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A NOÇÃO DE EXISTÊNCIA EM FREGE

1. Modalidades e Existência

Na sua primeira obra de lógica, Begriffsschrift 1, Frege exclui radicalmente do seu


programa as noções modais, por considerá-las não de ordem lógica mas epistémica e poderem
ser traduzida, na simbologia lógica, pelos quantificadores.

A diferença entre um juízo apodíctico e um juízo assertórico radica simplesmente no


facto de existir ou não um juízo universal a partir do qual a proposição é inferida; ele existe
no juízo apodíctico, e falta no juízo assertórico. Portanto, afirmando uma proposição como
necessária, estamos apenas a apresentar um sinal (Wink) relativo ao fundamento epistémico
desse juízo. Conclui Frege:
“Uma vez que isso não afecta o conteúdo conceptual do juízo, a forma do juízo apodíctico não
tem nenhum significado para nós (Bs § 4).
Se uma proposição é apresentada como possível, ou o locutor está a suspender o juízo,
sugerindo que ele desconhece qualquer lei a partir da qual a negação da proposição poderia ser
inferida, ou diz que a generalização da negação é falsa. Neste último caso temos o que se costuma
chamar um juízo particular afirmativo.”(Bs § 12).

Como exemplo do primeiro caso, Frege apresenta: «É possível que a Terra venha,
alguma vez no tempo, a colidir com outro corpo celeste)>; como exemplo do segundo caso:
«Uma gripe pode provocar a morte.» Neste breve e único texto em que refere as modalidades,
Frege dá por concluída a sua lógica modal, enclausurando-a entre duas fronteiras:

a) a redução do modal ao epistémico, com a afirmação de que o carácter de necessidade e


possibilidade não significa nada que diga respeito ao conteúdo conceptual dos juízos; indica
apenas o modo como o sujeito se relaciona com o objecto ou o conteúdo do juízo:
apreendendo-o como um caso assente numa proposição universal, no caso do apodíctico, ou
captando-o como um caso particular para o qual se desconhece unia proposição universal que
o subsuma;
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b) a redução do modal ao extensional, uma vez que, do ponto de vista lógico, os operadores
modais podem reconverter-se em operadores quantificacionais. «É necessário que...» tem um
significado e um valor lógico equivalente a «Sempre que...», ou «Todas as vezes que...».
A primeira redução não é mais do que uma réplica (não sei se assumida ou meramente tácita
da parte de Frege) da tese de Kant sobre as modalidades tal como é exposta no conhecido
texto da Kritik der reinen Vernunft 2:

As categorias da modalidade têm a particularidade de nada acrescentar, como determinação do


objecto, ao conceito a que estão ligadas como predicados, apenas exprimir a relação com a faculdade
de conhecimento. Mesmo que o conceito de uma coisa já esteja completo, poderei ainda perguntar se
esse objecto é simplesmente possível ou se também é real, e neste último caso, se também é
necessário. Não se pensam, assim, mais nenhumas determinações no próprio objecto, pergunta-se
apenas qual a relação do objecto (e de todas as suas determinações) com o entendimento e o seu uso
empírico, com a faculdade de julgar empírica e com a razão (mas sem aplicação à experiência). (B
266, A 219).

As categorias da modalidade nada acrescentam como determinações do objecto,


afirma Kant, tese que em Frege é expressa pela afirmação de que não afectam o conteúdo
conceptual do juízo, sendo portanto externas a esse conteúdo; acrescentam apenas a ‘maior ou
menor força epistémica dessa proposição se, logicamente, constituir uma inferência a partir de
uma proposição universal, ou não. E por conseguinte a relação do objecto ao sujeito o que
exprimem as categorias modais, confirmando-se a sua inspiração kantiana. Como afirma
Vuillemin3 ,

“Kant reduz explicitamente as modalidades às relações entre as faculdades do conhecimento e


as condições formais da experiência e retira-lhes toda a força sintética com respeito ao objecto. Não há
nenhuma diferença de conteúdo entre cem taleres reais e cem taleres possíveis. Kant não compreende
as modalidades de dicto nem de re, mas, se se pode dizer, de cognitione.”

São, de facto, categorias cognitivas que indicam apenas, relativamente ao conceito «a


ação da faculdade de conhecimento que o origina». Por isso mesmo, para Kant,
“os princípios da modalidade não são objectivamente sintéticos, porque os predicados de -
possibilidade, realidade e necessidade, pelo facto de acrescentarem algo à representação do objecto,
não acrescentam, nem minimamente, o conceito a que se referem. São, no entanto, sempre sintético
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mas apenas subjetivamente, isto é, acrescentam ao conceito de uma coisa (do real), acerca da qual de
resto nada dizem, a faculdade de conhecimento de onde tem a sua origem e seu lugar, de tal modo
que, se esse estiver apenas no entendimento em ligação com as condições formais da experiência, o
seu objecto é possível; se estiver articulado à percepção. (à sensação como matéria dos sentidos) e por
ela for determinado, mediante o entendimento, o objecto é real; se é determinado pelo encadeamento
das percepções segundo conceitos, o objecto é necessário.”(ibid., B 286-87 A 234).

Segundo esta concepção kantiana, a própria existência é neutralizada (empregando a


sugestiva expressão de Gilson) ao ser considerada uma modalidade do juízo que o determina
como a «posição absoluta do ser perante o pensamento», contrariamente aos juízos de relação,
nos quais a cópula «é» ocorre apenas como sinal de atribuição lógica e não implica de modo
nenhum a existência. Frege teria presente, como fonte e horizonte do seu próprio pensamento,
esta concepção kantiana das modalidades e da existência e, por isso, ao apresentar, na Bs, o
plano de construção de uma linguagem ‘lógica, não vê necessidade de apresentar símbolos
para os operadores modais, nem mesmo símbolo lógico para o predicado «existe»: os juízos
afirmativos particulares não envolvem existência (cf. Bs, § 12; Grl, § 47).

Daí a segunda redução do modal ao extensional, que motivou a ausência de uma


lógica modal na Bs. O extensionalismo de Frege, no entanto será posteriormente repensado e
contrabalançado por perspectivas nitidamente intensionais, no âmbito da lógica filosófica.

Do mesmo modo, há razões e provas suficientes para concluir que Frege, depois da Bs,
se afasta substancialmente da primeira redução e apresenta das noções modais e da existência
perspectivas irredutíveis a esta primeira concepção epistémica, ou cognjtiva (segundo
expressão de Vuiliemin). É nos Grl que Frege explicita o seu pensamento sobre a noção de
existência: apresentando inicialmente uma concepção da existência aparentemente
concordante com a de Kant, pode detectar-se também no texto uma profunda divergência,
latente, quer desenvolverá em textos posteriores (Grg, Ged, sobretudo).
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2. Existência como predicado

Tal como vem formulada no parágrafo 53 dos Grl, a noção fregeana de existência é
análoga à de Kant. A comparação dos textos dos dois autores faz ressaltar com nitidez essa
afinidade. Diz Kant:

“No simples conceito de urna coisa não se pode encontrar nenhum carácter da sua existência.
Embora esse conceito seja de tal modo completo, que nada lhe falte para pensar a coisa com todas as
determinações internas, a existência nada tem a ver com tudo isso: trata-se apenas de saber se a coisa
nos é dada, de tal modo que a sua percepção possa sempre preceder o conceito” (Kritik... B 273 A
225).

O texto de Frege introduz a noção de existência a partir da distinção entre


propriedades e notas de um conceito:

“Quando me refiro às propriedades que se atribuem a um conceito, não quero dizer


evidentemente as notas que coropõem o conceito. Estas são propriedades das coisas que caem sob o
conceito, não do próprio conceito. Por exemplo «rectângulo» não é uma propriedade do conceito
«triângulo rectângulo». Mas a proposição que afirma não haver triângulo rectângulo rectilíneo
equilátero enuncia uma propriedade do conceito « triângulo rectângulo, rectilíneo equilátero»; atribui-
lhe o número zero.”

Neste aspecto a existência é análoga ao número. Afirmar a existência, com efeito, não
é senão negar o número zero. (Grl § 53).

Torna-se patente a semelhança das concepções kantiana e fregeana: as «determinações


internas» (na terminologia de Kant) podem analogar-se às «notas características» (Merkmale)
do conceito (na terminologia de Frege); entre estas «notas», que são as propriedades dos
objetos que o referido conceito subsume, não podemos encontrar a existência (Nada tem a ver
com isso») que, segundo Frege, é um predicado de segundo nível, uma propriedade do
conceito que indica se ele subsume ou não algum objecto. Em Kant, de modo semelhante, a
existência indica se a coisa nos é dada de modo que a sua percepção possa preceder o
conceito:
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“Se o conceito precede a percepção, isto significa a mera possibilidade da coisa; mas a
percepção, que fornece a matéria para o conceito, é o único carácter de realidade.” (ibid., B 173 A
225).

