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2 A Noção de Existência em Frege
2 A Noção de Existência em Frege
1. Modalidades e Existência
Como exemplo do primeiro caso, Frege apresenta: «É possível que a Terra venha,
alguma vez no tempo, a colidir com outro corpo celeste)>; como exemplo do segundo caso:
«Uma gripe pode provocar a morte.» Neste breve e único texto em que refere as modalidades,
Frege dá por concluída a sua lógica modal, enclausurando-a entre duas fronteiras:
b) a redução do modal ao extensional, uma vez que, do ponto de vista lógico, os operadores
modais podem reconverter-se em operadores quantificacionais. «É necessário que...» tem um
significado e um valor lógico equivalente a «Sempre que...», ou «Todas as vezes que...».
A primeira redução não é mais do que uma réplica (não sei se assumida ou meramente tácita
da parte de Frege) da tese de Kant sobre as modalidades tal como é exposta no conhecido
texto da Kritik der reinen Vernunft 2:
mas apenas subjetivamente, isto é, acrescentam ao conceito de uma coisa (do real), acerca da qual de
resto nada dizem, a faculdade de conhecimento de onde tem a sua origem e seu lugar, de tal modo
que, se esse estiver apenas no entendimento em ligação com as condições formais da experiência, o
seu objecto é possível; se estiver articulado à percepção. (à sensação como matéria dos sentidos) e por
ela for determinado, mediante o entendimento, o objecto é real; se é determinado pelo encadeamento
das percepções segundo conceitos, o objecto é necessário.”(ibid., B 286-87 A 234).
Do mesmo modo, há razões e provas suficientes para concluir que Frege, depois da Bs,
se afasta substancialmente da primeira redução e apresenta das noções modais e da existência
perspectivas irredutíveis a esta primeira concepção epistémica, ou cognjtiva (segundo
expressão de Vuiliemin). É nos Grl que Frege explicita o seu pensamento sobre a noção de
existência: apresentando inicialmente uma concepção da existência aparentemente
concordante com a de Kant, pode detectar-se também no texto uma profunda divergência,
latente, quer desenvolverá em textos posteriores (Grg, Ged, sobretudo).
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Tal como vem formulada no parágrafo 53 dos Grl, a noção fregeana de existência é
análoga à de Kant. A comparação dos textos dos dois autores faz ressaltar com nitidez essa
afinidade. Diz Kant:
“No simples conceito de urna coisa não se pode encontrar nenhum carácter da sua existência.
Embora esse conceito seja de tal modo completo, que nada lhe falte para pensar a coisa com todas as
determinações internas, a existência nada tem a ver com tudo isso: trata-se apenas de saber se a coisa
nos é dada, de tal modo que a sua percepção possa sempre preceder o conceito” (Kritik... B 273 A
225).
Neste aspecto a existência é análoga ao número. Afirmar a existência, com efeito, não
é senão negar o número zero. (Grl § 53).
“Se o conceito precede a percepção, isto significa a mera possibilidade da coisa; mas a
percepção, que fornece a matéria para o conceito, é o único carácter de realidade.” (ibid., B 173 A
225).
Frege diverge de Kant exactamente nesta fronteira tão radicalmente estabelecida entre
possível e real. Embora a sua afirmação de que a existência é um predicado de segundo nível
possa coincidir no início com a de Kant, segundo a qual a existência não é um predicado real,
tal coincidência radica apenas na exclusão do predicado da existência do conjunto de
determinações ou notas características de um conceito. Daqui Kant concluirá que não é um
predicado real; porém a conclusão fregeana. de que não é um predicado de primeiro nível não
implica que não seja real: trata-se de um predicado de predicados, que, em Frege, como
veremos, é também real. Outra afinidade inicial nas duas teses, que conduzirá a teses
divergentes, é o contra-exemp1o que ambos os autores apresentam para ilustrar a exclusão da
existência das determinações de um conceito: o argumento ontológico da existência de Deus.
AfirmaKant:
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Ser não é, evidentemente; um predicado real, isto é, um conceito de algo que possa
acrescentar-se ao conceito de uma coisa; é apenas a posição de uma coisa ou de certas determinações
em si mesmas. No uso lógico é simplesmente a cópula de uni juízo. A proposição “Deus é
omnipotente” contém dois conceitos que têm os seus objectos: Deus e omnipotência; a minúscula
palavra “é” não é um predicado, mais, mas tão -somente o que põe o predicado em relação com o
sujeito (Kritik... B 627, A 599).
