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CIDADE E SOCIEDADE NO CONTEXTO DO SISTEMA PRESIDENCIALISTA


BRASILEIRO

1 O Estado federal brasileiro e o sistema presidencialista

Cuida-se, nesse capítulo, de examinar as mudanças empreendidas no Estado


federal brasileiro, sob o ponto de vista da legitimidade constitucional, objetivando por
em destaque, no âmbito do sistema presidencialista, as repercussões quanto à repartição
de receitas tributárias e o seu reflexo no governo local.
O sistema presidencialista brasileiro, inspirado no modelo norte americano,
tornou-se, na prática, muito distante da matriz idealizada pelos founding fathers, que ao
estabelecerem uma Constituição escrita, onde tudo estivesse bem definido,
competências, restrições, limitações, separação e relação entre órgãos e poderes,
romperam com a tradição teórica e prática do regime monárquico de origem inglesa. 1
O tipo de constitucionalismo criado pelos federalistas refletia uma sociedade
complexa, contraditória, dominada pela tensão e pelo conflito, cuja base repousa no
alargamento do conceito de república.
Para Madison, o republicanismo representava a vitória de uma ideia nova de
poder popular sobre uma ideia arcaica de democracia direta.2 Nesse contexto, a criação
do Estado federal americano exigiu a formalização da Constituição, tendo em vista que
no Estado constitucional as normas fundamentais de organização estatal são redigidas
em um documento solene, no qual se contém, especialmente, seus limites de atuação.
Esse tipo de Estado federal, além de instituir um novo constitucionalismo, inaugurou
um sistema político de governo completamente novo, reunindo em torno do presidente
da república as funções de Chefe de Governo e de Chefe de Estado.
Essa forma de organização política estatal tornou-se cada vez mais comum no
mundo moderno, em virtude da possibilidade de fácil adaptação do federalismo às
necessidades de cada lugar.
Para análise do desenho constitucional de um Estado federal, importa observar
aspectos relativos à divisão de poderes dentro do legislativo e entre níveis de governo, o
papel do judiciário, a alocação de recursos fiscais e de competências e as garantias
constitucionais dos entes integrantes da federação.
A existência de um sistema federal, segundo Celina Souza3, implica a
cooperação política e financeira entre o governo federal e as demais esferas da
federação, devendo ser considerados, em cada caso, o tipo de federação e o grau de
descentralização entre os entes federados:

O federalismo no seu conceito amplo se refere aos laços


constitutivos de um povo e de suas instituições construídos
através de consentimento mútuo e voltados para objetivos
específicos, sem, contudo, significar a perda de identidades
individuais.

1 PAINE, Thomas. Apud MARQUES, Viriato Soromenho. A Revolução Federal, Lisboa:


Edições Colibri, 2002, p. 42.
2 MARQUES, Viriato Soromenho. Ob. cit., p. 42.
3 SOUZA, Celina. Federalismo e Intermediação de Interesses Regionais nas Políticas Públicas
Brasileiras, São Paulo, 1998, p. 5, disponível na internet:
<http://www.fia.com.br/reforma/textos.htm>. Acessado em 01/02/04.
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O Estado brasileiro, declarado pelo texto constitucional como República


Federativa do Brasil, adotou o sistema presidencialista de governo em 1891 e, desde
então, vem enfrentando seguidas crises políticas, tendo passado por períodos de ditadura
política e, na atualidade, vem construindo seu próprio conceito de democracia.

2 O princípio republicano e a tributação

A ideia de república como sinônimo de coisa pública encontra-se presente em


maior ou menor extensão nas mais diversas formas de governo e de sistemas políticos.
A república, segundo uma interpretação mais restrita, pode ser definida como
uma forma específica de determinar a coisa pública. Nesse sentido, pode-se dizer que o
principal problema consiste em distinguir o que é público, qual sua extensão e como se
organiza ou se ordena a coisa pública.
Verifica-se que a ideia de república referida a um modo particular de domínio
público foi tratada de forma sistemática, pela primeira vez, por Aristóteles, que
classificava os regimes políticos com base em dois critérios: a) o fim do bem comum e,
b) o elemento soberano. A combinação desses critérios gera formas simples, retas
(justas) ou desvirtuadas (injustas) de governo, todavia, Aristóteles reconhecia como
pressuposto de sua tipologia o exame da realidade, que revelava sempre a variação de
tais formas, resultando por isso, freqüentemente, como anota Segovia4, em uma forma
mista de governo:

Es decir: para Aristóteles la república es una forma mixta de


régimen político que resulta fundamentalmente de la
combinación de oligarquía (decadente sustituto de la
aristocracia) y democracia. La república es una suerte de
simbiosis entre la riqueza, principio dominante de la oligarquía,
y la libertad, principio constitutivo de la democracia. Así queda
garantizada la participación de todos los honores de la ciudad y
se genera un regimén estable, en la medida que se sepa
mantenerse alejado de los extremos.

Transcendendo essa questão, Aristóteles assinala que se o objeto da ciência


política consiste em determinar qual o melhor regime político e, considerando que os
cidadãos são homens livres e iguais, o melhor regime, portanto, será aquele que permita
a participação de todos.
A participação de todos, entretanto, requer que haja moderação, devendo ser
evitadas situações extremadas que possam constituir, de um lado, o governo dos ricos e,
de outro, o dos pobres. Esse equilíbrio tende a criar um regime com maior estabilidade e
esse benefício se obtém geralmente nos regimes mistos, especialmente na república
onde a combinação de oligarquia e democracia permite o domínio dos elementos
moderados da sociedade e concede a todos a possibilidade de participação, sob a
soberania da lei. A república pressupõe, por conseguinte, que a lei que regula as
condutas humanas deve permanecer inalcançável à vontade do soberano.
O conceito de república se opõe ao de reino, pois não é o governo de um só, mas
sim um governo misto fundamentado na soberania popular e na autoridade dos homens

4 EGUES, Carlos. SEGOVIA, Juan Fernando. Los Derechos Del Hombre y La Idea
Republicana. Mendonza: Ediciones Depalma, 1994, p. 83.
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de bem, representando uma garantia de liberdade para o povo, assegurada pela própria
lei. Em Roma, a ideia de república foi muito bem definida por Cícero:5

Así pues, la República (= cosa pública) es la cosa propria del


pueblo; pero pueblo no es toda reunión de hombres,
congregados de cualquier manera, sino una consociación de
hombres que aceptan las mismas leyes y tienen intereses
comunes.

Assim, segundo Cícero, a república configura o marco institucional, a


constituição que permite o império das leis que derivam sua validade do direito natural,
norma suprema da bondade e das ações humanas, regra eterna e imutável do que é justo.
Constata-se que Cícero incorporou elementos gregos aos estudos da constituição
republicana de Roma, como, por exemplo, o regime misto, sujeito à lei natural e
vinculado à virtude. Trata-se de uma releitura das instituições políticas gregas
influenciadas por Políbio, de quem Cícero era um dos mais notáveis discípulos.
Marcel Prelot6 salienta, que a influência de Aristóteles sobre o pensamento de
Políbio é bastante evidente, em especial no que se refere ao objeto da política:

Para Políbio, el fin de la actividad política no consiste en


adquirir y conservar la riqueza sino introducir en la vida privada
la virtud y la sabiduría, y en la vida pública la bondad y la
justicia. El concepto está muy próximo a La Política del
estagirita. Pero la distinción entre lo “privado” y lo “público”,
ausente en Aristóteles, traduce la influencia del derecho romano.

Na realidade, as ideias de Cícero foram influenciadas por Políbio que também


adotava a classificação tripartita de formas de governo de origem aristotélica, com suas
respectivas perversões, como observa Alberto Rodríguez Varela:7

Reconoce como formas puras a la monarquía, la aristocracia y la


democracia, y como impuras a la tiranía, la oligarquía y la
demagogia. La originalidad de Políbio deriva de sostener que las
formas puras llevan en sí el germen de su propria corrupción,
tornándose así imposible la estabilidad y continuidad de
cualquiera de ellas. Además, con una interpretación forzada de
la historia de Roma, sostiene que la sucesión de las formas puras
e impuras se produce en forma cíclica.

Para Cícero, a república era compreendida como uma sociedade formada sob a
garantia das leis, tendo como objetivo a utilidade comum. Bidart Campos8
adverte que: “En este concepto aparecen dos elementos de primer orden: el acatamiento
a un orden jurídico común, y una finalidad también común de utilidad general”. Santo
Tomás de Aquino, por sua vez, segue a mesma classificação das formas de governo
formulada por Aristóteles, sustentando que a república constitui um regime misto que
combina democracia com oligarquia ou aristocracia, justificando que na democracia os

5 CÍCERÓN, Marco Tulio. Sobre La República, Madrid: Editorial Tecnos, 2ª ed., 1992, p. 27.
6 PRELOT, Marcel. Apud, VARELA, Alberto Rodríguez. História de las Ideas Políticas, Buenos
Aires: A – Z Editora, 3ª ed., 1995, p. 72.
7 VARELA, Alberto Rodríguez. Ob. cit., p. 73.
8 CAMPOS, Bidart. Apud, VARELA, Alberto Rodríguez. Ob. cit., p. 78.
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ocupantes do governo são todos iguais. Igualdade não em sentido absoluto ou
quantitativo, mas proporcional ou qualitativo, uma vez que à liberdade (princípio
democrático) adiciona-se a dignidade (princípio aristocrático) e/ou a riqueza (princípio
oligárquico), possibilitando uma justiça relativa ao equilibrar a participação de distintas
classes sociais.9
Segovia acrescenta que Santo Tomás de Aquino10 deixa transparecer que
existem bondades apreciáveis na república, especialmente porque nela o poder não
pertence a nenhuma classe social com exclusividade, mas a todas. Na prática, isto
conduz a um governo de classe média, cujos interesses mais se aproximam do bem
comum, sendo, portanto, mais representativo da cidade, concluindo que:

En consecuencia, la república puede ser sinónimo de régimen


popular justo, como cuando en los comentários a la Política de
Aristóteles, afirma Santo Tomas que: “Cuando el conjunto de la
multitud gobierna con vistas al bien común, el régimen se
denomina república”.