A possibilidade identifica-se, para Kant, com a coisa meramente pensada, e opõe-se à


realidade, ao facto de ser real, ou seja, de se dar ‘à percepção. A existência não é um atributo
do possível, mas alguns predicados do possível podem atribuir-se correctamente ao existente,
quando este for objecto da percepção sensível. Esta é a tese já apresentada por Kant em Der
einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins Gottes: de acordo com esta
noção, não devemos dizer que existem na natureza hexágonos regulares, mas que a algumas
coisas da natureza, tal como as colmeias, pertencem os predicados incluídos no conceito de
hexágono.

A percepção, «o único carácter de realidade», é simplesmente o conhecimento


empírico do facto (perfeitamente contingente para a caracterização da coisa enquanto
pensada) de que essa coisa existe. Além de pensada pelo entendimento, é «posta» perante a
sensibilidade que a percepciona como existente. Por isso, a existência nada acrescenta ou
determina à coisa pensada que, enquanto possível, inclui já por definição a totalidade dos seus
predicados.

Frege diverge de Kant exactamente nesta fronteira tão radicalmente estabelecida entre
possível e real. Embora a sua afirmação de que a existência é um predicado de segundo nível
possa coincidir no início com a de Kant, segundo a qual a existência não é um predicado real,
tal coincidência radica apenas na exclusão do predicado da existência do conjunto de
determinações ou notas características de um conceito. Daqui Kant concluirá que não é um
predicado real; porém a conclusão fregeana. de que não é um predicado de primeiro nível não
implica que não seja real: trata-se de um predicado de predicados, que, em Frege, como
veremos, é também real. Outra afinidade inicial nas duas teses, que conduzirá a teses
divergentes, é o contra-exemp1o que ambos os autores apresentam para ilustrar a exclusão da
existência das determinações de um conceito: o argumento ontológico da existência de Deus.
AfirmaKant:
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Ser não é, evidentemente; um predicado real, isto é, um conceito de algo que possa
acrescentar-se ao conceito de uma coisa; é apenas a posição de uma coisa ou de certas determinações
em si mesmas. No uso lógico é simplesmente a cópula de uni juízo. A proposição “Deus é
omnipotente” contém dois conceitos que têm os seus objectos: Deus e omnipotência; a minúscula
palavra “é” não é um predicado, mais, mas tão -somente o que põe o predicado em relação com o
sujeito (Kritik... B 627, A 599).

De modo semelhante, no referido parágrafo 53 dos Grl, Frege concluirá:

Por ser a existência uma propriedade de conceitos, o argumento ontológico da existência de


Deus não colhe. A unicidade, tal como a existência, também não é uma componente característica do
conceito «Deus’. Á unicidade não pode ser utilizada na definição deste conceito, assim como a solidez
de uma casa, a sua comodidade e habitabilidade não podem ser utilizadas na sua construção
juntamente com pedras, argamassa e vigas.

A distinção de Frege entre propriedade e notas é reinvocada: um conceito é feito com


as suas notas características (Merkmale), não com as suas propriedades. No entanto, Frege
acrescentará de imediato que isto não quer dizer que seja completamente impossível deduzir,
das notas características de um conceito, alguma das suas propriedades. Em certas condições,
isto é possível: por exemplo, podemos inferir quanto demora construir uma casa, conhecendo
o tipo de pedra usado. Portanto, seria ir demasiado longe afirmar que não podemos inferir das
características de um conceito a sua unicidade ou existência; na verdade, isto não pode ser tão
direto como a atribuição a um objecto que cai sob um conceito de um carácter componente
desse conceito, como uma propriedade desse objecto (Cfr. Grl, § 53).

Como está patente no texto de Frege, a evocação do mesmo argumento ontológico é


coincidente, mas não de modo tão radical como em Kant. Frege admite ser possível (sem
especificar) deduzir, a partir das notas características de um conceito, uma propriedade desse
conceito, distinguindo porém esta inferência possível da atribuição directa de uma nota do
conceito a um objecto por ele subsumido, como sendo sua propriedade.

Estas circunstâncias particulares nas quais seria possível deduzir uma propriedade a
partir das notas características de um conceito parecem ser as que se dão no caso de uma
proposição ser analítica, considerada em si mesma, e portanto ontologicamente necessária,
embora esta necessidade não implique necessidade epistémica. Esta distinção, entre
7

necessidade ontológica/necessidade epistémica é assimilada por Dummett6 à distinção tomista


de uma proposição per se nota e nota quoad nos. Segundo São Tomás, a proposição «Deus
existe» é exemplo de urna proposição per se nota mas não nota quoad nos ou, em
terminologia atual, é analítica e ontologicamente necessária, mas não analítica para nós e,
portanto, não epistemicamente necessária.
Esta aproximação da argumentação tomista é permitida pela distinção que Frege
desenvolverá posteriormente, em Ged. entre o verdadeiro e a captação de uma proposição
verdadeira, entre o carácter epistémico das noções de necessidade e verdade e uma
consideração não epistémica, e portanto a admissão, pelo menos tácita, de noções não
epistémicas de necessidade e de verdade.8

As condições em que seria possível deduzir das notas características de um conceito,


alguma das suas propriedades são também evocadas por Frege no parágrafo 49, em que, para
responder a Espinosa (que afirma ser impossível dizer propriamente que Deus seja uno e
único, porque não podemos, abstraindo, conceptualizar a sua essência), defende que a
abstração a partir de um número de objetos não é de forma alguma o único modo de adquirir
conceitos; podemos também alcançar um conceito, partindo das suas próprias notas
características, sendo nesse caso possível que nada caia sob esse conceito. Esta possibilidade
é que permite, conclui Frege, negar ou afirmar a existência. Neste texto, portanto, Frege prevê
a possibilidade de, mediante a apreensão de certos conceitos através das suas notas
características, inferir a existência ou não existência de algo que esse conceito possa
subsumir.

A afinidade da noção de existência em Kant com a da existência como predicado de


segundo nível em Frege é, pois, uma afinidade parcial, ou iniciai; ambas as teses seguirão
itinerários muito diferentes. A divergência procede fundamentalmente do contexto teórico em
que estão integradas: a de Kant num contexto teórico epistémico, a de Frege na elaboração de
uma teoria lógica da predicação.

O objectivo principal de Frege é o de estabelecer uma teoria da predicação que garanta


a distinção radical entre conceito e objeto e seus correspondentes níveis de linguagem;
condição essencial para essa distinção é a garantia de que os predicados de objetos não se
prediquem dos conceitos, e que os de conceitos não se atribuam aos objetos. A existência é
um predicado de um conceito que por isso não se pode predicar, com sentido, de um objecto.
8

Por isso, a afirmação «Há Júlio César» não é verdadeira nem falsa, mas simplesmente sem
sentido, enquanto «Há um homem cujo nome é Júlio César»’tem sentido (cf. BG).

Os predicados de segundo nível (entre os quais a existência) são radicalmente


diferentes dos de primeiro nível, e tal diferença manifesta-se na distinção — sempre
sublinhada por Frege — entre a relação de um objecto com um conceito de primeiro nível sob
o qual ele cai e a relação de um conceito de primeiro nível com um conceito de segundo nível.
Frege apresenta um exemplo em que se vê claramente que ser um conceito de segundo nível
não significa de modo nenhum não ser real ou ser meramente um ens rationis: podemos dizer
que 2 é um número positivo, inteiro e menor que 10 (estamos a atribuir as propriedades a um
objecto, o número 2); mas podemos também considerar essas propriedades do objecto 2 como
notas do conceito número inteiro positivo menor que dez: Por sua vez, este conceito não é
nem positivo nem um número inteiro, nem menor que dez. Está subordinado ao conceito
número inteiro, mas não cai sob ele (cf. BG).

Esta diferença radical da relação estar subordinado a e cair sob (relação entre
conceitos e relação entre um indivíduo e a respectiva classe a que pertence) está em causa na
análise do predicado de existência no referido parágrafo 53 dos Grl. Por ser um predicado de
segundo nível, Frege quer sublinhar bem que nenhum objecto pode cair sob esse predicado,
mas alguns conceitos estão-lhe subordinados, por exemplo, a não-vacuidade, que é
propriedade de alguns conceitos.
O conceito de todos os conceitos sob os quais cai um só abjecto tem como nota
característica a unidade. Sob esse conceito cairia, por exemplo, o conceito «Lua da Terra»,
mas não este planeta em si. Portanto, podemos fazer cair um conceito sob outro conceito mais
elevado, mas esta relação de subordinação é muito diferente da relação de um objecto
subsumido por um conceito. Assim, existência seria um conceito de nível mais elevado.,, ao
qual pertenceriam todos os conceitos no vazios. Mas este predicado de existência não se pode
atribuir diretamente aos objetos que caem sob esses conceitos.
Frege considera portanto a existência como um predicado de predicados, um conceito
de conceitos; evita assim identificar a existência com um conceito simplesmente geral, uma
espécie de summum genus de todos os objetos existentes. Um conceito de extensão tão vasta é
rejeitado por Frege: ao referir-se à unidade como sendo hipoteticamente um conceito, Frege
afirma:
9

Seria incompreensível porque é que havíamos de atribuir expressamente (a unidade) a alguma


coisa. É só em virtude de a possibilidade de alguma coisa não ,ser sábia que faz sentido dizer «Sólon é
sábio».
O conteúdo de um conceito diminui na medida em que aumenta a sua extensão; se a sua
extensão é omniabarcante, o seu conteúdo deve desaparecer imediatamente. (Grl, § 29).