Estas circunstâncias particulares nas quais seria possível deduzir uma propriedade a
partir das notas características de um conceito parecem ser as que se dão no caso de uma
proposição ser analítica, considerada em si mesma, e portanto ontologicamente necessária,
embora esta necessidade não implique necessidade epistémica. Esta distinção, entre
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Por isso, a afirmação «Há Júlio César» não é verdadeira nem falsa, mas simplesmente sem
sentido, enquanto «Há um homem cujo nome é Júlio César»’tem sentido (cf. BG).
Esta diferença radical da relação estar subordinado a e cair sob (relação entre
conceitos e relação entre um indivíduo e a respectiva classe a que pertence) está em causa na
análise do predicado de existência no referido parágrafo 53 dos Grl. Por ser um predicado de
segundo nível, Frege quer sublinhar bem que nenhum objecto pode cair sob esse predicado,
mas alguns conceitos estão-lhe subordinados, por exemplo, a não-vacuidade, que é
propriedade de alguns conceitos.
O conceito de todos os conceitos sob os quais cai um só abjecto tem como nota
característica a unidade. Sob esse conceito cairia, por exemplo, o conceito «Lua da Terra»,
mas não este planeta em si. Portanto, podemos fazer cair um conceito sob outro conceito mais
elevado, mas esta relação de subordinação é muito diferente da relação de um objecto
subsumido por um conceito. Assim, existência seria um conceito de nível mais elevado.,, ao
qual pertenceriam todos os conceitos no vazios. Mas este predicado de existência não se pode
atribuir diretamente aos objetos que caem sob esses conceitos.
Frege considera portanto a existência como um predicado de predicados, um conceito
de conceitos; evita assim identificar a existência com um conceito simplesmente geral, uma
espécie de summum genus de todos os objetos existentes. Um conceito de extensão tão vasta é
rejeitado por Frege: ao referir-se à unidade como sendo hipoteticamente um conceito, Frege
afirma:
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Para encontrar uma resposta à primeira questão, algumas análises dos Grl fornecem
elementos valiosos permitindo antever um outro sentido de existência, que Frege explorará
mais tarde nos Grundgesetze: de atualidade (Wirklichkeit).
o próprio conceito, ou existem vários objetos. Assim se esclarece a afinidade entre existência
e número.
A compatibilidade entre a identidade e a discernibilidade das unidades resolve-se com
a distinção de dois diferentes sentidos do termo ‘unidade’:
A palavra «unidade» é utilizada num duplo sentido. Por um lado, as unidades são
idênticas no sentido explicado (...) (enquanto subsumidas por um mesmo conceito). Na
proposição «Júpiter tem quatro luas», a unidade é «lua de Júpiter». Sob este conceito caem os
satélites 1, II, III, IV. Pode dizer-se: a unidade à qual se refere 1 é idêntica àquela a que se
refere II, etc. Aí temos à identidade. Mas, por outro lado, quando se fala da distinção das
unidades, entender-se-á .a capacidade de distinção das coisas contadas ( §54).
O primeiro sentido de unidade (a unidade das coisas que caem sob um mesmo
conceito e, portanto, são idênticas) é análogo à noção de existência enquanto predicado de
segundo nível. Trata-se de enunciar a propriedade de um conceito, a de que subsume pelo
menos um objecto, não este ou aquele objecto determinado, mas um apenas, que é só um caso
do conceito em questão. Mas, como assinala Frege, a própria ação de contar remete para outro
sentido de unidade que não envolve unicamente o sentido de unidades iguais, de objetos
pertencentes a um mesmo conceito, mas que permite considerá-las como discerníveis entre si.
Enquanto o primeiro sentido de unidade apresenta uma nítida analogia com a
existência como quantificador existencial (existência no sentido estritamente lógico), este
segundo sentido remete para um outro sentido de existência: aquele que se predica, não dos
conceitos, mas dos próprios objetos reais que sob eles caem, a existência de cada coisa, não
considerada como um caso de uma generalidade, mas como coisa em si mesma única e
irrepetível.
