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Insônia dos bebês e sua constituição subjetiva

Reclamação comum em consultório – a insônia dos bebês – pode muitas vezes estar associada à
relação entre mãe e filho. Nessa fase, a mãe tem também dificuldades com seu próprio sono

A insônia do bebê é queixa comum na clínica pediátrica, sendo que em muitos casos provoca
repercussões e dificuldades nos pais e na rotina familiar relativas à privação de sono. Se o bebê,
apesar de saudável, apresenta problemas para dormir, há grande investimento emocional dos
familiares.

O sono é uma função fisiológica de grande importância para o bebê, contribuindo na sua saúde como
um todo e o ritmo pode ser estabelecido a partir do terceiro mês de vida. A insônia do adulto muitas
vezes se relaciona a problemas emocionais; a insônia dos bebês, salvo situações de agravos orgânicos,
pode estar associada a problemas na sua constituição subjetiva, que se dá na relação mãe-bebê.

Definimos insônia do bebê como a dificuldade repetida em iniciar e/ou manter o sono, ocorrendo um
grande número de despertares durante a noite, podendo ocorrer dificuldade em reiniciar o sono.

Enfatizamos que a queixa de insônia da criança nessa faixa de idade é usualmente relatada pela mãe,
que em geral está submetida a dificuldades em relação ao seu próprio sono, com repercussões nela
mesma e na sua relação com seu bebê. Assim como no caso dos adultos, a queixa de insônia dos bebês
é subjetiva.

O sono do bebê

O sono normal consiste em uma organização cíclica diferenciada em estágios que se repetem durante
a noite, constituindo o que se denomina arquitetura do sono. É um fenômeno que resulta de dois
ritmos fundamentais: o ciclo circadiano — de cerca de 24 horas, que alterna períodos de vigília e de
sono — e o ciclo ultradiano, com duração média de 50 a 60 minutos na criança pequena e 90 minutos
no adulto. Os dois estágios do sono são: o sono onde ocorrem os movimentos oculares rápidos, Rapid
Eyes Movement (REM), e o sono NREM, que, por sua vez, divide-se em quatro estágios.

A arquitetura do sono apresenta variações normais desde o nascimento até a fase adulta, com
evolução característica que se supõe traduzir o amadurecimento neurológico do bebê e do seu
organismo como um todo. Durante o primeiro ano de vida, as características do ciclo sono/vigília
espelham a maturação do sistema nervoso central.

“Durante o sono, o bebê continua seu desenvolvimento biológico e das relações psíquicas”

O Tempo Total de Sono (TTS) por dia também se modifica desde a fase de recémnascido até a vida
adulta, com redução paulatina do TTS no período diurno. Esse fato leva a pensar que, na evolução da
espécie humana, é muito relevante o papel do sono no desenvolvimento orgânico e mental no início
da vida, visto que o RN (recém-nascido) passa grande parte do dia adormecido.

O ciclo de sono no RN apresenta dois estágios: sono calmo e sono ativo. O sono calmo tem
características polissonográficas que permitem identificá-lo como precursor do sono NREM, assim
como o sono ativo é considerado precursor do sono REM. No RN, prepondera o estágio de sono ativo,
com 50% a 80% do TTS, porcentagem que vai diminuindo do nascimento até os seis meses, quando
se estabiliza em 30%. No adulto é o que corresponde ao estágio em que acontecem os sonhos.
Contato com o psíquico

Os sonhos são um modo de contato com os conteúdos psíquicos (Freud, 1900); Melanie Klein (1928)
propõe que exista intensa atividade mental nos bebês nessa etapa da vida, quando 50% do TTS se
constitui do estágio de sono ativo, precursor do sono REM, estágio do sono em que acontecem o maior
número de sonhos.

O desenvolvimento dos padrões mais maduros de sono acontece nos primeiros meses de vida. Dos
dois aos três meses de idade, o ritmo circadiano se estabelece e as crianças se tornam mais sensíveis
ao meio ambiente, respondendo ao claro/escuro para organizar seu ritmo vigília/ sono. O ritmo da
casa, as rotinas noturnas passam a funcionar como sinais sociais ou ambientais com influência no
ritmo vigília/sono do bebê. Como conseqüência, consolidam-se as horas de sono no período noturno.

horas de sono no período noturno. Em seguida, a criança começa a ter longos períodos de vigília
durante o dia e a proporção de sono REM começa a decrescer para 30% ou 40% do sono total do dia.
Aos seis meses de idade, o início do sono se dá no sono NREM, como nos adultos, e a propensão ao
movimento durante o sono REM é substituída pela típica paralisia muscular que caracteriza este
estágio do sono no adulto.

O delineamento entre o sono normal e o distúrbio de sono na criança não é bem definido, dependendo
quase unicamente do contexto das expectativas dos pais. Padrões de sono da criança que constituem
simples variações do normal podem tornar-se um problema real se a rotina da família sofre grande
interferência.

As definições de padrão de sono normal, necessidade de sono e distúrbios do sono devem


necessariamente considerar o amplo leque de alterações maturacionais normais, tanto físicas, como
do desenvolvimento na infância e na adolescência, e ainda as influências culturais, ambientais e
sociais.

CLASSIFICAÇÃO DA INSÔNIA EM CRIANÇAS

No caso da criança pequena, a insônia, segundo a Academia Americana de Medicina do Sono, pode
apresentar- se como:

1. Insônia Comportamental da Infância (ICI)

a) Ocorre entre 10% e 30% da população infantil. Os sintomas da criança para o diagnóstico são
baseados na queixa da mãe.