Esta concepção resolverá alguns problemas da semântica da existência, mas suscita


duas questões fundamentais:

1) como podemos conhecer e referir-nos à existência de objetos singulares,


dos objetos subsumidos pelos conceitos do primeiro nível?
2) como conhecemos a existência? Sempre via conceito? Haverá outro modo de
conhecer a existência?

Kant, ao excluir a existência do conjunto das determinações do possível, do conceito


da coisa, remete o conhecimento da existência para a percepção sensível. Mas, justamente,
Frege não situa a fronteira do real entre o possível e o existente, donde não tem necessidade
de remeter o conhecimento da existência para a mera constatação empírica do facto de algo
existir. Pelo contrário: a existência, tal como a temos vindo a considerar, apreende-se a um
segundo nível de predicação. Porém, este modo de apreensão da existência não parece tão
pouco abarcar todos os casos de juízos de existência.

Para encontrar uma resposta à primeira questão, algumas análises dos Grl fornecem
elementos valiosos permitindo antever um outro sentido de existência, que Frege explorará
mais tarde nos Grundgesetze: de atualidade (Wirklichkeit).

A segunda questão implica a elucidação da noção de possível e suas relações com o


existente e o real, de que tratamos adiante .
10

3. Existência e actualidade (Wirklichkeit)

A principal contribuição da análise da noção de existência


nos Grundlagen é talvez a aproximação da noção de número, com a qual Frege faz ver a
semelhança entre a afirmação da existência e a negação do número. A existência é assim
identificada com a não vacuidade de um conceito.
Ao analisar a noção de número (algo que se diz de um conceito também), Frege
encontra uma dificuldade para definir a unidade (cf. § 29), que nas definições dadas por
Euclides surge umas vezes como um objecto para ser contado, outras vezes como uma
propriedade desse objecto, e outras ainda corno o número um. Para resolver esta aparente
ambiguidade, Frege distingue entre o termo ‘unidade’ e o número um (cf.. § 38): o artigo
definido indica aqui claramente que se trata de um objecto. Não há diferentes números um,
mas um só um. Um não tem plural, pois trata-se de um nome próprio, tal como «Frederico o
Grande» ou «o elemento químico ouro». Pelo contrário, o termo ‘unidade’ designa um
conceito. Assim, Frege apresenta um primeiro critério de distinção entre a ‘unidade’ sinónimo
de um e a unidade como conceito. Uma dificuldade persiste porém: a palavra ‘unidade’ como
conceito subsume os «diversos objetos a enumerar» e, por isso, não poderemos definir o
número como um conjunto de unidades. Se unidade, pelo contrário, subsumisse apenas o
número um, seria igualmente impossível definir o número. O problema a resolver é o de
conciliar a identidade das unidades com a sua discernibilidade. Sem identidade não obteremos
nunca o conceito de número, mas apenas uma mera diversidade impossível de subsumir sob
um mesmo conceito; sem discernibilidade não haveria multiplicidade nem possibilidade de
enumerar. Para enumerar é absolutamente necessário distinguir um a um os elementos que se
contam.
Depois de ensaiar várias soluções (§§ 40-49), Frege considera que a questão se resolve
exatamente a partir da concepção de número como algo que se atribui a um conceito; mais
especificamente, o número é a determinação da extensão do conceito, daqueles conceitos que
permitem isolar determinadamente o que subsumem, ou os objetos que sob eles caem. Neste
caso os conceitos podem ter a propriedade de ser vazios (não existe nenhum objecto
subsumido por esse conceito), de no ser vazios (existe pelo menos um objecto subsumido pelo
conceito); neste último caso podem ainda subsumir um só objecto (unicidade), ou vários
(multiplicidade), ou seja, existe um só objecto, que, no entanto, não ‘deve ser confundido com
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o próprio conceito, ou existem vários objetos. Assim se esclarece a afinidade entre existência
e número.
A compatibilidade entre a identidade e a discernibilidade das unidades resolve-se com
a distinção de dois diferentes sentidos do termo ‘unidade’:
A palavra «unidade» é utilizada num duplo sentido. Por um lado, as unidades são
idênticas no sentido explicado (...) (enquanto subsumidas por um mesmo conceito). Na
proposição «Júpiter tem quatro luas», a unidade é «lua de Júpiter». Sob este conceito caem os
satélites 1, II, III, IV. Pode dizer-se: a unidade à qual se refere 1 é idêntica àquela a que se
refere II, etc. Aí temos à identidade. Mas, por outro lado, quando se fala da distinção das
unidades, entender-se-á .a capacidade de distinção das coisas contadas ( §54).

O primeiro sentido de unidade (a unidade das coisas que caem sob um mesmo
conceito e, portanto, são idênticas) é análogo à noção de existência enquanto predicado de
segundo nível. Trata-se de enunciar a propriedade de um conceito, a de que subsume pelo
menos um objecto, não este ou aquele objecto determinado, mas um apenas, que é só um caso
do conceito em questão. Mas, como assinala Frege, a própria ação de contar remete para outro
sentido de unidade que não envolve unicamente o sentido de unidades iguais, de objetos
pertencentes a um mesmo conceito, mas que permite considerá-las como discerníveis entre si.
Enquanto o primeiro sentido de unidade apresenta uma nítida analogia com a
existência como quantificador existencial (existência no sentido estritamente lógico), este
segundo sentido remete para um outro sentido de existência: aquele que se predica, não dos
conceitos, mas dos próprios objetos reais que sob eles caem, a existência de cada coisa, não
considerada como um caso de uma generalidade, mas como coisa em si mesma única e
irrepetível.

Nos Grundlagen, Frege distingue apenas dois sentidos do termo ‘unidade’ e não
estabelece qualquer analogia com os sentidos do predicado de existência. No entanto, a
distinção entre os dois sentidos da existência, que correspondem aos ‘da un4dade, é
expressamente indicada nos Grundgesetze (Introdução p. 25):
Com isto... (a confusão dos lógicos psicologistas entre conceito e objecto, propriedade e nota)
se relaciona a sua concepção errada sobre os juízos da linguagem corrente que se exprimem em
‘chá...». Esta existência, o Sr. Erdmann confunde com atualidade (vol. 1 p. 311) que, como vimos,
também é claramente distinta de objectividade. De que coisa estamos nós a afirmar que é atual quando
dizemos que «há raízes quadradas de 4»?. De 2 ou —2? Mas nem um nem outro são nomeados aqui
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de modo algum. E se eu desejasse dizer que o número 2 atua ou é ativo ou atual, isto seria falso e
completamente diferente daquilo que eu digo. com a frase «Há raízes quadradas de 4». A confusão é
das mais grosseiras possíveis; porque não se trata de conceitos do mesmo nível, mas sim de conceitos
de primeiro e de segundo nível.

O sentido a que se refere Frege, expresso usualmente nos juízos da forma «há...»
corresponde ao sentido lógico dã existência traduzido pelos quantificadores e, como foi já
dito, indica que existem objectos pertencentes à extensão do referido conceito. Neste caso, o
predicado «existe» atribui-se a objectos concretos, mas indeterminadamente, isto é, sem
referir nenhum em particular, sem isolar ou discriminar um objecto determinado. Frege
exprime-o ao dizer que, quando se afirma «há raízes quadradas de 4», não estamos a nomear
expressamente nem 2 nem —2. Este o sentido da existência como predicado de segundo
nível, noção que se aproxima da tese de Kant, segundo a qual a existência não é um predicado
real.

O outro sentido a que se refere Frege neste texto é o da existência quando atribuída
também aos objectos, não enquanto casos que indeterminadamente preenchem a extensão de
um conceito ou enquanto membros de uma classe, mas sim na sua individualidade concreta,
enquanto existentes realmente actuais. A actualidade (Wirklichkeit)7 é constituída pelo
universo dos seres realmente existentes na sua individualidade concreta, imersos num
processo temporal, submetidos à acção de outros existentes actuais e podendo também exercer
uma acção determinada sobre eles (cfr. «Der Gedanke», onde Frege desenvolve esta noção de
actualidade’ em contraposição ao domínio do pensamenLo, que é real, mas não actual).

Confundir a existência do actual (wirklich) com a mera, existência lógica, para a qual
Frege introduzirá um neologismo (Esgibtexistenz) 8, é considerado um erro «grosseiro»
originadp pelo desconhecimento dos diferentes níveis de predicação.

