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Quinto Tratamento

"ENTERROS"
Roteiro de
Andriolli Costa

andriolli_costa@hotmail.com
+55 (67) 9263-3719
“ENTERROS”

FADE IN:

Cena 1 – EXT. CLAREIRA NA MATA FECHADA – NOITE


Breu. No escuro, apenas o som de uma pá. Surgindo
lentamento, se fazendo aparecer em meio a uma densa
neblina, a forma de um buraco vai se alargando pouco a
pouco ao golpe das pazadas. Uma, duas, três vezes. Não se
vê quem cava, apenas vislumbres de seu corpo. O HOMEM é
pardo, forte e está quase exausto. Com as costas da mão
seca o suor que escorre da testa. No céu a lua aparece
entre as árvores como que observando o trabalho que se
estende noite a dentro. Sons de dezenas de outras pás se
juntam aquela primeira. Vozes apressadas gritam ordens em
uma lingua que parece espanhhol. O trabalho está quase
completo. O HOMEM coloca um grande pote de barro dentro do
buraco recém aberto. Por fim, se ergue, a pá ainda nas mãos
e lha para o serviço concluído, com a noite às suas costas.
Respira fundo. Silêncio. Tiros. Escuridão. Gritos. Tilintar
de moedas. Surge o título: Enterros.

Cena 2 – EXT. RODOVIA – NOITE


A noite avança silenciosa naquela estrada. A luz da lua
iluminando fracamente a rodovia quase vazia. O único
barulho que se ouve parece ser daquele carro, que cruza
ansiosamente a pista. Quem dirige é DANIEL, que guia o
veículo absorto em seus próprios pensamentos. Está vestindo
um casaco de couro escuro, aberto como uma jaqueta e traz
os cabelos penteados para traz. No pescoço, uma correntinha
dourada. Com pele bronzeada e um rosto duro quebrado por um
leve sorriso, ele dirige com apenas uma das mãos.

Ao seu lado, ANTÔNIO dorme um sono agitado. DANIEL dá


pequenas olhadelas para o lado e começa a perceber que o
amigo está inquieto. ANTÔNIO franze o cenho, movendo a
cabeça de um lado para o outro. As mãos abrem e fecham em
agonia. Em sua mente, uma polifonia de sons fantasmagóricos
perturba seu descanso. No início é apenas um sussurro que
vai ganhando força, vai tomando forma. Um grito
horripilante e ANTÔNIO acorda assustado. Pisca os olhos
repetidamente e percebe a estrada em movimento. Respira

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fundo. Toca o rosto, como que querendo saber se está
realmente acordado.

ANTÔNIO
Desculpe, acabei caindo no sono...

DANIEL balança a cabeça numa negativa e permanece alguns


segundos concentrado na rodovia. Quase não há trânsito; só
uns poucos caminhões que passam assoviando pelo lado
esquerdo. Ainda é madrugada, mas logo vai amanhecer. DANIEL
se vira para encarar o amigo. ANTÔNIO também veste uma
jaqueta, só que de cores mais claras. Algo entre areia e
verde musgo. A inocência com que acorda lhe diminuiu a
idade em pelo menos cinco anos. ANTÔNIO sempre pareceu mais
jovem do que na verdade era.

DANIEL
(Alfinetando)
È... Nem parece que foi você que insistiu pra
gente pegar a estrada no meio da noite, heim?

ANTÔNIO se ajeita no banco de passageiros e desamarrota a


roupa. Parece desorientado.

ANTÔNIO
Eu sinto muito...

ANTÔNIO já está controlando a respiração, e deixando para


trás o sono de alguns instantes. DANIEL sorri, desistindo
da discussão.

DANIEL
Tudo bem...

Ele dá de ombros e ainda com os olhos na rodovia vazia pega


um case de CDs na porta lateral do carro e o passa para
Antônio.

DANIEL (Cont’d)
Pelo menos agora que você acordou dá pra gente
ouvir uma música, né?

