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464 RAE-Revista de Administração de Empresas | FGV-EAESP

RESENHA
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-759020140411

A ÉTICA E O MERCADO: O QUE ESTÁ EM


JOGO?

O QUE O DINHEIRO NÃO COMPRA: OS LIMITES MORAIS DO MERCADO


De Michael J. Sandel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 237 p.

Nos dias atuais, poucas coisas não são compráveis. As práticas comerciais pou-
co ortodoxas e muito polêmicas empregadas pelas instituições públicas e privadas
em diversas situações ratificam que se vive na era do triunfalismo do mercado, onde
praticamente tudo está à venda. Esse fenômeno surgiu após a Segunda Guerra, fun-
damentado na crença de que os mercados seriam capazes de se regular e gerir os pró-
prios riscos. A crise de 2008 mostrou que as coisas não são bem assim, porém espera-
va-se que, dados os seus desdobramentos, novos rumos seriam adotados na maneira
como o capitalismo funciona, o que não ocorreu.
Sandel, influente filósofo americano da atualidade e professor do curso Justice,
na Universidade de Harvard, e autor de outros livros, como Justiça; o que é fazer a coi-
sa certa, afirma que a ganância não foi a única culpada pela crise, mas também o pa-
pel ectópico atualmente desempenhado pelo mercado. Em vez de manter-se adstrito
às esferas da transação de bens materiais, o mercado governa crescentemente a vida
como um todo. Nesse modelo, as principais consequências nocivas dizem respeito à
desigualdade e corrupção no seio da sociedade. No caso da primeira, quanto mais for-
te for o poder do capital, mais importante será sua falta; em outras palavras, as pes-
Por
soas pobres terão uma vida mais difícil. Com relação à corrupção, ele aponta que as
Gabriel Aguiar de Araújo
gabriel_aguiar@hotmail.com práticas desenvolvidas por algumas organizações comprometem o conceito de cida-
Doutorando em Administração de dania, ao passo que põem à venda itens que não deveriam, pela perspectiva moral,
Empresas pelo Programa de Doutorado,
Universidade Unigranrio, Rio de Janeiro, ser vendidos.
RJ – Brasil De acordo com o autor, os limites morais do mercado devem ser analisados publi-
Josir Simeone Gomes camente, mesmo que as crenças sociais tenham de ser abertas, caso contrário, corre-
josirgomes@superig.com.br se risco de ocorrer maior degradação ou corrompimento de aspectos valiosos da vida.
Professor do Programa de Doutorado,
Universidade Unigranrio, Rio de Janeiro,
Para ele, de maneira sutil e sem que as pessoas percebessem, a sociedade atual dei-
RJ – Brasil xou de ter uma economia de mercado para ser uma sociedade de mercado.

