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CONTRIBUIÇÕES PARA A

GESTÃO DE PESSOAS NA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
CONTRIBUIÇÕES PARA A

GESTÃO DE PESSOAS NA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

ORGANIZAÇÃO DE
HÉLIO JANNY TEIXEIRA
IVANI MARIA BASSOTTI
THIAGO SOUZA SANTOS
Copyright © 2013 dos autores
Copyright © 2013 FIA
Governador: Geraldo Alckmin
Secretário de Gestão Pública: Davi Zaia
Unidade Central de Recursos Humanos: Coordenadora: Ivani Maria Bassotti
Edição :
Organização: Hélio Janny Teixeira, Ivani Maria Bassotti e Thiago Souza Santos
Coordenação editorial, produção e edição: Ab Aeterno Produção Editorial
Revisão: Camile Mendrot e Tatiane Ivo
Projeto gráfico e diagramação: Rawiski Comunicação

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Contribuições para a gestão de pessoas na


administração pública / organização de Hélio Janny Teixeira, Ivani
Maria Bassotti, Thiago Souza Santos. -- 1. ed. -- São Paulo : FIA/
USP, 2013.

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-88377-07-3

1. Administração de pessoal 2. Administração pública 3. Recursos


humanos I. Teixeira, Hélio Janny. II. Bassotti, Ivani Maria. III. Santos,
Thiago Souza.

13-01249 CDD-354.81

Índices para catálogo sistemático:


1. Gestão de pessoas no setor público : Brasil : Administração pública 354.81
| AGRADECIMENTOS |

Esta obra representa um pequeno exemplo da necessidade e da possibi-


lidade de articular os potenciais e as energias disponíveis na sociedade para
fortalecer as políticas e a gestão de pessoas no setor público. Acadêmicos
(FEA-USP, EAESP- FGV, PUC, FUMEC e FIA), gestores públicos (Se-
cretaria de Gestão Pública e sua Unidade Central de Recursos Humanos
– UCRH) e políticos que também são gestores, como o secretário de
gestão pública do estado de São Paulo, cooperaram para produção, seleção
e divulgação de ideias úteis que ampliam a visão crítica e as possibilidades
de aprimoramento na área de gestão de pessoas. O ambiente de liberdade
e suporte mútuo permitiu a cooperação, imprescindível para a reflexão
sobre problemas extremamente complexos como os tratados neste livro.
Agradecemos a preciosa colaboração de todos os autores e em especial
o suporte das instituições apoiadoras desta publicação, quais sejam: a
Secretaria de Gestão Pública do Governo do Estado de São Paulo (SGP),
durante o mandato de Davi Zaia, e a Fundação Instituto de Administração
(FIA), presidida pelo professor doutor Lindolfo Galvão Albuquerque,
ambos, Zaia e Albuquerque, com longa e prestigiosa carreira dedicada à
gestão de pessoas.
Agradecemos também à competente equipe da Ab Aeterno, capitaneada
pela editora Camile Mendrot, que realizou os trabalhos de revisão, dia-
gramação e apoio à produção do livro.
Finalmente, nossos agradecimentos a toda a equipe da UCRH–SGP,
aos participantes dos cursos e do 1º Congresso sobre gestão de pessoas no setor
público paulista, conduzidos pela UCRH e FIA, durante o 2º semestre
de 2012 pelas interações construtivas e sugestões dadas aos professores
e autores.
Os organizadores
| APRESENTAÇÃO |

O livro Contribuições para a gestão de pessoas na administração pública


é o resultado de um trabalho realizado pela Unidade Central de Recursos
Humanos (UCRH) e pela Secretaria de Gestão Pública do Estado de
São Paulo, com base nas experiências vividas nos seminários e debates
desenvolvidos, todos com grande participação dos servidores públicos
nas discussões sobre a importância da gestão pública.
A oportunidade de trocar informações e ouvir especialistas agora está
consolidada de forma mais ampla e abrangente com este livro, permitindo
que o assunto aqui tratado seja do conhecimento de todos.
Entendemos que a administração pública vive um desafio constante
de ganhar cada vez mais eficiência, se modernizar e valorizar o servidor
público, harmonizando diversos tipos de situações, leis e procedimentos.
Sendo assim, é necessário unirmos esforços para torná-la sempre melhor
do ponto do vista do atendimento a população.
E uma das grandes preocupações do Governo do Estado de São Pau-
lo em garantir esse bom atendimento é olhar para o profissional que o
realiza, estimulando a integração dos servidores públicos e investindo em
capacitações.
Diante de tudo isso, é fundamental estimular um debate ainda mais
detalhado e expor ideias e propostas acerca do tema em questão. Nesse
sentido, o livro é uma contribuição importante, por ser uma ferramenta
consistente ao permitir que as pessoas, ao lerem, aprofundem seus conhe-
cimentos e suas reflexões sobre o aperfeiçoamento da gestão pública no
estado de São Paulo e em todo o país.

Davi Zaia
Secretário de Gestão Pública
| SUMÁRIO |

INTRODUÇÃO Uma palavra dos organizadores, 11

CAPÍTULO 1 Visão sistêmica e gestão de pessoas, 29


HÉLIO JANNY TEIXEIRA
SÉRGIO MATTOSO SALOMÃO

CAPÍTULO 2 Gestão de pessoas articulada


por meio de competências, 65
JOEL SOUZA DUTRA

CAPÍTULO 3 Um modelo para compreender


as possibilidades de desenvolvimento
dos gestores públicos, 87
HÉLIO JANNY TEIXEIRA
SÉRGIO MATTOSO SALOMÃO

CAPÍTULO 4 Estilos comportamentais dos


profissionais da área de gestão de
pessoas: um estudo exploratório nos
setores público e privado, 111
ROBERTO CODA
DARLY ALCARPE CODA
MAURÍCIO SANTOS MOTTA

CAPÍTULO 5 Relações de trabalho e gestão pública no


Brasil contemporâneo, 151
ARNALDO JOSÉ FRANÇA MAZZEI
NOGUEIRA
CAPÍTULO 6 Contratualização e gestão de pessoas na
administração pública, 191
HÉLIO JANNY TEIXEIRA
SÉRGIO MATTOSO SALOMÃO

CAPÍTULO 7 Terceirização e gestão de pessoas no setor


público, 227
HÉLIO JANNY TEIXEIRA
LETICIA QUEIROZ DE ANDRADE
LUIZ PATRÍCIO CINTRA DO PRADO FILHO
SÉRGIO MATTOSO SALOMÃO

CAPÍTULO 8 Mensuração de desempenho no setor


público: os termos do debate, 253
REGINA SILVIA PACHECO

CAPÍTULO 9 Remuneração variável por desempenho no


setor público: investigação das dificuldades
e implicações para o Estado brasileiro, 275
LUÍS OTÁVIO MILAGRES DE ASSIS
MÁRIO TEIXEIRA REIS NETO

CAPÍTULO 10 Práticas inovadoras em gestão de pessoas:


um estudo de caso no setor de saúde, 319
LUÍS FERNANDO ASCENÇÃO GUEDES
ADORINDA LAMANA
MARIANA NUTTI DE ALMEIDA CORDON
LILIANA VASCONCELLOS GUEDES
| INTRODUÇÃO |

UMA PALAVRA DOS ORGANIZADORES

O estado de São Paulo conta com 645 municípios, num ter-


ritório de 248.209,426 km² e população estimada, em 2011, de
41,5 milhões de habitantes. Nesse mesmo ano, o produto interno
bruto (PIB) do estado alcançou R$ 1.326 bilhões, equivalendo a
um terço do nacional. Essas dimensões se refletem também nos
serviços públicos. É necessário um expressivo esforço logístico para
o atendimento de 41 milhões de cidadãos. São mais de cinco mil
escolas na rede pública estadual, com mais de quatro milhões de
crianças atendidas diariamente e dezenas de unidades de saúde com
atendimento de baixa, média e alta complexidade, administrando
milhares de leitos e atendendo inúmeros pacientes todos os dias,
apenas para citar duas entre muitas áreas de atuação da máquina
estadual, que demandam um enorme volume de recursos, pessoal,
estrutura e competências de gestão.
Para tanto, o Executivo paulista conta atualmente com 24
secretarias de estado e uma procuradoria geral, que formam a
administração direta. A administração indireta compõe-se de 25
autarquias (sendo seis especiais e três universidades), 17 fundações
e 20 empresas.
| 12 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A principal despesa não financeira do Estado é a relativa a pes-


soal, representando 53,3% do total em 2011, um montante 10,3%
superior ao do ano anterior (Governo do Estado de São Paulo,
2012, p. 5).12
A realização da despesa de pessoal em 2011, de acordo
com os parâmetros da Lei de Responsabilidade Fiscal
(LRF), atingiu 46,68% da Receita Corrente Líquida,
considerando-se os três Poderes, situando-se, por-
tanto, abaixo do limite de 60%. O Poder Executivo
encontra-se abaixo do teto de 49% e do limite pru-
dencial de 46,55%, apresentando relação de 40,33%
em dez/11, ante 39,4% em dez/10. (Ibidem, p. 5)

O estado de São Paulo contava com aproximadamente 1,22


milhão de registros em sua folha de pagamento ao final de 2011,
entre servidores ativos (740 mil), inativos e pensionistas, números
que apresentam elevação em torno de 2,8% em relação a 2010
(dados referentes apenas ao Poder Executivo). No orçamento glo-
bal, da ordem de R$ 140 bilhões em 2012, a despesa de pessoal
é, de longe, o maior custo.

A folha de pagamento de responsabilidade do tesou-


ro estadual, em 2011, totalizava R$ 49.642 milhões
ou R$ 3.819 milhões ao mês, em média. Desse
valor, 32% correspondiam à despesa com inativos e

1 Governo do Estado de São Paulo. (26 de outubro de 2012). Programa de Reestruturação e Ajuste
Fiscal do Estado de São Paulo. Disponível em: Secretaria da Fazenda — Governo do Estado de São
Paulo: <http://www.fazenda.sp.gov.br/operacoes_credito/ajuste_fiscal/PAF_2012-2014.PDF>.
Acesso em: 5 de janeiro de 2013.

INTRODUÇÃO | 13 |

pensionistas. O Poder Executivo absorveu 85,1% do


dispêndio total e os demais Poderes, que incluem o
Judiciário, o Legislativo, além do Ministério Público,
absorveram os 14,9% restantes. (Ibidem, p. 5)
O investimento com pessoal do estado de São Paulo supera o
orçamento da maior parte dos entes federados. No Poder Executivo,
maior parte desse contingente, assim como o maior custo, está
concentrada na administração direta, conforme mostrado na Tabela
I.1, lembrando que, valendo as mesmas proporções verificadas no
total da folha, em torno de 32% dos servidores considerados para
o cálculo está entre inativos e pensionistas.

Tabela I.1. Despesa de pessoal do estado de São Paulo (ativos e


inativos) no exercício de 2011, por tipo de administração

Proporção Proporção
PODER EXECUTIVO de servidores de gastos
Administração direta 83,9% 74,7%

Administração indireta 16,1% 25,3%

Autarquias 5,6% 5,7%

Universidades 5,0% 11,2%

Fundações 1,6% 1,7%

Empresas 3,9% 6,7%

Total 100% 100%

Fonte: Unidade Central de Recursos Humanos – Secretaria de Gestão Pública – SP (2012).

O gasto com pessoal, apesar de atualmente estar equilibrado frente


às regras previstas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, segue crescendo.
| 14 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

AJUSTES NECESSÁRIOS
Em 1995, iniciou-se um pesado programa de ajuste fiscal.
Até o ano de 2003, as despesas com pessoal ficaram acima ou no
limite prudencial previsto pela Lei de Responsabilidade Fiscal
(Lei Complementar nº 101, de 4/05/2000). Somente em 2004, o
estado de São Paulo conseguiu cumprir a meta fiscal e ficar abaixo
do referido limite. Um dado relevante a ser observado é que, de
2003 a 2011, a flutuação no número total de servidores não foi
significativa. O total, considerando ativos, inativos e pensionistas,
cresceu 5% nesse período; se considerarmos apenas os ativos, o
aumento é de 2%, o que significa que a maior contribuição para
o aumento global foi o crescimento da proporção de inativos e
pensionistas, como podemos observar no Gráfico I.1.

Gráfico I.1 Flutuação do total de servidores público


1.400.000

1.200.000
Total de servidores

1.000.000

800.000

600.000

400.000

200.000

-
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

Total Ativo

Fonte: Unidade Central de Recursos Humanos – Secretaria de Gestão Pública – SP (2012).


INTRODUÇÃO | 15 |

Contudo, analisando-se a série histórica das despesas com pes-


soal no Estado, nota-se que o custo dobrou de valor, passando de
24 bilhões/ano para 49 bilhões/ano (Gráfico I.2). Esse dado não
pode ser avaliado fora do contexto, pois tal aumento tem múltiplas
facetas e reflete as políticas de valorização dos servidores públicos,
com revisões salariais no decorrer da primeira década do século 21.
Gráfico I.2 Série histórica da despesa de pessoal e do orçamento
da administração pública paulista
150.000
145.000
140.000
135.000
130.000
125.000
120.000
115.000
110.000
Valores em milhões de R$

105.000
100.000
95.000
90.000
85.000
80.000
75.000
70.000
65.000
60.000
55.000
50.000
45.000
40.000
35.000
30.000
25.000
20.000
15.000
10.000
5.000
0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

Orçamento
Despesa de pessoal

Fonte: Unidade Central de Recursos Humanos – Secretaria de Gestão Pública – SP (2012).

