Lutero e que acreditava que a Segunda Vinda estava próxima
e que os perversos precisavam ser destruídos a fim de preparar o caminho
para o Senhor — camponeses armados atacaram seus senhores da classe
alta como se fossem inimigos de Deus. Em sermões desafiadores e
desvairados, Müntzer exortava os camponeses: “Ataquem enquanto o
ferro está quente” e “não deixem suas espadas esfriar! Não deixem que
enfraqueçam!” Movidos por esses conselhos eles saquearam igrejas,
destruíram castelos e ameaçaram a própria estrutura da sociedade. À
medida em que a rebelião se espalhava, os ânimos iam ficando ainda
mais exaltados e muitos exigiam a propriedade comum de todas as terras.
A reação ríspida de Lutero à revolta foi coerente com suas
declarações anteriores. Apesar de ter acusado os senhores de corrupção e
crueldade e havê-los instado a parar de oprimir os camponeses, ele
jamais havia favorecido a revolução social. Ele não acreditava ser
possível reformar a Igreja e a sociedade ao mesmo tempo. Só a idéia de
uma conturbação social era suficiente para assustá-lo. Em sua ira, Lutero
respondeu com um panfleto extremamente infeliz, Contra as Hordas de
Camponeses Bandidos e Assassinos, no qual ele os acusou com
declarações mordazes. Aconselhou os governantes a “espancar,
apunhalar e matar, em segredo ou abertamente, lembrando que nada era
mais venenoso, nocivo ou diabólico do que um rebelde. Era como
quando deve-se matar um cão raivoso; se você não atingi-lo ele atacará
você bem como todas as suas terras.”
Os senhores, que dificilmente precisariam desses conselhos do
reformador, reprimiram brutalmente a revolta em Frankenhausen em
1525. O massacre no campo de batalha e as represálias que se seguiram
resultaram na morte de vários milhares de pessoas humildes. Apesar de
Lutero nunca ter balançado em sua posição de apoio à hierarquia social,
os camponeses sentiram que ele os havia traído. Depois de 1525, o
movimento evangélico passou a depender ainda mais dos governantes,
que tornaram-se elementos de importância crucial para a continuação da
Reforma na Alemanha. Eles até chegaram a dar o nome de
“Protestantismo” ao novo movimento quando eles “protestaram” contra
uma ação tomada pela dieta de Speyer (que era predominantemente
católica) em 1529, a qual discriminava os praticantes da fé evangélica.
O mesmo ano do rompimento com os humanistas e da Guerra dos
Camponeses, foi decisivo para a vida pessoal de Lutero. Foi nessa época
que ele casou-se com Katherine von Bora, uma ex-freira que ele ajudou a
fugir do convento. Apesar de Lutero ter entrado nessa união com
relutância, ele encontrou grande felicidade ao lado de “Katie”. Seu
relacionamento serviu de padrão para a definição protestante de
casamento, a qual ele chamou apropriadamente de “escola do caráter”.
O período seguinte na vida do reformador foi tomado por uma
discussão com Ulrico Zuínglio sobre o significado da Santa Ceia. Ela
culminou no Colóquio de Marburg em 1529, que realizou-se com a
intenção de eliminar o abismo que havia se formado dentro da Reforma,
especialmente porque o Catolicismo estava voltando a ganhar forças.
Lutero participou das reuniões com certa restrição, pois acreditava que as
diferenças em relação ao reformador suíço eram irreconciliáveis. O
principal assunto envolvia a questão de Cristo estar ou não fisicamente
presente na Eucaristia. Como já se esperava, eles não chegaram a um
acordo e o princípio da divisão da Igreja, tão característico do
Protestantismo mais tarde, havia mostrado seu rosto cruel.
Durante as controvérsias, Lutero continuou a lecionar, escrever e
exercer a liderança da Reforma alemã. Quando as negociações com os
católicos foram rompidas depois da Dieta de Augsburg em 1530, os
príncipes protestantes formaram uma aliança defensiva, a Liga de
Smalkalda o que significou resistência armada ao imperador. Apesar da
adulação de seus alunos, colegas e outros líderes da Igreja, em seus
últimos anos estava sempre presente a sombra dos conflitos entre
luteranos e as conseqüências de ter aconselhado Filipe de Hesse dizendo
que a bigamia era permissível em certas épocas. A compreensão de que
tomar as Escrituras como base não evitava diferenças acentuadas de
interpretação, a contínua luta contra Roma e o impacto debilitante de
uma doença levaram ao tom amargo de muitas de suas últimas
publicações, especialmente aquelas contra o papado e os judeus. Na pior
delas, Lutero recomendou que todos os judeus fossem deportados da
Europa para a Palestina. Se isso não pudesse ser feito, então deveriam ser
proibidos de dedicar-se ao comércio e forçados a ganhar a vida através
da agricultura. Ele insistiu que as sinagogas deviam ser queimadas e os
livros judaicos destruídos.
Quando Lutero faleceu em 1546, a Reforma perdeu seu líder mais
prestigioso. Além disso, não só o Luteranismo havia fracassado em
ganhar a Igreja, mas também os reformadores suíços, as cidades do sul da
Alemanha e os anabatistas haviam criado sua própria versão da Reforma,
enquanto os próprios luteranos se desintegravam por causa das
divergências. Ainda assim, na metade do século o Luteranismo havia se
tornado a principal fé na Escandinávia. Tendo em vista que esses povos
deviam muito de seu legado cultural ao norte da Alemanha, não é de se
surpreender que um movimento religioso alemão tivesse sido bem
recebido por eles.

Protestantismo reformado
Apesar de Lutero ter oferecido a faísca que acendeu o fogo da
Reforma protestante, naquela época houve outros impulsos em direção às
mudanças religiosas. Um deles foi na Suíça, que era então um conjunto
flexível de cidades e pequenos estados chamados de “cantões”. Um dos
primeiros suíços protestantes, Ulrico Zuínglio (1484-1531), estudou com
alguns humanistas em Viena antes de tornar-se sacerdote em Zurique. Lá
ele rejeitou os aspectos mais aristocráticos do Humanismo e começou a
criticar os abusos em sua própria Igreja. Porém, nunca abandonou
completamente sua antiga instrução e as mudanças que ele trouxe para a
Igreja misturavam a devoção prática de Erasmo com o biblicismo de
Lutero. Ele também estava mais disposto a deixar a tradição e agir
política e militarmente a fim de defender a sua versão do Cristianismo.
Assim, Zuínglio combinou Humanismo, Teologia e radicalismo.
A ocasião para a sua ruptura com Roma apresentou-se quando ele
começou a defender que se comesse carne durante a Quaresma. Ao fazê-
lo, levantou uma série de questões sobre as regras e práticas da Igreja e o
concílio da cidade de Zurique convocou um debate formal para resolver a
controvérsia. Realizado em 1523, o debate entre Zuínglio e os católicos
resultou numa vitória de Zuínglio. Uma segunda controvérsia naquele
mesmo ano levou à destruição de imagens nas igrejas e ao fim da reza de
missas. Apesar de ter sido inspirado por Lutero, conforme foi
mencionado anteriormente, ele seguiu um caminho diferente do
reformador alemão no tocante ao significado da Santa Ceia.
Zuínglio não apenas exerceu influência na Suíça como também
comandou um grupo de seguidores do sudoeste da Alemanha. Mas ele
saiu repentinamente de cena quando em 1531 foi morto durante uma
batalha entre os católicos e protestantes na Suíça. Apesar de seus
sucessores terem sido pessoas competentes como Heinrich Bullinger em
Zurique, John Oecolampadius e Oswald Myconius na Basiléia e Martin
Bucer em Estrasburgo, a liderança da Reforma na Suíça e no sul da
Alemanha foi passada para outro em Genebra: João Calvino.
A mais poderosa força da segunda geração de reformadores,
Calvino (1509-1564) não era de origem suíça, mas sim francesa. Filho de
um tabelião em Noyon, na Picardia, ele começou a estudar Direito por
insistência de seu pai. Mas então o pai faleceu e o jovem estava livre para
dedicar-se ao seu primeiro amor, a saber, os estudos literários
humanistas. Ele chegou até a escrever um comentário da obra Sobre a
Clemência do filósofo estóico Sêneca. A argumentação do livro em favor
da existência de uma providência sobrenatural e onipotente havia
impressionado profundamente o jovem estudioso.
Por identificar-se com a causa da Reforma religiosa, a carreira de
Calvino como acadêmico da Renascença não durou muito. Idéias
luteranas haviam se espalhado entre os estudantes universitários
franceses e, em 1553, desenvolveu-se uma importante controvérsia entre
conservadores e reformadores. Depois de um período de indecisão, o rei
Francisco I apoiou os conservadores pois ele temia que os protestantes
fossem uma ameaça à segurança nacional. Como Calvino havia aderido
ao novo movimento religioso, teve que deixar a França para morar na
Basiléia. Nessa época ele já havia se convertido a Cristo, mas sua
experiência parecia um tanto prosaica se comparada com a de Lutero.
Não houve nenhum drama ou grande trauma emocional como o que
acompanhou a mudança de rumo do reformador alemão. Calvino
simplesmente desenvolveu uma convicção absoluta da onipotência de
Deus e de que ele havia sido escolhido para fazer o reino de Deus crescer
na terra. Porém, uma coisa estava clara. Mesmo depois de sua conversão,
a combinação de educação legal e humanista que ele havia recebido
seriam determinantes para a expressão escrita e para a metodologia de
seu estudo da Bíblia.
Calvino foi profundamente influenciado por Lutero e concordava
com grande parte de sua teologia. Suas diferenças surgiam da forma
como Calvino se apoiava mais no Antigo Testamento e de sua crença na
dupla predestinação. Seguindo os passos de Agostinho de Hipona, ele
enfatizava a majestade de Deus e o completo desamparo da humanidade
perante o Senhor. Numa tentativa de responder à pergunta feita por todo
o cristão que já tentou compartilhar o evangelho com outros — a saber,
por que alguns crêem na Palavra e outros a rejeitam — Calvino ensinava
que Deus oferece o dom da fé para alguns e o nega para outros. De
acordo com Efésios 1.4, essas decisões foram tomadas antes da fundação
do mundo e não podem ser mudadas. Apesar de ser verdade que Cristo
morreu por todos, ele intercede junto ao Pai apenas por aqueles que
foram eleitos para a salvação. Para os que compartilhavam de tal
segurança, a predestinação criava um senso de propósito missionário e
um desejo de enfrentar qualquer poder do mundo que se opusesse aos
planos dos eleitos de Deus. Com efeito, essa crença incentivou os povos
da Holanda a rebelarem-se contra seu governante espanhol e levou a
importantes transformações de religião e governo em vários outros
países.
Calvino apresentou sua teologia naquela que viria a ser a
declaração clássica do pensamento protestante, as Institutas da Religião
Cristã,1 sendo que a primeira edição foi publicada em 1536. Ela revelava

1
Ou, A Instituição da Religião Cristã, obra publicada em português pela Editora Cultura Cristã (N. do E.).
que o Protestantismo tinha um novo líder que possuía um domínio
impressionante das Escrituras e dos Patriarcas da Igreja. Ao longo dos
anos, de tempos em tempos ele revisou e expandiu sua obra mas a
estrutura básica não foi alterada. A obra oferecia uma firme declaração
de fé à qual seus seguidores podiam voltar-se em sua luta contra os
católicos.
Durante uma breve anistia, Calvino voltou para a França mas foi
logo forçado a fugir mais uma vez. Com a intenção de ir para
Estrasburgo, onde os protestantes eram bem-vindos, ele parou
rapidamente em Genebra em 1536. Guilherme Farel, um sacerdote local,
reconheceu-o em um dos cultos e desafiou-o a ficar lá e ajudá-lo na
reforma religiosa daquela cidade. Com exceção de uma estadia de três
anos em Estrasburgo (1538-41), Calvino passou o resto de sua vida em
Genebra onde realizou um amplo programa de reforma e consolidou uma
comunidade protestante exemplar. A igreja de Genebra serviu de modelo
para os calvinistas, que já possuíam centros na França, oeste da
Alemanha, Países Baixos, Escócia, Inglaterra, Polônia e Hungria.
O tipo de Protestantismo de Calvino era conhecido como
“reformado”. Diferia do sistema luterano no sentido de que a Igreja era
uma instituição paralela ao Estado e não subordinada a ele. A Igreja era
uma organização independente que mantinha sua vida própria e usava
sua posição para corrigir o Estado quando necessário. Calvino rejeitava o
ofício de bispo (que foi mantido em várias formas de Luteranismo) e o
substituiu por um governo formado de um conjunto de assembléias
cuidadosamente estruturadas (mais tarde chamadas de classes ou
presbitérios) que incluía tanto ministros quanto leigos. As igrejas
reformadas davam grande ênfase à disciplina eclesiástica pois
reconheciam que a Igreja incluía a sociedade como um todo, os eleitos
bem como os condenados.
À medida em que refugiados protestantes foram reunindo-se em
Genebra, Calvino começou a dar palestras para instruir esses indivíduos
sobre a fé reformada. Essas aulas informais levaram à fundação da
Universidade de Genebra, que tornou-se o centro intelectual do
Protestantismo. Os pastores que ali recebiam treinamento eram enviados
de volta para seus lugares de origem a fim de pregar o evangelho. Como
disse Calvino: “Enviem madeira para mim e eu mandarei flechas de
volta”. Um dos primeiros destinos dos missionários calvinistas foi a
França e, em 1555, congregações de huguenotes, como eram chamados
os reformadores franceses, já estavam presentes por toda a parte. Naquele
mesmo ano eles encontraram-se em Paris para fundar uma organização
nacional e fazer o esboço de uma confissão de fé. Em 1562 muitos
nobres havia se tornado huguenotes, dando à fé uma característica
aristocrática e subversiva, conforme as Guerras Religiosas logo
demonstraram.
Na Holanda o Calvinismo foi introduzido por missionários da
França e de Genebra. A Confissão Belga foi adotada em 1566 e a
aceitação da fé reformada levou a uma longa guerra contra os espanhóis
pela independência. A Escócia foi ganha para o Calvinismo em grande
parte pelos esforços de John Knox (cerca de 1514-72). Treinado em
Genebra pelo próprio Calvino, o “escocês trovejante” liderou uma
incansável e, finalmente, vitoriosa cruzada contra os nobres católicos e o
governo de Mary, Rainha dos Escoceses. Ele conseguiu alcançar um alto
grau de conversão à fé reformada em todo o reino. O Calvinismo também
influenciou profundamente a teologia da Igreja da Inglaterra e serviu de
base para o pensamento puritano.

A Reforma inglesa
Em muitas aspectos, a Reforma inglesa foi um movimento
independente, resultante da iniciativa do rei, apesar de que, durante a
década de 1520, diversos estudiosos das Universidades de Oxford e
Cambridge demonstraram grande interesse nas idéias de reforma de
Lutero. Um dos mais importantes elos intelectuais entre a Inglaterra e os
luteranos da Alemanha foi William Tyndale. Sua importância se deve aos
muitos panfletos que escreveu e à sua brilhante tradução do Novo
Testamento. Além disso, alguns remanescentes dos seguidores de
Wycliffe tinham sobrevivido e continuavam a espalhar seus
ensinamentos contra o papa. Porém, a Reforma na Inglaterra não foi, em
seus primeiros estágios, anticatólica, mas resultou do desejo de Henrique
VIII de ter um herdeiro do sexo masculino. Apesar de manter o
rompimento com Roma, a seu próprio ver, ele era católico. Mas depois
de 1534 não havia lugar para um papa em sua versão da fé cristã.
Henrique desejava o divórcio de sua esposa, Catarina de Aragão,
tendo em vista que depois de dezoito anos de casamento sua única
criança era uma menina, Mary. Nenhuma mulher havia se assentado no
trono da Inglaterra há séculos e tendo em mente as memórias de brutais
guerras civis do século anterior, Henrique sentia que era essencial ter um
governante masculino. Além de querer determinar uma sucessão ordeira,
sua afeição por Catarina havia se transformado em aversão, tendo em
vista que ele estava apaixonado por Ana Bolena, uma jovem dama de
companhia da rainha. Talvez para racionalizar os seus atos, ele tinha
passado a acreditar que seu casamento era errado. Catarina era viúva de
seu irmão mais velho e eles haviam se casado por motivos diplomáticos.
A Lei Eclesiástica, baseada em textos das Escrituras como Levítico
20.21, proibia esse tipo de união, mas o papa havia concedido permissão
especial para o casamento.
Em 1527 Henrique pediu ao papado uma anulação, mas pelo fato de
Catarina ser tia de Carlos V, cujas tropas ocupavam Roma naquele
tempo, nenhuma atitude foi tomada. Uma pessoa impaciente e
determinada, Henrique decidiu que já havia esperado o suficiente. Crente
de que a Inglaterra havia sido sempre um lugar onde o rei não tinha
superiores a não ser o próprio Deus, ele considerou desnecessária a
aprovação do papa para seu divórcio tendo em vista que ela podia ser
concedida pela igreja inglesa. Assim, em 1533, Thomas Crammer,
arcebispo de Canterbury, anulou o casamento e validou a união secreta já
existente com Ana Bolena. O papa reagiu declarando a excomunhão de
Henrique. Por isso, os católicos também consideraram ilegítima a filha de
Henrique e Ana — Elizabeth.
Em 1534, a adoção da Lei de Supremacia, que tornava o rei — e
não o papa — “o único líder supremo no mundo da Igreja da Inglaterra”,
mostrou o rompimento definitivo com Roma. Apesar da maioria dos
ingleses ter aceito a divisão sem protestos, alguns como Sir Thomas
More, o brilhante humanista e autor de Utopia, recusaram-se a renunciar
a lealdade a Roma e conseqüentemente foram decapitados por traição.
Muitas das mudanças que se seguiram na Igreja tinha a aprovação das
classes mais influentes, especialmente a dissolução dos mosteiros.
Depois que um relatório os acusou de corrupção, em 1536 e 1537 eles
foram fechados e suas propriedades confiscadas, dando assim ao governo
uma fonte adicional de renda e eliminando possíveis núcleos de oposição
católica. Muitas propriedades monásticas foram doadas ou vendidas por
valores irrisórios para as classes mais altas fazendo delas, desse modo,
simpatizantes do rompimento com Roma.
Mesmo tendo o rei se tornado líder da Igreja da Inglaterra, suas
doutrinas e práticas em grande parte continuaram as mesmas. Apesar de
algumas inovações, como a existência de uma Bíblia em inglês em cada
paróquia para ser usada pelos leigos, Henrique reafirmou a crença e as
práticas católicas na Lei dos Seis Artigos (1539). Essa lei aprovada pelo
Parlamento a pedido do rei, confirmava a transubstanciação, o celibato
do clero, as missas particulares e as confissões.
Henrique continuou sua busca por um herdeiro e finalmente sua
terceira esposa deu-lhe um filho, Eduardo VI, que o sucedeu no trono em
1547, com 10 anos de idade. Um garoto sempre doente, Eduardo
governou através de conselheiros que eram predominantemente
protestantes. O novo regime cancelou a Lei dos Seis Artigos, tornou o
inglês a língua oficial dos cultos e permitiu o casamento do clero. Para
substituir a liturgia católica, Cranmer produziu o Book of Common
Prayer [Livro Comum de Orações]. Ele era escrito num inglês belo e
imponente e, numa segunda edição, expressava claramente a doutrina
protestante. No breve reinado de Eduardo, a Inglaterra mudou do
Catolicismo para o Protestantismo reformado.
Essa tendência, porém, foi revertida depois que Eduardo faleceu em
1553 e sua sucessora, Lady Jane Grey, foi executada. Mary Tudor subiu
ao trono. Como filha de Catarina de Aragão, sua grande ambição era
levar a Inglaterra de volta para a Igreja Católica. Ela forçou a aprovação
de leis no Parlamento que revertiam as mudanças feitas por seu pai e seu
irmão e, teoricamente, a Inglaterra voltou a ser católica. Na verdade,
porém, a situação havia mudado de maneira tão drástica que Mary não
conseguiu fazer voltar o relógio. Um dos grandes obstáculos era a falta
de fundos para projetos como a reabertura dos mosteiros. Até mesmo a
rainha sabia que essas terras não podiam ser tomadas de seus
proprietários influentes. Ela também perdeu o apoio dado aos monarcas
Tudor quando casou-se com Filipe II da Espanha, o qual os ingleses
repugnavam.
Outro de seus erros foi perseguir os protestantes. Mais de trezentas
pessoas, incluindo o arcebispo Cranmer, foram queimadas nas fogueiras.
Essas execuções conferiram a ela o apelido de “Mary a Sanguinária”,
como indicação do desprezo que seus súditos lhe votavam. Os
protestantes que fugiram para o continente, os chamados exilados
marianos — como John Foxe, autor do Book of Martyrs [Livro dos
Mártires] — certificaram-se de que o povo jamais esquecesse daqueles
que haviam perecido por causa de sua fé. Mary morreu em 1558, amarga
e desanimada, sabendo que sua meia-irmã Elizabeth seria sua sucessora
ao trono.
Quer Elizabeth desejasse ser protestante ou não, as circunstâncias a
forçaram a tomar uma posição reformada. Apesar dos católicos
considerarem-na ilegítima e, portanto, sem direito de ser rainha da
Inglaterra, ela permitiu uma pequena diversidade religiosa para o bem da
unidade nacional. Quando os exilados marianos voltaram para casa e
ajudaram a restaurar o Protestantismo, o rompimento com Roma foi
renovado e o livro de orações de Cranmer voltou a ser usado. Porém, o
acordo religioso de 1559 foi cuidadosamente ponderado de modo que
aqueles de preferência católica não fossem deixados de fora
desnecessariamente. Elizabeth foi declarada “Suprema Governadora da
Igreja” ao invés de “Suprema Líder” para evitar ofender aqueles que
achavam que uma mulher não podia ser líder da igreja ou acreditavam
que seu líder era o papa ou Cristo. Quanto ao ministério, os cargos
tradicionais católicos de bispos, sacerdotes e diáconos foram mantidos.
Em 1571 o Parlamento aprovou uma declaração de fé essencialmente
protestante, os Trinta e Nove Artigos. Uma obra-prima de ambigüidade
calculada, trata-se de um sumário das crenças anglicanas que continua
sendo oficial até hoje. Em resumo, a Igreja da Reforma inglesa foi um
tanto anômala devido à sua união da doutrina reformada com uma
estrutura católica medieval não-reformada.

A Reforma radical
Alguns entusiastas do movimento evangélico, pessoas que a
princípio aprovavam as idéias de Lutero e Zuínglio, desejavam mudanças
mais radicais do que aquelas que os principais reformadores haviam
considerado sábias ou até mesmo possíveis. Eles eram normalmente
chamados de anabatistas por causa de suas idéias sobre o batismo, mas
na verdade faltava coesão aos grupos e eles constituíam uma porção de
seitas pequenas e divergentes. Porém, pode-se fazer algumas
generalizações úteis a seu respeito. Os anabatistas ensinavam que a Igreja
“visível” deveria incluir somente aqueles que haviam experimentado a
regeneração através da fé em Jesus Cristo e testemunhado publicamente
sua fé através do “batismo do crente”. Tendo em vista que é preciso
compreender a mensagem cristã a fim crer, só eram batizados aqueles
com idade suficiente para ter consciência do que estavam fazendo. Como
eles já haviam sido batizados quando criança, os críticos os chamavam de
anabatistas, pessoas que praticavam o re-batismo. Mas do ponto de vista
desses crentes, o batismo infantil não tinha valor.
Os anabatistas também eram pessoas profundamente morais e éticas
que, em grande parte, insistiam na primazia das Escrituras e na separação
entre a Igreja e o Estado. Além disso, repudiavam o conflito armado, a
pena capital e prática de juramentos.
A maioria dos cristãos dessa época ainda considerava o batismo das
crianças como um sacramento muito importante e o rito de iniciação na
Igreja que incluía todos dentro dos limites do Estado. Além disso, mesmo
que alguns de seus líderes fossem extremamente cultos, a maioria dos
anabatistas pertencia às classes mais baixas. Em decorrência disso, eram
vistos como radicais anti-sociais e perseguidos tanto pelos luteranos e
reformados como pelos católicos. Apesar do castigo cruel ao qual eram
submetidos, eles continuaram a confessar sua fé pois acreditavam que os
verdadeiros cristãos devem esperar ser maltratados pelas autoridades
seculares.
Os anabatistas apareceram pela primeira vez em 1523 entre os
seguidores de Zuínglio em Zurique. Dois de seus líderes eram Conrad
Grebel e Felix Manz cujo sucesso em ganhar convertidos exasperava os
líderes das cidades. Manz foi executado por afogamento (um cínico “re-
bastismo”) e Grebel, juntamente com seus seguidores, foi exilado.
Aqueles que ficaram na Suíça tornaram-se clandestinos, permitindo que o
movimento sobrevivesse até o século seguinte, enquanto os refugiados
espalhavam o anabatismo para o sul da Alemanha e Morávia.
Estrasburgo foi o centro do movimento de 1527 a 1533 quando Martin
Brucer, o líder da igreja protestante daquela cidade ficou apreensivo com
os separatistas e ordenou que fossem expulsos.
Um dos que trabalhavam lá era Melchior Hoffmann (1500-43), que
afirmava ser uma das duas testemunhas de Apocalipse 11.3 e conclamava
os anabatistas a deixar o pacifismo e estabelecer o reino de Cristo à
força. Apesar de ele ter sido preso, um de seus discípulos — Jan Matthys
— liderou um grupo até Münster, na Westphalia, onde sua pregação fez
tanto sucesso que eles ganharam o controle da cidade inteira e forçaram o
rebatismo dos moradores. Afirmando ser Enoque, enviado a fim de
preparar o caminho para Cristo, Matthys fundou uma ordem comunitária
e introduziu um novo código de leis. Depois de sua morte em combate
em 1534, John de Leiden proclamou-se Rei de Sião, introduziu a
poligamia e matou ou expulsou aqueles que não se submeteram a ele.
Isso perturbou tanto os luteranos e também os católicos que eles
uniram forças para sitiar a cidade. Apesar de uma defesa heróica, ela foi
capturada em 1535 e a maioria dos habitantes de sexo masculino foi
executada com uma crueldade reservada aos revolucionários sociais. Os
corpos dos líderes chegaram a ser colocados em jaulas de ferro e
penduradas na torre da igreja. Esse episódio não só deu ao movimento
má fama como também ofereceu uma desculpa para outras perseguições.
Porém, o remanescente espalhado e desprezado renunciou a todas
as formas de violência e passou a viver de modo simples, tranqüilo e
humilde. Seu mais importante novo líder foi um sacerdote holandês,
Menno Simons. Convertido em 1536, ele juntou os anabatistas
desanimados que viviam nos Países Baixos e norte da Alemanha.
Enfatizando o pacifismo e a demonstração de uma vida de fé através das
boas obras, ele organizou seus seguidores em comunidades cristãs que
eram separadas das instituições sociais e políticas seculares. Para ele, o
foco da vida cristã era a Igreja e não o Estado; os cristãos deveriam estar
no mundo, mas não ser do mundo. Eles ficaram conhecidos como
menonitas e prosperaram apesar de seu sofrimento. Numa certa ocasião,
constituíam dez por cento da população da Holanda. Então, migraram
para a Europa oriental e mais tarde para a Rússia e o Novo Mundo.
Outro núcleo de anabatistas foi a Morávia onde Balthasar Hubmaier
e Jacob Hutter representavam as duas alas do movimento. Hubmaier, o
mais importante intelectual entre os anabatistas, havia sido aluno de John
Eck e professor na Universidade de Ingolstadt antes de sua conversão em
1525. Depois de deixar o sacerdócio ele assentou-se na Morávia. Lá ele
converteu e batizou dois importantes nobres que, em troca, permitiram
que ele pregasse em seus territórios. Ele ganhou centenas de convertidos
para Cristo e escreveu vários panfletos que mostravam de modo
competente a posição dos anabatistas. Entre os que se juntaram a ele
estava Hans Hut, um defensor dos bens comunitários e do pacifismo.
Pelo fato dos seguidores de Hubmaier não aceitarem o pacifismo de Hut
e sua rejeição da sociedade contemporânea, ocorreu uma cisão entre os
anabatistas morávios. Enquanto isso, os Habsburgos católicos assumiram
o controle da Morávia e eliminaram tudo o que consideravam heresia.
Com a execução tanto de Hubmaier quanto de Hut, parecia que o
movimento estava acabado.
Porém, Jacob Hutter, que ofereceu liderança durante os anos
cruciais de 1533-36, salvou o assentamento morávio da destruição. Ele
organizou os irmãos em congregações unidas, com a posse comum de
bens baseada na prática da Igreja apostólica conforme registrado em Atos
5. Os hutteritas, como eram chamados, tornaram-se uma comunidade
viável, socialmente coesa e ativa. Apesar do próprio Hutter ter sido
martirizado e do movimento ter passado por tempos difíceis, ele continua
sendo um dos sobreviventes dos anabatistas de mais sucesso. Da Morávia
os hutteritas dirigiram-se para a Europa oriental e acabaram indo para a
América do Norte, mantendo sempre suas instituições comunitárias.
Dois outros grupos da Reforma radical dignos de menção foram os
espiritualistas e os evangélicos racionalistas. Os primeiros rejeitavam as
formas externas de religião e enfatizavam a comunhão interior com o
Espírito Santo. Seu líder, o nobre silesiano Caspar Schwenkenfeld (1490-
1561) ensinava que os crentes autênticos deviam sair da Igreja e formar
grupos de oração dos verdadeiramente regenerados. Ele pedia aos seus
seguidores que se tornassem ávidos estudiosos da Bíblia apesar de não
insistir que fossem batizados novamente. Um vestígio dos
Schwenkenfelders ainda existe na Pensilvânia.
O segundo grupo, dos evangélicos racionalistas, rejeitava as
doutrinas tradicionais da Trindade e da Divindade de Cristo. Um adepto
de destaque foi Miguel Servetus que foi executado por heresia em
Genebra. Na Polônia e Europa oriental a teologia racionalista foi
institucionalizada pela influência de Faustus Socinus (1539-1604). Os
socianos organizaram suas igrejas dentro das linhas calvinistas, mas
deram menos ênfase à disciplina eclesiástica. Perseguições lideradas
pelos jesuítas levaram à sua expulsão da Polônia em 1658 mas um
remanescente sobreviveu na Transilvânia sob o domínio turco. O
unitarismo moderno está intelectualmente ligado aos socianos.

A Reforma católica
Na década de 1540 o Catolicismo romano parecia ser uma fé em
extinção. Os protestantes haviam convertido a maior parte da Alemanha
e aparentemente, governantes de outras partes da Europa estavam
seguindo o exemplo de Henrique VIII e fundando igrejas nacionais. Mas,
por causa da Reforma católica (também conhecida como Contra-
Reforma), isso não aconteceu.
Ao invés disso, a renovação liderada por um papado regenerado
que enfatizava a liderança espiritual e diversas novas ordens religiosas
permitiram a Roma responder à altura ao desafio protestante.
No redemoinho revolucionário causado por Lutero é fácil esquecer
que o sucesso protestante nunca foi mais do que parcial. Apesar de ter
ficado profundamente abalado, o papado era de uma resistência
surpreendente. Por ironia, o papa saiu dessa luta com mais controle sobre
o território que havia lhe restado do que seus predecessores haviam tido
sobre toda a igreja ocidental. A Reforma dividiu a Igreja mas forçou
Roma a organizar-se para a guerra, o que significou dar mais poder para
seus líderes.
Entre as ordens religiosas que trabalharam na reforma estavam os
barnabitas, capuchinhos, teatinos, carmelitas (sendo seus principais
destaques Teresa d’Ávila e João da Cruz, figuras excepcionais do
misticismo) e, acima de tudo, os jesuítas. Inácio de Loyola (1491-1556),
o fundador dos jesuítas (Sociedade de Jesus) que era do país basco no
noroeste da Espanha, entrou para o serviço militar do rei espanhol. Em
1521, enquanto lutava numa guerra contra a França, Loyola foi
gravemente ferido na perna por uma bala de canhão. Durante sua
recuperação, ele leu um livro de devocionais que mudou sua vida e o
inspirou a tornar-se um soldado de Cristo. Ele entrou para um mosteiro
onde passou quase um ano realizando práticas ascéticas, tendo visões
místicas e compondo a essência de seu grande manual sobre a guerra
espiritual, Os Exercícios Espirituais. Depois de uma peregrinação em
Jerusalém e de estudos na Espanha, em 1528 ele entrou para a
Universidade de Paris onde atraiu diversos companheiros que estudaram
os Exercícios e se empolgaram com seus ideais. Depois de completar
seus estudos, Loyola e seis colegas fizeram votos de viver em pobreza,
castidade e servindo na Terra Santa ou, se isso não fosse possível, ir a
qualquer lugar aonde o papa os enviasse. Como uma guerra no Oriente os
impediu de ir para Jerusalém, eles fizeram uma petição ao papa Paulo III
que em 1540 aprovou seu pedido de tornar-se uma ordem da Igreja. Em
1548, eles escolheram Loyola como “general” da Sociedade de Jesus. Ele
deu ao grupo uma “Constituição” que criava uma estrutura paramilitar
tendo como principais idéias a obediência, disciplina e eficiência. Ao
contrário de outras ordens religiosas, os jesuítas faziam um quarto voto
que era de obediência incondicional ao papa e trabalhavam inseridos no
mundo ao invés de retraírem-se na clausura. Colocavam muita ênfase na
educação e no trabalho missionário como formas de fortalecer e propagar
a fé católica.
A Igreja também esclareceu e redefiniu seus ensinamentos. O
processo foi complicado por divisões doutrinárias medievais,
especialmente pelo conflito entre nominalistas e realistas. Os
nominalistas, exemplificados por Guilherme de Ockham, tinham idéias
muito semelhantes às de Lutero, enquanto os realistas, como Tomás de
Aquino, seguiam uma teologia que oferecia prova lógica e baseava-se no
método e pensamento aristotélico. O esclarecimento doutrinário ocorreu
no Concílio de Trento, que se reuniu periodicamente entre 1545 e 1563.
Composto principalmente de bispos e abades italianos que tendiam a
seguir a liderança do papa, ele foi presidido por dois representantes
papais e totalmente influenciado pelos jesuítas.
As Reformas Tridentinas (do nome latino de Trento) podem ser
agrupadas em duas categorias, disciplinares e dogmáticas. As questões
disciplinares incluíam luxúria, simonia, nepotismo e outros abusos
clericais. Mais importantes, porém, foram as reformas dogmáticas. Eles
seguiram as linhas traçadas por Tomás de Aquino que foi, com efeito,
transformado em teólogo oficial da Igreja. Cada cânone doutrinário
declarava o ponto de vista protestante e depois a refutação católica, que
muitas vezes, pelo menos superficialmente, procurava agradar a ambas as
partes. A autoridade deveria basear-se nas Escrituras e tradições, sendo a
Vulgata — incluindo os livros apócrifos do Antigo Testamento —
reconhecida como Bíblia oficial da Igreja. Traduções na linguagem
popular só podiam ser usadas com a aprovação do papa. A salvação
combinava as obras de Deus e do homem e incluía tanto a predestinação
quanto o exercício do livre arbítrio. A justificação não era só pela fé mas
também pelas boas obras. A prática das indulgências continuaria, mas
com reformas para evitar abusos. O sistema de sete sacramentos também
seria mantido. A aplicação dos decretos conciliares ficava nas mãos do
Vaticano. Isso significava que a resistência da realeza ou de autoridades
locais iria impedir sua implantação em algumas áreas.
A fim de disseminar o que havia sido decretado em Trento, todos os
bispos foram orientados a fundar uma escola e um seminário em sua
diocese. Os jesuítas mais que depressa tomaram a iniciativa de
desenvolver esse sistema educacional e até hoje continuam sendo os
principais educadores católicos. Uma ilustração da nova política foi o
trabalho realizado na Suíça por Charles Borromeo (1538-84), arcebispo
de Milão. Ele enviou dois representantes papais para aquela região,
sendo que eles voltaram com relatos desanimadores sobre as condições
da Igreja Católica lá. Eles acusaram o clero de ser preguiçoso, imoral e
ignorante e afirmaram que os protestantes estavam lucrando com essas
condições miseráveis. Borromeo prosseguiu fundando a Faculdade
Helvética de Milão para treinar sacerdotes que iriam trabalhar nos
cantões suíços. Criou então faculdades na própria Suíça, sendo que uma
delas ainda existe em Lucerna. Em 1600 os esforços de Borromeo já
haviam estacionado os avanços da Reforma no país dos Alpes.
Como a imprensa havia espalhado o Protestantismo com tanta
eficácia por toda a Europa, o papa Paulo IV decidiu estabelecer em 1559
um “Índice de Livros Proibidos”. O Concílio de Trento ratificou essa
medida e ela tornou-se a famosa lista negra de obras cujas filosofias e
doutrinas eram consideradas contrárias aos ensinamentos da Igreja
romana. O Índice acabou incluindo de tudo, desde os escritos de Karl
Marx e Martinho Lutero até romances de Albert Camus e só saiu de
circulação em 1966. O Vaticano também fundou sua própria imprensa
que mais tarde teve um papel crucial na propagação da fé católica.
Na Idade Média, a repressão dos desvios doutrinários era tratada
pelo Santo Ofício da Inquisição romana. Em 1480 esse órgão foi
reativado na Espanha para lutar contra a heresia. Fernando e Isabel
patrocinaram a instituição que tinha como objetivo reagir às influências
de judeus e mouros, tornando-a um fator chave na conversão e expulsão
desses povos desafortunados. Durante a Reforma, a Inquisição espanhola
concentrou-se nos erasmianos e até em místicos como Teresa d’Ávila.
Em 1542 o Santo Ofício foi reativado nos Estados Papais por Paulo III e
uma das vítimas do século seguinte foi Galileu.
A Inquisição era uma corte eclesiástica que conduzia julgamentos
de heresia sob a liderança de um Grão-Inquisidor. Na Espanha, essa
pessoa era nomeada pelo rei e aprovada pelo papa. Ela, por sua vez,
escolhia um supremo concílio de cinco homens que eram confirmados
pelo rei. Havia também dezenove cortes locais em cada província. A
Inquisição foi conduzida pelos ortodoxos e estudiosos dominicanos. As
provas eram oferecidas por leigos devotos que recebiam recompensas por
denunciar a heresia.
Cada pessoa acusada tinha um mês para preparar sua defesa e
alguém só podia ser mandado para a prisão pelo voto unânime dos
inquisidores. O julgamento era conduzido em segredo e o acusado não
ficava frente a frente com os acusadores, apesar de haver algumas
exceções ocasionais. A tortura era usada para extrair as confissões. Se o
acusado se arrependesse logo no começo do processo, podia ser libertado
e teria que fazer penitência pública. Se fosse declarado culpado ou
tivesse voltado a praticar heresia, ele era entregue ao Estado para ser
punido, normalmente pelo fogo. Na Espanha as execuções públicas
aconteciam durante um grande espetáculo chamado auto-da-fé (ato de
fé), ao qual o rei comparecia com freqüência. Por vezes, muitos acusados
de heresia eram queimados ao mesmo tempo. A Inquisição mostrou-se
um baluarte eficaz contra a expressão de opiniões divergentes.
As muitas mudanças do século 16 tornaram a Igreja Católica
Romana uma instituição mais disciplinada e governada com mais
restrição. Além disso, apesar do Protestantismo ter trazido esperanças e
um espírito de alegria a muitos, ele deixou outros sem instrumentos da
graça como as peregrinações e a realização de pequenos atos concretos
que são tão mais fáceis do que passar pelos conflitos interiores que
trazem a nova vida em Cristo. A reação inicial de Roma tinha sido
simplesmente de condenar os ensinamentos protestantes, mas uma vez
que ficou claro o fracasso dessa abordagem, a antiga fé renovou-se
internamente e começou sua própria reforma. Se suas ações foram uma
“Contra-Reforma” ou uma “Reforma católica” é uma questão que fica
aberta para discussão. Se a Igreja tivesse se contentado com uma simples
rejeição dos ensinamentos “heréticos” dos reformadores, então tratar-se-
ia apenas de uma Contra-Reforma. Porém, as decisões do Concílio de
Trento, a renovação da vida religiosa e o desenvolvimento de um melhor
sistema de treinamento do clero apontaram para uma reação mais positiva
ao Protestantismo e uma renovação do compromisso com a mensagem
cristã. Nesse sentido, foi de fato uma Reforma que mudou a essência do
Catolicismo e o transformou em uma instituição moderna. Ele estava
pronto, então, para lutar contra as forças protestantes nas guerras
religiosas.

Capítulo 11 - Conflitos religiosos assolam a Europa


Os séculos 16 e 17 foram um período marcado por um redemoinho
teológico intenso. Enquanto as lutas pelo poder e a rivalidade entre
dinastias eram constantes na política européia, a adição do ódio religioso
tornou os conflitos ainda mais terríveis e dolorosos. Em muitas guerras,
católicos lutaram contra protestantes, protestantes contra protestantes e,
por vezes, católicos contra católicos. Com freqüência, as lutas
transformavam-se em guerras civis enquanto europeus combatiam uns
aos outros acreditando ser “santos armados” chamados para eliminar
aqueles que denominavam indiscriminadamente de “Anticristo”. Por
causa do papel crucial que as questões religiosas tinham nesse
extraordinário círculo de violência, os historiadores costumavam juntar
todos os conflitos sob o nome não muito preciso de “guerras religiosas”.

Reações às guerras religiosas


Muitos dos monarcas da Europa cansaram-se das lutas incessantes e
tentaram vários métodos para dar um basta a esses conflitos. Para isso
dispunham de quatro opções — separar, entrar em acordo, reprimir ou
tolerar.
Duas ilustrações da primeira dessas táticas foram as tentativas de
pôr um fim nos conflitos entre luteranos e católicos no Sacro Império
Romano e na luta e entre huguenotes (protestantes) e católicos na França.
A guerra havia chegado ao império em 1546 e, a princípio, Carlos
V e as forças imperiais católicas pareciam estar vencendo, mas quando os
protestantes conseguiram reagrupar-se, nenhum dos lados tinha como
alcançar uma vitória decisiva. Os resultados foram a conclusão da Paz
(religiosa) de Augsburg em 1555 e um ano depois, a aposentadoria de
Carlos e a divisão do vasto reino entre seu filho Filipe e seu irmão
Fernando. O acordo de Augsburg determinava que o governante de cada
Estado territorial do império determinaria a fé de seus súditos — luterana
ou católica. Aqueles que discordassem da escolha do príncipe para seus
territórios tinham permissão de mudar para territórios vizinhos onde sua
fé era reconhecida. O Calvinismo, porém, foi excluído como opção e os
senhores eclesiásticos (bispos e abades) que voltaram-se para o
Protestantismo não podiam converter seus territórios em Estados
seculares. Assim, as divisas de Estados serviam de fronteiras entre fés
rivais — o princípio da separação.
Na França, uma forma semelhante de conflito surgiu em 1562.
Calvino vinha mandando pastores para lá há alguns anos e em 1562 pelo
menos dez por cento da população tinha adotado o estilo reformado da fé
protestante. Esse crescimento rápido juntamente com a conversão de
muitos nobres importantes, assustou os católicos. Quando Henrique II
faleceu em 1559, deixou a monarquia em ruínas. Três dos seus filhos
ocuparam sucessivamente o trono durante os trinta anos seguintes e sob
seu governo o prestígio da monarquia caiu ainda mais. A princípio a
rainha-mãe, Catarina de Médici, conseguiu manter a paz entre católicos e
huguenotes e até organizou uma reunião de representantes de ambas as
fés a fim de criar um acordo (Colóquio de Poissy, 1562). Porém os
diálogos não deram em nada e foram seguidos de hostilidades.
A religião era apenas um dos fatores do conflito. Muitos nobres e
habitantes das cidades estavam tentando livrar-se do controle real. Como
em toda guerra civil, as lutas foram marcadas por grande crueldade.
Cidades inteiras foram arrasadas, os assassinatos eram freqüentes e o
número de refugiados, enorme. O poder real decaiu à medida em que as
províncias passaram a ser controladas pelos grandes nobres.
Um dos acontecimentos mais trágicos foi o massacre do Dia de São
Bartolomeu (agosto de 1572). Ele aconteceu por ocasião do casamento
de Henrique de Navarro (que também pertencia à família Bourbon, rival
da dinastia Valois) com Margarete de Valois, irmã do então rei, Carlos
IX. Esse relacionamento abria a possibilidade de que um protestante
pudesse acabar tornando-se rei da França. Catarina, determinada a
impedir que isso acontecesse, tramou com a facção católica a matança
dos protestantes que haviam se juntado para a celebração em Paris.
Quando os nobres estavam reunidos, os católicos receberam um sinal
combinado (o bater dos sinos da igreja) e começaram a matar todos os
protestantes que encontravam. Multidões de parisienses não tardaram a
entrar na luta e o massacre espalhou-se até para as províncias.
Estimativas do número de mortos ficaram na casa das dezenas de
milhares e, de acordo com as palavras de um observador da época: “As
ruas ficaram cobertas com os corpos dos mortos, o rio foi tingido e portas
e portões manchados de sangue. Carroças cheias de corpos de homens,
mulheres, meninas e até mesmo bebês descarregavam no rio Sena
enquanto riachos de sangue corriam pelos bairros”.1
1572 1643-47
Massacre Assembléia de
de São Westminster
Bartolomeu
1519-1605 1542 1560-1609 1577 1618-19 1633-45
Theodoro A Inquisição Jacobus Arminius Fórmula de Sínodo de Dort William Laud
Beza reavivada Concórdia
1500 1600 1700
1527-98 1555 1558-1603 1589 1598 1603-25 1618-48 1648
Filipe II Paz de Elizabeth I Henrique Édito de James I Guerra dos Paz de
Augsburg de Navarra Nantes Trinta Westphalia
torna-se rei Anos
1625-1649 1653-58
Carlos I Oliver Cromwell

Isso desencadeou uma nova onda de lutas e os conflitos


continuaram intermitentemente durante os dezessete anos seguintes.
Henrique de Navarra lutou com dois rivais católicos mutuamente
antagônicos, o rei Henrique III e Henrique duque de Guise, mas então
esses dois últimos foram assassinados e em 1589 restava apenas ele
como pretendente ao trono. Com o título de Herique IV, o representante
dos huguenotes reconheceu que não demoraria para que as guerras civis
voltassem, mas ele evitou que isso acontecesse ao abrir mão de seu
Protestantismo e tornar-se católico. Diz-se que ele afirmou: “Paris vale o
preço de uma Missa”.
Assim, a paz finalmente foi restabelecida na França tão cansada de
guerras através da iniciativa de Henrique IV. Sua conversão ao
Catolicismo garantiu a lealdade da maior parte dos franceses mas
assustou os protestantes que se viram isolados e em grande perigo. Para
tranqüilizá-los e manter sua lealdade, o rei lançou o Édito de Nantes em
1598. Este concedia direitos civis à minoria huguenote e permitia que
tivessem suas próprias unidades militares e fortificassem duzentas
cidades a fim de que pudessem sentir-se seguros. Os protestantes podiam
cultuar no âmbito particular em todas as regiões da França e
determinados lugares de culto público também foram oficialmente
designados para eles, incluindo as propriedades de alguns nobres. Mais
uma vez aplicava-se o princípio da separação.
O segundo método usado para trazer a paz entre grupos religiosos
rivais era o acordo, no qual o Estado elaborava um arranjo que
satisfizesse o maior número possível de pessoas e todos os outros eram
obrigados a submeter-se a ele. Foi o que aconteceu com a Igreja da
Inglaterra (Anglicana) sob o governo da rainha Elizabeth I. Na verdade, o
acordo de Elizabeth foi, em parte, produto se sua própria personalidade.
Como filha de Henrique VIII e Ana Bolena (que foi morta por suposto
adultério e traição), ela cresceu num ambiente de medo e ansiedade.
Apesar de muitos historiadores dizerem que ela teria preferido ser
católica, Elizabeth não podia reinar sobre a Inglaterra sendo simpatizante
de Roma. O seu apoio mais forte vinha dos protestantes e a Igreja
Católica a considerava ilegítima pois havia nascido de um casamento não
reconhecido.
Elizabeth deu seu aval a uma declaração de fé da Igreja Anglicana,
os Trinta e Nove Artigos, que era essencialmente protestante. Mas alguns
pontos, como o artigo sobre a Santa Ceia, foram escritos de modo
intencionalmente vago. A liturgia era semelhante a da Igreja Católica
Romana, exceto pelo fato de que era em inglês. O monarca era o
“governador supremo” da igreja que, por sua vez, era administrada por
um grupo de bispos.
Apesar de alguns membros do clero terem rejeitado o acordo, a
maior partes das pessoas ficou satisfeita com ele. A oposição ao acordo
anglicano veio dos católicos mais devotos liderados pelos jesuítas,
enquanto os protestantes extremistas (conhecidos como puritanos)
também ficaram descontentes com o arranjo. Como resultado, os dois
grupos foram perseguidos por suas crenças dissidentes.
Uma terceira forma de lidar com o conflito religioso era a
repressão. Um Estado escolhia um lado da disputa e então punha-se a
eliminar o outro através do assassinato ou exílio de seus adeptos. Essa
tática foi utilizada em muitos partes da Europa, mas especialmente na
Espanha, onde Filipe II foi, de longe, o maior praticante do método. O
governante mais poderoso da segunda metade do século 16, Filipe
trabalhou incansavelmente para construir sua dinastia e fortalecer a Igreja
Católica Romana diante do avanço protestante.
O símbolo de seu reinado era o El Escorial, uma imenso edifício de
pedra erigido na encosta árida de um morro a noroeste de Madri, uma
combinação de palácio, mosteiro e mausoléu. Era uma residência real
bastante incomum pois não tinha espaço para todos os oficiais de sua
corte, mas continha residências para monges, túmulos reais e uma grande
igreja central ao lado do quarto de dormir do rei. Filipe via a Igreja
Católica Romana como sendo, essencialmente, uma agente do governo e
supunha que ela devia ajudá-lo política e financeiramente. Como a maior
parte dos governantes da época, ele considerava qualquer religião
diferente da sua uma ameaça a seu poder.
Filipe usou a Inquisição (ver capítulo 10) para pressionar todos
aqueles que se desviavam da ortodoxia católica. A heresia era declarada
um crime contra o Estado e os oficiais civis aplicavam as penalidades.
Todos aqueles que se recusavam a renunciar sua fé, quer fossem
protestantes, judeus ou muçulmanos, entravam automaticamente nessa
determinada categoria. A Inquisição os cassava sem piedade e eram
aprisionados, torturados e executados. Judeus e muçulmanos eram
forçados a se converter ao Cristianismo e aqueles que rejeitavam o
batismo eram mortos ou banidos do reino de Filipe. Quanto aos
protestantes, eles eram compelidos a voltar para a Igreja romana e seu
movimento na Espanha foi totalmente erradicado.
Apesar da política de repressão ter sido praticada com sucesso na
Espanha, Filipe cometeu um erro enorme quando usou-a em seus
domínios na Holanda. A fim de impedir a propagação do Calvinismo
naquela região, Filipe ordenou um cumprimento rígido da lei contra a
heresia. Foi ainda mais longe e excluiu os nobres locais de seu governo
ou relegou-os a postos de pouca importância e os substituiu por
aristocratas trazidos da Espanha. Essa política, cuja natureza já foi
interpretada como racismo por alguns historiadores, enfraqueceu
seriamente sua posição ali tanto com católicos como com protestantes.
Então, em 1567, os protestantes se revoltaram e destruíram imagens
religiosas, objetos de arte e vitrais das igrejas católicas. Filipe reagiu
imediatamente, enviando um exército. Seu comandante, o duque de Alva,
desencadeou um reino de terror contra os habitantes da Holanda,
matando vários milhares de pessoas em apenas seis anos. Enquanto as
lutas continuavam, os calvinistas mudaram-se para lugares mais seguros
no norte do Reno, deixando as províncias do sul (a Bélgica nos dias de
hoje) para os católicos. Em 1579 dez províncias do sul formaram uma
coalizão para defender o Catolicismo e, dois anos mais tarde, as sete
províncias do norte declararam sua independência da Espanha.
A nova entidade política chamava-se Províncias Unidas e escolheu
Guilherme de Orange como seu líder. Apesar de alguns diplomatas
franceses terem dado a ele o apelido de “o quieto”, na verdade Guilherme
era uma pessoa extraordinariamente articulada e amigável. Sua forte
determinação, paciência e crença no governo com apoio do povo ergueu
o espírito de resistência entre os holandeses. Tendo em vista que cada
uma das sete províncias era relativamente independente das outras, era
preciso muito tato e esforço da sua parte para manter o todo funcionando
em conjunto. Frustrado, Filipe ofereceu uma enorme recompensa a
qualquer um que matasse o governante holandês e em 1584 um jovem
católico fanático o assassinou.
Apesar disso, a revolta continuou sob a liderança do filho de
Guilherme e Filipe decidiu impedir que os ingleses ajudassem os
holandeses enviando a famosa armada espanhola em 1558. Também era
sua intenção eliminar Elizabeth — a quem ele odiava — e reconquistar a
Inglaterra para a fé católica, mas a iniciativa fracassou. Depois da morte
de Filipe, foi declarada uma trégua de doze anos com os holandeses, mas
depois as lutas continuaram. Finalmente, sua independência foi
reconhecida em 1648. O resultado da política de repressão foram décadas
de guerra que esgotaram o tesouro nacional e levaram à perda de algumas
das províncias mais ricas da Espanha.
O último método usado para lidar com as diferenças religiosas
dentro de um Estado era a tolerância. Nos séculos 16 e 17 essa não era
uma alternativa bem recebida, como veio a ser em tempos mais recentes.
Guilherme de Orange foi uma das poucas pessoas do começo da Europa
moderna a adotar a idéia de que o Estado deveria permitir que diferentes
fés coexistissem em liberdade dentro de seus limites. Através de sua
influência, a liberdade de consciência tornou-se norma na Holanda e
durante o século 17 esse Estado tornou-se um refúgio para aqueles que
eram perseguidos por toda a Europa. A tolerância, uma política que
parece tão racional hoje em dia, era vista pela maioria dos governantes
daquela época como uma fragilidade perigosa. Tolerar um ponto de vista
religioso com o qual não se concordava certamente era prova de que a fé
pessoal daquele indivíduo era fraca.
O que aconteceu de fato foi que, depois de todas as tentativas dos
governantes europeus de resolver os conflitos religiosos, eles não
diminuíram. Finalmente, em 1618 todo o ódio e ressentimento que já
vinham se multiplicando há tempo explodiram em toda a sua fúria
irracional na mais sangrenta de todas as guerras religiosas da era da
Reforma.