Entretanto, as mudanças transcorridas ao longo do tempo modificaram as velhas


formas de convivência política, substituindo-se a polis pelo Estado, instituído como um
ente dissociado do cidadão. Essa mudança trouxe variações significativas ao conceito de
república, tendo em vista que a estabilidade política das instituições gravitará em torno
da nova arquitetura institucional e, ademais, a concepção de virtude será sensivelmente
modificada com o tempo.
Assim, ao final do século XV e começo do século XVI tem início em Florença,
na Itália, um movimento republicano influenciado pelos humanistas dos anos
quatrocentos e pelo pensamento escolástico, no qual se destaca o aspecto institucional
da república como a combinação dos elementos predominantes nas formas simples de
governo, numa época em que, à exceção de Veneza, o governo dos principados se havia
imposto sobre as pequenas repúblicas, como observa Segovia:11

La república aparece, entonces, como el régimen opuesto al de


los signori; la dicotomía – como en Cicerón – es entre
principados y repúblicas, confrontación que en la pluma de los
republicanos casi siempre quiere significar la alternativa entre la
tiranía y el gobierno libre

O citado autor destaca, ainda, que, para os humanistas, república era sinônimo
de liberdade, de governo livre, onde não existia opressão, tendo em vista que se
confiava a guarda da cidade aos próprios cidadãos e não a um príncipe. E, nesse sentido,
a república era concebida como um governo popular, no qual se permite a participação
cívica da comunidade.12
No pensamento florentino, todavia, a palavra “estado” designa uma expressão
genérica que abrange duas espécies: república ou principado, duas formas de governo,
ou seja, duas maneiras de governar o povo. Mario de La Cueva13 observa que, para o
historiador de Florença, a república ou principado nunca tiveram existência

9 EGUES, Carlos. SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 85/86.


10 EGUES, Carlos. SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 86.
11 EGUES, Carlos. SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 88.
12 EGUES, Carlos. SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 89.
13 CUEVA, Mario de la. La Idea del Estado, Mexico: Fondo de Cultura Econômica, 1996, p.
43/44.
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transcendente ao homem, e que um termo genérico serve para reunir características
comuns de espécies diferentes:

Pero nunca se le ocurrió al historiador de Florencia decir que la


república o el principado tuviera existencia transcendente a los
hombres o fuera un ente real o fingido o abstracto. Un térrmino
genérico sirve para reunir los caracteres comunes de diferentes
especies, pero, salvo que nos coloquemos en la postura platônica
de los arquetipos o aceptemos la fórmula medieval de la querella
de los universales: universalia sunt realia, tendremos que decir
que es un concepto que expresa lo que es común a muchos
objetos; así el concepto animal engloba a los mamíferos y a los
peces, pero no posee ninguna realidad transcendente a ellos.
Creemos, en consecuencia de todo lo expuesto, que estado es un
término genérico de dos formas de gobierno, república o
principado, o con otras palabras: Maquiavelo se planteó el
mismo problema que encontramos en Herodoto, Aristóteles,
Políbio y Cicerón, entre otros tratadistas, acerca de la
clasificación de las formas de gobierno.

No entendimento de Mario de La Cueva o estado moderno nasceu em Florença


como uma obra de arte: “Nasció con el despertar de la idea de la res pública, quiere
decir, cuando el problema de Florencia dejó de ser la cosa del rey o del príncipe y
devino la cosa de todo lo pueblo”.14
O nascimento do estado moderno é o resultado de lutas políticas entre os poderes
medievais: de um lado, a igreja e o império, a igreja e o rei da França, o monarca da
França e o imperador, os reis e os senhores feudais e, de outro, a formação de
comunidades nacionais, especialmente, Espanha, França e Inglaterra, assentadas em
porções específicas do território europeu. A doutrina o descrevia como sendo um estado
nacional, territorial, monárquico – salvo as repúblicas italianas do século XVI -
centralizador de todos os poderes públicos e soberano em dupla dimensão: externa e
interna.15
Essa mudança de compreensão e de conceito de república evidencia o
rompimento com a antiga ideia republicana, passando a reclamar agora uma
constituição específica, por ser incompatível com outros regimes. A chave de uma vida
livre e feliz passa pelo estabelecimento de instituições cívicas eficazes que dependem,
em última instância, da soberania dos cidadãos reunidos em assembleia.
A virtude constituía o conceito chave da teoria política renascentista e
humanista, referindo-se ao reconhecimento da capacidade individual e das forças
próprias do homem que o permitem forjar seu próprio destino e remodelar o cenário
social de acordo com seus desejos.
A virtude, nesse sentido, não foi oposta às virtudes tradicionais até o momento
em que se separou da religião, quando lhe atribuíram finalidades exclusivamente
terrenas como a glória, a fama, a honra e a grandeza, prêmios alcançados por quem
obtém êxito na vida política.
Todavia, a virtude só cresce em liberdade e é o alimento desta quando as
condições institucionais permitem a participação livre dos homens nas instituições da
cidade, concedendo-lhes a oportunidade de fazerem-se virtuosos. E, os homens

14 CUEVA, Mario de la. Ob. cit., p. 45.


15 CUEVA, Mario de la. Ob. cit., p. 45.
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virtuosos e patriotas, aqueles que olham através dos olhos da cidade e não se preocupam
com seus interesses pessoais, constituem a última garantia de liberdade.
Segovia ressalta que para os humanistas, o regime político constituído sob a
liberdade é o único justo. No entanto, na visão clássica expressada por Aristóteles, isto
não é assim porque se parte da premissa que todo regime político é regime de homens
livres. Contudo, a liberdade não é um fim em si mesma. Ela é uma condição prévia do
conceito de associação ou comunidade política. Por isso, existem diversas
manifestações de domínio legítimo ou justo, incluindo-se a república entre elas. De
outra parte, se os humanistas fazem da grandeza o fim da cidade, os clássicos enfatizam
o conteúdo ético da vida em comum, a vida boa ou virtuosa, segundo Aristóteles, ou, o
bem comum para Santo Tomás de Aquino.16
A ideia clássica de república, desde os humanistas, tem conservado duas
características comuns: a concepção de regime misto e de participação popular.
James Harrington, reunindo velhos princípios republicanos e preocupações mais
modernas sobre o tema, desenvolveu sua teoria com base na balança da propriedade da
terra, ou seja, na chamada “lei agrária”, que constitui a pedra angular de seu sistema
filosófico. No entendimento de George Sabine17, a teoria desenvolvida por Harrington
originou-se da ideia aristotélica de que a causa principal das revoluções são as
desigualdades de propriedade e, de outra parte, da crença de Maquiavel de que uma
nobreza poderosa é incompatível com o governo popular.
Salienta George Sabine18 que Harrington, com sua teoria, cuidou de corrigir e
complementar o pensamento de Hobbes, atacando diretamente a explicação superficial
de que o governo era um mero poder baseado em um pacto:

El poder en el sentido jurídico no es algo que se explique por sí


mismo; presume una fuerza social, la cual presume a su vez un
control de los medios de subsistencia. Lo que separa a Hobbes
de Harrington es la differencia existente entre un lógico del
derecho y un economista social”. Así, pues, para Harrington, el
resultado de las guerras civiles era una conclusión prevista de
antemano; no se trataba de justicia o injusticia abstractas, sino
de causas sociales. El control de la tierra, y con el las fuentes del
poder político, habían pasado a manos de la clase media. La
monarquia Tudor pudo tener temporalmente un gran poder
mientras la nueva clase llegava a ser, por así decirlo,
políticamente consciente de sí misma, pero tarde o temprano el
gobierno tiene que conformarse a la distribución de la
propriedad. Ésta era la razón de que Harrington fuera
republicano. No tenía objeción teórica contra la monarquia,
aunque creía que una república era superior.

Embora tenha utilizado a tradicional classificação tripartita das formas de


governo, monarquia, aristocracia e democracia, com suas respectivas formas
degeneradas, seguindo o pensamento de Aristóteles, Harrington elaborou uma revisão
tão original que modificou significativamente a doutrina tradicional. Sua classificação
tripartita de formas de governo contempla a monarquia absoluta, a monarquia mista ou
feudal e a república (commonwealth), cada uma delas assentadas em formas típicas de
propriedade da terra. Em síntese, tratava-se de evitar mudanças importantes na forma de

16 EGUES, Carlos. SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 91.


17 SABINE, George H. Historia de la teoría política, México: Fondo de Cultura Econômica,
1996, p. 385.
18 SABINE, George H. Ob. cit., p. 385.
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distribuição de terras e, no caso de uma república, objetivava evitar sua concentração
nas mãos de poucos.
Sua ideia de república aproximava-se de modelos antigos como o de Atenas,
Esparta e Roma, atribuindo dois princípios básicos à política: o primeiro é a força, que
se fundamenta na distribuição da propriedade e que limita as possibilidades de um
governo estável, deixando ainda, espaço para eleições; o segundo é a autoridade, que se
fundamenta nos bens do espírito tais como a sabedoria, o valor e a prudência.
Em termos gerais, essa distinção corresponde àquela existente entre a “prudência
antiga”, relacionada à arte de governar com vistas ao direito e para o bem comum, e a
“prudência moderna”, relacionada à arte de explorar a comunidade em favor de um
indivíduo ou de uma classe. Harrington acreditava que a “prudência antiga” estava
representada por escritores modernos como Maquiavel e que a “prudência moderna”
identificava-se em escritores como Hobbes. Ademais, como anota George Sabine19, o
traço característico de uma república – commonwealth – como a designava Harrington,
consiste em ser um império das leis e não dos homens:

Hobbes, dice Harrington, padece una confusión cuando sostiene


que, como todos los gobiernos someten a los hombres a alguna
forma de control, la libertad del súbdito es igual en todos los
sistemas jurídicos. La distinción que hace Harrington aquí es
prácticamente la misma formulada por Aristóteles entre tiranía,
que es personal y arbitraria, y politeía, que es gobierno
conforme a derecho, realizado en interés público y con la
participación y consentimiento de sus súbditos. Todas las formas
de gobierno, incluyendo la república, necesitan la coincidencia
del poder con la autoridad. Ninguna sabiduría, por grande que
sea, puede hacer que un gobierno funcione bien a menos que el
poder político y económico coincidan, pero es igualmente cierto
que el gobierno no fluye de modo espontáneo de un sistema
económico determinado.