Apesar de ter dobrado o custo com pessoal, a arrecadação fiscal


também cresceu, proporcionando à administração um orçamento
| 16 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

mais robusto. Segundo a Lei nº 11.222, de 30/07/2002, que fixou


a despesa do estado de São Paulo para 2003, o orçamento daquele
ano ficou fixado em R$ 54.618.432.678,00. Portanto, em nove anos,
de 2003 para 2011, o orçamento público paulista teve um salto de
159%, o que tem mantido uma margem de segurança significativa
no que se refere ao custo com pessoal frente à despesa total do Estado
(Gráfico I.2). O crescimento do gasto de pessoal não comprometeu a
saúde orçamentária estadual, que se encontra em equilíbrio.
Ainda assim, a décima revisão do PAF, documento do qual retira-
mos grande parte dos números apresentados — o qual é parte inte-
grante de contrato de confissão e refinanciamento da dívida paulista
com a União a exemplo dos que são assinados com muitos outros
estados da federação —, traz, no parágrafo 33, diversos compromis-
sos de controle, redução e aprimoramento da gestão dos gastos com
pessoal. São compromissos de grande abrangência, talvez até maior
do que se esperaria em um documento dessa natureza, valendo a
pena destacar alguns como condicionantes importantes em qualquer
tentativa de análise e proposição de políticas de gestão de pessoas:

33. O Estado deverá adotar ações voltadas à gestão


das despesas com pessoal do Poder Executivo, a
saber:
1) Sistema Previdenciário:
1.1 - Regime Próprio:
I – aprimorar os instrumentos geradores de in-
formações gerenciais relativos aos reflexos pre-
videnciários de decisões inerentes à política de
recursos humanos do Estado que venham a ser
implantadas.
INTRODUÇÃO | 17 |

[...]
3) Buscar maior eficiência das organizações públi-
cas, melhorando o nível de despesa com pessoal,
que no campo da gestão de recursos humanos
compreende:
I - planejamento da força de trabalho, compatibilizan-
do os quadros de pessoal às estruturas organizacionais;
II - reestruturação das classes e carreiras com carac-
terísticas abrangentes e generalistas, inclusive com
amplitude que se alcance o final em no mínimo
25 anos, e ascensão funcional por mérito e por
competências;
III - ampliação da sistemática de remuneração do
Poder Executivo voltada à gestão de resultados;
IV - revisão da legislação que rege vantagens pecu-
niárias específicas e que sejam incompatíveis com as
normas constitucionais, com o mercado de trabalho
e/ou com a LRF, a exemplo do adicional de insalu-
bridade e do adicional noturno;
V - extinção de cargos e funções-atividades vagos
e/ou considerados não adequados às novas funções
do Estado;
VI - implantar ferramenta que possibilite a con-
solidação das leis que regem o servidor público
estadual, com vistas à edição do novo estatuto do
servidor público estadual;
VII - expansão do processo de certificação ocupa-
cional, por meio de avaliação e desenvolvimento
dos conhecimentos e habilidades básicas, inerentes
| 18 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

ao exercício de cargos em comissão e funções ou


empregos em confiança, no âmbito da administra-
ção direta e autárquica;
VIII - diminuição dos custos com o absenteísmo
por meio de medidas de ordem legal, sobre as ações
de saúde e de gestão, inclusive no que se refere
às perícias médicas, por abranger o ingresso e os
afastamentos de servidores, além da concessão de
vantagem a título de insalubridade;
IX - implementação de avaliações por competências
adquiridas, para fins de progressão funcional para
as classes da área meio (LC n. 1080/08), no âmbito
da administração direta e autárquica;
X - implementação dos concursos de promoção e pro-
gressão para as classes da área saúde (LC 1.157/11),
no âmbito da administração direta e autárquica.
4) Outras medidas de natureza permanente e perió-
dica pré-fixada ou de acordo com a necessidade com
o objetivo de contenção das despesas com pessoal:
I - revisão de pagamentos de complementações de
aposentadorias concedidas nos termos da Lei 4.819/58
II - recadastramento dos inativos e pensionistas
via rede bancária oficial, com auditoria da situação
cadastral, via amostragem, inclusive por meio de
visitação ao beneficiário;
III - realização de auditorias externas nas folhas de
pagamento dos servidores ativos, inativos e pen-
sionistas;
IV - recadastramento anual dos servidores ativos.
INTRODUÇÃO | 19 |

5) Implantação de um sistema único de infor-


mação aplicável à área de recursos humanos,
inclusive com integração e/ou geração de folhas
de pagamento, visando, além da racionalidade das
atividades, um melhor controle sobre a despesa
com pessoal. (Governo do Estado de São Paulo,
2012, pp.9-11)

Ajustes, controle permanente e aprimoramento dos gastos são


medidas sempre necessárias e merecem ser elaboradas e acompa-
nhadas com um enfoque estratégico, sob o risco de a máquina
ser obrigada a conviver com cortes lineares no futuro, como já
se viu várias vezes no passado. No entanto, a questão que im-
porta é se podemos afirmar que a eficiência dos serviços públicos
cresceu proporcionalmente ao aumento do custo de pessoal e
do orçamento.
Assim, este é um excelente momento para ações planejadas
na área de recursos humanos, até porque o custo com pessoal
continua a crescer, e a perspectiva é de que essa curva apenas se
acentue. Além disso, permanece uma série de questões críticas a
serem consideradas para o aprimoramento da gestão de pessoas
no setor público do estado de São Paulo:
•  A despesa com pessoal, como maior item isolado do orça-
mento estadual (41% da receita), demanda atenção compatível
com a dimensão, complexidade e relevância do assunto. Rigidez
de regimes de trabalho e inadequações na legislação de pessoal
dificultam uma gestão eficiente e moderna de recursos humanos.
O perfil da força de trabalho, em termos quantitativos, quali-
tativos e de alocação, também é inadequado aos novos papéis
| 20 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

que a sociedade espera do Estado, demandando providências


para a sua adequação.
•  Rigidez na descrição dos postos de trabalho, com carreiras
baseadas em formação profissional e não em competências e em
atividades a serem desempenhadas.
•  Ausência de critérios adequados para a formação das lideranças
médias da administração pública, o que faz que técnicos assumam
funções de liderança sem possuir o perfil adequado. Desse modo,
cria-se um abismo entre as políticas de recursos humanos e a sua
efetivação na prática da gestão de equipes.
•  Dificuldade de equilibrar critérios técnicos e políticos na es-
colha de dirigentes em diversos níveis da administração pública.
•  A vasta legislação que determina a gestão de recursos hu-
manos, adicionado a interpretações do judiciário e dos órgãos
de controle geradores de súmulas, acórdãos e enunciados, tem
elevado a judicialização das questões, reduzindo as possibilidades
da liderança transformadora.
•  Fragmentação e complexidade da legislação sobre gestão de
recursos humanos, dificultando o entendimento mais amplo
por todos.
Pelo exposto, há necessidade de planejamento sistêmico multi-
temporal com os seguintes propósitos:
•  Melhorar a qualidade do gasto público com pessoal.
•  Adequar o perfil da força de trabalho aos novos desafios.
•  Formar e qualificar os profissionais.
•  Empoderar, responsabilizar e motivar os funcionários.
•  Difundir os valores de mérito e desempenho.
•  Fortalecer as lideranças públicas.
INTRODUÇÃO | 21 |

A CONTRIBUIÇÃO DESTE TRABALHO


Soluções pontuais e imediatistas, adotadas ao longo de décadas,
transformaram as políticas de recursos humanos no setor público
em uma colcha de retalhos desarmônica e “engessada”, na qual se
acumulam distorções em todos sentidos, quer olhemos os níveis, as
funções ou os setores do governo — desde as camadas estratégicas
até as operacionais, desde o recrutamento até a aposentadoria, em
todos os campos em que atua. Nesse sentido, qualquer análise isolada
de um cargo ou carreira, bem como as tentativas de aprimoramen-
to das funções do RH, como a realização de concursos públicos,
treinamentos, avaliações de desempenho, entre outras, tendem a
fracassar e a padecer do mesmo mal.
Novas soluções, com mais criatividade e inovação — esta última,
palavra tão repetida que está sendo esvaziada de sentido tanto no setor
público quanto no privado — são urgentes. E tais soluções só podem
ser efetivadas com a melhor compreensão dos problemas, seus contex-
tos e componentes e da interdependência entre as possíveis soluções.
Nesse contexto, deve-se necessariamente pensar em soluções que
partam de enfoque sistêmico, como apresentamos no Capítulo 1.
Na sequência, o Capítulo 2 aprofunda as possibilidades da adoção
de abordagens mais sistêmicas na prática, ao discutir a gestão de
pessoas articulada por meio de competências. Mas deve-se evitar
tanto o tecnicismo como a inocência. As mudanças na gestão pú-
blica não envolvem apenas questões técnicas e administrativas, mas
também conflitos, conforme discutido no Capítulo 5, que aborda
as relações de trabalho no setor público.
Introduzir mudanças na administração pública representa sempre
ir de encontro a interesses estabelecidos, num contexto com múlti-
plos atores e posições divergentes, ou seja, os processos de mudança
| 22 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

são sempre sócio-técnico-políticos. Cada grupo visualizará o “siste-


ma” e seus componentes conforme suas posições e interesses. Ignorar
esse aspecto da natureza da administração pública e supervalorizar
soluções simplistas é meio caminho para a frustração. Além disso,
mesmo quando todos querem resolver os problemas com posturas
amplas e construtivas, há uma armadilha adicional: o próprio cére-
bro humano — uma máquina geradora de equívocos, imprecisões
e generalizações indevidas. Pior, não percebemos claramente nossas
próprias limitações e somos atraídos por conclusões que nos con-
fortem e satisfaçam nossas necessidades.
É comum na área pública a existência de princípios e leis re-
levantes que marcam o sentido dos trabalhos nas diversas áreas
da administração. A Lei nº 8.666, de 21/06/1993 representa um
marco para a área de licitações. O artigo 37 da Constituição Fe-
deral de 1988 direciona a gestão de pessoas, estabelecendo, por
exemplo, a obrigatoriedade do concurso público. Todos sabem,
no entanto, que apesar de sua abrangência e alto grau de detalhe
com que consegue tratar as licitações públicas, a Lei nº 8.666, de
21/06/1993 não apresenta e nem propõe um sistema integrado de
gestão de suprimentos. Também os concursos públicos, essenciais
e bem-vindos, não significam uma política de recursos humanos,
apenas parte: recrutamento e seleção. Um concurso público, isola-
do das estratégias organizacionais e das demais dimensões da gestão
de pessoas, não trará grandes contribuições, mesmo se executado
perfeitamente dentro da lei. Um concurso bem cuidado, livre
da cobrança restrita ao conhecimento acadêmico, perderá força
se os novos funcionários não forem bem integrados, orientados,
treinados, remunerados e motivados. Não basta cuidar bem de
uma parte. Na administração, o que importa é o todo.
INTRODUÇÃO | 23 |

Na mesma linha de raciocínio, a necessidade de compreensão


mais ampla, o Capítulo 3 mostra que uma das causas mais frequentes
de insucesso dos programas de desenvolvimento e treinamento
gerencial é a dificuldade prática encontrada pelos gestores para
aplicarem os conceitos e técnicas absorvidos. O indivíduo é tem-
porariamente exposto a novas possibilidades de aproveitamento de
seu potencial, são sugeridas novas atividades para enriquecer seu
cargo, novas utilizações dos sistemas de informações, novos métodos
de recompensas, e assim por diante. Contudo, ao retornar ao seu
posto de trabalho, o profissional percebe que poucas das condições
necessárias à aplicação de suas novas ideias existem. A autonomia
no cargo é a mesma de antes, e ele não pode alterar os estímulos a
seus subordinados. Os sistemas de apoio não estão preparados para
fornecerem as informações que solicita na forma e tempo necessários.
Enfim, profissional aumentou seu potencial de desempenho, mas a
organização não soube como acompanhá-lo, seja institucionalmente,
seja tecnologicamente.
Um programa de desenvolvimento abrangente deve combinar
a melhoria do desempenho individual dos participantes com o
incremento do seu desempenho conjunto, gerando o progresso do
trabalho em grupo e do próprio processo de gestão da organização.
Esse programa deve procurar a articulação de medidas que conside-
rem as aspirações e os anseios dos gestores e demais profissionais e
os meios e recursos disponibilizados pela administração. Porém, não
basta ter conceitos e articulações sem mensurações que viabilizem
medidas operacionais. Isso fica claro no Capítulo 4, que apresenta
os estilos comportamentais dos profissionais de gestão de pessoas e,
consequentemente, o potencial contributivo e as dificuldades para
os avanços pretendidos.
| 24 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Como estabelecer uma política de recursos humanos sem


clareza das perspectivas de evolução das estruturas do Estado?
Mais gente na administração direta ou mais na indireta? Mais
organizações sociais e mais terceirização? Quais os impactos das
Parcerias Público-Privadas? Ou é melhor privatizar de vez certas
atividades? Em todos os casos, como repensar os cargos? Quais
carreiras permanecem e devem ser fortalecidas? Quais compe-
tências devem ser adicionadas e desenvolvidas? Essas perguntas
raramente são respondidas com clareza, e quando o são, não
bastam. Há um descompasso entre regime jurídico e necessidade
de atuação do Estado que envolve não apenas modificações da
estrutura institucional do próprio poder público como trans-
formações nas formas de interação com outros atores sociais,
conforme apresentado no Capítulo 6. Instabilidades jurídicas,
fragilidades conceituais e posições ideológicas dificultam a evo-
lução da gestão de pessoas.
O atraso dos marcos regulatórios e o decorrente campo movediço
que sustenta mal as políticas de RH ficam patentes nas análises do
Capítulo 7, que trata do tema da terceirização. Aplicação abusiva da
legislação referente à administração direta, de forma analógica, à admi-
nistração indireta, além da publicação de súmulas e acórdãos baseados
em conceitos vagos e imprecisos, como atividade fim vs. atividade
meio, cujas fronteiras são praticamente impossíveis de estabelecer na
prática, são exemplares. Muito do que se publica nesse regramento
infralegal é forma desprovida de conteúdo e corporativismo mal dis-
farçado por práticas legislativas muitas vezes lamentáveis.
O livro como um todo, e particularmente o Capítulo 8, procura
demonstrar que o modelo burocrático tradicional é insuficiente
como referência única da administração pública. A mensuração de
INTRODUÇÃO | 25 |

desempenho tem papel central para validar as mudanças desejadas.


A organização pública deve ser vista como feixe de contratos, tanto
verticais como horizontais, superando a primazia dos primeiros,
cristalizadores da hierarquia e centralização excessivas.
O Capítulo 9 prossegue na temática da avaliação de desempe-
nho aplicada à remuneração variável. As discussões desse capítulo
demonstram que o otimismo dos gestores não encontra fundamen-
to na teoria e que aplicações açodadas e irrefletidas geram mais
problemas do que avanços. A questão central é: quais são as práticas
que terão mais chances de conduzir um sistema de remuneração
variável a gerar bons resultados no serviço público brasileiro?
Na gestão pública atual, dominada pela formalidade, com densa
legislação sobre os processos de trabalho, há espaço para a diver-
sidade e inovação? Os discursos e a maior parte das publicações
concentradas nos grandes determinantes da gestão de pessoas no
setor público apontam que não. Por um lado, cargos criados por lei,
concurso público, estabilidade e isonomia surgiram para proteger
os funcionários dos abusos políticos. Por outro lado, regramentos
rígidos coíbem as iniciativas e posturas empreendedoras, que ne-
cessariamente envolvem riscos. É possível avançar em meio a tal
contexto institucional? Saindo das especulações generalizadoras
e estudando casos reais como o do Instituto da Criança (ICr),
apresentado no Capítulo 10, nota-se que a inovação tem espaço
e é viável no serviço público, mesmo dentro dos marcos legais
vigentes. Há variações possíveis, as quais, no entanto, na falta de
esforços de observação e análise, correm o risco de não serem de-
vidamente percebidas e valorizadas. O estudo de caso apresentado
naquele capítulo destaca um fator que faz diferença para a gestão
de pessoas no ICr: a liderança.
| 26 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

PALAVRA FINAL

Temos a convicção de ter coordenado a elaboração de uma


obra verdadeiramente útil para a administração dos recursos
humanos do estado de São Paulo e do Brasil, uma vez que
identificamos pontos críticos, soluções e focos de atenção e
reflexão que não podem ser desconsiderados, a saber:
•  A plena utilização do enfoque sistêmico, pois é impos-
sível gestão de pessoas fora de um contexto, desvinculada
da organização e de suas funções, estratégias e perspectivas.
•  A adoção de conceitos integradores como “competências”,
que alavancam e dão sentido às mudanças.
•  O aprimoramento e intensificação da avaliação de resul-
tados para julgar a qualidade das políticas públicas e de sua
implantação.
•  A adoção de um modelo abrangente que articule indiví-
duos e condições de trabalho a fim de elevar a efetividade
dos programas de formação.
•  A utilização de modelos, pesquisas, quantificações que
permitam a operacionalização das ideias e proposições ge-
néricas.
•  A consideração da complexidade dos processos de mudan-
ça na área pública, sempre sócio-técnico-políticos e plenos
de conflitos legítimos numa sociedade democrática.
•  A permanente luta para defender o interesse público como
valor compartilhado que respeite e supere pontos de vista
aparentemente divergentes.
Ao concluir a organização deste trabalho, temos certeza que
o leitor atento encontrará muitas informações práticas para o
INTRODUÇÃO | 27 |

aprimoramento da gestão de pessoas no setor público, mas,


muito além de receitas “do que fazer” e “como fazer”, o leitor
encontrará neste livro contribuições para pensar a gestão de
pessoas na administração pública.