ANTÔNIO pega o case e o encara a princípio sem entender.


Raciocinando um pouco, ele abre o porta-cds e passa de um
disco para o outro sem demonstrar interesse. Ele olha como
se não tivesse muita opção. DANIEL continua guiando, sem
prestar atenção ao amigo. Os discos são todos piratas, uma
mídia branca com o nome do artista marcado em vermelho.
Raul Seixas, diz o primeiro. Ultraje a Rigor, aponta o

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próximo. Nada agrada ANTÔNIO, que por fim se decide por um
CD sem nenhuma indicação de artista.

A música enche o ar da noite enquanto o carro continua


seguindo a estrada sempre reta. ANTÔNIO é o primeiro a
quebrar o silêncio com seriedade.

ANTÔNIO
Eu tive o sonho de novo...

DANIEL sorri.
DANIEL
(Com Interesse)
Se você estiver certo, esse vai ser um dos
últimos.

O amigo balança a cabeça, aquiescendo. Está deixando o


estado de entorpecido e passando para o de ansioso. Esfrega
as mãos entre as pernas para espantar o frio da noite e
para disfarçar a própria ansiedade.

ANTÔNIO
A gente tá chegando Daniel. Eu to sentindo!

DANIEL troca uma marcha. Ainda olhando fixamente para a


estrada, ele fica alguns instantes em silêncio. Por fim,
questiona.

DANIEL
Mas e aí? (Vira para a estrada). Você tá legal?

ANTÔNIO não entende, mas também não fala nada. Olha para o
amigo e simplesmente dá de ombros.

DANIEL
É que... (Vira para Antônio) Não faz nem um mês
que esses sonhos andavam te deixando maluco.

ANTÔNIO se volta para a estrada. O rosto tenso revive as


emoções dos sonhos que o atormentam.

CORTA PARA:

Cena 2 – EXT. CLAREIRA NA MATA FECHADA – DIA

Uma pá entra na terra e começa a retirar areia


insistentemente de um buraco. Quem a segura é um soldado
paraguaio, imerso até os joelhos na areia vermelha. O sol é
forte, e faz o suor escorrer dos seus olhos até os cabelos.
Ele seca a testa com os pelos do antebraço. Está sem
camisa; o uniforme cinzento identificado só pelas botas e

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pelas calças que veste. Parece exausto, mas ainda assim
continua cavando.

Logo, percebemos que o movimento ritmado de sua pá não é


individual. Dezenas, talvez centenas de outros soldados
também se dedicam a ingrata missão de abrir grandes buracos
na clareira em meio à mata fechada. Ao seu redor, olhando
da sombra, são observados por alguns oficiais e seu
general: o comandante das tropas paraguaias Francisco
Solano Lopes. Todos devidamente fardados e empunhando seus
rifles.

O trabalho continua quando um dos oficiais grita avisando


da chegada das carroças. São quinze ao todo, que seguem em
fila e circundam a clareira. De lá, os trabalhadores
retiram com cuidado centenas de grandes potes de barro que
vagarosamente vão sendo colocados dentro dos buracos. Com o
trabalho concluído, Solano Lopes olha fixamente para o
enterro. Irredutível, sem demonstrar qualquer expressão,
ele é o primeiro a pegar o revólver e disparar contra os
trabalhadores desarmados. Seu gesto logo é acompanhado por
seus oficiais. O massacre é encoberto pelos gritos de dor e
súplicas de piedade.

CORTA PARA:

Cena 3 – EXT. CLAREIRA NA MATA FECHADA – TARDE

Olhando por cima da clareira, escondidos pelas árvores, os


oficiais jogam as últimas pás de terra sobre os potes de
barro, e também sobre o corpo dos soldados que acabaram de
matar.