A Guerra dos Trinta Anos


De todas as regiões da Europa assoladas pelo conflito entre o
Catolicismo reformado e o Protestantismo, a que sofreu maior devastação
foi o Sacro Império Romano. Há muito tempo os historiadores se
debatem com a questão de por que o Protestantismo perdeu sua força no
lugar onde originou-se, enquanto o Catolicismo tornou-se cada vez mais
confiante. Um fator foi o declínio econômico da Alemanha resultante das
mudanças de regras comerciais na Europa. Outro foi a desilusão com as
condições sociais. Apesar da Reforma ter reafirmado a importância de
uma doutrina sólida, ela teve menos impacto na sociedade em geral.
Superstição, imoralidade e injustiça social cresceram por toda a parte na
terra da Reforma e os seres humanos mostraram ser muito resistentes a
mudanças.
À medida em que a Igreja Católica Romana restabeleceu cada vez
mais seu poder na Alemanha, foi aumentado a tensão em relação aos
termos da Paz de Augsburg. Como já mencionamos anteriormente, os
governantes de cada área escolhiam entre o Catolicismo romano e o
Luteranismo e seus súditos tinham que estar em conformidade com a
religião oficial ou deixar aquele território. Uma outra parte da Paz de
Augsburg era a “reserva eclesiástica” que obrigava o líder espiritual de
um território da Igreja a abrir mão de suas terras caso decidisse tornar-se
protestante. Esse mecanismo foi criado para deter a “secularização” das
propriedades eclesiásticas e manter os três votos eclesiásticos (Mainz,
Colônia e Trier) da escolha do Sacro Imperador Romano nas mãos de
eleitores católicos, assegurando assim uma permanente maioridade no
colégio eleitoral. Mas como não havia nenhuma determinação legal
adequada para fazer cumprir a reserva eclesiástica, quando as disputas
aconteciam, o resultado dependia da força das partes envolvidas.
Um ótimo exemplo desse problema foi a conversão de Gebhard
Truchsess (1547-1601) que em 1577 tinha sido nomeado arcebispo de
Colônia. Em 1582 ele anunciou que se tornaria um protestante, se casaria
e declararia tanto o Catolicismo como o Protestantismo legais em seu
domínio. A reserva eclesiástica foi invocada e um exército foi enviado
para expulsar Gebhart e substituí-lo pelo duque católico Ernesto da
Bavária. Os protestantes haviam prometido apoiar Truchsess, mas apenas
uma pequena força do palatinado foi ajudá-lo pois os príncipes luteranos
suspeitavam que ele tinha preferência pelo Calvinismo.
Em 1608, uma dieta imperial em Regensburg tentou sem sucesso
diminuir a tensão entre protestantes e católicos. No mesmo ano foi
formada a União Protestante (conhecida também como evangélica). Era
composta pela maior parte dos príncipes alemães reformados e luteranos,
liderados por Frederico IV o eleitor palatino do Reno. Em 1609 foi
organizada a Liga Católica, uma rival liderada pelo duque Maximiliano
da Bavária. Os ânimos se exaltaram prometendo guerra, mas indivíduos
de boa vontade de ambas as partes tentaram chegar a um acordo sem ter
que recorrer às armas. Porém, resolver as questões territoriais entre as
duas confissões tornou-se ainda mais difícil.
Apesar de cada lado considerar o conflito inevitável, a eclosão da
Guerra dos Trinta Anos surpreendeu ambas as partes. Antes de traçar os
acontecimentos da luta, será de grande ajuda fazer um comentário geral.
Em primeiro lugar, tratava-se de três conflitos englobados em um —
protestantes contra católicos na Alemanha, uma guerra civil no Sacro
Império Romano entre o imperador e os príncipes e uma disputa
internacional entre a França e os Habsburgos (austríacos e espanhóis)
pela hegemonia européia e que muitas vezes envolvia outros poderes. Os
historiadores costumam dividir a guerra em quatro fases principais:
Boêmia (1618-25), Dinamarquesa (1625-29), Sueca (1630-35) e
Francesa (1635-48). As hostilidades aparentemente intermináveis e o
envolvimento de centenas de milhares de soldados devastaram as áreas
que foram palco das lutas. A guerra começou como um conflito religioso,
mas durante as duas últimas fases tornou-se essencialmente uma disputa
política na qual a casa católica dos Bourbons na França, assustada com
crescimento do poder dos Habsburgos, enviou tropas e dinheiro para
apoiar a causa protestante.
O lado político ou dinástico da luta levou à conclusão da Paz de
Westphalia em 1648, que acabou com a guerra na Alemanha apesar das
hostilidades entre a Espanha e a França ainda terem continuado por mais
uma década. Esse acordo foi o primeiro tratado de paz internacional
moderno e foi o precursor de muitos outros que se seguiram. Certamente
ele demonstrou o quanto a secularização havia progredido na Europa. No
grande encontro internacional — o Concílio de Constança — mais de
dois séculos antes, os assuntos em pauta eram questões de crença,
autoridade e estrutura da Igreja; em 1648 passaram a ser de Estado, poder
dinástico e aquisição territorial.
A Guerra dos Trinta Anos começou na Boêmia. Apesar de ser uma
terra eslava, seu rei era um dos eleitores do Sacro Imperador Romano. A
nobreza da Boêmia escolhia o rei e durante o último século a opção tinha
sido um Habsburgo católico. Mas então, muitos checos (outro nome dado
aos boêmios) tinham se tornado protestantes. Na verdade, a região havia
sido uma área problemática para a Igreja Católica Romana desde o tempo
do reformador Jan Hus. Os mais militantes dentre os protestantes checos
eram aqueles que adotavam o Calvinismo. A igreja reformada na
Alemanha e seus aliados na Boêmia estavam apreensivos com a extensão
do poder dos Habsburgos e o fortalecimento da Igreja Católica. Seu
medo pareceu confirmar-se quando em 1617 Matias, o imperador
Habsburgo, garantiu a eleição de seu primo Ferdinando para rei da
Boêmia. Educado pelos jesuítas dentro de um Catolicismo rígido,
Ferdinando começou a perseguir os protestantes apesar de ter prometido
não fazê-lo.
SOLUÇÕES PARA A QUESTÃO RELIGIOSA
Divisão Acordo Supressão Tolerância
Um país é dividido O Estado desenvolve O Estado escolhe um O Estado permite que
em territórios um acordo que lado na questão diferentes crenças
católicos e resolve as diferenças religiosa e elimina coexistam com
protestantes e o religiosas e todos têm todos os dissidentes liberdade em seu
governante da região de concordar. pela execução ou território.
determina a fé que exílio.
será praticada pela
população.
Paz de Augsburg na Elizabeth I e a Maria Tudor na A Holanda no final
Alemanha, 1555 adoção dos Trinta e Inglaterra dos séculos 16 e 17.
Nove Artigos
Guerras religiosas na definindo a crença da Filipe II suprime toda Roger Williams em
França, 1562-89, Igreja Anglicana. dissidência na Rhode Island e
resultam em Espanha mas não William Penn na
Henrique IV decidir consegue impor o Pensilvânia
ser católico mas Catolicismo aos determinam que
conceder aos holandeses. todas as crenças terão
huguenotes liberdade liberdade para adorar.
para praticar a sua fé
em áreas onde
predominam.

A primeira demonstração aberta de oposição foi a “defenestração


de Praga”. No dia 23 de maio de 1618, dois representantes católicos do
rei que tinham ido até lá a fim de pressionar os checos, foram jogados
para fora por uma janela do castelo de Praga mas não ficaram
gravemente feridos. Católicos cheios de júbilo consideraram o incidente
um milagre; os protestantes disseram que os dois homens haviam caído
sobre um monte de estrume. Depois do incidente, a União Protestante
mandou ajuda para os rebeldes da Boêmia. Em 1619 a assembléia
representativa da nobreza, clero e burguesia reuniu-se para depor
Ferdinando e eleger Frederico V, eleitor do Palatinado, seu novo rei. Este
era um jovem príncipe alemão calvinista de boa aparência e liderava a
União Protestante. Poderia ter sido eleito Sacro Imperador Romano,
tendo em vista que os protestantes naquele momento controlavam quatro
dos sete votos, mas na realidade ele governou por tão pouco tempo que
ficou conhecido como “o rei do inverno”. Quando os Habsburgos
atacaram a Boêmia, Frederico não recebeu a ajuda que esperava da
comunidade calvinista internacional e da União Protestante. Ferdinando,
que havia tornado-se imperador, por outro lado, recebeu apoio da
Espanha, do papa, da Bavária e da Liga Católica. Em novembro de 1620,
na Batalha da Montanha Branca a oeste de Praga, o conde de Tilly,
comandando as forças da Liga Católica, aniquilou as tropas de Frederico
e o rei do inverno teve que fugir.
Não tardou para que os jesuítas chegassem à Boêmia a fim de
forçar o Catolicismo sobre o povo. Recusando curvar-se à política
implacável de reconversão, 150 mil pessoas deixaram a Boêmia. As
terras da antiga nobreza protestante foram confiscadas e entregues para
católicos leais que apoiavam os Habsburgos. Depois dessa vitória, Tilly
conquistou o Palatinado e forçou Frederico ao exílio. A União
Protestante foi dissolvida e o imperador Ferdinando deu ao duque
Maximiliano da Bavária a cátedra eleitoral do Palatinado.
A grande vitória católica alarmou os outros príncipes protestantes
da Alemanha que foram buscar a ajuda de Cristiano IV, rei da Dinamarca
e Noruega, iniciando assim a segunda fase da guerra. Como duque de
Holstein, o rei dinamarquês também era um príncipe do império. Havia
construído seu poder e riqueza controlando a entrada do Mar Báltico. Ele
decidiu então intervir em favor dos protestantes alemães como forma de
ganhar mais territórios para si. Os holandeses e ingleses deram-lhe a
ajuda econômica necessária para ir à guerra. O imperador Ferdinando,
sentido a necessidade de mais apoio para enfrentar o desafio
dinamarquês, fez um acordo com Albrecht von Wallenstein, um estranho
e sinistro soldado mercenário de ambições ilimitadas. Wallenstein, que
havia enriquecido através de terras tomadas de protestantes da Boêmia,
concordou em fornecer um exército com vinte mil homens sem nenhum
custo para o império pois iria cobrir suas despesas através de assaltos.
Numa brilhante campanha contra os dinamarqueses, ele subjugou a maior
parte do norte da Alemanha e forçou o rei Cristiano a retirar-se da guerra
em 1629.
A maré de Habsburgos católicos encontrava-se em seu ponto mais
alto e parecia que a conversão forçada seria inevitável para a maior parte
dos alemães protestantes. As perdas entre os protestantes foram grandes,
mas nenhuma delas mais simbólica ou duradoura do que a da biblioteca
palatina. As tropas bávaras que conquistaram aquela área tomaram a
biblioteca de Heidelberg, um grande tesouro de manuscritos e livros e
enviaram tudo para Roma, onde continuam até hoje. Mais importante,
porém, foi o Édito de Devolução, emitido pelo imperador poucas
semanas antes do tratado com o rei dinamarquês. Ele decretava a
devolução de todas as terras da Igreja que haviam sido tomadas por
protestantes desde 1552. Isso incluía dois arcebispados, doze bispados e
aproximadamente centro e vinte mosteiros e outras fundações. Além
disso, só os adeptos da Confissão de Augsburg de 1530 teriam direito à
liberdade religiosa e todas as outras “seitas” seriam reprimidas. Isso não
perturbou apenas os príncipes protestantes que encararam a determinação
como uma garantia de sua destruição, mas também os governantes
católicos que estavam apreensivos sobre a possibilidade de Ferdinando
aproveitar-se da situação para aumentar o controle dos Habsburgos sobre
a Alemanha. Além disso, os príncipes temiam Wallenstein, cujas
extorsões e crueldades haviam causado muita animosidade e exigiam que
seu exército fosse dispersado. Na tentativa de amenizar suas suspeitas,
Ferdinando dispensou Wallenstein e ordenou que suas forças
debandassem.
Se o Édito da Devolução tivesse sido cumprido à risca, o
Protestantismo na Alemanha poderia ter sido eliminado. Apesar das
dificuldades com os príncipes terem atrapalhado Ferdinando, o golpe
mortal contra seus sonhos veio quando Gustavo Adolfo, rei da Suécia
chegou na Alemanha em 1630. Um soldado e estadista brilhante e
luterano devoto, Gustavo era um dos governantes mais importantes da
época. Antes de invadir a Alemanha ele já havia derrotado os
dinamarqueses, russos e poloneses. Ele entrou na Guerra dos Trinta Anos
não apenas para salvar os protestantes mas também para garantir o
controle sueco sobre a região do Mar Báltico. Um indício de que o
caráter da guerra estava mudando era o fato de que parte do
financiamento da expedição sueca tinha vindo do rei católico da França,
cujo conselheiro era o poderoso cardeal Richelieu (1585-1642).
No início, os príncipes protestantes alemães ficaram assustados
com essa invasão estrangeira, mas depois que o exército de Tilly saqueou
Magdeburg, eles começaram a apoiar os suecos. Em 1631 Gustavo
derrotou as forças imperiais em Breitenfeld, na Saxônia. Ele prosseguiu
com a captura de Praga e venceu novamente em Rain, no Danúbio em
1632, onde Tilly foi morto. Essas vitórias permitiram que ele restituísse a
liberdade dos protestantes no sul da Alemanha. Desesperado, Ferdinando
chamou de volta Wallenstein e lhe deu carta branca para impedir o
avanço dos suecos. Na importante batalha de Lützen (perto de Leipzig)
em 1632, os protestantes venceram, mas Gustavo foi morto no combate.
O exército sueco permaneceu na Alemanha e as lutas continuaram, mas
sua influência era cada vez menor. Wallenstein estava agindo sem
restrições chegando até mesmo a adotar sua própria política externa.
Quando ele pareceu estar querendo o controle político, o imperador o
dispensou. Então, em fevereiro de 1634, Wallenstein foi assassinado sob
circunstâncias misteriosas apesar de não se saber ao certo se foi
Ferdinando quem deu a ordem.
Em 1635 chegou-se a um acordo que incluía modificações do Édito
de Devolução, mas os franceses decidiram continuar a guerra. Usando
inicialmente mercenários e depois o exército francês, Richelieu estava
decidido a reduzir o poder dos Habsburgos. A guerra havia perdido todo
o significado religioso e tinha se transformado num conflito dinástico.
Lutando contra a Áustria, Espanha e Bavária, a França conseguiu ganhar
vantagem através de sua superioridade de recursos e liderança. Ao
mesmo tempo, a Dinamarca e a Suécia lutavam entre si enquanto a
Suécia aliava-se à França. O resultado foi a derrota dos Habsburgos de
forma tão completa que a Espanha afundou e tornou-se um poder de
segunda categoria enquanto a França assumiu o primeiro lugar entre os
estados europeus.
Depois de quatro anos de diálogos em duas cidades da Westphalia
— Münster e Osnabrück — o conflito finalmente foi encerrado em 1648
com uma série de tratados conhecidos como a Paz de Westphalia. Era
uma vitória para o Protestantismo e para os príncipes alemães e uma
derrota para o Catolicismo e os Habsburgos. Entre os termos do tratado,
havia uma nova confirmação do princípio territorial da Paz de Augsburg
e o acréscimo do Calvinismo como opção religiosa para um príncipe. O
acordo também permitia que os protestantes ficassem com terras tomadas
da Igreja Católica depois de 1624. Reconhecia a soberania de mais de
trezentos principados, cidades-livre e bispados e exigia que o imperador
tivesse seu consentimento antes de criar leis, aumentar impostos,
convocar soldados ou decidir sobre guerra e paz. Tendo em vista que
esses pequenos territórios estavam sempre brigando, um acordo sobre a
maior parte das questões era praticamente impossível. A independência
concedida a eles tornou praticamente impossível a unificação da
Alemanha sob um único governante. Outros itens do acordo incluíam o
reconhecimento da Holanda e Suíça como Estados independentes,
aprovação do controle dos Habsburgos sobre a Boêmia (inclusive o
direito de reimplantação do Catolicismo na região), devolução de parte
do palatinado ao herdeiro de Frederico V, a concessão de direito de voto
ao duque da Bavária (aumentando para oito o número de eleitores) e a
ampliação dos territórios do duque de Brandenburg para compensar as
terras que havia sido cedidas para a Suécia.
A guerra deixou a Alemanha tão exaurida a ponto da recuperação
levar quase um século. Os exércitos tinha vivido da agricultura e os
soldados, em sua maioria mercenários, não tinham se apiedado dos civis,
haviam saqueado as cidades e o campo e, por diversão, tinham
violentado, queimado e torturado. As doenças e a fome contribuíram para
uma redução populacional drástica. Um desânimo geral caiu sobre a
Alemanha, tornando ainda mais fácil para a França mantê-la dividida.
A Paz de Westphalia acertou muitas diferenças religiosas que há
muito estavam pendentes. Católicos e protestantes perceberam que
precisavam viver juntos tendo em vista que nenhum dos dois era forte o
suficiente para destruir o outro. O acordo forçado abriu espaço caminho
para a tolerância apesar de, na época, alguns não terem gostado disso e
pedido uma nova guerra. Irado pelas concessões feitas aos protestantes
em relação às propriedades secularizadas da Igreja, o papa Inocêncio X
opôs-se fortemente ao tratado, enquanto entre os protestantes, os Irmãos
Boêmios que haviam sido exilados exigiram que sua terra natal fosse
devolvida. Como nenhum dos grupos conseguiu muitos aliados, ficou
claro que as guerras religiosas na Europa haviam acabado.
A revolução inglesa
Um dos poucos países europeus importantes que não se envolveu
diretamente com a Guerra dos Trinta Anos foi a Inglaterra. Problemas
internos ocuparam tanto a atenção dos ingleses durante aquela tempo a
ponto de tornar inviável um envolvimento com o continente. O século 17
começou com a morte da rainha Elizabeth I e a ascensão ao trono de uma
nova família, os Stuarts, representados por James I (James VI da
Escócia). Ele era bem estudado, com tendências intelectuais e autor de
vários livros incluindo The True Laws of Free Monarchies [As
Verdadeiras Leis das Monarquias Livres] mas era também ingênuo
quanto às questões da Inglaterra. Antes deles, os Tudors haviam sido
déspotas rígidos, mas que cultivavam a popularidade junto aos súditos e
envolviam o Parlamento em sua ações. James tentou seguir os seus
passos, mas o seu autoritarismo entrou em choque com os ingleses.
O maior problema de seu reinado foi a luta com o Parlamento.
Apesar de não ser uma instituição democrática em si, era um grupo
poderoso que representava a nobreza e o alto clero (Assembléia dos
Lordes) e os comerciantes ricos das cidades e as principais famílias do
país (Assembléia dos Comuns). O conflito que teve início no governo de
James iria arrastar-se pelos quatro reinados dos Stuarts e terminaria com
a Inglaterra transformando-se em monarquia parlamentar, tendo a
Assembléia dos Comuns e não o rei como verdadeira governante do
Estado.
Por trás da luta havia diferenças radicais nas filosofias de governo.
A teoria da Coroa implicava no direito divino dos reis, a saber, que Deus
havia colocado o soberano no trono como seu representante e qualquer
um que resistisse ao rei estaria agindo contra Deus. O Parlamento, por
outro lado, apoiava os direitos históricos dos ingleses e afirmava que o
controle sobre as pessoas e propriedades não podia ser tomado sem o
consentimento dos indivíduos envolvidos. Os tribunais legais ajudavam o
Parlamento a proteger os direitos do povo comum e fiscalizar o poder do
rei.
Os Stuarts e o Parlamento se desentenderam por causa de religião,
economia e direitos civis, mas as questões religiosas pareciam ocupar o
primeiro lugar nas brigas. O partido puritano, o grupo dentro da Igreja da
Inglaterra que exigia cultos mais simples nas igrejas e uma teologia mais
pronunciadamente protestante, era um grande obstáculo na Assembléia
dos Comuns. Prevendo uma atitude protestante por parte do rei escocês
calvinista, em abril de 1603 os protestantes apresentaram ao rei a Petição
Milenar (da palavra latina para um milhar; seus autores afirmavam que
esse era número de assinaturas contidas no documento). Esta pedia que
ele acabasse com aquelas práticas da Igreja da Inglaterra que eles
consideravam ofensivas, como se fazer o sinal da cruz no batismo, usar
certas vestimentas e usar uma aliança no casamento. O documento
também pedia que fosse permitido o casamento clerical e eliminados os
abusos eclesiásticos. Em 1604 o rei encontrou-se com eles no palácio de
Hampton Court, mas sua única concessão foi determinar que se fizesse
uma nova tradução da Bíblia. A Versão Autorizada (ou King James) que
foi completada e publicada em 1611, teve um profundo efeito formativo
na língua e na cultura da Inglaterra.
Outro acontecimento importante de seu reinado foi o Assentamento
de Ulster em 1611. Ele marcou o começo de um assentamento
oficialmente organizado de presbiterianos escoceses na Irlanda do Norte
como forma de diluir a força do Catolicismo na ilha irlandesa.
Durante as duas décadas que se seguiram os puritanos no
Parlamento lutaram continuamente com James. Eles pediram sua
intervenção no lado protestante da Guerra dos Trinta Anos e queriam que
seu filho Carlos se casasse com uma princesa protestante. O rei não
aceitou nenhuma das duas sugestões.
Apesar de James ter brigado com os protestantes mais radicais, ele
não favorecia os católicos romanos. Os jesuítas incentivaram seu
assassinato, sendo que a tentativa mais famosa foi a Conspiração da
Pólvora em 1605. Os conspiradores, liderados por Guy Fawkes,
planejavam explodir o rei e o Parlamento, mas a intriga foi descoberta.
Na reação que se seguiu, muitos católicos foram executados e exigiu-se
um juramento de lealdade daqueles que não foram presos. Os ingleses
também foram assombrados pelo fantasma da “lenda negra”, um termo
que os protestantes associavam a Filipe II e sua cruzada católica.
No reinado de Charles I, que teve início em 1625, os combates
religiosos se intensificaram. Enquanto James era calvinista, Charles era
arminiano (ver mais adiante). O crescimento do Arminianismo entre o
clero havia contribuído para divisões dentro da igreja. Em 1633 Charles
nomeou William Laud (1573-1645) arcebispo de Canterbury, com
instruções para que ele impusesse uma liturgia uniforme mesmo que isso
significasse a saída de puritanos da igreja. Em questões doutrinárias
Laud era mais tolerante do que os puritanos, mas insistia na
conformidade total com seus rituais litúrgicos. Para ele era muito
importante que a mesa da Santa Ceia fosse colocada na extremidade leste
de toda a igreja e que todos se curvassem quando o nome de Jesus era
falado. Usando a Corte da Alta Comissão e a Corte da Câmara de Star
(onde prevalecia o poder real), Laud certificou-se de que sentenças
pesadas fossem dadas aos que se desviassem. Seu extremismo foi um
fator importante por trás de imigração dos puritanos para a América na
década de 1630.
A economia também dividia a monarquia e o Parlamento. A
Assembléia dos Comuns tinha um papel chave no sistema de coleta de
renda dos reis ingleses, mas nem James e nem Charles tinham paciência
para trabalhar com o Parlamento e tentaram levantar os fundos por contra
própria através de empréstimos forçados, impostos para defesa costeira,
multas sobre desflorestamento, venda de títulos de cavaleiro e concessão
de monopólios. O ressentimento popular em relação a esses mecanismos
de aumento tributário — muitos deles baseados em leis antigas que não
eram usadas havia anos — era cada vez maior.
As questões relacionadas aos direitos civis eram variadas como, por
exemplo, a liberdade de discurso no Parlamento, a resistência a
empréstimos forçados e prisão arbitrária. Tendo em vista que precisava
assegurar suas fontes de renda em 1628 Charles I primeiro concordou
relutantemente com a Petição de Direitos, que resguardava os ingleses de
impostos arbitrários (aqueles que não tinham o consentimento do
Parlamento) e garantia outros direitos. Mas Charles logo entrou em
conflito com o Parlamento por causas de outras questões financeiras,
dispensou todos os seus membros e governou sem eles durante onze
anos, desafiando a Petição de Direitos.
Em 1640 Charles estava em guerra com os escoceses, que dois anos
antes haviam concluído a Aliança Nacional afirmando a fé presbiteriana.
Como precisava desesperadamente de dinheiro para pagar por um
exército, ele acabou convocando o Parlamento, que exigiu imediatamente
a resolução de várias queixas antes de votar em favor de quaisquer
fundos. Depois de três semanas ele dispensou o “Parlamento curto”, mas
após outro desastre no norte convocou-o novamente. Este segundo ficou
conhecido como “Parlamento longo” pois tecnicamente ele funcionou até
1660 e foi o ponto de encontro da oposição ao absolutismo real. Forças
puritanas do Parlamento aliaram-se aos escoceses em 1643 através da
Liga e Aliança Solenes, cujos membros concordaram em fazer com que
as práticas religiosas na Inglaterra, Escócia e Irlanda fossem o mais
uniformes possível e em reformar a religião “de acordo com a Palavra de
Deus e os exemplos das melhores igrejas reformadas”. Essa adoção do
presbiterianismo levou a Inglaterra à guerra.
Um membro puritano pouco conhecido do Parlamento, Oliver
Cromwell, criou seu próprio regimento, os lendários Ironsides, com
soldados que eram cristãos dedicados e também valentes guerreiros. Ele
mostrou-se um gênio militar ao liderar as forças do Parlamento
(chamadas de “Roundheads” [cabeças rendondas] pois usavam cabelos
curtos) na vitória contra os defensores da realeza (os “Cavaliers”
[“Cavaleiros” partidários de Charles]). Depois de um longo período de
conflito, negociações infrutíferas e traições, o rei foi capturado e
executado por ordem dos radicais do Parlamento em 1649. A Inglaterra
tornou-se então uma república (o “Commonwealth “ [Estado
democrático]) liderada por Cromwell, que governou com um contingente
de Congrecionalistas (Independentes) do grupo remanescente no
Parlamento (conhecido como “Rump”).
Com os Congrecionalistas numa posição de vantagem, a aliança
com os presbiterianos escoceses já não tinha mais sentido. Quando os
irlandeses e escoceses reconhecerem o Charles II — filho do monarca
assassinado — como rei, em 1649 e 1650, as forças de Cromwell
arrasaram suas rebeliões. Especialmente o massacre brutal em Drogheda
nunca foi esquecido pelos católicos irlandeses. Por causa das contínuas
dificuldades com o Parlamento, Cromwell o dissolveu em 1653 e
declarou-se “senhor protetor” sob o Instrumento de Governo, a única
constituição escrita da história da Inglaterra.
A Assembléia de Westminster, que reuniu-se durante o período de
Guerra Civil, conseguiu fazer um acordo para substituir a instituição
anglicana, mas o presbiterianismo formulado durante esse encontro não
foi imposto depois que Cromwell subiu ao poder. A fragmentação da ala
puritana na verdade levou-o a tornar-se mais tolerante em relação às
diferenças religiosas entre os protestantes. Ele chegou a permitir que
judeus voltassem à Inglaterra, mas nem eles e nem os católicos tinham
verdadeira liberdade religiosa. Durante a década de 1650, a austeridade
normalmente associada ao puritanismo estabeleceu-se na sociedade. As
festividades de Natal foram abolidas, a cerimônia de casamento
transformou-se num ato civil e os teatros foram fechados.
Depois da morte de Cromwell em 1658, a inquietação cresceu tão
rapidamente que em 1660 o Parlamento decidiu convidar Charles II para
assumir o trono. Durante toda a década anterior ele havia vivido exilado
na França, onde tinha passado a admirar o absolutismo e o Catolicismo
de seu primo Luís XIV. Nenhuma dessas qualidades o tornariam bem
aceito pelo povo inglês, mas mesmo assim ele concordou em governar
com o Parlamento. O “Parlamento Cavaleiro” eleito em 1661 era
composto em sua maioria de simpatizantes da realeza, dando o tom para
a “Restauração”. Ele aprovou uma série de medidas — o Código
Clarendon — que ofereciam base legal para a perseguição dos puritanos.
Entre outras coisas, exigia-se que oficiais civis tomasse o sacramento de
acordo com o rito anglicano e que os clérigos aceitassem tudo do Livro
Comum de Orações. Os dissidentes eram chamados de “não-
conformistas” e eram proibidos de realizar reuniões religiosas. Mais de
dois mil clérigos perderam seus cargos e cinco mil pessoas foram presas
por causa das leis. Os membros da Aliança Escocesa se rebelaram contra
as restrições episcopais em 1668 e novamente em 1679, mas foram
derrotados.
No Tratado secreto de Dover em 1670, Charles prometeu a Luís
XIV restabelecer o Catolicismo na Inglaterra o mais rápido possível em
troca de um subsídio da França. Mas quando ele tentou cumprir sua
promessa ao emitir a Declaração de Indulgência que permitia a liberdade
de culto nos domicílios para católicos e protestantes não-conformistas, o
Parlamento reagiu com tanta violência que ele abandonou o plano. Para
reforçar sua vitória, em 1673 o Parlamento aprovou a Lei do Teste que
exigia que todos os oficiais tomassem a Ceia na igreja estabelecida. A lei
teve como efeito prático a exclusão dos dissidentes da vida pública e não
foi suspensa até 1828. Depois de um episódio de anticatolicismo em
1678-79, aprovou-se uma lei que excluía os católicos romanos do
Parlamento. O irmão do rei — James, duque de York — professava
publicamente ser católico e o Parlamento procurou tirá-lo da sucessão
real, mas não teve sucesso. Charles continuou sendo anglicano mas
confessou o Catolicismo em seu leito de morte.
Quando James II subiu ao trono em 1685 ele tentou abertamente
restaurar o Catolicismo. Nomeou católicos para postos de comando
militar e para lecionar nas universidades. Para obter apoio entre os
dissidentes, ele os inclui na sua Declaração de Liberdade de Consciência
em 1687. Mas quando sete bispos anglicanos foram acusados de traição
por não apoiarem a Declaração, uma corte os absolveu. Muitos estavam
só esperando o reino do monarca de certa idade (tinha 55 anos) acabar,
mas então ele teve um filho, o que significava certamente uma sucessão
católica. No Parlamento, os partidos anglicano (Tory) e puritano (Whig)
uniram-se contra o rei e em 1689 ofereceram formalmente a coroa a
Guilherme de Orange na Holanda (neto de Charles I) e sua esposa Mary
(filha de James II). Enquanto isso, James havia fugido para a França e os
novos monarcas chegaram e logo ocuparam o trono sem oposição. Esse
episódio ficou conhecido como a “Revolução Gloriosa”. Mais tarde
naquele mesmo ano, o Parlamento aprovou o Lei de Tolerância e a Carta
de Direitos, que garantiam certos direitos civis, a supremacia parlamentar
e também a liberdade de culto para todos, exceto unitários, católicos
romanos e judeus. Apesar de um artigo da Lei de Tolerância declarar que
apenas os anglicanos podiam servir no governo e no exército, havia
exceções a essa restrição. Leis adotadas em 1701 garantiam que nenhum
católico poderia jamais ocupar o trono e que o monarca não poderia
deixar a Inglaterra sem a permissão do Parlamento.
O novo regime parlamentar inglês encontrou justificativas nos
escritos políticos de John Locke. Sua obra Two Treatises of Government
[Dois Tratados de Governo] (1690) argumentava que o governo é um
contrato entre o governante e os cidadãos e que a revolução é justificada
quando esses contrato é quebrado ao negar ao povo seus direitos naturais
de vida, liberdade e propriedade. Ele também dizia que a forma mais
eficiente de governo é aquela baseada num sistema representativo. Numa
ironia da História, a apologia da revolução de Locke foi usadas pelos
colonos americanos em 1776 em sua revolta contra os britânicos. Ele
também foi o principal porta-voz filosófico de sua época em favor da
liberdade religiosa e em sua obra Letters Concerning Toleration [Cartas
sobre a Tolerância] (1689-92) ele pedia a liberdade para todos menos os
ateus e católicos romanos que eram vistos como um perigo para o Estado.
James tentou um retorno em 1689 ao reunir seguidores na Irlanda e
Escócia. Totalmente derrotado na Batalha de Boyrne na Irlanda em 1º de
julho de 1690 (que passou depois disso a ser um feriado nacional para os
protestantes escoceses e irlandeses) ele voltou para a França onde faleceu
em 1701. Com o apoio francês seu filho James e seu neto Charles
Edward, restauraram os Stuarts na Escócia e o chamado movimento
jacobita se extinguiu depois de 1746. Para tornar permanente o laço com
o norte, foi aprovada em 1707 a Lei de União. Dali em diante a Escócia
seria representada no Parlamento em Londres, mantendo inalteradas suas
leis e administração separadas e a Igreja Presbiteriana (Igreja da Escócia)
continuaria sendo oficial.

A controvérsia arminiana
Mesmo enquanto soldados matavam-se uns aos outros em nome do
evangelho de Cristo, os líderes de suas igrejas lutavam com palavras para
definir a fé de modo mais preciso. As brigas doutrinárias eram muitas
vezes misturadas com as lutas políticas e levavam a conflitos entre vários
grupos dentro das igrejas. Um deles foi a disputa entre arminianos e
calvinistas rígidos, sediados na Holanda. Os primeiros tomaram o nome
de Jacobus Arminius (1560-1609), um teólogo que havia estudado em
Leiden e Genebra antes de tornar-se pastor em Amsterdã. A teologia
reformada de sua época havia sido desenvolvida a partir da visão de
Calvino por Theodore Beza (1519-1605) e outros escolásticos
reformados. Esses homens enfatizavam o literalismo bíblico, rígida dupla
predestinação e governo da Igreja presbiteriana. Armínio reagiu contra
esse sistema inflexível, proclamando que a oferta da graça de Deus era
universal e que os indivíduos possuíam a liberdade de responder a Deus
pela fé.
Em 1603 ele foi nomeado professor de Teologia na Universidade
de Leiden apesar do protesto de Francis Gomar (1563-1641), outro
teólogo da instituição. A controvérsia entre os dois girou em torno do
significado exato da predestinação. Armínio expressou de maneira clara
e direta sua oposição a certos aspectos da teologia de Calvino e sugeriu
que Calvino tornava Deus o autor do pecado e negava a verdadeira
liberdade do ser humano. Gomar, um rígido calvinista, contra-atacou
essas idéias incansavelmente e o debate que se seguiu levou à divisão da
igreja Reformada. Armínio queria a convocação de um sínodo nacional a
fim de reunir os dois lados. Até políticos foram incluídos no debate, mas
quando de sua morte, não havia se chegado a um acordo.
Os seguidores de Armínio continuaram a propagar os seus
ensinamentos e em 1610 emitiram um documento chamado “Objeção”
que pedia tolerância e apresentava os cinco pontos principais do
Arminianismo: (1) o decreto eterno da salvação aplica-se a todos que
crêem e perseveram na fé; (2) Cristo morreu por todos; (3) o Espírito
Santo deve ajudar o indivíduo a fazer aquelas coisas que são realmente
boas como ter fé em Cristo para a salvação; (4) A graça salvadora de
Deus não é irresistível; e (5) é possível cair da graça. Muitas
personalidades proeminentes na Holanda, incluindo o teólogo Simão
Epíscopo (1538-1640), o estadista Jan van Oldenbarneveldt e o principal
acadêmico da época, Hugo Grotius, tomaram publicamente partido da
causa arminiana.
O Sínodo de Dort (Dordrecht) reuniu-se em 1618-19 para resolver a
controvérsia. Foram enviados convites para todas as igrejas calvinistas da
Europa e vinte e sete dentre os mais de cem representantes eram da
Alemanha, Suíça, Inglaterra e Escócia. Os arminianos ou Opositores
como eram muitas vezes chamados, foram condenados por um conjunto
de cinco cânones (decretos). Essa refutação de cada ítem da Objeção de
1610 definia os ensinamentos da fé calvinista ortodoxa como sendo a
total pecaminosidade, eleição incondicional, expiação limitada, graça
irresistível e perseverança dos santos na graça. Sínodos provinciais e
presbitérios locais receberam ordens de expulsar as igrejas Opositoras
que estivessem sob seus cuidados. Nos anos que se seguirem, a Igreja
Reformada na Holanda aderiu com rigidez à doutrina definida em Dort e
seus teólogos interpretaram essas declarações ao elaborar sobre seu
significado de acordo com os elementos aristotélicos.
A controvérsia entre os arminianos e os calvinistas rígidos tinha
uma dimensão política. Os dois principais políticos holandeses da época
tomaram partidos diferentes na disputa. Maurício de Nassau apoiava os
gomaristas e Jan van Oldenbarneveldt favorecia os Opositores. Não era
só a religião que separava os dois pois Maurício desejava que sua família
(a Casa dos Orange) fizesse parte da monarquia enquanto
Oldenbarneveldt queria que a aristocracia mercantil controlasse o país. A
religiosidade sincera de Maurício era particularmente dúbia pois alega-se
que ele dizia não estar certo da predestinação, mas sua posição ortodoxa
firme o colocou como aliado dos fortes calvinistas holandeses. Na época
do Sínodo, Maurício agiu contra seus inimigos. Oldenbarneveldt foi
preso, julgado por traição e executado; Episcópio foi exilado e outros
como Grótio foram encarcerados.
O movimento parecia ter acabado na Holanda, mas quando
Maurício faleceu em 1625, os arminianos tiveram permissão de voltar.
Episcópio foi o guia da nova fundação da Igreja Opositora que existe até
hoje. Frederik Henry, sucessor de seu irmão Maurício como líder
político, percebeu que uma ortodoxia rígida era inadequada para o país
como também o era uma monarquia absolutista e que forçar os adeptos
de várias cranças à conformidade poderia produzir a falência econômica.
O resultado a longo prazo dessa luta mordaz foi uma política oficial de
tolerância. Apesar da disputa arminiana na Holanda ter chegado ao fim, o
debate continuou em outros lugares. A Inglaterra foi um solo fértil para o
crescimento do Arminianismo. Muitos seguidores do arcebispo William
Laud aceitaram a manifestação mais liberal do Calvinismo e passaram o
ensinamento para os latitudinarianos (como aqueles que aceitavam a
variação de doutrinas) que surgiram no começo do século 18. Os
unitários ingleses também eram arminianos, como também o era o grande
evangelista John Wesley. Através do Metodismo de Wesley, a doutrina
chegou até o presente como uma importante corrente teológica e a
discussão entre arminianos e reformados ainda é uma preocupação para
muitos.

Controvérsias luteranas
Os luteranos também foram assolados pelas controvérsias durante o
final da era reformada. Assim como havia ocorrido no estágio inicial da
Reforma, problemas políticos e teológicos estavam entretecidos. A Paz
de Augsburg (1555) foi concluída com a promessa de que um acordo
definitivo seria feito posteriormente, mas isso deu aos protestantes
alemães pouca segurança política e legal. Assim, quando os teólogos que
representavam os luteranos e católicos se encontraram em Worms em
1557 para esclarecer diferenças confessionais, as divisões entre os
protestantes incentivaram os católicos a postergar o acordo.
A situação dos protestantes foi complicada por uma disseminação
do Calvinismo na Alemanha, tendo em vista que vários governantes,
sendo o mais importante Frederico III do Palatinado, haviam introduzido
a fé em seus principados. Apesar de desviar da posição luterana,
Frederico afirmava que seguia a Confissão de Augsburg para que
pudesse ser protegido pelos direitos garantidos àqueles que aderiam a
essa declaração. Outros teólogos alemães reformados e príncipes
seguiram o seu exemplo.
Outra divisão dentro do protestantismo alemão era a dos gnésio-
luteranos (“verdadeiros luteranos”), um grupo que seguia Matthias
Flacius Illyricus (1520-73), um conhecido estudioso e historiador da
Igreja. Eles rejeitavam as idéias de Melanchthon e de seus seguidores
que eram chamados de “filipistas” em função do nome de Melanchthon.
Os gnésio-luteranos acusavam os filipistas de serem tolerantes demais em
relação aos católicos romanos e puseram-se a desenvolver o ensinamento
luterano de modo a distingui-lo tanto do Catolicismo como das idéias dos
filipistas. Na controvérsia adiaforista eles acusaram seus oponentes de
fazer concessões ao Catolicismo em questões como as cerimônias de
confirmação, extrema unção, veneração dos santos e a missa. Os
“verdadeiros luteranos” afirmavam que nada é uma adiafora (uma
questão de indiferença) no que diz respeito a qualquer aspecto da
verdade cristã.
Talvez o conflito luterano mais importante tenha sido aquele em
torno da Ceia do Senhor. Apesar dos ensinamentos luteranos rejeitarem o
dogma da transubstanciação, declaravam firmemente a presença real do
corpo de Cristo dentro, com e sobre o pão e o vinho. Calvino tentou
harmonizar as idéias de Lutero e Zuínglio ao declarar que o crente
verdadeiramente recebia o corpo e o sangue de Cristo nos elementos da
Ceia, mas de maneira espiritual.
Numa controvérsia de idéias sobre a Eucaristia que teve início em
1552 e ocorreu entre o luterano Joachim Westphal e o próprio Calvino,
as diferenças entre reformados e luteranos ficaram ainda mais claras.
Melanchthon e seus seguidores, que recusaram-se a ser envolvidos no
debate, foram acusados de simpatizar com a posição calvinista e foram
denunciados por ser cripto-calvinistas. Assim, a presença de
ensinamentos reformados na Alemanha foi além dos debates dentro do
Luteranismo. Na verdade, calvinistas e luteranos concordava quanto a
várias questões, mas os reformados normalmente rejeitavam o culto
litúrgico, dando mais ênfase à participação na solução de problemas
sociais e tinham posições diferentes quanto à cristologia e os
sacramentos.
Um grupo de teólogos proeminentes das Universidades de Leipzig,
Marburg e Tübingen procurou impedir a fragmentação do Luteranismo
tomando uma posição intermediária entre os extremos. Sua iniciativa
levou à adoção da Fórmula de Concórdia em 1577, uma declaração
confessional criada para resolver as controvérsias ao substituir os credos
separados que haviam sido adotados nas várias igrejas territoriais
luteranas. A raiz do problema eram as muitas interpretações diferentes da
Confissão de Augsburg. A Fórmula de Concórdia, com sua linguagem
precisa e enfática procurava o meio termo entre essa diversidade a fim de
declarar exatamente em que os luteranos acreditavam. Em 1580 a
Fórmula foi publicada junto com três credos ecumênicos (dos Apóstolos,
de Nicéia e de Atanásio), a Confissão de Augsburg (1530) e sua
Apologia (1531), o Pequeno e o Grande Catecismo de Lutero, os Artigos
da Smalkaldia (1537) e três dos primeiros esboços da Fórmula no Livro
de Concórdia. Essa obra, que foi adotada por dois terços do
Protestantismo luterano, definia claramente as diferenças entre os
ensinamentos luteranos e católicos e também entre luteranos e
reformados. Foi a declaração definitiva da ortodoxia luterana e
correspondeu a um ato semelhante realizado por parte dos católicos no
Concílio de Trento.
A sistematização da doutrina dentro do Luteranismo podia então
prosseguir e foi feita através de declarações elaboradas baseadas em
textos de esboço. Esse método, usado de uma forma mais simples pelos
primeiros teólogos luteranos, desenvolveu-se nas obras dos estudiosos
ortodoxos do século 17. Ao contrário dos luteranos, os reformados
alemães não conseguiram elaborar sua própria fórmula de concórdia e
continuaram voltando-se para o catecismo de Heidelberg de 1563 como
sua principal declaração doutrinária. A essa altura, a Universidade de
Heidelberg havia tornado-se o centro intelectual de um movimento que
incluía diversos territórios e cidades em Rhineland e no oeste da
Alemanha. Um marco importante na propagação da fé reformada foi a
conversão do eleitor John Sigismund de Brandenburg do Luteranismo
para o Calvinismo. Em parte como consequência dessa mudança, os
laços do país com a Saxônia e os Habsburgos foram rompidos, o que
seria um fato crucial na ascensão de Brandenburg e Prússia a uma
elevada posição de poder depois da Guerra dos Trinta Anos.