A ICI apresenta-se sob dois tipos: 1a. Insônia de associação para iniciar o sono. Quando o adormecer
é um processo que requer condições especiais, tais como um objeto específico, ou tomar mamadeira
em determinado local da casa, ou algum procedimento específico dos pais (embalar por longo tempo,
passear de carro), exigências não raro problemáticas ou que demandem alto investimento dos pais.
Na ausência desse fator associado, o sono fica prejudicado, com atraso tanto ao iniciar quanto se há
interrupção do sono, exigindo a presença do cuidador;

b) Insônia por dificuldades de imposição de limites

Quando há recusa ou protelação por parte da criança em ir para a cama. Em geral, o cuidador impõe
poucos limites, ou limites inconsistentes para a criança, que se acostuma a fazer o que quer. Há
queixas associadas de problemas de comportamento durante o dia. A ansiedade de separação, que
ocorre por volta dos oito meses de idade, pode dar início a este tipo de insônia, sendo freqüente a
criança queixar-se de medo da noite.
2. Insônia de Ajustamento

Quando há fator estressante identificável temporalmente à insônia. Esse fator pode ser psíquico,
psicossocial, físico, médico ou ambiental. Ocorre em qualquer fase da vida, sendo mais comum em
mulheres e idosos, raro em crianças pequenas e tem a duração de menos de três meses. Em nosso
estudo ocorreram três casos em que o início do sintoma guardou relação temporal com fatores psico-
ambientais.

3. Insônia por Higiene do Sono Inadequada

Está associada a atividades diárias inconsistentes ou impróprias à manutenção da boa qualidade do


sono. Embora a classificação atual de distúrbios do sono não contemple a criança pequena como
idade provável para esse tipo de insônia, percebe-se que algumas crianças apresentam difi- culdades
para dormir associadas a hábitos impróprios, tais como: mães que amamentam e consomem
produtos com cafeína, excesso de estimulação física, mental ou emocional próximo ao horário de
recolher-se para dormir, falha no estabelecimento de horário e de rituais para o adormecer.

A diferença entre o sono normal e o distúrbio de sono na criança terá como ponto de corte a
quantidade de sono que lhe garanta crescimento e desenvolvimento normais, saúde física e
emocional e função imunológica adequada. Dentre os bebês que são amamentados exclusivamente
no seio materno deve-se considerar o fato de, em virtude de o leite materno apresentar melhor
digestibilidade, ocorra que o bebê desperte durante a noite para mamar, por fome.

Pesquisas demonstram alguns fatores relacionados à fragmentação do sono noturno e apontam as


principais conclusões: a consolidação do sono desenvolve-se rapidamente na infância precoce; a
conduta parental nas rotinas para adormecer e a resposta aos despertares noturnos estão
firmemente associadas à consolidação das horas de sono à noite; dentre os fatores mais fortemente
associados à fragmentação do sono, estão, aos cinco meses, a alimentação durante a noite e, aos 17 e
29 meses, a presença dos pais ao adormecer; e, quando a criança não dorme seis horas consecutivas
à noite aos 17 meses, tem pouca probabilidade de fazê-lo aos 29 meses.

As cólicas do bebê não são propriamente um problema do sono e parecem ter menor duração que
este. Na prática clínica, esses sintomas inúmeras vezes se associam. Muitas vezes as estratégias
desenvolvidas pelos pais visando a diminuir o choro do bebê (isto é, embalam com freqüência, andam
de carro, entre outras) interferem com a adoção de condutas que favoreçam o padrão de sono normal.

A abordagem comportamental da insônia baseia-se no restabelecimento do ritmo sono/vigília com


o treinamento dos pais, que utilizam medidas comportamentais como sincronizadores externos do
sono da criança, ou em intervenções baseadas na correção do ritmo diário de sono. Consistem no
suporte aos pais no sentido de informá-los em relação à capacidade de o bebê autoconfortar-se, e
educação dos pais com respeito às características de desenvolvimento de seus filhos.

Em revisão de literatura, sobre tratamento para problemas de sono em crianças pequenas, foi
encontrado que a terapia comportamental produz mudanças duráveis e confiáveis. Enfatiza a
necessidade de mais pesquisas sobre o sono em pediatria no sentido de padronizar critérios
diagnósticos e medidas objetivas, inclusive os agentes farmacológicos.

“Aspectos psíquicos relacionados ao sono do bebê”

Sigmund Freud relata em Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1917– 1974) que o estudo
dos sonhos mapeia as características do estado de sono. “O estado psíquico de uma pessoa
adormecida se caracteriza por uma retirada quase completa do mundo circundante e de uma
cessação de todo o interesse por ele, sendo uma forma de evocar protótipos normais das afecções
patológicas, para fins comparativos.”

Sua obra, que foi pensada tendo como modelo o adulto, pode ser estendida para a criança. O bebê
está ao mesmo tempo passando pela experiência tanto do desenvolvimento biológico quanto do
desenvolvimento das relações psíquicas, denominadas relações de objeto. Essas relações irão
presidir a constituição de sua subjetividade e acontecem principalmente na relação com sua mãe.

O ritmo de sono é uma função fisiológica submetida a uma organização a partir do nascimento, e a
insônia pode ser considerada como distúrbio funcional. A mãe do bebê insone não conseguiria
assegurar a função materna de manter uma tela protetora contra estímulos incômodos que
acometem as crianças, provindos tanto de dentro (do seu próprio corpo) quanto de fora.