Boa leitura!

Hélio Janny Teixeira


Ivani Maria Bassotti
Thiago Souza Santos
CAPÍTULO 1

Visão sistêmica e gestão de pessoas

HÉLIO JANNY TEIXEIRA


Doutor e Livre-docente em Administração pela
FEA-USP e professor da mesma instituição.

SÉRGIO MATTOSO SALOMÃO


Administrador pela FEA-USP e pesquisador da
Fundação Instituto de Administração (FIA).
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 31 |

Desde os trabalhos pioneiros de Ludwig von Bertalanffy em


meados do século passado, o enfoque sistêmico jamais deixou
de ser valorizado. Coisa rara na administração, dominada por
modismos e ilusões efêmeras. E por quê? Porque os problemas
mais complexos da administração envolvem interdependência e
combinações de dimensões, ou seja, são sempre sistêmicos. Sendo
assim, desde aquela época, o enfoque sistêmico tem sido igual-
mente recomendado tanto no campo da administração privada,
quanto da pública.
Em sua definição mais simples no campo da administração,
sistema é “um conjunto de partes interdependentes, dotado de
objetivos” (TEIXEIRA; SALOMÃO, TEIXEIRA, 2010, p. 111). A
partir da década de 1960, tem crescido na gestão pública brasileira
o número de assuntos tratados formalmente como sistemas, com a
criação de diversos sistemas nacionais, em áreas tão distintas como
telecomunicações, energia, habitação, segurança pública, assistência
social e saúde, esta última consubstanciada no Sistema Único de
Saúde (SUS), um dos mais conhecidos e relevantes.
É repetitiva a afirmação de que a complexidade tem crescido na
maioria dos campos da vida humana e a velocidade das mudanças
se acelerado cada vez mais nas últimas décadas e mais ainda nos
| 32 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

últimos anos (CASTELLS, 1999), com ampliação do desencontro


entre demandas sociais e capacidade de resposta do Estado, que,
além das suas obrigações tradicionais, tem que enfrentar novos pro-
blemas hipercomplexos. Por exemplo, saúde, segurança e educação,
obrigações constitucionais do Estado, são objeto de reclamações
constantes da sociedade. Filas, insegurança, percepção de aten-
dimentos de má qualidade, ocupam a experiência e a mente dos
cidadãos. Além disso, há problemas com novos contornos como o
crime organizado, a mobilidade urbana, o consumo de drogas como
o crack e necessidade de adaptações do País a crises internacionais.
Também a competição entre países, estados e cidades tem crescido,
havendo atualmente até mesmo rankings elaborados por organiza-
ções internacionais que comparam a atratividade dos mesmos para
os investimentos e os negócios.
Esses desafios transcendem as possibilidades dos departamen-
tos especializados e também de hierarquias e condicionantes
jurídicos convencionais. É importante, então, chamar a atenção
para uma característica interessante dos sistemas, diante da con-
cepção aqui adotada e apresentada no início do capítulo. Para se
otimizar o alcance dos resultados do todo, não basta se preocupar
com a otimização dos resultados das partes. Em um sistema,
os objetivos das partes, e suas próprias razões de ser, devem ser
considerados em função dos objetivos e das missões do todo.
Soluções isoladas em fronteiras administrativas de secretarias
ou sob óticas conceituais de um único campo do conhecimento
tendem a não solucionar os atuais problemas hipercomplexos,
quando não a agravá-los.
Apesar da evolução positiva, no Brasil e também no estado
de São Paulo, de indicadores de desenvolvimento social como
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 33 |

esperança de vida, escolaridade, mortalidade infantil, renda per


capita e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), os progressos
objetivos não têm sido suficientes, pois os cidadãos querem mais,
merecem mais e têm cada vez mais consciência de seus direitos.
Como afirmamos anteriormente, as melhorias alcançadas não têm
sido suficientes porque são produzidas em velocidade menor que
a do crescimento das demandas sociais. A concepção sistêmica é
mais necessária do que nunca para enfrentar os desafios da gestão
pública, sua complexidade cada vez maior e a escassez de recursos
diante do crescimento das demandas.
É importante, contudo, evitar tanto raciocínios tecnicistas
quanto inocentes. As mudanças na gestão pública não envol-
vem apenas questões técnicas e administrativas, mas também
dimensões políticas e sociais nem sempre bem compreendidas
e explicitadas, como já abordamos anteriormente (TEIXEIRA;
SANTANA, 1994, p. 7). Introduzir mudanças na administra-
ção pública representa sempre ir de encontro a interesses esta-
belecidos num contexto com múltiplos atores e com posições
divergentes, ou seja, os processos de mudança são sempre sócio-
-técnico-políticos. Cada grupo, ou, na definição de “sistema”,
cada componente ou “parte”, visualizará o “sistema” e seus ob-
jetivos conforme suas posições e interesses. Ignorar esse aspecto
da natureza da administração pública e supervalorizar soluções
simplistas é meio caminho para a frustração.
A administração pública tem como característica específica uma
relação de responsabilidade direta com o processo histórico que se
dá na sociedade. Reafirmamos que inexistem soluções efetivas fora
de um amplo referencial que respeite a natureza e a complexidade
do fenômeno público. Contudo, vale considerar que a própria
| 34 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

complexidade, por vezes, estimula o simplismo, pois, por sua na-


tureza, a administração permite, em alguns casos, o sucesso pelo
caminho intuitivo ou mesmo pelo acaso. O fracasso, por sua vez,
nem sempre é absolutamente transparente, tornando tênues, aos
olhos de muitos, as ligações entre o conhecimento profundo do
sistema e o aumento da eficácia nos processos de mudança planejada.
Esses fatores, aliados a posições pessoais e grupais não declaradas e
a crença em soluções da moda, adotadas pelo setor privado ou em
outros países, dificultam e desestimulam o aprofundamento dos
estudos na administração pública.
Novas soluções com mais criatividade e inovação — palavra tão
repetida que está sendo esvaziada de sentido tanto no setor públi-
co quanto no privado — são urgentes e só podem ser efetivadas
com a melhor compreensão dos problemas, seus componentes e
as interdependências. Isso significa que se deve necessariamente
adotar o enfoque sistêmico. Iniciamos este capítulo por uma ideia
bastante difundida referente ao crescimento das demandas sociais e
terminamos também com uma solução comum: inovação baseada
na concepção sistêmica.
Se a solução é tão clara, por que a sociedade vive com um
sentimento constante de frustação de expectativas? São muitas as
causas, mas dentro do escopo deste capítulo queremos afirmar que
interesses e posições particulares superam concepções mais amplas
e participativas que mobilizem as energias internas e externas ao
Estado na defesa do interesse público. Há um subaproveitamento
da energia das pessoas e das soluções disponíveis que, dispersas
e pouco articuladas, não evitam a repetição de projetos frágeis e
pouco efetivos.
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 35 |

1.1 NECESSIDADE DE VISÃO SISTÊMICA DA


GESTÃO DE PESSOAS NO SETOR PÚBLICO

Muito da quase permanente insatisfação da maioria dos servidores


públicos brasileiros com, por exemplo, a compensação por seu trabalho
é fruto da falta de racionalidade sistêmica na gestão de cargos, salários
e carreiras nos diversos níveis da administração no País. A concen-
tração excessiva da prerrogativa legislativa na esfera federal, somada
à combinação de negociações isoladas por categorias, com inúmeros
mecanismos que acabam por igualar ou assemelhar muitas carreiras
em um efeito cascata, tornam a gestão de recursos humanos no serviço
público uma espécie de colcha de retalhos desarmônica e amarrada.
Nesse contexto, qualquer análise isolada de um cargo ou carreira,
mesmo as ligeiramente mais abrangentes, tende a padecer e contri-
buir para o mesmo mal, sendo mais um pequeno retalho aduzido
ao emaranhado geral. Vale destacar que a visão de longo prazo ne-
cessária para o tratamento da questão não é contemplada nem pelo
Plano Plurianual (PPA) (com horizonte de apenas quatro anos), o
que não é compatível com uma abordagem estratégica e sistêmica
à gestão de recursos humanos. Mudanças culturais dependem de
processos participativos e ciclos de convencimento que podem levar
muitos anos, e cada contratação no serviço público tem impactos,
não somente econômicos, por cinco, seis ou até sete décadas.
Paralelamente, a escassez de estudos abrangentes, acompanhada
pelas distintas óticas nem sempre convergentes por meio das quais
a gestão de pessoas no setor público pode ser analisada, tem gerado
dificuldade de articular os diferentes horizontes temporais e as dife-
rentes dimensões e disciplinas envolvidas nas políticas de Recursos
Humanos: econômica, legal e gerencial.
| 36 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A falta de interesse em visões mais abrangentes fomenta — ou


pelo menos não evita — medidas pontuais que não resolvem as
questões de fundo, quando não agravam os problemas, desorga-
nizando ainda mais as hierarquias e equilíbrios salariais internos
(dentro das organizações e carreiras) e externos (em relação ao
mercado de trabalho).
Como é típico das grandes corporações e das organizações
públicas, o esforço para dar estabilidade ao sistema não deixa
espaços para transformações. A questão de recursos humanos na
área pública é ainda predominantemente calcada em prontuários e
voltada ao cumprimento de obrigações legais, distante da desejada
“gestão de pessoas”.
Os salários crescem principalmente em função do tempo, de
forma desigual entre as diversas corporações e sem seguir a uma
lógica mais geral. A dedicação e o mérito têm pouca influência, salvo
no caso de carreiras com níveis e regras de ascensão predefinidas.
Como é típico do ser humano, todos percebem mais claramente seus
direitos do que seus deveres. Consequentemente, o envolvimento é
baixo (principalmente na inovação), a rotação tende a ser decrescente
(aposentadoria integral) e muitos vivem um divórcio sem separação
e uma aposentadoria sem abandono do cargo.
Consequentemente, “A capacidade do pessoal [...] continua
mal gerenciada com uma gestão muito limitada de competências,
sistemas de seleção por mérito estritos e carreiras rígidas e estreitas
que impedem a alocação ótima de recursos humanos e limitam
as oportunidades para os servidores desenvolverem suas carreiras
por meio de mobilidade lateral ou progressão vertical” (OCDE,
2010, p. 196).
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 37 |

1.2 ORIGENS E SIGNIFICADO


DE ENFOQUE SISTÊMICO

O enfoque sistêmico surge em função das limitações dos proce-


dimentos analíticos cartesianos. Não que o enfoque analítico — que
consiste em decompor os problemas em partes a serem reordenadas
de forma lógica — tenha perdido utilidade. Mas, simplesmente,
como afirma Capra (2007), ele não se aplica igualmente a todas as
situações, e seu uso abusivo levou à fragmentação característica do
nosso pensamento e das nossas disciplinas acadêmicas e à crença de
que os fenômenos podem ser compreendidos se reduzidos às suas
partes constituintes.
Não é o que ocorre com um fenômeno complexo ou de “com-
plexidade organizada”, em que o todo é mais do que a soma das
partes, que apresentam fortes interações, não triviais e não lineares
(BERTALANFFY, 1973, p. 37-38). Para tornar um pouco mais
precisa para o leitor essa expressão, listamos algumas das caracte-
rísticas dos sistemas complexos:
•  têm o comportamento afetado por um grande número de
variáveis;
•  nem todas as variáveis e relações que podem afetá-los são
conhecidas;
•  as relações entre as variáveis não são lineares, aumentando a
sensibilidade a peque- nas variações em um dado estado inicial
do sistema;
•  apesar do caos aparente, a ordem parece surgir naturalmente
ao longo do tempo, com certa regularidade, traduzida (essa
ordem) em estruturas, formas, comporta- mentos e resultados
similares e já conhecidos.
| 38 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Para Bertalanffy (1973), os “todos” são formados de partes inter-


dependentes. Para compreender o todo, é preciso analisar não apenas
os elementos, mas suas inter-relações. A mesma ideia foi recolocada
por Senge (1991), ao tratar da aprendizagem organizacional. Para o
autor, o pensamento sistêmico é a disciplina que visualiza o todo,
reconhece padrões e inter-relações e aprende como estruturar essas
inter-relações de forma mais eficiente e efetiva.
A organização como sistema aberto, ou seja, em interação com o
ambiente, e a informação como recurso diferenciado são elementos
básicos do enfoque sistêmico em administração desde 1960. Mas
esses elementos vêm ganhando importância cada vez maior desde
1980, com a emergência da sociedade em rede, caracterizada por
vários autores, com destaque para Casttells (1999). A sociedade em
rede é baseada num novo modo de produção, em que o conhecimen-
to e o processamento da informação tornam-se mais importantes
do que outros recursos.
Uma organização pode ser pensada como um conjunto de partes
interdependentes como pode ser visualizado na Figura 1.1.

Figura 1.1 A caixa-preta e o conjunto de subsistemas


Coerência Vertical

Coerência Horizontal
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 39 |

COERÊNCIA VERTICAL
Mesarovic, Macko & Takahara (1970) partem da ideia de que a
organização consiste numa família de unidades interativas e hierar-
quizadas de tomada de decisão. Uma questão crítica é a forma de
coordenação dessas unidades, elevando-se a coerência das decisões.
Deve-se compreender como uma caixa ou nível de decisão determina
as decisões do nível inferior, e assim por diante, e também que tipo de
informação retorna de baixo para cima, conforme ilustra a Figura 1.2.

Figura 1.2 Hierarquização de Sistemas - Mesarovic (1970).


CAMADAS DECISÓRIAS
Exemplo
Nível 1 Estratégico

Nível 2 Tático

Nível 3 Operacional

Escalão 1

Escalão 2

Escalão 3 ... ...

Processos

Fonte: Mesarovic (1970).


| 40 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

COERÊNCIA HORIZONTAL
A coerência horizontal envolve ajuste entre as partes que intera-
gem trocando recursos e informações em grandes cadeias de clien-
tes/fornecedores internos e externos, conforme ilustração seguinte
(Figura 1.3).

Figura 1.3 Cadeia cliente/fornecedor

CLIENTE / CLIENTE /
FORNECEDOR CLIENTE
FORNECEDOR FORNECEDOR
EXTERNO EXTERNO
INTERNO INTERNO

A Figura 1.4 ilustra as conexões, adotando a linguagem típica do


enfoque sistêmico, com questões que facilitam a análise de sistemas:

Figura 1.4 Análise dos componentes de um sistema

ENTRADAS PROCESSAMENTO SAÍDAS OBJETIVOS CLIENTE

Recursos e Quais são as


Quais são? procedimentos Quais são? Quais são?
demandas?
adotados?

São coerentes Estão sendo


Volume? Coerência com o Forma?
com o ambiente atendidas?
fluxo de entradas e com as saídas?
e saídas?

Forma? Frequência?

São coerentes
Frequência? com a capacidade
do processador?

São coerentes
com a capacidade Atendem o
do processador? usuário?
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 41 |

A revisão de processos, que sempre foi importante na adminis-


tração, tanto sob a ótica dos antigos conceitos de organização e
métodos (O&M) e análise de sistemas, como nas visões mais mo-
dernas da qualidade total e da reengenharia, recentemente ganhou
autonomia e literatura própria, e também teve seu foco ampliado
para a gerência de processos.