CORTA PARA:

Cena 4 – EXT. CLAREIRA NA MATA FECHADA – NASCER DO SOL

Anos depois, a clareira não é mais o que era antes. De um


ambiente verde, e iluminado, hoje, mesmo durante o dia, o
local é angustiante. Um vulto aparece passando do lado
direito. Há sons fantasmagóricos quando nos aproximamos do
local. Embaixo da terra, esqueletos se misturam aos potes
de barro. A terra se abre, revelando uma das cerâmicas. A
luz do sol reflete nas moedas douradas em seu interior, que
emitem um brilho ofuscante onde se forma a palavra
“ENTERROS”. Um fantasma surge ofuscando o brilho das moedas
e apagando as letras. Ele é cinzento, um pouco translúcido,
e traz marcado na imagem incorpórea o local onde os tiros o
atravessaram. Ele escancara a boca, arregalando os olhos
brancos. Urra assustadoramente e avança no meio da tela.

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CORTA PARA:

Cena 5 – INT. CASA DE ANTÔNIO – DIA – AMANHECER


ANTÔNIO está dormindo em sua cama. Seu sono é agitado. Em
sua mente ele escuta o uivo dos fantasmas, gritos de dor e
morte. Ele acorda desesperado. Bate as mãos no rosto para
despertar. Arfa profundamente, olhando ao seu redor. Nada.
Está sozinho. Corre os dedos pelo lençol limpo, num quarto
meticulosamente arrumado e simétrico. Descabelado, suando
frio e assustado, é ele quem não parece mais pertencer
àquele ambiente de ordem.

Cena 6 – INT. REPARTIÇÃO – DIA


O elevador chega ao andar correto e ANTÔNIO sai pela porta
meio atordoado. Ele veste sapatos e calças escuras e uma
camisa mais clara. Carrega uma pasta, com os documentos do
serviço. Quando ele passa, recebe o cumprimento dos
colegas. Desejam bom dia. ANTÔNIO sorri falsamente,
tentando passar uma tranquilidade que não possui. Ainda
traz na mente o som horripilante dos fantasmas. Trata de
seguir apressadamente para sua sala.

Cena 7 – INT. SALA DE ANTÔNIO – DIA


ANTÔNIO está com vários papéis na sua frente. Sua mesa é
ordenada, com espaços determinados para os objetos de
escritório, anotações e pastas. No entanto, ele não
consegue se concentrar. Só ouve os sussurros dos fantasmas.
As palavras não lhe dizem nada, e vão se confundindo,
perdendo a forma. Os sussurros se tornam cada vez mais
altos. Antônio, descontrolado, empurra todos os papeis para
o chão e bate com força na mesa.

CORTA PARA:

Cena 8 – INT. REPARTIÇÃO – DIA


Todos os colegas olham para ANTÔNIO. Os comentários saem de
todos os lados, perguntando o que havia acontecido. DANIEL,
que estava servindo um café, franze o cenho. Pega uma
xícara parte em direção a sala de ANTÔNIO.
CORTA PARA:

Cena 9 – EXT. RODOVIA - NOITE

ANTÔNIO e DANIEL estão novamente no carro. O CD começa a


pular um pouco, atrapalhando a música. DANIEL dá pequenos
socos em cima do CD Player. Não adianta. Desistindo, ele
desliga o aparelho. Recosta-se no banco do motorista, meio
desapontado.

ANTÔNIO
Isso é passado Daniel. Agora tudo faz sentido.

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DANIEL
(Irônico)
Todo o sentido do mundo, Antônio. Todo o sentido
do mundo.

DANIEL coloca a mão do bolso e tira um cigarro. No outro


bolso encontra o isqueiro e acede. Traga fundo e sopra pela
janela do carro. Antônio o encara surpreso.

ANTÔNIO
Você fuma?

DANIEL
Desde moleque. Não sabia não?

ANTÔNIO
Não tinha idéia. (Silêncio) Pensando agora, eu
não sei quase nada de você. Só que trabalha
comigo.