Segundo a psiquiatra e psicanalista do Departamento de Psiccanálise do Instituto Sedes Sapientiae,


Nayra Cesaro Penha Ganhito, o ciclo sono-vigilia é um indicador sutil das primeiras fases do
desenvolvimento psíquico. Podemos descobrir o protótipo mais antigo da atividade psíquica na
capacidade que a criança tem de adormecer e permanecer adormecida. O ato de adormecer e, em
particular, de permanecer adormecido deve estar libidinalmente investido, se o bebê estiver
destinado a alcançar não somente a saúde física, mas também a saúde mental. O adormecer e o
próprio sono devem ser vivenciados como atividades que geram no bebê um sentimento interior de
bem-estar. Se, ao contrário, o bebê vivencia o fato de adormecer como um estado de abandono
angustiado, há risco potencial de insônia.

Existem dois esquemas de sono infantil. No primeiro, a criança experimenta um sentimento de


satisfação e de fusão com a mãe, o que explica o estado libidinal de paz interior que atinge, a que
Freud (1914) chamou de narcisismo primário. O segundo modelo de sono é precedido de um episódio
de frustração, de sofrimento e de tensão dolorosa durante o qual o bebê adormece como em estado
de esgotamento; é um sono puramente fisiológico, enquanto o primeiro é profundamente
impregnado de elementos libidinais e narcísicos.

Segundo o psicanalista britânico Wilfred Bion, na relação mãe-bebê a função alfa é a capacidade de
transformação dos elementosbeta, que se referem a sensações e experiências emocionais primitivas
e extremamente desconfortáveis no bebê, em elementos-alfa. No início da vida, a função alfa é uma
função exercida pela mãe, cujo papel consiste em ser “um continente adequado, de modo a acolher,
conter, decodificar e devolver para o filho aquilo que ele projetou nela, agora desintoxicado,
significado e nomeado”, que se constituirá nos elementos-alfa. Essa capacidade da mãe em
transformar os elementosbeta em elementos-alfa denomina-se rêverie (sonhar acordado). O
armazenamento desses elementos-alfa possibilita o pensar e o aprender com as experiências, no
indivíduo.

“O adormecer e o próprio sono devem ser vivenciados como atividades que geram no bebê um
sentimento de bem-estar”

O bebê precisa ser capaz de construir uma imagem interna da mãe — o objeto bom segundo Melanie
Klein (1957), que o permita separar-se dela para adormecer, conciliando o sono após as mamadas.
Para que isso aconteça, cumpre que o mundo interno da mãe crie condições de estar com seu bebê,
“comunicar-se” com ele através da rêverie; e desejar que o seu bebê a dispense durante algumas
horas.

Ao estar com seu bebê, alimentando, aconchegando, através da rêverie, a mãe transmite conteúdos a
seu filho, ainda que ele não os compreenda. O que será “comunicado” vai depender da natureza das
qualidades psíquicas da mãe e do impacto delas sobre as qualidades psíquicas da criança, pois o efeito
recíproco constitui, do ponto de vista do desenvolvimento do par, e dos indivíduos que o compõem,
a experiência emocional sujeita à transformação pela função alfa (Bion, 1962). O sono é uma sintonia
fina, uma relação muito íntima entre o orgânico e o psíquico e, desse modo, deve ser abordado nos
casos de insônia dos bebês.

Fonte: Eduardina Tenenbojm, Sueli Rossine e Rubens Reimão

Filho doente ou mãe deprimida?

Maria da Glória Vianna

Quando vieram relatar o que estava escrito no diário, descobri que Pedro ocupava o lugar de “sua
majestade o bebê, como, em 1914, diria Freud, no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução

Recebo um casal aflito em meu consultório: foram encaminhados pelo pediatra, que me disse que a
criança tinha distúrbios de sono. Coincidência ou não, naquela mesma semana tinha lido a respeito
da pesquisa da fisioterapeuta e professora da USP, Patrícia Daniele Araújo, feita com 1.027 crianças
entre três e cinco anos, matriculadas na rede de ensino da cidade de São Paulo. Segundo a
pesquisadora, os principais distúrbios do sono que afetam as crianças são: 48,5% movimentam-se
muito enquanto dormem, 38% acordam durante a noite e demoram a voltar a dormir, 35% roncam,
21% fazem xixi na cama. Ainda de acordo com a pesquisa, a maioria desses problemas tende a
diminuir, naturalmente, após os cinco anos. Qual seria então o problema da criança que iria receber?

Pedro, 18 meses, chegou no colo dos pais. A entrevista foi tão confusa que não consegui entender a
queixa da família nem a descrição dos sintomas da criança. A única coisa que os pais concordavam
entre si era que o menino, terceiro filho de uma prole de três, não dormia à noite. A mãe era
professora e o pai dentista. O filho mais velho tinha 17 anos e a filha do meio, 14. Os pais desejaram
esse filho tardio. Após uma semana de tratamento, o menino passou a dormir. Milagre? Não,
psicanálise.

Pedi que a família fizesse um diário detalhado de seu cotidiano e trouxesse na segunda entrevista.
Chegaram a registrar três dias de convivência com a criança. Inspirada em O Seminário da Carta
Roubada, de Jacques Lacan, eu queria estudar a rede de relações. Queria saber em que lugar cada um
estava e, o mais importante, em que lugar tinham colocado Pedro.