Outra confusão enganadora, que Frege denuncia na Introdução aos Grundgesetze, é a


de actualidade e objectividade. A tarefa que se propõe prosseguir neste texto é a de esclarecer
e defender esse domínio do objectivo não actual constituído pelos objectos lógicos como os
números, as classes, os valores de verdade, ós conceitos, as funções e as relações. O principal
resultado dos Grl foi precisamente o de ter mostrado que os números,, não sendo objectos
concretos, físicos, nem propriedades ou atributos desses objectos, são no entanto objectos
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lógicos que não” podem ser captados pelos sentidos, mas são apreendidos pela mente; não se
confundem nem se identificam tão-pouco com os signos sensíveis com os quais lhes fazemos
referência, os. numerais. A dificuldade está em entender que nem só o que pode ser percebido
pelos sentidos é que existe propriamente. Esta perpectiva é que impede que o pensamento de
Frege seja compreendido, como ele próprio o reconhece nos Grundgesetze (p. 10):

É pouco favorável para a minha obra a tendência generalizada para reconhecer como existente
apenas aquilo que pode ser percebido pelos sentidos, O que não é perceptível é geralmente negado ou
ignorado. Ora os objectos da aritmética, isto é, os números, não podem ser apreendidos pelos sentidos.

Por isso, tomamos muitas vezes os signos numéricos, que são algo de visível, pelos
próprios números. Todavia, estes signos têm propriedades completamente diferentes dos
próprios números, e esta identificação conduz quase sempre a asserções de existência que
tomam por critério básico a «tangibilidade» (ibid.).

Frege pretende garantir a atribuição de existência também a este domínio do objectivo


não actual, não captável pelos sentidos, insistindo no facto de a perceptibilidade, e portanto a
ostensibilidade, não serem critérios exclusivos da existência9. É atribuível o predicado da
existência também a um domínio do que é objectivo mas não actual (objektiv, nicht wirklich),
que não se pode reduzir ao domínio do subjectivo, do mental, da representação ou
conceptualização individual (como pensam os lógicos psicologistas que são o objecto da
crítica de Frege ao longo desta Introdução). Neste caso, o predicado «existe» terá um outro
sentido, diferente dos anteriormente referidos, que se aplicam a objectos.

Este novo sentido da noção de existência vem reforçar a ideia de que o universo de
Frege não é apenas constituído por objectos concretos, individuais, nem tão-pouco por
conjuntos de qualidades, de predicados agrupados de modo mais ou menos arbitrário:
além do actual, existe também como constitutivo desse universo o objectivo não actual, que
inclui, além dos objectos lógicos os conceitos, os sentidos, o pensamento (cfr. Ged.). Este
domínio é tão real como o primeiro, o que prova que a fronteira entre real e não real, segundo
Frege, não separa radicalmente o actual do objectivo, a Wirklichkeit da Objektivität.
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Urna tal hierarquia do próprio universo real tem evidentes reflexos na linguagem: a
existência não pode ser atribuída univocamente ao que é actual e ao que pertence ao objectivo
não actual.

A admissibilidade da predicação analógica da existência parece estar pois plenamente


justificada nestes textos de Frege.

4. Ambiguidades da noção de possível

Partamos de novo de uma referência retrospectiva da filosofia de Frege à de Kant,


desta vez para uma elucidação da noção de possibilidade. Para compreender bem o
pensamento de Kant quanto às modalidades, é de grande utilidade o enquadramento das
noções de possibilidade, necessidade e realidade na tese radical de Kant sobre o «Ser como
posição», cujas consequências e implicações Heidegger revela magistralmente: possibilidade,
realidade e necessidade são as posições dos diferentes modos da relação pura da objectividade
dos objectos à subjectividade dó conhecimento humano.10

Na Kritik, Kant define o possível como «o que está de acordo com as condições formais da
experiência (quanto à intuição e aos conceitos)» (ibid., B255, A218), ou seja, o que está
“apenas no eu entendimento em ligação com as condições formais da experiência.» (ibid., B
256, A 234)

Como é patente, a possibilidade é definida por referência às condições de


conhecimento e à faculdade de conhecer onde se situa (a ontologia crítica de Kant é,
efectivamente, uma topologia transcendental de todos os conceitos, quer na sensibilidade
quer no entendimento) (cf.. ibid.). Mas, como oportunamente observa Heidegger, nada é dito
sobre o fundamento da distinção entre ser possível e ser necessário. Só na Kritik der
Urteilskraft se apresentará o fundamento desta distinção, que radica no sujeito e na natureza
do seu poder de conhecer. (cf. § 76, B 340, A 336)
15

Assim, a distinção entre as coisas possíveis e as coisas reais é uma distinção que tem
apenas um valor meramente subjectivo para o entendimento humano, pois que podemos
sempre pensar alguma coisa, mesmo que não exista, ou. representar alguma coisa como dada,
se bem que não tenhamos ainda nenhum conceito.

Ao fazer radicar a distinção das modalidades nas suas relações com as próprias
faculdades do conhecimento, Kant reafirma, de modo claro e explícito, a sua tese do «Ser
como posição»: o possível significa somente a posição (Position) da representação de uma
coisa relativamente ao nosso conceito e em geral à faculdade de pensar, enquanto o real
significa o acto de posição (die Setzung) da coisa em si mesma (fora deste conceito).

A referência ao interno/externo do conceito como ponto de partida para a definição do


possível e do real ocorre também no Apêndice à Kritik der reinen Verrzunft com o título «Von
der Amphibolie der Reftexionsbegriffe». Partindo sempre da perspectiva do Ser como posição,
a elucidação do ser possível manifesta a sua relação com as condições formais da experiência,
enquanto o real manifesta a relação com as condições materiais da experiência; e,
analogamente, o possível relaciona-se com o interno, as determinações internas de uma coisa
que procedem do entendimento, enquanto o real se relaciona com o externo, as determinações
externas que surgem no espaço e no tempo como as relações externas das coisas entre si,
enquanto fenómenos.
No final deste Apêndice, Kant apresenta uma transposição da gradação do possível ao
impossível para a gradação de algo a nada:

O conceito mais elevado, pelo qual é uso iniciar uma filosofia transcendental, é, vulgarmente,
o da divisão em possível e impossível. Como porém, toda a divisão pressupõe um conceito dividido,
deverá indicar-se outro, ainda superior, e esse é o conceito de um objecto em geral (considerando em
sentido problemático, sem decidir se é alguma coisa ou nada). (Kritik, B 347, A 290).

Com base. na polarização algo/nada, Kant distingue quatro divisões:

1) conceito vazio sem objecto (ens rationis): não são possibilidades, ser considerados
como impossibilidades;

2) objecto vazio de uni conceito (nihil privativum);


16

3) intuição vazia sem objecto (ens imaginarium);

4) objecto vazio sem conteúdo (nihil negativum).

O primeiro, o ser de razão, é considerado por Kant como «apenas ficção», embora
não contraditória, e é excluído do mundo dos possíveis, sem lhe ser no entanto oposto; o
último opõe-se à possibilidade, pois é uma contradição. Ambos são conceitos vazios. O nihil
privativum e o ens imaginarium são dados vazios para conceitos.

É algo — e não nada — o que se pode apresentar como objecto, o que tem a
objectualidade ou a característica de poder ser dado como objecto. Para que algo seja uma
realidade objectiva, é necessária a «coisidade» posta como objecto, que nos é acessível como
objecto da experiência. Possibilidade e realidade são pois dois modos de posição do ser pelo
pensamento que se contra- põem: o possível é não real, o real não é o possível. Em Kant não
se poderá falar de uma possibilidade real ou de uma real possibilidade.

Desta tese diverge profundamente o pensamento de Frege sobre a possibilidade.


Nos Grundlagen der Arithmetik ( 94-95), ele afirma que, pelo facto de não existirem
objectos que caiam sob um determinado conceito, esse mesmo conceito, embora vazio, não
deixa de existir. Existe não «apenas no entendimento», como condição formal do
conhecimento possível, e não exige a condição da percepção precedente do abjecto. Além do
conceito vazio, o próprio conceito contraditório existe também, embora isso indique
imediatamente que não subsume nenhum objecto. Para Frege, portanto, como comprovam
estes dois parágrafos dos Grl, pode atribuir-se um certo sentido de existência a um conceito,
mesmo na ausência de qualquer dado da percepção anterior ao próprio conceito Existem os
conceitos vazios e os contraditórios.

Esta última acepção do predicado da existência implica, sem dúvida, uma nova
formulação da noção de possibilidade. Assim como é clara em Frege a atribuição de um
sentido de existência como predicado de conceitos, mas que incide sobre os objectos por ele
subsumidos, e de um outro sentido para os conceitos em si mesmos considerados (o que
permite afirmar que «o conceito ‘conceito vazio’, tem a propriedade de existir», ou «existe o
conceito ‘conceito vazio’»), assim também deverá haver uma correspondente modulação na
17

noção de possibilidade. Com efeito, Frege parece distinguir claramente entre possibilidade
lógica (ou possibilidade de ser um conceito) e possibilidade real (ou possibilidade de ser um
objecto), distinção que se segue da radical separação entre conceitos e objectos.