Como Aristóteles e Maquiavel, Harrington entendia que a política é uma arte e


que a república, bem organizada, é um governo realmente das leis e também mais
estável que a monarquia. Somente a república permite a liberdade sob a lei e oferece o
campo adequado à verdadeira arte do estadista e ao espírito público. Salientava ainda,
que a verdadeira arte política consiste em fazer coincidir o interesse pessoal e o
interesse público e que o governo popular consegue isto com maior facilidade. Nisto
consistia a “república igual”, cujas bases assentavam-se sob a lei agrária. Assim, a
estrutura republicana previa os meios necessários para responder a vontade popular: a) o
primeiro consistia na rotatividade dos cargos (eleição para exercício de um mandato por
determinado período); b) o segundo referia-se à votação secreta, a fim de que os
eleitores pudessem votar livremente; c) o terceiro estabelecia que, ao criar um governo
livre, era essencial promover uma separação de poderes. Essa separação de poderes,
entretanto, não correspondia à teoria difundida por Montesquieu, assemelhando-se mais
à concepção utilizada pela cidade-estado, conforme destaca George Sabine20
:

Los principios estructurales de lo que Harrington denominaba


“república igual” en la que creía que no podrían unirse nunca el

19 SABINE, George H. Ob. cit., p. 387.


20 SABINE, George H. Ob. cit., p. 389.
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interés y el poder necesario para llevar a cabo una sedición, son
una ley agraria, la rotación en los cargos, la votación secreta y la
separación de poderes. Lo defenía como sigue: “Una república
equitativa...es un gobierno establecido sobre una ley agraria
equitativa, que se levanta a la superestructura o tres órdenes, el
senado que discute y propone, el pueblo que resuelve y la
magistratura que ejecuta, por medio de rotación equitativa,
mediante los sufragios del pueblo emitidos por votación”. La
parte doctrinaria, no realista, de su pensamiento era su fe en la
eficacia de la maquinaria política, y en este aspecto no difería de
muchos de sus contemporáneos. Es extraño que um hombre con
una penetración tan honda como la suya de las causas
económicas del poder político tuviera tanta confianza en el
aparato gubernamental.

Contrastando com essa concepção, Segovia21 refere-se a outra manifestação do


republicanismo na idade moderna denominada de “república moral perfeita”, na qual a
harmonia social e política dependem exclusivamente da moral dos indivíduos e dos
governantes, constituindo uma das espécies de “sociedades ideais” próximas à utopia.
O que a difere da república clássica é que nesta, os cidadãos podem atuar moralmente e
governar a si mesmos, enquanto naquelas os homens são reduzidos a súditos,
garantindo-se assim a eficiência moral do sistema.
Por fim, interessa destacar que os questionamentos de Montesquieu sobre as
reais possibilidades de um governo republicano contribuíram para firmar as bases do
republicanismo moderno, a exemplo do modelo adotado pelos Estados Unidos da
América. Segundo Montesquieu, a distinção entre as diferentes formas de governo está
relacionada a dois critérios básicos: i) a sua natureza; ii) seu princípio. Tais critérios
permitem identificar o regime de governo e suas características, que são explicitados
por Eduardo Graña e César Álvarez 22 nos seguintes termos:

La naturaleza de un gobierno es la que hace que sea como es, y


de ella depende el contenido de las leyes políticas, es decir,
aquellas que regulan la organización gubernamental. El
princípio de un gobierno es lo que lo hace actuar como actúa, y
de él deriva el sentido de las leyes civiles y las leyes sociales”.23

Os critérios estabelecidos por Montesquieu24 permitem visibilizar o perfil das


principais formas de governo: a monarquia, a república e o despotismo, enfatizando ao
final os traços do regime republicano:

Así se obtiene el seguiente cuadro: la monarquía es por


naturaleza el gobierno de uno sujeto a la ley, y está animada por
el principio del honor; la república es el gobierno en el que todo
el pueblo o parte de él tiene el poder soberano, y se halla
impulsada por el principio de la virtud; el despotismo,
finalmente, es el gobierno de uno solo sin sujeción a la ley y está

21 EGUES, Carlos. SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 94.


22 GRAÑA, Eduardo. ÁLVAREZ, César. Principios de Teoría del Estado y de la Constitución,
Buenos Aires: Ad-Hoc, 1ª ed., 2003, p. 221.
23 GRAÑA, Eduardo. ÁLVAREZ, César. Principios de Teoría del Estado y de la Constitución,
Buenos Aires: Ad-Hoc, 1ª ed., 2003, p. 221.
24 EGUES, Carlos. SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 95.
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dominado por el principio del temos. De acuerdo a esto, la
república admite dos variantes según la cantidad de los
gobernantes: “Cuando en la república el poder soberano reside
en el pueblo entero, es una democracia. Cuando el poder
soberano está en manos de una parte del pueblo, es una
aristocracia.

Para Montesquieu, o governo republicano subdividia-se em república


democrática, cujo princípio que a rege é a virtude moral e a república aristocrática,
regida pelo princípio da moderação no uso da desigualdade, ou seja, em suas duas
formas, a república pressupõe o mínimo de igualdade, considerando-se que os homens
são cidadãos porque vivem por e para a coletividade e, em consequência, são e sentem-
se iguais aos outros. Nesse aspecto, ressalta Segovia25 que o pensamento de
Montesquieu coincide com o de Aristóteles: “Montesquieu parece repetir a Aristóteles
cuando dice que una democracia debe evitar los excesos; la desigualdad que conduce a
la aristocracia o a la monarquía, y la igualdad extrema que lleva al despotismo”. 26
Seguindo a mesma tradição de Aristóteles, Montesquieu afirma que é da
essência dos regimes republicanos possuírem uma pequena extensão territorial e
populacional, correndo, entretanto, o risco de ser destruída por forças externas. Por isso,
para evitar esse perigo, deverá se estabelecer em um grande território, ainda que possam
advir riscos de seus vícios internos. Nessa hipótese, Montesquieu entende que seria
preciso introduzir novos componentes para atender as necessidades do Estado moderno:

[...] una república grande – al modelo de las antiguas


confederaciones y alianzas entre ciudades – puede convertirse
en federativa a los fines defensivos, conservando las ventajas
interiores de la república y la fuerza exterior de las monarquías,
al tiempo que el comercio – según veremos – puede distraer a
los hombres de las luchas políticas e interesarlos en aspectos
menos preocupantes para la estabilidad y más beneficiosos para
el bolsillo.27

Desde aqui Montesquieu rompe com as antigas tradições – de Aristóteles aos


humanistas - por desconfiar que as riquezas eram a causa da corrupção republicana,
modificando seu pensamento em face das condições modernas da vida econômica e
social, aprovando práticas antes condenáveis. De uma maneira geral, é possível afirmar
que Montesquieu, em seu discurso, defendia que uma república federativa pode subsistir
e conservar-se poderosa se for capaz de afastar seus cidadãos das lutas internas,
distraindo sua atenção para práticas menos perigosas como as provenientes do
comércio.
Segovia28 ressalta que essa mudança de pensamento adicionou novo conteúdo à
forma republicana de governo. Trata-se do republicanismo mercantil, conforme
explicou Rosow, que buscou suas raízes intelectuais na doutrina das paixões
compensadoras, estudadas profundamente por Hirschman, com apoio em Montesquieu,
James Stewart e John Miller:

Para éstos, el espíritu comercial y aquisitivo, la pasión por el


enriquecimiento tiene resultados positivos en los Estados

25 EGUES, Carlos. SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 96.


26 EGUES, Carlos. SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 96.
27 EGUES, Carlos. SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 97.
28 EGUES, Carlos. SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 99.
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modernos porque frena las tendencias absolutistas del poder,
desviando la atención de los hombres hacia intereses más dulces
y menos perjudiciales que los que derivan del despotismo o las
luchas políticas. Como escribió Montesqueieu: “El espíritu del
comercio trae consigo el espíritu de la frugalidad, de la
economía, de la moderación, del trabajo, de la sabiduría, de la
tranquilidad, del orden y de la seguridad. En esta forma,
mientras prevaleza este espirítu, la riqueza que crea no tiene
ningún efecto pernicioso.29

Essa nova visão pretende encerrar a argumentação relativa à virtude republicana,


que passa a ser substituída pela riqueza privada, que parece ter a capacidade de se
contrapor a outros sentimentos, como, por exemplo, a paixão pelo poder. Em resumida
síntese, pode-se dizer que isto caracterizou o rompimento ou a divisão entre o poder
político e o poder econômico, tão presentes na atualidade.
Todavia, essa moderação operada pelo comércio e pela riqueza, característica da
república moderna, reclamava a criação de outras instituições para proteger o novo
modelo que se desenhava. Assim, toma-se por empréstimo o modelo inglês, cujo
esquema de organização política tinha por finalidade a liberdade, que só é compatível
com os atributos de um governo moderado.
A arquitetura constitucional da moderação é encontrada na liberdade,
fundamentando-se basicamente na divisão de poderes e na representação, sendo a
primeira um mecanismo essencial a toda forma legítima de governo.
Segovia30 adverte que, para Montesquieu, somente o equilíbrio social poderá
preservar a liberdade e a virtude:

Por consiguiente, el corazón de la teoría de Montesquieu está en


la estructura social a la que sirve, antes que en la formulación
constitucional; en el contrapeso de los poderes en tanto que
receptáculos políticos de las diversas fuerzas sociales, ya que
sólo así es posible la liberdad bajo la ley. Por tal motivo, deberá
dársele la razón a Jouvenel cuando insiste en que el aspecto
“social” es fundamental en la teoría de Montesquieu: no se trata
de que formalmente el poder “dividido” contrarreste sus
proprios efectos perniciosos, sino de detener al poder por medio
de contrapoderes, pues sólo el equilibrio social preservará la
liberdad y la virtud.

Alberto Dalla Via et al, afirmam que, se reconhece em Montesquieu o primeiro


formulador sistematizado do constitucionalismo. Princípios fundamentais como o
governo da lei, a inviolabilidade do âmbito de reserva dos poderes, o sentido servicial
da liberdade política frente à liberdade civil, a separação de poderes para evitar o
despotismo ou qualquer excesso de poder, o caráter temporal e limitado das medidas de
emergência e muitos outros que foram incorporados às constituições modernas são
originários de suas teses e conservam ainda hoje plena vigência, constituindo ademais, o
fundamento das atuais formas políticas de governo. 31

29 EGUES, Carlos. SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 99.


30 EGUES, Carlos. SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 100.
31 VIA, Alberto Dalla. GRAÑA, Eduardo. SISINNI, Nicolás. BASTERRA, Marcela. Manual de
Teoría del Estado y del Gobierno, Buenos Aires, Editorial de Belgrano, 1997, p. 248.
_
Depreende-se, portanto, que a doutrina de Montesquieu teve grande influência
na formação das bases políticas do constitucionalismo contemporâneo, em especial nos
Estados Unidos da América, como ressalta Varela32:

Sin desconecer la amplitud de la influencia de Montesquieu


sobre campos diversos: históricos, sociológicos, jurídicos,
económicos, etc., su gloria mayor deriva de ser la luminaria
máxima del constitucionalismo, que tiene su primera
manifestación relevante en la carta de Filadelfia de 1787. La
fascinación que ejerció sobre Washington, Jefferson y otras
figuras consulares de los Estados Unidos es manifesta.33

As ideias de Monstesquieu contribuíram para a transformação política das ex-


colônias inglesas, já integradas como estados autônomos sob a forma de uma
confederação desde 1776, em Estado federal. A maior inovação da experiência norte-
americana apresenta-se na própria ideia de se ter uma Constituição como lei
fundamental, um instrumento que passaria a regular as relações entre governantes e
governados, sedimentada em conceitos basilares de uma sociedade democrática: a
soberania popular e a igualdade de todos os cidadãos perante a lei.
Viriato Soromenho-Marques, citando Madison, salienta que uma das maiores
novidades da Constituição americana era o fato de que esta transformou-se numa carta
de poder cedida pela liberdade e não como aconteceu na Europa, numa carta de
liberdade cedida pelo poder. 34
De acordo com Soromenho-Marques35, instalava-se nos Estados Unidos da
América uma era que traria experiências diferentes para uma realidade que se
descortinava com o surgimento de uma nova Nação:

A Constituição federal americana rompia com o passado e o


presente para entrar nos terrenos inéditos do futuro. A
Constituição federal não significava uma alteração das estruturas
de um Estado pré-existente, mas ela coincidia com o próprio
nascimento da ordem política, jurídica e administrativa da nova
Nação.