Quando vieram relatar o que estava escrito no diário, descobri que Pedro ocupava o lugar de “sua
majestade o bebê, como, em 1914, diria Freud, no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução”. A
família era freudiana exemplar. Ao “acolher” o bebê, estavam amando a si mesmos. Fascinados com
o fato de que bebês não precisam limitar o seu narcisismo, tinham projetado, em Pedro, sua ânsia de
gozo ilimitado. O acolhimento dos excessos do menino, infelizmente, estava prejudicando toda a
família.

Um exemplo: ele impunha a todos os horários de dormir e de acordar. Assim, ninguém mais tinha
disposição para o trabalho ou para a escola. Não era o bebê que tinha distúrbio do sono! Eram seus
pais que tinham, por assim dizer, “distúrbio narcísico”! Supostamente temendo as reações
espetaculares do bebê (como, por exemplo, bater a cabeça na parede quando alguém o contrariava),
a família ficava refém de suas escolhas.

Nesse ponto, o estudo do texto “Nota sobre a criança”, de 1969, me serviu de auxílio. Lembremos que,
para Lacan, “o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na
estrutura familiar”. Ao escutá-la, pude perceber que o menino era colocado como um band-aid de seu
sintoma: o fato de estar 24 horas do seu dia ocupando-se do “Pedrinho”, desculpabilizava-a de ocupar
o lugar de mulher e de mãe dos outros filhos. Projetando-se no filho, a mãe se oferecia ao deleite.

Tracei então um plano de ação para a família, exigindo consequência. Fui enfática ao dizer que cada
um precisava se responsabilizar por sua parte. Combinamos que Pedro deveria ser mantido acordado
durante o dia. Traçamos brincadeiras e atividades que poderiam ser feitas com ele. À noite, a família
prepararia a criança para, paulatinamente, ir se acalmando: menos barulho, luz, televisão etc. A parte
mais difícil foi convencer a mãe de Pedro, já que a sua tendência era a de sempre corresponder à
demanda. Insisti.

Resultado: o bebê passou a dormir à noite e, consequentemente, a família pôde desfrutar do sono há
muito tempo perdido. Não posso terminar esse relato com “foram felizes para sempre”. Tão logo o
sintoma do menino cessou, sua mãe entrou em depressão. Ponto para Lacan e entendamos que o caso
dentista é outra história.

Maria da Glória Vianna é psicanalista, mestre em linguística pela PUC e membro do Corpo de Formação
do IPLA.

Data de publicação: 22/10/2015

Quando a Cuca vem pegar

Nos primeiros anos, dificuldades para dormir são capazes de revelar problemas afetivos – e
às vezes exigem intervenção

Por Nayra Cesaro Penha Ganhito

Desde o nascimento, o momento de dormir é cercado por pequenos rituais preparatórios que nos
protegem das perturbações externas e de nossas próprias ansiedades para podermos mergulhar
no sono. É no aconchego dos braços da mãe, embalado pelo som da voz materna, sentindo o cheiro
de seu corpo e as batidas de seu coração que o bebê encontra tranqüilidade para adormecer. No
início da vida, as perturbações do sono estão intimamente relacionadas às vicissitudes da relação
com esse outro amoroso que nos garante o alimento e o repouso imprescindíveis para a
sobrevivência.

Dormir e comer são funções intimamente ligadas nos primeiros anos de vida: a fome nos faz
despertar e a saciedade, adormecer. Mas esta relação transcende suas dimensões fisiológicas. Ao
nutrir o filho, a mãe oferece também a qualidade de sua presença, que reflete desejos e fantasias
que poderão “alimentar” ou não um sono tranqüilo. O sono paradoxal _ mais conhecido como REM
_ é a fase em que ocorre a maioria dos sonhos nos adultos. Embora esse estágio seja detectável já
em recém-nascidos, é preciso que a criança passe por um complexo desenvolvimento, cuja
condição primária é a libidinização do sono, promovida pela mãe, para adquirir a capacidade de
sonhar. Assim, embora seja uma ação solitária na qual o que se busca é o recolhimento, é no
relacionamento com o outro que descobrimos o quanto dormir pode ser prazeroso – e seguro.

O sono, em especial o estágio REM, pode ser considerado uma tela para o sonho, isto é, uma base
em branco sobre a qual se inscreveriam posteriormente as representações psíquicas. Trata-se de
uma analogia com a superfície que recebe pinceladas de tinta. Mas, além de uma tela de projeção,
o sono é também uma proteção, que filtra e faz anteparo àquilo que poderia inundar o psiquismo
com excitações internas. Por isso se diz que, para o bebê, a mãe atua como um sistema de pára-
excitação, que virá a ser paulatinamente substituído pelo funcionamento psíquico próprio da
criança, tornando-a capaz de ficar e de dormir sozinha.
Antes de os sonhos advirem, a mãe é a primeira guardiã do sono. A instalação desse fundo
psíquico básico relacionado ao sono dará lugar, mais tarde, aos sonhos da infância e à capacidade
de fantasiar. Adormecer tranqüilamente nos braços da mãe é, portanto, uma experiência erótica
fundante do desejo de dormir – e de sonhar. A capacidade de o bebê adormecer é considerada um
protótipo arcaico de sua atividade psíquica e o ciclo vigília-sono seria um indicador sutil das
primeiras fases do desenvolvimento, expressando em certa medida o funcionamento psíquico da
criança.