Tomando posição contra os matemáticos, formalistas (cf. § 94), Frege nega a tese
clássica segundo a qual a possibilidade lógica significa não contradição: só é impossível, para
o matemático, o que é logicamente impossível, isto é, o que envolve contradição. Para tanto,
apresenta como contraexemplo o conceito de objecto diferente de si mesmo, que serve para a
definição de conjunto vazio. É absurdo querer fundar a existência sobre a ausência de
contradição, como se a ausência de contradição fosse já a existência da coisa.

O argumento que Frege apresenta para a pensabilidade da contradição é o de que, se


não fosse pensável, corno se poderia provar que um conceito não contém contradição? A
ausência de contradição nem sempre é óbvia, mas exige uma prova. Antes da prova, pensa-se
a contradição. A prova indeclinável de que um conceito está livre de contradição é a
existência de algo, algum objecto que caia sob esse conceito. Esta afirmação parece
problemática, pois exige-se o recurso à existência como prova de não contradição de um
conceito, o que parece indicar que seria impossível uma prova estritamente lógica. No
entanto, na argumentação de Frege, uma vez mais se torna patente a sua atribuição analógica
da existência (aqui predicada de objectos lógicos) e a sua noção peculiar de objecto. Para
mostrar que um conceito não é contraditório, basta provar a existência de algum objecto,
mesmo de um objecto lógico como os números ou as classes.

O que não fica claro em toda esta argumentação é o critério fregeano de distinção
entre vazio e contraditório: se é a existência de algo o que prova, em última análise, tanto a
não vacuidade como a não contradição de um conceito, parece não haver uma possibilidade
de distinguir, logicamente, se um conceito não subsume nenhum objecto por ser vazio, ou por
ser contraditório. Os limites do pensável parecem esfumar-se na linha do horizonte, onde uma
névoa encobre a demarcação nítida entre o possível (pensável) e o impossível (impensável).

Se comparássemos a gradação do possível ao impossível ou de algo a nada


apresentada por Kant, com o pensamento de Frege encontraríamos o primeiro e o quarto, o
ens rationis e o nihil negativum incluídos num alargado mundo de possíveis. O ens rationis,
para Frege, não será rationis, mas real objectivo, embora não actual. Não é uma forma pura
18

do entendimento, mas alguma espécie de forma que o entendimento capta na realidade que
conhece. O possível encontra-se «misturado» com o actual, constituindo o universo real. O
nihil negativum, que Kant considera, tal como a forma da intuição, destituído de algo de real
poi não ser um objecto, é para Frege um Gedankengefüge, um elo de ligação entre objectos, e,
como o real não é constituído apenas por objectos, Frege não terá dificuldade em considerar
como reais, ou constitutivos do real, também estes elos de ligação.

A noção de possível em Frege é, pois, uma noção alargada, que não se opõe
simetricamente a impossível. O que é o impossível? O que não é nem será nunca? O que não
é nem será nunca, se no entanto pode ser pensável, é também possível. O que é contraditório
consigo mesmo também pode ser pensado (ainda que provisoriamente), portanto também não
será completamente impossível.

Também não se opõe simetricamente a existente, pois o possível existe também,


embora se trate de um modo de existir diferente do da actualidade.

Possível opõe-se a actual (wirklich — noção que Frege desenvolve no escrito “Der
Gedanke”): é possível tudo o que é mas não é actual, o modo de ser actual envolvendo uma
referência ao processo temporal. O possível identifica-se, portanto, com esse terceiro reino
dos pensamentos atemporais, invariantes.

A caracterização e o estatuto deste domínio do objectivo não actual, do possível,


levanta no entanto muitas questões, que Frege não ignorou, mas às quais não se propôs
responder, talvez por considerar que ultrapassavam as fronteiras do seu próprio campo de
trabalho: não deixa porém de as referir de passagem ( O que seria para mim um pensamento,
se ele nunca fosse apreendido por mim? ») (ibid., p. 28). O pensamento, com efeito, é possível
enquanto apreensível, captável. Qual o estatuto de um pensamento não pensado? Existe qua
pensamento qua possível, mesmo que nunca venha a ser captado? Mas se esse pensamento
não é nem será nunca, pertence à categoria do impossível, e não do possível. Além de que um
pensamento jamais pensado é a própria impensabilidade. Se, pelo contrário, todo o
pensamento possível é ou será pensado, não haverá nenhum possível pensamento que não seja
ou venha a ser pensado, e neste caso é necessariamente pensado.
19

É difícil justificar porque é que um pensamento, ao ser captado, passa a pertencer ao


mundo da actualidade. A relação do possível ao existente, do objectivo ao actual, é
problemática quando vista a partir da própria possibilidade: o mundo actual parece, com
efeito, emergir de um mundo de objectividades, um mundo ambíguo de possíveis necessários.

5. Para uma semântica da existência

Vamos destacar alguns pontos da filosofia da linguagem de Frege que fornecem


alicerces seguros para uma semântica da existência, resolvendo com sagacidade alguns dos
«paradoxos referenciais» do predicado «existe».

São sobretudo duas as teses da semântica de Frege que se relacionam directamente


com a questão da existência: a teoria dos níveis da linguagem, e a semântica dos nomes
próprios.

5.1. Teoria dos níveis da linguagem

Na Bs (p. 17), Frege refere já uma certa ordem (Rang) entre os conceitos, mas é nos
Grl que, a par da teoria do número, desenvolve e explora a sua distinção, entre conceitos de
primeira e segunda ordem (como foi referido atrás, cf. § 55 dos Grl). Como vimos, devido ao
princípio de absoluta separação entre objectos e conceitos, Frege não pode considerar que a
relação entre um predicado de primeiro nível e os objectos (argumentos) seja análoga à
relação entre um predicado de segundo nível e predicados de primeiro nível; estes últimos são
a expressão de um conceito e por isso não podem nem lógica nem gramaticalmente ser
tomados como abjectos. No seu ensaio «Über Begriff und Gegenstand», em resposta às
críticas de Kerry, Frege desenvolve esta distinção entre a relação de um objecto com um
conceito sob o qual cai e a relação de subordinação de um conceito a outro conceito. Essas
duas relações, que a linguagem natural por vezes exprime de modo semelhante, são
nitidamente diferenciadas por Frege: assim, na frase «todos os mamíferos são terrestres», o
sujeito gramatical «todos os mamíferos» não traduz adequadamente o sujeito lógico ao qual
20

se atribui o predicado «são terrestres»: a negação desta proposição não é «todos os mamíferos
não são terrestres», mas sim «nem todos os mamíferos são terrestres». Todos pertence pois
logicamente ao predicado. Assim se vê com clareza que a proposição logicamente exprime
que «o conceito mamífero está subordinado ao conceito terrestre», que se nega dizendo «o
conceito mamífero não está subordinado ao conceito terrestre», ou, em linguagem corrente,
«nem todos os mamíferos são terrestres».

Esta relação de subordinação de um conceito a outro conceito esteve na raiz da


principal tese dos Gri sóbre a existência como propriedade de um conceito. Frege utiliza aí a
expressão «conceito de segunda ordem», enquanto nos escritos posteriores empregará
«conceito de segundo nível». A distinção de níveis leva à afirmação fundamental da
semântica fregeana:

o que aqui se predica de um conceito nunca pode ser predicado de um objecto, pois um nome
próprio nunca pode ser uma expressão predicativa, embora possa ser parte dela (BG, p. 50).

E Frege sublinha que predicar de uni objecto um conceito de segundo nível, um


conceito de conceitos, não é propriamente uma proposição verdadeira nem falsa, mas
meramente sem sentido:

A sentença “Há Júlio César” não é verdadeira nem falsa, mas em sentido, embora a
sentença “Há um homem cujo nome é Júlio César» tenha sentido; mas aqui temos novamente
um conceito, como o mostra o artigo definido (ibid.).

De modo semelhante, o que ocorre na proposição «Há apenas uma Viena»: neste caso,
«Viena» é um termo conceptual, e não o nome próprio de uma cidade única. Trata-se de
considerar o conceito «cidade imperial», ao qual pertence apenas um só objecto, a cidade
chamada Viena.