DANIEL
Bom... Você sabe que sou seu amigo! Pra sair
assim, gastando gasolina no meio da noite atrás
de uma...

ANTÔNIO
(Ríspido)
“De uma” o que?

DANIEL
De uma lenda Antônio. De uma lenda.

Antônio fica em silêncio. Coloca as duas mãos dentro do


casaco. Encolhe-se contra o vidro do carro.

ANTÔNIO
(conclusivo)
Se você não acredita, não devia ter vindo.

Cena 10 – INT. SALA DE ANTÔNIO – DIA

DANIEL Está sentado em frente a ANTÔNIO. O amigo está


transtornado, não consegue encará-lo de frente. Bebe de um
gole só a xícara que DANIEL lhe havia trazido. Respira
fundo. Está se acalmando.

ANTÔNIO
Obrigado...

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ANTÔNIO Pousa a bebida em cima da mesa e passa a arrumar os
papéis que havia derrubado no chão. DANIEL permanece
calado, enquanto o amigo continua pegando os papeis,
ajoelhado no chão. Por fim, quebra o silêncio.

DANIEL
Então é isso...

ANTÔNIO, ainda esbaforido, aquiesce. Colocando os


documentos finalmente sobre a mesa, ele se senta.

ANTÔNIO
É... Pede desculpa pro pessoal por mim. É que
acho que tô ficando doido. Já faz uma semana!
Uma semana inteira que estou tendo esses sonhos.
Não agüento mais, é tanta morte, tanta dor...

DANIEL
E tanto ouro, pelo visto.

ANTÔNIO
É... Tanto ouro...

DANIEL sorri e balança a cabeça levemente, como se não


estivesse acreditando. Inclinando o corpo para frente, e
diminuindo um pouco o tom de voz, ele compartilha como que
fosse um segredo com ANTÔNIO.

DANIEL
Fica tranqüilo. Meu avô era lá de Bela Vista
e... Ele vivia sonhando com esses enterros
também.

ANTÔNIO está com os olhos arregalados. Pergunta, quase


soletrando a palavra.

ANTÔNIO
Enterros?

DANIEL
Nunca ouviu falar? Ah... É que você não é daqui.
Olha... Lá na fronteira, todo mundo conhece essa
a historia dos enterros paraguaios.

Cena 11 – INT. QUARTO DE ANTÔNIO – NOITE

ANTÔNIO entra no quarto carregando um bolo de livros de


baixo do braço. São Maldita Guerra, de Francisco
Doratiotto, Genocídio Americano, de Julio Chiavenatto, e
outros sobre folclore paraguaio. Ele deixa os livros sobre
a mesa do computador e sai. Ao redor do monitor, sua mesa

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parece a do escritório. Embaixo dos livros, um mapa de Mato
Grosso do Sul traz a cidade de Bela Vista circulada por um
canetão vermelho. Um caderno de anotações está do outro
lado do teclado.

DANIEL – OS
Dizem que o Paraguai costumava ter tanto ouro
que dava para fazer um anel em volta da Terra. E
na época da Guerra do Paraguai, o General Solano
Lopes começou a ter medo de perder todo aquele
tesouro.

ANTÔNIO volta trazendo uma grande xícara de café. Ainda que


sozinho em casa permanece ereto, como na postura de
trabalho. A única coisa que denuncia seu estado de
alteração são os olhos vidrados. Abre a gaveta e retira
dela um par de óculos para leitura. Na tela, abre o Google
e pesquisa a palavra “Enterros”.

DANIEL – OS
Por decreto, ele mandou confiscar todo o ouro
dos moradores da fronteira com Mato Grosso do
Sul. Esse ouro, ele enterrou em algum lugar
escondido.

Anotando desesperadamente, ANTÔNIO nem nota que a mesa está


balançando. O movimento desequilibra a caneca de café, que
cai estrondosamente no chão. ANTÔNIO se volta para ela
assustado.