O sono é um momento de separação. Ao fechar os olhos, o bebê renuncia à presença materna


concreta, mas pode reencontrá-la nos sonhos. Para a psicossomática psicanalítica, os distúrbios
precoces do sono resultam de falhas na progressiva instalação da capacidade de sonhar,
transformando a hora de dormir em momentos de angústia, pesadelo e terror. A insônia infantil
nos faz perguntar por que certas crianças parecem incapazes de internalizar o papel da mãe como
guardiã do sono. Dois tipos de relação mãe-filho foram associados a situações em que o bebê ou a
criança pequena não conseguem conciliar o sono.

No primeiro, há um investimento narcísico transbordante da mãe, com hiperestimulação e


excitação constantes. A presença materna excessiva obtura o intervalo entre o psiquismo da mãe e
o do bebê, intervalo que já foi chamado zona de adormecimento e constitui um espaço
fundamental para que a criança possa retirar-se no sono e, mais tarde, elaborar suas próprias
fantasias. No segundo tipo de relação, o interesse da mãe pelo bebê é insuficiente e deflagra uma
série de privações fundamentais. A criança se vê compelida a buscar externamente a fonte de
satisfação libidinal que deveria se instalar em seu mundo psíquico: o ciclo de choro, gritos e
agitação cessa apenas quando a mãe a toma nos braços. O fato de o bebê só dormir embalado pela
mãe indica sua incapacidade de internalizar a instância materna tranqüilizadora que lhe
permitiria entregar-se ao sono com segurança.

Entre os distúrbios mais freqüentes que perturbam o sono dos recém-nascidos estão as cólicas
idiopáticas (sem causa definida). Alguns especialistas as associam a um hiperinvestimento
materno do tipo ansioso, hipótese corroborada pelo fato de o distúrbio não se manifestar em
bebês que vivem em instituições. Ocorre tipicamente no primeiro trimestre de vida e desperta os
bebês quando estão prestes a entrar no sono libidinal, relacionado ao estágio REM. Nesses
momentos, a excitação invasora excede a capacidade de elaboração do psiquismo, e o choro ou
gritos funcionam como descarga dessa tensão excessiva. A chupeta e o embalo nos braços da mãe
são as principais intervenções usadas nessas situações. A sucção permite absorver a excitação por
meio do prazer oral e o embalo envolve todo o corpo do bebê, favorecendo a regressão ao
narcisismo primário (ver quadro na pág. 61). Ambas são técnicas motoras tranqüilizadoras usadas
pela mãe, mas com o passar do tempo os sonhos tendem a substituir essas ações – pode-se dizer
que o bebê deverá se tornar capaz de “alucinar” esse embalo. Do terceiro mês em diante, forma-se
uma conexão entre a imagem do rosto materno e o prazer de contemplá-lo durante a
amamentação. A organização desses primeiros traços de memória visual abre a possibilidade da
formação de sonhos compostos de imagens e é nesse período que as cólicas geralmente cessam.
Com ou sem cólicas, o sono agitado sempre indica maior intensidade da atividade psíquica
implicada na elaboração da ansiedade.

Algumas fases do desenvolvimento são tipicamente conflituosas e se refletem no sono infantil,


como ocorre por volta dos 8 meses, quando surge a angústia frente ao estranho. O bebê, que até
então manifestava prazer na presença tanto dos pais como de desconhecidos, passa a demonstrar
inquietação diante de rostos que não conhece. É o momento em que começa a discriminar seus
objetos privilegiados, comportamento que revela a constituição da relação de objeto e marca uma
etapa essencial do desenvolvimento.

A angústia do encontro com o estranho envolve operações psíquicas que equivalem a um


protótipo da fobia, mecanismo de defesa que coloca o mal-estar sobre um objeto externo visando
um apaziguamento interno. O conflito projetado no rosto desconhecido seria um deslocamento de
impressões desagradáveis das experiências frustrantes no contato com a mãe. Em contrapartida, a
visão da face familiar se associa à figura materna gratificante. Assim, a angústia associada a
estranhos é um mecanismo organizador do pensamento e dos afetos. Depois do oitavo mês, o sono
pode voltar a ser muito agitado entre 2 e 4 anos, período de grande intensificação da vida
fantasística típica desse estágio do desenvolvimento libidinal. Nessa fase, os distúrbios do sono se
relacionam à tentativa de elaboração de conflitos ligados a vivências da idade, como a experiência
de mundo interno adquirida por meio do controle esfincteriano, a descoberta da diferença
anatômica entre os sexos e a maior ambivalência entre amor e ódio nas relações edípicas.

De forma geral, a insônia infantil pode ser classificada em primária e secundária. A primeira se
refere aos casos de bebês ou crianças pequenas que jamais chegaram a estabelecer ritmo
adequado de sono e vigília. Já a secundária, mais comum, sobrevém mais ou menos bruscamente
após um período em que a criança foi capaz de instalar um ciclo de sono normal; assim, é
considerada um sintoma associado a alguma condição psíquica, física, ambiental ou farmacológica.
Tanto na insônia primária como na secundária, porém, muitas vezes o bebê pode parecer menos
afetado que seus pais, para os quais o distúrbio do filho pode chegar a ser extenuante e
intolerável. Sua reverberação no futuro da criança é relativa, dependendo do contexto afetivo
geral. Crises persistentes até o segundo ano costumam levar toda a família, ou pelo menos a mãe, à
beira do esgotamento físico e psíquico.