Embora a noção dos níveis da linguagem tenha sido desenvolvida por Frege neste
ensaio para resolver os problemas da insaturação11, esta estratificação da linguagem em
diferentes níveis permite uma tradução lógica adequada da noção de existência, através dos
quantificadores. Na hierarquia fregeana, as expressões completas são os nomes próprios
(termos singulares ou expressões complexas designando um objecto determinado) e as
21

proposições, e constituem a base de toda a hierarquia de níveis, juntamente com algumas


expressões incompletas, como os operadores de um ou dois argumentos, predicados com um
lugar para um argumento ou predicados de primeiro nível, e ainda a categoria das expressões
relacionais para dois argumentos. O passo seguinte consiste em introduzir as expressões de
segundo nível: os predicados de segundo nível são aqueles que têm um lugar para um
argumento que deve ser preenchido com um predicado de primeiro nível: o exemplo deste
tipo de expressões é precisamente o quantificador, que é a versão lógica mais trabalhada da
existência como predicado de segundo nível (cfr. Dummett, FPL caps. 2 e 3). Neste sentido,
pode-se predicar «existe» de um predicado de primeiro nível, cuja extensão se possa
determinar quantitativamente, como refere Frege nos Grl:

Só um conceito que isole o que sob ele cai de uma maneira definida, e que não permite
nenhuma divisão arbitrária em partes, é que pode ser uma unidade relativa a um número finito
(ibid., § 34).

Esta tradução lógico-semântica da noção de existência por um quantificador ou


predicado de segundo nível é no entanto restritiva, pois nem todos os predicados de primeiro
nível definem um âmbito bem delimitado de quantificação. O próprio Frege nota esta
dificuldade:

Nem todos os conceitos estão assim constituídos. Podemos, por exemplo, dividir o que cai sob
o conceito vermelho de várias maneiras, sem que as partes deixem de cair por isso sob esse
conceito.

Por isso, não tem sentido perguntar: quantos vermelhos há? Frege sugere
cuidadosamente que a um conceito deste tipo não lhe corresponde um número finito. Mas o
problema está em que nem sequer se pode começar a contar. Só servem para contar
(enumerar), aqueles termos que determinam um cardinal, excluindo a hipótese de que a
divisão do que é F dê lugar a partes que são também F, ou de que da combinação de coisas
que são F resulte um todo que também seja F.

Só estes termos nos proporcionam, portanto, um critério de identidade para os


12
objectos que caem sob o conceito que significam. Esta condição é traduzida por Geach na
sua tese da identidade relativa, segundo a qual a identidade é sempre relativa a um critério
22

deste tipo; só se pode identificar por relação a uma espécie de coisa, assim como só se pode
contar alguma espécie de coisa. Esta noção de identidade está intimamente relacionada com a
de existência, como Geach o traduz, dizendo que «não há entidade sem identidade» (no entity
without identity).

Nos Grl Frege apresenta algo de muito parecido com esta posição. Trata-se da citação
de Espinosa (§49):

Eu digo que uma coisa é dita uma ou única simplesmente em relação à sua existência, e não
em relação à sua essência; porque só podemos pensar nas coisas em termos de número depois
de as termos reduzido a um género comum. Por exemplo, um homem segura na sua mão um
sestércio e um dólar, só poderá pensar no número dois se cobrir o seu sestércio e o seu dólar
com um mesmo nome, por exemplo moeda de prata; então poderá afirmar que tem duas peças
de prata.

O pensamento expresso é análogo à tese da identidade relativa de Geach, mas Frege


imediatamente faz notar a limitação desta via de acesso à noção de unidade ou de existência,
acrescentando:

Infelizmente, ele, Espinosa, continua: Por isso é evidente que nada pode ser designado como
sendo um ou único, a não ser quando alguma coisa tiver sido concebida antes, algo que se lhe
equipare. E daqui conclui Espinosa que não podemos propriamente dizer que Deus é um ou
único porque é impossível para nós formar um conceito abstracto da sua essência.

De facto, o sentido de existência até aqui formalizado e traduzido pelo quantificador e


predicado de segundo nível não pode ser adequadamente atribuído a Deus. Deus não é o
referente de um predicado de primeiro nível cujo âmbito seja determinadamente delimitado.
Não tem sentido afirmar «Há Deus...», ou mesmo «Existe Deus», porque Deus não é um valor
para urna variável nem um argumento para uma função. Frege nota já aqui, no referido
parágrafo dos Grl, a restrição deste sentido de existência, pois acrescenta a seguir que
podemos alcançar um conceito, não só pela via da abstracção, a partir dos objectos, mas
também apreendendo as suas notas características, directamente, sendo possível que não caia
nenhum objecto sob esse conceito. A admissão desta outra via para a apreensão dos conceitos
é mesmo considerada por Frege como uma condição de possibilidade da afirmação e negação
da existência. Com efeito, como poderíamos negar a existência de algo se não tivéssemos
23

apreendido já antes o conceito (isto é, as notas características) de esse algo, sem ser pela via
dos objectos que subsume, uma vez que é vazio? (Cf.. § 49, in finem). Criticando o referido
passo de Espinosa, Frege escreve (ibid.):

Espinosa é induzido em erro pela ideia de. que um conceito só pode ser adquirido por
abstração directa a partir de um número de objectos. Pelo contrário, nós podemos também alcançar um
conceito, começando pelas suas notas características; e nesse caso é possível que nada caia sob ele. Se
isto não fosse assim, não seríamos nunca capazes de negar a existência, e portanto também a asserção
da existência perderia o seu conteúdo.

Frege admite portanto um modo de afirmar ou negar a existência daquelas «entidades»


que não são subsumíveis por um género, ou que não formam parte de uma extensão
quantitativamente determinada de um dado conceito. Há outros modos de existir para além do
de «ser um valor para uma variável», ou de ser um objecto subsumido por um conceito. Para
estes casos, é evidente que o predicado de segundo nível não resolve a questão da tradução
semântica do predicado de existência, nem o quantificador se pode apresentar como a
formalização lógica adequada para todos os juízos ‘de existência.
A teoria dos níveis da linguagem permite assim tão-só a tradução lógico-semântica de um
sentido de existência, através dos quantificadores. A própria restrição da aplicação do
quantificador existencial não é, no entanto, identificada por Frege com a redução da noção da
existência a este único sentido.
No parágrafo 1, vimos que Frege capta um outro sentido de existência, o da existência
própria dos objectos concretos, individuais, através da solução do problema da conciliação no
conceito de unidade, do igual e do diverso. Ao sentido de existência relativo à unidade
enquanto conjunto de iguais corresponde o sentido de existência traduzido pelo quantificador
existencial, como predicado de segundo nível. Qual a formulação semântica que permitirá
uma tradução adequada desse outro sentido de existência que se predica das coisas
individuais, únicas e irrepetíveis?

5.2. Semântica dos nomes próprios

Frege distingue entre sentido e referência dos nomes próprios: o sentido é o «modo de
dar-se» do objecto, o aspecto sempre parcial segundo o qual designo o objecto. A mesma
referência pode ser designada segundo vários sentidos: «o discípulo de Platão», «o mestre de
24

Alexandre», «o filósofo de Estagira» são nomes próprios que designam o mesmo indivíduo,
«Aristóteles».
A atribuição de sentido aos nomes próprios é a principal inovação da semântica
fregeana dos nomes próprios. Para Stuart Mili um nome tem denotação, mas não conotação: a
função de um nome próprio é única e simplesmente denotar o seu referente, não significa
(means) nem conota nada. Por isso, os nomes próprios não constituem parte de urna língua,
não fazem parte da sua aprendizagem. George Washington não vem no dicionário de inglês e
não significa nada, não tem sentido perguntar pelo seu significado. O nome apenas refere,
designa, um indivíduo determinado.

Russell considera a distinção fregeana entre sentido e referência como urna «confusão
inextricável» (an inextricable tangle)13, e defende que o significado de um nome próprio é o
seu referente; por isso, o acto de nomear implica um conhecimento directo (acquaintance) da
sua denotação. Assim, corno nenhum de nós tem um conhecimento directo de Rómulo, é
evidente que, para Russell, «Rómulo» não é logicamente um nome próprio. Um nome
próprio, em sentido estrito, apresenta a sua denotação através do conhecimento directo
(acquaintance) do seu referente. Para Frege, o nome apresenta-nos a sua referência através de
um sentido que exprime um aspecto, sempre parcial, do objecto designado. Não há nenhum
problema referencial no caso de um nome próprio (signo ou expressão designatória) não ter
referência; por esse facto não deixa de ter significado. Em «Über Sinn und Bedeutung», Frege
apresenta alguns exemplos de nomes próprios sem qualquer referência: «o corpo celeste mais
afastado da Terra», “a série que converge menos rapidamente». Como o seu significado não
consiste na sua referência, a falta desta não implica um sem sentido.

Pelo contrário, para Russell, a ausência de referência envolve um sem sentido. A


ausência ‘de referência não pode ser substituída por um sentido porque, segundo Russell, uma
frase não fala sobre o sentido das palavras que contém, mas sobre as suas referências. Frege
concordaria com esta afirmação, mas considera que, em certos casos, as palavras referem, não
a sua referência habitual, mas o seu sentido: é o caso das palavras em discurso indirecto,
citado por Frege em «Über Sinn und Bedeutung». E seria o caso dos juízos negativos de
existência sobre singulares.