O povo mais antigo conta que o Paraguai costumava ter tanto


ouro, mas tanto ouro, que dava pra dar uma volta ao redor
da terra. Na época da Guerra do Paraguai, lá por 1870, o
general Solano Lopez começou a ter medo de perder toda
aquela fortuna

Por decreto, ele mandou confiscar todo o ouro dos


paraguaios, especialmente daqueles que moravam perto da
fronteira. E esse tesouro todo ele enterrou em algum lugar
escondido. Eram toneladas de ouro, prata e pedras
preciosas.

E pra proteger o segredo do Enterro... pá! Os generais de


Solano mataram todo mundo que sabia onde ele estava. A
começar pelos soldados mais rasos que enterraram o tesouro.

Cena 12 – INT. SALA DE ANTÔNIO – DIA

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ANTÔNIO e DANIEL estão novamente na sala. DANIEL conta cada
palavra com seriedade. ANTÔNIO acompanha vidrado.

DANIEL
Dizem que a alma dessas pessoas aparece nos
sonhos dos vivos. Avisando do tesouro escondido
debaixo da terra. Só assim elas vão poder seguir
em frente.

Silencio.

DANIEL
Mas tem uma coisa... Só encontra o tesouro.

A cara de ANTÔNIO

DANIEL
Quem tem coração puro.

Cena 13 – EXT. RODOVIA – NOITE

Estamos no carro de DANIEL. O clima está tenso entre os


amigos. Ninguém fala nada por um tempo. Por fim, DANIEL
rompe o silêncio. Está desconcertado. Ele está ansioso para
acreditar nos enterros, mas a lucidez ainda o mantém sobre
controle.

DANIEL
Cara era só uma história. Uma história que meu
avô me contava...

ANTÔNIO
Não é só uma história Daniel. Nem é qualquer
enterro...

DANIEL encara o amigo, sem mais qualquer atenção na pista


escura.

ANTÔNIO
Esse é o maior enterro de todos os tempos! É
mais dinheiro do que você ou eu nunca sonhamos.

DANIEL
Calma cara, tenta pensar um pouco. Como você
pode ter certeza?

ANTÔNIO
Eles me contaram. Eles só falam disso Daniel. Me
contaram tudo! Da guerra, do sangue, do ouro...

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DANIEL tira o cigarro da boca e o joga pela janela.
Suspira.

DANIEL
Eles contaram é? Quem te contou isso Antônio?

ANTÔNIO encara o amigo. Não fala nada. Na sua cabeça,


novamente os sussurros dos fantasmas.

ANTÔNIO
Vire a esquerda ali na frente. Tamo quase lá.

CORTA PARA:

Cena 14 – EXT. ESTRADA DE CHÃO – NOITE

O carro entra numa estrada de terra batida, cheia de


cascalhos. O veículo começa a chacoalhar de um lado para o
outro.

ANTÔNIO
E aquele seu avô? Foi atrás de algum enterro?

DANIEL
Só do próprio. Dizia que não tinha coragem.

ANTÔNIO
Morreu faz muito tempo?

DANIEL
Morreu sim. De desgosto.

O carro continua balançando nas pedras. ANTÔNIO encara o


amigo. DANIEL ri sozinho. Um riso de nervosismo. ANTÔNIO o
encara, sem entender.

DANIEL
Eu dava muito trabalho, coisa de jovem sabe? Foi
ele que me criou, e eu tive minha fase rebelde.

ANTÔNIO
Sério?

DANIEL
Então! Você me vê todo engomadinho todo dia que
nem acredita né? Mas eu saia direto com a galera
pra fazer farra. Tinha vez que sumia a semana
inteira. Vivia louco. (Faz um movimento brusco
com o carro). Opa! HAha. Sempre andava com
alguma coisa no bolso.

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ANTÔNIO olha para a frente, afunda no banco do passageiro e
se agarra ao cinto de segurança. Agora é ele quem não
encara o amigo. DANIEL sorri agora se divertindo com as
memórias de infância.