A partir de então os governantes protestantes da Alemanha


dividiram-se em dois grupos: os luteranos (liderados pelo eleitor da
Saxônia, que procurava manter intacta a antiga ordem) e os reformados
(liderados pelo eleitor Palatino, que desejava ter uma participação ativa
nas lutas dos calvinistas da Europa ocidental). A animosidade entre esses
dois grupos manteve as forças protestantes divididas e permitiu que a
reforma católica fizesse progresso impressionante. Ao mesmo tempo,
significou que a Alemanha não teria um papel na iniciativa expansionista
da Europa no além mar, ao contrário das nações católicas de Portugal,
Espanha e França e das protestantes Holanda e Grã-Bretanha. Durante
algum tempo, o Protestantismo definhou em sua ortodoxia introspectiva,
mas a brisa fresca do Pietismo trouxe nova vida e uma visão mais ampla
da missão da Igreja.

Capítulo 12 - A Igreja se expande para além da Europa


A revitalização do comércio de longa distância e o conseqüente
crescimento de um sistema econômico urbano e capitalista foram fatores
que contribuíram para o início da expansão da igreja européia. Em
conjunto com a dinâmica intelectual e espiritual da Renascença e
Reforma, esses fatores produziram uma curiosidade enorme sobre as
terras além da Europa. Progressos na tecnologia militar e especialmente
naval, permitiram aos europeus aventurarem-se em mar aberto e
envolverem-se em combate vitorioso com outros povos de lugares
distantes. Enquanto muitos gastavam suas energias com os
aparentemente infindáveis conflitos religiosos e corridas pelo poder,
outros buscavam novas oportunidades de ganho econômico e conquista
espiritual. Do final do século 15 até o começo do século 17, os europeus
adquiriram domínio sobre os oceanos e estabeleceram-se em áreas
costeiras de várias partes do mundo.

Expansão européia ultramarina: a fase ibérica


Os estados ibéricos — Portugal e Espanha — iniciaram o processo
e, de certa forma, ele foi uma continuação das Cruzadas. Foi um
confronto militante e violento dos cristãos ocidentais com povos que
tinham cosmovisões completamente diferentes. Essa expansão do
Cristianismo teve impacto transformador, porém nem sempre positivo,
sobre a própria fé. A responsabilidade de propagar a fé foi assumida por
países específicos e mais ou menos supervisionada por seus monarcas. A
conquista portuguesa de Ceuta no Marrocos muçulmano em 1415 e, em
1492, a vitória dos espanhóis em Granada — a última fortificação
islâmica na península ibérica — poderiam ser vistas como iniciativas de
Cruzadas. Estas tornaram-se um impulso natural para outras expedições.
Junto com a motivação material para a expansão ultramarina, havia uma
obrigação claramente expressada de propagar o Cristianismo. A
conversão era um aspecto da conquista.
O primeiro passo para a expansão ultramarina foi a invasão
portuguesa no Marrocos. Isso lhes deu um posto de escuta na África e
estimulou o desejo de acesso ao lucrativo comércio de ouro com os
povos ao sul do Saara. Os meios mais bem informados da Europa sabiam
da fabulosa riqueza do reino de Mali, cujo governante Mansa Musa,
havia feito cair o preço do ouro na metrópole islâmica do Cairo quando a
visitou numa peregrinação para Meca em 1331. O príncipe Henrique,
conhecido como “o Navegador” (1394-1460, um filho mais jovem do rei
João I, havia participado da campanha de Ceuta e tinha se interessado na
exploração da costa oeste da África. Seu patrocínio a expedições navais e
a fundação de um centro de pesquisas em seu castelo tornaram possível a
hegemonia portuguesa no Oriente.
Ele expressou o desejo de envolver-se no comércio com os
africanos e levar a eles o Cristianismo. Porém, a perspectiva de uma rota
marítima direta para “as Índias” começava a despontar no horizonte e em
1488 o primeiro navegante português chegou à ponta da África do Sul.
Em 1497 Vasco da Gama contornou o Cabo da Boa Esperança e navegou
para a Índia, voltando para casa dois anos mais tarde com um
carregamento de mercadorias do Oriente. Expedições subseqüentes
tomaram posse do Brasil e da costa leste da África, arrasaram as forças
navais dos árabes (que tinham sido os intermediários no comércio entre o
Ocidente e o Oriente) no Oceano Índico e fundaram uma cadeia de
pontos de comércio.
Alfonso de Albuquerque capturou Goa em 1510 e fez do lugar uma
sede de governo português. Ele instituiu o controle das rotas marítimas
como bases de poder de seu país. Com pontos fortificados no leste da
África, Golfo Persa, Málaca na Malásia, Indonésia e em diversos lugares
da Índia e Ceilão, os portugueses eram os senhores do Oceano Índico.
Mais tarde, em 1557, eles fundaram a colônia de Macau na China. A
manutenção desse sistema vasto e flexível foi confiada ao “governador”
ou “vice-rei” em Goa.
1557 1663
Missão espanhola nas Filipinas Formação da
Sociedade das Missões
Estrangeiras
1445 1474-1556 1541-52 1582- 1622 1769 1794
Nicolau V Bartolomeu de Francisco Xavier 1610 Gregório XV cria a Junipero Primeira
concede las Cásas trabalha no Matteo Congregação para a Serra missão
padroado Oriente Ricci na Propagação da Fé funda a ortodoxa
China primeira russa no
missão na Alasca
Califórnia
1400 1600 1800
1394- 1492 1492 1519-22 1602 1609 1700
1460 A Colombo Navios de Fundação Fundação Pedro I
Príncipe Espanha chega à Magellan da de Quebec promove
Henrique, conquista América circunave Companhi missões à
o Granada e gam a s das Sibéria
Navegado expulsa os Terra Índias
r judeus Orientais
1497 1521
Vasco da Cortez derrota
Gama chega Montezuma
à Índia

Durante a união de Portugal e Espanha entre 1580 e 1640, os


holandeses destruíram completamente o monopólio português no Oceano
Índico, levando Portugal a perder várias de suas bases. Porém, o Brasil, a
Angola e o Moçambique continuarem sendo suas principais propriedades
coloniais. Durante aproximadamente trinta anos os holandeses
controlaram parte da Angola e do Brasil mas foram expulsos em 1661.
Com a descoberta de ouro em 1693 e diamantes em 1728, a riqueza do
Brasil constituía parte importante da renda da coroa. Angola e
Moçambique serviam basicamente de fontes de escravos para o Brasil,
mas alguns portugueses acabaram assentando-se na colônia.
A Espanha entrou em cena alguns anos depois de Portugal. Através
de um processo de estudo, meditação, intuição e cálculos, o navegante
genovês Cristóvão Colombo concluiu que a Ásia estava a uma distância
razoável a oeste da Europa. Depois de oito anos de esforços inúteis em
várias direções, ele finalmente convenceu a rainha Isabel de Castela a
financiar sua expedição. No dia 12 de outubro de 1492 ele chegou em
terra nas Bahamas e em viagens subseqüentes consolidou o poder
espanhol em Hispaniola. Outros espanhóis conquistaram ilhas vizinhas e
exploraram as regiões costeiras do Caribe.
O italiano Américo Vespúcio participou de uma expedição que
explorou a costa norte da América do Sul e, depois de ler suas descrições
daquilo que claramente não era a Índia, mas sim um novo continente, o
famoso cartógrafo Martin Waldseemüller fez um mapa em 1507 que
dava às novas terras o nome de Américo. Vasco Nuñez de Balboa cruzou
o istmo panamenho em 1513 e viu o Oceano Pacífico; Hernando Cortez
tomou a capital asteca do seu governante, Montezuma, em 1521;
Francisco Pizzaro esmagou o império inca do Peru em 1533-35 e outros
exploradores e conquistadores espalharam-se pela Flórida, México,
América Central e América do Sul para consolidar o governo espanhol.
Com a fundação de Buenos Aires em 1580 o estágio continental da
expansão da Espanha chegava ao fim sendo que os espanhóis
concentraram-se na ocupação de vastas áreas demarcadas anteriormente.
Porém, pioneiros continuaram a se mudar para as novas terras ao norte
do Rio Grande e sul do rio da Prata.
O navegante português Fernando de Magalhães, que estava a
serviço da Espanha, partiu em 1519 para primeira viagem de
circunavegação para tomar posse de terras do Oriente. Ele chegou às
ilhas Filipinas em 1521, onde foi morto, mas a posse só foi estabelecida
com uma outra expedição na década de 1560.
Na América Latina, o poder do sistema colonial era centralizado no
rei e a administração era feita pelo Concílio das Índias em seu nome. Era
o concílio que determinava as políticas, preparava os decretos, fazia
nomeações, supervisionava a Igreja e funcionava como corte judicial. As
subdivisões na América Latina eram compostas de dois (e depois quatro)
vice-reinos que por sua vez eram divididos em audiências, capitanias
gerais, presidências e vários tipos de governo local.
Muitos espanhóis mudaram-se para as colônias e aqueles que lá se
estabeleceram ficaram conhecidos como “crioulos”. Eles ocupavam uma
posição inferior na pirâmide social em relação aos “peninsulares” que
vinham diretamente da Europa e exerciam cargos administrativos. Em
1574 os espanhóis já haviam fundado mais de duzentas cidades e
povoados cuja população de brancos chegava a mais de 160 mil pessoas.
Os “mestiços”, filhos de homens espanhóis com mulheres índias,
adotaram a língua e a cultura espanhola mas eram considerados inferiores
pelos brancos. Na base da pirâmide social estavam os nativos da América
e os escravos africanos.
O sistema econômico baseava-se na posse de grandes propriedades
espanholas e uso de trabalhadores próprios, chamado de sistema agrícola
de encomienda no qual os camponeses trabalhavam para o senhor em
caráter perpétuo. Uma quantidade considerável de riqueza também era
gerada pelo garimpo de ouro e prata, o comércio e alguns tipos de
manufatura de pequeno porte. Através de sua posse de terras e
empreendimentos econômicos, a Igreja Católica tornou-se a mais
abastada instituição da América espanhola. No final da era colonial,
estima-se que ela era dona de metade de todas as terras no México.
Os empreendimentos espanhóis e portugueses representavam os
dois tipos básicos de “colonialismo” praticado pelos europeus. Muitos
espanhóis deixaram sua terra natal, assentaram-se nos territórios
estrangeiros onde havia uma quantidade módica de controle político e
introduziram sua cultura. Os portugueses, por outro lado, criaram
enclaves coloniais que tanto podiam ser toleradas pelos governantes
locais que lucravam economicamente com sua presença, como também
podiam ser mantidas pelo uso de força armada. Eles estavam sempre
susceptíveis a ataques de rivais europeus.

Expansão: as fases da Europa ocidental e da Rússia


Apesar dos ingleses terem ocasionalmente se envolvido com as
explorações (a viagem de John Cabot em 1497, a procura da Passagem
Noroeste de Martin Frobisher em 1576-78) e de na era elizabetana terem
atacado navios espanhóis (Francis Drake, John Hawkins), eles só
começaram uma colonização mais séria depois da virada do século 17.
As colônias da América do Norte eram empreendimentos particulares
com permissão real, mas tinham que competir com outros. Os holandeses
chegaram a Nova York em 1626. Um assentamento comercial sueco
instalou-se na parte baixa do rio Delaware entre 1638 e 1655.
Mais para o norte ficavam os domínios dos franceses. Jacques
Cartier havia visitado a parte baixa do rio São Lourenço em 1534-35 e
tomado posse da mesma como “Nova França”. Samuel de Champlain
fundou Quebec em 1609 e trabalhou arduamente nas décadas seguintes
para desenvolver o Canadá como colônia. Os pioneiros receberam pouco
apoio de sua terra natal até o reinado de Luís XIV, sendo que sob seus
auspícios o território prosperou. O comércio de peles era a principal
atividade econômica na fronteira dos Grandes Lagos e no final do século
17 a influência francesa estendia-se até o rio Mississippi. Com a chegada
de mais colonos no século seguinte, a Nova França viveu um
considerável crescimento econômico.
O verdadeiro foco de interesse, porém, era o Caribe. A exploração
espanhola dos povos nativos havia deixado as ilhas despopuladas e em
ruínas. Foi o caso do povo Taino de Hispaniola que em 1492 tinha uma
população em torno de quatrocentos mil e que havia diminuído para
meros dezesseis mil em 1518. Então, no começo do século 17 foi
introduzida a cultura de açúcar que resultou numa revolução econômica.
O cultivo era feito em grandes plantações tendo à disposição a mão-de-
obra aparentemente ilimitada vinda da África. Desenvolveu-se uma
grande rede de comércio de escravos sendo que pelo menos dez milhões
de pessoas foram transportadas para o outro lado do Atlântico fazendo
com que as ilhas se tornassem grandes fontes de riqueza. Os escravos
também eram trazidos para o Brasil, onde tiveram um papel crucial no
desenvolvimento e na mistura racial tão singular que hoje existe no país.
O trabalho escravo também foi usado pelos britânicos na América do
Norte e nas regiões costeiras do Caribe. Depois de terem ocupado
anteriormente as Antilhas, em 1655 os ingleses tomaram a Jamaica da
Espanha e juntaram-se à Holanda, Dinamarca e França na competição
por pelo poder colonial e naval da região.
Para facilitar as coisas do lado africano do comércio de escravos e
de outras mercadorias, os europeus abriram centros de trocas ao longo da
costa oeste da África. Esses centros comerciais, como o famoso forte de
Elmina na Costa do Ouro mudavam constantemente de mãos e os
governantes africanos locais dificultavam o trabalho dos europeus. No
século 17 e começo do século 18 Portugal, Espanha, Inglaterra, França,
Holanda e até mesmo Brandenburg tinham negócios lá.
O principal elemento novo da expansão européia desse período foi
a presença dos holandeses. Depois de seu sucesso inicial na luta pela
independência do governo espanhol, eles desenvolveram a marinha
mercante mais eficiente da Europa. Seus navios entraram no Oceano
Índico no final do século 16 e em 1602 formou-se a Companhia
Holandesa das Índias Orientais. O centro da companhia era na Batávia
(Jacarta), em Java, e logo ultrapassou Portugal no controle do Oceano
Índico. A Companhia controlou o Ceilão entre 1638 e 1658 e em 1652
fundou uma colônia no Cabo da Boa Esperança. Durante dois séculos a
Holanda foi o único país ocidental a ter contato com o Japão. Uma
Companhia das Índias Ocidentais (fundada em 1621) realizou comércio
no Oceano Atlântico durante grande parte do século, manteve a colônia
na América do Norte, adquiriu territórios no Caribe e governou
temporariamente no norte do Brasil.
Porém, sob a liderança de Oliver Cromwell, os ingleses dedicaram-
se a um programa de expansão naval e comercial com o qual os
holandeses não conseguiram se equiparar. A Lei de Navegação (1651)
foi criado para impedir os holandeses de realizarem o comércio e em
1664 os ingleses os expulsaram de sua base na América do Norte e
deram-lhe o nome de Nova York. À medida em que o poder dos
holandeses se enfraquecia, preparava-se a cena para o duelo de titãs entre
Inglaterra e França que dominou o século 18.
A conquista russa de vastas regiões de floresta e tundra na Sibéria
foi a única verdadeira ocupação a ocorrer no continente asiático nesse
tempo. As forças do czar Ivan IV garantiram para si a bacia do Volga ao
derrotar o último ponto de resistência dos tártaros muçulmanos (Kazan,
1552; Astrakhan, 1556) o que abriu caminho para a expansão russa a
leste dos Montes Urais. Em 1581-82, um grupo de cossacos liderados por
Ermak conquistaram os domínios do khan na Sibéria e, deslocando-se
rapidamente pelo sistema fluvial, fundaram cidades fortificadas em
pontos estratégicos. Comerciantes de peles seguiam o rio e
possibilitavam um comércio ágil.
Durante um século a região de florestas da Sibéria ficou, em sua
maior parte, sob o controle dos russos. Porém os chineses contiveram o
avanço russo no leste e em 1685 o tratado de Nerchinsk demarcou uma
fronteira no vale de Amur. A presença de fortes estados islâmicos nos
campos e regiões de deserto ao sul tiveram sucesso em conter a expansão
russa sobre essas áreas até o final do século 18 e começo do século 19. A
atividade econômica da Sibéria dependia da coleta de peles que eram o
principal produto no comércio com o Ocidente. No século 17, colonos —
muitos dos quais exilados — começaram a se assentar nessas terras e
dedicar-se à mineração e agricultura. A população de brancos da Sibéria
cresceu de setenta mil pessoas em 1662 para um milhão em 1783.
Depois de Nershinsk, a expansão para o Leste continuou e
Kamchatka foi anexada em 1699. Então Vitus Bering foi enviado para
explorar a área ainda mais a leste e foi seu trabalho que abriu caminho
para o governo russo no Alasca no século 18.

O Cristianismo nos impérios ibéricos


Baseados nos precedentes abertos pelos pontífices do século 13 que
afirmavam ter soberania sobre toda a Terra, inclusive das regiões que
ainda não eram cristãs, o papa Nicolau V apoiou a expansão portuguesa
no oeste da África através de uma bula de 1454. Esta autorizava o rei
Afonso I a tomar o controle e explorar outras terras no futuro e o
comissionava para realizar a cristianização desses territórios. A coroa de
Portugal havia recebido a “patente missionária” (padroado), ou seja,
deveria equipar, financiar e enviar missionários para a África e,
conseqüentemente também para as Índias.
Então, Colombo entrou em cena e ultrapassou os portugueses ao
viajar para o sentido contrário e tomar posse para a Espanha dos
territórios que encontrou. A fim de resolver o problema de qual país
deveria ter a posse das novas terras, o papa Alexandre VI (que era
espanhol) lançou uma bula em 1493 dividindo o mundo por uma linha no
Atlântico indo de um polo até o outro e passando a leste dos Açores,
dando para a Espanha todo o hemisfério Oeste. A bula também incluía
uma patente missionária. Fernando e Isabel foram orientados a “enviar
homens articulados, tementes a Deus, bem treinados e experientes que
iriam instruir os habitantes de lá acerca da fé católica”. Os dois vizinhos
confirmaram a decisão papal no Tratado de Tordesilhas (1494) que
deslocou a linha um pouco mais para oeste, sem perceber que estavam
dando à Espanha um direito de posse no Brasil. O Tratado de Saragossa
(1529) demarcou uma linha a Leste que deixava as Ilhas Marianas dentro
da jurisdição espanhola.
O próprio Colombo estava profundamente envolvido na devoção do
final da Idade Média. Seu conhecido Diário da Primeira Viagem à
América revela que ele dedicava-se a especulações proféticas e via sua
missão como sendo de ganhar almas para Cristo nas terras recém-
descobertas. Ele se considerava um “portador de Cristo” e escolhia
nomes santificados na Igreja para os território que descobria. Outros
espanhóis, porém, eram menos motivados por “Deus” e mais pelo “ouro”
e a “glória”. Esses conquistadores criaram impérios relativamente
extensos e com grande potencial para abusos. Ficava a cargo da Igreja
conter os instintos básicos dos colonos brancos e a chave para isso estava
em suas patentes. As coroas de ambos os países tinham o poder de
exercer vasto controle sobre as iniciativas missionárias em seus
respectivos impérios. Podiam, assim, dar à Igreja o poder de trabalhar no
sentido de uma ordem colonial mais justa.
Na Espanha o patrocínio baseado nas bulas papais de 1501 e 1508,
tornava a coroa responsável pela manutenção da Igreja e conversão dos
índios. Em troca, o governante escolhia missionários para as colônias na
América (e mais tarde nas Filipinas), sendo que estes não podiam voltar
para casa sem uma permissão real. O papado permitia que o Estado
recolhesse os dízimos (impostos da Igreja) nas colônias, usando-os para
sustentar a Igreja nesses locais. O rei tinha o direito de nomear pessoas
para todos os cargos eclesiásticos — bispos, líderes de mosteiros e até
sacerdotes das paróquias — e nenhuma igreja, convento ou escola podia
ser fundado sem a autorização real. O clero em outras terras não podia
comunicar-se com Roma a não ser pelos canais reais. Tudo o que o
sínodo fazia estava sujeito à aprovação do vice-rei colonial ou de outro
oficial responsável que tinha poder de veto.
Apesar de alguns sacerdotes seculares trabalharem como
missionários, a principal fonte de obreiros eram as ordens religiosas —
tanto as mais antigas como os beneditinos, dominicanos, franciscanos,
agostinianos e várias outras ordens menores, como as novas ordens que
nasceram em decorrência da reforma católica como os capuchinhos e a
Sociedade de Jesus (jesuítas). A ordem jesuíta, com seu compromisso de
recuperar aqueles que haviam sido perdidos para o Protestantismo e
também de levar a fé para além das fronteiras do Cristianismo, foi
responsável por suprir o maior número de missionários nos séculos 16 e
17. Em 1542 o rei de Portugal permitiu que os jesuítas fundassem uma
escola de treinamento missionário na Universidade de Coimbra, sendo
que esta preparou mais de 1600 obreiros ao longo de dois séculos.
Salvo umas poucas exceções como o “Fundo Pio”, um fundo
privado oferecido por indivíduos para as missões da Califórnia, os
católicos leigos não contribuíam com praticamente nada para o sustento
financeiro das missões. Uma parcela dos fundos vinha diretamente do
Estado, mas em grande parte as ordens religiosas maiores trabalhavam
com seus próprios recursos. Além disso, muitas missões eram parcial ou
completamente auto-suficientes. O trabalho do indígenas cristãos nas
comunidades cobria os custos do empreendimento e alguns missionários,
especialmente os jesuítas, dedicavam-se diretamente ao comércio.
O exemplo de missão auto-sustentável que mais chama atenção é o
das missões jesuítas nas bacia dos rios Paraguai e Paraná. Lá os índios
reuniam-se em vilas (reductiones) onde recebiam proteção, ensino
cristão, aprendiam vários ofícios e podiam desenvolver sua consciência
de identidade. A igreja era o centro da vida comunitária e o povo oferecia
generosamente sua devoção à instituição e às missas. Dedicavam-se à
agricultura, criação de rebanhos e faziam artesanato que era vendido para
sustentar a vila. Os clérigos formaram uma força defensiva para resistir
aos ataques de caçadores de escravos. Em 1767, quando os jesuítas foram
expulsos, é possível que 106 mil índios estivessem morando em trinta
vilas sob a supervisão de oitenta e três missionários. A retirada dos
padres deixou os nativos à mercê dos colonos que destruíram grande
parte do que os missionários haviam realizado.
Tendo em vista que o papa havia concedido a eles tanto poder civil
quanto eclesiástico, os monarcas espanhóis, teoricamente, eram
responsáveis por proteger os índios da exploração de colonos brancos e
oferecer-lhes ministérios espirituais. A realidade muitas vezes era bem
diferente. Os conquistadores cruzavam o Atlântico para acumular
riquezas para si mesmos e forçavam os índios a trabalhar em minas e nos
campos. O resultado disso era uma crueldade indescritível e a destruição
de povos indígenas por doenças, excesso de trabalho e brutalidade. Com
a diminuição da população indígena, especialmente nas Índias
Ocidentais, a mão-de-obra era complementada por escravos importados
da África. Apesar de alguns colonos verem os índios como inferiores aos
humanos e incapazes de tornarem-se cristãos, o papado em particular era
rígido quanto a suas exigências de obras missionárias. O resultado, foi
um grande numero de conversões e batismos forçados.
Apesar de alguns papas e reis terem se preocupado com os
constantes maus tratos dos índios na América espanhola, os missionários
foram os maiores defensores dos direitos dos nativos. Sem dúvida o mais
conhecido desses obreiros e modelo de missionário foi Bartolomeu de las
Cásas (1474-1566). Seu pai havia navegado com Colombo e em 1502 o
próprio Bartolomeu assentou-se em Hispaniola. Depois de administrar
uma plantação durante algum tempo, ele buscou a ordenação como
sacerdote e participou da primeira expedição para a conquista de Cuba.
Ele ficou tão preocupado com a forma que os aborígenes estavam
sendo maltratados que foi para a Espanha defender sua causa. Conseguiu
a simpatia do cardeal Ximenes que o nomeou protetor geral dos índios.
Las Cásas voltou para o Novo Mundo com um grupo de monges para
fazer cumprir as leis reais em favor dos índios. Os colonos convenceram
seus companheiros de que ele era um tipo de visionário que estava
arruinando a colônia e eles voltaram-se contra Bartolomeu. Ele foi para a
Espanha a fim de conseguir ajuda e seus inimigos disseram ao rei que as
colônias iriam à falência se o trabalho escravo fosse proibido.
Bartolomeu reagiu propondo que tivesse permissão de fundar uma
colônia onde os índios seria tratados decentemente. Ao voltar em 1520
ele colocou sua idéia em prática na costa da América do Sul (onde hoje é
a Venezuela) mas não teve sucesso.
Três anos depois juntou-se à ordem dominicana. Seguindo o
caminho teológico de Tomás Aquino, o maior de todos os dominicanos,
que havia ensinado que os descrentes não devem ser forçados a tornar-se
cristãos pois a crença é uma questão de vontade e decisão própria, Las
Cásas recusou-se a impor a conversão e exigiu que os índios tivessem o
direito de escolher a Cristo de livre e espontânea vontade. Em 1535 ele
fundou uma missão na Guatemala, apoiou publicamente a causa dos
índios maltratados do Peru e do México e pregou a não-violência e o
cumprimento da lei que proibia a escravização de índios. Aos 70 anos de
idade foi nomeado bispo de Chiapa, no México e lançou-se em uma briga
acirrada com os leigos brancos de sua diocese por estes abusarem dos
índios. Em 1547, voltou à Espanha pela última vez para pedir ao monarca
que defendesse os direitos dos índios.
Em seguida aposentou-se, mas continuou lutando por aquela que
era a causa do seu coração ao publicar diversos escritos importantes. Um
de seus feitos mais famosos foi o debate com o teólogo espanhol Juan
Ginés de Sepúlveda em Valadolid nos anos de 1550-51. O argumento de
Sepúlveda tomava como base a teoria da guerra justa afirmando que era
necessário subjugar os índios pela força e depois convertê-los. Para
encerrar o assunto Las Cásas perguntou: “As pessoas não são todas
humanas?” Apesar de seus esforços para deter a dominação dos índios
através do sistema de encomienda terem sido em vão, ele conseguiu
formar uma legislação humanitária contida na obra Leis das Índias
(1542). Sua influência também foi vista no desenvolvimento das
estratégias missionárias com ênfase na organização dos índios em
comunidades cristãs, povoados protetores que fossem separados da
influência corruptora dos colonos brancos.1
Apesar de muitos monges concordarem com Las Cásas, havia
poucos clérigos espanhóis entre eles. Não tardou para que crioulos e, no
século seguinte, até alguns mestiços e índios fossem ordenados para o
ministério. À medida em que a sociedade da América Latina se
estabilizava, ia surgindo uma estrutura eclesiástica sofisticada e que
refletia o sistema político espanhol.
Ainda é discutível o quanto a nova fé substituiu de fato os antigos
sistemas de crenças. No México dos astecas e na América Central dos
maias especialmente, muitas práticas e ritos pré-cristãos persistiram na
forma de festivais, rituais e locais sagrados. Isso pode ser exemplificado
pela adoração a Nossa Senhora de Guadalupe, que apareceu para um
índio nas cercanias da Cidade do México em 1531. Uma forma de
adoração com alguns ritos tradicionais desenvolveu-se ao redor do
suposto poder miraculoso de uma imagem da virgem que ela mesma teria
entregue ao índio e que já foi abrigada por várias edificações, incluindo a
imensa basílica que agora ocupa o local da aparição.
As atividades missionárias também se espalharam para as áreas
fronteiriças do norte, como fica evidente pelas missões franciscanas e
jesuítas do final do século 17 e começo do século 18 no Texas e Novo
México e aquelas da Califórnia fundadas por Junipero Serra (1713-84),
um frade asceta com grande competência administrativa. Através do
trabalho de 146 padres franciscanos entre 1769 e 1845, aproximadamente
cem mil índios foram batizados, sendo que muitos deles viviam nas vinte
e uma missões fundadas pelos frades. Esse talvez tenha sido o sistema
combinando missão e comunidade que teve mais sucesso no Novo
Mundo e eram de extrema importância econômica e social para a antiga
Califórnia.
No Brasil dos portugueses a propagação do Cristianismo foi
semelhante à da América espanhola, mas havia algumas diferenças.
Como não havia ali grandes civilizações pré-existentes, o trabalho era
feito em grande parte com os povos das tribos. Os portugueses haviam se
assentado de forma tão esparsa em seu vasto território ultramarino a
ponto de não dar muita atenção à cristianização de toda a área. Assim, a
propagação do Cristianismo foi muito mais incompleta do que aquela que
ocorreu na América espanhola, apesar dos jesuítas terem se dedicado ao
trabalho missionário, e a persistência de costumes pagãos poder ser
observada lá em festivais como o Carnaval. Talvez o mais forte defensor
dos direitos dos índios tenha sido o jesuíta Antônio Vieira (1608-97), que
em 1655 obteve do rei um decreto criado para proteger os povos nativos
da colônia. Em seus sermões ele condenava os colonos brancos pela
forma como tratavam índios e negros.
Em resumo, a Igreja na América Latina teve que encarar o desafio
triplo de manter o controle sobre colônias brancas cada vez mais
indiferentes, evangelizar os índios e ministrar aos africanos que tinham
sido trazidos como mão-de-obra escrava. O estilo da iniciativa de
cristianização normalmente consistia em induzir os índios a levar uma
vida mais sedentária, sob a tutela dos padres missionários que, em troca
lutavam contra a exploração colonial dos povos indígenas e conseguiam
da coroa medidas que os protegessem. Como resultado disso, muitos
membros da população branca leiga não gostavam dos missionários.

As missões portuguesas na África


Dentre os fatores que estimularam o interesse inicial dos europeus
pela África, um deles foi a lenda do presbítero João, um governante que
havia perdido o contato com o Ocidente. Acreditava-se que se fosse
possível entrar em contato com ele novamente, os cristãos flanqueariam
os impérios muçulmanos e poderiam partir para o ataque. Cada uma das
muitas lendas medievais dizia que ele estava num lugar diferente,
situando-o desde a Índia até o oeste da Ásia. Mas no meio do século 14
presumia-se que ele estivesse em algum lugar na África. Em 1487, o rei
português João II enviou Bartolomeu Dias para o sul a fim de procurar o
reino do presbítero João, mas o navegante voltou depois de ter passado
pelo Cabo da Boa Esperança. Pero de Corvilhã foi por terra e chegou à
Etiópia, onde foi bem recebido. Em 1520 uma embaixada portuguesa da
Índia chegou para uma estadia de seis anos e seu capelão, Francisco
Álvares, publicou um relato detalhado da vida religiosa no reino cristão.
Vários jesuítas trabalharam na Etiópia nos anos seguintes e tentaram
levar a igreja monofisita a submeter-se ao Catolicismo romano.
A lenda do presbítero João também chamou a atenção do rei
Henrique, o Navegador e seu desejo de encontrar um aliado na África
bem como de ganhar almas para Cristo estava entre os motivos que
levaram à realizar sua expedição costeira. Tendo em vista que o papa
havia dado ao rei de Portugal a incumbência de sustentar as missões na
África, os navios também levavam padres que escreveram inúmeros
relatos de conversões e batismos das Ilhas Canárias até a costa da Guiné.
Nos 250 anos que se seguiram, várias ordens tentaram trabalhar na África
mas nenhuma comunidade cristã duradoura conseguiu se estabelecer.
Um fato importante foi o batismo do governante de Bakongo em
1491, que chegou a mudar o nome de sua capital de Mbanza para São
Salvador. Apesar dele ter abandonado a fé, seu filho Alfonso continuou
sendo cristão e ao suceder o pai no trono apoiou a cristianização do
reino. Apesar de aculturações evidentes terem se seguido (adoção dos
costumes portugueses bem como da religião), elas não chegaram à
população geral. Alfonso enviou alguns homens a Portugal para estudar
(inclusive para o sacerdócio) e mandou uma embaixada ao papa em
1513. Porém, não havia comprometimento suficiente e nos dois séculos
seguintes as iniciativas missionárias não foram significativas.
Mais para o sul, em Angola, o trabalho missionário português
resultou em muitos batismos e na suposta conversão da cidade inteira de
Luanda, onde foi construída uma catedral. Com a ordenação de alguns
padres africanos, a fé persistiu ali mais do que no Congo.
No leste da África praticamente não havia trabalhos missionários,
apesar de Portugal ter construído um enorme forte em Mombasa,
chamado Forte Jesus, para proteger seus interesses comerciais. A
primeira iniciativa foi em Moçambique, onde em 1560 o missionário
jesuíta Gonçalo da Silveira converteu os principais membros de uma
comunidade costeira e então embrenhou-se pelo interior (o Zimbabwe
nos dias de hoje), onde batizou o governante mais poderoso do sul da
África, o Monomotapa. Mas o rei teve medo de que o missionário fosse
um agente português e mandou matá-lo no ano seguinte. Um século
depois, várias missões se seguiram e um dominicano chegou a batizar um
de seus reis em 1652, um acontecimento que foi recebido com grande
alegria em Lisboa e Roma, mas, a longo prazo, o trabalho não conseguiu
consolidar-se na região do Zambezi. Nenhum clérigo negro foi ordenado
no Moçambique durante três séculos. Por outro lado, alguns clérigos
europeus estavam até envolvidos com a administração dos prazos,
grandes e rentáveis propriedades rurais que funcionavam num sistema
semelhante ao feudal.
As missões no Oriente
As missões eram parte integrante da expansão portuguesa. Como
disse Diogo de Couto (1542-1616) — o soldado e historiador do império
— “Os reis de Portugal sempre tiveram como objetivo dessa conquista
do Oriente a união dos dois poderes, o espiritual e o temporal, sendo que
o primeiro não deve ser exercido sem o segundo”.2 O patrocínio garantia
a Portugal que outros países não iriam tentar dividir as terras do império
sob o pretexto de fazer trabalho missionário. Assim, padres e freiras
sustentados pela coroa acompanhavam os navios e eram parte do
complexo de fortificações e postos de troca comercial. O arcebispo de
Goa estava sob a autoridade do rei e era o primaz das regiões sul e leste
da Ásia. As forças missionárias, a princípio, limitaram-se aos súditos
portugueses, mas o caráter multinacional da ordem dos jesuítas e a
intrusão do clero espanhol e francês logo mudaram esse quadro.
Do ponto de vista espiritual, as missões eram, na melhor das
hipóteses, operações paralelas, até a chegada de Francisco Xavier, um
marco na propagação do Cristianismo. Nascido em 1506 numa família
nobre em Navarra, Espanha, quando era aluno da universidade de Paris
tornou-se discípulo de Loyola e ajudou a organizar a Sociedade de Jesus.
Enquanto estava em Roma, respondeu ao chamado feito pelo monarca
português pedindo missionários para o Oriente e embarcou em 1541. Um
homem de energia inesgotável e grande comprometimento, nos onze
anos seguintes ele viajou incessantemente pela Índia e Ceilão, visitou a
Malásia e as Índias Orientais, marcou o início da presença cristã no Japão
e estava se preparando para abrir uma missão na China quando faleceu
em 1552.
Xavier abriu caminho para as iniciativas missionárias dos jesuítas
na Ásia. Ele escolheu membros para a Sociedade, providenciou para que
viessem da Europa, criou uma escola de treinamento para nativos cristãos
em Goa e trabalhou pessoalmente em vários lugares no sul da Índia onde
ganhou milhares de convertidos. O primeiro grupo de jesuítas chegou em
1545-46 e não tardou para que a Sociedade tivesse fundado postos em
vários lugares no subcontinente. Sua tentativa de criar uma missão na
corte do imperador Mogul em Déli foi notável mas teve muito pouco
sucesso. A maioria dos missionárias acabava ministrando aos membros
das castas mais baixas e aos europeus da Índia.
As realizações no Japão foram mais dramáticas. Em 1547 Xavier
encontrou um jovem japonês e levou-o para Goa onde foi batizado. Dois
anos depois, Xavier viajou com o rapaz para sua casa em Kyushu, uma
ilha no sul do Japão, onde ele serviu de intérprete. Xavier ficou lá
durante dois anos, ganhou convertidos e começou uma missão. Outros
jesuítas se seguiram e a nova fé espalhou-se rapidamente. Em 1582 havia
duzentas igrejas e 150 mil cristãos, o que significava que a porcentagem
de cristãos naquela época era maior do que a do século 20. Como a
equipe missionária era pequena, foram feitas algumas tentativas de se
treinar um clero japonês e em 1596 chegou um bispo apoiado pelos
portugueses.
Apesar do papa ter reservado o Japão para os jesuítas, na década de
1590 os dominicanos e franciscanos também começaram a trabalhar no
território e surgiram rivalidades entre as ordens. Em 1587 o xogum
(governante militar do Japão) Hideoshy lançou um édito contra o
Cristianismo, ordenando que os missionários deixassem o país, mas só
uma década depois de começarem as brigas é que ele fez cumprir suas
ordens ao mandar executar duas dúzias de cristãos. Depois de um ano de
perseguição, as pressões diminuíram, o trabalho missionário pode
continuar e a população cristã logo ultrapassou o marco dos quatrocentos
mil. A própria cidade portuária de Nagasaki havia se tornado
predominantemente cristã.
Então, em 1614 os xoguns Tokugawa começaram uma vigorosa
perseguição. Eles temiam que o Cristianismo abrisse caminho para o
domínio europeu no Japão ou que os missionários e japoneses cristãos se
tornassem um grupo contrário à dinastia. Durante os vinte e cinco anos
seguintes todos os missionários cristãos foram expulsos ou executados
enquanto os crentes nativos eram forçados a renunciar sua fé. Aqueles
que se recusaram a fazê-lo foram sujeitos a horrores brutais —
crucificados, queimados lentamente ou decapitados. Pelo menos quatro
mil pessoas sofreram o martírio.
Depois de uma rebelião em 1637-38 na qual estavam envolvidos
milhares de cristãos, o governo fechou as fronteiras do país para o
comércio europeu. Antigos cristãos foram caçados e forçados a pisotear a
cruz e representações de Cristo para provar que haviam se arrependido.
Os navios japoneses estavam proibidos de ir para outros países e pessoas
voltando de qualquer viagem desse tipo eram mortas. O mesmo fim
também seria dado a europeus que chegassem no Japão. Só os
holandeses tinham permissão de mandar uma comitiva comercial por ano
para Nagasaki e tinham que esconder todos os objetos ligados ao
Cristianismo enquanto estava aportados.
Porém, alguns cristãos sobreviveram em áreas remotas de Kyushu e
secretamente passaram a fé adiante para seus filhos. Realizaram batismos
e transmitiram os Dez Mandamentos, algumas orações e doutrinas. A
existência dessa comunidade cristã remanescente que tinha mais de
quinze mil membros foi descoberta depois que o Japão voltou a abrir
suas fronteiras no final do século 19.
Na China, assim como na Índia e no Japão, as primeiras missões
foram portuguesas. Apesar do esforço inicial de Francisco Xavier de
iniciar uma missão ter sido em vão, outros se seguiram. Os jesuítas
começaram uma escola superior em Macau e em 1576 uma sé episcopal
foi fundada lá com apoio financeiro do rei português. A união com a
Espanha em 1580 garantiu que as Filipinas também seriam uma fonte de
obreiros.
Os jesuítas, porém, tomaram a iniciativa e 456 obreiros dessa ordem
foram para a China entre 1552 e 1742. O líder da missão na Ásia,
Alessandro Valignano (1539-1606), havia promovido energicamente o
trabalho no Japão e pode oferecer as bases teóricas daquele que foi o
empreendimento cristão de maior sucesso na época. Seguindo o caminho
aberto por Francisco Xavier, ele procurou formar igrejas
verdadeiramente nativas no Japão e na China, igrejas totalmente
separadas do controle ibérico inerente ao apoio do padroado. A intenção
dos jesuítas era ganhar essas pessoas para Cristo e não para a cultura
européia.
Assim como havia feito no Japão, Valignano pediu que a religião
cristã fosse adaptada às tradições e costumes chineses, tendo em vista
que isso permitiria alcançar os escalões mais altos da sociedade o que,
por sua vez, faria com que a fé chegasse a toda população. Seu protegido
foi o marco da missão na China, Matteo Ricci (1152-1610), que depois
de estudar Matemática, Astronomia e Cartografia, foi para Goa em 1577
e Macau em 1582. No ano seguinte ele e seu colega puseram-se a
conquistar o respeito e a amizade da elite dominante como primeiro
passo para introduzir o Cristianismo. Eles se instalaram na capital da
província, próximo ao Cantão, mostraram para os estudiosos e burocratas
seu conhecimento sobre relógios, calendários e desenho de mapas e
através disso, ganharam acesso aos círculos mais elevados.
Ricci também aprendeu sobre as obras clássicas chinesas e escreveu
ensaios em chinês sobre a ciência ocidental e a fé cristã. Ele adotou o
traje de estudioso confucionista e usou como nomes para Deus termos
que encontrou nos escritos clássicos. Ele considerava a veneração dos
ancestrais familiares e de Confúcio como ritos culturais sem verdadeiro
significado religioso e permitia aos convertidos que continuassem a
observá-los. Seu desejo era mostrar que o Cristianismo não era contrário
nem à família e nem ao Estado.
Em 1601 Ricci chegou a Pequim e ganhou vários oficiais
importantes e um príncipe imperial para o Cristianismo. Um decreto de
1611 autorizou os jesuítas a fazer uma correção do calendário chinês e
dali em diante eles ofereceram várias contribuições científicas. Com
efeito, ficaram responsáveis pela repartição governamental de
astronomia. Tendo em vista que o respeito por eles na corte era tão
grande, eles conseguiram suportar a mudança da dinastia Ming para
Manchu. Johann Schall von Bell (1591-1661), um jesuíta alemão, não
apenas dirigiu a repartição e foi conselheiro científico do imperador,
como também construiu igrejas e pregou por todo o império. Em 1657
Ferdinand Verbeis (1623-88) da Bélgica, juntou-se a ele e no governo do
brilhante imperador K’ang Hsi (que reinou de 1662 a 1722) fez
instrumentos astronômicos, projetou canhões e ajudou no acordo
diplomático feito com os russos em 1685.
À medida em que a hostilidade contra os cristãos foi diminuindo,
cresceu o número de ministérios e missionários de vários países da
Europa e ordens religiosas entraram no país. Um exemplo é o caso do
chinês cristão com o nome de batismo Gregório Lopez, que estudou em
Manila, tornou-se dominicano, foi ordenado sacerdote e depois voltou
para servir em seu país de origem. Então, em 1690 ele foi nomeado bispo
de Nanquim. Na realidade, em 1700 a equipe de missionários não
passava de cem pessoas enquanto o número de cristãos chineses era de
no máximo trezentos mil, de modo que o verdadeiro impacto da fé sobre
essa vasta população foi mínimo.
Mais para o sul, nas Ilhas Filipinas, o processo de cristianização
ocorreu de forma análoga ao da América Latina. Em função do
patrocínio real, missionários de várias ordens viajaram em navios
espanhóis e receberam apoio oficial e proteção. Ao mesmo tempo, suas
atividades estavam sujeitas ao controle real. Os primeiros missionários
também procuraram proteger os povos indígenas da avidez dos colonos
brancos. Um dos mais notórios foi Domingo de Salazar (1512-94),
primeiro bispo de Manila e aluno de Las Cásas. Ele condenou as práticas
usadas para subjugar a população local e lutou contra a ganância dos
oficiais civis.
Os missionários espanhóis seguiram métodos que haviam sido
utilizados na América, a saber, principalmente uma ênfase da
substituição de ritos pagãos com festivais cristãos e a fundação de
escolas, hospitais e associações de oração e caridade. Porém, os
portugueses foram hostis aos clérigos espanhóis quando estes
conduziram trabalhos missionários na China e na Índia, pois achavam
que o patrocínio real lhes dava exclusividade para evangelizar nessas
áreas. Isso foi fonte de muitas tensões no século 17 e começo do século
18.
Um importante missionário nativo na Ásia foi José Vaz (1651-
1711), um missionário indígena de Goa. Como já era sacerdote em sua
terra, ele decidiu começar um trabalho no Ceilão (Sri Lanka) de onde os
holandeses estavam tentando expulsar a Igreja Católica. Em 1689 ele
entrou na ilha disfarçado e ministrou secretamente em casas até que as
autoridades holandesas o descobriram. Então, fugiu para o reino
independente do Kandy, cujo governante lhe deu liberdade de
evangelizar. Ele trouxe um outro sacerdote nativo de Goa e logo a obra
estava crescendo. Em 1696 ele foi nomeado vigário geral da ilha, o que
significava que era líder da Igreja na Ásia, um acontecimento singular
nessa época.

A expansão ortodoxa russa


No século 16 a Igreja Ortodoxa Russa ligou-se ao programa
expansionista do czar. Se os povos recém-conquistados fossem
convertidos à fé russa, isso ajudaria na assimilação. Assim, as missões
recebiam apoio do governo. Ao invés de monges individuais trabalhando
por iniciativa própria, o trabalho era feito por grupos maiores, sob a
direção das autoridades eclesiásticas. Por exemplo, um arcebispado foi
criado em Kazan em 1555 sob a liderança do abade Gurij, que conseguiu
a conversão dos tártaros queremissianos ao oferecer-lhes isenção de
impostos e liberdade da servidão. Esse padrão repetiu-se com outros
povos ao longo dos dois séculos seguintes.
Com a abertura da Sibéria, os sacerdotes e monges ortodoxos
apoiados pelo regime vieram logo depois dos comerciantes de peles e
soldados. Várias tribos locais foram convertidas e em 1620 foi criado um
arcebispado em Tobolsk. Com o passar do século 17, mosteiros e pontos
missionários foram fundados em diversos lugares. Por exemplo, depois
da fundação da cidade de Irkutsk em 1652, missionários ortodoxos
começaram a trabalhar entre os mongóis buriates que viviam na região
em torno do lago Baikal. Porém, eles só converteram treze por cento da
população. A maioria continuou com as crenças tradicionais do
xamanismo e o do budismo lamdaístico. A vida nômade de muitas tribos
siberianas tornava difícil o trabalho missionário.
Assim como seus antecessores, o czar Pedro I usou as missões
como uma forma de assimilar os povos que não eram russos e fortalecer
sua autoridade. Seu principal aliado foi Filofei Leszcynski, prelado
metropolitano de Tobolsk que fundou novas obras por toda a região norte
das Sibéria. Ele possuía autorização imperial para suspender os impostos
daqueles que fossem batizados. Novas igrejas muitas vezes eram
erguidas nos lugares que haviam sido centros de culto tradicional.
A maioria dos Kamchatka havia sido convertida na metade do
século 18 e a primeira missão foi enviada para o Alasca em 1794. Uma
diocese foi criada no Alasca tendo como seu primeiro bispo residente
Ivan Venyaminov (1797-1879). Em 1848 ele construiu uma catedral em
Sitka, que foi uma das missões indígenas mais bem sucedidas ao norte do
México.