Nos Grundlagen, Frege distingue apenas dois sentidos do termo ‘unidade’ e não
estabelece qualquer analogia com os sentidos do predicado de existência. No entanto, a
distinção entre os dois sentidos da existência, que correspondem aos ‘da un4dade, é
expressamente indicada nos Grundgesetze (Introdução p. 25):
Com isto... (a confusão dos lógicos psicologistas entre conceito e objecto, propriedade e nota)
se relaciona a sua concepção errada sobre os juízos da linguagem corrente que se exprimem em
‘chá...». Esta existência, o Sr. Erdmann confunde com atualidade (vol. 1 p. 311) que, como vimos,
também é claramente distinta de objectividade. De que coisa estamos nós a afirmar que é atual quando
dizemos que «há raízes quadradas de 4»?. De 2 ou —2? Mas nem um nem outro são nomeados aqui
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de modo algum. E se eu desejasse dizer que o número 2 atua ou é ativo ou atual, isto seria falso e
completamente diferente daquilo que eu digo. com a frase «Há raízes quadradas de 4». A confusão é
das mais grosseiras possíveis; porque não se trata de conceitos do mesmo nível, mas sim de conceitos
de primeiro e de segundo nível.
O sentido a que se refere Frege, expresso usualmente nos juízos da forma «há...»
corresponde ao sentido lógico dã existência traduzido pelos quantificadores e, como foi já
dito, indica que existem objectos pertencentes à extensão do referido conceito. Neste caso, o
predicado «existe» atribui-se a objectos concretos, mas indeterminadamente, isto é, sem
referir nenhum em particular, sem isolar ou discriminar um objecto determinado. Frege
exprime-o ao dizer que, quando se afirma «há raízes quadradas de 4», não estamos a nomear
expressamente nem 2 nem —2. Este o sentido da existência como predicado de segundo
nível, noção que se aproxima da tese de Kant, segundo a qual a existência não é um predicado
real.
O outro sentido a que se refere Frege neste texto é o da existência quando atribuída
também aos objectos, não enquanto casos que indeterminadamente preenchem a extensão de
um conceito ou enquanto membros de uma classe, mas sim na sua individualidade concreta,
enquanto existentes realmente actuais. A actualidade (Wirklichkeit)7 é constituída pelo
universo dos seres realmente existentes na sua individualidade concreta, imersos num
processo temporal, submetidos à acção de outros existentes actuais e podendo também exercer
uma acção determinada sobre eles (cfr. «Der Gedanke», onde Frege desenvolve esta noção de
actualidade’ em contraposição ao domínio do pensamenLo, que é real, mas não actual).
Confundir a existência do actual (wirklich) com a mera, existência lógica, para a qual
Frege introduzirá um neologismo (Esgibtexistenz) 8, é considerado um erro «grosseiro»
originadp pelo desconhecimento dos diferentes níveis de predicação.
lógicos que não” podem ser captados pelos sentidos, mas são apreendidos pela mente; não se
confundem nem se identificam tão-pouco com os signos sensíveis com os quais lhes fazemos
referência, os. numerais. A dificuldade está em entender que nem só o que pode ser percebido
pelos sentidos é que existe propriamente. Esta perpectiva é que impede que o pensamento de
Frege seja compreendido, como ele próprio o reconhece nos Grundgesetze (p. 10):
É pouco favorável para a minha obra a tendência generalizada para reconhecer como existente
apenas aquilo que pode ser percebido pelos sentidos, O que não é perceptível é geralmente negado ou
ignorado. Ora os objectos da aritmética, isto é, os números, não podem ser apreendidos pelos sentidos.
Por isso, tomamos muitas vezes os signos numéricos, que são algo de visível, pelos
próprios números. Todavia, estes signos têm propriedades completamente diferentes dos
próprios números, e esta identificação conduz quase sempre a asserções de existência que
tomam por critério básico a «tangibilidade» (ibid.).