DANIEL – CONT’D
Um dia ele surtou tanto que não agüentou.
Derrame. (Sente o olhar de Antônio e o encara)
Coitado! Aí eu tive que me virar sozinho. Foi só
aí que virei gente. Ainda assim, morro de
vontade de tocar o foda-se e viver na farra
outra vez. Aquilo sim que era vida!

A cara de ANTÔNIO. Ele está em silêncio. Parece preocupado.

DANIEL
E você Antônio? (Dá um cutucão no amigo).
Aprontava muito?

ANTÔNIO se assusta e pula para o lado. Vagarosamente, ele


retorna a posição original, e responde como se medisse cada
palavra antes de falar.

ANTÔNIO
Não... Nada... Sempre fui pacato. Nunca quis dar
trabalho pra ninguém. A gente tava sempre se
mudando. Nunca dava tempo de fazer nada. Pai
militar sabe?

DANIEL
Sei... É, parece que os sonhos escolheram o cara
certo heim? Se você não tem coração puro,
ninguém mais tem!

ANTÔNIO
É... Ninguém mais.

Cena 15 – EXT. ESTRADA DE CHÂO - AMANHECER

Fantasmas. Sangue. Guerra. Morte.

Já está quase amanhecendo e o sol começa a pintar a


paisagem ao redor dos amigos. ANTÔNIO fecha os olhos.
Franze o cenho, como se estivesse se concentrando. Ele vê
uma luz, ofuscante, que ganha à forma de uma árvore do
cerrado. Abre novamente, e lá está ela. Toda ressecada, sem
as folhas, com a luz do sol matinal entrando pelos seus
galhos. O carro para de repente.

DANIEL
Ahhhh! Não não.... Não faz isso comigo!

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ANTÔNIO
Não tem problema Daniel... Estamos perto. É por
ali! (Aponta para a mata atrás da árvore).

DANIEL
O que?

ANTÔNIO sai do carro.

Cena 16 – EXT. ESTRADA DE CHÃO (Fora do Carro) – AMANHECER

ANTÔNIO desce do carro e vai até o porta-malas. DANIEL o


segue. Ele começa a descarregar o equipamento: um par de
pás e dois grandes sacos para colocar o ouro. Joga na mão
de DANIEL.

ANTÔNIO
Vem, vamo andando.

DANIEL olha espantado. ANTÔNIO ganhou um vigor que não


tinha pouco tempo atrás. Eles tiram a jaqueta e deixam no
porta-malas. Os dois saem da estrada e caminham para fora
da trilha. Passam a árvore, sentindo os raios de sol
matinal começando a esquentar. Entram na mata do cerrado.

Cena 17 – EXT. CLAREIRA NA MATA FECHADA – AMANHECER

Um par de pés se aproxima andando sobre as folhas secas. Um


saco de lona cai no chão, aos pés de ANTÔNIO. Os amigos
estão numa clareira, em meio à mata fechada.

ANTÔNIO
É aqui...

ANTÔNIO começa a cavar com a pá, mal esperando o


companheiro começar. DANIEL hesita por alguns instantes.
Por fim, decide cavar também. Os dois cavam, cavam, cavam.
O sol começa a esquentar e eles estão suando. Limpam o suor
com o braço, já sem a jaqueta que vestiam antes.
Finalmente, a pá de DANIEL encontra uma resistência. Ao
longe, ele grita para o companheiro.

DANIEL
Achei alguma coisa!

ANTÔNIO pega sua pá e corre em direção ao amigo. Ele está


ajoelhado no chão, e retira com as mãos a terra de cima de
um objeto de cerâmica. ANTÔNIO se aproxima, e extasiado,
coloca sua pá de lado e passa a tirar terra com ainda mais
rapidez de cima do objeto, que se prova um grande pote de

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barro, com uma tampa pesada em cima. DANIEL senta no chão,
limpando o suor com as mangas da camisa. Olha estupefato
para o pote. ANTÔNIO está calado. Respira fundo, também
olhando para a cerâmica.