O Mediterrâneo e o Oriente Próximo


O tratamento dos judeus é um dos capítulos mais desanimadores da
história do Cristianismo. O registro de perseguições realizadas desde os
tempos dos Cruzadas até a expulsão da Europa ocidental e central é
desesperador e os únicos refúgios que os judeus encontraram foram na
Espanha muçulmana e na distante Polônia, onde vários governantes dos
séculos 13 e 14 haviam concedido direitos de assentamento. Porém, na
Reconquista eles perderam a Espanha e, logo em seguida, a pedido de
Torquemada, em 1492 Fernando e Isabel ordenaram a expulsão de todos
os judeus que não se tornassem cristãos (Portugal fez o mesmo em 1497).
Isso deixou o país desprovido de 170 mil dos seus súditos mais
produtivos num momento em que precisava de todos os seus recursos
para sustentar seu poder europeu e o império ultramarino. Os judeus
ibéricos ou “sefárdicos” foram dispersados por todo o mundo
mediterrâneo, sendo que alguns também foram para a Holanda e outros
para a América.
Aqueles que se converteram sob intensa pressão (os chamados
marranos ou cristãos “novos”), eram vistos com desconfiança e foram
perseguidos pela Inquisição. De tempos em tempos entre os séculos 16 e
18, houve iniciativas específicas de evangelização dos judeus na Itália.
Na Polônia, missionários jesuítas trabalharam entre os judeus orientais
ou “asquenázicos” a fim de ganhá-los para o Catolicismo enquanto,
depois dos territórios poloneses terem sido anexados à Rússia em 1648 e
1795, a grande população de judeus foi sujeita a uma discriminação cada
vez maior e a tentativas de convertê-los à ortodoxia russa.
Em outras partes o Cristianismo estava em declínio. Os turcos
otomanos dominaram de vez o enfraquecido império bizantino e em 1453
conquistaram seu último foco de resistência, Constantinopla. Eles
continuaram a ofensiva durante grande parte do século 16, capturaram
Belgrado, Rodes, Chipre e quase toda a Hungria e foram contidos pouco
antes de entrar em Viena em 1526. Seus navios dominaram o
Mediterrâneo e um segundo ataque a Viena ocorreu em 1683. A situação
resultante foi desanimadora para a Igreja Ortodoxa Grega. Muitos
converteram-se ao Islã e aqueles que continuaram cristãos sofreram com
os impostos discriminatórios. Jovens cristãos eram tirados de seus lares e
criados como muçulmanos para fazer parte das forças militares Janissary
(elite turca). Muitas igrejas foram transformadas em mesquitas, sendo
Santa Sofia em Constantinopla a mais conhecida.
O único progresso significativo contra o Islã foi na Espanha, onde a
Reconquista se completou em 1492 e os mouros restantes foram forçados
a tornar-se cristãos. Aqueles que rejeitavam o batismo foram expulsos
entre 1502 e 1524. A Inquisição foi usada para acabar com as antigas
crenças e práticas entre os mouriscos, como eram conhecidos os
muçulmanos convertidos. Aqueles novos cristãos que continuaram a
praticar suas antigas tradições culturais foram finalmente expulsos em
1609.

A propaganda
O ritmo cada vez mais acelerado do trabalho missionário católico
levou à criação de uma agência especial na cúria romana para coordenar
essa iniciativa tão abrangente. Não havia unidade na metodologia
missionária das diversas ordens religiosas e o controle excessivo que as
coroas espanhola e portuguesa exerciam através de seu patrocínio tinha
impacto negativo sobre o alcance das missões. Além disso, uma falta de
obreiros havia se desenvolvido porque as forças ibéricas normalmente
excluíam do serviço missionário em seu território qualquer um que não
fosse nascido na Espanha ou em Portugal.
Apesar da idéia de Roma assumir um controle firme no lançamento
e direção de iniciativas missionárias já vir sendo discutida desde a década
de 1560, foi em 1622 que Gregório XV criou a Congregação para a
Propagação da Fé, mais conhecida por Propaganda, seu título abreviado
em latim. A princípio, ela era composta de treze cardeais e outros oficiais
inferiores. Tendo em vista que sua jurisdição englobava todos os
assuntos relacionados à atividade missionária, a Propaganda tinha amplos
poderes. Ela começou solicitando de todas as ordens missionárias e
núncios papais informação sobre as condições e o progresso da obra
missionária, um resumo dos métodos usados para propagar a fé e uma
lista dos missionários. Esse órgão passou então a separar, classificar e
analisar os dados para determinar quais eram os principais problemas
enfrentados pelas missões. Depois de identificar os obstáculos e
insucessos, a Propaganda pôs-se a melhorar a metodologia, aumentar o
número de obreiros e incentivar o desenvolvimento de clérigos nativos.
A fim de assegurar que se fizesse um esforço unificado, a
Congregação insistia que a autorização para os trabalhos missionários só
fosse obtida dela mesma. Os missionários deveriam fazer relatórios
regulares sobre as condições, perspectivas e recursos de suas iniciativas.
Ela examinava candidatos para avaliar se eram adequados e encorajava
as ordens a montarem escolas para aqueles que desejassem servir no
Oriente. Em 1627, sob o papado de Urbano VIII, a Propaganda fundou
um seminário em Roma, o Collegium Urbanum, para treinar homens de
várias nações para o sacerdócio que iriam exercer em qualquer parte do
mundo a pedido do papa para propagar ou defender a fé. Criou também
sua própria imprensa em 1627 a fim de produzir literatura cristã para as
obras missionárias e, no final do século 18, já publicava livros em
quarenta e quatro línguas asiáticas e africanas, tornando-se a mais
importante imprensa da Europa.
Para contrabalancear o patrocínio ibérico, a Propaganda deu início
à prática de fazer com que a Santa Sé nomeasse “vigários apostólicos”
para o Oriente. Estes eram bispos que exerciam o poder diretamente sob
o papa. Como eles não eram bispos de dioceses no sentido comum,
estavam menos vulneráveis às pressões dos governantes seculares. Na
verdade eles eram missionários itinerantes que recebiam suas ordens
através da Propaganda e esperava-se que trabalhassem em favor da
preservação da autonomia cultural e social nas terras não-ocidentais onde
serviam. Porém, a Propaganda nunca foi capaz de tirar todo o controle
exercido pela coroa da Espanha e de Portugal sobre os missionários em
suas colônias, mas foi responsável por obras no norte da Europa, na
América do Norte (até 1908) e na maioria dos lugares na África, Ásia e
Ilhas do Pacífico.
Uma figura importante foi o jesuíta Alexandre de Rhodes (1591-
1660) que cultivou laços de amizade com a corte real no Vietnã e fundou
uma igreja auto-sustentável. Ele criou a linguagem escrita do Vietnã com
seu dicionário, gramática e catecismo anamita. Depois de voltar para
Roma em 1645, ele encorajou a Propaganda a nomear vigários
apostólicos para dar continuidade ao trabalho missionário no leste da
Ásia. Também teve contato com um grupo de sacerdotes devotos em
Paris, os chamados “bons amigos” e através de seu incentivo dois deles
— François Pallu (1628-84) e Pierre Lambert de La Motte foram
nomeados vigários apostólicos. Em 1664 eles começaram um trabalho no
Sião e fundaram uma escola para treinar sacerdotes.
Do crescimento desse círculo nasceu uma importante organização, a
Société des Missions Étrangère (Sociedade das Missões Estrangeiras),
formada em Paris em 1663. Ela era diferente das outras ordens religiosas
que se dedicavam ao trabalho missionário, pois propagar a fé entre os
povos não-cristãos era seu único objetivo. Ela pôs em prática a visão de
Pallu de criar um clero nativo secular para as jovens comunidades cristãs
do sudeste da Ásia. A sociedade acreditava que padres “comuns”,
membros de ordens religiosas dirigidas pela Europa não tinham como
oferecer a liderança necessária para fazer a igreja criar raízes em solo
fora da Europa. Mesmo quando ordenavam sacerdotes nativos seculares
para suas missões, as ordens os controlavam e não permitiam que
desenvolvessem suas aptidões naturais de liderança. Assim, a solução era
que o clero paroquial fosse secular e escolhido entre nativos e sob a
direção de bispos também nativos.
Foi com esse fim que a sociedade abriu um seminário em Paris que
treinava sacerdotes seculares para pregar o evangelho e desenvolver
líderes cristãos nativos. Uma instituição parecida foi criada em Quebec
em 1668, sendo que esta mantinha contato com a sociedade de Paris até
que os ingleses conquistaram o Canadá francês. O grupo contava com
alguns obreiros na China, mas seu principal foco de atenção era a
Indochina, onde, de acordo com relatórios, no final do século 18 havia
150 mil cristãos. Porém, tanto a Espanha quanto Portugal criticaram a
nomeação dos dois vigários apostólicos como sendo uma violação do
direito de patrocínio concedido por Roma. Também temiam que isso
fosse abrir uma brecha para o imperialismo francês, o que obviamente foi
o caso. Em 1787 o vigário apostólico da sociedade Pigneau de Behaine
garantiu auxílio naval francês para restaurar ao cargo o monarca deposto
de Annan em troca de concessões territoriais, fato que marcou o início de
um longo envolvimento com a França nessas terras.
Apesar dos esforços da Propaganda para desenvolver mais clérigos
nativos, o processo era tão lento nos territórios sob sua jurisdição quanto
nos reinos onde prevalecia o governo ibérico. O clero europeu continuou
a ser predominante em todo o mundo.

Controvérsias sobre ritos


O trabalho da Congregação para a Propagação da Fé na Ásia foi
colocado em risco por causa das brigas sobre ritos na Índia e na China e a
decisão do papa sobre isso, com efeito, fechou as portas para qualquer
futura adaptação missionária à cultura local. A primeira controvérsia foi
sobre os ritos malabares e surgiu por causa da decisão do jesuíta Robert
de Nobili (1577-1656) de permitir que os cristãos da missão de Madura,
na Costa do Malabar mantivessem seus costumes. Os missionários
procurariam se adaptar ao modo de vida do povo e pregar dentro das
práticas nativas ao invés de transformar o povo em europeus. O sistema
de castas foi mantido e Nobili vivia e comia como um indiano e estudava
a Vedanta e outros escritos religiosos indianos a fim de poder alcançar os
líderes do bramanismo, sendo que, de fato, ele converteu alguns deles.
Nobili foi o primeiro europeu a ter conhecimento de primeira mão sobre
o sânscrito e as vedas. Ele insistia que havia uma diferença entre ritos
religiosos e costumes culturais e justificava estes últimos removendo
elementos da superstição e direcionando-os num sentindo cristão.
Alguns suspeitavam de sua tolerância aos costumes existentes e
temiam que ele também estivesse pondo em perigo a soberania
portuguesa sobre a Índia. Ele foi levado perante a Inquisição em Goa, a
qual ficou dividida sobre a questão que foi apresentada a Roma. Em
1623 o papado tomou o partido de Nobili, que pode então continuar seu
trabalho e o Cristianismo propagou-se rapidamente pela região.
O assunto foi trazido novamente à baila no final do século por
inimigos franceses da missão jesuíta no sul da Índia, envolvendo a
Propaganda na controvérsia. Depois de quatro décadas de disputas
políticas e desentendimentos eclesiásticos, o papa Benedito XIV decidiu
em 1744 que todos os missionários deveriam fazer um juramento com
dezesseis itens que, em sua essência, repudiava quase todas as
adaptações à cultura indiana. Só em 1940 é que a Santa Sé finalmente
anulou esse juramento.
O conflito sobre os ritos chineses foi ainda mais sério e abrangente.
Matteo Ricci havia permitido que os cristãos chineses observassem as
práticas de homenagear Confúcio e os ancestrais familiares. Ele via a
manutenção dessas práticas “não-religiosas” como sendo absolutamente
necessária para que fosse possível a conversão em grande escala da
sociedade chinesa. Seus sucessores jesuítas deram continuidade a essa
política, mas então os franciscanos e dominicanos começaram a trabalhar
na China e a questionar os ritos confucionistas como sendo superstição e
sincretismo com o paganismo. Uma disputa intensa persistiu entre as
partes durante anos, tanto na China quanto na Europa e até o imperador
K’ang Hsi entrou na controvérsia. Determinações do pontífice em 1704,
1715 e 1742 concluíram (sem levar em consideração o seu papel crucial
na cultura chinesa) que os ritos eram incompatíveis com o modo cristão
de vida e foi imposto um juramento de submissão às determinações
papais para todos os missionários (sendo que estas foram suspensas em
1939). O resultado da rejeição dos ritos chineses foi a expulsão da maior
parte dos missionários e uma grande perseguição dos cristãos.

Apesar de ter sido ativa nos séculos 16 e 17, a iniciativa missionária


católica romana acabou estagnando-se diante da passagem do tempo e no
final do século 18 estava completamente parada. A dependência do
patrocínio e a ligação com a política eram sem dúvida as grandes falhas
dessa iniciativa. As missões portuguesas ficaram particularmente
enfraquecidas pela união com a Espanha, o que abriu caminho para as
potências protestantes da Europa atacarem suas colônias. Além disso,
eles também encontraram culturas religiosas nativas mais bem-
estabelecidas e resistentes na Ásia do que havia ocorrido com os
espanhóis nas Américas e nas Filipinas. O declínio do poder espanhol
nos séculos 17 e 18 deixou as missões mais vulneráveis aos colonos
brancos, enquanto a repressão ou expulsão da ordem jesuíta de
importantes países católicos e sua dissolução pelo papa em 1773 deixou
a Igreja sem sua mais eficaz força missionária. O ceticismo religioso e a
indiferença da era do Iluminismo iriam abalar ainda mais o entusiasmo
missionário. Apesar dos protestantes europeus ainda não representarem
uma ameaça significativa para a hegemonia católica no além mar, as
sementes começaram a ser lançadas pelo movimento pietista e mais tarde
elas produziram uma explosão mundial de iniciativas missionárias
protestantes.

Capítulo 13 - O absolutismo e a ortodoxia moldam a Igreja


Depois da redescoberta do evangelho pelos reformadores, seguiu-se
um longo período de controvérsia e foi desses desentendimentos que veio
a definição do posicionamento protestante. Os participantes desse debate
com freqüência lançavam mão da filosofia de Aristóteles para expressar
suas idéias e esse neo-aristotelianismo foi uma tendência tanto nos meios
protestantes quanto católicos europeus no período pós-Reforma. Já
bastante conhecido em universidades do sul da Europa como Pádua na
Itália e Coimbra em Portugal, o movimento espalhou-se para as
universidades protestantes da Alemanha no final do século. A questão
cristológica entre os luteranos, as discussões sobre predestinação entre os
reformados e os debates dos dois sobre a Ceia do Senhor levaram a
definições mais precisas da doutrina que era conhecida no século 17
como ortodoxia protestante.

Ortodoxia protestante
Apesar de gerações posteriores terem estereotipado a ortodoxia
como se estivesse morta, esse era um conceito equivocado. Dentro de
ambas as comunidades pós-Reforma na Europa surgiram diversos
pensadores teológicos cujas obras eram recebidas com grande
consideração e cuja influência entre seus contemporâneos era
considerável. Johann Gerdard (1582-1637), professor de Teologia em
Jena era o principal dogmatista luterano daquela época. Sua obra
Confessio Catholica (1634-37) era uma forte defesa da fé protestante e
Loci Theologici (1610-22) uma obra excepcional sobre a Teologia
dogmática luterana. Abraham Calov (1612-86), professor em Wittenberg,
produziu dezenas de trabalhos tratando dos principais tópicos da
Teologia. Além de conduzir uma luta contínua contra as tentativas de se
unir as diversas igrejas reformadas e católicas, ele foi autor de um
importante comentário bíblico e dos doze volumes de Systema locorum
theologicorum, uma teologia sistemática que foi a principal expressão do
Escolasticismo luterano. Johann Andreas Quenstedt (1617-88), também
professor de Wittenberg, escreveu Theologia didactico-polemica, tão
completa, concisa e sistemática que poucas obras teológicas luteranas
posteriores se equipararam a ela.
A Igreja Reformada também contribui com estudiosos do mesmo
nível. Johann Heinrich Alsted (1588-1638), um estudioso em Rhineland
e mais tarde na Transilvânia, procurou unificar todo o conhecimento
através de uma abordagem que combinava o aristotelianismo com o
Escolasticismo do filósofo francês Petrus Ramus (falecido em 1572) e
outras correntes intelectuais. Numa única obra, Encyclopedia Septem
Tomis Distincta, ele juntou toda a gama de conhecimentos — Metafísica,
Lógica, Geologia e outras ciências — e esses volumes foram usados por
todo o mundo acadêmico do século. Gisbert Voetius (1588-1676), um
professor em Utrecht, foi o principal expoente do Calvinismo escolástico.
Ele defendeu fervorosamente a independência e pureza da Igreja,
argumentou que a verdade na religião e Filosofia começava com a
Palavra, condenou a tolerância de doutrinas errôneas e insistiu numa vida
pessoal de devoção e rígida moralidade. François Turretin (1623-87),
professor em Genebra, publicou a obra Institutio Theologiae Elencticae,
um importante texto sobre as Escrituras baseado em Calvino e nos
Cânones de Dort que moldaram profundamente a teologia de Charles
Hodge em Princeton no século 19.
O objetivo da ortodoxia protestante era unificar toda a Teologia e
harmonizar todo o conhecimento com sua visão de Deus. Os teólogos
ortodoxos produziram extensas obras literárias que eram cuidadosamente
esboçadas com muitas divisões e subdivisões que as tornam de difícil
leitura nos dias de hoje. Escritores ortodoxos normalmente apresentavam
seus pontos de vista num formato padronizado que se centrava na
doutrina da salvação, passando pela história da salvação e concentrando-
se sempre em como ela é obtida. Esses ensinamentos apoiavam-se
fortemente em Aristóteles e certos lógicos medievais para a estruturação
de seus argumentos mas suas bases eram sempre as Escrituras.
1575 1600 1650 1650 1723 1725
Phillip Johann Jacques- Rembrandt Johann Sebastian George Frederick
Nicolai Heinrich Benigne van Rijn Bach torna-se cantor Handel brilha na
Alsted Bossuet domina a em Leipzig Inglaterra
arte
holandesa
1500 1600 1700 1800
1575 1598 1625 1640 1688 1702-10
Ivan IV (O Édito de Cardeal Frederico Frederic Revolta
Terrível) Nantes Richelieu é Guilherme, oI dos
Primeiro o Grande assume Camisar
Ministro de Eleitor o poder dos
Luís XIII assume o
poder
1661 1689
Luís XIV obtém Pedro I (O
Maioridade Grande
torna-se
Czar

A principal ênfase da ortodoxia era a Bíblia como fundamento da


Teologia. Ela é a Palavra de Deus e portanto é confiável e a declaração
externa (as palavras em si nas Escrituras) não é distinguível de seu
significado mais profundo. A ortodoxia acreditava que Deus inspirou os
profetas e apóstolos a escrever mensagens que recebiam dele. A Palavra
divina foi, desta forma, preservada nas Escrituras sem erro, resultando
numa Bíblia que era a norma infalível para os cristãos bem como o
supremo tribunal para todas as disputas teológicas. Tendo em vista que
as Escrituras são o melhor intérprete de si mesmas, passagens difíceis
poderiam ser compreendidas com a ajuda de outras mais claras. A ênfase
era colocada na interpretação literal do texto sagrado, isto é, aceitando o
seu significado mais simples e aparente.
Com relação à Divindade, os ortodoxos interessavam-se pela união
das naturezas humana e divina de Cristo em uma só Pessoa. Eles
discutiram como uma natureza afetava a outra e como elas interagiam em
Cristo. Crendo firmemente na criação divina, eles viam a humanidade
como o ápice da obra de Deus. Mas Adão pecou e caiu e, por causa da
unidade da raça, a corrupção do pecado foi passada de geração para
geração. Os seres humanos estavam sob a ira de Deus e sujeitos tanto ao
castigo temporal quanto ao eterno a menos que experimentassem a
regeneração através de Cristo.
Em sua definição de mal e pecado, porém, os ortodoxos luteranos e
reformados tinham posições diferentes. A idéia calvinista de que Deus de
alguma forma havia pré-ordenado o mal de acordo com sua vontade
secreta (a base para a doutrina da dupla predestinação) era rejeitada pelos
luteranos que afirmavam que Deus permite o mal e coloca limites para
seu exercício mas não é responsável por ele. Os luteranos afirmavam
uma única predestinação: os eleitos são aqueles que Deus ordenou à
salvação enquanto os réprobos são aqueles que ele sabe de antemão que
ao morrer não terão a fé salvadora.1
Os luteranos afirmavam que era possível passar da morte para a
vida espiritual somente através da operação da lei e do evangelho. A lei é
a sabedoria eterna e imutável de Deus para o viver em retidão. Resumida
nos Dez Mandamentos, ela exige atos de bondade bem como um coração
puro. Mas como a humanidade não pode obedecer a lei, seu papel não é
de salvar, mas sim de condenar. O perdão só vem através do amor e
sacrifício redentores de Cristo e é recebido pela fé penitente. Ao
contrário do Cristianismo medieval, o ortodoxo afirmava que o
arrependimento envolve apenas contrição e fé. (Confissão e absolvição
foram descartadas.) A contrição é o efeito adequado da lei, que ameaça,
acusa e condena; a fé é o efeito adequado do evangelho que conforta,
edifica e salva. Ao ajudar as pessoas a compreender a importância do
pecado e do castigo, a lei os leva ao arrependimento. O evangelho traz o
perdão através de Cristo e as boas obras não têm nenhuma participação
na salvação. Tendo em vista que a salvação não pode ser merecida, as
boas obras são fruto da fé. Os atos realizados pelos cristãos são um meio
de glorificar a Deus e ajudar o próximo.
Os ortodoxos de ambas as confissões ensinavam que os
sacramentos (batismo e Ceia do Senhor) eram, no Novo Testamento, o
equivalente aos ritos hebraicos de circuncisão e Páscoa. Os sacrifícios do
Antigo Testamento eram vistos como símbolos da vinda do Messias e a
promessa de perdão de Deus era aplicada sobre o indivíduo através dos
sacramentos. A Igreja invisível era a congregação de todos os santos e
crentes, enquanto a Igreja visível incluía a todos que professavam a fé no
evangelho. Aqueles que e associavam a Cristo apenas de modo externo
seriam separados dos verdadeiros crentes no Dia do Julgamento. Então, o
mundo seria destruído pelo fogo e os fiéis receberiam vida eterna
enquanto os perversos seriam lançados ao inferno.

A espiritualidade ortodoxa
Ao observar-se os enormes tomos produzidos pelos teólogos
ortodoxos pode-se ter a impressão de que era um movimento de
intelectualismo morto, mas na verdade, sua época foi marcada por uma fé
viva e vibrante. Do meio do redemoinho, do sofrimento e dos conflitos
do século 17 fluíram algumas das declarações mais espirituais já vistas
sobre a fé cristã. Phillip Nicolai (1556-1608) foi um pastor na Westphalia
que enterrou mais de 1300 párocos durante a terrível praga e, ainda
assim, escreveu dois dos hinos mais lindos do hinário luterano Desperta
pois a Noite se Vai e Quão Brilhante é a Estrela D'Alva. Johann
Heermann (1585-1647) era pastor na cidade de Koeben, na Silésia, que
foi praticamente destruída por um incêndio, varrida pela peste e saqueada
por exércitos na Guerra dos Trinta Anos. Durante essa época em ele
perdeu todos os seus bens e fugiu para não ser morto, Johann escreveu o
hino Querido Jesus, que a Lei Quebraste.
Sem dúvida, o maior escritor de hinos desse período foi Paul
Gerhardt (1607-76), cuja importância para a hinologa na Alemanha
equipara-se a de Charles Wesley para a igreja de língua inglesa. Primeiro
ele foi tutor, depois diretor em Mittenwalde em Brandenburg e
finalmente pastor da prestigiosa igreja de São Nicolau em Berlim. Então,
perdeu sua posição com a queda do governante da Prússia por causa de
sua forte posição luterana e recusa a adaptar-se ao Calvinismo. Depois de
um tempo de grandes dificuldades ele acabou sendo nomeado
arquidiácono em Lueben, na Saxônia, onde permaneceu até o fim de sua
carreira. Seus últimos anos foram marcados pela tragédia pessoal: sua
esposa e quatro de seus cinco filhos faleceram antes dele.
Na fornalha da aflição Gerhard escreveu mais de 140 hinos. Eles
refletiam sua experiência pessoal e a calamidade social de seu tempo. Ele
venceu suas dúvidas através de uma forte fé baseada na obra de Deus na
natureza, na Igreja e nas Escrituras. Tinha uma consciência profunda do
pecado e ainda mais profunda da graça de Deus e do poder de seu
perdão. Entre seus textos mais conhecidos estão: Ó, Fronte
Ensagüentada; Jesus, Teu Amor Infinito por Mim e Senhor, Como Irei
Encontrá-lo?.
A hinologia calvinista diferia da luterana no sentido de que era
dirigida quase que exclusivamente aos Salmos do Antigo Testamento.
Escritores criativos produziram versões “métricas” dos textos sagrados,
isto é, adaptavam em forma de verso poético, compunham a música e
depois a cantavam sem o acompanhamento de instrumentos, exceto na
Holanda onde o órgão continuou sendo usado. O Saltério de Genebra era
uma coleção de salmos métricos em francês que foram traduzidos para o
alemão e holandês e durante muito tempo foi o único hinário usado pelas
igrejas reformadas do continente. Em algumas igrejas escocesas e
inglesas que não tinham condições de comprar livros ou onde os párocos
eram, em sua maioria, analfabetos os salmos eram “declamados em
linhas”. Um líder lia uma linha de cada vez e a congregação a cantava.
Sentimentos religiosos profundos também foram expressos através
das obras devocionais da época da ortodoxia. Estas eram apresentações
populares da fé cristã voltadas para o uso individual ou em grupos para
ajudar na oração e meditação. Muitas delas seguiam o modelo de A
Imitação de Cristo escrita por Thomas à Kempis. Escritores luteranos
chegaram a produzir livros de orações especiais para soldados, viajantes
e gestantes.
Sem dúvida, o autor mais influente de obras devocionais foi o
pastor Johann Arndt (1555-1621). Seus quatro (mais tarde seis) Livros
sobre o Verdadeiro Cristianismo e a obra Pequeno Jardim do Paraíso
eram amplamente usados e o primeiro título foi um dos livros
devocionais mais importantes da história cristã. Ele enfatizava a união
mística do crente com Cristo — isto é, não era suficiente simplesmente
mostrar a fé através de uma crença correta, era preciso dedicar-se à
purificação moral e a um viver de retidão. Assim, a penitência e um
relacionamento íntimo com o Pai celeste que redimiu a humanidade
também eram necessários. Outras obras devocionais importantes do
século 17 incluem A Prática da Piedade de Lewis Bayly, Meditações
Sagradas de Johann Gerhard, Prática da Piedade de Johann Heermann e
O Beijo de Amor do Céu de Heinrich Mueller.

O princípio da igreja territorial


A definição do princípio territorial pela Paz de Augsburg (1555) no
qual vários príncipes do Sacro Império Romano determinavam a
confissão religiosa de seus súditos — católica ou luterana — e sua
confirmação e extensão ao Calvinismo na Paz de Westphalia (1648)
tiveram um impacto debilitante sobre a vitalidade das igrejas protestantes
na Alemanha. A situação foi agravada pela adoção do absolutismo
monárquico pela maior parte dos príncipes alemães no final do século 17
e começo do século 18. Isso significava não apenas uma uniformidade
imposta de credo entre o povo de cada principado mas também que o
chefe de Estado exercia o papel dominante da Igreja em si.
Os governantes lançavam éditos tratando de questões religiosas em
seus territórios da mesma forma como faziam com leis seculares e
estendiam sua autoridade sobre quase todos os aspectos da vida da Igreja.
Bispos ou sínodos não tinham permissão de funcionar de maneira
independente do poder real. Os soberanos normalmente nomeavam ou
ratificavam os indivíduos que eram escolhidos e, através dessas
estratégias, controlavam as finanças e disciplina da Igreja e a indicação
dos clérigos. O líder clerical da igreja era um superintendente geral e
cada diocese (ou unidade administrativa semelhante) tinha um diretor
que providenciava para que as políticas e desejos do governante fossem
obedecidas. As disputas dentro da Igreja eram resolvidas por “inspeções”
que o príncipe sancionava e cujos relatórios eram enviados a ele.
Os príncipes também interferiam nas áreas doutrinárias, apesar de
muitas vezes terem pouco conhecimento teológico e, na verdade, eles
funcionavam como “papas protestantes” de seus súditos. Johann Gerhard
justificou essa situação argumentando que a Igreja era dividida em três
grupos: a autoridade civil, o clero e a hierarquia e conjunto de leigos.
Cada um desses grupos tinha um papel divinamente ordenado: as
autoridades civis eram responsáveis pelo governo; o clero devia
aconselhar os governantes, disciplinar o povo e administrar os
sacramentos; e os leigos deviam seguir a orientação do governante e do
clero.
O verdadeiro poder estava claramente nas mãos do príncipe. Ele
exercia autoridade sobre os outros dois grupos e considerava-se nomeado
por Deus para ser o guardião tanto do bem-estar divino quanto material
de seus súditos. Alguns escritores contemporâneos justificavam a
autoridade do príncipe tomando por base os direitos legais que antes
eram exercidos pela hierarquia na Igreja Católica e que passaram a recair
sobre os governantes dos estados alemães protestantes, enquanto outros
iam ainda mais longe e sugeriam que o papa e seus representantes
haviam usurpado o poder que a princípio os governantes haviam
recebido diretamente de Deus e que permitia que eles agissem em seu
favor estabelecendo um governo civil.
Pastores em países protestantes do continente estavam basicamente
sob o controle das autoridades civis e sua tarefa era explicar as doutrinas
para os leigos. Porém, a situação política contribuiu para uma redução na
posição e na qualidade do clero nesses lugares. Ao contrário das igrejas
católicas e anglicanas, poucos aristocratas entravam para a profissão
clerical. Os ministros vinham das classes mais baixas e eram
considerados inferiores pela nobreza. Em muitas universidades alemãs, o
curso de Teologia era o único aberto para pessoas de origens mais
humildes e os clérigos protestantes consequentemente tinham menos
polidez e capacidade de se adaptarem à alta sociedade do que seus
colegas católicos. Mas o que lhes faltava em sofisticação era
contrabalanceado por uma ênfase no estudo que por vezes beirava o
pedantismo. A teologia escolástica enfatizava a loquacidade e o uso de
frases em latim, grego e hebraico nos sermões, mesmo que poucos
ouvintes tivessem alguma idéia do que se tratava tudo aquilo. Assim,
para ajudar na comunicação, os pregadores muitas vezes usam fábulas,
ilustrações, metáforas forçadas e estranhas imagens.
A vida de um pastor típico não era fácil. Apesar de ter estudado
numa universidade, com freqüência ele passava muitos anos trabalhando
como tutor ou professor antes de finalmente ganhar o púlpito. E mesmo
assim sua posição nunca era garantida pois ele poderia desagradar o
príncipe ou algum dignitário local e ser dispensado. Os pastores de vilas
muitas vezes eram tão pobres que precisavam complementar sua renda
continuando a lecionar ou dedicando-se a tarefas como a agricultura,
fabricação ou venda de cerveja. Os membros mais favorecidos do clero
eram os pregadores da corte e professores teológicos. Os luteranos
tinham respeito especial pelos docentes de Teologia e desse contexto
acabou surgindo o conceito de liberdade acadêmica que foi a
contribuição distintiva das universidades alemãs para o ensino superior.
Apesar do estilo de educação, das dificuldades de expressão nos
sermões e de uma completa falta de qualquer ênfase profética em suas
mensagens, muitos pastores da época eram homens profundamente
espirituais que se sentiam responsáveis pelo cuidado das almas. Muitos
luteranos dedicavam-se à instrução dos jovens através do catecismo e até
mesmo ouviam confissões particulares dos párocos. Num livro
conhecido, Voetius aconselhava os cristãos em como viver uma vida de
retidão. Suas prescrições incluíam oração, jejuns, vigílias e exercícios
devocionais na luta contra o mundo, a carne e o diabo. Ele dava
conselhos sobre como visitar aqueles que precisavam de consolo e
morrer com dignidade no final da peregrinação aqui na Terra.

A renovação católica
À medida em que a era da ortodoxia estabeleceu-se na Europa, o
zelo das duas confissões protestantes foi diminuindo e a fé tornou-se
muito mais voltada para dentro. Até mesmo os calvinistas franceses aos
quais o Édito de Nantes havia concedido direitos legais e civis e
liberdade de culto público, perderam muito de seu zelo e o mesmo
aconteceu com os calvinistas holandeses que viviam num país que,
naquela época já possuía políticas relativamente avançadas em relação à
tolerância religiosa. Porém, paralelo ao declínio dos protestantes, ocorreu
um importante reavivamento do Catolicismo e a condição revigorada da
Igreja Católica e do clero na França coincidiu com realizações nacionais
em outras áreas. O século 17 foi a era de ouro da literatura francesa, o
que encorajou o clero a ser mais artístico em suas pregações e escritos
religiosos.
A atmosfera política e social incentivada pelo rei Luís XIV também
foi um fator contribuinte. Ele expressava o prazer que sentia quando
ouvia a pregação de um ministro que não era apenas eloqüente mas
acreditava com todas as suas forças naquilo que dizia. O clero esperava
fazer dele uma pessoa melhor e, através do rei, alcançar toda a nação e
seu interesse pessoal pela religião tornou a freqüência às missas uma
moda na corte, ajudando a igreja a exercer influência sobre a vida
francesa.
A liberdade que os huguenotes gozaram durante grande parte do
século (Luís começou a persegui-los no final da década de 1670)
empurrou o clero católico da França no sentido de uma fidelidade maior.
Tendo em vista que não podiam depender da perseguição para enfrentar
os protestantes, eles foram forçados a usar a pregação e um ministério de
cuidado para ganhar as pessoas e encarar, assim, o desafio dos
huguenotes. François de Sales (1567-1622) foi especialmente importante
pois dedicou-se à obra missionária em Savóia, uma área de forte
influência huguenote. Sua diligência em ganhar o povo de volta para o
Catolicismo o levou a ser nomeado bispo de Genebra. Suas pregações e
escritos especialmente a obra Introdução à Vida Devocional (1609) que
procurava mostrar a possibilidade de se levar uma vida de devoção cristã
mesmo em meio às distrações do mundo, teve uma influência profunda
na devoção católica. Ele foi o mentor espiritual de uma viúva
profundamente devota, Jeanne Françoise de Chantal (1572-1641). Em
1610 ela formou a Ordem da Visitação (também conhecida como as
visitandinas ou irmãs salesianas), que dedicou-se à educação e ao
cuidado dos enfermos. João Bosco, um admirar do século 19, fundou em
1859 a Sociedade de São Francisco de Sales (Padres Salesianos) que
acabou tornando-se uma das três maiores ordens católicas missionárias e
de ensino.
Outra figura de grande devoção foi Vicente de Paulo (1580-1660)
que logo no início de sua carreira como sacerdote resolveu dedicar sua
vida aos pobres. Ele criou duas importantes ordens religiosas, os
lazaristas (ou vicentinos) em 1625, uma congregação missionária e de
pregação e as irmãs da caridade em 1633. Membros desta última
dedicaram-se totalmente aos enfermos e pobres. Durante o conflito civil
conhecido como Fronde, ele organizou amplos trabalhos de assistência
entre a população agonizante. Em sua pregação, ele enfatizava a
encarnação e a dependência total dos méritos de Cristo.
A figura mais proeminente da renovação católica na França foi
Jacques-Béningne Bossuet (1627-1704). Ele não apenas foi o maior
pregador do século 17 como também possuíam um conhecimento
admirável da Bíblia, dos Patriarcas da Igreja e das tendências intelectuais
de sua época. Ele foi bispo em Meaux, tutor do príncipe e pregador da
corte, teve um papel ativo nas controvérsias com os protestantes e alas
fora dos padrões dentro do Catolicismo e foi autor de vários livros.
Bossuet é lembrado especialmente por sua defesa vigorosa do
direito divino dos reis. Ele afirmava que o rei (referindo-se, é claro, a
Luís XIV) recebia do alto o seu mandato para governar e que seria
responsável diante de Deus, e não dos representantes eclesiásticos na
Terra, pela forma como conduziu sua missão. Como a instituição da
monarquia era de origem divina, esperava-se que todos os súditos
dedicassem sua lealdade ao soberano. Se ele não fosse capaz de governar
com sabedoria, seria julgado por Deus. Não cabia ao povo ou a Igreja
fazer tais avaliações.2

O absolutismo monárquico
O caráter do Cristianismo europeu foi profundamente afetado pelos
governantes de seu tempo. O absolutismo monárquico surgiu no início do
século 17 na França, chegou ao seu ápice durante o reinado de Luís XIV,
que durou até 1715 e foi imitado pela maioria dos soberanos do
continente. A estratégia dos primeiros arquitetos do absolutismo era dar
um fim às incessantes lutas que haviam rasgado a França durante as
Guerras Religiosas ao sustentar o ideal de unidade nacional como sendo
superior à unidade religiosa e o monarca como a única pessoa ao redor da
qual o país poderia se reunir.
Assim, conforme foi mencionado anteriormente, o Huguenote
Henrique IV, que subiu ao trono em 1589, converteu-se formalmente ao
Catolicismo pois essa era a fé da grande maioria de seus súditos. Mas em
seguida ele deu liberdade religiosa e política para seus antigos
correligionários com o Édito de Nantes. Ele era um “politique”, ou seja,
ele via o Estado e a continuação de sua existência como sendo da maior
importância e a questão religiosa simplesmente teve que ficar em
segundo plano em relação às preocupações políticas seculares do Estado.
Como resultado, o terrível conflito entre protestantes e católicos
franceses arrefeceu.
O cardeal Richelieu, cuja posição na Igreja foi resultado de
influência política e cujas preocupações eram em sua grande maioria
seculares, emergiu na metade da década de 1620 como ministro do
sucessor de Henrique, Luís XIII e levou o processo ainda mais adiante.
Como governante virtual da França, em nome do rei ele reduziu o poder
da nobreza ao proibir o envolvimento em duelos e guerras particulares e
a fortificação de suas residências (castelos). Ele também tirou dos
huguenotes o direito de usar armas em defesa própria depois de reprimir
brutalmente sua rebelião em La Rochelle em 1628. Para diminuir a
influência da nobreza, Richelieu deu início à prática de nomear oficiais
para as províncias, os chamados intendentes que pertenciam à classe
média e respondiam ao governo real.
Depois da morte de Luís e Richelieu, outro líder eclesiástico
político, o cardeal Jules Mazarin, tornou-se primeiro ministro. Os nobres
apelaram para as armas em Fronde (1648-53) a fim de reconquistar sua
posição de proeminência e Luís XIV, que tornou-se rei em 1643 aos
cinco anos de idade, sujeitou-se à regência durante esse período
desagradável, determinado a nunca mais tolerar tal situação.
Em 1661 Mazarin faleceu e Luís obteve a maioridade. Pôs-se então
a identificar-se totalmente com o Estado francês (seu famoso lema era
“L'Etat cest moi" [Eu sou o Estado]) e implantar um governo absoluto.
Ele escolhia intendentes e outros oficiais que eram fiéis a ele, dirigia
grande parte das operações de governo através de concílios que
reportavam-se pessoalmente a ele e tomava todas as decisões
importantes. Legislava através de decretos que eram devidamente
registrados pelas principais cortes da lei e até mesmo prendia pessoas por
ordem real sem julgamento.
O talentoso ministro das finanças de Luís, Jean Baptiste Colbert
(1619-83) dirigia o comércio, a indústria, a agricultura e as finanças. Ele
também administrava as colônias através do sistema de mercantilismo,
um conceito de nacionalismo econômico que envolvia uma cuidadosa
regulamentação governamental. Sob sua liderança competente as rendas
do governo triplicaram mas as guerras de Luís tornavam impossível um
orçamento equilibrado. Os dois também incentivavam a literatura, as
ciências e as artes e fundaram academias que levaram a expressão na
língua francesa ao ápice de perfeição. O francês tomou o lugar do latim
como língua do povo educado e culto da Europa. O emblema de Luís era
o Sol, o centro do universo e seus súditos referiam-se a ele como o “Rei
Sol” enquanto outros na Europa o chamavam de “Grande Monarca”.
Ele apreciou a caracterização do bispo Bossuet na qual o rei era
escolhido por Deus para governar e só respondia diretamente a ele.
Como ele era o agente de Deus na Terra, o povo era obrigado a se
submeter a ele sem questionamentos. Para garantir que a nobreza não
seria mais uma fonte de resistência, Luís construiu um enorme complexo
com um palácio e um parque em Versalhes, próximo a Paris. Foi o
projeto arquitetônico mais magnífico do século e milhares de nobres
viviam nos suntuosos cômodos e eram atendidos por quatro mil
empregados. Tendo em vista que gostavam de cerimônias e ostentação, a
vida da corte girava em torno do elaborado calendário social sendo o rei
Sol o centro de todas as atividades. Os nobres passavam a vida no ócio
— participando de cerimônias reais, recepções, jogos, caça; indo a
concertos, peças e bailes ou entregando-se à licenciosidade e fofocando
sobre os outros. Lisonja e hipocrisia eram as chaves para o sucesso na
corte e as pessoas mais sensíveis eram desmoralizadas. Versalhes
praticamente marcou a ruína da aristocracia francesa como classe social
e, apesar dos nobres terem passado por um ressurgimento depois da
morte de Luís, estavam num caminho que levaria ao declínio e teria
como destino a grande revolução um século mais tarde.
Em sua determinação de centralizar o controle, Luís decidiu
abandonar a tolerância aos não-católicos. Os huguenotes, com seus
direitos especiais, pareciam mais um Estado à parte dentro da França e os
católicos pediam ao rei uma restauração da unidade religiosa no país.
Mesmo que no período pós-Reforma o poder nas relações entre Igreja e
Estado tivesse, sem dúvida, mudado para o lado do Estado, ainda assim
persistia a idéia de que os dois eram inseparáveis e Luís via a existência
dos huguenotes como uma ameaça tanto para seu governo como para a fé
católica romana. Assim, a partir de 1679 foi tirando aos poucos os seus
privilégios. Fechou igrejas e escolas e colocou soldados para viver em
suas casas. Esta última ordem tornava a vida tão desagradável que alguns
chegaram a converter-se ao Catolicismo para escapar dela.
Finalmente, em 22 de outubro de 1685, uma ordem real revogou o
Édito de Nantes. Ela exigia que todos os pastores reformados saíssem do
país e que igrejas fossem destruídas. As escolas huguenotes não eram
mais permitidas, as crianças deviam ser mandadas para a missa
regularmente e qualquer um que nascesse numa família da “falsa
religião” deveria ser batizado novamente. Não seria permitida nenhuma
outra prática religiosa formal fora da Igreja Católica Romana, mas os
adultos ainda poderiam gozar de “liberdade de consciência”. Ao
contrário do clero, os leigos foram proibidos de imigrar pois suas
aptidões eram necessárias para fortalecer a economia nacional. Aqueles
que fossem pegos tentando fugir teriam suas propriedades confiscadas e
seriam sentenciados às galés.
O resultado foi uma grande resistência. Muitos dos reformados
continuaram adorando em silêncio ou fazendo cultos clandestinos em
casas ou nas florestas. Os pastores que não partiram foram caçados e, na
maioria das vezes, enforcados. Crianças huguenotes foram arrancadas de
seu lar e entregues a pais católicos. Apesar da perseguição, uma igreja
subterrânea começou a crescer. Místicos apocalípticos do sul da França
conhecidos como camisards revoltaram-se em 1710. Eles foram
inspirados pelos escritos do conhecido teólogo reformador Pierre Jurieu
(1637-1713), um defensor da liberdade plena de consciência e do uso de
armas para combater aqueles que recorriam à violência para negar a
liberdade religiosa. Apesar da oposição oficial, Antoine Court (1696-
1760) reuniu o que restou dos franceses reformados no primeiro sínodo
provincial em 1715. Não tardou para que uma escola de treinamento de
ministros fosse fundada na Suíça e a disciplina e ordem voltassem nas
congregações dispersadas. Com o surgimento do Iluminismo, as pressões
diminuíram rapidamente, os huguenotes recuperaram direitos civis
limitados e durante a Revolução Francesa e era napoleônica a total
liberdade religiosa foi concedida.
Porém, cerca de duzentos mil franceses partiram depois que o Édito
foi revogado em 1685, sendo a maioria deles artesãos competentes ou
soldados e marinheiros experientes. Os refugiados foram cordialmente
recebidos em terras protestantes como a Holanda, Prússia, Inglaterra e
nas colônias da África do Sul e América do Norte e contribuíram
imensuravelmente para a vida econômica e cultural de seus novos países
de residência. A França perdeu apenas um por cento de sua população
nessa imigração ilegal, mas estes estavam entre os cidadãos mais
produtivos, o que danificou a estrutura social e econômica do país. Os
gastos exagerados de Versalhes, os maus tratos aos huguenotes e a
ambição insaciável de Luís por poder nacional fazendo com que a França
se envolvesse numa sucessão de guerras (incluindo o primeiro conflito
realmente global) desfizeram muito daquilo que tinha sido realizado no
absolutismo francês.

Absolutismo alemão
Os métodos de Luís XIV foram imitados em outras partes da
Europa, especialmente na colcha de retalhos composta de vários estados
que formava a Alemanha pós-Westphalia. Imitações de Versalhes
surgiram em lugares como Potsdam, Dresden, Munique, Hanover e
Ludwigsburg (próximo a Sttutgart).
Os príncipes alemães estabeleceram o serviço público, introduziram
o mercantilismo e sistemas eficientes de coleta de impostos, criaram
exércitos permanentes, mantiveram a Igreja sob controle e, na corte,
adotaram os modos, estilos e até a língua da França. A principal
diferença nesse caso era que a nobreza estava incorporada no sistema e
tinha recebido cargos proeminentes no serviço público. Em troca da
submissão à autoridade absoluta do rei ou príncipe e fidelidade em seu
serviço, eles tinham liberdade administrativa sobre suas propriedades.
Assim, a posição social da classe média e dos camponeses deteriorou-se
na era de absolutismo alemão.
A aplicação mais bem-sucedida dos métodos absolutistas foi feita
pela família Hohenzollern em Brandenburg-Prússia. O eleitor de
Brandenburg, Frederico Guilherme, herdou em 1640 uma série de
territórios arenosos espalhados pelo norte da Alemanha e indo do Reno
até a Polônia. Conseguiu formar um exército tendo como base a pequena
nobreza (classe dos Junkers) que era eficiente e completamente leal a ele
e foi capaz de aumentar admiravelmente a base territorial e a força
econômica de seu Estado.
A atitude de Guilherme em relação à religião foi particularmente
importante. Apesar do Calvinismo, ele reconheceu que muitos de seus
súditos no oeste da Alemanha eram católicos e os de Brandenburg e do
leste da Prússia eram luteranos. Tendo em vista que ele estava
procurando infundir a unidade em seus domínios ao mudar de lugar
oficiais e soldados, ele entendeu que qualquer iniciativa no sentido de
impor a uniformidade confessional iria enfraquecer seus esforços pela
unidade. Frederico Guilherme seguiu o exemplo de Georg Calixtus
(1586-1659), um professor da Universidade de Helmstedt que havia
desenvolvida uma teoria chamada de “sincretismo”. A doutrina tinha
sido criada para trazer a reconciliação entre luteranos, calvinistas e
católicos tendo como base as Escrituras, o Credo dos Apóstolos e a fé
aceita durante os cinco primeiros séculos da Igreja. Assim, o “Grande
Eleitor” adotou uma política de tolerância forçada sobre seus súditos,
quer o clero gostasse ou não. Isso também explica porque foi tão fácil
integrar milhares de refugiados huguenotes no país em 1685, sendo que
eles enriqueceram grandemente a economia.
Seu filho, Frederico I (1688-1713) adquiriu o título de rei da
Prússia e fundou uma nova universidade em Halle que estava para tornar-
se o principal centro do Pietismo alemão. Seu neto, Frederico Guilherme
I (1713-40) fez de seu exército o quarto maior da Europa, mesmo que a
Prússia só ocupasse o décimo segundo lugar em população. Aperfeiçoou
a idéia de limitar os grupos de oficiais à pequena nobreza proprietária de
terras, desenvolveu um esquema para alistar soldados dentre os
camponeses e fundou, assim, o militarismo prussiano. Um governante
profundamente devoto, ele detestava a preguiça e frivolidade e chegou a
fechar teatros pois os considerava “templos de Satanás”. Assim como
seus predecessores, porém, ele não tinha intenção de impor a hegemonia
confessional em seus domínios. Para ele, as igrejas não eram apenas
lugares onde se pregava o evangelho, mas também instituições públicas
de utilidade que podiam inculcar valores como integridade, lealdade,
submissão e obediência. No seu reino também foi fundado o primeiro
programa de escola primária sustentado pelo Estado. As matérias
ensinadas eram Religião, Leitura, Escrita e Aritmética.
Na verdade, Frederico Guilherme I era um disciplinador tão severo
e cruel, tão ávaro e sem profundidade espiritual que quando seu filho
Frederico II (1740-86), conhecido como Frederico o Grande, assumiu o
poder, rejeitou a religião do pai e manteve o menor contato possível com
a Igreja. Ao mesmo tempo, ele usou o poderoso exército passado a ele
em duas grandes guerras que transformaram a Prússia numa grande
potência e prepararam a cena para a manifestação posterior do
nacionalismo alemão. Quanto à igreja na Prússia, ao contrário da França,
ela claramente não ganhou nada com o absolutismo monárquico e como a
religião era usada para apoiar a posição social, sua vitalidade dissipou-se.
Em lugar algum isso ficou mais evidente do que na Rússia.