A insônia secundária se manifesta depois dos 2 anos e irrompe subitamente, depois de uma
organização normal do ciclo vigília-sono. Por volta dos 3 anos, sonhos de angústia podem
desencadear despertares perturbadores ou até mesmo terroríficos que, segundo relatos das
próprias crianças, têm como temática a separação e o abandono. Tomar distância das imagens de
terror do sonho requer uma tolerância à angústia que é rara nos pequenos. A resposta mais
comum é o medo da desorganização expresso pelo choro. No entanto, o surgimento dos sonhos de
angústia é um evento considerado favorável dentro do desenvolvimento, pois sinaliza a aquisição
de uma capacidade de elaboração que a criança está aprendendo a dominar.

Para Freud a transposição dos impulsos pulsionais para a cena onírica não é completa e permite
que algo do material recalcado se expresse de modo desagradável. A angústia então nos faz
despertar para escaparmos ao desconforto. Entretanto, Freud preservou sua hipótese do sonho
como realização de desejos também para os pesadelos, sublinhando que as diferentes instâncias
presentes em nosso psiquismo encontram-se em permanente conflito – o que satisfaz uma delas
pode causar desprazer para outra. É o caso, por exemplo, dos sonhos de punição. Freud nunca se
afastou da idéia de que os conteúdos infantis e recalcados fossem de ordem sexual.

O período compreendido entre 4 e 7 anos é bastante propenso a pesadelos. Resquícios da


atividade diurna permanecem durante o sono, reanimando a pulsionalidade e desencadeando a
elaboração onírica em que se destacam projeções de agressividade oral, com figuras de lobos e
leões, por exemplo. Mais tarde surgem imagens de atividade de captura (como ladrões de
crianças), ou fálica (com revólveres, facas e fuzis).
Durante o complexo de Édipo e na puberdade são comuns pesadelos sobre ameaças à vida dos
pais – por exemplo, assassinatos dos quais os sonhadores são injustamente acusados. Embora
sejam uma tentativa de elaboração onírica parcialmente fracassada, esses sonhos perturbadores
indicam que a criança já dispõe de recursos para representar psiquicamente as angústias típicas
desta etapa.

A criança temerá menos os pesadelos se souber que todo mundo os tem, sobretudo quando
pequeno. Desenhar ou escrever sobre eles costuma ajudar a emprestar uma forma para sua
angústia e, assim, dominá-la. Em vez de arriscar interpretações, os adultos devem ouvir e aceitar
os juízos dos filhos sobre os próprios sonhos. Alguns pais sentem culpa ou medo quando as
crianças sonham com cenas de morte, sem se dar conta de que é importante que os filhos
considerem a ausência de pessoas que lhes são importantes (ainda que em manifestações do
inconsciente) para desenvolver certa autonomia. O chamado terror noturno se diferencia do
pesadelo, em primeiro lugar por não deixar recordação ao despertar. Mais intenso que o pesadelo,
caracteriza-se como um ataque de angústia extrema e sem imagens em pleno sono, levando a
criança a um estado de pavor no qual é incapaz de reconhecer seu entorno e de se lembrar da
crise posteriormente. É um distúrbio típico do período edípico e raramente se manifesta antes do
terceiro ano; sua incidência diminui próximo à segunda infância.

A crise é desencadeada bruscamente, uma ou duas horas após o adormecer, sendo precedida por
momentos de agitação. Os pais são acordados pelos gritos da criança e a encontram sentada ou de
pé na cama, pálida, com os olhos assustados, incomunicável, tentando se defender do perigo
invisível. Taquicardia, sudorese e respiração ofegante completam o quadro. O final é igualmente
abrupto. Raramente a crise se repete na mesma noite, porém geralmente retorna nas seguintes,
por volta do mesmo horário. Tudo se passa como se o ataque de angústia substituísse o sonho que
não pode ser elaborado, de modo muito semelhante às crises de pânico noturnas do adulto. O
sono REM predomina a partir do meio da noite, período em que os pesadelos costumam se
manifestar. A criança pode nesse caso lembrar-se das imagens assustadoras e, mesmo com
dificuldade, retomá-las verbalmente para uma elaboração. Assim, se essa angústia costuma ser
considerada uma vicissitude normal do desenvolvimento, o surgimento de terrores noturnos pode
alertar pais ou terapeutas quanto a falhas mais graves da função simbólica e elaborativa dos
sonhos, muitas vezes indicando problemas mais gerais no funcionamento psíquico.

O sonambulismo pode ser o herdeiro do terror noturno no período pós-edípico, na fase de


latência: uma atividade motora automática (próxima à descarga de estímulos perturbadores)
substitui a atividade onírica deficiente; mas embora o sono seja preservado não há lembranças ou
restos de imagens para uma futura elaboração.
Como os distúrbios de sono em bebês e crianças pequenas geralmente se relacionam à qualidade
de sua relação com os pais, o casal deve participar do tratamento. Essa abordagem é coerente com
a perspectiva que considera o psiquismo _ inclusive o inconsciente _ inexistente no início da vida,
sendo produto da cultura veiculada pelo entorno humano que acolhe o bebê. Portanto, sua
fundação não seria mítica, mas real, fruto da relação com o semelhante.