Partia-se de uma concepção radicalmente igualitária dos direitos e deveres da


cidadania. A nova república federativa, em uma perspectiva liberalista, colocava-se
como mecanismo institucional protetor dos direitos humanos, que não são mais que a
expressão jurídica de seus interesses. Registre-se, porém, que o conceito de interesses,
nesse contexto, veio a substituir o de virtude, referindo-se à ideia de diversidade, de
multiplicidade, e do inevitável choque de conflitos entre interesses individuais e
coletivos, conforme assinalado por Madison:.36
:

Del segundo método tenemos un ejemplo en la república federal


de los Estados Unidos. Mientras en ella toda autoridad
procederá de la sociedad y dependerá de ella, esta última estará

32 VARELA, Alberto Rodríguez. Ob. cit., p. 238.


33 VARELA, Alberto Rodríguez. Ob. cit., p. 238.
34 MARQUES, Viriato Soromenho. A Revolução Federal, Lisboa, Edições Colibri, 2002, p. 43.
35 MARQUES, Viriato Soromenho. Ob. cit., p. 45.
36 HAMILTON, A. MADISON, J. JAY, J. El Federalista, México, Fondo de Cultura Económica,
1998, p. 222.
_
dividida en tantas partes, tantos intereses diversos y tantas clases
de ciudadanos, que los derechos de los individuos o de la
minoría no correrían grandes riesgos por causa de las
combinaciones egoístas de la mayoría. En un gobierno libre la
seguridad de los derechos civiles debe ser la misma que la de los
derechos religiosos. En el primer caso reside en la multiplicidad
de intereses y en el segundo, en la multiplicidad de sectas.

A Constituição, portanto, permitiria a manifestação das diferenças e a expressão


dos conflitos, assegurando o respeito às leis e o bem estar da sociedade. Assim, para
Madison, a melhor Constituição seria aquela que protegesse os direitos das minorias, e
dessa minoria mínima que é o indivíduo.37
A Constituição norte-americana caracteriza-se por sua natureza republicana e
federal ao mesmo tempo, dada a sua forma de organização em departamentos distintos
do sistema de governo e à fragmentação pelo espaço geográfico dos níveis de
normatização e de distribuição de competências. Todavia, como ressalta Soromenho-
Marques, a base do constitucionalismo federal terá de ser encontrada num
aprofundamento do conceito de república, que, no entendimento de Madison 38,
significava a edificação de um Estado fundado na soberania popular, no império das
leis, na separação de poderes, e no respeito pelas minorias e pelos indivíduos. Somente
assim o republicanismo poderia responder ao desafio representado pela imensa extensão
territorial da América.
O conceito de república, conforme redefinido por Madison, foi transportado e
aplicado a República Federativa do Brasil sem os necessários ajustes e adaptações,
como assevera Rocha39: “O Brasil dormiu Monarquia e acordou República.
A implantação de uma nova forma de governo, aduz Rocha, demanda forma,
modelo e norma, todavia, tais fatos se fizeram sem o sentimento nem o consentimento
do povo brasileiro, mas por simples ato do Governo Provisório, que, por meio de
Decreto nº 1, proclamou a república em 15 de novembro de 1889. 40
A República Federativa que dá nome ao Estado brasileiro instalou-se pela
primeira vez em 1889, depois de proclamada a independência do Brasil, desde então,
muitos foram os percalços da jovem Nação brasileira até alcançar a instauração do
processo de redemocratização do país. É a partir da promulgação da Constituição
Federal brasileira de 1988, cuja trajetória é bem diversa das anteriores, que foram
acrescentados dois novos elementos à expressão “república”, conforme definição
constante de seu art. 1º.
O primeiro elemento refere-se à instituição da República Federativa como
Estado Democrático de Direito de forma expressa. A essência do Estado brasileiro,
portanto, encontra-se marcada pelos princípios republicano e federativo inerentes ao
regime político democrático de Direito, dando forma ao modelo de convivência política
do país e informando suas instituições. Os princípios republicano e democrático
modelam-se e condicionam-se reciprocamente, como ressalta Rocha41:

Os dois princípios estão fundidos e condenados a serem tomados


como uma expressão única e indissociável enquanto vigorar o

37 MARQUES, Viriato-Soromenho. Ob. cit., p. 48.


38 MARQUES, Viriato-Soromenho. Ob. cit., p. 49.
39 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. República e Federação no Brasil, Belo Horizonte, Del Rey
Editora, 1997, p. 54.
40 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Ob. cit., p. 55.
41 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Ob. cit., p. 69.
_
atual sistema: República Democrática. Essa expressão passa a
ser acoplada àqueloutra empregada desde o final do século XIX,
a República Federativa. No sistema de Direito modelador do
Estado do Brasil tem-se a República Federativa Democrática
enunciada, principiológica e impositivamente, no art. 1º da
Constituição.

O segundo elemento inovador refere-se à fragilização da República em favor do


princípio federativo, em virtude da exclusão do núcleo de matérias tidas como
inatingíveis pela ação reformadora do constituinte de segundo grau.
Assim, o ordenamento nacional brasileiro erigiu o princípio republicano à
condição de princípio fundamental, traduzindo traço característico do Estado brasileiro,
determinante de sua forma de ser e do exercício do poder político. Embora o princípio
republicano, no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro tenha alcançado status
privilegiado, Rocha42 entende que os tribunais superiores não asseguram sua efetiva
aplicação:

Não obstante a unanimidade sobre a condição de princípio


constitucional fundamental, de que goza a República no Brasil,
o desacato a tal comando principiológico é manifesto... O de que
o Brasil se ressente, pois, é de prática constitucional
democrática, segundo as normas postas e a doutrina mestra. A
prática constitucional vincula-se, diretamente, à atuação do
Poder Judiciário, no qual se tem o órgão máximo competente ao
exercício da função de “guarda da Constituição”. E o poder
Judiciário brasileiro ainda não extraiu dos princípios
constitucionais em geral, e do princípio da República, em
especial, as conseqüências jurídicas que nele se contêm para a
sua efetividade.

Não há dúvida de que somente a Constituição é que poderá definir os traços


característicos de um Estado. E essa definição, como aduz Roque Carrazza43, só será
encontrada na própria Carta Magna:

Consta do art. 1º da Constituição Federal que o Brasil é uma


República. As verdadeiras dimensões desse asserto devem ser
buscadas, a nosso ver, não na História dos Povos (v.g. o
romano), nem no Direito estrangeiro (e.g., o norte-americano),
mas em nossa própria Carta Magna. É ela – e só ela – que traça
o perfil e as peculiaridades da República brasileira.

Sob esse prisma, a análise da norma constante do art. 1º, da Constituição Federal
brasileira de 1988, permite concluir que o princípio republicano tomado como norma
impositiva de um sistema político, pressupõe a convivência segundo a lei e a
responsabilidade do poder público com a coisa pública.
A res publica pertence, pois, à coletividade e à cidade, devendo, por isso, ser
tratada de forma a preservar o interesse da coletividade, não se permitindo a concessão
de privilégios ou preferências a particulares ou a determinadas categorias, em razão de

42 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Ob. cit., p. 72/74.


43 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário, São Paulo,
Malheiros Editores, 19ª ed., 2003, p. 47.
_
qualquer condição especial. O princípio republicano traz implícito, portanto, o princípio
da igualdade, salientando Geraldo Ataliba44 que qualquer transgressão ao princípio da
igualdade será também uma transgressão ao princípio republicano:

[...] a res publica é de todos e para todos. Os poderes que de


todos recebe devem traduzir-se em benefícios e encargos iguais
para todos os cidadãos. De nada valeria a legalidade, se não
fosse marcada pela igualdade....Toda violação da isonomia é
uma violação aos princípios básicos do próprio sistema,
agressão a seus mais caros fundamentos e razão de nulidade das
manifestações estatais. Ela é como que a pedra de toque do
regime republicano.

A igualdade de que se fala em um regime republicano é a igualdade


minimamente material assegurada pelo Estado a todos os cidadãos, pois a ele compete
promover o desenvolvimento social e econômico do país em termos efetivos e de forma
eficiente, a fim de garantir a liberdade e a igualdade dos indivíduos.
O princípio republicano vincula a aplicação dos recursos públicos na medida em
que obriga o gestor público a dar uma correta destinação a esses recursos. A destinação
pública dos recursos obtidos pelo Estado, mediante a tributação, tem como objetivo
promover o bem comum da coletividade. Como observa Baleeiro, constitucionalmente,
um tributo não pode ter outra finalidade senão aquela de propiciar ao Estado as
condições necessárias para alcançar o bem comum.45 Nesse sentido, Roque Carrazza46
ressalta que qualquer exação que não persiga esta finalidade é inconstitucional.
Tal é a relevância do princípio republicano no âmbito do ordenamento jurídico
nacional que a vigente Constituição conferiu tratamento privilegiado ao sistema
tributário nacional, considerado como subsistema constitucional, em face de sua
expressiva significação para o aperfeiçoamento do federalismo no Brasil.
A constatação dessa assertiva decorre do próprio texto constitucional, que
atribuiu especial atenção à matéria tributária e à forma de estruturação do sistema de
repartição de competências. A repartição de competências tributárias, conforme
estabelecida em capítulo específico da Constituição Federal brasileira de 1988,
consagrou como regra geral que, em princípio, todos devem sujeitar-se à tributação,
excetuados os casos de imunidade.
Confirmou-se, assim, a predominância do princípio republicano, que assegura a
abolição de privilégios fiscais para os indivíduos, classes ou segmentos da sociedade.
Como natural desdobramento, surge a aplicação de um outro princípio: o da
generalidade da tributação, segundo o qual, a carga tributária que a todos alcança deverá
ser imposta com critérios de isonomia e justiça, de modo que o sacrifício econômico
resultante para o contribuinte deverá ser igualmente suportado por tantos quantos
estejam em idêntica situação.
Inicialmente, portanto, todos devem ser alcançados pela tributação, como
explica Roque Carrazza:47
:

Esta assertiva há de ser bem entendida. Significa, não que todos


devem ser submetidos a todas as leis tributárias, podendo ser
gravados com todos os tributos, mas, sim, apenas, que todos os

44 ATALIBA, Geraldo. Apud, ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Ob. cit., p. 101/102.
45 BALEEIRO, Aliomar. Apud, CARRAZZA, Roque Antônio. Ob. cit., p. 67.
46 CARRAZZA, Roque Antônio. Ob. cit., p. 67.
47 CARRAZZA, Roque Antônio. Ob. cit., p. 69.
_
que realizam a situação de fato a que a lei vincula o dever de
pagar um dado tributo estão obrigados, sem discriminação
arbitrária alguma, a fazê-lo.