O Cristianismo e o absolutismo na Rússia


Conforme foi mencionado anteriormente, o príncipe de Kiev tinha
aceito o Cristianismo oriental, mas durante o período mongol o centro
gravitacional mudou para Moscou, no norte. O governante moscovita
Ivan III (1440-1505) exaltou a ortodoxia russa, declarou-se herdeiro do
Império Romano Oriental, trouxe a cultura bizantina para seus domínios
e afirmou que a Rússia moscovita era a “Terceira Roma”. Seu neto, Ivan
IV (1538-84) lançou um programa de expansão para o Leste que, durante
o século seguinte, resultou no controle da Rússia sobre as regiões de
florestas da Sibéria.
Apesar de ser conhecido por sua extrema crueldade (era chamado
de Ivan o Terrível, reprimiu a nobreza sem piedade e matou seu próprio
filho num ataque de raiva) ele criou algumas ligações comerciais com o
Oeste e patrocinou um plano de construção de igrejas em todas as
comunidades para que o povo pudesse ouvir o evangelho. Além disso,
esses eram lugares em que a gente simples podia aprender a ler e
escrever. Os padres davam aos párocos aulas de ofícios básicos e
ensinavam a Bíblia através de figuras, usando ícones e afrescos para que
até mesmo o analfabeto tivesse algum entendimento das Escrituras.
Assim, a fé ortodoxa lançou raízes profundas entre o povo. Em 1589 o
czar elevou o líder da igreja russa à posição de patriarca, tornado-o igual
aos outros quatro patriarcas da igreja do Oriente.
Havia uma forte competição entre Roma e Moscou pela lealdade do
povo na vasta região leste da Europa. Apesar da maioria ser católica,
muitos no oeste da Ucrânia (também conhecida como Rutênia) eram
ortodoxos e estavam sob a jurisdição do prelado metropolitano de Kiev.
Porém, em 1443 o papa providenciou para que o rei polonês que
governava a região nomeasse um prelado católico romano. Dentro de um
século, a maioria das igrejas havia mudado de volta para a ortodoxia, mas
em 1595 o papa Clemente VIII e o rei Sigismundo III concluíram a
União de Brest-Litovsk, que declarava que os bispos de rito bizantino e
as igrejas do oeste da Ucrânia aceitariam a supremacia papal mas
manteriam sua liturgia e disciplina. Era a chamada igreja “uniata”, da
palavra ucraniana para unidade. À medida em que o Estado russo se
expandiu para dentro desses territórios nos séculos seguintes, os rutênios
uniatas foram compelidos a voltar para a ortodoxia.
Pelo fato da Rússia continuar isolada do Ocidente, ela praticamente
não foi influenciada pelos acontecimentos entre 1400 e 1700 que
transformaram a Europa e deram início à civilização moderna. Não havia
classe média, ela não teve nenhuma revolução comercial, Renascença ou
Reforma e não participou do surgimento da Ciência moderna. O governo
perdeu forças durante um período de conflitos civis e guerras com outros
países conhecido como “Tempo Tumultuoso” (1598-1613) que terminou
com a união dos nobres apoiando Michael Romanov para restaurar a
ordem. Porém, a tradição de uma monarquia forte continuava intacta e
isso deu bases para a continuidade da expansão geográfica no leste
europeu e Ásia e para a modernização promovida por Pedro o Grande.
O patriarca Nikon (1652-60) realizou um reforma litúrgica de modo
que houvesse conformidade com as práticas gregas e ucranianas, o que
para seu aliado, o czar Alexis, foi útil na assimilação da Ucrânia. Muitos
ficaram insatisfeitos com as mudanças no ritual, como por exemplo a
quantidade de prostrações durante a leitura de uma oração ou o número
de dedos usados para fazer o sinal da cruz. Mas ficaram ainda mais
descontentes com o fato de Nikon não tratar dos problemas de corrupção
espiritual e moral. Por isso, separaram-se da igreja oficial. Ficaram
conhecidos como os “Crentes Antigos”.
O reinado de Pedro I (1689-1725) marcou uma virada na história
russa. Um monarca tão absolutista quanto qualquer do Ocidente, colocou
em prática um programa de modernização forçada e ocidentalização
criado para fortalecer o Estado e fazer da Rússia uma potência mundial.
O czar era cheio de contrastes. Por um lado, era um gigante cruel e
selvagem, de maneiras e fala ásperas, com um temperamento violento
que gostava do obsceno, das bebedeiras e orgias e de torturar seus
inimigos. Por outro lado, possuía uma energia inesgotável e um desejo
insaciável pela grandiosidade da Rússia. Nos primeiros anos de seu
reinado ele chegou a viajar para outros países para saber em primeira
mão sobre as idéias e a tecnologia européia. Contratou centenas de
artesão, técnicos, engenheiros e professores para trabalhar na Rússia.
Então, embarcou numa remodelação da sociedade russa. Ordenou
que seu povo raspasse a barba e vestisse roupas de estilo ocidental.
Defendeu o uso do tabaco que até então era considerado pecaminoso e
tirou as mulheres de sua reclusão tradicional. Incentivou o ensino
fundando escolas e imprensas e exigindo pessoas instruídas para os
cargos públicos. O símbolo mais marcante de seu programa de
ocidentalização foi a fundação, em 1703, de uma nova capital próxima à
entrada do mar Báltico, a qual ele chamou de São Petersburgo. Essa
“Janela para o Ocidente” serviria para contrabalancear Moscou, que era
vista como extremamente conservadora e rígida em seus costumes.
Para aumentar o poder nacional ele reformou o exército e o serviço
público. Introduziu um imposto que fornecia a base financeira necessária
para manter os militares, implantou um sistema de recrutamento para que
houvesse um grupo de soldados profissionais e criou a primeira marinha
russa. Ele mudou a base da nobreza da simples ancestralidade para o
serviço público. Homens de classe alta eram incentivados a tornar-se
oficiais do governo e, se alcançavam cargos altos o suficiente, recebiam
títulos. Até mesmo pessoas educadas mas de condição social mais baixa
tinham a possibilidade de ascensão nesse sistema de “nobreza de
serviço” que continuou na Rússia até 1917. Assim como os nobres da
Prússia, ao invés de serem excluídos da administração do reino eles eram
inseridos no sistema de modo a tornarem-se dependentes do czar. Ele
promoveu o crescimento econômico através de acordos comerciais,
subsídios para a construção de fábricas e melhorias na agricultura. O
verdadeiro objetivo da reforma de Pedro era permitir que a Rússia
realizasse guerras de expansão contra países vizinhos, especialmente a
Suécia.
A Igreja Ortodoxa Russa foi um alvo específico do czar. Tendo em
vista que a Igreja havia discordado de muitas de suas reformas, Pedro
decidiu não nomear um sucessor para o patriarca quando este faleceu em
1700. Ao invés disso, assumiu ele mesmo o controle e decretou que
apenas uma parte da renda da Igreja seria revertida para ela. Em 1721
resolveu a questão da ausência de um patriarca ao criar o Colégio
Espiritual (que mais tarde foi chamado de Santíssimo Sínodo) para
governar a Igreja. Composto de doze clérigos nomeados pelo czar, seu
presidente ou procurador era um oficial civil que respondia diretamente
ao monarca.
Assim, a Igreja Ortodoxa Russa foi transformada em pouco mais do
que um departamento de Estado sendo os sacerdotes meros servidores
públicos com pequenos salários. Eram até obrigados a relatar à polícia
qualquer evidência de traição ou ação contrária ao governo que fosse
relatada no confessionário. O alto clero estava sob a mão opressora do
Estado. Pedro também desativou vários mosteiros, ordenou uma revisão
da liturgia e reformou o ensino eclesiástico. Apesar dessa nacionalização
da Igreja, a quantidade de fiéis entre as classes mais baixas do povo
continuou grande. Isso seria um elemento essencial do nacionalismo
conservador russo no século 19, mas a Igreja em si não tinha a iniciativa
ou energia espiritual para deter o poder da autocracia czarista.
Muitos russos que se opunham à ocidentalização e às novas práticas
juntaram-se aos Crentes Antigos, mesmo que isso significasse a
perseguição que incluía execução ou exílio em partes remotas do reino.
Eles constantemente condenavam os oficiais da Igreja por apostasia e a
ordem czarista como sendo pertencente ao Anticristo. Muitos dissidentes
fecharam-se em pequenas comunidades que prosperaram e contribuíram
para o desenvolvimento econômico da Rússia. Eles chegaram a ser
aproximadamente vinte por cento da população e o governo nunca foi
capaz de eliminar completamente o movimento. Também houve o
surgimento de seitas radicais milenaristas, sendo que alguns de seus
membros apresentavam comportamentos bizarros.
Um tratado assinado durante o reino de Catarina a Grande, dando
fim à guerra contra os turcos (1174), declarava o direito do monarca
russo intervir no império otomano em favor dos súditos ortodoxos do
sultão. Catarina também decretou que as terras da Igreja e dos monarcas
deveriam ser propriedade do Estado, o que custou à Igreja três quartos de
sua renda. Dessa forma, a Igreja tornou-se ainda mais um instrumento do
Estado.
A principal adversária da Rússia no monopólio do Báltico era a
Suécia. Lá, a rígida ortodoxia luterana havia tornado-se a religião oficial
permitindo que os monarcas aumentassem seu controle. O carismático
Gustavo Adolfo fez muita coisa no sentido de consolidar a identidade
luterana da Suécia. Sua filha, a rainha Cristina (1644-54), uma das
figuras mais fascinantes do século, tentou conter o crescimento da
nobreza e, ao fracassar, converteu-se publicamente ao Catolicismo e foi a
Roma. Carlos XII (1697-1718), o mais famoso rei escandinavo, esteve
em conflito com Pedro I durante todo o seu reinado e sua morte marcou o
fim da grandeza sueca.
O estilo barroco
A era da ortodoxia e do absolutismo viram o admirável desabrochar
do estilo barroco, um expressão artística que tomou rapidamente o lugar
do classicismo renascentista e caracterizou-se pelas formas exageradas e
adornos complexos. A principio, o termo era usado de maneira
depreciativa pelos críticos, mas nesse meio tempo o estilo passou a ser
reconhecido e apreciado. O efeito do barroco é estonteante por causa de
sua extravagância e grandeza. Por exemplo, uma pintura dessa época
retratando um grupo de pessoas é clara e natural, mas é impossível
visualizar os indivíduos separadamente. Os movimentos sugeridos pelo
corpo e a direção dos olhares mesclam-se para apresentar uma situação
dramática e criar um todo que é maior do que a soma de suas partes. Na
Arquitetura barroca, o interior de um edifício combinava pintura,
escultura e características estruturais para criar uma grande unidade. Uma
das primeiras expressões desse estilo pode ser vista em Il Gesu, uma
igreja jesuíta em Roma. Lá, a pintura no teto (A Adoração do Santo
Nome de Jesus) é habilmente mesclada com os altares e o resto da
estrutura de modo a criar um efeito grandioso.
O centro do novo estilo foi Roma. No século 17 a cidade foi
praticamente refeita em estilo barroco. As igrejas novas (ou redecoradas)
e os edifícios públicos foram luxuosamente ornamentados e decorados
com querubins e anjos, colunas retorcidas e desenhos complexos em
outro e mármore. O arquiteto mais proeminente dessa época foi Giovanni
Lorenzo Bernini (1598-1680), cuja obra de arte foi a praça em frente à
Basílica de São Pedro. Com seus dois semicírculos de colunatas, ela
transmite ao observador de forma nítida quão imensa é a instituição
religiosa.
A Reforma Católica ajudou a espalhar o estilo barroco por toda a
Europa. Na Espanha a ênfase era evidente especialmente nas cores e
ornamentações. O principal artista foi José Churriguerra (1650-1723) que
decorou a então recém-concluída catedral em sua cidade natal de
Salamanca com cores vivas e também projetou a praça da cidade. O
barroco espanhol teve grande influência sobre Portugal e nas colônias
ibéricas na América, especialmente no México, Peru e Brasil.
Depois da derrota dos turcos em 1683, Viena foi totalmente
redesenhada e igrejas, palácios e monumentos foram construídos em
estilo barroco enquanto as estruturas góticas foram reformadas para
combinar com as construções novas. Palácios como o de Belvedere e
Schönbrünn eram impressionantes obras de arte. Outras cidades
austríacas como Salzburg e Innsbruck e o magnífico mosteiro de Melk
são marcos do barroco.
Na Alemanha em si houve uma explosão do novo estilo nas
construções. Os governantes dos vários principados competiam na
contratação de arquitetos e construção de palácios, igrejas e mosteiros
impressionantes e com freqüência extrapolavam suas possibilidades
financeiras. O eleitor da Saxônia, Augustus II (1694-1733) pôs-se a
transformar sua cidade de Dresden na “Florença do Elba” e o carro-chefe
de seu ambicioso projeto foi o palácio de Zwingler que levou dez anos
para ser construído. Os duques de Wittelsbach na Bavária encheram
Munique de igrejas e palácios barrocos transformando-a num importante
centro cultural.
O novo estilo também afetou os franceses, apesar de sua tendência
a incorporar mais o classicismo em suas construções. Além disso, eles
davam atenção aos aspectos práticos do quotidiano e criavam uma
disposição de cômodos mais conveniente. A influência do barroco foi
particularmente óbvia em Versalhes. Não apenas a edificação em si é
impressionante mas também foi calculada para mesclar-se com um
ambiente de jardins, estátuas, fontes e um grande canal. O lugar todo era
um símbolo da era do absolutismo, repleto de pompa e luxo. Os
arquitetos franceses criaram vários outros palácios e igrejas, sendo o
mais notável dentre eles a Invalides, Ste. Geneviève (Panthéon) e
Fontainbleau.
Na metade do século 18 surgiu uma variação extrema do barroco
chamada de rococó. Tirado da palavra francesa rocaille, que quer dizer
pedra ou encravado com pedraria, o termo referia-se ao estilo de
decoração interior das construções francesas por volta de 1720-60, mas
tornou-se um estilo internacional de arte cuja expressão mais forte foi na
Bavária católica. Caracterizava-se por um sistema complexo de
ornamentação e decoração que enfatizava as linhas ao invés do espaço, o
uso exuberante de cores e de materiais diferentes como pedras, afrescos,
entalhes em madeira e até mesmo tapeçaria buscando um resultado geral
delicado. Dentre os principais artistas do rococó destacava-se Giovanni
Baptista Tiepolo (1696-1770) que era conhecido por seus afrescos em
tetos que criavam a ilusão de céu, luz do Sol e nuvens. Outra figura
importante foi Dominikus Zimmermann (1685-1766) que especializou-se
em criar uma unidade de luz e cor que resultava num tom festivo. O
estilo rococó pode ser visto hoje em estruturas magníficas no sul da
Alemanha como é o caso da Residência Würzburg, da igreja na vila de
Wies e da igreja do mosteiro em Ottobeuren.
Outras formas de arte refletiram o barroco. O século 17 foi a era
dos retratos e o grande mestre era, sem dúvida, Rembrandt van Rijn
(1609-1669), o pintor holandês que usava fundos escuros e toques de luz
para estudar as pessoas que pintava. Espaço e luz também eram dois
elementos essenciais da maior parte dos exemplos de pinturas barrocas.
Peter Paul Rubens (1577-1640) e seus muitos discípulos criavam uma
ilusão de espaço interminável para que o observador pudesse pensar no
infinito. Diego Velasquez (1599-1660), o principal pintor espanhol da
época, produziu diversos retratos de membros da corte real. Bernini era o
líder nas esculturas e na arquitetura e foi responsável por muitas obras
feitas sob encomenda como igrejas, túmulos de papas e fontes que hoje
embelezam a cidade de Roma. O barroco também foi um tempo de
grandes realizações musicais. Marcou o final de quinhentos anos de
domínio da polifonia na música (em que uma parte não é mais importante
do que as outras) e o surgimento da música harmônica. A música barroca
consistia de um único elemento, a melodia, sustentada pela harmonia.
Encontrou sua expressão especialmente na música instrumental, na ópera
com seu esplendor e emoções exageradas e no oratório, uma arte sacra
que combinava o trabalho de um solista, um coral e uma orquestra. Como
não era parte da liturgia, o oratório era uma oportunidade ideal para a
música experimental. Esse tipo de composição originou-se na metade do
século 16 com as apresentações musicais no Oratório de Filipe Neri em
Roma. Os jesuítas usavam esse novo gênero que foi logo assimilado
pelos luteranos na Alemanha que já possuíam músicas para corais,
cantatas e paixão e que não eram necessariamente apresentadas como
parte do curto normal.
O órgão dominou a era barroca. Projetistas como Gottfried
Silbermann (1638-1753) construíram luxuosos órgãos de tubos para as
novas igrejas instalando-os também nas construções góticas mais antigas.
Os compositores barrocos compuseram músicas para o órgão e muitos
eram excelentes organistas.
Nesse período houve uma abundância de grandes figuras musicais.
O veneziano Claudio Monteverdi (1567-1643) ligou a Renascença ao
barroco, escreveu música de igreja brilhante e alguns o consideram o
criador da música moderna. Seu aluno foi Heinrich Schütz (1585-1672),
diretor da corte em Dresden e mais importante compositor luterano
depois de Bach. Sua música de coral ainda é importante e continua a ser
cantada nos dias de hoje. Georg Phillip Telemann (1681-1767) e Dietrich
Buxtehude (1637-1707) escreveram excelentes músicas para coral e
órgão e este segundo influenciou Bach. Henry Purcell (1659-95) foi o
maior compositor inglês entre a era elizabetana e o final do século 19.
Ele era organista da abadia de Westminster e produziu obras de destaque
para instrumentos e para coral.
Dois indivíduos, porém, distinguem-se de seus colegas por sua
maravilhosa habilidade técnica e gênio musical. George Frederic Handel
ou, em alemão, Händel (1685-1759), um saxônico que já havia adquirido
grande reputação na sua região natal de Halle, bem como em Hamburgo
e Hannover, mudou-se no meio de sua carreira para a Inglaterra, onde
seus patronos foram os reis de Hanover, George I e II. Escreveu
principalmente para grandes públicos e até mesmo suas brilhantes
composições religiosas como os oratórios Messias e Judas Macabeu
eram voltados para apresentações públicas em anfiteatros e não em
igrejas. Seus temas eram inspirados em aspectos do século 18 na
Inglaterra como a música folclórica, danças nacionais, os gritos nas
cidades de Londres, a tranqüilidade do campo e até tempestades no mar.
Apesar de estrangeiro, Handel ainda é o compositor mais querido da
Inglaterra.
Johann Sebastian Bach (1685-1750) não foi apenas um dos maiores
compositores de todos os tempos mas também um cristão devoto. Passou
quase toda a sua vida na região central da Alemanha — na Turíngia e
Saxônia — e exceto quanto trabalhou para o príncipe de Anhalt, ele foi
empregado por igrejas, especialmente a luterana de São Tomé, em
Leipzig, onde trabalhou nos últimos vinte anos de sua vida como
ministro da música. Apesar de ter escrito várias peças importantes da
música secular, para ele sua vocação estava a serviço de Deus e de sua
igreja. Seu amor às Escrituras e à Igreja traduziu-se numa fusão de fé,
música, teologia e liturgia. Para ele, compor uma música era um ato de fé
e tocá-la, um ato de adoração. Em suas grandes cantatas, oratórios,
paixões, composições para órgão e na Missa em Si Menor, ele pôs em
prática essa percepção de chamado divino para criar música apropriada
para o louvor a Deus. Ele colocava a história bíblica em forma de música
a revelar a presença de Deus à congregação e proporcionar um diálogo
com o Todo-Poderoso.

Nem a ortodoxia política e nem a religiosa contribuíram muito para


o progresso da Igreja na Europa. Ainda assim, a vitalidade cultural e
espiritual ficaram evidentes em várias partes e havia o potencial para uma
expressão mais vibrante da fé cristã. Esse foi o caso especialmente na
Grã-Bretanha e Alemanha, onde as energias espirituais puderam ser
canalizadas em vários movimentos protestantes e na França onde havia a
alternativa católica.
Capítulo 14 - O puritanismo e o Pietismo despertam a Igreja
Durante mais de um século depois que Lutero havia desafiado a
Igreja medieval, a Europa foi abalada por vários conflitos em torno da
questão religiosa. Foi só à partir da metade do século 17 que começou a
predominar o conceito de Estado moderno, com sua ênfase na soberania
territorial e posição central do monarca. Daí em diante as lutas eram entre
Estados e seus governantes e as preocupações espirituais ficaram em
segundo plano em relação ao bem do Estado e equilíbrio do poder. Os
monarcas desejavam controlar as igrejas dentro de seus domínios e a
unidade religiosa era vista como um elemento na força do Estado. Apesar
desses acontecimentos enfraquecerem a Igreja como instituição
espiritual, ainda havia algumas concentrações de vigor religioso na era da
ortodoxia e absolutismo.

Puritanismo inglês
As idéias calvinistas haviam criado raízes profundas na Grã-
Bretanha. O presbiterianismo escocês era uma fé cheia de vigor e líderes
como Andrew Melville (1545-1622) desafiaram os reis Stuart a
abandonar sua aliança com o sistema episcopal. No século 17 o
presbiterianismo havia se tornado, para todos os efeitos, a igreja nacional
da Escócia e teve imensa contribuição na formação do caráter desse povo
robusto do norte. Pelo fato de terem unido-se em alianças em 1638 e
1643 para resistir à imposição do governo e liturgia da igreja episcopal,
eles foram chamados de “cristãos da aliança”. Importantes teólogos como
George Gillespie (1613-49) e Samuel Rutherford (1600-61) rejeitaram o
exercício da autoridade real sobre as questões da Igreja.
Dentro da Igreja da Inglaterra também havia um forte elemento
reformado e seus representantes ficaram cada vez mais insatisfeitos com
as concessões do Acordo Elizabetano. Eles desejavam “purificar” a
igreja livrando-se dos “papistas” que ainda restavam e sua luta assumiu
cada vez mais um caráter político. Conforme foi mencionado
anteriormente, esses “puritanos” estavam intimamente envolvidos nos
conflitos entre os Stuarts e o Parlamento que acabaram levando à guerra
civil e ao regime ditatorial militar de Cromwell.
Em resumo, os puritanos queriam excluir do culto anglicano
qualquer coisa que não fosse ordenada pelas Escrituras. Eles enfatizavam
a importância da conversão, que significava uma transformação
fundamental de todo o ser e das atitudes e a expectativa de que o crente
viveria de forma reta e disciplinada. Os puritanos também acreditavam
que todo o trabalho estava dentro da esfera do Cristianismo e que
pastores e sacerdotes não deveriam ser colocados em posição superior
aos membros. Seu objetivo era que a Igreja da Inglaterra tivesse um
pastor em cada paróquia que proclamaria fielmente a Palavra de Deus,
administraria corretamente os sacramentos e disciplinaria os membros
imorais da igreja. A aplicação da doutrina protestante à vida do crente era
tarefa da Igreja e aqueles que não alcançassem os altos padrões de fé e
obediência à lei de Deus deviam ser excluídos da Igreja. Apesar de
muitos terem condenado e ridicularizado o estilo de vida que era a marca
distintiva do puritanismo, para indivíduos do século 17 tratava-se de uma
experiência gratificante. Estava ligada à alegria que encontravam na
adoração e numa vida a serviço de Deus. Os puritanos foram uma força
profundamente disruptiva na Igreja da Inglaterra que, sob o governo de
Elizabeth I havia sido constituída como uma hierarquia centralizada sob
o controle de bispos e uma instituição inclusiva. Os puritanos, por outro
lado, defendiam a idéia de igreja “reunida”, composta somente de fiéis
que estavam em aliança com Deus e uns com os outros. O puritanismo —
que havia começado como um movimento de reforma girando em torno
das formas de adoração, pregação bíblica e conversão — passou a
enfatizar cada vez mais a “independência” (liberdade do controle
episcopal) e a forma congregacional de governo dentro da Igreja.
No final do século 16 alguns puritanos estavam convencidos de que
a única maneira de completar a Reforma era separando-se da Igreja
Anglicana.
1647 1675 1698
É adotada a Confissão de Fé de Philipp Jacob Spener August Hermann
Westminster publica Pia Desideria Francke abre o
primeiro orfanato
em Halle
1600 1625 1650 1650 1675 1708 1722
Thomas Helwys Cornelius John John Joachin Alexander Mack N.L. von
estabelece a Jansen Owen Bunyan Neander funda a Igreja Zinzerdorf
primeira Igreja dos Irmãos funda a
Batista comunidade
Herrnhut
1600 1700 1800
1629 1650 1670 1681
Começa a John Pascal William Penn funda a
colonização Milton publica Pennsylvania
puritana em Pensées
Massachussets
1642-1649
Guerra Civil
Inglesa

Robert Brown (1550-1633) foi um dos primeiros separatistas. No


começo da década de 1580 ele formou sua própria congregação e
publicou tratados defendendo a reforma radical e o congregacionalismo
reunido e de aliança. Um outro grupo de separatistas foi liderado por
John Robinson (1572-1625). Na primeira década do novo século eles
reuniam-se em Scrooby Manor e então mudaram-se para a Holanda para
evitar perseguições. Muitos membros do grupo ficaram insatisfeitos com
a vida numa terra estrangeira e, sob a liderança de dois leigos — William
Bradford (1589-1657) e William Brewster (1567-1644), alguns deles
navegaram para o Novo Mundo no Mayflower em 1620, apesar de
Robinson ter ficado em Leiden. Esses “pais pioneiros” foram os
fundadores do congregacionalismo na América.
O mais duradouro dos movimentos puritanos separatistas dessa
época foi o dos batistas. Eles iam além dos outros reformadores da época
e chegavam a igualar o batismo infantil ao adultério espiritual e a insistir
no batismo dos crentes adultos. John Smyth (1570-1612) era um
sacerdote anglicano que voltou-se para o separatismo e em 1607, junto
com um companheiro leigo, Thomas Hewlys (1550-1616) liderou uma
congregação que foi para a Holanda. Em dois anos eles se reorganizaram
dentro daquilo que consideravam ser as linhas do Novo Testamento,
adotaram o batismo dos crentes e numa declaração retumbante de
liberdade religiosa condenaram qualquer regulamentação ou crença
ligada ao Estado. Em 1611 Hewlys levou alguns seguidores de volta para
Londres e fundou a primeira igreja batista em solo inglês. Apesar de
algumas tentativas de se estabelecer uma ligação firme entre os
menonitas e os primeiros batistas ingleses, a maioria dos historiadores
concorda que eles surgiram diretamente do puritanismo e separatismo
inglês.
O grupo mais antigo era conhecido como batista geral tendo em
vista que possuíam uma visão arminiana da expiação. No final da década
de 1630 surgiram os batistas particulares, assim chamados por aceitarem
o ensinamento calvinista de que a expiação limita-se aos eleitos. Cada
uma dessas divisões desenvolveu-se em separadamente em relação à
outra. A primeira estava mais disposta a aceitar a Igreja da Inglaterra
como sendo uma Igreja verdadeira. No final da década de 1640 os
batistas já praticavam regularmente o batismo por imersão e na metade
do século tinham começado a usar o nome “batista” para se distinguir.
Durante a Guerra Civil Inglesa muitos deles serviram com distinção ao
exército do Parlamento. Cromwell os favoreceu enquanto estava no
poder, mas depois da Restauração, eles foram classificados como
dissidentes e perderam seus privilégios. Por volta de 1639 foi fundada a
Primeira Igreja Batista na América do Norte, na colônia de Rhode Island.
Durante a tumultuada década de 1640 multiplicaram-se as seitas
puritanas radicais. Com a abolição do sistema episcopal na Igreja da
Inglaterra, a Assembléia de Teólogos de Westminster reuniu-se em 1643
e continuou com atividades regulares até 1649 a fim de elaborar uma
forma alternativa de igreja e orientar o Parlamento em suas decisões
religiosas. A assembléia recomendou o estabelecimento do
presbiterianismo e em 1647 adotou a famosa Confissão de Westminster
como uma declaração de fé de origem presbiteriana, mas então ocorreu
uma divisão dentro da assembléia entre os independentes
(congregacionalistas) e os presbiterianos. Depois que Cromwell tomou o
poder, ele seguiu o conselho do independente John Owen (1616-83) e foi
permitida uma situação moderadamente pluralista na qual as igrejas
podiam ser pastoreadas por presbiterianos, independentes ou batistas.
As seitas mais extremistas, porém, não eram toleradas durante o
governo de Cromwell. Os Niveladores liderados por John Liburne (1614-
57), um oficial do exército parlamentar, interpretavam a liberdade em
Cristo como se esta incluísse a democracia política. Defendiam uma
igualdade masculina geral perante a lei e liberdade religiosa (daí o nome
— todos no mesmo nível perante a lei e a religião).
Outras seitas dedicavam-se às especulações milenárias e esperavam
a segunda vinda de Cristo. A revolução puritana e deposição da
monarquia só colocou mais lenha no fogo da especulação profética. Os
Cavadores, de acordo com os ensinamentos de Gerrard Winstanley
(1609-52), acreditavam que a terra, por ser criação de Deus, era
propriedade de todas as pessoas. Em 1649 eles ocuparam as terras da
comunidade no monte St. George em Surrey, começaram a cultivar (daí o
nome) e formaram uma comuna, mas as autoridades os dispersaram.
Eram místicos religiosos que acreditavam na expiação universal e
estavam preparando o caminho para a volta de Cristo. Muitos marxistas
da atualidade consideram os Cavadores como precursores do
Comunismo.
O grupo apocalíptico mais radical era o dos Homens do Quinto
Monarca. Eles baseavam-se na passagem profética de Daniel 2 sobre os
quatro grande impérios que iriam governar o mundo e concluíam à partir
de Apocalipse que o reino de Deus (a “quinta monarquia”) seria no
milênio, o reinado de Cristo sobre a Terra durante mil anos. Apesar de
muitos na época especularem sobre a volta de Cristo, os Homens da
Quinta Monarquia acreditavam que ela era eminente e proclamavam que
os santos não deviam fazer quaisquer concessões à velha ordem. Ao
invés disso, deviam reunir-se em assembléias sob o controle de Jesus
Cristo e criar uma nova forma de governo para a Inglaterra. A criação
dos Protetorados de Cromwell frustrou as esperanças por um reino
milenar.
Enquanto a maior parte do puritanismo moveu-se no sentido de
sistematizar a doutrina e a vida da Igreja e alguns teólogos e pregadores
proeminentes como John Owen e Richard Baxter (1615-91) produziram
obras substanciais sobre os principais pontos do dogma e do viver em
retidão, outros foram atraídos pela idéia da experiência mística com
Cristo, a “luz interior”. Uma das figuras mais influentes do misticismo
foi Jakob Boheme (1575-1624), um sapateiro alemão que escreveu vários
livros muito lidos sobre o assuntos. Influenciado pelo pensamento
boemista, George Fox (1624-91) foi um jovem inglês puritano que em
1646, depois de uma longa e dolorosa luta, passou a crer na “Luz Interior
do Cristo Vivo”. Tornou-se um ministro itinerante, condenando a
controvérsia religiosa e pregando que a verdade podia ser encontrada na
voz de Cristo falando diretamente à alma — daí o nome “Amigos da
Verdade”, que foi logo associado ao seu movimento.
Seus seguidores contentavam-se em ser chamados apenas de
“Amigos” ou “quakers” (Estremecedores, N. da T.), supostamente um
apelido dado por um juiz em 1650 depois que Fox exortou o magistrado
para que ele “estremecesse diante da Palavra de Deus”. Usando da crença
na luz interior, eles ensinavam que o poder do Espírito Santo é dado a
todas as pessoas e não está limitado às Escrituras. Tendo em vista que
cada indivíduo recebia a luz interior, todos eram iguais na igreja. Em
suas “casas de reuniões” simples, eles adoravam sem ministros,
sacramentos ou liturgia, levando ao extremo a idéia puritana de remover
qualquer vestígio do Catolicismo. O clero e os cultos estruturados não
eram necessários pois o Espírito daria inspiração àqueles que ele quisesse
que falassem durante a reunião. A mensagem Quaker era de que as
pessoas só precisam arrepender-se a adorar a Deus interiormente, com o
coração.
Apesar da perseguição, o grupo espalhou-se rapidamente entre as
classes mais pobres, mas logo também entre os mais abastados (como por
exemplo William Penn, filho de um proeminente almirante e fundador de
uma colônia Quaker na América em 1681). Muitos convertidos vieram
dos batistas gerais. Os quakers distinguiam-se por seu compromisso com
o pacifismo, sua recusa em fazer juramentos, a informalidade no
tratamento entre si com o uso do primeiro nome e o uso de roupas
simples. Também ensinavam a igualdade de homens e mulheres e foram
alguns dos primeiros a protestar contra as condições das prisões e o
escravismo. A apresentação mais sistemática da teologia Quaker era a
Apology for the True Christian Divinity [Apologia da Verdadeira
Divindade Cristã] de Robert Barclay (1648-90).
Tanto os batistas quanto os quakers davam oportunidade especial
para as mulheres ministrarem. Na Holanda, Inglaterra e América do
Norte os batistas tinham clérigas e numa congregação de Londres às
vezes até mil pessoas freqüentavam os cultos especiais nos quais as
mulheres podiam pregar. Entre os “erros, heresias e blasfêmias”
condenados num tratado antibatista do século 17, um deles era o uso de
“pregadoras”. Na visão dos quakers todos eram iluminados pelo Espírito
Santo e, portanto, livres para levantar-se e falar. Mulheres quakers saíam
da Inglaterra em viagens missionárias para lugares distantes como a
América do Norte e a Turquia. Foi o caso de Elizabeth Hooten que tinha
mais de 60 anos de idade e viajou para a Nova Inglaterra na América,
onde foi espancada, presa e exilada na floresta.
As dificuldades que os puritanos passaram durante o governo dos
Stuarts mais para o início do século levaram muitos deles a emigrar para
a América. Um grupo de puritanos ricos que havia aberto um negócio
chamado Massachusetts Bay Company em 1629 decidiu mudar a
empresa toda para a América do Norte no ano seguinte. Em 1643 quando
o governo da Inglaterra havia passado para as mãos do Parlamento de
maioria puritana, mais de vinte mil pessoas tinha ido para a Nova
Inglaterra. Sob a liderança de pessoas competentes como John Winthrop
(1588-1649), o diretor da companhia, John Cotton (1584-1652), pastor
da igreja de Boston e Thomas Hooker (1586-1647) em Connecticut, a ala
calvinista da Igreja Congregacional criou raízes profundas no Novo
Mundo. Pedia-se que os membros fizessem publicamente uma
“declaração de sua experiência de uma obra da graça”, e isso garantia
que a Igreja estaria nas mãos de verdadeiros crentes. Somente membros
da Igreja podiam votar ou ter um cargo oficial no governo da colônia.
Tendo em vista que um conhecimento da leitura e escrita era essencial
para se compreender a Bíblia e ser cristãos maduros, toda vila tinha que
abrir escolas para ensinar as crianças. A fim de garantir um suprimento
confiável de ministros treinados, foi fundado em 1636 o Harvard
College. Uma imprensa gráfica foi trazida para a colônia e em 1640 foi
publicado o primeiro livro, uma versão métrica dos Salmos. Os puritanos
da Nova Inglaterra debateram-se com questões teológicas controversas
como a natureza do homem enquanto ser moral, a preparação da pessoa
para receber a graça de Deus, as qualificações para tornar-se membro da
Igreja e o relacionamento entre as diversas congregações.
Os puritanos não estavam interessados apenas em construir uma
sociedade mais justa, mas também contribuíram para o desenvolvimento
da literatura inglesa. Duas das figuras mais importantes do século 17
foram John Bunyan (1628-88) e John Milton (1608-74). Preso durante as
perseguições que se seguiram à Restauração em 1660, Bunyan sofreu no
cárcere durante vários anos. Lá, escreveu diversas obras, incluindo The
Pilgrim's Progress [O Peregrino], publicado em 1678 e que fez dele um
dos escritores religiosos mais influentes de todos os tempos. Com sua
imaginação vívida ele traçou a jornada de um homem chamado Christian
[Cristão] da Cidade da Destruição para a Cidade Celeste. A alegoria de
Bunyan era, basicamente, uma descrição de sua própria peregrinação
espiritual, que assemelhava-se à jornada espiritual de todo o cristão ao
longo da vida com uma jornada física cheia de perigos e aventuras.
As duas obras imortais de Milton, Paradise Lost [Paraíso Perdido]
(1667) e Paradise Regained [Paraíso Reconquistado] (1671) tratavam da
queda e da redenção humana. O primeiro refletia a tragédia pessoal que
ele havia experimentado — a morte de duas esposas e dois filhos, sua
cegueira e a perda de seu cargo no governo e de sua renda depois da
ascensão de Carlos II ao trono. Outra obra importante foi Aeropagítica
(1644), um marco na defesa da liberdade de imprensa. Nela, ele
protestava contra a rígida censura oficial da época e explicava porque
deveria se permitir que as pessoas publicassem suas opiniões livremente.

A efervescência espiritual católica


O relativo vigor do Catolicismo francês produziu grande
controvérsia. Uma longa luta entre a natureza do relacionamento da
igreja francesa com Roma (galicanismo) resolveu-se favorecendo a
manutenção de uma aliança firme com o papa e ao mesmo tempo
permitindo aos bispos franceses uma certa autonomia. Um problema mais
sério foi a questão do Jansenismo. Um teólogo acadêmico e bispo
flamengo chamado Cornelius Otto Jansen (1585-1638) declarou que as
cerimônias da Igreja obscureciam um fato crucial. A pessoa só pode ser
salva através do amor e da graça de Deus operando no coração e esse
amor é dado àqueles que Deus escolhe. A rejeição de Jansen do livre
arbítrio e sua ênfase na predestinação eram suspeitas de parecer-se
demais com o Calvinismo e inimigos do movimento acusaram-no e aos
seus seguidores de ser “calvinistas requentados”. Os jansenitas
responderam que não eram protestantes, mas ao mesmo tempo estavam
profundamente preocupados com a falta de disciplina moral de seus
companheiros católicos e com aquilo que consideravam uma ênfase
excessiva colocada sobre o livre arbítrio na doutrina católica. Em muitos
aspectos, esse foi um desafio semelhante àquele que o puritanismo
representava para a Igreja Anglicana.
O Jansenismo foi introduzido na França por Jean Duvergier, abade
de St. Syran que ganhou muitas pessoas para a causa, incluindo diversos
membros da influente família Arnaud. O centro do movimento era o
convento cisterciano de Port Royal, perto de Paris. A devoção e doutrina
jansenitas na verdade não se desviavam substancialmente das crenças
católicas mais aceitas. Eles provavelmente teriam sido tolerados se sua
mentalidade independente e ênfase moral de suas pregações não tivessem
levantado a oposição daqueles que ocupavam cargos de autoridade
espiritual na França. Eles não apenas pediam a pureza e um viver
santificado do clero mas também começaram a questionar o poder secular
da Igreja. A vida pessoal dos jansenitas era austera, enfatizava a
participação pública dos encontros religiosos, praticava formas simples
de adoração e dedicava-se ao estudo direto das Escrituras e dos Patriarcas
da Igreja. Por outro lado, voltaram-se contra os jesuítas que foram
acusados de ensinamentos “frouxos”, ou seja, que eles concediam a
absolvição de pecados com muita facilidade. De acordo com os
jansenitas essa indisciplina encorajava a imoralidade.
Com a propagação do movimento, muitos clérigos e leigos devotos
de Port Royal dedicaram-se a uma vida de estudos e contemplação
baseada nos princípios jansenitas. Uma dessas pessoas foi Blaise Pascal
(1623-62), um filósofo e cientista que, entre outras coisas, contribuiu
com as primeiras obras teóricas para o desenvolvimento do computador.
Certo dia, enquanto lia o evangelho de João, ele teve uma experiência
religiosa extraordinária, uma visão de Cristo. Ele ficou tão feliz que
resolveu dedicar-se completamente a esse Ser tão maravilhoso.
Abandonou, então, sua carreira de pesquisa científica, juntou-se a uma
comunidade jansenita e dedicou seus talentos literários ao apoio de causa
desse grupo.1
Em 1656 Pascal publicou as Cartas Provinciais, que não apenas
defendiam a devoção jansenita como principalmente atacavam todo o
sistema jesuítico de casuísmo. Ele afirmava que os jesuítas na verdade
estavam enfraquecendo a fé cristã ao ensinar uma moralidade baseada
naquilo que a pessoa faz ao invés daquilo que ela deve fazer. Essa
moralidade afirmava que os fins justificam os meios e que reservas
mentais podem ser usadas para qualificar a palavra da pessoa. Sua
brilhante sagacidade e fervor moral foram um golpe tão forte que os
jesuítas quiseram vingar-se contra o movimento que expunha de forma
tão penetrante as fraquezas deles.
Um crente profundamente devoto, Pascal tinha a intenção de
publicar um livro criado para ganhar outros para Cristo, mas sua morte
prematura não permitiu que ele o fizesse. Porém, suas anotações para
esse livro foram reunidas por seus colegas e publicadas em 1670 com o
título Pensées. Essa obra simples, mas profunda, defendia intelectual e
emocionalmente a existência de Deus e a realidade da fé. Porém, Pascal
acrescentou à luz de seu próprio encontro com Jesus Cristo: “o coração
tem razões que a própria Razão desconhece”. Ele argumentou que na
busca pela verdade a Razão era neutra e que as evidências sobre a
existência de Deus não podiam substituir a fé. A verdade é conhecida
não apenas pela Razão, mas através do coração. “Jamais seremos capazes
de crer com uma fé vigorosa e sem questionamentos a menos que Deus
toque nosso coração; e passaremos a crer assim que Ele o fizer.”2 A fim
de convencer os descrentes de que eles deveriam considerar seriamente o
Cristianismo, Pascal propôs sua famosa “aposta” na qual combinava uma
atitude cética com seus próprios conhecimentos matemáticos sobre o
cálculo de probabilidades. Seu raciocínio era o seguinte: Deus é uma boa
aposta. As pessoas devem correr o risco de acreditar que Deus existe e
agir de acordo com essa suposição. Se estiverem certas, elas tem tudo a
ganhar, se estiverem erradas, não tem nada a perder.
A controvérsia jansenista logo chamou a atenção do rei Luís XIV.
Ele ficou assustado com o número de pessoas influentes que
identificavam-se com ela e sentiu que sua ênfase num comportamento
moral rígido era uma crítica velada ao seu próprio estilo de vida. Durante
um bom tempo ele preocupou-se que ela poderia ser uma ameaça para
seu poder absoluto, enquanto seus jesuítas reclamavam do movimento e
insistiam para que ele pedisse ao papa que o denunciasse. Finalmente, em
1709 o rei tomou uma providência. Ele fechou o convento em Port Royal
e dois anos mais tarde mandou demolir a construção. Em 1713 o papa
Clemente XI aceitou condenar o jansenismo na bula Unigenitus, mas o
movimento continuou sendo uma importante força na França durante
décadas e foi livremente tolerado em Flandres.
Ao mesmo tempo, a Igreja romana teve que responder ao desafio do
Quietismo, um tipo de misticismo que rejeitava todas as formas ativas de
adoração. Quietistas consideravam inútil a atividade intelectual na esfera
espiritual (como a Teologia) e diziam que só Deus deve trabalhar na alma
enquanto a pessoa permanece completamente passiva. Sua idéia de
contemplação envolvia o abandono total do próprio ser, entregando-o à
vontade e operação de Deus na alma. Desse modo, as boas obras, orações
intercessoras, exame de consciência, confissão e até a meditação sobre a
humanidade sagrada de Cristo e sua obra na cruz eram irrelevantes.
O Quietismo foi inspirado por Miguel de Molinos (1628-96), um
sacerdote espanhol que morava na Itália e cuja obra Um Guia Espiritual
apresentava diretrizes com a finalidade de levar a pessoa a uma união
com Deus. Os jesuítas convenceram o papa de condenar essas idéias, mas
o Quietismo espalhou-se para a França onde seus seguidores enfatizavam
as orações passivas como sendo a principal atividade dos cristãos. O
movimento teve como líder Jeanne Marie de la Motte Guyon (1648-
1717) uma mulher de uma família importante que, depois de ficar viúva
quando ainda era jovem, passou sua vida dedicando-se a essa iniciativa
religiosa. Em sua famosa obra Método Breve e Muito Fácil de Oração
(1685), Madame Guyon ensinava a contemplação exclusiva de Deus
através da qual a alma perde o interesse em seu próprio destino. Mesmo a
verdade do evangelho tornava-se insignificante quando comparada à
“torrente de forças de Deus” às quais o indivíduo deveria entregar-se. Era
nesse ponto que se atingia a “perfeição” e não era necessário realizar
determinados atos, a não ser a caridade, mas simplesmente viver
descansando em Deus. A pessoa tornar-se-ia indiferente a todas as coisas
relativas ao corpo e à alma e rejeitaria idéias divergentes, mesmo aquelas
que estivessem relacionadas aos atributos de Cristo.
Suas idéias causaram grande controvérsia, ela foi presa várias vezes
e passou um tempo na cadeia. O bispo Bossuet acusou-a de ser
mentalmente desequilibrada e de ensinar um misticismo falso e ordenou
que ela parasse de pregar. Porém, François Fénelon (1651-1715),
arcebispo de Cambrai, defendeu Madame Guyon, insistindo que ela
havia descoberto um método de oração adequado para aproximar o
indivíduo de Deus. É discutível dizer se o seu misticismo emotivo era
paralelo àquele que surgiu na Alemanha na mesma época, mas os
movimentos de renovação estavam se desenvolvendo claramente em
ambas as confissões.
O Pietismo alemão
Na era da combinação sufocante de Igreja e Estado que havia se
instalado sobre a Alemanha do século 17, tornou-se cada vez mais
evidente que a ortodoxia doutrinária não era suficiente e que a nação
precisava desesperadamente de um reavivamento do fervor evangélico
que havia impulsionado inicialmente a Reforma protestante. O
movimento que surgiu na Igreja em resposta a essa situação foi chamado
pelos críticos de “Pietismo”. O termo era aceito por seus adeptos e mais
tarde pelos comentaristas que desejavam identificar essa nova visão
religiosa. O Pietismo era um moralismo centrado na Bíblia que
enfatizava a convicção pessoal do pecado, o arrependimento, a conversão
e uma nova existência com Cristo. O cristão perdoado manifestaria a
presença de Cristo em sua vida diária através da santidade pessoal e da
sensibilidade para com a necessidade de outros. A adoração era uma
experiência emotiva e fazia-se pouco esforço para se harmonizar a fé
com a Razão. A religião era altamente pessoal e precisava ser sentida
interiormente. Assim, o Pietismo foi uma reação ao intelectualismo, às
autoridades religiosas e aos credos formalistas.
A pessoa que mais se identificou com o Pietismo alemão foi Philipp
Jakob Spener (1635-1705). Nascido na Alsácia e formado em
Estrasburgo e outras universidades, de 1666 a 1685 foi ministro em
Frankfurt am Main e conquistou a reputação de ser um dos principais
pastores da Alemanha. Em 1686 ele foi nomeado capelão da corte da
Saxônia em Dresden e cinco anos depois aceitou um convite do
governante da Prússia para ministrar na prestigiosa igreja de São Nicolau
em Berlim, onde permaneceu até sua morte.
Na sua juventude, Spener havia sido profundamente influenciado
pelas várias formas de Pietismo luterano e reformado, especialmente
aquela apresentada por Jean de Labadie (1610-74). Ele passou algum
tempo com Labadie em Genebra e mais tarde publicou um de seus
tratados na Alemanha. Labadie era um pregador reformado que
misturava o Jansenismo com a devoção calvinista estruturando uma fé
mística fortemente experimental e transcendental que enfatizava a
separação e a reunião em pequenos grupos. Spener também passou a crer
que a experiência de conversão — o nascer de novo — era necessária
para a vida cristã. Ele pregou sobre esse assunto muitas vezes e, mais
para o fim de sua carreira, publicou uma grande coleção de sermões
sobre isso.
Spener argumentava que o nascer de novo era um ato de Deus e o
ponto de partida da fé no indivíduo. Depois da criação do novo homem
interior, seguia-se um processo de crescimento que, no final, levaria ao
ponto em que a existência toda seria um reflexo de Jesus Cristo. Ele usou
a analogia do compasso de um desenhista para ilustrar o que acontece. A
ação de renascimento em Deus constitui o centro, o ponto fixo enquanto
a outra haste — a fé, piedade, moral e padrões sociais do indivíduo —
traça o círculo ao redor, sendo este o limite de sua existência. Assim, o
ser pleno da pessoa nascida de novo era determinado pelo ponto central,
Jesus Cristo. A vitória sobre as tentações, pecado e até mesmo sobre o
próprio Satanás passava a ser possível. Através do processo contínuo de
santificação o crente iria tornar-se cada vez mais semelhante a Cristo.3
Isso levou à sua idéia de como a Igreja podia se melhorada. O
processo incluía o fortalecimento de um programa de educação religiosa
para crianças (o catecismo), o combate à ignorância e deficiência moral
entre os clérigos e o incentivo de uma maior envolvimento dos leigos nas
atividades. Para conseguir este último, ele introduziu a prática de realizar
reuniões particulares com pequenos grupos com o propósito de cultivar a
santidade e chamou-os de conventículos ou collegia pietatis, sendo que o
primeiro foi realizado em 1670. A reunião aconteceu em sua casa e havia
tanto homens quanto mulheres presentes — estando, porém, sentados
separados e só os homens tendo permissão de falar. Nesses grupos eles
discutiam o sermão do domingo anterior ou passagens de um livro
devocional. Essas reuniões eram planejadas de modo a aproximar os
participantes de Deus e de promover uma vida purificada, tinham o
objetivo de ser “pequenas igrejas dentro da Igreja” que ajudariam o
pastor em suas funções espirituais e elevariam a igreja de volta ao nível
das comunidades cristãs primitivas.
Spener apresentou seu conceito de maneira mais popular no libreto
Pia Desideria ou Desejo Profundo de uma Reforma Agradável a Deus
da Verdadeira Igreja Evangélica (1675), escrito originalmente como
prefácio de uma nova edição da obra Verdadeiro Cristianismo de Arndt.
A obra de Spener é considerada a declaração clássica do Pietismo.
Depois de comentar sobre a indisciplina prevalecente entre clérigos e
leigos, ele afirma a possibilidade de reforma e apresente seis propostas
concretas para alcançá-la:
1. Um leitura e estudo mais extensivo da Bíblia tanto no
âmbito público quanto no privado.
2. Uma ênfase renovada no sacerdócio de todos os crentes que
garantiria maior participação dos leigos.
3. O cultivo da vida espiritual através de gestos de amor ao
próximo e não apenas conhecimento.
4. Evitar discussões teológicas.
5. Um procedimento para treinar futuros ministros que
juntassem a piedade com os ensinamentos incluindo no currículo a
literatura devocional.
6. Incentivo de pregações com um conteúdo edificante e que
tivessem como objetivo o desenvolvimento do homem interior.
Em outras ocasiões, Spener lutou contra o problema da vida num
mundo pecaminoso ao afirmar que os cristãos devem sempre se
relacionar com a sociedade ao seu redor mas não absorver os seus
valores. Assim, ele negava muitos prazeres mundanos e insistia na
moderação em relação a coisas como o uso de bebidas alcoólicas, mas ao
mesmo tempo pedia aos cristãos que servissem aos outros de todas as
formas possíveis. Spener tinha grandes esperanças para a sociedade pois
acreditava firmemente na vinda do reino de Deus. Apesar de não ter
determinado uma data para a nova era, ele esperava a conversão dos
judeus, a destruição da Igreja Católica Romana e a gloriosa propagação
do governo de Cristo sobre toda a Terra. A Igreja devia ser um projeto
piloto do futuro reino ao encorajar e apoiar os reavivamentos e as
iniciativas filantrópicas.
Os ortodoxos reagiram com hostilidade ao desafio dos pietistas.
Acusaram os conventículos de Spener de serem elementos causadores de
divisão na igreja, afirmaram que a ênfase no viver espiritual deixava de
lado a importância das crenças doutrinárias corretas, que o papel dos
sacramentos eram minimizado e que a porta ficava aberta para a recepção
de revelações especiais (ou seja, extra-bíblicas). A Faculdade Teológica
da Universidade de Wittenberg acusou os pietistas de seres culpados de
duzentas e oitenta e quatro heresias e os críticos de Spener o taxaram,
entre outras coisas, de ser rosacruciano, milenarista, quaker e fanático.
Ficava claro que a instituição ortodoxa sentia-se ameaçada pelos pedidos
de mudança, deixando de lado o que era familiar, costumeiro e
confortável.
A segunda figura mais importante no desenvolvimento do Pietismo
foi August Hermann Francke (1663-1727). Através de seus trabalhos
práticos ele faz mais do que qualquer outra pessoa para espalhar o
Pietismo além das fronteiras da Alemanha. Quando ainda era aluno,
interessou-se profundamente pelos estudos bíblicos e, apesar de estar
apenas na casa dos 20 anos de idade, distinguiu-se como estudioso do
hebraico. Logo depois de ter conhecido Spener pessoalmente, Francke
teve uma profunda experiência de conversão. Quando expressou sua
nova visão da Bíblia e da Teologia em suas palestras acadêmicas na
Universidade de Leipzig, o resultado foi um reavivamento. Essas idéias
de reforma desencadearam grandes controvérsias tanto em Leipzig
quanto em seu breve pastorado em Erfurt. Então, em 1692 Francke
tornou-se pastor de uma congregação em dificuldades em Glaucha, um
subúrbio pobre de Halle e também foi nomeado professor de grego e
hebraico na recém-fundada Universidade de Halle. Em 1698 ele foi
promovido a professor de Teologia e fez muito no sentido de orientar o
corpo docente teológico na direção do Pietismo.
Sua reputação como líder espiritual cresceu rapidamente. Ele não
apenas era pastor, acadêmico e entusiasmado promotor das idéias
pietistas como também se preocupava em suprir as necessidades físicas
das pessoas, um assunto que ele considerava inseparável da conversão e
do reavivamento. O começo modesto do famoso empreendimento social
e de serviço de Francke foi uma escola que ele abriu em sua casa em
1695 para educar crianças pobres. Havia tantos alunos freqüentando que
ele logo teve que encontrar um outro lugar e então, em 1698 ele construi
o primeiro prédio do que viria a ser um enorme complexo logo do lado
de fora dos muros da cidade de Halle. Foi em grande parte graças aos
seus esforços que a tranqüila cidadezinha de no rio Saale tornou-se o
centro internacional do Pietismo. Dotado de uma energia inesgotável,
entusiasmo ilimitado, grande competência organizacional e um talento
para o que mais tarde ficou conhecido como relações públicas, em três
décadas as instituições de Francke haviam se transformado numa
pequena cidade que abrigava três mil pessoas.
Através de seu cargo na universidade Francke inspirou inúmeros
alunos a servir a Deus como pastores na Alemanha e missionários em
cantos tão remotos do mundo quanto a América e Índia e foi nessa
instituição que levantou os fundos para sustentá-los. Ele mantinham
muitos laços ecumênicos e foi através destes que suas idéias de reforma
foram levadas para muitos países. Ele chegou até a apoiar pesquisas
sobres línguas estrangeiras a fim de facilitar o estudo e a tradução da
Bíblia e promoveu a publicação e distribuição das Escrituras de sua base
em Halle.
Um dos principais fatores no crescimento do Pietismo foi a ampla
disseminação da literatura devocional e teológica puritana inglesa. Obras
dos principais puritanos foram traduzidas para o alemão, sendo que
algumas delas tiveram várias edições e esses livros circularam livremente
entre os clérigos devotos e leigos luteranos.
À medida em que o Pietismo espalhou-se pela Alemanha e
Escandinávia, um centro eminente do movimento desenvolveu-se em
Württemberg. A figura mais conhecida do Pietismo na Suábia foi Johann
Albrecht Bengel (1687-1752). Como aluno em Tübingen ele foi
influenciado por professores pietistas e estudou as obras de Spener e
Francke. Em 1713 ele chegou até a passar algum tempo em Halle. Ao
voltar, aceitou a nomeação para um cargo na Faculdade de Teologia em
Denkendorf, próximo a Esslingen, onde trabalhou durante vinte e oito
anos e distinguiu-se como estudioso da exegese bíblica e do criticismo
textual. Durante sua última década de vida ocupou altos cargos na igreja,
onde continuou a influenciar pastores na direção do Pietismo.
Uma das obras mais populares de Bengel foi Gnomon Novi
Testamenti, um Novo Testamento crítico baseado no Textus Receptus. O
livro consiste de anotações sobre cada versículo e é um modelo de estudo
filológico. Teve várias edições, foi traduzido para muitos línguas e ainda
hoje é amplamente utilizado. Bengel também dedicou-se a um estudo
intensivo do livro de Apocalipse e marcou o dia dezoito de junho de
1836 como a data de início do novo milênio. Em sua época, foi
fortemente criticado por causa desse tipo de especulação, mas suas idéias
escatológicas estavam de acordo com a tradição de Spener. Como
pietista, proclamou uma visão libertadora do reino de Deus. Ele foi direto
e claro na rejeição de idéias ingênuas de progresso aceitas por muitos
daquela era de racionalismo que havia se instalado seus últimos anos.
O Pietismo também foi bem recebido entre as igrejas reformadas no
oeste da Alemanha, especialmente em Rhineland. Theodor Untereyck
(1635-93), que havia estudado com os principais teólogos holandeses de
seu tempo e foi fortemente influenciado pela literatura pietista, dando
início ao primeiro conventículo reformado durante seu pastorado em
Mülheim/Ruhr em Bremem, o qual ele transformou em verdadeira fonte
de Pietismo Reformado. Dentre aqueles influenciados por Untereyck
estão o escritor de hinos Joachim Neander e o importante teólogo
Friedrich Adolf Lampe (1638-1729), que de modo criativo ligou a
teologia federal proeminente no Calvinismo holandês com o Pietismo
Reformado alemão.