Devido ao caráter pulsional do bebê, o período que se segue ao parto é mais suscetível a esse tipo
de crise, mas também favorável a remanejamentos e superação de posturas inconscientes dos
pais, que em outros momentos seriam inabaláveis. O conflito pode convidar à psicoterapia
pessoas até então pouco inclinadas a essa abordagem, o que abre um potencial de mudanças
efetivas favorecendo o desenvolvimento da criança.
A qualidade do vínculo estabelecido entre o terapeuta e os pais é fundamental. Quem trata
crianças – médico ou analista _ deve assumir uma posição que possibilite a geração do
pensamento e da fantasia dos pais sobre o filho. A acolhida benevolente e a suspensão de
julgamentos morais dão lugar a uma ética na qual as dificuldades podem ser percebidas e
remanejadas, ao passo que receber a angústia deles com solenidade excessiva só intensifica
aspectos punitivos superegóicos do narcisismo em jogo.

Um dos papéis do terapeuta, nesses casos, é favorecer mecanismos da criança para que ela
suporte esperar e postergar a necessidade da presença concreta dos pais, favorecendo o
desenvolvimento de sua vida psíquica e fantasística. Para tanto, convém recorrer a técnicas que
instaurem um jogo de elaborações em torno de noções complementares de presente e ausente,
visível e invisível, mostrar e esconder. Qualquer suporte proposto pela criança ou pela mãe se
presta a esse fim. Um exemplo disso são os jogos diante do espelho, nos quais a mãe ou o
terapeuta aparece e desaparece. A idéia é ajudar a criança a reter uma imagem suficientemente
estável que remeta à permanência do objeto amado e que, uma vez ausente, não seja sentido
imediatamente como perdido, ativando o desamparo. O fato de o terapeuta brincar com a criança
na presença dos pais pode incentivá-los a fazer o mesmo em casa. Aos poucos, eles começam a
formular questões sobre seus afetos e interações com o filho. Mais tarde, o trabalho de
verbalização afetiva e comportamental possibilita e valoriza o investimento da criança no mundo
do pensamento. Por meio de materiais lúdicos e do contar histórias _ primeiro pelo terapeuta,
depois pela própria criança _ são enfatizados aspectos que causam prazer ou medo. Trabalhar os
aspectos fóbicos é o meio mais efetivo de povoar os momentos de solidão, principalmente os que
irrompem no meio da noite.
O interesse da psicanálise pela psicopatologia do sono é recente e coincide com um momento em
que os distúrbios do sono são um dos representantes do mal-estar da época atual. Embora tenha
preterido o sono e se dedicado mais à questão do sonho, Freud considerou a dimensão subjetiva
do primeiro e suas relações intrínsecas com o segundo – algo que a ciência começou a fazer
apenas nas últimas décadas. Com base na formulação do “desejo de dormir”, ele ampliou a
abordagem do sono para além da necessidade fisiológica e introduziu a idéia de que dormir seria
uma retirada regeneradora da vida compartilhada, marcada por conflitos e cansaço.

Na interpretação dos sonhos, de 1900, Freud postulou que o sonho é o guardião do sono _ fórmula
fundamental na construção da teoria psicanalítica. Nela o sono ocupa lugar central – como
atividade vital que deve ser preservada –, e ao mesmo tempo marginal, já que a investigação dos
mecanismos da formação dos sonhos foi privilegiada em detrimento do processo de
adormecimento e suas pre-condições. Assim, o sono se caracteriza pela suspensão do interesse no
mundo externo e pela inversão dos fluxos no aparelho psíquico (mecanismo que na psicanálise é
denominado regressão). À noite, a inibição da motricidade favorece o escoamento das memórias
infantis, reavivadas com tal intensidade que dão lugar a uma experiência alucinatória. O sonho
seria uma forma de pensamento visual que substitui a lógica verbal da vigília.

O trabalho do sonho permite elaborar estímulos externos e internos que perturbam o sono,
principalmente impulsos infantis que surgem com o rebaixamento da consciência e o relaxamento
da censura. A elaboração onírica tem a função de “atender” tais impulsos por meio de uma
deformação simbólica, representando-os no sonho como desejos realizados, numa satisfação
alucinatória que tenta garantir a continuidade do sono. Como a censura encontra-se diminuída
mas não ausente, a resistência do bebê a essas representações pode desencadear a angústia e
mesmo o despertar. Vem daí a fórmula genérica segundo a qual “o sonho é uma realização de
desejos”. A conciliação entre instâncias psíquicas em conflito por meio da representação simbólica
se tornará modelo do sintoma neurótico e de toda formação do inconsciente.

Assim como o estado hipnótico é induzido pelo hipnotizador, o sono normal do adulto seria
induzido por auto-sugestão. Com o crescimento, passamos a prescindir paulatinamente da
presença “sugestiva” de alguém que nos adormeça, isto é, internalizamos a função que um dia foi
desempenhada pela mãe. Na década de 10, Freud associou a retirada do interesse no mundo
exterior implicada no sono a uma regressão mais profunda às origens da vida. Dessa forma, o
desejo de dormir subentende uma regressão radical que ultrapassaria os limites do próprio eu,
que se dissolve num estado próximo ao que Freud chamou narcisismo primário. O termo refere-se
às primeiras relações fusionais da criança com a mãe, determinantes na constituição do amor
próprio (narcisismo), do corpo erógeno e do “eu”. No entanto, Freud também se referiu a um
narcisismo primário absoluto, cujo modelo é o estado intra-uterino de não-perturbação, silêncio e
quietude. Didaticamente, é possível descrever a regressão do sonho como uma satisfação ligada ao
ideal infantil de completude com a mãe, e o sono como uma satisfação regressiva análoga ao
repouso absoluto no interior do ventre materno _ o grau zero de tensão.