Este novo sentido da noção de existência vem reforçar a ideia de que o universo de
Frege não é apenas constituído por objectos concretos, individuais, nem tão-pouco por
conjuntos de qualidades, de predicados agrupados de modo mais ou menos arbitrário:
além do actual, existe também como constitutivo desse universo o objectivo não actual, que
inclui, além dos objectos lógicos os conceitos, os sentidos, o pensamento (cfr. Ged.). Este
domínio é tão real como o primeiro, o que prova que a fronteira entre real e não real, segundo
Frege, não separa radicalmente o actual do objectivo, a Wirklichkeit da Objektivität.
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Urna tal hierarquia do próprio universo real tem evidentes reflexos na linguagem: a
existência não pode ser atribuída univocamente ao que é actual e ao que pertence ao objectivo
não actual.
Na Kritik, Kant define o possível como «o que está de acordo com as condições formais da
experiência (quanto à intuição e aos conceitos)» (ibid., B255, A218), ou seja, o que está
“apenas no eu entendimento em ligação com as condições formais da experiência.» (ibid., B
256, A 234)
Assim, a distinção entre as coisas possíveis e as coisas reais é uma distinção que tem
apenas um valor meramente subjectivo para o entendimento humano, pois que podemos
sempre pensar alguma coisa, mesmo que não exista, ou. representar alguma coisa como dada,
se bem que não tenhamos ainda nenhum conceito.
Ao fazer radicar a distinção das modalidades nas suas relações com as próprias
faculdades do conhecimento, Kant reafirma, de modo claro e explícito, a sua tese do «Ser
como posição»: o possível significa somente a posição (Position) da representação de uma
coisa relativamente ao nosso conceito e em geral à faculdade de pensar, enquanto o real
significa o acto de posição (die Setzung) da coisa em si mesma (fora deste conceito).
O conceito mais elevado, pelo qual é uso iniciar uma filosofia transcendental, é, vulgarmente,
o da divisão em possível e impossível. Como porém, toda a divisão pressupõe um conceito dividido,
deverá indicar-se outro, ainda superior, e esse é o conceito de um objecto em geral (considerando em
sentido problemático, sem decidir se é alguma coisa ou nada). (Kritik, B 347, A 290).
1) conceito vazio sem objecto (ens rationis): não são possibilidades, ser considerados
como impossibilidades;
O primeiro, o ser de razão, é considerado por Kant como «apenas ficção», embora
não contraditória, e é excluído do mundo dos possíveis, sem lhe ser no entanto oposto; o
último opõe-se à possibilidade, pois é uma contradição. Ambos são conceitos vazios. O nihil
privativum e o ens imaginarium são dados vazios para conceitos.
É algo — e não nada — o que se pode apresentar como objecto, o que tem a
objectualidade ou a característica de poder ser dado como objecto. Para que algo seja uma
realidade objectiva, é necessária a «coisidade» posta como objecto, que nos é acessível como
objecto da experiência. Possibilidade e realidade são pois dois modos de posição do ser pelo
pensamento que se contra- põem: o possível é não real, o real não é o possível. Em Kant não
se poderá falar de uma possibilidade real ou de uma real possibilidade.
Esta última acepção do predicado da existência implica, sem dúvida, uma nova
formulação da noção de possibilidade. Assim como é clara em Frege a atribuição de um
sentido de existência como predicado de conceitos, mas que incide sobre os objectos por ele
subsumidos, e de um outro sentido para os conceitos em si mesmos considerados (o que
permite afirmar que «o conceito ‘conceito vazio’, tem a propriedade de existir», ou «existe o
conceito ‘conceito vazio’»), assim também deverá haver uma correspondente modulação na
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noção de possibilidade. Com efeito, Frege parece distinguir claramente entre possibilidade
lógica (ou possibilidade de ser um conceito) e possibilidade real (ou possibilidade de ser um
objecto), distinção que se segue da radical separação entre conceitos e objectos.
Tomando posição contra os matemáticos, formalistas (cf. § 94), Frege nega a tese
clássica segundo a qual a possibilidade lógica significa não contradição: só é impossível, para
o matemático, o que é logicamente impossível, isto é, o que envolve contradição. Para tanto,
apresenta como contraexemplo o conceito de objecto diferente de si mesmo, que serve para a
definição de conjunto vazio. É absurdo querer fundar a existência sobre a ausência de
contradição, como se a ausência de contradição fosse já a existência da coisa.