Os irmãos e os morávios
O Pietismo foi um movimento de reforma dentro das igrejas oficiais
ou territoriais da Alemanha, mas dois importantes ramos separatistas
surgiram dele, a Igreja dos Irmãos e a Igreja Morávia, como são
conhecidos hoje em dia na América do Norte. Os Irmãos começaram em
1708 em Schwarzenau em Hesse, onde Alexander Mack (1679-1735)
batizou oito pessoas num rio da região. Mack havia sido influenciado
pelo Pietismo radical, especialmente aquele de Ernst Christoph
Hochmann von Hohenau (1670-1721) que tinha se convertido quando
era aluno em Halle. Era um forte místico que via a Igreja como sendo
primeiramente de caráter espiritual e minimizava a importância das
estruturas. Ao contrário de outros pietistas luteranos, Hochmann era um
separatista. Ele viajou pela Alemanha pregando o reavivamento e muitas
vezes sofreu perseguição e confinamento.
Como seu amigo, Mack havia concluído que o Novo Testamento
fazia necessário um grupo separado de crentes que não pertencessem à
Igreja do Estado. Ele assentou-se numa das poucas áreas da Alemanha
em que era permitido aos dissidentes religiosos praticar suas crenças, o
condado de Wittgenstein. O governante local havia adotado a política de
tolerância, em parte por causa de suas convicções pessoais mas
principalmente porque precisava de colonos. Os primeiros Irmãos
decidiram restaurar aquelas práticas que consideravam apostólicas. Estas
incluíam o batismo trino (ou triplo) por imersão (com o rosto colocado
primeiro na água para cada Pessoa da Trindade), o banquete de amor
(que consistia de uma refeição comunal, lava-pés e Ceia do Senhor), a
unção dos enfermos com óleo, a imposição de mãos para o serviço
cristão, o governo congregacional da igreja e oposição à guerra, aos
juramentos e ao uso de roupas enfeitadas ou “mundanas”.
O longo braço da intolerância do Sacro Império Romano acabou
alcançando aquela pequena região e os irmãos foram perseguidos,
mesmo que seus pregadores itinerantes estivessem fundando outras
igrejas em várias partes do oeste da Alemanha e da Suíça. Com a piora na
situação da Europa, eles consideraram a possibilidade de emigrar para a
América. William Penn havia incentivado os sectários a irem para sua
colônia e seus agentes distribuíam literatura na Alemanha apresentando-a
como um lugar atraente de se viver. Em 1719 o primeiro grupo de Irmãos
foi morar em Germantown, nas cercanias da Filadélfia e em 1729 o
próprio Mack liderou um grupo na travessia do Atlântico. Em 1735
quase todos os Irmãos haviam se mudado para o Novo Mundo. Aqueles
que ficaram para trás juntaram-se aos menonitas ou desapareceram. Os
imigrantes espalharam-se pela fronteira da Pensilvânia e com seu estilo
de vida distintivo os Irmãos — também conhecidos como Dunkards,
Dunkers ou Tunkers (do alemão “dunk” que significa “imergir”) —
tornaram-se uma parte permanente da vida religiosa americana.
Os morávios, liderados pelo conde Nikolaus Ludwig Zinzerdorf
(1700-60) foram uma outra seita de pietistas radicais. O conde havia
nascido em uma família nobre muito devota. Spener era seu padrinho e a
avó que o criou sabia ler a Bíblia nas línguas originais e entrava em
profundas discussões teológicas. O jovem aristocrata passou seis anos na
escola preparatória de Franke em Halle. Então, estudou Direito na
Universidade de Wittenberg (ele queria ter entrado para o ministério mas
sua família não permitiu) e depois da formatura em 1721, tornou-se um
oficial na corte do rei da Saxônia. Foi por essa época que recebeu uma
herança, a qual usou para comprar uma propriedade em Berthelsdorf,
menos de oitenta quilômetros de Dresden. Frustrado por não ter se
tornado um ministro, o jovem devoto sentiu que poderia servir a Deus ao
orientar a vida espiritual dos inquilinos que ocupavam suas terras.
Pouco tempo depois um grupo de refugiados protestantes cruzou a
fronteira que ficava ali perto e, a convite de Zinzerdorf, assentou-se em
sua propriedade. Eles eram remanescentes da antiga igreja morávia ou
hussita (conhecida como Unitas Fratrem ou Brüder-Unität) que haviam
sido expulsos de seus lares pela perseguição dos Habsburgos. Sob sua
liderança eles fundaram uma vila chamada Herrnhut (protegida pelo
Senhor), adotaram um estilo de vida comunitário modificado e
introduziram práticas que consideravam apostólicas como o rito de lavar
os pés, o ósculo da paz e o lançar a sorte para determinar a vontade de
Deus. Sua vida religiosa comunal incluía cultos diários, divisão em
grupos “corais” (baseados em idade, estado civil e gênero), educação
religiosa e um programa ativo de missões estrangeiras. Passavam a vida
diária em ocupações comuns e também dedicavam-se à música vocal e
instrumental. Aqueles que não eram casados eram separados por sexo,
mas as famílias viviam juntas e as crianças eram educadas em
organizações semelhantes a creches.
Em 1727 Zinzerdorf deixou o cargo que ocupava no governo para
dedicar-se à colônia em tempo integral. À medida em que seus
pensamentos teológicos amadureceram, ele foi gradativamente
afastando-se dos pietistas de Halle. Enfatizava a “religião do coração” —
uma experiência de fé profunda e mística — bem como a comunidade
cristã, o evangelismo mundial e a formação de relações ecumênicas.
Apesar de ter continuado a ser luterano, demonstrou uma tolerância
excepcional em relação a outros credos e chegou a traçar um plano para
unir as igrejas protestante, católica romana e ortodoxa oriental. Também
foi criticado por ter algumas crenças místicas consideradas extremas até
mesmo pelos pietistas. Em 1737 recebeu a ordenação luterana, mas, antes
disso, diversas circunstância forçaram Zinzerdorf e seus morávios a
formar uma organização eclesiástica separada. Durante onze anos ele
chegou a ser exilado de Herrnhut. Passou os últimos anos de sua vida
fazendo muitas viagens e dedicando-se à obra pastoral e missionária e
aos escritos.
Zinzerdorf havia criado uma igreja exemplar — ecumênica, livre,
missionária e voltada para o serviço — que se baseava na experiência em
comum da salvação, no amor mútuo e na ênfase de uma expressão
religiosa profunda e emocional. Esta última foi ilustrada especialmente
em seus hinos, orações, poesias e “lemas” ou Losungen. Até hoje muitas
pessoas em várias comunidades cristãs usam seleções de lemas diários
morávios como um exercício devocional.

A preocupação social do Pietismo


Talvez a característica mais importante do Pietismo fosse sua visão
de caráter exterior. Apesar de ser necessário voltar-se para dentro a fim
de criar um relacionamento direto com Deus através da fé em Jesus
Cristo e da Bíblia ser lida para o encorajamento, alerta e consolo pessoal,
ao mesmo tempo a salvação tinha que ser demonstrada através de uma
vida santificada. O perdão dos pecados e a criação de uma nova pessoa
estavam ligados entre si. Porém, a santidade não significava apenas
dedicar-se a exercícios “religiosos” como a contemplação, instrospecção,
oração, busca por visões ou profecias resultantes de êxtases, nem
tampouco uma separação total do mundo a fim de evitar as máculas da
alma que podem ser causadas por ele. Pelo contrário, era esperado que os
cristãos se relacionassem com a sociedade ao seu redor mas não fossem
dominados pelo mundo e seus valores. Eles entendiam plenamente o que
Jesus queria dizer quando ordenou que seus discípulos estivessem no
mundo mas não fossem do mundo. Sua força interior gerada pelo estar
em Cristo energizava os indivíduos à medida em que saiam para o mundo
a fim de realizar nele a obra de Deus.
Apesar dos pietistas praticarem algumas formas de aceticismo, eles
não acreditavam necessariamente que essas práticas tornavam a pessoa
mais santa. Pelo fato dos prazeres do mundo poderem ser um empecilho
para o serviço a Deus e aos outros seres humanos, era preciso dedicar-se
ao trabalho duro e à auto-disciplina. O tempo da pessoa era de grande
valor e devia ser usado no serviço a Deus e não desperdiçado em
atividades levianas.
O Pietismo estimulava o entusiasmo pela educação e pela
filantropia. Spener incentivou a fundação de uma oficina residencial em
Frankfurt que iria oferecer moradia e trabalho para pessoas necessitadas
e outras cidades na Alemanha fundaram instituições parecidas. Mais
importante ainda, foi a iniciativa de Franke mencionada anteriormente.
Sua visão de um mundo melhor incluía não apenas mudanças na igreja
mas também uma reorganização das estruturas humanas em favor de uma
sociedade mais justa. Seu trabalho em Halle tinha como finalidade ser
um modelo para outros.
Isto podia ser observado em sua instituições educacionais. Ele criou
quatro tipos de escolas em sua fundação. A mais avançada era o
Paedagogium, um internato no qual filhos de nobres eram treinados para
carreiras no exército e no serviço público. A segunda era a Escola de
Latim, uma escola preparatória acadêmica para os filhos de comerciantes
e profissionais liberais que iriam para a universidade a fim de tornarem-
se teólogos, advogados, médicos e homens de negócio. A terceira e maior
era a Escola Alemã que oferecia a educação básica para os filhos e filhas
de pessoas comuns. Por fim, havia uma escola primária para as crianças
muito pobres, especialmente os órfãos que viviam na fundação.
Franke empregava alunos universitários para lecionar, o que refletia
sua convicção de que eles deveriam não só estudar mas também viver a
fé cristã. Para melhorar a qualidade do ensino ele fundou um “Seminário
de Tutores” em 1699 como instituição de treinamento e em 1707 o
programa foi estendido, tornando-se um curso de cinco anos que incluía
dois anos de ciências humanas e três anos de ensino prático. Esse foi o
primeiro programa organizado para o treinamento de educadores na
Alemanha. A idéia por trás dele não era apenas treinar professores mas
também teólogos que propagariam seus conceitos pedagógicos por toda a
parte. A ligação entre a universidade e a escola de ensino básico foi uma
das principais inovações de Franke.
A educação também transpunha a distinção entre classes. Ao usar
alunos nas escolas, jovens capazes de famílias com recursos limitados
tinham a oportunidade de receber preparo a nível universitário. Além
disso, filhos de famílias de classe média podiam entrar para a elite do
Pedagogium, enquanto dos noventa e seis órfãos que viviam na fundação
em 1706, sessenta estavam matriculados na Escola de Latim. Franke
dava grande ênfase a se permitir que cada aluno se desenvolvesse de
acordo com suas habilidades. O currículo refletia o desejo pietista de que
a educação fosse relevante à vida. Os alunos não só aprendiam a ler e
escrever e estudavam as matérias acadêmicas regulares como também
fazia caminhadas pela mata, visitavam estúdios de arte e oficinas e era
esperado que aprendessem os fundamentos de algumas profissões.
O objetivo principal da educação pietista era o desenvolvimento do
caráter devoto. Os estudantes de Teologia que eram, eles próprios,
dedicados, polidos e pios serviam de modelo para os alunos. Esperava-se
que mais tarde eles também viriam a ser indivíduos equilibrados,
responsáveis, preocupados com outros, devotos, bondosos e honrados.
Franke não dependia da disciplina rigorosa praticada em outras escolas
de sua época pois pensava que as crianças deveriam ser tratadas com
compaixão e consideração. Ao mesmo tempo, ele defendia uma forte
supervisão e controle dos alunos e exigia que aprendessem modos
compatíveis com seu lugar na sociedade. Assim, uma escola não era
apenas o lugar onde se transmitia informações, era uma instituição que
transformava o caráter.
Quando de sua morte em 1727, essas escolas notáveis empregavam
183 professores e aproximadamente 250 alunos assistentes e tinham
matriculadas perto de 2300 crianças. Isso incentivou outros cidadãos e
príncipes a interessarem-se pelo apoio à educação, sendo o mais
importante deles o rei da Prússia, Frederico Guilherme I. Seu famoso
decreto de 1717 fundando escolas primárias mantidas pelo Estado foi
inspirado no modelo de Franke em Halle. Também foram criados
seminários sob a orientação pietista a fim de treinar professores para
essas escolas. Assim, foi sobre a fundação das escolas de estilos pietistas
que mais tarde se construiu o sistema educacional da Prússia.
A fundação de Franke era uma colmeia de outras atividade
filantrópicas além do orfanato e das escolas. Era um centro de
treinamento e envio de obreiros para missões estrangeiras (ver capítulo
16). Em 1689 foi criado um lar para viúvas onde elas podiam viver
confortavelmente com assistência médica e espiritual. Quando um
médico doou suas propriedades para a fundação em 1702, isso permitiu
que fosse criada uma ala médica e farmacêutica. Essa ala tinha seu
próprio hospital, que foi o primeiro na Alemanha onde os alunos
recebiam instrução clínica. Em 1699, foi aberta uma loja de livros que
mais tarde passou a ter filiais por todo o país. Uma imprensa passou a
funcionar em 1697 e quatro anos mais tarde foi aberto um parque gráfico
que produzia bíblias e literatura religiosa.
Karl Hildebrand, Barão de Canstein (1667-1719), mais tarde foi
uma figura crítica para o empreendimento. De uma família prussiana
proeminente, ele havia estudado Direito e se tornado oficial da corte em
Berlim. Lá recebeu a influência de Spener, que lhe apresentou o trabalho
de Franke. Um leigo profundamente devoto, ele comprometeu-se
totalmente com a fundação e fez todo o possível para promover seu
trabalho. Além de dedicar-se a angariação de fundos, ele mesmo doou
grandes somas e pessoalmente financiou metade dos custos do Collegiu
Orientale, uma equipe de estudiosos que Franke havia formado para
pesquisar línguas orientais e modernas a fim de expandir o conhecimento
bíblico. Tinha ainda uma filial da livraria em sua casa em Berlim e usava
seus contatos políticos para encontrar emprego para pastores, capelães
militares e tutores treinados em Halle.
Um dos patrocinadores de Franke sugeriu que a imprensa fosse
usada para publicar bíblias e que elas fossem distribuídas à partir de
Halle. Inspirado pela idéia, Canstein assumiu a liderança do
empreendimento e levantou o dinheiro necessário. Em 1710 as bíblias já
estavam sendo impressas e quase dois milhões e meio de cópias das
Escrituras foram produzidas ao longo das décadas seguintes. Depois de
sua morte, ela foi rebatizada de Sociedade Bíblica Canstein. Apesar de
no século 19 ela ter sido ultrapassada por outras sociedades bíblicas mais
jovens, a Sociedade Canstein foi a maior distribuidora das Escrituras na
Europa no século 18.

A literatura pietista
Os hinos pietistas e a literatura devocional tinham muito em comum
com o material produzido pelos ortodoxos. Uma grande influência foi o
escritor de hinos Joachim Neander (1650-80), um professor e pastor na
Igreja Reformada. Em 1674 ele começou a usar a idéia de Spener de
pequenos grupos que se encontravam para cultos na Escola Reformada
de Gramática em Düsseldorf e foi demitido por fazê-lo. Tornou-se então
pastor em Bremen. Em sua curta vida, escreveu mais de sessenta hinos,
incluindo o tão querido Lobe den Herren [Louvai a Deus].2 Mais
importante porém foi o fato de ele ser o primeiro músico reformado a
romper com a prática do Calvinismo de usar somente salmos métricos em
seus cultos. Nessa época, até mesmo hinos luteranos eram proibidos na
Igreja Reformada. Os calvinistas achavam que eles eram composições
humanas e que Deus só podia ser adorado corretamente através de hinos
divinamente inspirados, a saber, os Salmos.
Gerhard Tersteegen (1697-1769) foi outro pietista Reformado
importante. Ele havia sido aprendiz de um comerciante em
Mülheim/Ruhr e foi convertido em 1716. Apesar de suas origens serem
da Igreja Reformada, ele tornou-se cada vez mais um místico desligado
dessa igreja. Durante alguns anos ele trabalhou no ofício solitário de

2
Novo Cântico (Editora Cultura Cristã, 1991) nº 16.
fazer fitas de tecido e passava seu tempo livre como conselheiro
espiritual — escrevendo cartas, visitando pessoas e, às vezes, falando em
público. Mais tarde tornou-se tutor e assistente social na área médica mas
nunca se casou nem entrou para o ministério. Fortemente influenciado
pelo Quietismo, Tersteegen foi um dos místicos protestantes mais
profundos, como se pode ver em seus cem hinos.
Um importante escritor de hinos luterano foi o genro de Franke,
Johann A. Freylinghausen (1670-1739). Apesar de ser professor de
Teologia e Homilética e de estar envolvido com a administração da
fundação, ele também era conhecido pela obra Geistreiches Gesangbuch,
a mais importante coleção de hinos pietistas. A primeira edição foi
lançada em 1704 com 683 hinos. A edição de 1741 foi expandida para
1.582 hinos, dos quais ele havia composto quarenta e quatro. Estes
caracterizavam-se pela profundidade de sentimento e pela clara
compreensão das Escrituras.
Alguns dos primeiros hinos pietistas foram produzidos pelos grupos
de Württemberg, sendo Phillip Friedrich Hiller (1699-1769) o mais
notável autor. Aluno de Bengel e pastor, ele escreveu 1.073 hinos de
qualidade variável, que foram publicados no Geistliches Liederkästlein
(1762-67). O líder morávio Zinzerdorf também compôs mais de dois mil
hinos, alguns dos quais podem ser encontrados em hinários modernos
(Jesus, Teu Sangue e Retidão).
A obra devocional ortodoxa encontrou grande aceitação entre os
pietistas. O Verdadeiro Cristianismo de Arndt e outros escritos eram
bastante populares. Sermões de Spener e Franke foram publicados e
distribuídos em larga escala. A coleção devocional de Johann Friedrich
Starck (1680-1756), um pastor de Frankfurt am Main, Manual Diário do
Bem e do Mal (1727-31) ainda é usada nos dias de hoje. Em 1730 o
primeiro jornal devocional alemão, Notícias Espirituais, foi publicado
em Berleburg e entre 1726 e 1742 foram produzidos os setes volumes da
Bíblia de Berleburg. Tratava-se de uma tradução original acompanhada
de um comentário e uma exposição do texto nas linhas do Pietismo
radical. Tersteegen também escreveu muito material devocional,
incluindo a obra altamente mística Biografias Selecionadas dos Santos.

Mesmo enquanto o Pietismo parecia estar em ascensão nas igrejas


da Alemanha, já estava sendo enfraquecido pelas forças do racionalismo
reunidas sob o estandarte do Iluminismo. Na metade do século já estava
se retirando e mesmo bastiões como Halle foram afetados pela influência
do Iluminismo. Ainda assim, o impacto histórico do Pietismo foi enorme.
Um dos motivos foi pelo fato de ele ter libertado a fé protestante das
correntes da tradição e ter restaurado a primazia da decisão pessoal nas
questões espirituais, contribuindo assim para o crescimento da liberdade
humana. Em segundo lugar, ao contrário do misticismo espiritual, o
Pietismo impediu o crescimento de um “Cristianismo” vago fora da
Igreja e em oposição a ela. Ele evitava a religiosidade anti-institucional
que poderia ter sido dirigida contra a Igreja. Em terceiro lugar, o
Pietismo renovou e fortaleceu o ideal do Cristianismo primitivo como
sendo exemplar para o presente. Finalmente, com sua ênfase no lado
espiritual da vida, a singularidade da supremacia pessoal dos sentimentos
e emoções sobre o intelecto, o Pietismo ajudou a abrir caminho para o
romantismo alemão e a ascensão do nacionalismo. Dentro de duas
gerações, os sentimentos religiosos que haviam sido tão estimulados pelo
Pietismo seriam transferidos para uma entidade nova, ainda que quase
religiosa, o Volk [povo] e a nação.

Capítulo 15 - A Ciência e o Iluminismo desafiam a Igreja


Os séculos 16 e 17 testemunharam a ascensão de uma nova atitude
em relação à natureza que levou ao desenvolvimento da Ciência moderna
e a mudanças dramáticas na vida humana. Essa nova cosmovisão fez a
civilização ocidental assumir um caráter muito mais secular e permitiu ao
Ocidente ampliar seu domínio por todo o mundo através de tecnologia
naval e militar superior. Culminou com uma alteração radical do
pensamento que tornou-se a fundação da sociedade moderna. Tal
consciência da tecnologia e Ciência não surgiu de repente, do nada.
Tinha raízes profundas que vinham desde a Antigüidade e que
desenvolveram-se ao longo de toda a Idade Média.

A Ciência Medieval
A visão medieval de Ciência era uma síntese das idéias da Grécia
antiga com a teologia cristã. Os escolásticos ficaram profundamente
impressionados com a obra de Aristóteles pois esta explicava a natureza
de forma ordenada. Seguindo o grande pensador grego, eles acreditavam
que toda criatura, de acordo com seu grau de perfeição, tinha um lugar
determinado no universo. Uma “grande corrente de seres” vinha
descendo de Deus, passando pelos anjos, pelas estrelas, planetas, Sol e
Lua fisicamente perfeitos para os quatro elementos deste mundo — terra,
água, ar e fogo. Nesse sistema a Terra encontrava-se parada no centro de
nove esferas vazias que giravam em torno dela diariamente. Mais tarde
chamada por estudiosos de explicação “geocêntrica” do universo, a visão
medieval era de que sete “esferas” misteriosas, transparentes como cristal
rodeavam a Terra, sendo que cada uma continha um corpo celeste,
ordenados da seguinte forma pela ordem de distância — a Lua, Mercúrio,
Vênus, o Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Uma oitava esfera continha as
estrelas fixas e um anel externo chamado de “primeiro movedor” (em
latim, Primum mobile) que fazia todas as esferas se moverem ao redor da
Terra de modo preciso e regular a cada 24 horas.
Ao contrário do conceito moderno de universo, a distância dentro
desse sistema não era vasta e infinita. Um escritor medieval afirmou que
se uma pessoa pudesse viajar sessenta quilômetros por dia, chegaria à
esfera das estrelas fixas em oito mil anos. Apesar de Deus ser a fonte de
todo o poder e movimento, ainda assim, de acordo com a astrologia
popular, acreditava-se que as esferas podiam influenciar os
acontecimentos na Terra. Saturno, por exemplo, fazias as pessoas ficarem
tristes e causava desastres, Marte produzia guerras, Vênus encorajava o
amor e Júpiter trazia prosperidade. O Sol iluminava a Terra
constantemente e a noite era a sombra em forma de cone feita pela Terra.
Pelo fato do Sol se mover enquanto a Terra permanecia parada, pensava-
se que a noite era um longo dedo escuro que girava como os ponteiros de
um relógio. O espaço não era escuro nem silencioso e quando as pessoas
olhavam para o céu à noite, viam através da escuridão e não a escuridão
em si. A maior parte dos estudiosos do final da Idade Média tinha
chegado à conclusão de que a Terra não era plana, mas sim um globo,
mas supunha-se que havia criaturas estranhas em outras regiões pois o
contato com lugares fora da Europa era muito limitado.
A idéia medieval era muito diferente da cosmologia do século 20,
mas parecia encaixar-se nos fenômenos observados. Qualquer um podia
ver claramente o movimento dos corpos celestes traçando um caminho
circular ao redor da Terra. Além disso, o mundo parecia estar parado no
meio de todo esse movimento. Os cristãos transpuseram sua teologia para
dentro da Ciência e o maior de todos os poemas medievais, A Divina
Comédia, de Dante, descrevia o universo em termos geocêntricos,
colocando o céu acima da Terra e o inferno abaixo, no hemisfério sul. No
centro desse sistema estava a Terra, lar da humanidade, o ápice da
criação de Deus. Aqui foi o lugar para onde Cristo veio sofrer e morrer
pela redenção humana. Além disso, a estrutura hierárquica do universo
assegurava às pessoas que Deus estava no controle. A teoria geocêntrica
encontrou bases na ordem de Josué para que o Sol não se movesse (Josué
10.12,13), em Eclesiastes 1.5 e em várias declarações em Salmos.
1500 1600 1700 1800
1543 1550 1600 1650 1687 1735 1750 1778
Revolução Tycho Johann John Locke Isaac Voltaire fala em Benjamin Fundação
das Esferas Brahe Kepler Newton favor da liberdade Franklin dos
Celestes, publica de religião Iluminati
de Principia
Copérnico
1632 1740 1780 1781
O Diálogo sobre os Dois Sistemas Frederico II (o Grande) Joseph II, Kant e a
Principais do Mundo assume o poder na rei da Crítica da
Prússia Áustria Razão
Pura

Mesmo nos tempos antigos, porém, alguns astrônomos


questionavam o sistema geocêntrico simplista. No 2º século depois de
Cristo, Cláudio Ptolomeu explicou as variações no movimento dos
planetas sugerindo que a Terra não estava exatamente no centro do
universo. Também afirmou que os corpos celestes moviam-se em suas
esferas em pequenos círculos chamados de epiciclos, enquanto as esferas
em si moviam-se ao redor da Terra. Estudiosos muçulmanos traduziram a
obra de Ptolomeu e ela chegou às mãos dos cristãos durante o século 12.
Apesar das correções que Ptolomeu havia feito na visão geocêntrica de
Aristóteles, os escolásticos encontraram ainda outros erros no sistema e
no século 16 havia tornado-se aparente que era necessário fazer
modificações nas tabelas de movimentos planetários.
As tentativas de descrever os fenômenos astronômicos com mais
precisão levaram a uma revisão da cosmologia e ao início daquilo que os
historiadores chamam de “revolução científica”. O pioneiro dessa nova
cosmovisão, Nicolau Copérnico, nasceu na Polônia em 1473 e foi
educado na Itália onde estudou a Lei Canônica, Medicina e Matemática.
Depois de completar seu treinamento ele foi nomeado para fazer parte da
equipe da catedral no leste da Prússia onde dedicou seu tempo à
administração da igreja, um consultório médico e ao estudo de escritores
clássicos e da astronomia. Em 1515 o papa convidou estudiosos a
apresentarem propostas para uma revisão do calendário e no processo de
trabalho nesse projeto, os erros no sistema Aristotélico-Ptolomaico
chamaram a atenção. Esse problema fascinou Copérnico tendo em vista
que ele sabia da obra de Aristarco de Samos, um astrônomo grego no 3º
século antes de Cristo que havia sugerido que a Terra fazia rotações em
volta de seu próprio eixo e, juntamente com os outros planetas, girava ao
redor do Sol.
O pensador polonês decidiu fazer cálculos matemáticos baseados
na hipótese de um sistema heliocêntrico (centrado no Sol) para descobrir
se eles poderiam explicar o movimento planetário de modo mais preciso.
O modelo do universo que ele desenvolveu mantinha algumas idéias
medievais como epiciclos e o movimento circular perfeito dos corpos
celestes, mas distanciava-se das idéias cristãs tradicionais o suficiente
para perturbar a comunidade intelectual de sua época. Martinho Lutero
refletia a cosmovisão da maioria dos estudiosos do século 16 ao declarar
que “esse tolo deseja reverter toda a ciência da Astronomia; mas as
Escrituras Sagradas nos dizem que Josué ordenou que o Sol parasse e
não a Terra”. Esse tipo de observação não levava em consideração aquilo
que alguns intérpretes bíblicos modernos chamam de “princípio da
linguagem fenomenal (aparente)”.
Os cientistas também atacaram a nova teoria dizendo que se a Terra
girasse em volta de seu próprio eixo, haveria um vento constante.
Copérnico respondeu que isso não aconteceria porque a atmosfera
movia-se na mesmo velocidade e no mesmo sentido que a Terra. Eles
argumentaram ainda que se a Terra se movesse ao redor do Sol, as
estrelas mudariam de lugar no céu. Copérnico respondeu que a distância
percorrida pela Terra era tão pequena quando comparada à sua distância
das estrelas que a mudança de posição das estrelas não podia ser medida.
Porém, o maior problema da visão heliocêntrica era a necessidade de
uma nova explicação sobre gravidade e movimento. Levou um século de
discussões para que um brilhante cientista inglês chamado Isaac Newton
pudesse preencher essa lacuna através de sua lei da gravidade universal.
Apesar do comentário muito pouco entusiasmado da hipótese feito
por Lutero sobre a hipótese de Copérnico, sua obra Seis Livros sobre as
Revoluções das Esferas Celestes ironicamente foi publicado em
Wittenberg em 1543, algumas semanas antes da morte do autor. Seu
impacto sobre os primórdios da comunidade científica moderna foi
dramático e a reação dos estudiosos dividiu-se em três categorias.
Primeiro, havia aqueles que sustentavam a posição aristotélica
tradicional. Faziam pouco uso da Matemática e da experimentação e
continuavam a depender de argumentos lógicos derivados de algumas
premissas básicas.
Um segundo grupo, liderado por Tycho Brahe e Francis Bacon,
defendia o método indutivo de raciocínio. Acreditavam que os cientistas
devem formular hipóteses baseadas em fenômenos observados e
experimentos que outros poderiam repetir e que mais cedo ou mais tarde
esse trabalho os levaria à verdade.
O terceiro grupo que trabalhava com uma visão platônica da
natureza e da realidade, apoiava-se na abordagem dedutiva. Eles
acreditavam que os detalhes importantes do universo podiam ser
explicados através de cálculos matemáticos. Copérnico, Galileu e Kepler
faziam parte dessa categoria.
O astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601) diferia de
Copérnico ao argumentar que os cinco planetas giravam em torno do Sol,
que, por sua vez movia-se ao redor da Terra que se encontrava parada.
Seu colega muito mais importante, Johann Kepler (1571-1630), numa
tentativa de harmonizar os trabalhos de Copérnico e Brahe descobriu que
os planetas moviam-se em torno do Sol de forma elíptica ao invés de
circular. Também calculou com precisão a velocidade do movimento
planetário. No processo de formular essas idéias, mesmo sem ter a
intenção, Kepler ajudou a lançar as bases da Ciência moderna. Porém,
Kepler dificilmente seria considerado um cientista de acordo com a
definição atual do termo. Ele era um panteísta que afirmava que o
universo era uma expressão de divindade e que Deus se revelava
especialmente no Sol.
O mais importante é que Kepler deu início à busca por uma única
lei que pudesse ser expressada matematicamente e que explicasse o
movimento do universo. Antes que isso pudesse ser alcançado, era
necessária uma compreensão maior de movimento e essa foi a
contribuição de Galileu Galilei. Nascido em Pisa em 1564, lecionou
Matemática nas universidades de Pisa e Pádua e depois foi nomeado
estudioso residente na corte do duque da Toscania. Apesar de suas
muitas observações que serviram de apoio para a visão heliocêntrica ao
invés da idéia medieval sobre o universo, ele se manteve sempre
desconfiado quanto às provas não-matemáticas disso pois acreditava que
a Matemática era a chave essencial para o conhecimento.
Um dos primeiros cientistas a usar um telescópio, Galileu notou
quatro luas que giravam ao redor de Júpiter, viu manchas no Sol e a
superfícies irregular da Lua. Tendo em vista que a cosmologia
aristotélica não podia explicar essas irregularidades, ele concluiu que os
corpos celestes não eram feitos de uma substância pura e perfeitamente
cristalina pois o Sol tinha manchas escuras e a Lua e os planetas
pareciam ser feitos de matéria igual à da Terra. Além disso, estava
convencido de que, aquilo que fazia as coisas moverem-se na Terra
também devia ser responsável pelas revoluções dos outros corpos
celestes. Assim, ele via massa e movimento como conceitos gêmeos que
explicavam o universo.
Em sua obra, Diálogos Sobre os Dois Principais Sistemas de
Mundo: o Ptolomaico e o Coperniano (1632), Galileu apresentava essas
idéias sob a forma de um debate acerca dos méritos do novo conceito de
astronomia. Escrito em italiano, que era a linguagem do povo, em vez de
latim, a rejeição da visão medieval proposta pelo livro provocou a ira de
muitos católicos conservadores. Ao seus críticos ele disse: “A Bíblia fala
sobre como chegar ao céu e não sobre como os céus se movem”. Apesar
de sua amizade com alguns membros da cúria papal, ele foi colocado
diante da Inquisição e forçado a negar suas idéias científicas. Seus livros
foram proibidos e ele foi colocado sob prisão domiciliar perto de
Florença onde morreu em 1642.
Ao contrário do tratamento reservado para Galileu, Isaac Newton, o
estudioso que desenvolveu os fundamentos da visão moderna de
universo, teve liberdade e foi amplamente elogiado. Nascido em 1642 e
educado na Universidade de Cambridge onde tornou-se professor de
Matemática aos 27 anos de idade, Newton mais tarde foi presidente da
prestigiosa Sociedade Real de Londres para o Progresso do
Conhecimento Natural durante vinte e cinco anos.
Por ser não apenas um gênio mas também uma pessoa muito
excêntrica, é difícil fazer-se uma avaliação de Newton. Por vezes ele
colocava de lado seus estudos por um longo tempo, mas quando voltava
a eles podia enterrar-se em seu trabalho. Diz-se que ele andava em
direção ao refeitório da universidade, distraía-se e voltava para o trabalho
sem perceber que não havia comido. Muitas vezes, era forçado a concluir
certas tarefas quando era pressionado por seus amigos ou quando seus
rivais afirmavam ter resolvido um problema científico antes dele. Certa
vez, seu amigo chegado, Edmund Halley, descobriu para seu espanto que
Newton havia resolvidos alguns cálculos precisos para um problema, mas
então os havia perdido enquanto outros tentavam fazer aquilo que ele
tinha esquecido. Ele também gastava tempo com especulações
fantásticas, usando a numerologia bíblica para calcular o fim do mundo.
Fica a pergunta de como ele era capaz de combinar imaginação e
precisão na medida certa a fim de produzir um trabalho tão influente.
Ainda assim, essa pessoa engenhosa e cheia de orgulho criou um modelo
do universo físico que foi aceito por gerações. Sua cosmovisão continua
sendo a verdade científica para muitos ainda hoje e é considerada exata
em todas as esferas da natureza exceto a nível atômico e em velocidades
próximas à da luz.
Em 1665-66, Newton foi forçado a deixar Cambridge por causa de
uma epidemia de peste bubônica e buscar refúgio em sua casa no campo.
Lá, ele criou uma série de cálculos matemáticos que uniram os conceitos
de movimento planetário elaborados por Kepler e os conceitos sobre o
movimento da Terra descobertos por Galileu. Ele demonstrou que uma
mesma força levava os planetas ficarem em suas órbitas celestes e fazia
com que as coisas caíssem na Terra. Essa “lei da gravidade” estendia-se
para todas as partes do universo. Sua prova para essa idéia baseava-se no
fato da Lua mover-se em direção à Terra na mesma proporção de
velocidade com a qual um objeto caía dentro da atmosfera da Terra, 9,8
metros por segundo. Pelo fato dos números necessários para sustentar
essa teoria não estarem disponíveis naquela época, suas descobertas não
foram publicadas até 1687 quando apareceram na extensa obra (em
latim) Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. O Principia como o
livro é normalmente chamado, explicava a lei universal da gravidade e
definia a força centrífuga, cinética e inércia em termos matemáticos.
Também mostrava que a atração da Lua e do Sol era a causa das marés,
que a Terra e outros planetas eram achatados nos pólos e que o caminho
de cometas podia ser determinado pois era influenciado pelo Sol.
Além de ser o auge da revolução cosmológica, o estudo de Newton
definiu a metodologia para a Ciência moderna. Sua abordagem continha
três princípios básicos. O primeiro era a insistência na experimentação.
Newton desconfiava de idéias gerais e achava que, sempre que possível,
elas deviam ser testadas pela observação experimental. Em segundo
lugar, acreditava na lei da parcimônia ou simplicidade. Esta afirma que
quando há várias explicações válidas para um fenômeno, deve-se dar
preferência à mais simples. Em terceiro lugar ele baseava-se no uso
extensivo da Matemática. A lei universal da gravidade foi proposta como
uma fórmula matemática: o produto das massas e o quadrado da distância
entre elas. Foi essa combinação de observação experimental e
Matemática que constituiu o fundamento da Ciência moderna e, no início
do século 18, a visão newtoniana de mundo já era aceita pelos europeus
mais cultos. Alexander Pope falou em nome de muitos outros além dos
ingleses quando escreveu:
A Natureza e suas Leis escondiam-se na escuridão:
Deus disse. “Haja Newton!” e tudo se fez luz.2

Reações contra a Ciência


Apesar de elogios profusos, as idéias medievais não abriram
passagem educadamente para que entrasse em cena a nova ciência.
Aqueles que defendiam Aristóteles agiram de maneira tacanha e
beligerante a indivíduos como Galileu que tentaram apresentar suas
idéias para um público mais amplo. A natureza chocante da teoria
heliocêntrica para as pessoas dos séculos 16 e 17 poderia ser
devidamente comparada com as controvérsias geradas pelos
ensinamentos evolucionários de Darwin em tempos mais recentes.
Além de Galileu, um outro mártir em favor da causa da
transformação científica foi Giordano Bruno. Um dominicano italiano
que foi forçado a deixar sua ordem em 1576 por alegações de heresia, ele
viajou pela Europa dando palestras, lecionando e escrevendo. Um gênio
versátil, ele dominava a Filosofia, Teologia e a Ciência Natural. Bruno
foi influenciado pelos escritos de Hermes Trismegistos, o qual
acreditava-se que fosse um acadêmico misterioso de tempos antes da
vinda de Cristo e que havia inspirado Platão. A tradição hermética que
incentivava o uso da mágica e a adoração ao Sol, levou Bruno a rejeitar a
idéias aristotélica e apoiar a teoria heliocêntrica. Mas ele foi além dos
aspectos conservadores da visão de Copérnico e sugeriu que o universo
era infinito e consistia de incontáveis mundos semelhantes ao sistema
solar. Afirmou ainda que a Bíblia deveria ser seguida por seus
ensinamentos morais e não como um livro didático de Astronomia.
Em 1591 Bruno foi convidado a ir para Veneza por um dos
governantes da cidade que desejava aprender com ele um método de
memorização. Decepcionado com seus estudos, ele denunciou Bruno à
Inquisição. Em 1600 ele foi condenado à fogueira por causa de seus
ensinamentos heréticos, mas antes de morrer, Bruno dirigiu-se a seus
juízes com as comoventes palavras que tem inspirado os amantes da
liberdade intelectual desde então: “Talvez o seu medo ao julgar-me seja
maior que o meu ao receber o julgamento”.
O clima de intolerância e perseguição que veio com a revolução
científica afetou não apenas os estudiosos mas também aquelas pessoas
que eram diferentes dentro da sociedade e que eram chamadas
popularmente de “bruxas”. O período entre 1600 e 1680 marcou o auge
do pânico europeu em relação às bruxas e milhares de homens e
mulheres infelizes foram vítimas da ansiedade de seus vizinhos. Era
comum acreditar-se que essas pessoas faziam pactos secretos com o
diabo e freqüentavam reuniões aos sábados. Dizia-se que a viagem até
essas reuniões era sobrenatural e feita com uma vassoura ou um bode
alado. Aqueles que participavam supostamente adoravam o diabo que
aparecia como um homem de barba preta, um sapo ou um bode. Depois
de ouvir músicas estranhas e participar de atos de homenagem
repulsivos, as bruxas e bruxos tomavam parte em orgias sexuais com
Satã e seus servos. Muitas vezes eram feitos banquetes com crianças
assadas, ensopado de morcego ou corpos de mortos desenterrados.
Quando não estavam nessas assembléias, as bruxas supostamente
cuidavam de espíritos que manifestavam-se em morcegos, sapos ou
toupeiras. Também causavam a esterilidade de recém-casados, doenças e
tempestades.
Usava-se de tortura para extrair provas de pessoas que eram
acusadas de ser bruxas. Apesar da dor terrível fazer uma pessoa admitir
quase qualquer coisa, havia alguns indivíduos que sem dúvida
acreditavam que eram bruxos. A maioria dos que confessavam era
cruelmente executada.
Estudiosos da Era da Ortodoxia no século 17 com freqüência
incluíam discussões sobre bruxaria em suas obras e alguns até
publicaram enciclopédias sobre o assunto. Essas obras afirmavam que
todos os detalhes sobre bruxaria eram verdadeiros e que todas as
objeções à perseguição desses emissários de Satanás deviam ser
silenciadas. A maior parte dos escritores acreditava que o número de
bruxas estava aumentando e que a razão para essa situação lamentável
era a “leniência” dos juízes. Porém, um outro fator que contribuiu para a
renovação da ênfase na bruxaria foi a luta entre católicos e protestantes
na Europa, ainda assim, a culpa por essa terrível perseguição deve ser
colocada primeiramente sobre a confusão resultante de uma transição
entre a cosmologia medieval e a cosmovisão moderna e científica.
Entre 1630 e 1700 os europeus mais esclarecidos passaram a aceitar
o ponto de vista heliocêntrico e as descrições matemáticas e mecânicas
do universo conforme as explicações de Newton. Assim, uma ênfase
sobre leis uniformes e racionalismo levou inevitavelmente ao declínio
das crenças em bruxaria. Seres perverso em união com o diabo não
podiam mais existir num mundo governado pelas leis de Newton. Essa
mudança de pensamento foi demonstrada muito bem na reação do juiz
em um dos últimos julgamentos de bruxaria da Inglaterra. Ele encerrou o
caso com o comentário sarcástico de que não havia nenhuma lei que
impedia de se fazer o trajeto entre Londres a Oxford no cabo de uma
vassoura.