O princípio republicano aliado ao princípio da generalidade da tributação conduz


à inescusável conclusão de que prevalece no sistema jurídico brasileiro, o princípio da
igualdade da tributação. Assim é que, o princípio republicano estende-se às pessoas
políticas existentes no Estado brasileiro, que, ao exercitarem sua competência tributária,
deverão observar seus condicionamentos internos e ter em mira a consecução do
interesse público primário, conforme salientou Renato Alessi48:

Logo, as pessoas políticas, obrigadas que são a adotar o


princípio republicano, precisam, necessariamente, estabelecer a
temporaneidade das funções políticas e a responsabilidade
(política, civil e penal) dos gestores da coisa pública. Ao
exercitarem suas competências tributárias devem ter em mira,
sempre, a consecução do “interesse público primário”.

A inobservância do princípio republicano ou seu descumprimento poderá


acarretar a declaração de inconstitucionalidade dos atos emanados do Poder Público,
que possam, de modo efetivo ou potencial, vir a lesá-lo. Outra consequência que poderá
advir será a decretação de intervenção federal nos Estados-membros, nos termos no art.
34, VII, “a” da Constituição de 1988, e a propositura de ação direta interventiva, perante
o Supremo Tribunal Federal, por parte do Procurador Geral da República.
Destaca-se, por último, que no sistema republicano, o povo, em última análise, é
o titular e detentor por excelência de todas as competências e de todas as formas de
poder, de modo que a competência tributária conferida às pessoas políticas integrantes
da federação não poderá se prestar ao cometimento de abusos, arbitrariedades e
injustiças contra esse mesmo povo que as conferiu.
A tributação não pode ter por objetivo promover o enriquecimento do Poder
Público, isto seria contrário ao princípio republicano que prestigia a igualdade e o bem
estar dos cidadãos. Portanto, os tributos somente podem ser criados e exigidos para
atender as necessidades de manutenção das atividades do Estado, ou, como afirma
Roque Carrazza, a tributação deve ter destinação pública, isto é, deve ser preordenada à
mantença da res publica. 49

2 O princípio federativo e a repartição de competências

A tributação, como foi dito no item anterior, não pode ter finalidade outra senão
atender as necessidades de manutenção do Estado.
O constitucionalismo moderno tem suas raízes mais remotas fincadas no
iluminismo e no liberalismo, identificadas nos ideais da Revolução Americana e da
Revolução Francesa, cujas doutrinas foram consubstanciadas, sobretudo, no pensamento
dos founding fathers, de John Locke, de Montesquieu e de Rousseau.
Na verdade, o fundamento para a instituição de uma Constituição como um
instrumento solene e expresso é encontrado no art. 16 da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão: “Una sociedad en la que no está asegurada la garantía de los
derechos, ni determinada la separación de poderes, carece de Constitución”. 50

48 ALESSI, Renato. Apud, CARRAZZA, Roque Antônio. Ob. cit., p. 71.


49 CARRAZZA, Roque Antônio. Ob. cit., p. 79.
50 DUGUIT, Léon. La Separación de Poderes y La Asamblea Nacional de 1789, Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1996, p. 23.
_
Segundo Léon Duguit51, a ideia de inserir a Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão na Constituição decorreu de uma decisão da assembleia francesa:

Por unanimidad, se decide redactar una Declaración de


Derechos del Hombre y del Ciudadano “que contendrá los
verdaderos principios del hombre y del ciudadano, siendo los
artículos de la Constitución simplesmente sus consecuencias
naturais”. El 4 de agosto de 1789, la Asamblea decide, por
aclamación que la Constitución esté precedida de una
Declaración del Hombre y del Ciudadano.

A Constituição formal será, necessariamente, obra de um poder especialmente


convocado para cuidar de sua elaboração: o poder constituinte, e deverá abrigar um
conjunto de normas sistemático, garantidor de sua superioridade relativamente às
demais normas que compõem o ordenamento jurídico.
O controle da constitucionalidade tem sido uma preocupação sempre presente no
constitucionalismo norte-americano, que entende a Constituição como a norma jurídica
fundamental do Estado, sedimentada sobre três elementos básicos: i) a limitação do
poder; ii) a garantia das liberdades individuais e, iii) a cidadania.
Soromenho-Marques52 assinala que a primeira inovação da Constituição norte-
americana reside mesmo na própria ideia de Constituição como lei fundamental:

A primeira inovação da experiência norte-americana reside na


própria ideia de Constituição como lei fundamental, que deveria
regular as relações entre governantes e governados na base dos
conceitos fundamentais de soberania popular, e de igualdade de
todos os cidadãos perante a lei.

O sentido da expressão “Constituição” na doutrina federalista nada mais era


senão o reflexo de uma sociedade complexa, contraditória, pluralista, dominada pela
tensão e pelo conflito.53 Assim, rompendo com velhas tradições, a Constituição norte-
americana de 1787, criou uma nova forma de Estado: o Estado federal. O federalismo
foi consagrado como fenômeno social capaz de promover, com maior eficiência, os
valores inerentes ao pluralismo, como observou Maurice Croisat54:
:

El concepto de federalismo, desde esta perspectiva, afecta tan


sólo a las idéas, los valores, las concepciones del mundo que
expresan “una filosofia comprensiva de la diversidad en la
unidad.

A ideia de pluralidade, por conseguinte, é inerente ao Estado federal, onde


prevalece o conceito de unidade na pluralidade explicado por Rocha55 nos seguintes
termos:

51 DUGUIT, Léon. Ob. cit., p. 22/23.


52 MARQUES, Viriato Soromenho. Ob. cit., p. 42.
53 MARQUES, Viriato Soromenho. Ob. cit., p. 46.
54 CROISAT, Maurice. Apud, MARTINS, Cristiano Franco. Princípio Federativo e Mudança
Constitucional: Limites e Possibilidades na Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2003, p. 32.
55 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Ob. cit., p. 172 .
_
A ideia predominante do princípio federativo é a unidade na
pluralidade, aqui considerada a unidade total da ordem jurídica
nacional compondo-se, coordenando-se, harmonizando-se,
sistematizando-se pela diversidade de ordens jurídicas internas
(denominadas por Kelsen de parciais), que se acoplam e formam
uma única e que mantêm, nessa unidade sistêmica nacional, um
movimento equilibrado em sua aplicação. O princípio federativo
assegura a pluralidade de ordens jurídicas autônomas e afinadas
numa unidade que se assenta na totalidade da ordem
constitucional soberana. Isso explica por que o federalismo
representa uma forma descentralizada de organização do Poder
no Estado, sem embargo de se manter um centro assegurador da
unidade do sistema jurídico.

A ideia de pluralidade tantas vezes mencionada acima se refere à diversidade, às


diferenças encontradas entre os grupos sociais, sendo, por isso, associada à democracia.
Enquanto valor social complexo, o pluralismo se baseia em quatro valores:
autodeterminação, tolerância, integração e participação. Não se aproxima da ideia de
desagregação, mas, sim, de uma unidade construída sobre a diversidade.56
Ademais, a federação, como forma de associação de Estados pactuada por meio
da Constituição, surgiu para dar solução ao problema de convivência entre as treze
colônias inglesas que se haviam tornado Estados independentes e desejavam adotar uma
forma de poder político unificado, sem prejuízo da independência, da liberdade e da
soberania que haviam conquistado. O federalismo caracteriza-se, assim, por ser um
modelo de descentralização estatal que tornou possível compatibilizar a independência
das colônias inglesas, que já possuíam um acentuado grau de autonomia, com um poder
central forte e unificado.
Bastos afirma que o princípio federativo tem permanecido atual porque soube se
adaptar e encontrar novos fundamentos: “O federalismo é, ainda em nossos dias, um
princípio rector que encontra grande receptividade e ressonância na vida de muitos
países. Ele não se desatualizou porque soube encontrar novos fundamentos em
substituição àqueles que lhe deram origem”. 57
Nas palavras de Madison,58 existem duas considerações relevantes sobre o
sistema federal norte-americano: a primeira é que, em uma república, todos os poderes
devem ser submetidos à administração de um único governo; a segunda alude ao fato de
ser de grande importância proteger não apenas uma parte da sociedade contra a opressão
de suas leis, mas protegê-la da injustiça da outra parte, haja vista que necessariamente