O que não fica claro em toda esta argumentação é o critério fregeano de distinção
entre vazio e contraditório: se é a existência de algo o que prova, em última análise, tanto a
não vacuidade como a não contradição de um conceito, parece não haver uma possibilidade
de distinguir, logicamente, se um conceito não subsume nenhum objecto por ser vazio, ou por
ser contraditório. Os limites do pensável parecem esfumar-se na linha do horizonte, onde uma
névoa encobre a demarcação nítida entre o possível (pensável) e o impossível (impensável).
do entendimento, mas alguma espécie de forma que o entendimento capta na realidade que
conhece. O possível encontra-se «misturado» com o actual, constituindo o universo real. O
nihil negativum, que Kant considera, tal como a forma da intuição, destituído de algo de real
poi não ser um objecto, é para Frege um Gedankengefüge, um elo de ligação entre objectos, e,
como o real não é constituído apenas por objectos, Frege não terá dificuldade em considerar
como reais, ou constitutivos do real, também estes elos de ligação.
A noção de possível em Frege é, pois, uma noção alargada, que não se opõe
simetricamente a impossível. O que é o impossível? O que não é nem será nunca? O que não
é nem será nunca, se no entanto pode ser pensável, é também possível. O que é contraditório
consigo mesmo também pode ser pensado (ainda que provisoriamente), portanto também não
será completamente impossível.
Possível opõe-se a actual (wirklich — noção que Frege desenvolve no escrito “Der
Gedanke”): é possível tudo o que é mas não é actual, o modo de ser actual envolvendo uma
referência ao processo temporal. O possível identifica-se, portanto, com esse terceiro reino
dos pensamentos atemporais, invariantes.
Na Bs (p. 17), Frege refere já uma certa ordem (Rang) entre os conceitos, mas é nos
Grl que, a par da teoria do número, desenvolve e explora a sua distinção, entre conceitos de
primeira e segunda ordem (como foi referido atrás, cf. § 55 dos Grl). Como vimos, devido ao
princípio de absoluta separação entre objectos e conceitos, Frege não pode considerar que a
relação entre um predicado de primeiro nível e os objectos (argumentos) seja análoga à
relação entre um predicado de segundo nível e predicados de primeiro nível; estes últimos são
a expressão de um conceito e por isso não podem nem lógica nem gramaticalmente ser
tomados como abjectos. No seu ensaio «Über Begriff und Gegenstand», em resposta às
críticas de Kerry, Frege desenvolve esta distinção entre a relação de um objecto com um
conceito sob o qual cai e a relação de subordinação de um conceito a outro conceito. Essas
duas relações, que a linguagem natural por vezes exprime de modo semelhante, são
nitidamente diferenciadas por Frege: assim, na frase «todos os mamíferos são terrestres», o
sujeito gramatical «todos os mamíferos» não traduz adequadamente o sujeito lógico ao qual
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se atribui o predicado «são terrestres»: a negação desta proposição não é «todos os mamíferos
não são terrestres», mas sim «nem todos os mamíferos são terrestres». Todos pertence pois
logicamente ao predicado. Assim se vê com clareza que a proposição logicamente exprime
que «o conceito mamífero está subordinado ao conceito terrestre», que se nega dizendo «o
conceito mamífero não está subordinado ao conceito terrestre», ou, em linguagem corrente,
«nem todos os mamíferos são terrestres».
o que aqui se predica de um conceito nunca pode ser predicado de um objecto, pois um nome
próprio nunca pode ser uma expressão predicativa, embora possa ser parte dela (BG, p. 50).
A sentença “Há Júlio César” não é verdadeira nem falsa, mas em sentido, embora a
sentença “Há um homem cujo nome é Júlio César» tenha sentido; mas aqui temos novamente
um conceito, como o mostra o artigo definido (ibid.).
De modo semelhante, o que ocorre na proposição «Há apenas uma Viena»: neste caso,
«Viena» é um termo conceptual, e não o nome próprio de uma cidade única. Trata-se de
considerar o conceito «cidade imperial», ao qual pertence apenas um só objecto, a cidade
chamada Viena.