1.3 PLANEJAMENTO: VISÃO SISTÊMICA E


COERÊNCIA VERTICAL E HORIZONTAL
AO LONGO DO TEMPO

Como bem mostrou Simon (1967), há duas formas principais


para promover a integração das ações e decisões numa organização:
planejamento e comunicação. Sabemos que ambos se comple-
mentam e se interpenetram, pois a comunicação humana, baseada
numa linguagem articulada e simbólica, é característica essencial da
natureza humana e, consequentemente, marca todos os seus atos.
Podemos considerar a organização como um conjunto de unida-
des interdependentes em que se tomam decisões. O planejamento
visa a permitir ou facilitar a integração dessas decisões (e conse-
quentemente das ações), que se dão em diferentes unidades ou em
diferentes níveis de uma mesma unidade. Somente a existência de
um esquema de referência abrangente (conjunto de planos) pode
evitar o caos, no caso de decisões que devem ser tomadas simulta-
neamente por dizerem respeito ao mesmo processo e não poderem,
portanto, entrar em conflito. Além da função de “manutenção”,
o planejamento é também o principal instrumento utilizado para
promover “mudanças” organizacionais, tendo em vista a adaptação
| 42 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

a novas situações ambientais ou simplesmente visando o melhor


aproveitamento de situações estáveis.
Como mostra Ackoff (1976, p. 2-3), o exercício do planejamento
se confunde com o próprio enfoque sistêmico: “Planejamento é
necessário quando a consecução do estado futuro que desejamos
envolve um conjunto de decisões interdependentes; isto é, um
sistema de decisões. Um conjunto de decisões forma um sistema
se o efeito de cada decisão no resultado desejado depende de, pelo
menos, outra decisão do conjunto. O conjunto de decisões que
exijam planejamento tem as seguintes características”:
a) “São muito grandes para serem manipuladas de uma só vez.
Portanto, o planejamento deve ser dividido em estágios ou fases
que sejam desenvolvidas em um único ponto de decisão ou simul-
taneamente, em diferentes pontos ou mesmo por alguma união de
esforços em série e simultâneos. O planejamento deve ser dividido
em etapas ou, em outras palavras, ele deve ser planejado em si.”
b) ”O conjunto de decisões necessárias não pode ser subdividido
em subconjuntos independentes. [...] Isso quer dizer que decisões
tomadas em primeiro lugar no processo de planejamento devem ser
levadas em consideração, ao se tomar outras, posteriormente; e as
primeiras decisões devem ser revistas à luz das outras que lhe seguirem.”
Ainda segundo Ackoff (1976):
Essas duas propriedades sistêmicas do planejamento provam que
ele não é um ato e sim um processo, sem fim natural ou ponto final.
É um processo que (se espera) se aproxima de uma “solução”, mas
nunca chega mesmo até ela, por duas razões. Primeiro, porque não
há limite para a quantidade de revisão que se possa fazer de decisões
anteriores. Entretanto, o fato de que é necessário agir faz com que
se tenha que adotar o planejamento da maneira que ele estiver num
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 43 |

determinado momento. Em segundo lugar, tanto o sistema para o


qual se planeja quanto o seu ambiente mudam durante o processo
de planejamento e nunca é possível levar todas essas mudanças em
consideração. Em parte, em função disso é que existe uma necessi-
dade contínua de atualização e “manutenção” de um plano.
Na prática organizacional, o planejamento representa o principal
meio para a efetivação do enfoque sistêmico.

1.4 DIFICULDADES DA APLICAÇÃO DA VISÃO


SISTÊMICA NA GESTÃO DE PESSOAS

A aplicação do enfoque sistêmico envolve a resposta a, pelo


menos, quatro questões:
a) O que significa o todo?
b) Quais são seus componentes?
c) Como os componentes se inter-relacionam?
d) Como fortalecer a coerência sistêmica horizontal, vertical
e temporal?
Essas perguntas não podem ser respondidas independentemente,
pois só é possível pensar no todo considerando-se as partes e suas
inter-relações. E a coerência sistêmica nada mais é do que a integra-
ção horizontal e vertical das partes ao longo do tempo.
Mas a prática de gestão de pessoas na área pública enfrenta dificul-
dades para acompanhar as recomendações da literatura, incorrendo
repetidamente nos seguintes vícios:
•  Ampliação indevida do significado das partes.
•  Tratamento isolado das partes.
•  Dificuldade de visualizar o todo.
| 44 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

a) Ampliação indevida do significado das partes


É comum na área pública a existência de princípios e leis relevantes
que marcam o sentido dos trabalhos nas diversas áreas da adminis-
tração. A Lei 8666 representa um marco para a área de licitações. O
artigo 37 da constituição direciona a gestão de pessoas, estabelecendo,
por exemplo, a obrigatoriedade de concurso público. A Lei de Res-
ponsabilidade Fiscal apresenta os limites de gastos e outras referências
para as finanças públicas. Todos sabem, no entanto, que, apesar de sua
abrangência e alto grau de detalhe com que consegue tratar as licitações
públicas, a Lei 8666 não apresenta e nem propõe um sistema de gestão
de suprimentos integrado, pois trata apenas de licitações e contrata-
ções. Também os concursos públicos, essenciais e bem-vindos, não
significam uma política de recursos humanos, mas apenas uma parte
de dois dos seus aspectos: recrutamento e seleção. Da mesma forma, a
Lei de Responsabilidade Fiscal nunca teve a pretensão de propor uma
gestão financeira integrada. Mesmo com os seus direcionamentos e
restrições, as leis mencionadas não vedam complementos e cuidados
nas aplicações. A Lei 8666 teria mais impactos se acompanhada de
previsão bem feita da necessidade de materiais, análise de mercados
fornecedores, estudo dos padrões de consumo, controle de estoque,
estudo de custos globais e treinamento de compradores. Ou seja, a
lei não coíbe uma logística pública integrada, mas poucos a prati-
cam. O mesmo vale para as outras leis citadas. Um concurso público
mal feito não trará grandes contribuições mesmo dentro da lei. Da
mesma forma, um concurso bem cuidado, livre da cobrança restrita
do conhecimento acadêmico, perderá força se os novos funcionários
não forem bem integrados, orientados, treinados, remunerados e
motivados, ou seja, não basta cuidar bem de uma parte, porque, na
administração, o que importa é o conjunto.
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 45 |

b) Tratamento isolado das partes


Tanto a literatura como a prática da gestão de pessoas trata
das funções típicas de RH – recrutamento, seleção, treinamento,
análise de cargos e carreira, avaliação, remuneração e desligamento
de forma isolada. Como mostram Zaccarelli & Kwasnicka (1978,
p. 47), “o tratamento conjunto desses assuntos é nulo ou insufi-
ciente, embora, evidente que seja muito importante.” Os autores
nos alertam para as relações que devem haver entre, por um lado,
as estratégias organizacionais e as políticas de recursos humanos,
e, por outro, para coerência e complementaridade que devem ser
buscadas entre as próprias funções da gestão de RH. Assim é que
decisões acertadas no recrutamento e seleção tendem a facilitar a
formação e treinamento, os quais, por sua vez, viabilizam o desen-
volvimento de competências e a implantação de sistemas de carreira
e remuneração, e assim sucessivamente. Usualmente, não é feito
o tratamento conjunto das partes, que envolve a visualização das
funções, suas articulações entre si e com o contexto.
c) Dificuldade de visualização do todo
Referenciais não faltam para indicar quais os componentes e con-
dicionantes da gestão de pessoas. Longo (2003) apresenta um modelo
integrado de gestão bastante difundido nos países ibero-americanos
(vide figura 1.5) e que deu origem a uma metodologia de avaliação
também bastante utilizada. Também Levy (2012) apresenta um quadro
amplo sobre a questão. Mas os acadêmicos e os estudiosos têm avançado
mais do que a prática por três razões principais. Em primeiro lugar, os
atores envolvidos com o mundo real estão dispersos e marcados por
interesse específicos. Assim, decisões que necessitam de integração para
constituir um todo significativo são tomadas por grupos distintos, com
referenciais particulares e sem visualização do conjunto.
| 46 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Figura 1.5 Modelo integrado de gestão

ESTRATÉGIA

CONTEXTO
INTERNO AMBIENTE
GESTÃO DE Enquadramento legal
Estrutura RECURSOS
Cultura Mercado de trabalho
Outros HUMANOS

PESSOAS

RESULTADOS

ESTRATÉGIA

PLANIFICAÇÃO

PROCESSAMENTO

ORGANIZAÇÃO TRABALHOS DE GESTÃO DE Compensação monetária


DO TRABALHO GESTÃO RENDIMENTOS e não monetária
Projeto de trabalho Incorporação Planejamento
Definição de perfis Mobilidade Avaliação
PROMOÇÃO E
Desvinculação
CARREIRA
Aprendizagem
individual e coletiva

GESTÃO DAS RELAÇÕES HUMANAS E SOCIAIS


Ambiente de trabalho Relações Políticas sociais

Fonte: Longo (2003)


VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 47 |

Seguindo o entendimento de Longo (2003), quem cuida do en-


torno (legisladores, procuradores, governante) é diferente de quem
trata do contexto interno (secretários, secretário adjunto, chefe de
gabinete etc.), que está distante de quem faz a gestão de pessoas
(unidades de recursos humanos e conjunto de gestores). Como as
unidades de RH podem delinear políticas de recursos humanos sem
conhecimento e sem participação em outras camadas decisórias? Da
mesma forma, como gestores de linha (diretores, coordenadores,
chefes) podem dar sentido e liderar suas equipes em processos de
transformação obscuros?
As limitações do cérebro humano representam uma segunda
razão para a fragilidade da utilização de concepções sistêmicas na
prática. Como mostra a psicóloga cognitiva Kahneman (2012), o
cérebro humano apresenta limitações desconcertantes, pois é uma
máquina de tirar conclusões precipitadas e equivocadas, incapaz de
admitir a verdadeira extensão da própria ignorância. Superestima-
mos o quanto compreendemos sobre o mundo. Ou seja, as pessoas
pensam que compreendem o todo, que têm uma visão holística,
mas se iludem com algumas partes como se fossem o todo. Muito
estudo, muitas teorias, muita participação devem ser empregados
para reduzir os equívocos e construir de fato bons modelos para
operar sobre a realidade. A leitura de Senge (1991) sobre aprendi-
zagem organizacional certamente contribui para essa empreitada.
Em terceiro lugar, não basta ter os modelos e a visão sistêmica,
com inúmeras variáveis interligadas conceitualmente, sem mensu-
rações, sem pesquisas que indiquem mais concretamente os con-
tornos e os pesos dos problemas e das soluções. Colocações gené-
ricas alimentam ou modificam as generalidades vigentes, numa
generalização sem fim. Por isso é comum afirmar que no Brasil, e
| 48 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

em particular na gestão de pessoas do Setor Público, são escassos


os estudos quantitativos e abrangentes que ajudem a construir o
sentido das políticas públicas.
Os conceitos apresentados neste capítulo indicam dois grupos de
diretrizes ou princípios para uma forma mais estratégica e sistêmica
de atuação na gestão pública.
No primeiro grupo, situam-se diretrizes “políticas” ou relativas
à “atitude” de governantes e gestores. Tais diretrizes indicam a
necessidade de superação das dificuldades crônicas para a adoção
do tratamento sistêmico e estratégico dos seguintes problemas da
gestão pública: a supervalorização e tratamento isolado das partes e o
tecnicismo inocente, que se ilude quanto à existência de um “pacote
técnico de soluções sistêmicas”. É necessário, também, tomar cons-
ciência da importância, entender a abrangência do escopo e assumir
os desafios políticos de uma postura sistêmica no planejamento e
na gestão no setor público, inclusive a de pessoas.
No segundo grupo, encontram-se os princípios da busca perma-
nente de coerência estratégica (externa/superior) e sistêmica (verti-
cal, horizontal e no tempo) no planejamento e gestão de políticas,
programas, projetos e organizações públicas.
O apresentado, pois, até o momento, já seria suficiente para
um administrador público experiente rever estratégias e planos de
trabalho, pessoais e de sua equipe num primeiro momento, e de
sua unidade, instituição e programas progressivamente, dependendo
das condições políticas, restrições e oportunidades que encontrar.
Mas vamos nos propor a fazer uma reflexão sobre as formas ou
mecanismos da transposição, para a prática, dos conceitos apresen-
tados até este momento, por meio de um “exercício” de aplicação
a uma situação mais próxima da realidade.
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 49 |

Preferimos chamar de exercício os comentários seguintes uma


vez que não se trata, em absoluto, de um estudo de caso, mas de
especulações em torno dos conceitos apresentados até aqui neste
capítulo, desenvolvidas com base em informações de uma pequena
cartilha de “Planejamento Estratégico” de uma autarquia autôno-
ma do estado de São Paulo (Iamspe, 2009), complementadas por
impressões colhidas em um breve programa de formação de que os
autores participaram na instituição.
Da nossa definição de sistema como “um conjunto de partes
interdependentes, dotado de objetivos” (TEIXEIRA; SALOMÃO;
TEIXEIRA, 2010, p. 111) apresentada no início do capítulo de-
preende-se naturalmente, no caso das organizações complexas ou
mesmo da concepção e gestão de políticas públicas (inclusive as
orientadas para pessoas), que deve haver mecanismos, instrumentos,
metodologias e/ou processos técnico-políticos para estabelecimento
dos objetivos do conjunto e os objetivos das partes, bem como as
formas e regras de relacionamento entre as partes, dada sua inter-
dependência.
O planejamento é o primeiro e um dos mais comuns desses
mecanismos, estabelecendo referenciais e objetivos comuns ou coe-
rentes com o do conjunto e entre as partes. Desde que realizado de
acordo com as necessidades dos diferentes momentos da organização
e tratado como processo e não como evento, o planejamento pode
incorporar os princípios e a linguagem sistêmica, representando uma
boa “tradução” dos conceitos da teoria dos sistemas para a prática
da gestão organizacional. Para tanto, é preciso que o próprio plane-
jamento se desenvolva com uma abordagem sistêmica, procurando
intencionalmente dotar as práticas e processos organizacionais de
coerência vertical, horizontal e no tempo.
| 50 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A coerência vertical pode ser estimulada por meio de adap-


tações sucessivas das camadas inferiores às diretrizes das camadas
superiores, o que se obtém com a elaboração e adoção de um pla-
nejamento e gestão estratégicos. Em ambientes em que se pratica
um planejamento mais participativo, o que é recomendável sempre
que possível, pode-se visualizar um processo de adaptações suces-
sivas tanto de cima para baixo, quanto de baixo para cima. Nesses
casos, o que chamamos de “camadas superiores” tem um sentido
muito mais conceitual, teleológico, relacionado a objetivos, do que
um sentido hierárquico, uma vez que as pessoas mais próximas dos
processos que ocorrem na base da hierarquia também influenciam
o estabelecimento dos objetivos de maior abrangência.
A coerência horizontal será dada, por sua vez, nos processos
de planejamento gerenciais e operacionais. Colocando de outra
forma, pode-se dizer que o planejamento dos níveis intermediários e
operacionais da organização ou da implantação de políticas deve-se
desenvolver e executar com base numa visão de processos, de cadeia
de trabalho, de balanceamento de cargas, de cliente e fornecedor
(interno e externo).
A coerência no tempo, por fim, tem de ser garantida desde
o início, com a previsão de momentos de revisão dos planos e
tratamento de problemas, objetivos e estratégias emergentes que
certamente sobrevirão após a realização das primeiras “rodadas” do
planejamento. A mudança de contexto, tecnologias, necessidades,
demandas e objetivos não deve ser tratada como exceção ou empe-
cilho, mas como cenário mais provável e até como oportunidade
de avanços ou solução de problemas.
Vamos, então, a seguir, fazer algumas reflexões, especulações mes-
mo, sobre como se dariam, na prática, essas adaptações estratégicas
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 51 |

na organização mencionada, ou ao menos sobre a parte delas que


é possível com as poucas informações disponíveis.