"A CIÊNCIA DOS SONHOS"

O inconsciente analisado no capitalismo psicoativo

ESPECIAL PARA A FOLHA

Sigmund Freud bateu a caçoleta em 1939. De lá para cá, o capitalismo seguiu o seu curso, ganhando
para cada fase um adjetivo: capitalismo financeiro, especulativo, volátil, digital; de modo que agora
surge mais um qualificativo: o de capitalismo psicoativo, drogado ou aditivo, que é o paraíso da mais-
valia farmacopéica, a sinistra aliança entre o lucro dos remédios e a indústria dos alimentos. Capital
e trabalho transgênicos.
O léxico da psiquiatria contemporânea é a prova de que a ciência que cuida da saúde mental tem por
objetivo o efeito das substâncias psicoativas nos organismos individuais, pouco importando a classe
social a que as pessoas pertencem, pois a cada dia aumenta o número de portadores do modo de vida
neuroléptico, seja usuário ou abstinente.

A maioria dos enfermos em psiquiatria faz uso nocivo e arriscado de droga, de álcool, de cafeína, de
barbitúrico, de analgésico, de ansiolíticos, de esteróides e de antidepressivos.

É cada vez mais corriqueiro o indivíduo apresentar-se como um adicto permanente ou dipso-drogado
esporádico. Pode-se dizer que a vida cultural está movida por um sentimento ubíquo e onipresente
de alucinose, inclusive na legítima vontade de dormir.

Somos todos, em grau variado, co-dependentes da ebriedade contemporânea do capitalismo.


Destarte, nos últimos 50 anos, o emprego do termo pós-moderno tem alguma coisa de
neuroanfitamínico.

O nível de toxidade atingiu até a comida. Comida contaminada. Vivemos a era do frango biônico, do
arroz com feijão clonado.

É por isso que, diante do modo psicodisléptico de viver, a própria análise do comportamento pós-
moderno reveste-se muitas vezes de um caráter "borderline", sem esquecer a maioria da população
drogada pelo aparelho de TV, apresentando perfil oniróide, isto é, a versão caricata e boçal do onírico.
Os sonhos não têm um final: "The end".

A psicanalista brasileira Fani Hisgail está de parabéns por organizar um livro que mostra o quanto a
psicanálise freudiana foi assimilada entre nós. Aliás, desde a primeira década do século 20, o Brasil é
um país que mimou a psicanálise de Freud, sendo pioneiro em sua aceitação, tanto que o doutor Silva
Mello (1886-1973) em "As Ilusões da Psicanálise" diz que Freud teria comprado uma gramática para
aprender o idioma português.

O sonho continua sendo o grande enigma existencial. Nele o dizer do desejo inconsciente é sempre
de conteúdo sexual. O inconsciente é sexual ou não é inconsciente. Do feto intra-uterino ao fato vídeo
pornô.

O problema da metapsicologia como descrição do aparelho psíquico é passar ao largo da estrutura


orgânica do cérebro, assim como a lacuna da neurobiologia é não levar em conta o sujeito desejante,
ou seja: a subjetividade do sonho. Mesmo o palpite do jogo do bicho.

Nada impede, contudo, que haja convergência dessas duas perspectivas, espécie de
psiconeurolobiologia, de resto já desenvolvida com esplendor por Silva Mello, no Rio de Janeiro das
décadas de 40, 50 e 60, o primeiro médico no Brasil a conhecer e aplicar a teoria freudiana.

Afinal, a psicanálise faz parte da medicina, ainda que Freud, segundo Ernest Jones, fosse desprovido
de um genuíno temperamento médico. A explicação neurobiológica não esgota a complexidade
psíquica do fenômeno onírico, se bem que hoje em dia as pessoas estejam menos interessadas no
sonho que no sono. É este que traz o sonho e, detalhe, ninguém inventa posição nova de dormir. Nem
de ponta-cabeça.

Nos dias de hoje, dormir é um distúrbio que passou a ser regra do sono. Sono perturbado. Ronco
sonoro acompanhado de narcolepsia, que é a vontade súbita de dormir por períodos curtos, e a
apnéia, a respiração suspensa de repente durante o sono.

Atualmente o "sleep" pirado tornou-se a superestrutura do capitalismo psicoativo. Por conseguinte,


o sono não consegue mais desligar-se do ambiente externo. Estamos condenados ao sono patológico
do "rapid eyes movement", o sono da máquina dessincronizada. Taquicardia. Brandicardia. Atonia
muscular. Enurese noturna. Sonilóquio. Ereções penianas dolorosas, enfim, insônia junto com a fobia
de dormir, por mais paradoxal que isso seja. A inevitável depressão matutina.
O sono delta, profundo, de ondas lentas, com um mínimo de atividade mental, reparador das energias,
virou loteria. Lembro Luís da Câmara Cascudo: "Dormir é desarmar-se perante o mistério". O que
prepondera, em todas as camadas sociais, é o sono zumbi. Por isso mesmo vai-se configurando como
utopia decaída o retorno ao sono calmo, quieto, tranquilo e pacífico.

Lamentavelmente, ninguém levou a sério quando o escritor surrealista André Breton reclamou que
não se tinha feito ainda a história do homem dormindo. (GV)

A Ciência dos Sonhos - Um Século de Interpretação Freudiana

Autor: Fani Hisgail

Editora: Unimarco

Quanto: R$ 23 (290 págs.)

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