A ocorrência, num determinado contexto, de um nome próprio sem referência


envolve, segundo Russell, a falta de sentido dessa frase, como é o caso dos juízos existenciais
25

negativos sobre um ser individual. «A não existe» (A = nome próprio), de acordo com as
teses de Russell, é ou falso ou sem sentido: no caso de «A» ser realmente um nome próprio,
«A» tem necessariamente um referente e, portanto, é falso afirmar a sua não existência; se não
é efectivamente um nome próprio, a frase torna-se sem sentido. Para resolver o paradoxo
referencial, Russell apresenta duas soluções14.

1) A primeira é a sua distinção entre existence e being. Being é um atributo que


pertence a qualquer possível objecto de pensamento, tudo o que possa ocorrer numa
proposição, verdadeiro ou falso. Portanto, being é um atributo geral de tudo, e mencionar seja
o que for é mostrar que isso é (being). Por isso, «A não é» é sempre falso ou sem sentido. Mas
existence não deve ser confundido com being e, portanto, «A não existe» pode ser verdadeiro,
pois A pode ser (being), mas não existir. A distinção russelliana tem os seus antecedentes em
Brentano e Meinong, que propunham objectos que não existem, objectos inexistentes, para
explicar a intencionalidade dos actos mentais. Como ficou dito, Frege resolve a questão
através da noção de sentido, evitando assim o recurso a esses estranhos objectos inexistentes;
além disso, a sua gradação dos modos de existir, desde os vários sentidos do possível até ao
existente actual, apresenta uma distinção mais aguda e mais precisa dos vários sentidos da
existência, evitando a solução referida de Russell, no fundo uma réplica da dicotomia de tudo
o que existe em possível (being) e real (existence).

2) A outra solução apresentada por Russell é a assimilação dos nomes próprios a


descrições definidas: o nome é substituído por uma «definição em uso» de uma descrição,
sendo uma descrição um símbolo incompleto que não designa nada em si mesmo,
mas cujo uso é definido no contexto de uma frase completa. Não há, portanto, referência a
indivíduos, mas sempre a predicados ou «feixes de predicados», e por conseguinte, não há
nomes para indivíduos inexistentes, o que resolve o problema da negação
da existência: «O actual rei de França não existe» é substituído por «Não há nenhum x para o
qual é verdade que: x é actualmente rei de França, e qualquer y que seja actualmente rei da
França é idêntico a x » (cf. «On denoting», p. 53).

A teoria das descrições definidas de Russell encontra-se na sequência lógica da


referida tese de Kant sobre a existência. A consideração da existência como predicado não
real limita as proposições existenciais a afirmações (ou negações) sobre predicados reais. A
noção das descrições definidas é uma extensão desta mesma acepção de existência (como
26

predicado não real) às próprias proposições sobre singulares, assimilando os nomes próprios a
uma construção feita de predicados gerais e quantificadores. (Sócrates existe» significa que
«há um indivíduo que satisfaz uma série de predicados, predicados que se encontram
abreviados e representados pelo nome «Sócrates» que, em última análise,
não é um nome próprio.) O resultado da tese de Russell será pois uma linguagem construída
por quantificadores e termos puramente predicativos gerais, da qual se eliminam os nomes
próprios:

O que se perde na passagem das descrições definidas para os nomes próprios é precisamente o
mais característico destes últimos: um tipo de unicidade que as descrições — por muito definidas que
sejam — não podem exprimir, precisamente porque introduzem a mediação de termos gerais que
diluem a individualidade da referência.15

É radicalmente diferente a unicidade expressa na formalização das descrições


definidas (“existe um x e só um, tal que X é F»), que remete para um só indivíduo que satisfaz
esta predicação. A indicação da unicidade através do quantificador faz-se mediante uma regra
geral, para a qual há um só caso que a preenche. Com os nomes próprios (em sentido estrito),
estes referem imediatamente um indivíduo particular e determinado que é precisamente este
— o próprio Sócrates — e não qualquer outro, insubstituível e irrepetível na sua
individualidade.

Para salientar a heterogeneidade das descrições definidas em relação aos nomes


próprios, Kripke considera que estes são autênticas denominações essenciais, designadores
rígidos que se referem necessariamente a esse mesmo indivíduo em qualquer «mim- do
possível», isto é, em qualquer situação fáctica ou contrafáctica. Poderia dizer-se talvez que as
descrições definidas são designações de dicto, enquanto os nomes próprios são designações
de re.16

Qual a posição da semântica de Frege relativa aos nomes próprios? Terá partilhado a
tese de Russell, identificando os nomes com descrições definidas abreviadas, ou considerar-
se-á mais próximo da noção de Kripke de «designador rígido»?

Por um lado, ao tentar explicar o sentido de um nome próprio, Frege é levado


naturalmente a citar essas descrições definidas: o sentido de «Afla» corresponde ao sentido
27

expresso numa descrição da forma «A montanha vista pelo viajante A em tal data, a sul, na
linha do horizonte». Mas, como nota Dummett, isto não quer dizer que se identifique sempre
o nome com uma descrição definida; apenas deve haver um meio de reconhecer um objecto
como sendo o mesmo referente de dois nomes diferentes (cfr. Dummett, FPL, p. 58).

É mais. plausível, portanto, que Frege tenha considerado a descrição definida apenas
como um dos modos de dar o sentido do nome, fornecendo um critério de identidade do
referente. Por outro lado, Frege não limita a categorização de nome próprio aos nomes
logicamente simples, o nome no sentido corrente, uma palavra simples que designa
imediatamente o seu objecto. Segundo a caracterização aristotélica, um nome não pode ser
decomposto em partes que signifiquem separadamente (De Int., 16a 20-21). Pelo contrário,
para Frege, são nomes próprios também as expressões complexas; ou seja, as «descrições
definidas», são também nomes próprios, por designarem ou referirem um objecto
determinado, e não, como pensa Russell, um predicado ou conjunto de predicados. Na
semântica de Frege, os predicados, os atributos, as propriedades são traduzidas por
«expressões incompletas» pertencentes a uma categoria diferente e têm por isso um modo de
referir diferente também.

Na verdade, a teoria das descrições definidas conduziria a situações paradoxais dentro


do próprio pensamento de Frege: se uma descrição definida é um modo de introduzir um
nome, dando-lhe o seu sentido e fornecendo-lhe um critério de identificação do referente, a
descrição assimilaria e dissolveria em si mesma as duas noções semânticas que Frege
cuidadosamente tenta distinguir. A descrição definida é, ela mesma, uma expressão
referencial, um nome próprio, no sentido fregeano. Não pode um nome próprio, constituir o
sentido de outro nome próprio, pois cairíamos numa cadeia infinita de nomes, dando-se
indefinidamente os sentidos uns aos outros. Não condiz esta formulação com a noção
fregeana de nome próprio: palavra, sinal ou expressão que designa um objecto. A expressão
do sentido de um nome através, de uma descrição definida é considerada por Frege como uma
justificação epistémica permitindo dar conta do que é saber o significado de um nome ou,
simplesmente, dar uma via para o conhecimento do seu significado.

Porém, falta à semântica dos nomes próprios de Frege o fundamento de uma lógica
analógica permitindo urna ordenação ou hierarquização dos predicados capaz de evitar o
igualitarismo ou nivelação dos possíveis sentidos, que vai pôr em causa a noção de objecto ou
28

de indivíduo. Os diferentes sentidos, como modos de dar-se de um objecto, são sempre partes
do mesmo objeto; não fornecendo um critério para a captação de um sentido primeiro
(equivalente à atribuição da essência ou da predicação da substância segunda à substância
primeira), Frege deixa desprotegida a noção de indivíduo. A nenhum sentido é atribuída a
função de fixar a referência. Assim, a referência identifica-se remotamente com o objecto,
mas este não determina decididamente o sentido. A referência-objecto não se apresenta nunca
de um modo totalmente fechado, como opacidade perante a mente, mas como foco irradiador
de sentidos. Frege garante assim que todos os nomes têm um sentido (o aspecto parcial que
exprimem do objecto denominado), ao preço de enfraquecer a potencialidade referencial de
todos os nomes. Neste ponto, Frege aproxima-se um pouco de Russell, na medida em que
nenhum nome é realmente, logicamente, próprio, mas sempre uma descrição definida, parcial,
não completamente referencial, ou frouxamente referencial. Dá-se um relaxamento na
linguagem, que é admitido e consentido pelo próprio Frege, na flutuação dos diversos
sentidos captados e expressos por diferentes pessoas, em diferentes situações, em relação a
um mesmo referente. Não se referem nunca propriamente os indivíduos em direto, mas
sempre obliquamente; a unicidade do indivíduo, na sua existência actual, perde-se de vista
numa floresta de predicados sem raízes.

Em conclusão, a semântica de Frege proporciona, com a teoria dos níveis de


linguagem, uma formulação adequada para a expressão do sentido lógico da existência —
existência enquanto predicado de segundo nível, ou predicado de predicados. Esta teoria é a
transposição semântica da, noção de quantificador; que constitui a melhor formalização lógica
do predicado da existência.