1.5 ESPECULAÇÕES EM TORNO DE UM EXEMPLO

BREVE HISTÓRICO
O Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual
(Iamspe) é “[...] uma entidade autárquica autônoma, sem fins lu-
crativos, com personalidade jurídica e patrimônio próprios. Atual-
mente, está vinculado à Secretaria de Gestão Pública do Estado de
São Paulo”. (Iamspe, 2009, p. 8) Sua finalidade é “Prestar assistência
médica e hospitalar, de elevado padrão, aos seus contribuintes e
beneficiários.” (Iamspe, 2009, p. 8)
Criado como departamento em 1952 (Departamento de
Assistência Médica ao Servidor Público do Estado de São Pau-
lo — Damspe), inaugurou, em 1961, o Hospital do Servidor
Público Estadual (HSPE), tendo-o sob sua responsabilidade até
os dias de hoje. Em 1966, desliga-se do Instituto de Previdência
do Estado de São Paulo (Ipesp), recebendo sua denominação
atual de Iamspe.
Apenas recentemente, em 2008, o instituto é transferido da
Secretaria de Saúde para a Secretaria de Gestão Pública.
O que ser percebe, pelas origens do Iamspe, mas ainda mais na
interação com seus servidores e no contato com o próprio servidor
estadual, é a identificação do instituto com a atividade médica
em si, muito mais do que com um plano de assistência à saúde
em sentido amplo. A força da imagem do Hospital do Servidor, a
excelência dos serviços prestados desde sua fundação (hoje já um
| 52 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

tanto depreciada por diversas razões) e a inegável qualidade de


suas equipes médicas e de enfermagem colaboraram enormemente
para essa identidade.
Nas últimas décadas, à semelhança da maioria dos serviços
públicos, o instituto passou a enfrentar problemas na prestação
de seus serviços, cuja demanda crescente enfrenta dificuldades
de atendimento, na qualidade e cobertura a que contribuintes e
beneficiários se acostumaram no passado. Tais dificuldades são
explicadas, ao menos parcialmente, pelos problemas de financia-
mento dos serviços.

DESTAQUES DO PLANEJAMENTO
ESTRATÉGICO 2008-2010
As declarações estratégicas apresentadas no Planejamento Es-
tratégico 2008-2010 (Iamspe, 2009, p. 9; 18-19) do instituto são
as seguintes:

MISSÃO:
Atuar na promoção da saúde, prevenção de doenças, assistência
e reabilitação dos doentes, garantir o acesso à rede de serviços,
própria ou contratada, por meio da gestão dos recursos, do ensino,
da pesquisa e do aprimoramento, contribuindo para a melhoria da
qualidade de vida dos seus contribuintes e beneficiários.

VISÃO:
Ser reconhecido [...] por oferecer aos seus contribuintes e benefi-
ciários maior cobertura no atendimento com excelência de serviços,
e também como:
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 53 |

I. formulador e controlador de políticas de promoção da saúde,


prevenção de doenças, assistência e reabilitação de doentes, com
foco no usuário;
II. organização pautada em critérios de equidade e integrali-
dade;
III. a melhor relação custo benefício para o usuário;
IV. serviço de fácil acesso para o usuário;
V. instituição com ampla rede de parcerias.

Será uma organização com maior autonomia, orientada para resul-


tados e pautada por valores éticos, com transparência e humanidade.

OS 12 OBJETIVOS ESTRATÉGICOS:
Sustentabilidade (a)
1. Promover a sustentabilidade orçamentária e financeira do
Iamspe.
2. Garantir a melhor relação custo/benefício para o usuário.
3. Adotar princípios modernos de governança corporativa.
Sistema de saúde (b)
4. Implantar e consolidar sistema baseado na prevenção das
doenças e na promoção da saúde, equilibrado quanto à prestação
de serviços médico/hospitalares.
5. Atingir sinistralidade menor ou igual a 75%.
6. Descentralizar a prestação de serviços médico/hospitalares.
Qualidade (c)
7. Adotar os critérios de equidade e integralidade na prestação
dos serviços.
8. Instituir eficiente rede de parcerias.
9. Agregar efetivo valor aos usuários.
| 54 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Processos (d)
10. Racionalizar e desburocratizar os processos de atendimento
e de prestação dos serviços.
11. Revisar e adequar os processos de trabalho administrativo.
12. Adequar e ampliar as ações referentes à tecnologia da informação.

COMENTÁRIOS SOBRE A MUDANÇA DE


“POSICIONAMENTO” ESTRATÉGICO DO IAMSPE
O plano estratégico de que foram extraídas as declarações acima
surge ao final de um longo processo de desequilíbrio financeiro,
com reflexos importantes na capacidade de expansão dos serviços
e também na qualidade dos mesmos.
Em um momento em que o País busca uma gestão orçamentária
mais rígida e em plena vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal,
o instituto apresentava déficits anuais em torno de 25 milhões de
reais, além da pressão pelo resgate da qualidade dos serviços.
A realidade colocou a instituição diante de uma necessidade
de mudança estratégica, se não em nome da sobrevivência, ao
menos para recuperar a qualidade dos serviços e atender aos
novos acordos estabelecidos com o governo. O Planejamento
Estratégico 2008-2010 (Iamspe, 2009) é, sem dúvida, uma res-
posta nesse sentido.
Duas mudanças no “posicionamento estratégico” do Iamspe
merecem ser destacadas no contexto deste capítulo:
•  Do foco anterior na qualidade da medicina “a fundo perdido”
ao foco na relação benefício-custo para o contribuinte e benefi-
ciário, com equilíbrio orçamentário e parâmetros de mercado.
•  Do foco em atividades “hospitalares” ao foco em “assistência
à saúde”.
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 55 |

EM BUSCA DE COERÊNCIA VERTICAL,


HORIZONTAL E NO TEMPO
Exemplificando as decisões típicas de cada nível no caso de uma
organização pública como o Iamspe, com base na teoria proposta por
Mesarovic e outros (MESAROVIC; MACKO; TAKAHARA, 1970)
comentada anteriormente (tópico 1.2; Figura 1.2), podemos traçar o
seguinte diagrama, convergindo para as questões relativas à gestão de
pessoas e RH:

Figura 1.6 Hierarquização de decisões na gestão de pessoas


• Estabilidade
DECISÕES DE ESTADO • Concurso
• Princípios doutrinários • Isonomia
• Marcos regulatórios • Aposentadoria integral
• Responsabilidade fiscal

DECISÕES DE GOVERNO • Contratos com OSs


• Convênios e parcerias
• Prioridades e estratégias de governo
• Terceirização de serviços
• Fazer ou contratar
• Cargos largos
• Amplitude de cargos
• Certificação profissional
• Valorização/Profissionalização
• Fortalecimento/formação de lideranças
• Remuneração/Politicas de mérito
• Remuneração (mercado/mérito)

DECISÕES SETORIAIS/ORGANIZACIONAIS
• Missão/Visão • Equilíbrio financeiro
• O que fazer vs. O que contratar • Ampliação de rede credenciada
• Como fazer e como contratar • Fortalecimento da gestão de parcerias
• Políticas, objetivos e projetos estratégicos

DECISÕES NA ÁREA (PESSOAS/RH)


• Quantidade próprios vs. terceiros
• Dimensionamento
• Especialistas vs. Gestores de contratos
• Recrutamento e seleção
• Formação médica vs. Formação gerencial
• Remuneração/Avaliação
• Carreiras médicas vs. Carreiras gerenciais
• Desenvlvimento; etc.

• Atribuições médicas vs. Gerenciais


DECISÕES DE CARGO • Critérios de avaliação
• Objetivos e metas
| 56 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Para a dimensão que queremos explorar neste capítulo, as duas


camadas iniciais, denominadas “Decisões de Estado” e “Decisões de
Governo”, devem ser tomadas como dados de contexto, ou melhor,
como decisões de camadas superiores que, desde que aceitas como vá-
lidas ou legítimas, demandam “adaptações estratégicas” das camadas
inferiores. Merecem destaque, no caso em análise, por exemplo, a
Responsabilidade Fiscal e a Terceirização de Serviços.
Vale a pena, neste ponto, um comentário sobre o significado de
“gestão estratégica” que adotamos neste texto. A literatura sobre
gestão estratégica e planejamento estratégico tende a valorizar os
processos “centrados na organização” em análise e a praticamente
ignorar os processos de adaptação estratégica que cabem às cama-
das inferiores, às organizações subordinadas a outras organizações
(como as secretarias, ministérios, empresas públicas, diretorias,
departamentos), ou, na linguagem sistêmica, as adaptações dos
objetivos das partes, em relação aos objetivos do todo. O risco
decorrente, no caso das organizações públicas, é realizar o pro-
cesso de análise estratégica “a partir do zero”, supervalorizando
o ambiente externo propriamente dito (sociedade, comunidade,
economia, clientes e concorrentes externos) e, consequentemente,
subvalorizando o ambiente “do Estado e do Governo” (marcos
legais, prioridades políticas e programas de governo). Adaptar-se
a políticas de governo legitimamente estabelecidas é também atuar
estrategicamente, além de fundamental para o fortalecimento
da democracia. Guardadas certas necessidades de garantia de
manutenção de serviços básicos, muito do que vulgarmente se
denomina atualmente, de forma pejorativa, como “descontinui-
dade administrativa”, pode ser mudança decorrente de projetos
políticos legitimados nas urnas.
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 57 |

Voltando ao caso em análise, tomemos como foco os dois princí-


pios destacados, a Responsabilidade Fiscal e a Terceirização de Serviços
e realização de parcerias, que assumimos como estabelecidos nas
camadas superiores. Lembramos que nosso objetivo neste trabalho
é somente explorar o processo de adaptação estratégica e a aplica-
ção da abordagem sistêmica à gestão de pessoas no setor público e
não o julgamento ou avaliação das políticas públicas efetivamente
implantadas.
Diante das pressões sociais e das decisões superiores de equilí-
brio orçamentário e de ampliação da cobertura do atendimento a
contribuintes e beneficiários, são tomadas, no nível da organização,
decisões estratégicas de equilíbrio orçamentário, de — suposição
nossa — mudança de posicionamento institucional, de “gerenciador
de serviços hospitalares” para “gerenciador de serviços de saúde”.
Em muitos sentidos, o documento do planejamento estratégico da
instituição (Iamspe, 2009) e as informações colhidas informalmente
no contato com os participantes do processo de formação de que
os autores participaram corroboram essa interpretação, a qual, no
entanto, é secundária para as finalidades deste trabalho. Interessa-nos
especular sobre o significado do que temos chamado de visão sistê-
mica aplicada à gestão de pessoas e também de adaptação estratégica.
Correndo o risco de simplificar exageradamente o significado
da mudança, cabe, nesta camada institucional — ou seja, da di-
reção geral da organização — firmar a alteração da sua posição de
“gerenciadora de hospital” para a de “gerenciadora de um plano
de saúde”. Em princípio, esse novo posicionamento parece uma
resposta coerente para o duplo desafio de, simultaneamente, expan-
dir a cobertura e equilibrar o orçamento. A expansão da cobertura
aumenta o potencial de receita, por evitar a perda de clientes e
| 58 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

evitar a sobrecarga do HSPE. Ao mesmo tempo, a expansão via


credenciamento de terceiros da iniciativa privada reduz os custos,
tanto por não requisitar investimentos em ativos, quanto por so-
mente ser necessário o custeio dos serviços efetivamente utilizados.
Cabe ressaltar que muitos dos planos de saúde privados, líderes de
mercado, mantém um hospital geral como unidade prioritária e
estratégica em suas operações. Portanto, a eventual mudança de
posicionamento estratégico do Iamspe não implica necessariamente
sequer no enfraquecimento do Hospital do Servidor, muito ao con-
trário. O mesmo se aplica às clínicas próprias do Iamspe localizadas
em municípios estratégicos.
Mas, uma vez aceita essa mudança de foco, o papel da instituição
passa a ser o de gerenciador de serviços de saúde para seus clientes,
serviços próprios ou de terceiros, podendo priorizar a elevação dos
índices de cobertura e qualidade, com redução de custos, indepen-
dentemente da vinculação.
Essa adaptação estratégica de primeiro nível do sistema, em res-
posta a pressões ambientais e das camadas superiores de governo,
gera um novo desafio, no entanto, de desenvolvimento de novas
competências na instituição para selecionar, contratar e gerenciar
o serviço de terceiros. Antes mesmo, a instituição precisa tomar
decisões sobre quando, em que casos e onde prestará os serviços
diretamente e quando contratará de terceiros. Também terá de de-
cidir como gerenciará a prestação dos serviços de terceiros e como
garantirá a padronização entre os serviços próprios e os contratados.
Afinal, não deve transparecer qualquer diferença entre contribuinte
e beneficiário.
Muitas outras prioridades, funções e processos organizacionais
devem ser revistos para completar essa primeira fase da adaptação.
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 59 |

Em mudança de tal porte, a própria estrutura organizacional teria


de ser revista, aumentando o balanceamento entre a importância de
áreas médicas e de áreas de convênios, gestão de contratos, aprovação
de procedimentos etc. Também o relacionamento entre essas áreas
deve ser disciplinado, o que colaboraria para o alcance da coerên-
cia horizontal nos processos da instituição. Estamos cientes das
inúmeras lacunas que deixamos atrás e ainda deixaremos à frente
neste exercício, cujo objetivo não é esgotar o assunto, mas ilustrar
o tema. Passemos, então, à reflexão sobre as decisões de adaptação
das camadas da gestão de pessoas e recursos humanos e de revisão
dos quadros e cargos.
É claro que, quanto mais descemos do topo aos níveis gerenciais
e operacionais da organização, multiplicam-se as funções e ramifi-
cam-se as especialidades, tornando difícil a cobertura de todas elas
em um trabalho como este. Então, tanto quanto fizemos até aqui,
apenas alguns exemplos serão explorados, sem qualquer pretensão
de esgotar o tema.
Dimensionamento de quadro: em resposta à nova ênfase dada
ao credenciamento de clínicas e laboratórios privados para o atendi-
mento aos beneficiários, é necessário um novo balanceamento entre
quadros médicos e de enfermagem e quadros técnicos, gerenciais e
de contratação, monitoramento e controle de terceiros.
Recrutamento e seleção: de forma análoga, buscando tanto a
coerência vertical com as novas estratégias organizacionais, quanto
a coerência horizontal com o novo perfil dos quadros profissionais,
o recrutamento e seleção deve passar a enfatizar a contratação de
atuários, prospectores de serviços, compradores e gestores de contra-
tos, cuidando apenas da manutenção ou do crescimento vegetativo
dos quadros médicos, de enfermagem e bioanálise, por exemplo.
| 60 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Formação: será necessário rever as necessidades de formação e


desenvolvimento, de modo a fortalecer os quadros (novos e atuais)
também nos perfis de contratador e gerenciador de serviços de
saúde, tanto para os novos contratados com formações diversas,
quanto para os quadros médicos, de enfermagem e de serviços de
exames. É importante frisar que, quando falamos de uma mudança
de perfil profissional, incorporando novas competências ao quadro
da instituição, não estamos falando necessariamente em substitui-
ção de pessoas. Ao contrário, a formação em saúde continua sendo
fundamental mesmo para o exercício das funções de gerenciados de
serviços, que, de resto, continuam sendo serviços de saúde. Mas o
desenvolvimento ou fortalecimento de novas competências a esse
quadro é importante até mesmo para sua manutenção e valorização.
Carreira e competências: necessidade de criação de “atalhos
horizontais” para gestores médicos e enfermeiros para a função de
gerenciamento de terceiros. Criação de caminhos em Y para permitir
a derivação de profissionais técnicos para a carreira gerencial ou a
progressão na carreira técnica.
Avaliação e remuneração: criação de mecanismos de valorização
“equivalente” de carreiras médicas e de gerenciamento de serviços
de saúde (reforçando que as segundas podem e devem ser ocupa-
das também por profissionais com formação em áreas de saúde),
incluindo a revisão de metas e instrumentos de avaliação, adequadas
a cada área e função.
Desligamento: é possível também que seja necessária a criação
de programas de desligamento e/ou recolocação, na eventualidade
de excessos de quadros ou dificuldades localizadas de adaptação à
nova realidade.
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 61 |

1.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como afirmamos em vários momentos, o planejamento, em


um sistema sócio-técnico-político, que se pretende em permanen-
te adaptação a novos desafios e estratégias, não deve ser encarado
como um evento, com começo, meio e fim, mas como um processo
permanente. É com essa consciência que os planejadores poderão
aprimorá-lo progressivamente e manter sua coerência no tempo.
Ao encerrar este capítulo, deixamos claro o entendimento das
dificuldades de implantação e manutenção de um planejamento ver-
dadeiramente estratégico, sistêmico e de longo prazo no setor público
brasileiro. Os tempos e os marcos regulatórios da política brasileira
conspiram ainda contra essa possibilidade, multiplicando os atores
sociais envolvidos, e de forma muito desigual entre eles, pela fraqueza
dos nossos mecanismos de representação e participação social.
Nesse contexto, é dificultada a manutenção de sistemas integrados
de planejamento de curto, médio e longo prazos, mesmo em áreas
básicas ou típicas do serviço público e de utilidade pública.
A criação e manutenção de mecanismos mais permanentes,
definidos em lei, de transparência e governança, como alguns que
já começam a existir ainda de forma embrionária, talvez seja um
bom caminho nessa direção.