ANTÔNIO
Eu sabia!

DANIEL
Não dá pra acreditar...

DANIEL ri sozinho. Era tudo verdade! Ele se arrasta


de volta em direção ao pote.

DANIEL
Esse é um os potes... Será que... Será que tem
ouro aqui mesmo?

ANTÔNIO o impede. Coloca a mão no seu peito.

ANTÔNIO
Não! Espera!

DANIEL
Espera? Espera o que cara!

ANTÔNIO
Espera!
ANTÔNIO se levanta, usando a pá como apoio. DANIEL recua
ainda se arrastando e também se põe de pé cautelosamente.
Não está entendendo nada.

ANTÔNIO
Você não pode... Vai estragar tudo!

DANIEL
Antônio, que é isso cara?

Os fantasmas tornam a uivar nos ouvidos de ANTÔNIO, dessa


vez mais alto do que nunca. Ele tem os olhos vidrados, não
chega nem a piscar. Levanta a pá até a altura do meio do
corpo, e a empunha com as duas mãos.

ANTÔNIO
Eu nunca quis nada da minha vida Daniel. Nunca
quis ter dinheiro, nunca quis ter fama, mulher
bonita, carro do ano.

DANIEL tenta se aproximar, ainda com as mãos na frente do


corpo. Como se pedindo calma a ANTÔNIO. Este permanece

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irredutível. Como se fosse uma lança, ele aponta a
ferramenta para DANIEL, e o guia para longe do pote.

ANTÔNIO
Mas tudo valeu a pena. A minha vida inteira
valeu a pena por esse momento. Eu fui escolhido.
Eu posso ter tudo agora! Quinze carroções em
ouro! E sabe por quê?

DANIEL
Antônio...

ANTÔNIO
Porque eu tenho coração puro Daniel! Eu! E
você... Você é sujo.

DANIEL
(rindo nervoso)
O que? Que absurdo é esse!

ANTÔNIO
Você é sujo Daniel. Você está aqui por
interesse! Só a sua presença aqui põe tudo em
risco. Não... Eu não vou perder tudo por sua
causa. Vai embora. Vai embora daqui! Agora...

DANIEL se aproxima ainda mais de ANTÔNIO, está na


distância perfeita para um bote.

DANIEL
Você tá maluco! Eu vim até aqui com você...

ANTÔNIO
(Gritando)
Agora!

DANIEL se joga contra o antigo amigo, e tenta tomar a pá


de suas mãos. Eles brigam um tentando sobrepujar o outro.
ANTÔNIO o empurra para trás com o cabo da ferramenta, e
antes que ele se recupere, traça com a pá uma diagonal
para cima, acertando em cheio a cabeça da DANIEL. ANTÔNIO
recupera o equilíbrio depois do golpe. Está visivelmente
transtornado. Encara DANIEL que está no chão, apoiado
pelos joelhos e cotovelos. Ouve mais uma vez o grito dos
fantasmas. Fechando os olhos para não ver a cena, ele
golpeia o corpo de DANIEL. O sangue mancha levemente seu
rosto e suas roupas. Terminado o serviço, ele solta a pá
ao lado do corpo inerte ao seu lado. Sem forças, ele se
ajoelha em frente ao grande pote de barro. Seus olhos
retomam o ar de ansiedade. O sangue de DANIEL escorre pela
terra, próximo ao enterro. Em sua cabeça, nada mais do

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grito dos fantasmas. Segurando a tampa com as duas mãos,
ele a levanta e atira para o lado. Encara o interior do
pote. Seu sorriso desesperado de repente se transforma em
horror. Seu rosto é todo um grito silencioso de descrença.
Dentro do pote, nada. Só a escuridão. De dentro dela,
besouros passam correndo para fora do pote. Sobem os
créditos. Os besouros correm, se espalhando pela tela.

THE END

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