O modelo estratificado da linguagem, que aqui se apresenta, mostra bem a restrição


deste sentido de existência como predicado atribuível apenas a outros predicados de primeiro
nível, mas nunca, em via direta, a nomes de objetos. Esta restrição da formulação lógico-
semântica da existência está presente rio espírito de Frege e não lhe serviu de base para
reduzir a noção da existência a este sentido, apesar de ser o único logicamente formalizável.

Podemos considerar que as margens da noção de existência (no sentido de es gibt


‘há...’) assim expressa são: a) a existência do atual, Individual, concreto, único e irrepetível,
que pertence ao âmbito da atualidade (Wirklichhkeit). Para designar os existentes atuais, a
‘linguagem possui a categoria dos nomes próprios; b) o domínio do objectivo não atual, do
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possível em sentido lato, que tem uma forma de existir encaixado no atual, constituindo o
universo real. A noção de «insaturação» aplicada às expressões incompletas e o
desenvolvimento de um modelo referencial adequado a esta categoria linguística constituem
as bases de uma formulação adequada para uma semântica do possível.

Estabelecer uma semântica dos nomes próprios, defender a noção de nome próprio
como expressão forte, real e diretamente referencial, implica reformular uma ontologia que dê
a primazia ao ser individual, concreto, mediante um regresso ou um sucedâneo à noção de
substância. Assim, a lógica do nome próprio reintroduz a noção de existência como predicado
próprio do que é actual, que é conhecido, captado e, portanto, atribuído, não pela via do
conceito, mas de alguma forma imediata na percepção sensível, ou mesmo na apreensão
intuitiva intelectual — possibilidade remota que Frege deixa no entanto entrever.

A teoria dos nomes próprios de Frege oscila entre esta última perspectiva, que seria a
base de uma formulação da semântica da actualidade, e uma perspectiva mais flutuante, na
qual os nomes se multiplicam indefinidamente e o próprio se esfuma entre a pluralidade de
possíveis nomes São duas teses antinómicas, em tensão no pensamento de Frege, que revelam
bem a dificuldade de conhecer e de dizer o indivíduo.
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REFERÊNCIAS

1 Begriffsschrifft, eine der aritmetischen nachgebildete Formelsprache des reinen


Denken (Halle) (1-82), 1879. Trad. ing. Stefen Bauer-Mengelborg, in Heijenoort, J. van,
From Frege to Gödel. A source book in mathematical logic (1879-1931), Harvard University
Press, Cambridge Massachussetts, London, 1967 (Bs).
Indicamos a seguir as traduções inglesas das obras de Frege utilizadas para este
trabalho, com as respectivas abreviaturas: The Foundations of Arithmetic (trad. J. Austin)
Oxford, Basil Blackwell, 1980 (Grl); The Basic Laws of Arithmetic (trad. Montgomery Furth)
Berkeley, University of California Press, 1967 (Grg); Transiations from tÍe Philosophical
Writings of Gottlob Frege (trads. P Geach e M. Black) Oxford, Basil Blackwell, 1980 (3ª ed.).
Contém traduções dos escritos: “Funktion und Begriff” (FuB), “Begriff und Gegenstand”
(BG), «Über Sinu und Bedeutung” (SuB), utilizados neste trabalho. Logical Investigations
(trads. P. Geach e R. H. Stoothoft),Yale University Press, 1977 Contém trad. de «Der
Gedanke» (Ged.), «Die Verneinung» e «Gedankengefüge».

2 KANT, I. Kritik der reinen Vernunft, Suhrkamp, Frankfurt, 1981. (Os textos da Kritik
foram confrontados com a tradução portuguesa da edição da Gulbenkian, 1985).
Cfr. HEIDEGGER, Kants These über das Sein, V. Klostermann, Francfort-sur-le-Main 1963,
onde Heidegger aponta como fio condutor, para a elucidação
da questão do ser, a sua definição, bem como a das suas modalidades, a partir da sua relação
com o entendimento.

3 VUILLEMIN, J. Nécéssité ou Contingence. L’aporie de Diodore et les systèmes


phllosophiques, Paris, Les Editians de Mínuit, 1984, p. 216.

4 Cf. GIL.SON, E. Lêtre et l’essence, Paris, Vrin, 1948, p. 191.

5 Cf. ibid., p. 191; KANT, Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration
des Dasein Gottes, 1 abt. 1 Betr., 1.
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6 DUMMETT, M. Frege, Philosophy of Language, London, Duckworth, 1981 (2. ed.),


p. 117.

7 De acordo com o alemão, a tradução do termo Wirklkhkeit seria efectividade, que


respeitaria as relações de família com as palavras wirken (efectuar) e Wirkung (efeito).
No entanto, muitos dos tradutores ingleses (P. Geach, M. Furth, Stoothoft) preferiram traduzi-
lo por actualidade, que tem um sentido mais lato do que efectividade: esta palavra designa o
modo ou estado do ente que consiste em ser em acto ou ser de facto, sem referência ao
fundamento de ser de facto. O efectivo é o facto de existir que se situa na articulação do dado
numa intuição empírica e o pensado segundo a forma de uma predicação modal (existencial)
que, como sabemos, não é, em Kant, uma determinação real. Este carácter extraconceptual
remete para o facto de o objecto ser dado sensivelmente. O actual não designa na entidade o
simples facto de existir, mas abarca o próprio fundamento do facto de existir. Não são
dimensões. contrapostas, mas constituem níveis diferentes de entidade que se relacionam
entre si como o fundamento e o fundado.
Tendo em conta todo o pensamento de Frege sobre existência, parece mais
congruente a tradução de Wirklichkeit por actualidade, noção que Frege não apresenta como o
simples facto de existir, mas como um modo intensivo de existir dos seres individuais, do que
acontece verdadeiramente em virtude de se fundar num determinado pensamento. Note-se o
que Frege afirma do facto: um facto é um pensamento que é verdadeiro(cf. Ged. p 25).

8 Cf. carta a Liebmann publicada pela primeira vez in ANGELELLI, I. (org.,) G. Frege,
Kleine Schriften Hildesheim, Olms, 1967, pp. 404-406.

9 Cf. QUINE, From a Logical Point of View, Harvard Universlty Press, Cambridge
(Mass.) 1980, pp. 1-19 e 65-79; Quine considera Frege, a par de Russell, Whitehead, Church
e Carnap, como logicista, e o logicismo não é senão, no seu entender, um ressurgimento do
realismo (no que respeita ao problema dos universais), assim como o inituicionismo é o
ressurgimento do conceptualismo; e o formalismo, do nominalismo: “Logicism, represented
by Frege, Russell, Whitehead, Church and Carnap condones the use of bound variables to
refer to abstract entities known and unknown, specifiable and unspeccifiable,
indiscriminalely» (ibid., p. 14).
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10 Cf. HEIDEGGER, ob. cit.

11 O sentido mais claro de insaturação é o que se aplica a algumas expressões


linguísticas. Um signo é insaturado quando contém pelo meios um lugar vazio no qual se
pode introduzir outro signo que produz o efeito de completar expressão inicial. Assim, um
predicado é insaturado, tal como urna expressão funcional, pois é evidente o lugar vazio que
pode ser preenchido com o nome de um objecto ou com um argumento. Toda a expressão
saturada, completa, pertence , na semânt1ca de Frege, à categoria dos nomes próprios, ou
nomes de objectos. Uma proposição, que tem como referente o V ou o F, é também um nome,
neste caso um dos possíveis nomes do V ou do F.
Note-se que são estes lugares vazios, visíveis na própria linguagem e simbologia de
Frege [(a capital de...), 2 (...)2] que tornam possível a própria actividade predicativa. Não
poderíamos predicar, julgar, pensar se todos os signos fossem nomes. Sem esses vazios,
estaríamos, como um jogador de xadrez diante de um tabuleiro cujos lugares estivessem
totalmente preenchidos pelas peças, impossibilitado de realizar qualquer momento.
Regressaríamos à completa imobilidade e inefabilidade parmenidiana
A noção da insaturação permite pois desenvolver o que poderíamos considerar a
semântica do possível, complemento da semântica do existente actual.

12 Cf. GEACH, «Ontological Relativity and Relative Identity, in Munitz, M. in Logic


and Ontology, New York, New York University Press, 1973, p. 291. A tese de Geach foi
discutida, entre outros, por D. WIGGINS, Sameness and Substance, Oxford, Basil Blackwell,
1980.

13 Cf. RUSSELL, B. “On denoting», Logic and Knowledge, Edited by R. C Marsh,


George Allen & Unwin, 1977, p. 50.

14 The Principies of Mathematics, New York: Norton and Co. 1973, (2ª ed.), p. 494.

15 Cf. LLANO, A., Metafisica y Lenguaje. EUNSA Pamplona, 1984, pp. 216-217.

16 Cf. ibid., pp. 217-218, e KRIPKE, S. Naming and Necessity, Cambridge (Mass.)
Harvard University Press, 1980.
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