56 MARTINS, Cristiano Franco. Ob. cit., p. 33.


57 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Editora Saraiva, 11ª
ed., 1989, p. 246.
58
MADISON, James. The federalist No. 51. The Structure of the Government Must Furnish the Proper
Checks and Balances Between the Different Departments. Independent Journal, Wednesday,
February 6, 1788. Disponível em: <http://constitution.org/fed/federa51.htm> Acesso em: 22 mar. 2012.
“First. In a single republic, all the power surrendered by the people is submitted to the administration
of a single government; and the usurpations are guarded against by a division of the government into
distinct and separate departments. In the compound republic of America, the power surrendered by the
people is first divided between two distinct governments, and then the portion allotted to each
subdivided among distinct and separate departments. Hence a double security arises to the rights of the
people. The different governments will control each other, at the same time that each will be controlled
by itself. Second. It is of great importance in a republic not only to guard the society against the
oppression of its rulers, but to guard one part of the society against the injustice of the other part.
Different interests necessarily exist in different classes of citizens. If a majority be united by a common
interest, the rights of the minority will be insecure.”
_
existirão diferentes classes de cidadãos. Nesse contexto, o Estado federal foi concebido
como forma de governo múltiplo, vale dizer, como fenômeno social capaz de promover,
com maior eficiência, os valores inerentes ao pluralismo, como observou Croisat. 59
Ronald Watts explica que o federalismo combina unidade e pluralidade, na
medida em que aceita, preserva e fomenta diferentes identidades dentro de uma união
mais ampla. Segundo o autor, uma federação se caracteriza pelo fato de que nem o
governo federal nem os governos das unidades federadas estão subordinados uns aos
outros constitucionalmente, ou seja, cada esfera de governo possui um poder soberano
definido pela Constituição e não por outra instância de governo, com autoridade para
atuar diretamente sobre seus cidadãos no exercício de suas competências legislativas,
executivas e tributárias, sendo eleito diretamente por seus cidadãos. 60
A concepção de pluralidade mencionada acima se refere à diversidade, às
diferenças encontradas entre os grupos sociais, sendo, por isso, associada à democracia.
Enquanto valor social complexo, o pluralismo se baseia em quatro valores:
autodeterminação, tolerância, integração e participação. Não se aproxima de
desagregação, mas, sim, de uma unidade construída sobre a diversidade.61
Analisando-se a estrutura do Estado federal é possível identificar alguns pontos de
maior relevância, tais como: a) o princípio federativo, através do qual o Estado federal
assegura a divisão de poderes e exterioriza a unidade nacional; b) a manifestação da
vontade política dos Estados membros na formatação da Federação através de um ato
político (Constituição); c) distribuição de competências para determinar a forma de
participação dos Estados-membros nas decisões de âmbito nacional.
As características do sistema federalista, contudo, variam de acordo com a
concepção de cada autor. Por conseguinte, o estudo do Estado federal, no âmbito da
Teoria Geral do federalismo, está relacionado à Teoria da Constituição e reside,
precisamente, no controle de constitucionalidade de suas normas efetuado pelas Cortes
Constitucionais, objetivando garantir o equilíbrio das competências estatuídas pela
Constituição. Segundo a perspectiva em que é concebido, o Estado federal poderá
apresentar características variadas, como destacam alguns autores estrangeiros citados
por Baracho.62
De acordo com Daniel Elazar, os artigos contidos em “Os Federalistas”
evidenciam questões críticas do pensamento político especialmente relacionado à
combinação entre autogoverno e divisão de poder, enfatizando o citado autor, dentre
outros, os seguintes princípios:

59
CROISAT, Maurice apud MARTINS, Cristiano Franco. Princípio federativo e mudança
constitucional: Limites e possibilidades na constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2003, p. 32.
60
WATTS, Ronald L. Sistemas federales comparados. Madrid: Marcial Pons Ediciones Jurídicas y
Sociales, 1999, p. 105.
61
MARTINS, Cristiano Franco, op. cit., 2003, p. 33.
62
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de
Janeiro: Forense, 2000, p. 26. Nota: Sanchez Agesta, que entende que o Estado federal é simplesmente
uma ampla forma de descentralização e de divisão territorial do poder, de caráter constitucional;
Montes de Oca, que assevera que não é apenas a acumulação de atribuições do poder central que
caracteriza a federação, mas a coexistência de autoridades centrais e centros seccionais de poder;
Marcel Prelot, que entende que além de Estado unitário descentralizado, o Estado federal não é apenas
um Estado complexo, mas Estado composto, que forma, como Karl Strupp, uma união de Direito
Constitucional, por ocasião às uniões de Direito Internacional; Mouskheli, que diz que o que caracteriza
essencialmente o Estado federal é a dualidade de aspectos que apresenta: em certas relações, aparece
como Estado unitário, em outras apresenta-se como um agrupamento federativo de coletividades
inferiores, descentralizadas e que fazem parte na formação da vontade do Estado, salientando ainda,
que esse duplo caráter de Estado federal é determinado pela necessidade de realizar a união e não a
unidade. No que diz respeito a sua estrutura, ressalta que uma das características principais desse
sistema é a existência de duas Câmaras.
_

The instrument through which people delegate powers to the several


governments is the constitution of the whole, to which they must consent and
which is best adopted either through their direct action or through their
representatives and which then becomes the supreme law of the land.
[...]
Republican checks and balances are vital for republican government because
they provide ‘republican remedies for republican diseases’. 63

Nesta perspectiva, Carl Schmitt defende que o objetivo fundamental da federação


consiste em assegurar a existência política de todos os seus membros, o que só se torna
possível com a manutenção do equilíbrio dos poderes, como se verifica em seguida:

La Federación reconece por finalidad el mantinimiento de la existencia


política de todos sus miembros en el marco de la Federación. De aquí se
sigue que la Constitución federal contiene en todo caso, incluso cuando no
habla expresamente, una garantia de la existencia política de cada uno de
los miembros, y, en efecto, garantiza la existencia de cada uno de los
miembros frente a todos y de todos frente a cada uno y frente a todos juntos.
Se garantiza, pues, dentro de la Federación el status quo político, en el
sentido de la existencia política. 64

A federação assegura a existência política dos entes que a compõem e a


unidade do Estado, na medida em que mantém a integridade de seus territórios. Como
explica o autor, a federação, externamente, protege seus membros contra o perigo de
guerra e de todo ataque e, internamente, significa uma permanente pacificação. 65 A
análise dos conceitos fundamentais da teoria da federação, segundo o citado autor,
permite extrair, pelo menos, duas consequências:

I. Toda Federación tiene, como tal, una existência política con un ius belli
independente. En cambio, la Federación no tiene un Poder constituyente
proprio, sino que se apoya en el pacto. Cualquer especie de competencia
para revisar los postulados de la Federación no es, por eso, Poder
constituyente.
II. Toda Federación, como tal, es sujeto, tanto de Derecho internacional
como de Derecho político. 66

63
ELAZAR, Daniel J. The federalist. Jerusalem Center for Public Affairs. Disponível em:
<http://www.jcpa.org/dje/articles/federalist.htm> Acesso em: 23 mar. 2012. Tradução da autora: “O
instrumento através do qual o povo delega poderes aos vários governos é a constituição do todo, ao qual eles
devem consentir e que é melhor adotada tanto pela sua ação direta ou através de seus representantes e é o que
se torna a lei suprema da terra. [...] Os freios e contrapesos da República são vitais para um governo
republicano pois fornecem „remédios republicanos para doenças republicanas‟”.
64
SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución. Madrid: Alianza, 1996, p. 350.
65
Ibid., 1996, p. 350.
66
Ibid., 1996, p. 360-361. Segundo o autor, a federação se torna sujeito de direito internacional
independente em razão de deter o ius belli. Acrescenta-se ademais, que as relações entre a Federação e
os Estados-membros que a compõem possuem natureza política e que a Federação se faz representar
externamente porque é titular da soberania em razão da renúncia parcial dos Estados, como salientado
em seguida: “1. Toda Federación tiene ya en sí la peculiaridad del sujeto independiente de Derecho
internacional, porque toma sobre sí necessariamente un ius belli, y los Estados-miembros renuncian en
todo o en parte a su ius belli en favor de la Federación. Esta renuncia no se hace en el vacío, sino en
favor de la Federación. 2. Como sujeto de Derecho político, la Federación existe, porque es titular,
frente a los Estados-miembros, de faculdades jurídico-políticas proprias, y las relaciones entre
Federación y Estados-miembros tienen caráter de Derecho político. El status de cada uno de los
Estados-miembros se encuentra cualificado de modo especial, no sólo hacia el exterior, por la
condición de miembro y, por lo tanto, la pertenencia a la Federación tiene consecuencias inmediatas
_
Proudhon sustentava que todos os artigos de uma Constituição poderiam ser
condensados em um único artigo, que seria, em resumo, aquele que diz respeito ao
papel e a competência do grande funcionário chamado Estado.67 Nesse sentido, as
consequências apontadas por Carl Schmitt acerca do conceito de Estado Federal deixam
claro que em sua formação três aspectos se sobressaem: i) a federação considerada em
sua totalidade possui existência política independente e é precisamente isso que lhe
confere poder para decidir sobre a guerra e a paz; ii) o Estado federal apoia-se no pacto
federativo; iii) a existência de uma Constituição é um dado comum entre os Estados
federais. Pode-se ressaltar, ademais, que as relações travadas entre a Federação e os
Estados é uma relação de direito político, o que torna possível a intervenção da
Federação nos Estados.
Todavia, como destaca Karl Doehring, o critério decisivo para caracterizar um
Estado Federal, na concepção de Carl Schmitt, reside na resposta à pergunta sobre o ius
ad bellum, haja vista que somente a federação pode decidir sobre a guerra e a paz. 68
No Estado federal, a União detém o monopólio da representação política e da
soberania, que possui caráter indivisível, constituindo sua característica fundamental.
Contudo, o próprio conceito de soberania, não sendo uníssono entre os doutrinadores,
suscita questionamentos relativos à forma de interação entre o Estado federal, ou poder
central, e os demais Estados-membros, como poderes descentralizados. Esse tema,
atualmente, ultrapassa as fronteiras nacionais, em face do surgimento de um novo tipo
de organização no mundo globalizado, representada, por exemplo, pela comunidade
europeia.
A limitação de poderes está presente na concepção de Estado federal e passa pela
definição da relação estabelecida entre os poderes constituídos manifestados através da
União Federal e os Estados membros. Conforme anota Baracho, a soberania confere
personalidade jurídica de direito público à União enquanto a autonomia caracteriza os
Estados membros como entidades federativas componentes, resultando daí que as
competências atribuídas a estes entes são aquelas efetivamente marcadas, traçadas e
apontadas pela Constituição. 69
A formação de um Estado federal, por conseguinte, pressupõe distribuição
espacial do poder político, distintas esferas de governo e repartição de competências, na
forma estabelecida pela respectiva Constituição. Deve ser ressaltado, entretanto, que a
construção de uma teoria geral do federalismo remete à noção de soberania, que é
inerente à Teoria do Estado, da qual não é possível se afastar quando se pretende
discorrer sobre ordenamento federativo. Como observa Celso Bastos, o princípio
federativo permanece atual porque soube se adaptar e encontrar novos fundamentos: “O
federalismo é, ainda em nossos dias, um princípio rector que encontra grande
receptividade e ressonância na vida de muitos países. Ele não se desatualizou porque
soube encontrar novos fundamentos em substituição àqueles que lhe deram origem”. 70
Esse entendimento sintetiza o pensamento de Proudhon, para quem o sistema
federativo é aplicável a todas as nações e em todas as épocas. Não há como refutar essa