1.7 REFERÊNCIAS

ACKOFF, R. Planejamento empresarial. Rio de Janeiro: Livros


Técnicos e Científicos, 1976.
BERTALANFFY, L. Teoria geral dos sistemas. Petrópolis:
Vozes, 1973.
| 62 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

CAPRA, F. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 2007.


CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra,
1999.
IAMSPE. Planejamento Estratégico 2008-2010. São Paulo,
SP Iamspe - Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público
Estadual / Imprensa Oficial do Estado, 2ª edição, 2009.
LEVY, Evelyn. Incentivos e condições para o desempenho dos
servidores públicos: conclusões a partir de um estudo sobre Austrália
e Brasil. In VII CONGRESSO INTERNACIONAL DEL CLAD
SOBRE LA REFORMA DEL ESTADO Y DE LA ADMINIS-
TRACIÓN PÚBLICA. Cartagena de Indias, 30 oct./02 nov. 2012.
Longo, M. F. VII Congreso Internacional del CLAD sobre la
Reforma del Estado y de la Administración Pública, Panamá, oct.
2003, p. 28-31.
KAHNEMAN, D. Rápido e devagar - duas formas de pensar.
Rio de Janeiro: Objetva, 2012.
MESAROVIC, M. D.; MACKO, D.; TAKAHARA, Y. Theory of
multi-level hierarchical systems. Madison: Academic Press, 1970.
OCDE. (2010). Avaliação da Gestão de Recursos Humanos no
Governo - Relatório da OCDE - Brasil 2010 - Governo Federal.
Brasil: OCDE.
SENGE, P. A quinta disciplina. Rio de Janeiro: Best Seller, 1991.
SIMON, H. Teoria das organizações. Rio de Janeiro: FGV,
1967.
TEIXEIRA, H. J.; SANTANA, S. M. Remodelando a gestão
pública. São Paulo: Edgard Blücher, 1994.
TEIXEIRA, H. J.; SALOMÃO, S. M.; TEIXEIRA, C. J.
Fundamentos de administração: a busca do essencial. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2010.
VISÃO SISTÊMICA E GESTÃO DE PESSOAS | 63 |

ZACCARELLI, S. B.; KWASNICKA, E. L. Hierarquização de


decisões da função pessoal. Revista de Administração, Volume 13,
p. 47-62. São Paulo: Instituto de Administração – FEA-USP 1978.
CAPÍTULO 2
Gestão de pessoas articulada
por meio de competências

JOEL SOUZA DUTRA


Mestre em Administração de Empresas pela FGV-
SP e doutor em Administração pela USP. Atualmente
é Professor livre-docente da FEA-USP e Diretor do
Departamento de Recursos Humanos da USP.
GESTÃO DE PESSOAS ARTICULADA POR MEIO DE COMPETÊNCIAS | 67 |

2.1 INTRODUÇÃO

A gestão de pessoas na administração pública vem se renovan-


do com grande intensidade desde a década de 1990. Na primeira
década dos anos 2000, entretanto, essa área deu grande salto em
direção à modernização, com feitos importantes, tais como gestão
do desenvolvimento dos servidores, sistemas de avaliação, revisão
de cargos e carreira e, mais recentemente, revisão da remuneração.
Há um esforço muito grande em tornar o servidor protagonista
de seu desenvolvimento e de sua carreira. Para tanto, o investi-
mento em tornar claros os critérios de ascensão e valorização desse
profissional tem sido o grande desafio da administração pública.
Este capítulo tem o objetivo de auxiliar a reflexão sobre o
processo de valorização do servidor e oferecer parâmetros e ins-
trumentos para a estruturação de sistemas de carreira e avaliação.
Como podemos valorizar as pessoas a partir de seu mérito e de sua
contribuição efetiva para a organização? Espera-se que este capítulo
possa oferecer algumas contribuições também para essa reflexão.
| 68 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

2.2 AS BASES PARA UM NOVO MODELO


DE GESTÃO DE PESSOAS

Um modelo de gestão deve oferecer um conjunto de conceitos


e referenciais que, a um só tempo, nos permita compreender
a realidade organizacional e disponibilize instrumentos para
agirmos sobre determinada realidade (FISCHER, 2001, 2002).
O modelo de gestão se materializa nas organizações por meio
de políticas e práticas que permitem ao gestor medir os riscos
das decisões e avaliar, posteriormente, seus impactos. No caso
da gestão de pessoas, as políticas e práticas deveriam permitir ao
gestor avaliar o risco de uma decisão sobre cada uma das pessoas
diretamente envolvidas, sobre os demais indivíduos e sobre a
organização como um todo.
Vamos analisar inicialmente a questão da compreensão da reali-
dade organizacional e, posteriormente, os instrumentos para gestão
dessa realidade.
Para a compreensão da realidade da gestão de pessoas nas organi-
zações vamos nos valer dos conceitos de competência, complexidade
e espaço ocupacional. Vale destacar que a conceituação se aplica a
qualquer tipo de instituição, tanto pública quanto privada.

COMPETÊNCIA
A competência pode ser atribuída a diferentes atores. De um
lado, temos a organização com um conjunto de competências que
lhe são próprias. Essas competências são oriundas da gênese e do
processo de desenvolvimento da organização e são concretizadas
no seu patrimônio de conhecimentos, o qual estabelece as vanta-
gens competitivas da instituição no contexto em que ela se insere.
GESTÃO DE PESSOAS ARTICULADA POR MEIO DE COMPETÊNCIAS | 69 |

De outro lado, temos as pessoas com seu conjunto de competências,


que podem ou não estar sendo aproveitadas pela organização.
Vamos utilizar como uma primeira definição para a competên-
cia aquela estabelecida por Fleury e Fleury (1999) que é o “saber
agir responsável e reconhecido, que implica mobilizar, integrar,
transferir conhecimentos, recursos, habilidades, que agreguem
valor econômico à organização e valor social ao indivíduo”.
Ao colocarmos organização e pessoas lado a lado, podemos
verificar um processo contínuo de troca de competências. A orga-
nização transfere seu patrimônio para as pessoas, enriquecendo-as
e preparando-as para enfrentar novas situações profissionais e
pessoais, dentro ou fora dela. As pessoas, ao desenvolverem sua
capacidade individual, transferem para a organização seu apren-
dizado, preparando-a para enfrentar novos desafios.
Desse modo, são as pessoas que, ao colocarem em prática o
patrimônio de conhecimentos da organização, concretizam as
competências organizacionais e fazem a sua adequação ao contexto.
Ao utilizarem, de forma consciente, esse patrimônio, as pessoas
validam-no ou implementam as modificações necessárias para o
seu aprimoramento. A agregação de valor das pessoas é, portan-
to, sua contribuição efetiva ao patrimônio de conhecimentos da
organização, permitindo-lhe manter suas vantagens competitivas
no tempo.
Há, portanto, uma relação íntima entre as competências orga-
nizacionais e as individuais. O estabelecimento das últimas deve
estar vinculado à reflexão sobre as primeiras, uma vez que tais
competências são influenciadas mutuamente.
A competência é compreendida por muitas pessoas e por alguns
teóricos como sendo o conjunto de conhecimentos, habilidades e
| 70 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

atitudes necessárias para que a pessoa desenvolva suas atribuições


e responsabilidades. Essa forma de encarar a competência tem se
mostrado pouco instrumental, já que o fato dos indivíduos possuí-
rem um determinado conjunto de conhecimentos, habilidades e
atitudes não garante que irão agregar valor para a organização. Para
melhor compreendermos o conceito de competência individual,
é importante discutirmos também o de entrega.
Embora, na prática organizacional, as decisões sobre as pessoas
sejam tomadas em função do que elas entregam para a organização,
observamos que os sistemas formais de gestão, em geral baseados no
conceito de cargos e funções, veem os profissionais pelo que fazem,
por seu tempo na organização ou por sua formação. Esse é um dos
principais descompassos entre a realidade e o sistema formal de
gestão, pois ao olhar as pessoas considerando suas atribuições e não
suas entregas, cria-se uma lente que distorce a realidade.
Essa é uma importante transformação na forma de vermos as
pessoas na organização. Fomos educados a avaliá-las pela descri-
ção formal de suas funções ou atividades, mas, intuitivamente,
valorizamos as pessoas por seus atos e realizações. Adicional-
mente, somos pressionados pelo sistema formal e pela cultura
de gestão a olharmos a descrição formal, gerando distorções em
nossa percepção da realidade. Por exemplo: suponhamos dois
funcionários numa equipe, ambos com as mesmas funções e ta-
refas e remunerados e avaliados por esses parâmetros. Um deles,
quando demandado para resolver um problema, o soluciona com
muita eficiência e eficácia, sendo, portanto, uma pessoa muito
valiosa. O outro não deixa o problema acontecer, sendo, assim,
muito mais valioso; no entanto, este não é reconhecido pela
chefia ou pela organização.
GESTÃO DE PESSOAS ARTICULADA POR MEIO DE COMPETÊNCIAS | 71 |

Ao percebermos as pessoas por sua capacidade de entrega, por


seu saber agir responsável e reconhecido da definição de Fleury e
Fleury (1999), temos uma perspectiva mais adequada para avaliá-
-las, para orientar o seu desenvolvimento e para estabelecermos
recompensas.

PADRÕES DE COMPLEXIDADE
O conceito de complexidade nos permite avaliar o nível da
entrega das pessoas. O conceito de competência não é suficiente
para explicar toda a realidade organizacional, por isso relacionamos
a esse conceito o de complexidade. O entendimento da comple-
xidade fornece uma visão do indivíduo em sua relação dinâmica
com a organização. Esse é um aspecto importante para responder
às críticas e limitações apontadas por autores como Zarifian (2001)
sobre o uso do conceito de competência atrelado à ideia de pos-
to de trabalho ou cargo. No mais, por meio da complexidade é
possível perceber o desenvolvimento da pessoa na organização e
estabelecer as bases para sua valorização.
O conceito de complexidade começou a ser utilizado por Ja-
ques (1994) na década de 1950, que quando procurava entender
as relações organizacionais, e por Dalton e Thompson (1986), na
década de 1970, que buscavam compreender o processo de desen-
volvimento das pessoas nas organizações. Verificamos que, desde a
publicação dos trabalhos pioneiros, as organizações apropriaram-se
progressivamente do conceito em suas iniciativas para aprimorar
os sistemas de gestão de pessoas.
As organizações foram enfrentando dificuldades crescentes para
distinguir e valorizar as pessoas com base em cargos, em função de
novas propostas de organização do trabalho. Por exemplo, até bem
| 72 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

pouco tempo atrás, podia-se dizer que um supervisor de produção


agregava mais valor que um ajudante de produção. Hoje já não se
pode afirmar isso, porque não existe mais o ajudante de produção,
mas sim um operário multifuncional e polivalente; não existe mais
o supervisor, mas sim grupos semiautônomos e autogeridos. An-
tes, podia-se dizer que um diretor da empresa agregava mais valor
do que um gerente. Hoje existe um gerente de uma unidade de
negócio que fatura 500 milhões de reais por ano que agrega mais
valor do que um diretor de outra unidade de negócio que fatura
50 milhões de reais no mesmo período.
Com a fragilidade dos cargos como elementos diferenciado-
res, o mercado passou a utilizar a complexidade das atribuições e
responsabilidades como fator de diferenciação.
A noção de complexidade sempre esteve presente nos critérios
de classificação dos cargos. Mas, com a redução da importância
do cargo como fator de diferenciação, a complexidade passou a
ocupar o primeiro plano.
Há também duas relações importantes entre a complexida-
de e o desenvolvimento de pessoas na organização. A primeira
decorre da própria definição de desenvolvimento, que pode ser
entendido como a capacidade de assumir e executar atribuições
e responsabilidades de maior complexidade. A segunda refere-se
à ligação que o conceito de complexidade permite efetuar entre
desenvolvimento e remuneração. Se a pessoa se desenvolve ao
assumir responsabilidades e atribuições de maior complexidade e
se, ao fazê-lo, agrega mais valor para o negócio, é justo que deva
ser valorizada adequadamente.
A complexidade nos ajuda a compreender a realidade, a agir
sobre ela e a integrar desenvolvimento e valorização.
GESTÃO DE PESSOAS ARTICULADA POR MEIO DE COMPETÊNCIAS | 73 |

ESPAÇO OCUPACIONAL
O terceiro conceito é decorrente da correlação existente entre
complexidade e entrega. Ao considerarmos que uma pessoa agrega
mais valor à medida que assume responsabilidades e atribuições mais
complexas, concluímos que não é necessário promovê-la para que
possa agregar ainda mais valor. O indivíduo pode ampliar o nível
de complexidade de suas atribuições e responsabilidades sem mudar
de cargo ou posição na organização. Vamos chamar esse processo
de ampliação do espaço ocupacional. Esta acontece em função de
duas variáveis: as necessidades das organizações e a competência da
pessoa em atendê-las, conforme a Figura 2.1:

Figura 2.1 Variáveis que delimitam o espaço ocupacional da


pessoa em uma determinada organização

Necessidades
da organização

ESPAÇO
OCUPACIONAL
NA
Competências ORGANIZACÃO
individuais
e coletivas

Temos observado que a ampliação do espaço ocupacional é outra


característica comum da relação entre a pessoa e seu trabalho. Há
uma tendência das pessoas mais competentes serem demandadas
a enfrentar desafios e, à medida que respondem bem, recebem
| 74 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

desafios maiores. Os sistemas tradicionais não conseguem dar res-


postas adequadas a essa característica, primeiramente porque reco-
nhecem as pessoas pelo que elas fazem e não pelo que elas entregam;
e, em segundo lugar, porque não conseguem mensurar a ampliação
do espaço ocupacional dos indivíduos.
Esse fato tem contribuído para a existência de muitas injustiças
nas organizações, por exemplo, sobrecarregar a pessoa mais com-
petente com atribuições complexas e exigentes sem que ela seja
reconhecida por isso; ou a chefia ficar tão dependente da pessoa
mais capacitada, que esta é bloqueada em qualquer possibilidade
de ascensão profissional.
É importante percebermos a ampliação de espaço ocupacional
como uma indicação do desenvolvimento da pessoa e da sua maior
capacidade de agregar valor, devendo, portanto, estar atrelada a
algum processo de valorização.