O Iluminismo
A nova visão científica do mundo no século 17 caracterizava-se
pela certeza da habilidade da Razão e da experiência humanas de
resolver todos os problemas. Impressionados com as realizações dos
cientistas naturais ao descobrir as leis do universo físico, os homens do
esclarecido século 18 acreditavam que podiam encontrar leis que
governavam a sociedade e o comportamento humano. Ao tentar colocar
isso em prática, de seu método do uso da Matemática eles passaram para
uma abordagem mais literária.
O novo movimento de transformações sociais teve como centro a
França, onde havia um grupo de escritores radicais chamados de
philosophes ou filósofos. É preferível usar o termo francês para fazer
referência a esses indivíduos pois eles não dedicavam-se à especulação
filosófica em si, mas sim eram propagandistas e popularizadores. Não
estavam tão interessados em expandir as fronteiras do conhecimento
como estavam em reconstruir a sociedade de acordo com leis naturais e
com a Razão. Para isso, os philosophes escreviam peças, histórias,
romances, tratados políticos, obras de crítica literária e estudos
científicos. Tendo como alvo um público mais amplo, usavam a
linguagem popular ao invés do latim e desenvolveram um estilo
interessante e claro de se escrever. Muitos deles ganhavam o suficiente
com a venda de seus livros para viver confortavelmente, enquanto outros
tinham meios próprios ou eram sustentados por patronos abastados.
Começando na França, o Iluminismo espalhou-se para outras partes
da Europa — Alemanha, Áustria, Rússia, Grã-Bretanha, Itália e Espanha
— e até mesmo para as colônias na América, onde indivíduos
influenciados pelos philosophes foram os principais líderes da
Revolução. O porta-voz mais famoso do novo movimento social foi
François-Marie Arouet (1694-1778), que usava o nome de Voltaire.
Nascido numa família de classe média e educado numa escola jesuíta,
estudou Direito durante algum tempo mas depois abandonou esse projeto
para seguir uma carreira literária. Formou sua reputação como escritor de
tragédias clássicas e ao longo de toda sua vida escreveu para o teatro.
Voltaire foi um dos primeiros autores de best-sellers. Durante um
período de sete anos foram vendidas um milhão e meio de cópias dos
seus livros. Ele escreveu sua primeira obra aos 17 anos de idade e,
quando de sua morte, seus escritos publicados tomavam mais de setenta
volumes.
Quando jovem, Voltaire ficou preso na infame Bastilha, em Paris
por insultar um nobre e foi forçado ao exílio na Inglaterra. Ele gostou da
liberdade que tinha lá e entusiasmou-se com as idéias de Newton e John
Locke. Dedicou-se à tarefa de esclarecer sua terra natal bem como o resto
do mundo ao aplicar seus ensinamentos às antigas sociedades
aristotélicas. Ao voltar para França, publicou Cartas Filosóficas sobre os
Ingleses (1734), obra na qual ele comparava a liberdade de expressão e
religião, igualdade perante a lei e impostos iguais — que ele acreditava
existirem na Inglaterra — com as injustiças e desigualdades da França. O
governo obrigou-o a fugir de sua terra natal mais uma vez e dessa vez ele
foi morar logo depois da fronteira, na Suíça. Apesar de sua amizade com
aristocratas, príncipes e reis, ele nunca abandonou a crença na justiça
social para todas as pessoas, que se baseava no princípio da liberdade
pessoal, igualdade legal e liberdade de pensamento e expressão.
Outro filósofo importante, Denis Diderot (1713-84), divulgou a
nova abordagem científica através de uma extensa obra conhecida como
Encyclopédie. A série de vinte e oito volumes foi escrita durante um
período de dois anos (1751-52) e sete volumes complementares foram
elaborados alguns anos depois. Entre os contribuidores estavam quase
todas as principais figuras do Iluminismo francês. Mais do que uma
simples coleção de fatos, os artigos explicavam que as pessoas só podiam
se desenvolver se substituíssem a fé pela Razão como princípio
norteador. Tendo em vista que suas idéias eram uma ameaça contra a
autoridade vigente, os primeiros volumes sofreram repressão. Porém,
quando foi lançado o último livro da série, a Encyclopédie tinha vencido
a intolerância e podia ser distribuída livremente. Uma característica
singular da obra prima de Diderot foi a inclusão de três mil páginas de
ilustrações que eram especialmente úteis para médicos, cientistas e
artesãos. Os contribuidores criticavam constantemente as idéias e
instituições existentes. O artigo sobre a deusa Juno, por exemplo,
ridicularizava a adoração à Virgem Maria; o item sobre sal demonstrava
a injustiça dos impostos regressivos sobre os pobres e um outro artigo,
este sobre a cidade suíça de Genebra, condenava o governo da França.

Deísmo
A cumplicidade da Igreja Católica Romana nas injustiças sociais da
época levou a maioria dos philosophes a adotar uma nova perspectiva
religiosa conhecida como “deísmo”. Expressada pela primeira vez por
um grupo de escritores ingleses começando com Lord Herbert de
Cherbury na primeira metade do século 17, essa visão rejeitava a crença
na revelação especial. Esta última havia, supostamente, corrompido a
pureza da religião natural ao introduzir conflitos e superstição no lugar
de acordos e da verdade. Lord Herbert declarou que as seguintes idéias
eram comuns a todas as religiões: (1) a existência de um Ser Supremo,
(2) a necessidade ou obrigação de adorar a esse Deus, (3) a importância
da virtude e da devoção como parte da adoração, (4) a necessidade de
arrependimento dos pecados e (5) a recompensa ou castigo divinos tanto
na vida presente quanto na futura. Aqueles que se baseiam na Razão
reconhecem a validade desses pontos. Esses eram os ensinamentos da
verdadeira Igreja que existia antes do povo ser iludido pelos sacerdotes e
profetas das várias religiões. Os ritos e doutrinas da religião institucional
foram a origem das perseguições mais terríveis da História. O deísmo
também negava qualquer intervenção direta de Deus sobre a ordem
natural. Sua função era de “primeira causa”, o relojoeiro que havia criado
o mundo para funcionar como um relógio. Então ele deu corda na sua
criação e de acordo com seu plano ela agora funciona tranqüilamente
sem a necessidade de mais envolvimento divino.
As idéias de Lord Herbert encontraram na Europa do século 18 um
ambiente propício para se desenvolver pois a expansão geográfica havia
ampliado o conhecimento sobre outras fés. Durante a Idade Média, o
Cristianismo parecia ser o centro da História, mas quando os navegantes,
comerciantes e missionários voltaram para a Europa com histórias sobre
milhões de pessoas na China, Índia e em outras partes que jamais tinham
ouvido falar de Cristo, alguns começaram a duvidar sobre as afirmações
de exclusividade do Cristianismo. A adoração ao “Deus da natureza” e o
uso da “teologia natural” (conhecimento do divino que não é derivado de
uma revelação como, por exemplo, as Escrituras) pareciam oferecer uma
solução para o problema.
A história natural havia tido uma longa e respeitável história dentro
da Igreja, mas algo aconteceu com ela por causa da revolução científica.
A revolução havia desenvolvido uma visão mecânica e matemática do
universo dentro da qual as abstrações dos matemáticos eram cada vez
mais consideradas verdade enquanto a cosmovisão da Bíblia ia perdendo
sua credibilidade. Quando comparados com a regularidade mecânica da
nova ciência, os milagres relatados na Bíblia pareciam fantásticos e
irracionais. O tempo e o espaço haviam se expandido para dimensões tão
vastas que o relato cristão da criação até o julgamento, concentrado numa
pequena entidade no universo, parecia pequeno e irrelevante. O deísmo
oferecia uma forma de ser religioso e ao mesmo tempo estar em sintonia
com a nova perspectiva científica.
Durante a primeira metade do século 18, deístas e teólogos
ortodoxos da Inglaterra discutiram os milagres e as profecias sobre Cristo
encontradas no Antigo Testamento. Alguns deístas como o Terceiro
Conde de Shaftesbury, declaravam que todas as descrições de Deus que
retratavam seus ciúmes e índole vingativa eram blasfêmias e que Ele era
um Ser gentil, amoroso e benevolente que desejava que a humanidade
também se comportasse com bondade e tolerância. Mas os deístas saíram
perdendo na luta contra os defensores do Cristianismo que
demonstravam uma vitalidade em sua fé que não era encontrada na
religião natural desprovida de revelação. O deísmo mostrou ser um
conjunto de idéias e não uma fé viva. Se alguém procurasse provas
racionais para a religião, acabaria tornando-se um cético. A validade da
fé cristã estava numa experiência interior com Deus e não na existência
de uma primeira causa vaga e impessoal. Assim, na Inglaterra a escolha
ficava entre o Cristianismo ou o ceticismo. Aqueles que continuavam
com o Cristianismo tinham a tendência de juntar-se ao reavivamento
wesleyano ou evangélico enquanto aqueles que optavam pelo ceticismo
abandonavam completamente a religião e dedicavam sua atenção a outras
atividades que consideravam mais produtivas.
Apesar do debate ter se encerrado na Inglaterra, ainda era disputado
com grande vigor no continente. Na França, o principal porta-voz do
racionalismo foi Voltaire. Ele era mais competente que os deístas
ingleses e o Catolicismo francês tinha poucos defensores de habilidade.
Voltaire acreditava ter identificado os problemas da Igreja como sendo a
exploração por parte dos sacerdotes, superstição, intolerância e
perseguição. Ele defendia a tolerância para todas as religiões exceto para
a Igreja institucional, a qual ele denunciava com frases de efeito como
“esmagar essa coisa infame”. Ele esperava “ver o último rei ser
estrangulado com as entranhas do último padre”. Voltaire era inimigo da
religião de revelação, argumentando que a Bíblia estava repleta de
absurdos, contradições, erros e imoralidade e retratava um Deus que não
era digno do título de Ser Supremo. Também defendia a religião natural,
na qual as virtudes morais do amor e da bondade iriam resolver os males
sociais causadas pelas crenças equivocadas.
Os defensores do deísmo também podiam ser encontrados na
Alemanha. Hermann Samuel Reimarus (1694-1768), um estudioso
dedicado ao antigo Oriente Próximo e que vivia em Hamburg, foi um dos
“fundadores” do criticismo bíblico, afirmando que o elemento
miraculoso havia sido introduzido nas Escrituras por causa do fanatismo
e do engano dos escritores bíblicos. Ele explicava as origens do
Cristianismo pela perspectiva naturalista. Para ele, o grande milagre da
revelação era o mundo e na natureza podia-se encontrar Deus, a
moralidade e a imoralidade.
Gothold Ephraim Lessing (1729-81), o conhecido dramaturgo e
filho de um pastor da Saxônia, havia sido educado na ortodoxia luterana,
a qual tinha trocado pelo Iluminismo. Publicou um das obras de
Reimarus e abriu a porta para o estudo crítico da Bíblia. Lessing insistia
que a vida e a personalidade de Jesus talvez fossem diferentes daquilo
que era retratado nos evangelhos e nos subseqüentes ensinamentos da
Igreja. Também questionava se uma crença autêntica podia estar ligada a
acontecimentos históricos e negava que a revelação tivesse um lugar na
História. Se a verdade religiosa era autêntica, tinha que ser assim
universalmente e também ser uma ordem diferente daquela dos
acontecimentos históricos.
Em duas importantes obras, Natã o Sábio (1779) e A Educação da
Raça Humana (1780) Lessing pedia aos seus leitores que adotassem uma
religião “natural” ou “positiva”, uma que reconhecesse Deus, formasse
conceitos nobres sobre Ele e orientasse os indivíduos a ter esses
conceitos em mente em tudo o que fizessem e pensassem. A “verdade
interior” da religião não podia ser derivada de uma tradição escrita, mas
era possível ser sentida e experimentada. Porém, Lessing dizia, não havia
um Senhor dentro da História que daria às pessoas a verdade definitiva.
Para ele as diretrizes da Bíblia eram infantis e as da Razão eram maduras.
O racionalismo alemão não ficou isento de reações. O principal
filósofo do século 18, Immanuel Kant (1724-1804) — um professor em
Königberg, no leste da Prússia, que havia sido educado como pietista —
procurou combinar o racionalismo com o Cristianismo ortodoxo. Em
obras como Crítica da Razão Pura (1781) ele afirmava que a Ciência e a
Razão não ofereciam provas da existência de Deus, da lei moral ou da
imortalidade. A Ciência descrevia o mundo mas não podia oferecer um
guia para o viver ético. Experiências humanas como a percepção da
beleza, a consciência e o sentimento religioso eram reais mesmo que não
pudessem ser tratadas pela Ciência. Havia instintos implantados por
Deus que ensinavam aos seres humanos o bem e o mal e os forçavam a
escolher entre o certo e o errado. A isso ele chamava de “imperativo
categórico”. A insistência de Kant no fato de que a Ciência era limitada e
de que a verdade moral era encontrada de forma diferente do
conhecimento científico, foi uma resposta ao racionalismo ingênuo dos
philosophes.
O deísmo também era popular nas colônias da América. A religião
natural foi introduzida no Novo Mundo através dos escritos dos
racionalistas ingleses e transformou-se ainda mais em moda deste lado do
Atlântico. As obras dos philosophes franceses também eram muito lidas.
Alguns estudiosos afirmam que a maioria dos líderes da revolução e da
nova nação eram deístas. Dentre os mais conhecidos estão George
Washington, Thomas Jefferson e Benjamin Franklin.
O estilo de vida de Washington era semelhante ao de um cavalheiro
inglês de sua época, tendo em vista que ele era membro do conselho de
sua igreja e um participante freqüente, porém não regular dos cultos. Mas
ele nunca tomava a Santa Ceia e seus escritos mostram claramente suas
idéias iluministas em relação à religião. Ele muitas vezes referia-se a
Deus como “o grande Árbitro dos Acontecimentos” ou “Pai das Luzes”
mas raramente como “divino Autor de nossa abençoada religião”. Com
uma mente aberta, um forte senso de dignidade e uma convicção da
liberdade religiosa, ele não demonstrava nenhum interesse na teologia
cristã ou crença na divindade de Cristo.
Assim como Washington, Jefferson também era adepto do
Anglicanismo cômodo praticado pelos ricos da Virgínia e também foi
membro do conselho de sua igreja, como era costume para aqueles de sua
classe social. Gostava de ler material deísta e concordava com sua
cosmovisão. Rejeitando os escritos de Paulo, Agostinho, Platão e dos
platonistas, ele passou sua vida procurando aquilo que considerava “os
ensinamentos puros de Jesus” que haviam sido obscurecidos pelos
teólogos e místicos. Jefferson acabou indo além do deísmo e tornou-se
um unitário, seguindo as idéias de Joseph Priestley.
Quando seus inimigos políticos o acusaram de ser um incrédulo,
Jefferson respondeu que de fato era cristão e, para provar, falou seu
compromisso com os ensinamentos puros e nobres de Jesus. Ele pôs-se a
eliminar o trabalho de Paulo e outros teólogos e tirar dos evangelhos
apenas as palavras do próprio Jesus. Ele afirmava que as coisas que Jesus
tinha dito e feito, revelam a marca de uma mente superior e sublime que
se destaca do resto como “um diamante no meio do estrume”. O que
ainda resta dos ensinamentos de Jesus é um código moral que determina
as obrigações em relação aos outros e em relação a si mesmo. Jesus não
afirmou que era Deus e sua missão foi ensinar a irmandade, corrigindo
assim as idéias distorcidas dos judeus do 1º século.
Sua visão de Jesus pode ser melhor demonstrada na Jefferson Bible
[Bíblia de Jefferson], que ficou enterrada entre seus papéis e só foi
publicada no século 20. Trata-se de um livro de colagens no qual as
passagens “autênticas” dos quatro evangelhos foram recortadas e
arrumadas lado a lado. Segmentos que relatavam milagres (inclusive a
ressurreição de Cristo) e discursos teológicos foram deixados de fora.
Um outro importante líder na colônia, Benjamin Franklin, foi ainda
mais longe, usando de um ligeiro cinismo em relação à fé evangélica.
Como muitos dos cidadãos de Boston, Franklin abandonou o Calvinismo
puritano logo no começo de sua carreira. Como impressor e publicador
na Filadélfia, tornou-se amigo de George Whitefield, mas o famoso
evangelista não foi capaz de ganhá-lo para o Cristianismo evangélico.
Franklin registrou suas observações sobre os quakers, batistas, irmãos,
judeus e católicos romanos com o tom de um aluno desprendido que faz
um estudo comparativo das religiões. Durante algum tempo ele foi
atraído pelo Anglicanismo, mas raramente ia à igreja. Rejeitando
qualquer credo ortodoxo, ele adotou algumas afirmações simples que
incluíam a crença num Ser Supremo, uma outra vida e recompensas e
castigos.
Como típico deísta americano, Franklin considerava a divindade de
Cristo uma questão de indiferença tolerante. Como ele mesmo afirmou
em sua carta a Ezra Stiles:

É uma questão sobre a qual não dogmatizo, tendo em vista que nunca a estudei e acho
desnecessário ocupar-me com isso agora, quando espero que em breve terei a
oportunidade de saber a Verdade com menos dificuldade. Não vejo mal, porém, em que se
acredite nisso, se essa Crença tem a Conseqüência positiva — como provavelmente é o
caso — de tornar suas doutrinas mais respeitadas e melhor observadas; especialmente
porque não creio que o Supremo leve a mal aqueles que não o fazem, distinguindo os
Incrédulos em seu Governo do Mundo com qualquer tipo peculiar de Marca do seu
Desprazer.3

Aqui pode-se ver traços da idéia iluminista de que a religião era


necessária para as classes inferiores. Voltaire, por exemplo, comentou
que queria que seus empregados fossem cristãos para que pudessem ser
influenciados pela fé que possuíam de modo a agir com mais honestidade
e diligência.

Maçonaria
Outra tentativa de se aplicar a Razão à religião durante o
Iluminismo deu-se através da ordem maçônica. A maçonaria organizada
teve início em 1717 com a fundação do Grande Loja em Londres. Para os
cristãos desiludidos, a maçonaria tornou-se uma nova fé baseada sobre a
crença no poder da natureza e oferecia cerimônias e rituais que ficavam
abertos a várias interpretações. Sua natureza essencialmente social,
reforçada pelo segredo, davam um forte senso de comunidade àqueles
que estavam alienados da Igreja cristã.
As raízes do movimento maçônico remontam à Idade Média,
quando cada ofício tinha uma guilda ou organização semelhante que
oferecia benefícios e apoio mútuo para seus membros. No século 18,
porém, o mercado livre já havia passado a dominar a sociedade e a velha
estrutura econômica sucumbiu. Com o passar do tempo, a maioria das
guildas havia se tornado apenas instituições puramente cerimoniais e seu
poder de controlar os salários, a qualidade dos produtos e a força de
trabalho tinha desaparecido. Só as guildas dos maçons, que enfatizavam
as habilidades de seus membros na Matemática e Arquitetura foram
capazes de continuar desempenhando um papel histórico novo e
dinâmico.
No final do século 17, várias “lojas” maçônicas — como essas
guildas estavam sendo chamadas — na Escócia e na Inglaterra
começaram a aceitar em sua ordem cavalheiros que não exerciam o
ofício. Muitos desses novos membros eram ricos e podiam contribuir
com capital para a construção de projetos daqueles que já eram membros
das lojas. A tradição antiga dos maçons deu-lhes ainda mais prestígio
pois eram responsáveis pela construção de grandes igrejas e catedrais,
bem como dos palácios dos reis e de suntuosos prédios nas cidades.
Também faziam uso de uma história lendária que afirmava que suas
origens eram do tempo da construção das pirâmides egípcias e do templo
de Salomão.
Os mesmos documentos que continham informações sobre os
primórdios míticos da guilda especificavam responsabilidades morais e
decretavam que os ensinamentos maçônicos deveriam ser mantidos em
segredo para que as técnicas de construção dos mestres ficassem apenas
entre os membros da guilda. Então, à medida em que elementos neo-
platônicos e rosacrucianos foram sendo introduzidos às idéias dos
maçons medievais, a tradição transformou-se em loja para indivíduos de
qualquer origem. Essas mudanças levaram a uma nova interpretação das
ferramentas do maçom como um sistema de símbolos de moralidade
pessoal e transformação. Os praticantes da “arte real”, como era chamada
a maçonaria, adoravam o Deus da ciência newtoniana, o grande arquiteto
do universo, como um símbolo poderoso de ordem, regularidade e
estabilidade.
Grande parte da atração da maçonaria no século 18 devia-se ao fato
desse sistema afirmar que estava em contato com a sabedoria universal,
revelada nas habilidades matemáticas e arquitetônicas mostradas nas
antigas construções. O prestígio ligado às lojas maçônicas atraiu um
grupo impressionante de membros que transpunham o profundo abismo
das diferenças sociais. Começou a surgir uma nova forma de
relacionamento social, fascinando os europeus mais cultos, tanto nobres
quanto comuns. Seus membros procuravam aplicar na sociedade como
um todo as idéias maçônicas de mobilidade social, tolerância religiosa e
dedicação à Ciência.
Não poderia haver melhor exemplo da importância de seus ideais
do que as colônias americanas. A ordem maçônica é o denominador
comum por trás dos movimento por independência e a fundação de uma
nova república na América. Durante a revolução, as lojas tornaram-se
ponto de encontro para os colonos em sua luta contra os governantes
ingleses. Na realidade, a maçonaria havia chegado na América pouco
depois da fundação da Grande Loja de Londres. Benjamin Franklin
juntou-se a uma das primeiras lojas em 1731 e foi eleito grão-mestre da
ordem da Pensilvânia em 1734. George Washington foi iniciado na Loja
Número Quatro de Fredericksburg (Virgínia) em 1752. Dentre outros
patriotas americanos que pertenciam à ordem maçônica podemos citar
Alexander Hamilton, Patrick Henry, John Paul Jones e Paul Revere.
A propagação da maçonaria na França e em outras partes da Europa
levou a uma identificação mais próxima entre seus ideais e o Iluminismo.
Os rituais e simbolismos da tradição dos maçons ganharam sofisticação e
transformaram-se num sistema de graus mais elevados e ritos que
incorporavam lendas como os Cavaleiros Templários, os Cavaleiros
Teutônicos e os Cavaleiros Hospitaleiros de St. John. Os grupos
maçônicos do continente não apenas representavam o deísmo e a
igualdade como também tornaram-se absolutamente anticlericais e
funcionavam como núcleos de reforma política e social.
O mais radical dentre esses grupos era o Illuminati, uma seita
maçônica fundada na Bavária em 1778 por Adam Weishaupt (1748-
1830), que havia sido educado numa escola jesuíta e durante algum
tempo foi professor de lei canônica. A seita buscava propagar o
conhecimento e incentivar os ideais humanistas e o amor fraternal entre
seus membros e seu objetivo era uma sociedade sem classes e um Estado
patriarcal. Os Illuminati repudiavam as afirmações de todas as
organizações religiosas existentes e diziam ser aqueles nos quais a graça
de Cristo habitava (Hb 6.4). Por serem organizados num sistema
complexo dentro do qual exigia-se obediência absoluta aos superiores
(semelhante aos jesuítas) e por defenderem uma forma indefinida de
revolução social, os Illuminati serviram de símbolo conveniente e bode
expiatório para aqueles que temiam movimentos conspiradores que
pudessem derrubar a classe dominante.

A reforma da ordem social


A tentativa dos philosophes de aplicar a ciência de Newton à
sociedade levou-os a enfatizar a importância da lei natural. Eles criam
firmemente que leis racionais ordenavam o universo e a sociedade
humana. Partindo desse pressuposto, eles aplicavam o teste da Razão a
instituições sociais e tradições e expressavam uma fé otimista no
progresso. A expressão mais importante desse otimismo foi o Marquês
de Condorcet (1743-94), cuja obra Esboço para um Quadro Histórico do
Progresso da Mente Humana previa que a humanidade estava destinada
ao progresso ilimitado em todas as áreas pois havia encontrado e
aplicado o método da Razão para chegar à verdade.
A sociedade à qual os philosophes aplicaram o teste da Razão — a
França no “antigo regime” — encontrava-se obviamente numa situação
tradicional e irracional. Assim, eles defendiam uma porção de programas
para revitalizar a economia, a religião e a vida política. Na economia os
“fisiocratas”, cujo porta-voz era François Quesnay (1694-1774),
defendiam a substituição do sistema mercantilista que já estava se
desintegrando, pela doutrina do lais-sez-faire, ou seja, as pessoas
deveriam poder fazer o que quisessem sem controle do governo sobre as
atividades econômicas. A expressão mais famosa dessa nova doutrina foi
a obra Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of the Nations
[Inquérito sobre a Natureza e Causa da Riqueza das Nações] (1176), do
economista escocês Adam Smith. Ele argumentava que na esfera da
economia, os indivíduos eram motivados pelo interesse próprio e que se
cada pessoa tivesse permissão de buscar seu próprio caminho, isso traria
o bem de toda a sociedade.
As implicações sociais da forma como o Iluminismo via a religião
foram enormes. A exigência de tolerância foi especialmente digna de
menção. Os philosophes mostravam que era irracional, tolo e imoral
forçar uma pessoa a aceitar idéias que ia contra sua consciência. A
intolerância era uma afronta ao ensinamento cristão do amor. A fé era
uma questão individual e a sociedade não devia ter controle sobre ela.
Assim, o Iluminismo marcou uma salto gigantesco na luta pela liberdade
religiosa.
Uma das formas que essa campanha assumiu foi o ataque às leis
religiosas preconceituosas. Voltaire foi um dos líderes, envolvendo-se no
famoso caso de Jean Calas. Este último era um protestante em Toulouse
que havia sido acusado de matar seu filho para impedi-lo de tornar-se
católico e foi executado em 1762. Isso enraiveceu Voltaire e levou-o a
passar três anos esforçando-se para limpar o nome desse homem. Depois
de ver os registros da corte, de investigar o caso pessoalmente e de
publicar vários panfletos sobre o caso, Voltaire concluiu que o filho
morto era mentalmente desequilibrado e havia, na verdade, cometido
suicídio. Seus pedidos incessantes para que o caso fosse reconsiderado
finalmente levaram a corte a declarar que Calas era inocente e a
dispensar o juiz responsável por esse erro legal.
O ataque dos philosophes às leis religiosas levaram a uma
insistência em favor de uma abordagem mais racional e humana de outras
vítimas da justiça do século 18. Escravidão, tratamento desumano dos
dementes e tortura de prisioneiros, tudo isso passou a ser atacado. O
philosophe italiano Cesare Beccaria, em Crimes e Castigos (1764), obra
que é considerada um marco, argumentou em favor da aplicação da
Razão na justiça criminal. Ele pedia que as leis fossem justas e
claramente determinadas. O objetivo do castigo não deveria ser vingança,
mas sim a prevenção de outros crimes. A pena deveria ser adequada à
ofensa, a justiça deveria ser rápida e a tortura e pena capital deveriam ser
abolidas. O Estado deveria recompensar as boas ações e educar o povo
sobre os perigos de uma vida de crime. A obra de Beccaria levou a uma
reforma penal em muitas partes da Europa. Especialmente na Rússia de
Catarina a Grande e na França revolucionária.
Os programas iluministas em favor de uma sociedade melhor
pressupunham que seria necessário realizar certas mudanças no governo.
Os philosophes consideravam que todas as pessoas eram, por natureza
boas, racionais e capazes de ser educadas. Se as leis naturais fossem
descobertas e explicadas às pessoas, elas iriam segui-las e formar
sociedades onde brotaria a felicidade do ser humano. Tendo em vista que
as instituições opressoras eram criação das elites governantes para seu
próprio benefício, uma transformação do sistema político seria para o
bem de todos. Apesar de pensarem em termos de estados, a crença dos
philosophes na racionalidade os levava a pensar em termos mais
cosmopolitas. Com o triunfo da lei natural, uma civilização mundial
unida e uniforme iria surgir e nela todas as nações trabalhariam em
conjunto.
Os pensadores políticos do Iluminismo seguiam John Locke (1632-
1704) na pressuposição de que os governos tinham origem em contratos
que as pessoas faziam com governantes para proteger os direitos
individuais. Afirmavam que os cidadãos podiam se revoltar contra o
regime se ele não cumpria seu dever. Mas a maior parte dos philosophes
não apoiavam um governo democrático ou representativo pois sentiam-se
mais à vontade com os sistemas monárquicos desde que estes
funcionassem em bases racionais.
O mais sofisticado dentre os teoristas políticos foi Charles de
Secondat, Barão de Montesquieu (1689-1755). Ao contrário dos outros,
ele não apoiava a idéia de um despotismo esclarecido e nem acreditava
que todos eram iguais. Um nobre francês, ele opunha-se ao absolutismo
real tanto por sua ineficiência quanto por sua tirania e sua obra Cartas
Persas (1721) satirizava as instituições sociais, políticas e religiosas da
época. Ele era especialmente crítico em relação a intolerância por parte
da Igreja. Em 1726 Montesquieu viajou pela Europa para descobrir por si
mesmo quais eram as condições em outros lugares e a viagem incluiu
uma parada na Inglaterra, onde ficou profundamente impressionado com
o sistema de governo. Depois de voltar para casa e refletir sobre a
situação britânica durante alguns anos, ele produziu sua obra mais
famosa, O Espírito das Leis (1748).
Usando uma técnica comparativa para descobrir os princípios
fundamentais da política, ele afirmou haver três tipos de governo —
repúblicas, monarquias e despotismos. A forma de um Estado dependia
do seu ambiente natural e sua história. As repúblicas prosperavam em
países pequenos, as monarquias nas áreas de tamanho médio na zona
temperada e o despotismo em grandes impérios de clima quente ou frio.
Ele pedia que a França imitasse a Inglaterra e estabelecesse uma
separação de poderes que garantiria a liberdade. Disse que na Inglaterra
as alas executiva, legislativa e judiciária eram separadas e moderavam e
contrabalanceavam umas às outras. Apesar de Montesquieu não ter
compreendido corretamente o sistema inglês, seu pensamento influenciou
aqueles que esboçaram a Constituição americana em 1787 e outros
liberais constitucionais do século 19.

Rousseau: o intruso
Uma exceção radical da visão geral dos philosophes foi a obra de
Jean-Jacques Rousseau (1712-78). Em muitos aspectos, ele foi a ponte
entre o Iluminismo e a era revolucionária que se seguiu. Também foi
precursor do Romantismo, o movimento intelectual predominante no
começo do século 19. Nascido em Genebra, ele fugiu de casa aos 16 anos
de idade e sempre se sentiu alienado da sociedade ao seu redor. Sua
própria vida infeliz sem dúvida deu forma à sua cosmovisão.
Rousseau afirmava que os indivíduos em um estado natural são
basicamente bons, tendo em vista que a natureza caracteriza-se pelo calor
de sentimentos e de amor por outros. Porém, o progresso e o crescimento
da civilização corromperam as pessoas. As boas qualidades da
humanidade originam-se da emoção e os maus hábitos procedem da
Razão portanto e intuição e emoção constituem guias mais apropriados
para nos conduzir que a Filosofia e a Razão. Em Nova Heloise (1761) e
Emile (1762) ele descreveu um programa educacional que permitiria às
pessoas manter intactos seus sentimentos de virtude e justiça.
Em sua obra mais importante, O Contrato Social (1762), Rousseau
apresentou a idéia de um governo que preservaria o máximo possível a
igualdade natural das pessoas. Afirmou que os cidadãos no processo de
formar um governo unem a vontade individual de cada um e formam uma
“vontade geral” e concordam em aceitar as decisões desta. Se os
indivíduos tentam colocar aquilo que crêem ser os seus próprios
interesses acima da vontade geral, o resultado são as injustiças e
desigualdades. Aqueles que tentam proceder dessa forma devem ser
forçados a obedecer a vontade geral. Porém, ele não explicou o
mecanismo que seria usado para colocar essa política em prática e não
parece ter percebido que obrigar uma pessoa a se comportar de acordo
com a vontade geral pode levar à negação da liberdade individual e à
tirania. Seu Contrato Social é tão ambíguo que já foi usado para
justificar tanto a democracia quanto o totalitarismo.

Despotismo esclarecido
Apesar dos philosophes em geral argumentarem em favor da
liberdade individual e dos direitos naturais, ele não defendiam
necessariamente a democracia. Estavam dispostas a aceitar reis que
aplicassem os princípios do Iluminismo. Em outras palavras, eles
achavam que um Estado podia alcançar o melhor funcionamento possível
sob o governo de um “déspota esclarecido” que, com a ajuda de um
grupo de pessoas cultas, determinaria a liberdade de pensamento e
promoveria a educação e o progresso material. Vários monarcas do
século 18 pareciam se encaixar no papel descrito pelos philosophes.
Entre eles estavam Frederico II da Prússia (1740-86), Catarina II da
Rússia (1762-96) e Joseph II da Áustria (1780-90). Na verdade, eles
adotaram programas mais benevolentes não porque concordavam com os
philosophes, mas porque o uso da Razão em seus Estados ia de encontro
aos seus próprios interesses.
A prosperidade nacional significava um aumento nos impostos
recolhidos e uma administração eficiente podia fortalecer o controle do
governo. Assim, esses monarcas melhoraram as técnicas agrícolas,
reformaram as leis, acabaram com a tortura e promoveram a saúde
pública através da construção de hospitais e asilos. Eles almejavam
elevar o nível educacional do povo, estabelecer uma tolerância religiosa
mais ampla e, em países católicos, reinar com o poder do papado.

A revolução científica e o Iluminismo foram, em sua essência os


elementos que formaram a civilização moderna. Conforme o historiador
americano Carl Becker mostrou em seu estudo clássico desse período, a
obra The Heavenly City of the Eighteenth-Century Philosophers [A
Cidade Celestial dos Filósofos do Século 18] (1932), a ironia é que a
chamada “Idade da Razão” foi, na realidade, uma idade da fé. O que os
philosophes tentaram fazer, com efeito, foi substituir o Cristianismo por
uma nova crença na Ciência e na Razão e, através disso, levar a
humanidade a um verdadeiro paraíso na Terra. Porém, sua busca por um
reino utópico foi duramente interrompida pela sangrenta era das
revoluções e guerras que se seguiram depois de 1789. Ainda assim,
apesar do mal uso de seus ideais que ocorreu durante aquele trágico
quarto de século, o mundo moderno deve muito aos philosophes. A
tolerância religiosa, um declínio da superstição, a crença na dignidade e
nos direitos inerentes do indivíduo, a liberdade de pensamento e
expressão, a convicção de que o governo deve exercer o poder em favor
dos governados e a valorização da tecnologia e da Ciência e dos muitos
benefícios que estas poderiam trazer — tudo isso constitui o legado da
era da Ciência e do Iluminismo.

Capítulo 16 - A Igreja demonstra vigor renovado


A nova cosmovisão decorrente das descobertas científicas e da
afirmação da Razão não foi necessariamente uma ameaça mortal à fé
cristã. Apesar de alguns filósofos darem as costas para o Cristianismo e
do poder espiritual da Igreja em muitos lugares ter se enfraquecido por
causa de uma ortodoxia morta, indiferença doutrinária e a mão pesada
dos governantes autoritários, existiam diversos sinais de vitalidade. A
maior parte das formas de Calvinismo ainda enfatizava a sã doutrina,
enquanto o Pietismo trouxe nova vida ao Luteranismo alemão. No início
do século 18, começou a surgir uma visão missionária no Protestantismo
continental e britânico e junto com ela, veio uma forte onda de renovação
que era conhecida como Metodismo ou Grande Despertar. O Iluminismo
não havia se apoderado do Cristianismo.

A luta pelo domínio do mundo


A vitória final do Parlamento sobre os monarcas Stuart na
“Gloriosa” revolução de 1688 preparou o palco para a luta de poder entre
Inglaterra e França que dominou o cenário histórico do século seguinte.
Começando em 1667, Luís XIV tomou uma série de medidas agressivas
a fim de adquirir território além de suas fronteiras a leste, forçando os
holandeses a organizar coalizões para conter esse expansionismo. Assim,
Guilherme de Orange, o líder protestante da Holanda, que era neto de
Carlos I e marido da filha de James II, recebeu de braços abertos o
convite do Parlamento para que ele assumisse o trono da Inglaterra pois
isso permitiria que ele incluísse a Grã-Bretanha na sua aliança contra a
França. Durante dois conflitos de ampla abrangência em 1688-97 e 1702-
13, ele desafiou o poder marítimo dos franceses. Num tratado de paz de
1713 o frágil império colonial norte-americano, que surgiu
gradativamente no século 17, ganhou uma certa segurança. A Inglaterra
recebia a Acádia (Nova Scotia), Newfoundland e a região da Baía de
Hudson juntamente com um lucrativo asiento, o direito exclusivo de
fornecer escravos para a América espanhola.
A rodada seguinte de lutas ultramarinas na década de 1740
terminou sem ganho territorial para a Inglaterra, mas as forças coloniais
francesas e britânicas logo entraram em conflito no Novo Mundo. O que
veio em seguida foi a Guerra entre Franceses e Índios (1755-60), a fase
americana da Guerra dos Sete Anos. A conquista espetacular de Quebec
em 1759 selou o destino da Nova França e pelo Tratado de Paris em
1763 a Grã-Bretanha tomou posse de todo o Canadá. Porém, o rei
George III emitiu uma proclamação fechando as novas terras no interior
para o assentamento de brancos e em seguida a Lei de Quebec de 1774
pareceu garantir o domínio dos católicos de língua francesa, uma ação
que exasperou os colonos americanos.
Durante a Revolução Americana a França procurou vingar-se da
Grã-Bretanha tomando partido e dando ajuda militar e naval às colônias,
o que pesou na balança da luta pela independência. As rodadas finais da
luta pelo domínio do mundo ocorreram durante a Revolução Francesa e a
era napoleônica e em 1815 a Grã-Bretanha surgiu como soberana do
mundo ultramarino. Enquanto isso, muitos dos legalistas (Tories)
fugiram para o norte e assentaram-se em New Brunswick, Nova Scotia e
além dos Grandes Lagos, dando assim a esses territórios uma composição
muito mais inglesa. Em 1791 o Parlamento adotou a Lei do Canadá que
dividia a antiga Nova França em Alto e Baixo Canadá, cada um com uma
certa medida de autonomia governamental. A lei também afirmava que
um sétimo de toda a terra concedida seria reservado para o “sustento e
manutenção de um clero protestante”, ou seja, a Igreja da Inglaterra, mas
foram reafirmados os direitos da Igreja Católica nas áreas com
predominância da língua francesa. As “reservas do clero” continuaram
sendo um ponto de disputa entre as várias denominações protestantes até
que em 1840 foi adotada uma legislação que determinava a divisão do
dinheiro proveniente da venda das terras entre os diferentes grupos. As
reservas foram finalmente abolidas em 1854.
1743-47
David Brainerd entre os índios Delaware
1596 1706 1731 1738
O Reino de Cristo, Fundada a Missão Missões George Whitefield inicia
de Phillip Nicolai Dinamarquesa Halle Morávias reuniões ao ar-livre
1555 1634 1642 1698 1725 1735-36 1775
Huguenotes se Peter Thomas Fundação O Grande John e Charles Henry Alline
refugiam no Brasil Heyling Mayhew da SPCC Despertamento Wesley vão para a na Nova
Geórgia Scotia
1550 1600 1700 1800
1602 1619 1652 1664 1732-33
Fundação da Concessão Os holandeses Formação da Companhia Colonização da Geórgia
Companhia Britânica das se estabelecem Francesa das Índias com o objetivo de
Holandesa das Índias Orientais em no Cabo da Orientais liberdade religiosa
Índias Orientais Surat Boa Esperança
1642 1681
Fundação de Montreal Fundação da Pensilvânia como abrigo de liberdade
religiosa
1649 1791
Formação da Companhia Nova Inglaterra A Lei do Canadá estabelece as
Reservas do Clero

Conforme foi observado no capítulo 12, muitos dos conflitos entre


os dois poderes ocorreram na região do Caribe e ao longo da costa oeste
da África. Mas só o conflito na Índia foi de importância igual à da luta na
América. O império Mogul (Mughal) de base muçulmana, fundado em
1526, estava tentando estender seu controle sobre todo o subcontinente
indiano, mas deparou-se com oposição por parte dos príncipes hindus.
Depois da morte de Aurangzeb em 1707 — uma forte figura cujo zelo
religioso levantou a oposição hindu e enfraqueceu a estabilidade política
— o governo mogul entrou rapidamente em declínio e não havia nenhum
poder capaz de resistir à invasão européia.
Durante o século 17, a companhia holandesa dirigiu sua atenção
cada vez mais para a Indonésia enquanto a Companhia Britânica das
Índias Orientais, criada em 1600, ampliou gradualmente suas operações
no subcontinente. Em 1619 o imperador mogul concedeu à companhia
britânica os direitos de comércio em Surat, na costa oeste e a companhia
acabou abrindo vinte e sete outros postos ao longo da costa, sendo os
mais importantes os de Bombai, Madras e Calcutá. Uma Companhia
Francesa das Índias Orientais foi formada em 1664, não tardando a obter
concessões em Pondicheri e outros lugares e uma pequena companhia
dinamarquesa também operava um posto de comércio na costa sudeste. A
grande popularidade dos produtos da Índia e da China na classe alta e na
classe média da Europa significava lucro para as companhias, mas como
o comércio era em grande parte unilateral, havia grande insatisfação por
parte das companhias comerciais por causa do fluxo de ouro europeu
para a Ásia.
Os britânicos chamavam seu posto em Surat de “feitoria” e a
palavra passou a ser usada para todos as comunidades européias na Índia.
As feitorias eram áreas cercadas por muros e que continham as
residências, escritórios e depósitos da companhia e de seus funcionários,
onde o presidente exercia autoridade política plena. Como a Companhia
das Índias Orientais estava interessada apenas em lucro, os diretores em
Londres desencorajavam riscos desnecessários tais como a interferência
na política local e até mesmo trabalho missionário.
Essa política mudou devido à desordem e instabilidade que se
instalaram durante o século 18. Então, as feitorias foram transformadas
em fortes com pequenas guarnições de tropas nativas que protegiam as
propriedades da companhia e os residentes ao redor quando apareciam
invasores ou ocorria uma revolta. Tendo em vista que não havia um
governo central e os príncipes locais não podiam oferecer segurança, as
feitorias-fortes aos poucos começaram a exercer autoridade política sobre
os territórios vizinhos.
Em 1742 Joseph Dupleix tornou-se chefe do empreendimento
francês. O primeiro europeu a realmente compreender a política bem
como a importância econômica da Índia, ele fez alianças com príncipes
locais e desenvolveu um exército de tropas indianas (sepoys). Em 1746
capturou Madras e através de contatos pessoais com os príncipes locais
passou a dominar o sudeste da Índia. Mas a iniciativa francesa foi
frustrada pelo poder marítimo superior dos britânicos e as operações de
Robert Clive, um soldado a serviço da companhia britânica e em 1754
Dupleix foi chamado de volta. Três anos depois Clive derrotou o governo
de Bengala no nordeste, que era apoiado pelos franceses e fundou um
protetorado da companhia na região. Prosseguiu aniquilando o poder
francês no sul e o Tratado de Paris em 1763 reconheceu o controle
britânico sobre o subcontinente. Em 1769 foi encerrada a Companhia
Francesa das Índias Orientais.
O Parlamento britânico, preocupado que a companhia tivesse ganho
poder demais e fosse responsável pelos tumultos que varriam a Índia,
adotou em 1773 o Decreto Regulamentar que diminuía seu poder
político. Foi criado o cargo de governador-geral sendo que este,
juntamente com um conselho deliberativo, iria exercer autoridade sobre o
território controlado pela companhia. A Lei da Índia de 1784 restringiu
ainda mais o poder da companhia, sujeitando os diretores à supervisão
parlamentar.
De sua sede em Calcutá, os governadores Warren Hastings e
Charles Cornwallis puseram-se a construir uma administração eficiente
que incluía o serviço público, sistema de impostos sobre terras e um
exército de tropas indianas. O Marquês de Wellesley (1797-1805)
consolidou a dominação britânica sobre o subcontinente através de um
sistema de alianças com os príncipes indianos, nas quais a Grã-Bretanha
lhes oferecia proteção em troca de concessões territoriais, controle de
seus assuntos externos e exclusão de todos os outros europeus do serviço
governamental. Por fim, em 1813 o Parlamento aboliu o monopólio
comercial entre a Companhia e a Índia e estendeu a soberania britânica
aos seus territórios. O Ceilão (Sri Lanka) que foi tomado pelos
holandeses em 1796, tornou-se propriedade da coroa em 1802.
A fundação dos impérios comerciais da Grã-Bretanha e Holanda
abriu as portas para atividades missionárias protestantes. Porém, o
desenvolvimento de uma consciência global entre os herdeiros da
Reforma foi um processo lento. O trabalho missionário era hesitante e
esporádico e gozava de pouco apoio oficial das igrejas existentes.