© RAE | São Paulo | V. 54 | n. 4 | jul-ago 2014 | 464-465 ISSN 0034-7590


RESENHA | A ética e o mercado: o que está em jogo? 465

Neste livro, o autor traz uma série de tui a responsabilidade pessoal pelos pró- gadores que, teoricamente, não precisa-
exemplos reais, os mais diversos possí- prios atos. vam vender seus autógrafos, mas, mes-
veis, e questiona os limites morais das No Capítulo 3, “Como o mercado des- mo assim, o fazem. Em contrapartida,
práticas comerciais. Ele afirma que, para carta a moral”, Sandel aponta duas ob- há aqueles mais tradicionalistas, que se
determinados produtos, a ética do merca- jeções ao sistema estabelecido. A pri- recusam. Também traz exemplos de co-
do deve ser empregada, porém, em outros meira versa sobre a desigualdade que mercialização de outros artigos esporti-
casos, devem-se repensar as condutas. as escolhas de mercado podem refletir vos e explica como ocorrem os procedi-
No primeiro capítulo, “Furando a fila”, (equanimidade). A segunda diz respeito mentos de “autenticação do material”.
Sandel discute a ética das filas. Compa- à corrupção, ou seja, atitudes e normas Na sequência, questiona os investimen-
nhias aéreas e parques de diversão que sociais prejudicadas ou dissolvidas pe- tos privados no nome dos estádios e
vendem acessos mais rápidos aos ser- las regras do mercado. Ele ainda comen- eventos específicos dentro de disputas
viços, profissionais que esperam na fila ta a mudança no ponto de vista de alguns esportivas, alegando que, ao se mudar o
de eventos gratuitos e/ou concorridos economistas a respeito da influência do nome de um estádio, muda-se um marco
no lugar de outras pessoas, municípios mercado sobre os bens e práticas sociais cívico relevante.
que cobram pela utilização de vias ex- por ele governados, bem como na mu- Com enfoque diferente de sua já ci-
pressas em horários concorridos, cam- dança de papel do economista no con- tada obra, onde aspectos sobre a jus-
bistas que cobram fortunas por eventos texto social. Em outras palavras, parte-se tiça são debatidos, os diversos pontos
e até mesmo médicos de butique dispo- gradualmente da visão em que o merca- abordados por Sandel neste livro propi-
níveis 24 horas por dia. O que há de er- do não interfere no bem comercializado ciam aos leitores uma profunda reflexão
rado nisso? Segundo Sandel, a prolife- para uma visão mais realista, em que o sobre a influência das regras do merca-
ração desse tipo de comércio “aumenta mercado altera consideravelmente seu do no cotidiano. Nesse sentido, a obra é
as vantagens da afluência e condena os caráter. Tal constatação traz à luz os peri- muito esclarecedora, porém, em contra-
mais pobres a ficarem sempre no fim das gos de se misturarem as normas do mer- partida, não aborda aspectos mais pro-
filas”, ou seja, a lógica de que quem che- cado em esferas da vida normalmente go- fundos sobre as causas dos casos anali-
ga primeiro é atendido primeiro (ética da vernadas por regras diferentes. sados. Ao focar diretamente o fenômeno,
fila) cede passagem à lógica do “pagou, No capítulo 4, “Mercados na vida e na perderam-se, em parte, a visão do todo
levou” (ética do mercado). Há argumen- morte”, é exposta a indústria multibilio- e a visão pormenorizada das partes. As-
tos contra e a favor de tais práticas, po- nária de seguros de vida que as empresas sim, as bases do sistema capitalista e o
rém o autor defende que pagar e esperar fazem para seus funcionários e até mes- papel de cada agente na sociedade não
são duas maneiras diferentes de distri- mo ex-funcionários (muitas vezes sem o foram tão esmiuçados como poderiam
buir os bens. Há outras maneiras de dis- conhecimento destes). O autor questio- ter sido. Como exemplo de livros que
tribuição, portanto cada uma deveria ser na a coisificação dos trabalhadores, os abordam essas questões, O capitalis-
tratada com regras específicas e válidas quais são tratados como mercadorias a mo na encruzilhada, de Hart (Bookman,
para todos. futuro e têm mais valor (para as empre- 2006), elaborou de maneira pragmática
O capítulo 2, “Incentivos”, questiona sas) mortos do que vivos. Isso porque, soluções para problemas do mundo capi-
práticas de bonificação ou punição finan- sob a ótica fiscal, é mais atraente para as talista, e Ethics in practice: managing the
ceira para comportamentos desejados ou empresas realizar esse tipo de transação, moral corporation, de Andrews (Harvard
não. Para o autor, quando esse tipo de in- pois, em caso de falecimento do segura- Business Press, 1989), abordou as pres-
centivo é adotado, há limites morais que do, a empresa receberá o valor acordado sões e dificuldades éticas que os execu-
não são considerados, e isso pode gerar na apólice e a família do trabalhador não tivos enfrentam ao tomar decisões. Inde-
resultados desastrosos em longo prazo, receberá nada. pendentemente dessas considerações, a
pois as pessoas, principalmente as mais O autor finaliza o livro com o capítu- obra é eficaz em estimular o pensamen-
necessitadas ou com menor capacidade lo 5, “Direitos de nome”, que faz uma to sobre em quais pressupostos as pes-
de julgamento, por exemplo, as crianças, análise sobre as novas práticas econô- soas fundamentam suas escolhas e qual
serão coagidas a vender o que, em tese, micas no mundo dos esportes. Primeira- o papel do cidadão na sociedade brasi-
não deveria ser vendido. Além disso, o mente, comenta a venda de autógrafos. leira da atualidade, principalmente em
estímulo monetário, extrínseco, substi- Sobre tal prática, ele elucida que há jo- ano de eleições.

ISSN 0034-7590 © RAE | São Paulo | V. 54 | n. 4 | jul-ago 2014 | 464-465

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