2.3 INSTRUMENTOS PARA A


GESTÃO DE PESSOAS

Ao acompanharmos diversos casos no Brasil, pudemos perceber


que as organizações que estão obtendo bons resultados na gestão de
pessoas têm aplicado os conceitos de competência, complexidade e
espaço ocupacional de forma a permitir que o gestor possa avaliar
riscos e acompanhar os resultados de suas decisões. Para tanto, o
conjunto de políticas e práticas de gestão de pessoas deve possuir
as seguintes propriedades:
•  Integração entre si – essa integração permite ao gestor avaliar
os desdobramentos de uma decisão relativa ao desenvolvimento
GESTÃO DE PESSOAS ARTICULADA POR MEIO DE COMPETÊNCIAS | 75 |

de um servidor de forma articulada com o sistema de carreira,


com o sistema de valorização, e com todos os demais aspectos
da gestão de pessoas dentro da organização.
•  Integração com a estratégia organizacional – é fundamental
que o conjunto de políticas e práticas de gestão de pessoas esteja
alinhado com os objetivos da organização, seus valores e missão.
•  Integração com as expectativas das pessoas – é essencial, tam-
bém, que essas políticas e práticas sejam coerentes com as ex-
pectativas das pessoas para que tenham a legitimidade necessária
para sua efetividade.
Percebemos que a ausência de qualquer uma dessas propriedades
torna as políticas e práticas de gestão de pessoas um conjunto de
normas burocráticas que visam a controlar o gestor e suas ações em
vez de orientá-lo em suas decisões. Infelizmente, essa é a realidade
na maior parte das organizações brasileiras, tanto públicas quanto
privadas. Nesse caso, as políticas e práticas utilizadas têm as suas
bases formadas na administração científica, campo em que as pessoas
são vistas como responsáveis por um conjunto de atividades ou fun-
ções. Essa percepção tem sido responsável por distorções na análise
e interpretação da realidade organizacional, gerando instrumentos,
processos e metodologias inadequados para atuar sobre tal realidade.
Essas distorções vêm sendo responsáveis por ocorrências, tais como:
•  Instrumentos para gestão de difícil compreensão e utilização
por parte dos gestores, pessoas e pelos próprios profissionais
especializados.
•  Desintegração entre as várias políticas e práticas de gestão
de pessoas. É comum encontrar sistemas de desenvolvimento e
valorização que estimulam comportamentos diferentes e, even-
tualmente, conflitantes.
| 76 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

•  Desorientação para tratar problemas na gestão de pessoas, com


a proposição de soluções tópicas, desarticuladas entre si e com a
estratégia organizacional. Há uma tendência a estabelecer priorida-
des em função das situações, áreas ou pessoas que mais pressionam.
•  Descrédito e insegurança em relação aos instrumentos de
gestão, uma vez que há pressão para solucionar os problemas sem
a clara compreensão da realidade organizacional. Isso conduz,
muitas vezes, à busca de modismos ou de propostas “moderno-
sas” de gestão, sem que produzam os resultados esperados pela
organização e pelas pessoas.
Essas distorções ocorrem porque as bases em que estão assentados
os conceitos e os instrumentos são movediças. Ou seja, a forma pela
qual as pessoas são referenciadas, analisadas, diferenciadas e reco-
nhecidas está assentada em alicerces que são alterados em função das
pressões recebidas, tanto do ambiente interno quanto do externo.
Com a instabilidade desses alicerces, as pessoas têm dificuldade de
se localizar na organização, de avaliar com clareza suas perspectivas e
de estabelecer um projeto profissional alinhado com as expectativas
e necessidades da organização. Esta, por sua vez, tem dificuldade de
deixar clara a sua expectativa em relação às pessoas.
Esses problemas são agravados quando se buscam sistemas fe-
chados de gestão, os chamados pacotes, colocando-os em prática a
qualquer custo. É como se construíssemos um modelo e tentássemos
colocar a realidade dentro dele. O resultado é maior dificuldade
para compreender a realidade e para alinhar as expectativas da
organização e das pessoas.
Ao analisarmos o aprimoramento do uso do conceito de
competência pelas empresas podemos identificar quatro estágios, de-
limitados em função da abrangência e impacto na gestão de pessoas.
GESTÃO DE PESSOAS ARTICULADA POR MEIO DE COMPETÊNCIAS | 77 |

Primeiro estágio – Competência como base para movimen-


tação e desenvolvimento de pessoas
Nesta fase, o uso do conceito está centrado na concepção de
McClelland (1990) e Boyatzis (1982), que é concebida com base
na observação de competências profissionais diferenciadoras. Essas
competências, identificadas no estudo de histórias de sucesso, servem
de padrão para analisar as demais pessoas da empresa e para orientar
os processos de seleção de candidatos a emprego.
A grande crítica efetuada a esse procedimento é o fato da mes-
ma caracterização de competência ser aplicada a todas as pessoas
indistintamente. No final dos anos 1970 e início dos anos 1980,
os conceitos eram aplicados a pessoas tidas como estratégicas.
Ao se aplicar a definição das competências diferenciadoras de
forma indiscriminada, verificava-se que as exigências sobre uma
pessoa em posição de gerência operacional eram substancial-
mente diferentes das exigências sobre uma pessoa em posição
de gerência estratégica.
Segundo estágio – Competência diferenciada por nível de
complexidade
Ao longo dos anos 1980, as organizações foram criando escalas
de diferenciação por níveis de complexidade, de forma natural e
não consciente. As escalas de complexidade se apresentavam como
diferentes níveis de entrega da competência.
Nesta fase, surgiram alguns desconfortos em relação ao uso do
conceito de competência. Os principais foram:
•  Vínculo da competência a trajetórias de sucesso, uma vez que
o sucesso de ontem não reproduz o de amanhã.
•  Desvínculo das competências em relação aos objetivos estra-
tégicos da empresa.
| 78 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

•  Necessidade de utilização do conceito para as demais políticas


e práticas de gestão de pessoas da empresa, tais como valorização,
avaliação e carreira.
Esses desconfortos criam as bases para o surgimento do terceiro
estágio.
Terceiro estágio – Competência como conceito integrador da
gestão de pessoas e desta com os objetivos estratégicos da empresa
Quando Prahalad e Hamel (1990) concebem os conceitos de
competência organizacional, inicia-se a discussão sobre compatibi-
lizar as competências organizacionais e humanas. Dessa forma, as
competências humanas não seriam mais derivadas das trajetórias
de sucesso de pessoas dentro da organização, mas sim dos objetivos
estratégicos e das competências organizacionais.
Esta fase dá início a uma nova forma de se olhar para a gestão de
pessoas, buscando não só a integração com os objetivos estratégicos
da organização, mas também uma integração da gestão de pessoas
em si. A questão mais importante nesse momento era a forma de
valorizar os indivíduos em função do seu mérito, ou seja, do seu
nível de entrega para a organização. As primeiras tentativas de
utilização de competências para valorizar as pessoas na forma de
remuneração foram frustradas, principalmente porque se tentou
atrelá-las a habilidades dominadas pelos profissionais. Como vimos,
habilidades não garantem a entrega, e a remuneração assentada
nas mesmas mostrou-se frágil para dar conta de toda a realidade
organizacional. A remuneração baseada em habilidades apresentou
algum resultado quando aplicada para níveis operacionais (HIPÓ-
LITO, 2001). Os grandes avanços vieram quando começamos a
utilizar, com maior ênfase, o conceito de entrega e a diferencia-
ção da remuneração em função dos conceitos de complexidade.
GESTÃO DE PESSOAS ARTICULADA POR MEIO DE COMPETÊNCIAS | 79 |

Nossas pesquisas mostram que o mercado brasileiro já se organiza


nesses termos, ou seja, encontramos alta correlação entre comple-
xidade das entregas e remuneração (HIPÓLITO 2001).
O conceito de complexidade permitiu estender a noção de com-
petência para remuneração, avaliação e carreira, possibilitando,
assim, o seu uso como um conceito integrador da gestão de pessoas.
Durante a década de 1990, foi possível observar a rápida evolução
do uso do conceito de competência no aprimoramento da gestão
de pessoas. Hoje podemos dizer que o uso associado das ideias de
competência e complexidade explica a gestão de pessoas na organi-
zação moderna e nos permite uma gestão mais apurada.
Essa gestão mais apurada oferece para os gestores um conjunto
de instrumentos que permite a avaliação das repercussões de qual-
quer decisão sobre as pessoas, e sobre a organização e também o
acompanhamento por parte do gestor dos impactos de suas decisões.
O desconforto existente nessa fase é em relação à forma como as
pessoas estão absorvendo os conceitos de competência para orientar
seu próprio desenvolvimento.
Quarto estágio – Apropriação pelas pessoas dos conceitos de
competência, complexidade e espaço ocupacional
Em nossas pesquisas no Brasil, temos verificado que as empresas
que conseguiram grandes avanços na gestão de pessoas trabalharam
em duas frentes de forma simultânea. De um lado, aprimoraram
seus sistemas de gestão de pessoas e, de outro, estimularam os in-
divíduos a construírem seus projetos de carreira e desenvolvimento
profissional.
A apropriação, pelas pessoas, do sistema de gestão para orientar
o seu próprio desenvolvimento e a sua carreira é fundamental para
que o sistema permaneça vivo e em contínuo aperfeiçoamento.
| 80 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O sistema de gestão corre o risco de se tornar um ritual burocrático


quando as pessoas não o compreendem, não o utilizam e não pres-
sionam a organização a aprimorá-lo do mesmo para atender suas
necessidades e expectativas.
Poucas organizações no Brasil estão neste estágio do uso dos
conceitos. Verificamos, entretanto, que a evolução nessa direção é
inexorável. Ao compreenderem que o uso dos conceitos de compe-
tência, complexidade e espaço ocupacional estão se desenvolvendo
para elas, e não somente para a empresa, as pessoas tendem a abraçar
o sistema de gestão de pessoas e utilizá-lo para orientar seu projeto
profissional.
Cabem aqui alguns esclarecimentos. Segundo Stamp (1989), as
pessoas lidam com maior complexidade ao ampliarem o seu nível
de abstração em relação à realidade em que vivem. O processo de
desenvolvimento pessoal pressupõe essa ampliação. Dessa forma, ao
lidar com um determinado nível de complexidade em sua carreira
atual, quando mudar de carreira, não importa para onde vá, o pro-
fissional saberá conviver com um nível equivalente de complexidade.
Assim, aprendendo a trabalhar em níveis mais altos de complexidade
e abstração, o indivíduo estará se desenvolvendo para si mesmo, não
importando seu destino futuro na empresa ou no mercado.

2.4 IDENTIFICAÇÃO DAS


COMPETÊNCIAS INDIVIDUAIS

As entregas esperadas das pessoas que asseguram a continuidade


e o crescimento da organização são caracterizadas por um conjunto
de competências. Estas podem ser definidas com base na estratégia
GESTÃO DE PESSOAS ARTICULADA POR MEIO DE COMPETÊNCIAS | 81 |

e nos objetivos organizacionais e negociais da empresa (FLEURY;


FLEURY, 1999).
A descrição das competências e caracterização dos níveis de com-
plexidade pode ser efetuada tomando por base diferentes aspectos
da empresa. Os mais utilizados têm sido:
•  Competências organizacionais ou do negócio – baseando-se
na caracterização dos aspectos diferenciais e nos pontos fortes da
organização, podem-se determinar as competências individuais.
Por exemplo: se um dos aspectos que diferenciam a empresa é a
inovação em produtos, é natural que as competências individuais
relativas à manutenção e desenvolvimento dessa excelência são
fundamentais. Nesse caso, poderíamos ter como competências
essenciais a geração e disseminação de conhecimentos, trabalhos
em parceria ou em equipe etc.
•  Processos críticos para a organização ou negócio – a carac-
terização de quais são os processos críticos para a organização
ou negócio ajuda na identificação de competências individuais
para a manutenção ou desenvolvimento desses processos. Caso
tenhamos como um processo crítico, por exemplo, a operação,
poderemos identificar como competências essenciais análise e
solução de problemas, liderança e trabalho em equipe, orientação
estratégica etc.
•  Grupos ou carreiras profissionais – uma forma comum para
identificação das competências individuais é a caracterização dos
diferentes grupos profissionais necessários para a organização ou
negócio e o processo de crescimento profissional de cada grupo.
Pode-se considerar, por exemplo, em uma determinada organiza-
ção, a existência dos seguintes grupos ou carreiras profissionais:
gerencial, tecnológica e administrativo-financeira. Na carreira
| 82 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

gerencial, seriam competências essenciais: orientação estratégica,


liderança, gestão de processos de mudança, gestão de recursos.
É comum utilizarmos uma combinação dessas diferentes formas,
de modo a termos maior precisão em relação à caracterização das
competências individuais. Na caracterização dessas competências,
são necessários alguns cuidados, quais sejam:
•  As competências devem ser observáveis para que possam ser
acompanhadas. É comum encontrar descrições extremamente
genéricas e vagas das competências desejadas ou descrições efe-
tuadas com base em comportamentos desejáveis, cuja observação
é difícil e com margem a interpretações ambíguas. As descrições
devem retratar as entregas esperadas, de forma a serem obser-
vadas tanto pela própria pessoa como pelos responsáveis por
acompanhar e dar feedback. Cabe notar que qualquer descrição
terá um caráter subjetivo. Essa subjetividade, porém, poderá ser
minimizada com a clareza com que se define a expectativa da
organização em relação à pessoa.
•  A quantidade de competências definidas para o acompanha-
mento não deve ser grande, pois isso dificultará o acompanha-
mento além de representar uma falta de estímulo aos responsáveis
pelo feedback. A quantidade recomendada é de 7 a 12 competên-
cias para caracterizar as expectativas da organização ou negócio.
•  As competências devem ser graduadas em termos da comple-
xidade da entrega. Essa graduação permite um melhor acom-
panhamento da evolução da pessoa em relação à sua entrega
para a organização. Como o desenvolvimento do profissional
é observado de acordo com o nível da complexidade de suas
atribuições e responsabilidades, à medida que graduamos as
competências em relação à complexidade da entrega esperada,
GESTÃO DE PESSOAS ARTICULADA POR MEIO DE COMPETÊNCIAS | 83 |

temos uma escala mais adequada para acompanharmos o desen-


volvimento do indivíduo.
Esse último aspecto merece maior atenção. Os sistemas de
desenvolvimento com base em competências mais recentes são
elaborados buscando estabelecer uma escala para as competên-
cias. A escala geralmente utilizada é a complexidade da entrega.
Em pesquisa recente efetuada no Brasil por meio do Programa
de Estudos em Gestão de Pessoas (PROGEP) da FIA-FEA-USP,
constatamos uma alta correlação entre o nível de complexidade
das entregas e o posicionamento do profissional na empresa e,
também, com os níveis salariais. Podemos afirmar, portanto, que
ao acompanharmos as entregas da pessoa em diferentes níveis de
complexidade, estaremos acompanhando sua evolução em termos
profissionais.
Com as pesquisas realizadas por Jaques (1978, 1994) e Stamp
(1989), verificamos que quando uma pessoa aprende a lidar com um
determinado nível de complexidade organizacional ou profissional
isso passa a constituir-se em um patrimônio para ela. Patrimônio
esse que o profissional levará para onde for. Assim sendo, ao esta-
belecermos uma régua com base na complexidade da entrega das
pessoas, temos um parâmetro confiável para estimular, oferecer
suporte e acompanhar o desenvolvimento profissional.