A indiferença missionária protestante


A centralidade do evangelho recuperada por Lutero não resultou
numa explosão de iniciativas missionárias, mas ficava claro em suas
pregações que o caráter da mensagem era universal. Ele cria firmemente
que o poder espiritual do evangelho era tal que iria espalhar-se
independente do conhecimento ou trabalho humano. Deus faria com que
isso acontecesse do seu jeito e a seu tempo. Lutero dirigiu sua mensagem
para pastores e para congregações em crescimento, em outras palavras,
para o desenvolvimento interno. O Protestantismo também não tinha
estruturas institucionais como as que o Catolicismo medieval possuía e
que tiveram um papel crucial na propagação do evangelho — a
hierarquia eclesiástica e as ordens religiosas.
Além disso, a fé Reformada criou raízes em nações que não
participavam da iniciativa colonialista ou estavam apenas começando a
fazê-lo — Alemanha, Dinamarca, Holanda e Inglaterra. Não se ouvia
falar sobre a idéia de liberdade religiosa e era impossível pensar que
Portugal e Espanha iriam tolerar — e quanto mais apoiar — os
missionários protestantes em seus impérios. Tendo em vista que os
luteranos não pregavam que sua congregação tinha uma obrigação
missionária, essas pessoas não tinha idéia das barreiras políticas que
existiam para o trabalho missionário no exterior.
Calvino concordava com Lutero que a mensagem seria
inexoravelmente proclamada pelo mundo todo por causa da soberania e
poder de Deus. A vinda do reino de Deus não seria resultado de esforços
humanos. Assim como a propagação do evangelho, isso aconteceria no
devido tempo de Deus. Ele chama todas as pessoas, mas não sabemos
quem foi eleito por Ele. O dever do cristão é fazer de tudo para honrar a
Deus e tornar conhecida a sua bondade entre todos os povos. E também,
o Novo Testamento não designava nenhum cargo especial na igreja que
fosse encarregado de realizar o trabalho missionário.
A ênfase no apelo universal do evangelho revelou uma visão
missionária voltada para dentro. Porém, movimentos radicais dentro da
própria Reforma e as crescentes pressões do contra-ataque católico
limitaram o processo de crescimento e fortalecimento congregacional e o
acordo religioso de Augsburg ligavam os protestantes aos governantes
que não tinham posses coloniais. As únicas oportunidades de anunciar o
evangelho — os judeus e turcos — não estavam muito longe.
Havia algumas exceções a essa padrão de indiferença. Em 1555
Durand de Villegaignon com o apoio do Almirante Coligny, fundou uma
colônia no Brasil que deveria servir de refúgio para os huguenotes.
Calvino enviou alguns pastores junto com eles, sendo que estes
procuraram realizar um trabalho missionário entre os índios e ministrar
aos colonos reformados, mas por causa de negócios inescrupulosos
realizados pelo fundador e pelo desânimo com o trabalho, três anos
depois a iniciativa tinha fracassado.
Outra pessoa importante foi Adrian Saraiva (1531-1613), um belgo-
hispânico calvinista que fugiu para a Inglaterra, teve vários cargos
eclesiásticos (inclusive de deão em Westminster) e foi membro da
comissão de tradutores da Bíblia King James. Numa obra de 1590 que
defendia o princípio do episcopado, ele identificou o trabalho
missionário entre descrentes como uma das principais tarefas do bispo.
Aqueles que ocupavam esse cargo não deviam apenas fortalecer e
edificar as igrejas existentes mas também ajudar na implantação de
igrejas novas. O trabalho dos apóstolos deve ser levado adiante nos dias
de hoje.
À medida em que a ortodoxia luterana começou a se estabelecer, foi
publicada uma importante obra incentivando as missões, O Reino de
Cristo, de 1596, escrito por Phillip Nicolai (mencionado anteriormente
por sua hinologia). Ele afirmava que a missão era uma função da Igreja,
uma parte vital de sua tarefa de proclamar a Palavra de Deus e cuidar das
almas. Sua visão de missões era tanto global quanto ecumênica, no
sentido de que via as igrejas católicas e ortodoxas como instituições que
há séculos já realizavam o trabalho missionário. Mas ele insistia que a
igreja luterana deveria ter um papel central nessa iniciativa pois ela havia
restaurado a plenitude do evangelho e tornado a Palavra acessível a
todos.
A maioria dos teólogos dogmáticos ortodoxos mantinha distância
de avaliações tão francas da questão missionária como as de Nicolai e
Saraiva. Porém, um século depois, o famoso filósofo Gottfried Leibnitz,
que ficou impressionado com a missão colonial holandesa e com as
realizações dos jesuítas (especialmente na China), escreveu na declaração
de propósitos da recém-fundada (1700) Academia Prussiana de Ciências,
uma cláusula chamando à proclamação da fé e dos valores cristãos entre
povos de outras nações e religiões.
A visão missionária mais clara, porém, era a dos anabatistas. Isso se
dava pela forma como entendiam as Escrituras, a Igreja e a Escatologia.
O movimento também foi propagado por pregadores itinerantes que
usavam os métodos dos cristãos primitivos para proclamar o evangelho.
Infelizmente, seu campo missionário estava restrito à região central da
Europa e encaravam seu ministério em grande parte como a salvação de
almas “perdidas” que haviam sido induzidas pelos padres a levar uma
vida ímpia. Por causa da forte perseguição, os anabatistas fecharam-se
em suas comunidades e ficaram conhecidos como os “quietos na terra”.
Ainda assim, sua dedicação total e ênfase na pregação da Palavra de
Deus fizeram deles os precursores dos missionários modernos.

Missões com patrocínio oficial


Salvo raras exceções, a obra missionária do século 17 e começo do
século 18 foi patrocinada, ou pelo menos sancionada pelos governantes
ou pelos administradores das companhias. (A maior parte das
companhias comerciais operava com a permissão dos reis, dando-lhes
poderes quase governamentais sobre as áreas em que atuavam.) Peter
Heyling (1607-52) era um dos “lobos solitários”, um jovem aluno de
Lübeck que havia sido inspirado a tornar-se missionário pelos escritos de
Hugo Grotius. Viajou para o Egito e depois para a Etiópia onde entrou
em contato com a Igreja Copta, foi tutor de crianças de famílias
proeminentes e traduziu o evangelho de João. Porém, foi mais tarde
assassinado por muçulmanos turcos. Outra das exceções foi Justinian von
Welz (1621-68), um luterano austríaco cuja família tinha sido forçada a
deixar sua terra natal. Ele teve uma experiência repentina de conversão
que foi inspirada pela leitura da Bíblia e da literatura mística e em 1664
publicou um controverso tratado que conclamava à formação de uma
sociedade de voluntários, a “Irmandade de Jesus”, para melhorar a
qualidade do Cristianismo e converter os descrentes. Como leigo, ele
criou um plano para a escola missionária que não tinha como receber a
aprovação das autoridades eclesiásticas. Foi então para o Suriname
(Guiana Holandesa) como missionário auto-suficiente e morreu pouco
depois de sua chegada.
Os atos de Gustavus Vasa (1523-60), primeiro rei protestante da
Suécia, também são dignos de menção. Foi ele quem iniciou a obra
missionária entre os lapões, um povo não-cristão na região norte de seu
reino. Enviou pregadores e fundou escolas a fim de ganhar esse povo
para o Cristianismo luterano. Essa foi, essencialmente, a manifestação
protestante das missões oficialmente sancionadas que tinham uma
história milenar.
De importância ainda maior foram as missões conduzidas sob os
auspícios dos holandeses. Tanto a Companhia das Índias Orientais
quanto Ocidentais nomearam “capelães” que eram responsáveis pelo
cuidado espiritual de suas empregados e colonos. Em alguns lugares, os
clérigos realizavam paralelamente algum trabalho missionário. A
Companhia das Índias Ocidentais oferecia pregadores e professores para
sua comunidade na América do Norte, Nova Holanda e dedicou-se a um
trabalho missionário mínimo entre os índios do Brasil durante sua breve
estada nessas terras.
Em suas estações na costa da Guiné, oeste da África, capelães
faziam parte do quotidiano e esperava-se que os funcionários
freqüentassem os cultos. Havia até mesmo um capelão negro em Elmina
durante a década de 1740, um ex-escravo chamado Jacobus Capitein. Seu
mestre o havia levado para a Holanda e, depois disso, ele havia recebido
preparo teológico em Leiden e entrado no ministério da Igreja Reformada
Holandesa. Capitein foi o primeiro africano a receber a ordenação dos
protestantes e voltou para servir na África onde faleceu cinco anos mais
tarde.
No século 17 a Companhia Holandesa das Índias Orientais levou o
Protestantismo para as regiões sob seu controle. Antes disso, durante o
período de oito anos em que os portugueses estiveram presentes na
Indonésia, duzentos missionários católicos (incluindo Francisco Xavier
em 1546-47) haviam trabalhado nas Molucas. Assim, quando os
holandeses chegaram, expulsaram os católicos, tentaram fazer o mesmo
no Ceilão e em algumas partes da Índia e criaram um patronato
protestante não muito diferente dos modelos das coroas de Portugal e da
Espanha. A permissão revisada de 1623 incluía a tarefa de “manter a fé
comum”, isto é, estar em conformidade com a ordem da Igreja
Reformada na Holanda.
Entre 1605 e o final da década de 1790, a Companhia enviou 254
pastores e 800 obreiros não-ordenados que fundaram igrejas e escolas e
publicaram bíblias e livros religiosos tanto em holandês como malaio. Os
oficiais da Companhia decidiam para onde os obreiros seriam mandados
e onde seriam abertas escolas, designavam-nos a seus postos e resolviam
qual o salário a ser pago. Tendo em vista que todo o trabalho da Igreja
dependia da companhia, a qualidade dessa iniciativa cristã era
questionável. O número de pastores que estavam, de fato, no campo
missionário em qualquer ano nunca passou de trinta e quatro e muitos
deles só sabiam pregar em holandês.
Apesar de nenhuma sociedade missionária ter sido fundada, a Igreja
da Holanda examinava aqueles que iam para fora e correspondia-se com
eles depois que haviam chegado ao Oriente. Durante um curto período
(1622-33), a companhia financiou um “Seminarium Indicum” em Leiden
para treinar homens para o serviço cristão. Não foi levantado nenhum
tipo de fundo para sustentar as missões. Houve relatos de milhares de
batismos, mas muitos desses foram coagidos e pouca coisa foi feita fora
da região da Batávia (Jacarta) em Java.
O sucesso dos holandeses no Sri Lanka também foi modesto, tendo
em vista que a presença dos católicos continuou sendo forte. Depois de
tirar de lá os portugueses na metade do século, a princípio eles tentaram
converter os católicos, mas passaram depois a trabalhar entre os não-
cristãos. Alguns clérigos foram enviados da Holanda e algumas igrejas e
escolas fundadas nas cidades. Em 1690, duas escolas foram abertas a fim
de treinar professores e catequistas, sendo que dentre eles surgiram
alguns clérigos nativos. Apesar do número de protestantes ter chegado a
mais de quatrocentos mil no século 18, a fé dos convertidos geralmente
era superficial.
A principal figura das missões holandesas foi Justus Huernius
(1587-1652) que em 1616 publicou Admoestação a se Começar o
Testemunho Evangélico nas Índias, uma súplica por um trabalho mais
eficaz e autêntico do que aquele dos católicos. Ele foi para a Batávia em
1624 e serviu com zelo naquela região e nas Molucas durante quatorze
anos. Além de fazer trabalhos de tradução, ele propôs que se desse aos
indonésios uma educação teológica, mas as igrejas-mães vetaram a idéia,
temendo que isso pudesse colocar em risco a doutrina pura. A
Companhia recusou-se a permitir que ele voltasse depois de uma licença
em 1638.
Certamente os teólogos holandeses não viam as missões como um
trabalho exclusivamente de responsabilidade das autoridades, mas não
foram capazes de estimular muito interesse das congregações locais.
Porém, sua mentalidade missionária teve um impacto na Alemanha e,
mais importante ainda, na Dinamarca. Lá, a Igreja do Estado decidiu, em
1705, fundar na parte dinamarquesa da Índia uma missão que teria uma
influência abrangente.
Quando a companhia holandesa abriu sua estação de passagem na
África do Sul em 1652, um catequista foi nomeado para realizar as
orações, ler o sermão de domingo, visitar os enfermos e ensinar o
Catecismo de Heidelberg para pequenos grupos de colonos. A princípio,
os clérigos a bordo de navios que estavam de passagem administravam
os sacramentos, mas em 1665 uma pessoa ordenada foi finalmente
designada para aquele local. A população branca no Cabo da Boa
Esperança foi crescendo aos poucos e refugiados huguenotes juntaram-se
à comunidade depois de 1685, mas o número de igrejas continuou sendo
pequeno — eram sete em 1795. Estavam sob a autoridade da Companhia
e do presbitério de Amsterdã, até que os britânicos assumiram o controle.
Durante uns poucos anos, houve algumas iniciativas para se alcançar os
nativos africanos e o batismo de escravos tornava possível conquistarem
a liberdade. Mas essa concessão de liberdade a escravos batizados
acabou sofrendo fortes restrições e, no século 18 não havia praticamente
nenhuma preocupação com o bem estar de hotentotes e escravos.

A América do Norte britânica


Nas Índias Ocidentais o Catolicismo romano prevalecia nas ilhas
espanholas e muitos daqueles que chegavam da África eram
incorporados à fé. Porém, na francesa St. Dominique (Haiti), a influência
do oeste da África continuou bastante forte, como é possível observar
pelos cultos de vudu que são uma mistura de Catolicismo com rituais
mágicos e êxtase. Os rituais e costumes africanos também continuaram
entre as comunidades escravas de outras ilhas ao longo da costa sudeste
da América do Norte e tiveram um papel importante no perfil dos cultos
da igreja negra quando esta surgiu no século 19. Quanto às ilhas
governadas pela Inglaterra protestante, a Igreja Anglicana ministrava a
agricultores e comerciantes. Os moradores brancos rejeitavam qualquer
evangelização da população escrava de afro-americanos, pois a
consideravam inútil e extremamente perigosa.
Porém, na parte continental da América do Norte, onde o número
de europeus estava crescendo rapidamente, a maioria das tradições da
Reforma estava representada. Apesar de ameaças e perseguições que às
vezes ocorriam contra grupos de minoria em vários lugares, todas as
igrejas acabaram coexistindo num ambiente de liberdade que não existia
em nenhum outro lugar do mundo. Os puritanos congregacionais da
Nova Inglaterra, por exemplo, tiveram que lidar com uma dissensão em
seu próprio meio. Uma pessoa, Anne Hutchinson (1591-1643) foi
expulsa da Baía de Massachusetts por expressar uma forma diferente de
Calvinismo e criticar a elite da liderança. Outro foi Roger Williams
(1603-83), um separatista puritano que causou a desaprovação dos
líderes da colônia e foi forçado a sair. Ele fundou um novo assentamento
em Rhode Island em 1636 e lá escreveu alguns tratados defendendo a
liberdade de consciência que são os melhores encontrados na língua
inglesa e pelo menos um século à frente de seu tempo. Apesar de
Williams ter se identificado com os batistas apenas durante um breve
período, tanto eles quanto os quakers fixaram-se em Rhode Island e à
partir dessa base começaram a espalhar suas mensagens distintivas por
toda a parte britânica da América do Norte.
Nas colônias do sul apareceram algumas pequenas comunidades
anglicanas (sendo a maior delas em Virgínia), mas outras denominações
também tinham liberdade por lá. Maryland, a comunidade de Lord
Baltimore, começou em 1634 como um refúgio para católicos e seu
famoso “Decreto sobre Religião” (1649) apresentou um conceito de
tolerância com profundas implicações para a época. Porém, o decreto foi
anulado durante o tumulto da era de Cromwell e a Igreja da Inglaterra
acabou sendo a instituição oficial.
Tanto em termos étnicos quanto religiosos, as colônias
“intermediárias” eram os territórios mais diversificados e pessoas de
várias denominações aprenderam a viver em harmonia. Sem dúvida, o
lugar mais interessante foi o “Experimento Sagrado” de William Penn
(1644-1718), que na verdade foi um antecessor da sociedade pluralista da
América. Uma pessoa notável, cuja vida atravessou a distância entre a
era do Puritanismo e a era da Razão, ele foi o pacifista quaker, filho de
um conhecido almirante, amigo íntimo de reis e filósofos e um teorista
aristocrata bem como democrata e criador da colônia de propriedade
particular mais bem sucedida do império britânico.
Penn era tanto um homem prático nos negócios como também um
homem espiritual. Sua Pensilvânia era um lugar onde a liberdade
religiosa, o governo representativo e terras baratas administradas por um
controle benevolente ofereciam um refúgio para os oprimidos e um
modelo de governo esclarecido. A Filadélfia tornou-se o principal centro
econômico e intelectual das colônias americanas. A Pensilvânia não foi
apenas o berço do movimento quaker, mas também um centro para outras
denominações — presbiterianos, batistas, luteranos, alemães reformados
e até anglicanos e católicos. Menonitas e pietistas alemães do século 18
também encontraram lá um santuário, enquanto que a primeira
denominação negra independente na América, a Igreja Metodista
Episcopal Africana foi fundada por Richard Allen na Filadélfia.
Apesar de Roger Williams ter adotado uma postura bastante
positiva em relação aos nativos americanos (índios) e uma das cláusulas
da permissão de operações da Companhia da Baía de Massachusetts
pedir que se ganhasse os nativos do país para Cristo, a primeira iniciativa
missionária formal começou com Thomas Mayhew na ilha Vineyard de
Martha em 1642. Seus descendentes continuaram esse trabalho
individual durante mais de um século. De importância ainda maior foi o
programa sistemático de evangelização dos índios Pequot, de língua
algonquin conduzido por John Eliot (1604-90), o pastor da igreja de
Roxbury próximo a Boston. Ele aprendeu a língua algonquin e começou
a trabalhar entre eles em 1646. Cinco anos depois ele reuniu seus
convertidos na primeira “cidade indígena de oração”. Em duas décadas
aproximadamente 3600 índios cristãos estavam vivendo em quatorze
vilas. Ele também traduziu o catecismo e as Escrituras para sua língua e
sua maior realização foi a publicação da Bíblia em 1663, a primeira
Bíblia de qualquer tipo a ser impressa na América. Infelizmente essa
iniciativa de sucesso foi interrompida por um conflito sangrento entre
índios e colonos brancos em 1675-76 e as cidades logo desapareceram.
Eliot e seus colegas divulgaram amplamente seu trabalho e em
1649, o Parlamento deu permissão para a abertura da Sociedade para
Propagação do evangelho na Nova Inglaterra (rebatizada de Companhia
da Nova Inglaterra em 1660). Essa foi a primeira verdadeira sociedade
missionária protestante e ao longo do século seguinte ela ofereceu
sustento financeiro para o ministério de Eliot e de outros entre os índios.
A Companhia continuou a operar até a Revolução e então mudou sua
área de atuação para a educação de nativos americanos do Canadá.
Uma das maiores contribuições para o avanço do trabalho
missionário foi feita por Thomas Bray (1656-1730), um prior anglicano
que, junto com alguns amigos, formou sociedades voluntárias para ajudar
na propagação do evangelho. Em 1696 ele foi nomeado pelo bispo de
Londres para o cargo de representante especial de Maryland a fim de
ajudar a consolidar a Igreja da Inglaterra naquela região. Ele concluiu
que seriam necessárias boas bibliotecas nas paróquias, e para isso, em
1698 formou a Sociedade para a Promoção do Conhecimento Cristão
(SPCC). Nos anos que se seguiram, foram criadas “escolas de caridade”
onde crianças pobres podiam receber educação básica e instrução
religiosa, fundou bibliotecas na Grã-Bretanha e nas colônias, publicou
livros e tratados religiosos e manteve laços com igrejas protestantes da
Europa continental.
Depois de visitar Maryland pessoalmente, Bray convenceu-se de
que era necessária uma organização separada para cuidar do trabalho
missionário em si e em 1701 ele fundou a Sociedade para Propagação do
Evangelho em Regiões Estrangeiras (SPE). Esta empenhou-se
agressivamente em expandir os ministérios ultramarinos da Igreja da
Inglaterra e enviou centenas de clérigos. Sua principal atuação era na
América do Norte e nas Índias Ocidentais onde concentrava-se em
alcançar colonos que não eram anglicanos, mas por vezes alguns
indivíduos também realizavam trabalhos entre os índios e os escravos
negros. Esse grupo foi particularmente bem-sucedido nas colônias do sul.
Uma das realizações mais memoráveis da SPE na verdade se deu
fora da América do Norte. Em 1752 a Sociedade nomeou Thomas
Thompson como capelão do principal forte inglês (Castelo da Costa do
Cabo) na Costa do Ouro, oeste da África. Porém, ao invés de ministrar
apenas para os moradores brancos, ele começou a alcançar o povo ao
redor e chegou até a mandar convertidos para Inglaterra para poderem
estudar. Um deles, Philip Quaque foi ordenado sacerdote (o primeiro
negro a ser ordenado anglicano), casou-se com uma mulher inglesa e
com o apoio da SPE voltou para a Costa do Ouro em 1766 onde serviu
fielmente até falecer em 1816.
Thomas Bray também influenciou a fundação do Estado da
Geórgia. Em 1723 ele formou um grupo de “Associados” para
administrar um fundo destinado ao sustento de bibliotecas e a
evangelização de negros e índios na América. Depois de sua morte, os
Associados usaram esse dinheiro para ajudar o General James
Oglethorpe, um soldado dedicado e membro do Parlamento, a obter a
carta de propriedade real em 1732 para uma colônia para a qual os pobres
poderia ser mandados como alternativa à prisão desses devedores. Ele
esperava fazer da Geórgia um lugar mais humano, livre da escravidão e
do rum e um local com forte presença anglicana, apesar de que a
liberdade religiosa seria garantida. O idealismo social desse
empreendimento foi ilusório, mas a colônia tornou-se, de fato, um
refúgio para vários grupos. Um deles foi o dos salzburgueses, luteranos
alemães que haviam sido expulsos de sua terra natal pelo arcebispo
católico, mas que com o auxílio da SPCC foram reassentados na Geórgia
na década de 1730.
Uma filial escocesa da SPCC foi criada em 1709, sendo que esta
dedicava-se ao bem-estar espiritual das pessoas nas Terras Altas, mas
também subsidiou missões em favor dos índios americanos. Seu obreiro
mais conhecido foi David Brainerd (1718-47), um presbiteriano de
Connecticut que era protegido de Jonathan Edwards. Durante quatro
anos esse jovem trabalhou entre os índios Delaware, sendo que ganhou
vários deles para Cristo e formou uma igreja. Seu diário pessoal e de
trabalho são obras primas de inspiração e edificação espiritual populares
até hoje.

A América do Norte francesa


A colonização francesa começou no início do século 17 com
assentamentos em Quebec no vale do rio São Lourenço e Port Royal na
Acádia (nos dias de hoje chamadas de Nova Scotia e New Brunswick).
Uma proibição de imigração de huguenotes garantiu que os residentes
brancos da Nova França seriam todos católicos romanos. O fundador
Samuel de Champlain favoreceu as missões pois sonhava com um
Canadá cristão governado pelo rei francês e habitado por uma raça
mestiça de franceses e índios. Assim, em 1615 ele trouxe quatro
Recoletas — uma ala reformada dentro da ordem dos franciscanos —
para ajudar na cristianização da população. Em 1625 juntaram-se a eles
mais cinco jesuítas, incluindo Jean de Brebeuf (1593-1649).
Depois de um breve interlúdio de governo inglês, os jesuítas
assumiram o controle de toda a obra da missão. A princípio eles
trabalharam entre os índios Huron perto da Baía Georgiana, onde
formaram comunidades, intervieram em conflitos tribais e buscaram
amenizar os piores aspectos do governo branco. Em 1648 havia vinte e
dois sacerdotes trabalhando ativamente na região. Essa iniciativa estava
sendo apoiada pelas Irmãs Ursulinas, lideradas por Marie de
l’Incarnation (1599-1672), que fundou a primeira escola para meninas
índias em Quebec.
Porém, uma guerra irrompeu entre os Hurons e Iroquois e em 1649
Brebeuf e vários outros missionários foram brutalmente assassinados
pelos Iroquois. (Três séculos mais tarde foram canonizados e declarados
santos padroeiros do Canadá.) Apesar da missão Huron ter sido fechada,
outros jesuítas espalharam-se pelo interior, chegando até as pradarias
além dos Grandes Lagos e até a Louisiana no sul. Uma figura de
destaque foi Jacques Marquette (1637-75) que chegou na Nova França
em 1666 e fundou várias obras. Por causa de seu conhecimento de
línguas indígenas ele foi escolhido para acompanhar a expedição de
Joliet que explorou o rio Mississippi em 1673. Começou, então, uma
missão entre os índios Illinois e morreu logo depois de disenteria.
Outra realização importante foi a fundação de Montreal. O ímpeto
para isso veio de Jean Jacques Olier (1608-57), um produto do
movimento de renovação católica na França (ver capítulo 13). Ele
convenceu um militar, Paul de Maisonneuve, a liderar um grupo de
obreiros dedicados para o alto São Lourenço, onde em 1642 eles
formaram um centro cristão para evangelizar e cuidar dos nativos
americanos e do bem-estar espiritual dos colonos brancos da região. A
Sociedade de St. Sulpice, uma congregação de sacerdotes seculares
criada por Olier, oferecia clérigos para o posto de Montreal, do qual os
sulpicianos acabaram tomando conta.
A figura mais importante da história cristã dos franceses no Canadá
foi François Xavier de Laval-Montmercy (1623-1708). De uma família
antiga e distinta, ele foi profundamente influenciado pela renovação
católica, estava intimamente ligado ao grupo que fundou a Sociedade
Missionária Estrangeira de Paris e foi nomeado pelos jesuítas para liderar
a igreja na Nova França. Em 1658 ele recebeu o cargo de vigário
apostólico e ao chegar em Quebec tornou-se membro do conselho que
governava a cidade. Com pulso firme, Laval manteve a igreja livre do
controle de leigos, exigiu padrões morais igualmente elevados para
clérigos e leigos e causou o ódio dos comerciantes de peles por opor-se à
venda de bebidas alcoólicas para os índios. Reconhecendo a necessidade
de clérigos treinados que se sujeitassem a sua autoridade, em 1663 ele
abriu um seminário (Universidade Laval) que mantinha estreitos laços
com a sociedade de Paris. Em 1674 ele foi nomeado bispo de Quebec.
Impôs o controle centralizado sobre o clero de Quebec e da Acádia, mas
as iniciativas franciscanas e sulpicianas ainda gozavam de uma certa
liberdade de ação.
O fato de Laval ter criado uma estrutura eclesiástica independente
da coroa francesa e de ter formado o clero com canadenses foi o principal
fator que permitiu aos católicos romanos manterem-se firmes depois que
os ingleses assumiram o poder em 1763 e assim ocupar a posição
singular na realidade canadense que ocupa ainda nos dias de hoje. Ao
mesmo tempo, os protestantes americanos consideravam o “papismo”
dos canadenses um símbolo do mal. Assim, à medida em que a Grã-
Bretanha foi ganhando o controle das colônias marítimas e os colonos
protestantes começaram a chegar, o poder da Igreja Católica na região foi
reduzido. Um exemplo triste de inimizade entre as duas comunidades foi
a expulsão dos franceses acádios entre 1755 e 1763. Muitos deles foram
reassentados na Louisiana onde sua herança ainda permanece na cultura
“cajun” (uma corruptela de acadian). Apesar dos franceses terem se
fixado na costa do Golfo no início do século 18, seu trabalho missionário
na Louisiana nunca teve muito sucesso.
Na verdade, houve um declínio na iniciativa missionária devido a
rivalidades entre ordens religiosas, a dissolução dos jesuítas e o efeito
desanimador do Iluminismo sobre o zelo religioso. Além disso, as
missões foram envolvidas nos conflitos entre ingleses e franceses pela
supremacia na América do Norte. Os franceses usaram os índios como
aliados, um atitude encorajada pelos missionários ao retratar os
protestantes como uma ameaça para a alma dos nativos americanos.
Ainda assim o trabalho missionário continuou no século 19 e hoje, mais
da metade da população indígena do Canadá é católica.

A iniciativa missionária alemã


O Pietismo alemão foi uma importante força nas missões
protestantes do século 18 e Halle e Herrnhut os centros do movimento. O
primeiro a entrar em cena foi o rei Frederico IV da Dinamarca e Noruega
(1671-1730) que desejava fazer mais pelo bem-estar espiritual das
pessoas nos postos comerciais de Tranquebar, sul da Índia. Enviar
capelães para ministrar nas feitorias já era uma prática comum, mas ele
também via a necessidade de alcançar os não-cristãos. Quando não
encontrou candidatos adequados entre o clero dinamarquês, o rei apelou
para Francke que escolheu dois alunos de Halle para a tarefa:
Bartholomäus Ziengenbalg e Heinrich Plütschau.
Sem demora, os dois jovens foram ordenados em Copenhague e
depois de uma viagem de sete meses chegaram em Tranquebar no dia 9
de julho de 1706. Tanto na Dinamarca quanto na Índia, havia
considerável oposição contra essa iniciativa mas seu sucesso foi tanto
que outros missionários preparados em Halle logo seguiram seus passos.
Em 1714, Frederico fundou a Escola Real para Avanço da Causa do
Evangelho, garantindo a sanção oficial da Igreja sobre as iniciativas
missionárias da Dinamarca. Em 1718 ele aprovou a nomeação de Hans
Egede (1688-1756) como missionário para a Groenlândia para
evangelizar os noruegueses ali. Quando, três anos mais tarde, ele chegou
lá e não encontrou noruegueses, voltou-se então para a população de
esquimós. Depois de anos de trabalho, Egede adquiriu domínio da
língua, ganhou alguns indivíduos para Cristo e então voltou para casa, de
onde continuou a dirigir a obra na Groenlândia e a escrever sobre
missões.
Mas o verdadeiro legado de Frederick foi a iniciativa na Ásia.
Apesar de Plütschau ter logo desistido, Ziengenbalg trabalhou na Índia
até falecer em 1719 e estabeleceu procedimentos que mais tarde seriam
seguidos por outros missionários. Ele fez das escolas uma parte
integrante da missão, tendo em vista que achava que os cristãos deveriam
ser ensinados a ler para que pudessem estudar a Palavra de Deus. Mas
para que os crentes lessem a Bíblia, ela precisava estar na sua língua
nativa e assim, ele aprendeu tamil e completou a tradução do Novo
Testamento em 1714 e estava trabalhando no Antigo Testamento quando
faleceu. Além disso, ele estudou as religiões e a cultura indianas para
poder pregar ao povo de maneira contextualizada. Ziengenbalg e seus
colegas também insistiam na conversão individual. Eles não trabalhavam
com grupos grandes e através da elite dominante como haviam feito as
missões católicas desde o começo da Idade Média, mas sim, procuravam
ganhar indivíduos para Cristo. Finalmente, formaram congregações
locais, uma prática que por vezes perturbava a hierarquia da Igreja na
Europa. Entre as inovações da missão de Tranquebar estavam também
uma escola para meninas, uma imprensa, o uso de profissionais da saúde
e a ordenação de um pastor tamil (1733).
O trabalho conjunto da Dinamarca e Halle logo tornou-se
conhecido por toda a Europa protestante. Ao logo do século, cinqüenta e
seis missionários foram para a Índia e outras partes do mundo e muitas
das cartas que ele mandavam para casa eram publicadas por uma revista
produzida em Halle. Francke e seus sucessores também usaram uma
grande rede de correspondência e contatos pessoais para incentivar o
interesse em outras partes, Muitos dos que ouviam falar sobre a missão
na Índia chegavam até a mandar doações para Halle visando o seu
sustento. Quando Ziegenbalg visitou a Inglaterra, foi recebido pelo rei
George I bem como pelo arcebispo de Canterbury.
Essa ligação com os ingleses foi importante pois as cartas
missionárias eram traduzidas e distribuídas lá e a Companhia Britânica
das Índias Orientais — cujas operações estavam em constante expansão
— precisava de mais capelães para seus postos. Em 1710 a SPCC
concordou em oferecer fundos para sustentar missionários da parceria
entre Dinamarca e Halle que iriam então trabalhar nos territórios da
Companhia na Índia. Apesar de serem luteranos alemães, eles geralmente
usavam o Livro de Oração Comum, batizavam e observavam a Ceia do
Senhor no estilo anglicano. Trabalhavam, ainda, com a população local e
também com a comunidade européia.
Um desses alemães, Johann Philipp Fabricius (1711-91), foi para
Tranquebar como missionário da parceria entre a Dinamarca e Halle em
1740, logo mudou-se para Madras e passou cinqüenta anos no campo
missionário sem voltar para casa. Ele produziu obras sobre a lingüística
tamil e uma tradução da Bíblia que era considerada a oficial até o século
20. Mais impressionante ainda foi Christian Friedrich Schwartz (1726-
98), que serviu na Índia durante quarenta e oito anos. Passou os
primeiros anos em Tranquebar e então, em 1767, foi nomeado capelão no
posto britânico de Triquinópole. Em 1772, o rajá de Tanjore convidou
Schwartz para trabalhar em seu reino onde, durante algum tempo, ele foi
o guardião do herdeiro do trono e praticamente primeiro-ministro.
Também serviu como emissário britânico ao poderoso Hyder Ali de
Mysore. Apesar de Schwartz ser um homem culto que sabia várias
línguas e podia circular livremente pelas altas rodas, ele levava uma vida
simples e devota, testemunhava constantemente sobre o poder do
Salvador ressurreto e preparava jovens indianos para o ministério.
Outra figura de Halle foi John Z. Kiernander (1711-1800), um
sueco que, depois de completar seus estudos, trabalhou como
superintendente de um orfanato. Então, em 1749 foi para Cudalore, no
sul da Índia, pela SPCC. Forçado a partir durante a guerra anglo-francesa
em 1758, mudou-se para Calcutá e foi o primeiro missionário protestante
a trabalhar lá. Kiernander pregou, abriu escolas e acabou construindo
uma grande igreja e escola que seriam um centro para os missionários
que vieram mais tarde.
Henry Melchior Muhlenberg (1711-87) também estudou em Halle.
Em 1742 ele foi como missionário para três congregações luteranas em
dificuldade na Pensilvânia e imediatamente pôs-se a estabelecer uma
igreja unida, independente e auto-sustentável. Ele pediu mais obreiros e
em 1748 sua liderança cheia de energia resultou na reunião do primeiro
sínodo luterano da América, o Ministerium da Pensilvânia. Este
supervisionou o número cada vez maior de igrejas luteranas das colônias
centrais e serviu de padrão para as organizações sinodais em outras
regiões. Foi com justiça que ele recebeu o título de “pai do luteranismo
americano”. Seu filho mais velho, Peter, que nasceu na América, estudou
em Halle e pastoreou uma congregação em Virgínia, é lembrado por seu
papel na organização de um regimento alemão que lutou na Guerra
Revolucionária.
Outra área de preocupação era o evangelismo dos judeus. Johann
Heinrich Callenber (1694-1760), professor na Universidade de Halle,
estudou árabe, persa e turco e preparou literatura nessas línguas para
ganhar os muçulmanos. O interesse em estudos orientais levou a um
desejo de também alcançar os judeus e, em 1728, ele formou o Instituto
Judaico. Este preparava e colocava em circulação literatura em hebraico e
enviava missionários itinerantes que pregavam entre os judeus e
ministravam aos convertidos.
Os morávios (ver capítulo 14), que eram um ramo do Pietismo de
Halle, lançaram-se à operação missionária mais extensa de todo o século.
Numa visita a Copenhague em 1731, Zinzerdorf encontrou-se com
alguns dos convertidos da missão da Dinamarca-Halle que pediram que
ele mandasse missionários para os seus povos. Ao voltar para Herrnhut, o
conde lançou o desafio aos seus seguidores e J. L. Dober (1706-66) e
David Nitschmann (1696-1772) o aceitaram. Eles partiram no ano
seguinte para as Ilhas Virgens dinamarquesas onde fundaram uma obra
auto-sustentável entre a população negra e ganharam muitos para Cristo.
Outros morávios atenderam o chamado para trabalhar no exterior e foram
fundadas missões na Groenlândia (1733), Suriname (1735), África do
Oeste e do Sul (1737), Estônia (1738), Labrador (1764), Ilhas Nicobar
(1769) e entre os índios norte-americanos. Dober também ministrou aos
judeus em Amsterdã.
Os morávios fundaram igrejas bem-sucedidas na Inglaterra e
Holanda que puderam oferecer mais fundos e obreiros para as missões.
Em 1728 relatou-se que 175 missionários estavam trabalhando em 27
localidades; cinqüenta anos mais tarde o número havia aumentado para
209 obreiros em 41 postos. Durante os primeiros cem anos de iniciativas
missionárias os morávios enviaram 1.199 pessoas, incluindo 459
mulheres. No século 19 outros campos foram abertos na Ásia, África e
América Central.
O maior esforço concentrou-se na América. Começou com uma
tentativa nos assentamentos na Geórgia. Em 1733, August Gottlieb
Spangenberg (1704-92), que até então havia trabalhado no orfanato de
Halle, juntou-se à comunidade em Herrnhut, tornou-se assistente de
Zinzerdorf e acabou sendo seu sucessor. Em 1735 ele liderou um grupo
de dez homens para a Geórgia a fim de formar um assentamento e no ano
seguinte David Nitschmann liderou um segundo grupo para lá. No navio
para o Novo Mundo estavam John e Charles Wesley que ficaram
profundamente impressionados com a devoção desses humildes alemães.
John chegou até a morar com eles durante algum tempo.
Deixaram a colônia morávia na Geórgia em 1740, quando George
Whitefield os convidou para ir a Nazaré, no leste da Pensilvânia, onde
desejava abrir uma escola para negros. Mas por causas das diferenças
entre Whitefield que era mais calvinista e os morávios, ele decidiram
adquirir um local próximo ao rio Lehigh para começar o novo
assentamento. Quando Zinzendorf foi para lá em 1741 ele deu ao vilarejo
o nome de Belém e não demorou para que a comunidade se
transformasse numa pequena Herrnhut da América. Em 1743 os
morávios compraram Nazaré e esta tornou-se a segunda vila comunitária.
Dentre as outras comunidades fundadas nos anos seguintes estavam
Lilits (próxima a Lancaster) e Salem na Carolina do Norte. Zinzerdorf
esperava reunir os grupos religiosos alemães espalhados pela
Pensilvânia, mas todas as suas tentativas de ecumenismo fracassaram e a
igreja morávia logo adquiriu seu próprio caráter denominacional.
As missões indígenas dos morávios constituíram uma realização
notável. Começaram em 1740 com a missão moicana de Christian Rauch
em Nova York e as próprias viagens de Zinzendorf entre os índios. O
missionário mais conhecido foi David Zeisberger (1721-1808), que
conquistou a confiança dos líderes tribais e fundou várias comunidades
cristãs pacíficas. Mas essa iniciativa sofria continuamente com a
oposição dos brancos e com as guerras de fronteiras entre os índios. Em
1782, num acontecimento particularmente trágico, uma milícia colonial
foi responsável pelo massacre brutal de uma vila cristã no norte de Ohio.
Zinzerdorf acabou levando seu pequeno grupo de índios Delaware para
Ontario, onde poderiam preservar sua identidade.

O Reavivamento do século 18
Foi só uma questão de tempo antes que o Pietismo abrisse espaço
em meio ao Anglicanismo, tendo em vista que a Igreja oficial sofria de
problemas semelhantes aos que afligiam o Luteranismo alemão. Seu
ensinamento favorecia a ordem existente, onde cada pessoa havia sido
divinamente escolhida para ocupar um lugar e uma posição social e era
preciso contentar-se com essa posição. Receber o sacramento na Igreja
Anglicana era o teste formal de lealdade ao sistema. As novas ondas de
pensamento — racionalismo, deísmo, latitudinarismo (uma visão
tolerante que não enfatizava a importância da doutrina correta) e
unitarianismo (rejeição da divindade de Cristo) — bem como a corrupção
e imoralidade que assolavam a Igreja contribuíram ainda mais para o
enfraquecimento espiritual. Em outras palavras, “a deterioração da
religião vital”, como colocou o escritor de hinos Isaac Watts, havia
transformado a Igreja numa casca vazia.
O primeiro desafio para a Igreja de fala inglesa veio dos
reavivamentos ou “despertamentos” que varreram a Grã-Bretanha e as
colônias americanas no segundo terço do século 18. Foram
acontecimentos paralelos mas houve um considerável intercâmbio entre
os movimentos, especialmente no ministério de Whitefield. Na Grã-
Bretanha, a primeira explosão de reavivamento ocorreu em Gales, sob a
liderança de Howel Harris (1714-73), um professor que converteu-se em
1735 e começou a pregar nos lares, tendo em vista que não era ordenado.
Em 1737 ele uniu forças com Daniel Rowland (1713-90), um sacerdote
anglicano que havia experimentado um despertamento espiritual quase
na mesma época e através do evangelismo itinerante eles deram início ao
que veio a ser conhecido como Metodismo Calvinista Galês. Harris
assentou-se em Trevecca em 1752 e formou uma comunidade que foi um
centro do evangelicalismo. Um outro reavivamento, apesar de não ter
sido tão espetacular quando o de Gales, ocorreu na Escócia em 1741-42.
Sem dúvida o marco desse movimento de revitalização foi John
Wesley (1703-91). Ele e seu irmão Charles nasceram na casa paroquial
anglicana de Epworth, em Linconshire. Sua mãe, Susanna (1703-1742)
exerceu uma influência decisiva na formação do caráter dos dois através
de sua profunda fé pessoal, do uso parcimonioso da disciplina e do
costume de apresentar literatura devocional cristã para a família. John
preparou-se para o ministério em Oxford, foi ordenado e trabalhou como
professor do Lincoln College. Em 1729, ele formou o “Clube Santo” em
Oxford do qual Charles, George Whitefield e outros alunos faziam parte.
Eles dedicavam-se à oração, ao estudo do Novo Testamento em grego, às
obras de caridade e receberam o apelido de “metodistas” pois haviam
adotado um método disciplinado de aprimoramento espiritual.
Em 1735 ele e Charles foram nomeados para a capelania da SPE na
Geórgia e lá chegaram no ano seguinte. Eles viajaram no mesmo navio
que um grupo de morávios e John foi questionado por Spangenberg
sobre a certeza da sua salvação. Ele deveria ir trabalhar entre os índios,
mas depois de dois anos frustrantes, voltou para casa. Logo depois disso
conheceu Peter Böhler, líder dos morávios de Londres, que lhe falou
sobre a necessidade de uma fé mais profunda. Wesley anotou em seu
diário que ele foi a reunião de oração desse grupo na rua Aldersgate no
dia 24 de maio de 1738 e enquanto eles liam um trecho do prefácio de
Lutero ao livro de Romanos, “Senti meu coração estranhamente
aquecido. Senti que confiava em Cristo e só em Cristo para a salvação”.
(Apenas três dias antes, Charles que também havia voltado para a
Inglaterra teve uma experiência evangélica semelhante sob a influência
de Böhler.) No mês seguinte, John foi para a Alemanha e visitou Halle e
Herrnhut, firmando assim o laço espiritual entre o Pietismo e o
Metodismo.
Isso abriu caminho para os irmãos Wesley percorrerem a terra para
levar a mensagem de Deus às pessoas onde quer que estivessem. Depois
de vinte anos de itinerância, Charles assumiu um ministério fixo, mas
como autor de 7.270 composições, ele é lembrado como possivelmente o
mais talentoso e prolífico escritor de hinos na língua inglesa. Dentre os
mais conhecidos estão Jesus Lover of My Soul [Jesus o Amado de
Minh'alma], Oh, for a Thousand Tongues to Sing [Quem Dera Saber Mil
Línguas para Cantar] e Love Divine, All Loves Excelling [Amor Divino,
que Excede Qualquer Outro Amor].
Seguindo uma sugestão de Whitefield, John começou a pregar ao ar
livre. Isso dava-lhe mais flexibilidade, tendo em vista que não era bem-
vindo em muitas igrejas pois estava constantemente viajando, falando
onde quer que houvesse um público. Durante os cinqüenta anos seguintes
ele viajou mais de 375 mil quilômetros (a maior parte à cavalo) e pregou
quarenta mil sermões. Em seu diário Wesley observou:

Vejo o mundo todo como minha paróquia; até agora, em qualquer parte dele que me
encontre, julgo cumprir meu dever: declarar a todos que mostram-se dispostos a ouvir as
boas novas da salvação. Esta é a obra para a qual sei que Deus me chamou; certo estou de
que é acompanhada de sua bênção.

Ele proclamava a justificação pela fé, o novo nascimento e a


perfeição cristã (santificação). Insistia que um cristão pode ser santo
neste mundo, mas não completamente livre de fazer o mal. Suas
pregações nas ruas e nos campos muitas vezes suscitava oposição
violenta, mas ele era absolutamente destemido e estava certo de que Deus
estaria com ele mesmo nas situações mais desalentadoras. O grande
número de pessoas das classes operárias e o “entusiasmo” que
demonstravam em suas reuniões eram criticados por alguns das classes
mais altas. Outros o condenavam por pregar fora da igreja e permitir que
leigos pregassem.
Um anglicano leal, não era a intenção de Wesley fundar uma nova
Igreja, mas o movimento inevitavelmente caminhou para essa direção.
Seu objetivo era simplesmente proclamar o evangelho às pessoas que não
haviam sido alcançadas e oferecer a elas o sustento espiritual. Dentro do
modelo morávio, ele criou a “sociedade” metodista, que por suas vezes
era dividida em classes e grupos. Nas reuniões, os membros avaliavam a
vida espiritual uns dos outros e estudavam as Escrituras. As sociedades
era agrupadas em circuitos (por onde passavam os pregadores) e os
circuitos organizados em distritos. Essa estrutura compunha a “Conexão”
metodista. Os pregadores, normalmente leigos, encontravam-se numa
conferência anual para receber instruções e futuros trabalhos.
O verdadeiro pioneiro do evangelismo itinerante foi o amigo e
colega de Wesley, George Whitefield (1715-70). Convertido em Oxford
em 1735, depois da formatura foi para a Geórgia a convite dos irmãos
Wesley para começar um orfanato. Quando estava de volta à Inglaterra
para sua ordenação em 1739, descobriu o valor das reuniões ao ar livre e
não demorou para que estivesse pregando para milhares de pessoas. Ele
teve um papel importante no reavivamento escocês e na formação da
Associação Calvinista Metodista de Gales. Apesar do nome metodista
aplicar-se, a princípio, aos seus seguidores, logo surgiram diferenças
teológicas entre ele e Wesley. Para evitar um conflito, ele entregou a
liderança do movimento metodista e concentrou-se na América, onde seu
coração estava de fato e para onde viajou sete vezes. Whitefield foi o
pregador mais conhecido das colônias e o renovador do século.
Uma de suas seguidoras foi Selina Hastings, condessa de
Huntingdon (1707-91) que após sua conversão tornou-se morávia e
depois metodista. Assim como Whitefield, ela seguia o Calvinismo e em
vários lugares ela abriu capelas que combinavam o evangelicalismo com
uma modelo mais litúrgico de adoração. Em 1768 ela fundou uma escola
para pregadores no lugar onde se encontrava Harris, em Trevecca, a fim
de treinar obreiros para seu grupo de metodistas calvinistas, chamado de
Conexão da Condessa de Huntingdon.
As viagens de pregação de Whitefield foram um elemento essencial
para o “Grande Despertamento” da América. O reavivamento colonial
tinha suas raízes nos movimentos de renovação pietistas calvinistas nas
colônias centrais, especialmente aquelas do pregador holandês reformado
Theodorus Frelinghuysen (1691-1747) e do presbiteriano Gilbert
Tennent (1703-64), mas a figura que mais se destacou foi sem dúvida
Jonathan Edwards (1703-58). Formado em Yale e pastor
congregacionalista em Northampton, Massachusetts, suas pregações
levaram a um reavivamento da igreja em 1734-35. Os relatos que ele
publicou sobre esse acontecimento circularam por toda a parte nas
colônias. Então, em 1740 as pregações de Whitefield e Tennent
alimentaram um reavivamento em Boston que espalhou-se para o sul até
a Virgínia durante os dois anos seguintes. Pelo fato dos clérigos coloniais
estarem profundamente divididos sobre o valor do despertamento
espiritual, os leigos começaram a tomar a iniciativa na vida religiosa,
gesto que foi um importante passo para a democratização do
protestantismo americano. Ao mesmo tempo, através de seus muitos
escritos, Jonathan Edwards articulou com força e precisão a posição
calvinista que o colocou entre os grandes teólogos reformados. O
Despertamento foi levado à região marítima do Canadá por Henry Alline
(1748-84). Em 1775 ele teve uma experiência intensa de conversão e
imediatamente sentiu uma profunda convicção de que Cristo o havia
chamado para pregar, mesmo que ele não tivesse preparo teológico
formal. Assim, durante os anos da Guerra Revolucionária ele viajou pela
Nova Scotia e fundou várias igrejas batistas e congregacionais. Por causa
do impacto que seu movimento de reavivamento teve sobre os ianques da
Nova Scotia, dando-lhes um senso de identidade, alguns historiadores o
consideram a maior figura religiosa protestante do Canadá.

O Protestantismo estava mudando de duas maneiras. Uma era sua


consciência cada vez maior de que havia pessoas além das fronteiras da
Europa que não conheciam a Cristo e precisavam ser alcançadas pelo
Evangelho. A outra consistia em entender e colocar em prática o aspecto
pessoal da fé cristã que estava implícito no conceito de sacerdócio de
todos os crentes. Com o poder católico se enfraquecendo na Europa, o
Protestantismo estava se posicionado de forma a avançar gradualmente
na competição pelas almas. Mas uma questão crucial continuava sem
resposta: A revolução que estava prestes a acontecer na Europa facilitaria
ou atrasaria esse processo?

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