de Derecho político. No hay ninguna Federación que consista tan sólo en una relación externa de
caráter internacional de los miembros. Basta con dos de aquellas instituciones esenciales a toda
Federación para demonstrar su condición de sujeto de Derecho político: la ejecución federal y la
intervención federal.”
67
PROUDHON, Pierre-Joseph. Do princípio federativo. São Paulo: Nu-Sol: Imaginário, 2001, p. 98.
68
DOEHRING, Karl. Teoria do Estado. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 119-120. De acordo com
Karl Doering, a ideia central de Carl Schmitt era a seguinte: Soberano é quem dispõe sobre a decisão
definitiva, em especial quando se trata de um estado de exceção, no qual o estado de guerra pode e deve
valer como tal.
69
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de
Janeiro: Forense, 2000, p. 21.
70
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 246.
_
ideia, haja vista que o sistema federativo tem sido utilizado em vários países,
precisamente por sua capacidade de se adaptar as mais diversas realidades. 71
Não foi diferente no caso do Brasil. O federalismo adotado pelo
constitucionalismo brasileiro difere do modelo clássico, tipo dual, repousando seus
alicerces em três distintas esferas de poder. Observa-se que a Constituição Federal
brasileira de 1988 elegeu, no § 4º de seu art. 60, como princípios intocáveis, a forma
federativa de Estado e a separação de poderes. A não centralização política promovida
pelo federalismo decorre da aplicação da doutrina da separação de poderes,
constituindo, assim, a base do sistema político brasileiro. A análise de cada tipo de
Estado federal é que permitirá identificar suas características e avaliar a compatibilidade
entre as normas contidas no texto constitucional e sua efetiva aplicação prática.
Somente a partir da verificação destes dados será possível fazer um exame comparativo
dos diferentes sistemas. É nesta perspectiva, portanto, que deve ser analisada a atual
formatação do Estado Federal brasileiro.
É necessário que o federalismo brasileiro seja compreendido sob outra
perspectiva, sob uma ótica que privilegie a participação de todos os entes políticos e
lhes assegure condições igualitárias de atuação para que possam defender seus
interesses e atender suas demandas. O caminho sugerido por Wilba Bernardes é a
revisão da repartição de receitas com base em um federalismo assimétrico. 72 Esta opção
poderá favorecer os municípios se os critérios estabelecidos considerarem suas
particularidades e realidades distintas. Pode-se, portanto, realçar com Ronald Watts73
que dentre as características mais significativas dos processos de federalização, é
possível destacar uma forte tendência à democracia, haja vista que tais processos
pressupõem o consentimento voluntário dos cidadãos das unidades federadas, assim
como a não centralização, ora considerada como princípio materializado por meio de
vários centros de decisão política, a abertura política como forma de conduzir as
negociações, o funcionamento de um sistema de controles internos para evitar a
concentração de poder político e o respeito ao constitucionalismo, considerando-se que
qualquer decisão governamental deriva sua autoridade da Constituição.
O modelo de federalismo brasileiro é politicamente assimétrico, na medida em
que existe uma desigualdade inerente às condições culturais, econômicas e sociais do
país, que demandam medidas niveladoras para correção. Esse nivelamento exige
também o exercício pleno da autonomia dos municípios, aliado a outras medidas de
incentivo ao desenvolvimento de sua economia como se demonstrará adiante.

3 O significado da autonomia

O tema relacionado à autonomia, inclusive a autonomia legislativa tributária dos


entes federados, é precedido da definição da forma de organização do Estado, cuja
distinção se fundamenta no grau de centralização ou descentralização de que se
revestem seus organismos internos. Horta 74 entende que a autonomia nada mais é que a
revelação de capacidade para expedir as normas que organizam, preenchem e
71
PROUDHON, Pierre-Joseph. Do princípio federativo. São Paulo: Nu-Sol: Imaginário, 2001, p.103.
Nota: Proudhon afirma que o sistema federativo é aplicável a todas as nações e em todas as épocas, pois
que a humanidade é progressiva em todas as suas gerações e em todas as suas raças, e que a política de
federação, que e por excelência a política do progresso consiste em tratar cada população, no momento
que se indicará, segundo um regime de autoridade e de diminuição da centralização, correspondente ao
estado dos espíritos e dos costumes.
72
BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 257.
73
WATTS, Ronald L. Sistemas federales comparados. Madrid: Marcial Pons Ediciones Jurídicas y
Sociales, 1999, p.107.
74
HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p.374.
_
desenvolvem o ordenamento jurídico dos entes públicos, podendo variar na quantidade,
na qualidade e na hierarquia.
Vale salientar, no entanto, que a pacífica coexistência de distintas ordens jurídicas
parciais constitui critério característico do Estado Federal, cuja forma mais avançada de
não centralização política ou de autonomia reside na chamada descentralização
constitucional, como ressalta Pinto Ferreira.75
Destaca-se que a carência de recursos próprios compromete a sobrevivência dos
entes federados, assim, a garantia de recursos próprios a cada uma das esferas políticas
de poder constitui elemento característico do Estado federal. Como anota Cármen
Rocha,76 a subtração de recursos econômico-financeiros às entidades federadas
representa uma ruptura velada e mais que isso, conduz ao esvaziamento de algumas
propostas de Federação. O que ocorre, segundo Enrique Marchiaro,77 é que o
federalismo é uma realidade extremamente complexa e mal compreendida por aqueles
que nela vivem, que a criam com suas ações e a estudam. Vale dizer, o federalismo não
pode ser visto nem compreendido como um modelo estático, pronto e acabado.
O Estado federal, em sua origem, é não centralizado daí porque permite maior
autonomia aos entes que o integram, por essa razão diz-se que a descentralização é um
traço comum aceito e reconhecido como característico do Estado Federal. Na realidade,
é a própria Constituição que o faz não centralizado, haja vista que, sob o aspecto
doutrinário, a descentralização usualmente referida concerne a não centralização de
poder e não apenas a simples distribuição espacial de poder.
O constituinte de 1988, consciente da crise do federalismo brasileiro, optou por
abandonar velhas fórmulas instituídas por meio da Constituição Federal de 1967 e da
Emenda nº 1, de 1969, que concentravam quase que exclusivamente na União a
competência legislativa e os recursos tributários. A mudança na trajetória política do
federalismo brasileiro, contudo, não se limitou a simples reconstrução de seus alicerces,
mas avançou no sentido de introduzir novos fundamentos, destacando-se a inclusão dos
Municípios entre os entes que compõem a federação, consoante estabelece o art. 1º da
Constituição Federal de 1988.
O citado dispositivo não tem correspondência com os textos constitucionais
anteriores nem de outros países, ressaltando Horta 78 que o fato se deve à atração
sugestionadora do movimento municipalista, que rompeu o quadro da lógica
constitucional e erigiu o Município autônomo em componente da República Federativa.
Além da inclusão do município como ente político autônomo, a Constituição Federal de
1988 modificou o sistema de repartição de competências dos demais entes da federação,
acentuando as modernas tendências do federalismo constitucional brasileiro. A
Constituição Federal de 1988 traçou novos contornos para a distribuição das
competências, estabelecendo no art. 21 (I a XXV), a competência geral da União; art.
22 (I a XXIX), competência legislativa privativa da União; art. 23 (I a XII, parágrafo
único) competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios; art. 24 (I a XVI, §§ 1º ao 4º), competência legislativa concorrente da
União, dos Estados e do Distrito Federal.
A autonomia dos Estados-membros, e, no caso do Brasil, a dos Municípios
também, é um dos traços marcantes do federalismo e, na esfera tributária, é
imprescindível que se preserve a autonomia financeira de Estados e Municípios, para

75
FERREIRA, Manuel Gonçalves Pinto. A Democracia no Limiar do Século XX. São Paulo: Saraiva,
2001, p. 126.
76
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. República e federação no Brasil: traços constitucionais da
organização política brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 185.
77
MARCHIARO, Enrique José. El derecho municipal como derecho posmoderno: casos, métodos y
princípios jurídicos. Buenos Aires: Ediar, 2006, p. 276.
78
HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 457.
_
que nestes possam coexistir a autonomia política e administrativa que lhes é
indispensável. Note-se que a autonomia não abriga em si somente a capacidade de auto-
organização do ente político através de sua própria Constituição, com competência
legislativa e administrativa, além de um Poder Judiciário, quando se tratar de Estado-
membro, mas requer, fundamentalmente, a existência de autonomia financeira.
A autonomia financeira dos entes políticos, consequentemente, é inerente ao
Estado Federal, e tem por finalidade assegurar o cumprimento do princípio da igualdade
entre as entidades que o integram. Essa autonomia financeira é assegurada por meio do
sistema de repartição de competências tributárias, técnica adotada pela Constituição
Federal brasileira de 1988 para dar concretude ao cumprimento desse princípio,
consentâneo com o federalismo de equilíbrio inicialmente proposto.
Salienta-se, ainda, que a autonomia dos entes federados depende do regular
funcionamento do sistema de distribuição de competências tributarias, bem como da
distribuição de receitas constitucionais tributarias, sendo a inobservância dessas normas
enquadrada como inconstitucionalidade, conforme assinalado por Sacha Coelho.79
Alexander Hamilton sustentava que o poder de tributar está diretamente
relacionado à própria estrutura do governo, sendo indispensável sua inserção no texto
constitucional, a fim de que os entes políticos tenham assegurados os recursos
necessários ao custeio das despesas públicas:

O dinheiro é considerado, com razão, o princípio vital do corpo político; é o


que lhe sustem a vida e os movimentos, permitindo-lhe desempenhar suas
funções mais essenciais. Portanto, um poder pleno de obter um suprimento
regular e adequado de receita, na medida em que os recursos da comunidade
o permitam, pode ser encarado como um ingrediente indispensável de toda
constituição. De uma deficiência neste particular, um de dois males pode
decorrer: ou o povo ficará sujeito a uma contínua pilhagem, em lugar de um
modo mais aceitável de suprir as necessidades públicas, ou o governo
mergulhará numa atrofia fatal e, dentro de pouco tempo, perecerá. 80

Verifica-se, portanto, que a base do Estado Federal, na forma pensada e


originalmente desenvolvida pelos federalistas, apoiava-se na autonomia financeira das
pessoas políticas. Sem dinheiro não há igualdade, não há como assegurar condições de
vida digna à comunidade. Essa garantia, entretanto, deverá estar, necessariamente,
prevista no texto constitucional do Estado Federal, uma vez que é peculiar ao próprio
poder de tributar.