Embora a noção dos níveis da linguagem tenha sido desenvolvida por Frege neste
ensaio para resolver os problemas da insaturação11, esta estratificação da linguagem em
diferentes níveis permite uma tradução lógica adequada da noção de existência, através dos
quantificadores. Na hierarquia fregeana, as expressões completas são os nomes próprios
(termos singulares ou expressões complexas designando um objecto determinado) e as
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Só um conceito que isole o que sob ele cai de uma maneira definida, e que não permite
nenhuma divisão arbitrária em partes, é que pode ser uma unidade relativa a um número finito
(ibid., § 34).
Nem todos os conceitos estão assim constituídos. Podemos, por exemplo, dividir o que cai sob
o conceito vermelho de várias maneiras, sem que as partes deixem de cair por isso sob esse
conceito.
Por isso, não tem sentido perguntar: quantos vermelhos há? Frege sugere
cuidadosamente que a um conceito deste tipo não lhe corresponde um número finito. Mas o
problema está em que nem sequer se pode começar a contar. Só servem para contar
(enumerar), aqueles termos que determinam um cardinal, excluindo a hipótese de que a
divisão do que é F dê lugar a partes que são também F, ou de que da combinação de coisas
que são F resulte um todo que também seja F.
deste tipo; só se pode identificar por relação a uma espécie de coisa, assim como só se pode
contar alguma espécie de coisa. Esta noção de identidade está intimamente relacionada com a
de existência, como Geach o traduz, dizendo que «não há entidade sem identidade» (no entity
without identity).
Nos Grl Frege apresenta algo de muito parecido com esta posição. Trata-se da citação
de Espinosa (§49):
Eu digo que uma coisa é dita uma ou única simplesmente em relação à sua existência, e não
em relação à sua essência; porque só podemos pensar nas coisas em termos de número depois
de as termos reduzido a um género comum. Por exemplo, um homem segura na sua mão um
sestércio e um dólar, só poderá pensar no número dois se cobrir o seu sestércio e o seu dólar
com um mesmo nome, por exemplo moeda de prata; então poderá afirmar que tem duas peças
de prata.
Infelizmente, ele, Espinosa, continua: Por isso é evidente que nada pode ser designado como
sendo um ou único, a não ser quando alguma coisa tiver sido concebida antes, algo que se lhe
equipare. E daqui conclui Espinosa que não podemos propriamente dizer que Deus é um ou
único porque é impossível para nós formar um conceito abstracto da sua essência.
apreendido já antes o conceito (isto é, as notas características) de esse algo, sem ser pela via
dos objectos que subsume, uma vez que é vazio? (Cf.. § 49, in finem). Criticando o referido
passo de Espinosa, Frege escreve (ibid.):
Espinosa é induzido em erro pela ideia de. que um conceito só pode ser adquirido por
abstração directa a partir de um número de objectos. Pelo contrário, nós podemos também alcançar um
conceito, começando pelas suas notas características; e nesse caso é possível que nada caia sob ele. Se
isto não fosse assim, não seríamos nunca capazes de negar a existência, e portanto também a asserção
da existência perderia o seu conteúdo.
Frege distingue entre sentido e referência dos nomes próprios: o sentido é o «modo de
dar-se» do objecto, o aspecto sempre parcial segundo o qual designo o objecto. A mesma
referência pode ser designada segundo vários sentidos: «o discípulo de Platão», «o mestre de
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Alexandre», «o filósofo de Estagira» são nomes próprios que designam o mesmo indivíduo,
«Aristóteles».
A atribuição de sentido aos nomes próprios é a principal inovação da semântica
fregeana dos nomes próprios. Para Stuart Mili um nome tem denotação, mas não conotação: a
função de um nome próprio é única e simplesmente denotar o seu referente, não significa
(means) nem conota nada. Por isso, os nomes próprios não constituem parte de urna língua,
não fazem parte da sua aprendizagem. George Washington não vem no dicionário de inglês e
não significa nada, não tem sentido perguntar pelo seu significado. O nome apenas refere,
designa, um indivíduo determinado.
