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Tomados em conjunto, esses quatro eventos, todos ocorridos num intervalo inferior a dois
anos, desvelam os caminhos do racismo brasileiro. Eles mostram a naturalização da violência
e da exclusão que atingem a população negra no Brasil há muito tempo, e que persistem nas
práticas sociais da atualidade.
O elevadíssimo número de homicídios no Brasil tem uma clara conotação racial. Segundo
números do Atlas da Violência 2018, elaborado pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, “71,5% das pessoas que são assassinadas a cada ano no país são pretas
ou pardas”. Se forem consideradas as mortes causadas por forças policiais, 76,6% das
vítimas são negras.
Não é por acaso, portanto, que a vítima do assassinato no supermercado tenha sido
um cidadão negro. A segurança privada, naquele caso, é um espelho da atuação das
polícias no Brasil.
O episódio da festa que trouxe alusões ao período da escravidão, por meio da cenografia e do
vestuário, não é também uma novidade na história brasileira. No terceiro volume da
biografia de Getúlio Vargas, o escritor Lira Neto descreve uma festa promovida por Assis
Chateaubriand em Paris, no ano de 1952, que procurava “apresentar à alta sociedade do
Velho Mundo o Brasil verdadeiro”. Entre as várias “atrações” da festa, estava um momento
em que “quatro negros vestidos de escravos entravam conduzindo uma liteira que trazia,
entre almofadas, devidamente fantasiada de senhora de engenho, a bela Aimée”¹. Além
disso, por meio de importante reportagem produzida pelo The Intercept, fomos informados
da existência, no município de Vassouras, no estado do Rio de Janeiro, de uma fazenda
transformada em atração turística, em que mulheres negras eram caracterizadas como
escravas e o ambiente procurava reproduzir o que os proprietários imaginavam fosse uma
fazenda do tempo dos cafezais. Não é difícil intuir que a família dos atuais proprietários
explorava, no século XIX, mão de obra escrava.
A tardia abolição da escravidão, no Brasil, foi uma medida que não veio
acompanhada por nenhuma política relacionada à inclusão da população negra no
mundo do trabalho. A abolição ocorreu de modo simultâneo ao incentivo à imigração
de populações europeias para o Brasil, naquilo que ficou claramente caracterizado
como uma tentativa de branqueamento da sociedade. Violência e exclusão
continuaram a atingir a população negra, na cidade e no campo.
Várias formas de resistência surgiram, desde a fundação da Frente Negra e da Liga Negra, na
década de 1930, passando pelo Teatro Experimental do Negro, a partir dos anos 1940, até os
vários movimentos que culminaram no estabelecimento do Movimento Negro Unificado, em
1978.
A Constituição permanece atual, 30 anos após sua promulgação. Seu compromisso pela
igualdade exige que a sociedade brasileira tome consciência do racismo estrutural que
persiste entre nós, da violência endêmica contra a população negra e das incessantes
tentativas de flexibilizar as regras jurídicas que rejeitam todas as formas de escravidão. Isso
só poderá ocorrer pela adoção de políticas de inclusão e formas de reparação que envolvam o
reconhecimento das violências passadas e presentes. Só assim a “reconstitucionalização” do
Brasil, almejada por Joel Rufino dos Santos, poderá ser vivida no plano político, social e
institucional.