4 O poder local e o cidadão

79
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1999, p. 63. De acordo com Sacha Coelho: “Essa autonomia resguarda-se mediante a
preservação da competência tributária das pessoas políticas que convivem na Federação e, também, pela
equidosa discriminação constitucional das fontes de receita tributária, daí advindo à importância do tema
referente à repartição das competências no Estado Federal, assunto inexistente, ou pouco relevante, nos
Estados unitários (Regiões e Comunas). Sendo a federação um pacto de igualdade entre as pessoas
políticas, e sendo a autonomia financeira o penhor dos entes federados, tem-se que qualquer agressão,
ainda que velada, a estes dogmas, constitui inconstitucionalidade.” No mesmo sentido se pronuncia REIS,
Elcio Fonseca. Federalismo fiscal: competência concorrente e normas gerais de direito tributário. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 42-43.
80
MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. Os artigos federalistas. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1993, p. 232.
_
A importância do poder local já era ressaltada por J. Stuart Mill,81 ao destacar que
além da representação nacional é necessário que existam representações provinciais e
municipais, restando duas questões a resolver: i) como deverão constituir-se os corpos
representativos locais e, ii) qual a extensão de suas funções. Em consequência destas
questões, dois pontos merecem atenção: i) como se poderá melhor realizar a própria
atividade local de governo; ii) como a sua realização pode tornar-se mais proveitosa à
manutenção do espírito público e ao desenvolvimento da inteligência do povo.
Como se pode verificar, as preocupações reveladas por Mill permanecem atuais,
não sendo possível afirmar qual é a melhor forma de funcionamento dos municípios,
nacionais e estrangeiros. O que se pode dizer é que os Estados encontraram diferentes
formas de organização política para os municípios e que os municípios brasileiros
possuem características bastante peculiares.
Nesse sentido, sustenta-se que os valores ressaltados pela Constituição de 1988
aliados ao conjunto de princípios explícitos e implícitos que a integram e informam
permitem extrair, pelo menos três conclusões: em primeiro, é possível concluir que os
municípios brasileiros, diferentemente do que acontecia no passado, não estão mais sob
a tutela dos Estados; em segundo, é possível concluir que o modelo de ordenamento
federativo adotado pelo Estado brasileiro estabeleceu três níveis de poder – federal,
estadual e municipal – mediante a técnica da repartição de competências, não sendo
correto, portanto, falar em hierarquia entre os entes da federação, mas sim em
distribuição de competências e sendo assim, é razoável também a terceira conclusão, ou
seja, a de que os municípios brasileiros são entes da federação. Não obstante pareça
desarrazoada esta discussão, o fato é que ainda existem na doutrina nacional autores que
divergem deste entendimento, como é o caso de José Nilo de Castro 82 para citar apenas
um deles.
Ora, a imposição de mecanismos para delimitação do poder ocorreu em virtude da
evolução do próprio Estado e das mudanças sociais que o impulsionam, trazendo
reflexos diretos nos direitos fundamentais. O exercício da democracia e da participação
popular é assegurado pela Constituição de 1988, haja vista que a doutrina da soberania
popular é a que prevalece, tendo sido abrigada nos artigos 1º, parágrafo único e 14. Os
municípios são os espaços de convivência que permitem a prática da democracia. Como
ressalta Milton Santos “Ser „cidadão de um país‟, sobretudo quando o território é
extenso e a sociedade muito desigual, pode constituir, apenas, uma perspectiva de
cidadania integral, a ser alcançada nas escalas subnacionais, a começar pelo nível
local.”83
A ousadia do legislador constituinte representa um avanço significativo para o
reconhecimento da importância do poder local no constitucionalismo brasileiro e, de
outra parte, concorre para fortalecer a democracia, considerando-se que a participação
popular na busca por soluções de problemas da comunidade permite o exercício da
cidadania e a construção de uma sociedade melhor, mais civilizada.
É preciso, portanto, repensar o papel dos municípios e outras formas de viabilizar
soluções para os graves problemas econômicos e sociais do país, no intuito de alcançar
a realização dos objetivos propostos pela Constituição de 1988. Vale ressaltar, ainda,
que a cidade é o lugar onde residem as pessoas que participam das decisões, a base
geográfica onde está instalado o município, a sede do governo municipal. Contudo, é no
cenário de desigualdade econômica e social que se deve empreender a busca por
soluções efetivas para os problemas que assolam as comunidades locais, ressaltando-se

81
MILL, John Stuart. O governo representativo. Tradução: E. Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo: IBRASA, 1983,
p. 185.
82
CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 27.
83
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único a uma consciência universal. 6.
ed. Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 113.
_
que os direitos fundamentais e as garantias asseguradas aos cidadãos são valores e
instrumentos essenciais à democracia, possibilitando a redefinição do que
modernamente se denomina de cidadania ampliada.84
Salienta-se, ademais, que o exercício da cidadania não se restringe à participação
no processo eleitoral, não se refere apenas ao direito de votar e de ser votado. Não é este
o sentido de cidadania inferido do texto constitucional. Há que se considerar que o
Estado Democrático de Direito concebido pelo legislador constituinte prestigiou os
direitos fundamentais e o direito de participação dos cidadãos no processo político,
visando consolidar a democracia. Dizendo de outra maneira, a Constituição de 1988
assegura a participação da sociedade na seara das questões e políticas públicas inerentes
ao Estado, sendo resultado da luta contra o regime militar. A redemocratização do país é
marcada por dois importantes fatores: i) o restabelecimento da democracia formal, com
eleições livres e a organização dos partidos políticos; ii) criação de espaços públicos
para compartilhamento do poder do Estado pela sociedade.85
A Constituição de 1988 é fruto de um movimento popular contrário ao regime
militar, ao autoritarismo e formas de dominação do poder estabelecido pela força. Ela
representa uma mudança no pensamento político e social do país, destacando desde o
seu preâmbulo os valores traduzidos por suas normas, haja vista a ênfase conferida aos
direitos fundamentais contidos no art. 5ª e a cláusula de abertura inserida no § 2º do
mesmo art. 5º. Surgida depois de um longo período de ditadura militar no país, ela
consolidou aspirações do povo brasileiro, revelando-se seu ineditismo no tratamento
conferido pelo direito constitucional positivo ao tema dos direitos fundamentais, os
quais passaram a usufruir status jurídico privilegiado no âmbito do ordenamento
jurídico pátrio. Além de seu caráter analítico e pluralista, refletidos na grande extensão
de dispositivos legais e na ampla gama de direitos sociais e direitos de liberdade e
políticos, a Constituição de 1988 possui acentuado cunho programático, caracterizado
pelos inúmeros dispositivos que ficaram a depender de regulamentação.86 Trata-se, por
conseguinte, de um sistema compatível com o princípio democrático, que viabiliza a
concessão de novos direitos fundamentais aos cidadãos.

Conclusão

As transformações ocorridas no Estado brasileiro desde a Constituição de 1988


modificaram as relações entre o Estado e a sociedade, verificando-se a necessidade de
legitimação de seus atos por meio de instrumentos de participação. No entanto, a
participação popular, no Brasil, ainda não se manifesta com a amplitude desejada, não
sendo possível negar que constitui uma ferramenta essencial ao exercício da
democracia, em especial, quando relacionada ao poder local.
De acordo com o art. 14 da Constituição de 1988, o referendo, o plebiscito e a
participação popular são meios postos à disposição dos cidadãos para participar do
processo político democrático brasileiro. A Lei nº 9.709/98 estabelece regras para
realização do referendo, plebiscito e a participação popular, ressaltando-se que o
referendo e o plebiscito possibilitam a participação direta do povo sobre determinado

84
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Poder, direito e Estado: O direito administrativo em tempos
de globalização. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 93.
85
DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando? In:
MATO, Daniel (Coord.). Políticas de ciudadanía y sociedad civil en tiempos de
globalización. Caracas: FACES, Universidad Central de Venezuela, 2004, p. 95-96.
86 SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 75.
_
assunto, ou seja, envolve matéria específica, tratando-se, portanto, de mecanismos de
democracia direta.
A iniciativa popular, por sua vez, encontra-se prevista no inciso III do art. 14 do
texto constitucional, podendo ser exercida junto à Câmara dos Deputados, às
Assembleias Legislativas Estaduais ou às Câmaras Municipais, conforme preceituam os
arts. 27, § 4º e inciso XIII do art. 29, todos da Constituição de 1988.
Além destes instrumentos de democracia direta, o sistema político brasileiro
contempla, ainda, outros mecanismos de participação popular, a saber: os conselhos
constituídos em diversas esferas de poder, a audiência pública, prevista em várias leis e
resoluções.
Não obstante a previsão de mecanismos de participação popular, o fato é que os
governos brasileiros – nas três esferas de poder - não fazem uso destes instrumentos
para orientar suas ações, ou seja, questões de grande interesse da população, como, por
exemplo, a reforma política, não é debatida com a sociedade. No âmbito local não é
diferente. A gestão democrática da cidade, prevista no Estatuto da Cidade ainda não
saiu do papel, não se tornou realidade para os munícipes. O discurso democrático não
corresponde a realidade. Outro exemplo disso é a previsão constante do art. 9º, inciso
XIV, alínea “a” da Lei Complementar nº 140/2011, haja vista que retira dos municípios,
contrariando afrontosamente o texto constitucional, a possibilidade de definir por meio
de sua própria legislação a tipologia de obras, atividades ou empreendimentos de
impacto local. Vale dizer, a mencionada Lei Complementar nº 140/2011, estabeleceu
por meio do dispositivo acima transcrito que o licenciamento ambiental realizado pelos
municípios dependerá de prévia anuência dos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente,
restringindo, portanto, os limites de sua autonomia.
Ferir a autonomia de um ente federado é uma violação ao texto da Constituição de
1988, na medida em que despreza o sistema de repartição de competências e o
ordenamento federativo. A lei em questão deturpa o princípio democrático porque retira
da população local o legítimo direito de deliberar, por meio de seus representantes,
sobre matéria de competência indiscutivelmente municipal.
Não se pode considerar realmente democrático o debate político realizado apenas
no âmbito do congresso nacional, em especial quando manifestações sociais se
reproduzem pelo país em menor ou maior escala, mas sem deixar dúvida quanto a
insatisfação das pessoas ou grupos, não obstante não seja possível identifica-los. O que
se percebe com clareza é o evidente distanciamento, prá não dizer abismo, entre a
sociedade e o Estado.
O atual sistema político brasileiro dá sinais de exaustão e de aparente
incapacidade de se renovar. É preciso dialogar com a sociedade, permitir a efetiva
participação do cidadão e repensar o funcionamento dos três poderes para que sejam
representativos de uma república e não de uma classe política distanciada da sociedade.
_
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