Russell considera a distinção fregeana entre sentido e referência como urna «confusão
inextricável» (an inextricable tangle)13, e defende que o significado de um nome próprio é o
seu referente; por isso, o acto de nomear implica um conhecimento directo (acquaintance) da
sua denotação. Assim, corno nenhum de nós tem um conhecimento directo de Rómulo, é
evidente que, para Russell, «Rómulo» não é logicamente um nome próprio. Um nome
próprio, em sentido estrito, apresenta a sua denotação através do conhecimento directo
(acquaintance) do seu referente. Para Frege, o nome apresenta-nos a sua referência através de
um sentido que exprime um aspecto, sempre parcial, do objecto designado. Não há nenhum
problema referencial no caso de um nome próprio (signo ou expressão designatória) não ter
referência; por esse facto não deixa de ter significado. Em «Über Sinn und Bedeutung», Frege
apresenta alguns exemplos de nomes próprios sem qualquer referência: «o corpo celeste mais
afastado da Terra», “a série que converge menos rapidamente». Como o seu significado não
consiste na sua referência, a falta desta não implica um sem sentido.
negativos sobre um ser individual. «A não existe» (A = nome próprio), de acordo com as
teses de Russell, é ou falso ou sem sentido: no caso de «A» ser realmente um nome próprio,
«A» tem necessariamente um referente e, portanto, é falso afirmar a sua não existência; se não
é efectivamente um nome próprio, a frase torna-se sem sentido. Para resolver o paradoxo
referencial, Russell apresenta duas soluções14.
predicado não real) às próprias proposições sobre singulares, assimilando os nomes próprios a
uma construção feita de predicados gerais e quantificadores. (Sócrates existe» significa que
«há um indivíduo que satisfaz uma série de predicados, predicados que se encontram
abreviados e representados pelo nome «Sócrates» que, em última análise,
não é um nome próprio.) O resultado da tese de Russell será pois uma linguagem construída
por quantificadores e termos puramente predicativos gerais, da qual se eliminam os nomes
próprios:
O que se perde na passagem das descrições definidas para os nomes próprios é precisamente o
mais característico destes últimos: um tipo de unicidade que as descrições — por muito definidas que
sejam — não podem exprimir, precisamente porque introduzem a mediação de termos gerais que
diluem a individualidade da referência.15
Qual a posição da semântica de Frege relativa aos nomes próprios? Terá partilhado a
tese de Russell, identificando os nomes com descrições definidas abreviadas, ou considerar-
se-á mais próximo da noção de Kripke de «designador rígido»?
expresso numa descrição da forma «A montanha vista pelo viajante A em tal data, a sul, na
linha do horizonte». Mas, como nota Dummett, isto não quer dizer que se identifique sempre
o nome com uma descrição definida; apenas deve haver um meio de reconhecer um objecto
como sendo o mesmo referente de dois nomes diferentes (cfr. Dummett, FPL, p. 58).
É mais. plausível, portanto, que Frege tenha considerado a descrição definida apenas
como um dos modos de dar o sentido do nome, fornecendo um critério de identidade do
referente. Por outro lado, Frege não limita a categorização de nome próprio aos nomes
logicamente simples, o nome no sentido corrente, uma palavra simples que designa
imediatamente o seu objecto. Segundo a caracterização aristotélica, um nome não pode ser
decomposto em partes que signifiquem separadamente (De Int., 16a 20-21). Pelo contrário,
para Frege, são nomes próprios também as expressões complexas; ou seja, as «descrições
definidas», são também nomes próprios, por designarem ou referirem um objecto
determinado, e não, como pensa Russell, um predicado ou conjunto de predicados. Na
semântica de Frege, os predicados, os atributos, as propriedades são traduzidas por
«expressões incompletas» pertencentes a uma categoria diferente e têm por isso um modo de
referir diferente também.
Porém, falta à semântica dos nomes próprios de Frege o fundamento de uma lógica
analógica permitindo urna ordenação ou hierarquização dos predicados capaz de evitar o
igualitarismo ou nivelação dos possíveis sentidos, que vai pôr em causa a noção de objecto ou
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de indivíduo. Os diferentes sentidos, como modos de dar-se de um objecto, são sempre partes
do mesmo objeto; não fornecendo um critério para a captação de um sentido primeiro
(equivalente à atribuição da essência ou da predicação da substância segunda à substância
primeira), Frege deixa desprotegida a noção de indivíduo. A nenhum sentido é atribuída a
função de fixar a referência. Assim, a referência identifica-se remotamente com o objecto,
mas este não determina decididamente o sentido. A referência-objecto não se apresenta nunca
de um modo totalmente fechado, como opacidade perante a mente, mas como foco irradiador
de sentidos. Frege garante assim que todos os nomes têm um sentido (o aspecto parcial que
exprimem do objecto denominado), ao preço de enfraquecer a potencialidade referencial de
todos os nomes. Neste ponto, Frege aproxima-se um pouco de Russell, na medida em que
nenhum nome é realmente, logicamente, próprio, mas sempre uma descrição definida, parcial,
não completamente referencial, ou frouxamente referencial. Dá-se um relaxamento na
linguagem, que é admitido e consentido pelo próprio Frege, na flutuação dos diversos
sentidos captados e expressos por diferentes pessoas, em diferentes situações, em relação a
um mesmo referente. Não se referem nunca propriamente os indivíduos em direto, mas
sempre obliquamente; a unicidade do indivíduo, na sua existência actual, perde-se de vista
numa floresta de predicados sem raízes.
possível em sentido lato, que tem uma forma de existir encaixado no atual, constituindo o
universo real. A noção de «insaturação» aplicada às expressões incompletas e o
desenvolvimento de um modelo referencial adequado a esta categoria linguística constituem
as bases de uma formulação adequada para uma semântica do possível.
Estabelecer uma semântica dos nomes próprios, defender a noção de nome próprio
como expressão forte, real e diretamente referencial, implica reformular uma ontologia que dê
a primazia ao ser individual, concreto, mediante um regresso ou um sucedâneo à noção de
substância. Assim, a lógica do nome próprio reintroduz a noção de existência como predicado
próprio do que é actual, que é conhecido, captado e, portanto, atribuído, não pela via do
conceito, mas de alguma forma imediata na percepção sensível, ou mesmo na apreensão
intuitiva intelectual — possibilidade remota que Frege deixa no entanto entrever.
A teoria dos nomes próprios de Frege oscila entre esta última perspectiva, que seria a
base de uma formulação da semântica da actualidade, e uma perspectiva mais flutuante, na
qual os nomes se multiplicam indefinidamente e o próprio se esfuma entre a pluralidade de
possíveis nomes São duas teses antinómicas, em tensão no pensamento de Frege, que revelam
bem a dificuldade de conhecer e de dizer o indivíduo.
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REFERÊNCIAS
2 KANT, I. Kritik der reinen Vernunft, Suhrkamp, Frankfurt, 1981. (Os textos da Kritik
foram confrontados com a tradução portuguesa da edição da Gulbenkian, 1985).
Cfr. HEIDEGGER, Kants These über das Sein, V. Klostermann, Francfort-sur-le-Main 1963,
onde Heidegger aponta como fio condutor, para a elucidação
da questão do ser, a sua definição, bem como a das suas modalidades, a partir da sua relação
com o entendimento.
5 Cf. ibid., p. 191; KANT, Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration
des Dasein Gottes, 1 abt. 1 Betr., 1.
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8 Cf. carta a Liebmann publicada pela primeira vez in ANGELELLI, I. (org.,) G. Frege,
Kleine Schriften Hildesheim, Olms, 1967, pp. 404-406.
9 Cf. QUINE, From a Logical Point of View, Harvard Universlty Press, Cambridge
(Mass.) 1980, pp. 1-19 e 65-79; Quine considera Frege, a par de Russell, Whitehead, Church
e Carnap, como logicista, e o logicismo não é senão, no seu entender, um ressurgimento do
realismo (no que respeita ao problema dos universais), assim como o inituicionismo é o
ressurgimento do conceptualismo; e o formalismo, do nominalismo: “Logicism, represented
by Frege, Russell, Whitehead, Church and Carnap condones the use of bound variables to
refer to abstract entities known and unknown, specifiable and unspeccifiable,
indiscriminalely» (ibid., p. 14).
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14 The Principies of Mathematics, New York: Norton and Co. 1973, (2ª ed.), p. 494.
15 Cf. LLANO, A., Metafisica y Lenguaje. EUNSA Pamplona, 1984, pp. 216-217.
16 Cf. ibid., pp. 217-218, e KRIPKE, S. Naming and Necessity, Cambridge (Mass.)
Harvard University Press, 1980.
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