2.5 COMENTÁRIOS FINAIS

As reflexões apresentadas neste trabalho não pretendem ser con-


clusivas, mas apenas indicar alguns caminhos para a pesquisa e
trabalhos na gestão de pessoas em organizações públicas.
| 84 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Vivemos um momento extremamente rico para a realização de


pesquisa e reflexões sobre a gestão de pessoas, pois, por um lado,
abre-se um espaço para novas proposições, já que os conceitos
tradicionais não mais atendem às necessidades das organizações
e das pessoas, e, por outro lado, não existem conceitos e práticas
consagradas para ocupar o espaço que se abre.
Os cargos, como um dos principais determinantes do compor-
tamento dos indivíduos nas organizações, particularmente nas pú-
blicas, criados por lei e em boa parte ocupados mediante concursos,
não são mais suficientes para modernização da gestão de pessoas.
É necessário incorporar novos conceitos como competência, con-
forme apresentado neste capítulo.
Como combinar tradição, legislação e exigências da modernidade
é uma grande questão para o setor público.

2.6 REFERÊNCIAS

BOYATZIS, R. E. The competent manager: a model for effec-


tive performance. Wiley, New York, 1982.
DALTON, G.; THOMPSON, P. Novations: strategies for career
management. EUA, 1986.
DUTRA, J. S. Gestão por competências. São Paulo: Gente,
2001.
EBOLI, M. Universidades corporativas. São Paulo, Schmukler,
1999.
FISCHER, A. O conceito de modelo de gestão de pessoas:
modismo e realidade em gestão de recursos humanos nas empresas
brasileiras. In: DUTRA, J. S. (Org.). Gestão por competências.
São Paulo: Gente, 2001.
GESTÃO DE PESSOAS ARTICULADA POR MEIO DE COMPETÊNCIAS | 85 |

__________. Um resgate conceitual e histórico dos modelos de


gestão de pessoas. In: FLEURY, M. T. et al. As pessoas na organi-
zação. São Paulo: Gente, 2002.
FLEURY, A.; FLEURY, M. T. Estratégias empresariais e for-
mação de competências. São Paulo: Atlas, 1999.
HIPÓLITO, J. A. Administração salarial. São Paulo: Atlas,
2001.
JAQUES, E.; CASON, K. Human capability. Falls Church, VA,
Cason Hall, 1994.
JAQUES, E. Levels of abstraction in human action, Heinemann
Educational Books, London, 1978.
LAWLER, E. Competencies: a poor foundation for the new
pay. Compensation and Benefits Review, p. 20-26, nov./dez. 1996.
MCCLELLAND, D. C.; SPENCER, L. M. Competency
assessment methods: history and state of the art. Hay McBer
Research Press, 1990.
PRAHALAD, C. K.; HAMEL, G. The core competence of the
corporation. Harvard Business Review, p. 79-91, May/June 1990.
STAMP, G. The individual, the organization and the path to
the mutual appreciation, Personnel Management, v. 21, n. 7,
July 1999.
ZARIFIAN, P. Objetivo competência: por uma nova lógica
São Paulo: Atlas, 2001.
CAPÍTULO 3
Um modelo para compreender
as possibilidades de desenvolvimento
dos gestores públicos

HÉLIO JANNY TEIXEIRA


Doutor e Livre-docente em Administração pela
FEA-USP e professor da mesma instituição.

SÉRGIO MATTOSO SALOMÃO


Administrador pela FEA-USP e pesquisador da
Fundação Instituto de Administração (FIA).
UM MODELO PARA COMPREENDER AS POSSIBILIDADES....... .... ..........
DE DESENVOLVIMENTO DOS GESTORES PÚBLICOS | 89 |

Ninguém duvida da utilidade da educação e da formação como


alavanca para a evolução das pessoas e da sociedade. Principalmente
em longo prazo, nada substitui a educação como forma de fortalecer
as linguagens, a capacidade analítica e, consequentemente, a com-
preensão dos problemas e soluções da vida. Contudo, quando nos
distanciamos da beleza intrínseca da educação e da sua capacidade de
desenvolver o capital humano, a consciência e a cidadania e entramos
no mundo mais pobre — em termos de valores — das organizações,
são inevitáveis perspectivas mais utilitárias e imediatistas.
Nesse sentido, as questões mais comuns vêm dos economistas e
dos engenheiros: Qual o retorno de certo investimento num projeto
de treinamento? Quais alterações concretas teremos nos processos
de trabalho e nos resultados organizacionais? Mais concretamente
ainda, qual é o Retorno Sobre o Investimento (ROI, na sigla em
inglês) ou qual a relação benefício-custo do investimento em treina-
mento? Pode soar grosseira essa perspectiva sob os olhos de filósofos
e pedagogos, mas ela é dominante no mundo atual. Na área pública,
o diálogo envolve muitas questões, mas as sínteses políticas e eco-
nômicas imperam. Número de eleitores atendidos e/ou satisfeitos,
superávit ou déficit fiscal, despesa primária, poupança agregada,
investimento público, limite prudencial da Lei de Responsabilidade
| 90 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Fiscal são dimensões sempre lembradas. E, quase sempre, superam


a valorização intrínseca da educação, infelizmente.
Mensurar o retorno dos investimentos em educação e desenvol-
vimento não é tarefa fácil. Múltiplos horizontes temporais devem
ser considerados e nem sempre é possível aquilatar a utilidade futura
dos conhecimentos adquiridos e experiências vividas. Mas o nosso
propósito neste capítulo não é contribuir para a exatidão das medi-
das e sim para que se evitem equívocos e desperdícios decorrentes
da compreensão insuficiente do indivíduo a ser treinado e de seu
contexto de trabalho.

3.1 AS FALHAS NOS PROGRAMAS TRADICIONAIS


DE DESENVOLVIMENTO DE GESTORES PÚBLICOS

Como já discutimos em trabalhos anteriores (TEIXEIRA;


SALOMÃO; TEIXEIRA, 2010), os programas de treinamento,
formação, capacitação ou desenvolvimento de gestores têm-se pres-
tado satisfatoriamente a desenvolver habilidades técnicas, transmitir
conceitos de administração e, mesmo, aprimorar o relacionamento
interpessoal dos participantes. Contudo, tais programas não tardam
a demonstrar sua baixa eficácia ao longo do tempo. Os gestores, num
primeiro momento motivados pelas novas perspectivas apresentadas,
rapidamente tornam a assumir sua postura anterior. Raramente, as
novas habilidades saem das apresentações, palestras, vivências em
sala de aula, apostilas e mentes para uma aplicação efetiva na vida
prática. Muitas vezes, os programas são esquecidos e tudo volta a
funcionar como se nunca tivessem existido, gerando até mesmo
novas frustrações.
UM MODELO PARA COMPREENDER AS POSSIBILIDADES....... .... ..........
DE DESENVOLVIMENTO DOS GESTORES PÚBLICOS | 91 |

Analisando a dinâmica dos programas tradicionais de treinamen-


to, é possível captar as duas principais dimensões de seu fracasso e,
assim, elaborar uma proposta mais abrangente de desenvolvimento
que procure cobrir as lacunas existentes.
Os programas de mudança em geral e de desenvolvimento e
formação de gestores em particular não têm alcançado os resultados
esperados, basicamente, por duas razões:
•  não consideram as necessidades individuais dos participantes;
•  não consideram as mudanças contextuais complementares
necessárias.
Observando detidamente os efeitos dessas lacunas, é fácil com-
preender a importância de um programa mais abrangente.
Analisando a dimensão das necessidades individuais, observa-
-se que, via de regra, os gestores que serão submetidos a progra-
mas de desenvolvimento recebem um rol de cursos e atividades
padronizados e predeterminados, devendo optar por alguns
deles ou simplesmente são designados para frequentá-los. Em
ambos os casos, não há preocupação em avaliar o interesse do
participante, suas necessidades, seu perfil, e, ainda menos, em
discutir com ele as bases do programa e sua definição. Sem que
receba um treinamento adequado à sua pessoa e ao seu cargo,
e sem que possa perceber por si a importância e utilidade dos
programas, o gestor já os inicia menos motivados do que seria
desejável. Ainda que os gestores compreendam a necessidade do
desenvolvimento e treinamento, participem de sua concepção
e sintam-se motivados a se submeterem a ele, tanto menores
serão os resultados alcançados quanto menor for a adequação
do programa ao perfil de cada indivíduo e às necessidades de
cada cargo.
| 92 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Observa-se que uma das causas mais frequentes de insucesso


dos programas de desenvolvimento e treinamento gerencial é a
dificuldade prática encontrada pelos executivos para aplicarem os
conceitos e técnicas absorvidos. O indivíduo é temporariamente
exposto a novas possibilidades de aproveitamento de seu potencial,
são sugeridas novas atividades para enriquecer seu cargo, novas
utilizações dos sistemas de informações, novos métodos de recom-
pensas, e assim por diante. Contudo, ao retornar ao seu posto de
trabalho, percebe que poucas das condições necessárias à aplicação
de suas novas ideias existem. A autonomia no cargo é a mesma
de antes, e ele não pode alterar os estímulos a seus subordinados.
Os sistemas de apoio não estão preparados para fornecerem as
informações que solicita na forma e tempo necessários. Enfim, o
profissional aumentou seu potencial de desempenho, mas a orga-
nização não soube como acompanhá-lo, seja institucionalmente,
seja tecnologicamente.
Dessa forma, apesar da evidente importância dos programas de
desenvolvimento e treinamento voltados especificamente para o
indivíduo como um elemento que eleva o potencial de desempenho
do gestor, isoladamente aplicado e sem um diagnóstico anterior,
eles só gerarão frutos para a organização na rara possibilidade de
coincidirem três situações:
•  o gestor compreende perfeitamente a necessidade do pro-
grama e espera espontaneamente integrar-se a ele;
•  as atividades escolhidas pelo gestor ou pela organização
ajustam-se ao seu perfil individual e suprem suas necessidades
específicas;
•  o perfil do cargo, os recursos disponíveis, o processo de gestão e
a tecnologia estão ajustados ao desempenho esperado do gerente.
UM MODELO PARA COMPREENDER AS POSSIBILIDADES....... .... ..........
DE DESENVOLVIMENTO DOS GESTORES PÚBLICOS | 93 |

Como raramente convivem essas três situações, a tendência


natural dos programas tradicionais de desenvolvimento tem sido
a de não alcançar o retorno esperado.
Nesse sentido, propomos um modelo de análise que envolve
diagnóstico abrangente das necessidades de treinamento e de
mudança na organização, que resulta, respectivamente, no maior
estímulo aos participantes e na manutenção da motivação após o
período de treinamento específico por meio do aprimoramento
que se fizer necessário na própria organização.

3.2 NECESSIDADE DE MODELO ABRANGENTE

Um esquema analítico útil para a compreensão do trabalho dos


gestores foi desenvolvido por Campbell et al. (1970), que consideram
que os estudos do comportamento administrativo têm procurado
responder a questões como as seguintes: que tipos de pessoas são ad-
ministradores eficazes?; ou qual o processo eficaz de administração?;
ou ainda, quais são os produtos da administração eficaz? Em outras
palavras, os estudos têm se concentrado na pessoa (traços desejáveis
do administrador), no processo (o que fazem os administradores de
sucesso) ou no produto (resultados da administração eficaz). Vários
estudos sobre o trabalho administrativo têm falhado na tentativa
de interligar pessoa, processo e produto, e têm analisado cada um
desses elementos de maneira isolada. Para evitar esses problemas,
os autores propõem o modelo visto na Figura 3.1 (CAMPBELL et
al., 1970, p. 11):
| 94 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Figura 3.1 Modelo ampliado dos determinantes da eficácia


administrativa de Campbell e outros colaboradores

AMBIENTE ORGANIZACIONAL

CARACTERÍSTICAS
INDIVIDUAIS COMPORTAMENTO RESULTADOS
NO CARGO ORGANIZACIONAIS
• Inteligência
• Atitudes • Função (habilidade, • Maximização de lucros
• Conhecimento motivação, oportunidades) • Eficiência organizacional
• Temperamento
• Preferências
• Expectativas

PESSOA PROCESSO PRODUTO

Fonte: Campbell, Dunnette, Lawler e Welck (1970, p. 11).

Discutindo as implicações de seu modelo, os autores destacam


a importância de considerar as diversas dimensões do trabalho ad-
ministrativo e formulam questões-síntese a respeito do sucesso no
desempenho do papel gerencial (CAMPBELL et al., 1970, p. 11):

Deveria ter ficado, agora, bastante claro que é incom-


pleto falar apenas sobre traços pessoais condutores do
sucesso administrativo ou apenas sobre os processos
e resultados da boa administração. Todos os três de-
vem ser considerados simultaneamente, e os efeitos
ou influências moderadas dos diferentes ambientes
organizacionais devem também ser incluídos. Em vez
de perguntar “Quem será eficaz?”, ou “O que uma
pessoa deve fazer para ser eficaz?”, ou ainda, “Quais
os produtos de um administrador eficaz?”, devemos
formular uma questão mais ampla e complexa: “Quais
são as variedades de combinações de circunstâncias
UM MODELO PARA COMPREENDER AS POSSIBILIDADES....... .... ..........
DE DESENVOLVIMENTO DOS GESTORES PÚBLICOS | 95 |

organizacionais, características pessoais e padrões de


comportamento que compõem um processo de ad-
ministração percebido como eficaz?”

Em outras palavras, o comportamento eficaz de um administra-


dor é função de uma interação complexa de elementos: suas próprias
características, as influências tanto das tarefas que deve executar
como da organização e do ambiente externo em que está operando.
Tomando esse esquema como base, efetuamos algumas simpli-
ficações e elaboramos o modelo para entendimento do trabalho
administrativo (Figura 3.2), adaptado do modelo ampliado dos
determinantes da eficácia administrativa. A adaptação efetuada visa
basicamente a simplificar a proposição dos autores, reduzindo-se o
número de elementos caracterizadores do indivíduo e elevando-se
o número de constituintes das demandas e do comportamento no
cargo. Além disso, procuramos estabelecer uma diferenciação entre
as influências organizacionais e aquelas externas à organização.

Figura 3.2 Modelo para entendimento do trabalho administrativo


(4)
Influências do
meio externo

(3)
Influências da
organização

(1) (2) (5) (6) (7)


Pessoa Exigências Comportamento Desempenho Resultados
do cargo ao cargo no cargo atingidos

(8) Informações sobre o desemprego no cargo


(9) Informações sobre os resultados atingidos

PESSOA PROCESSO PRODUTO

Fonte: Adaptado de Campbell et al. (1970)


| 96 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Antes de explicar cada componente do modelo e suas interações


reafirmamos que o modelo serve apenas para orientar a compreen-
são do trabalho dos gestores, não tendo a pretensão de efetuar um
esclarecimento pleno do assunto. As relações entre os componentes
do modelo não são, na realidade, simples e unidirecionais, como
mostra a Figura 3.2; a organização também influencia o ambiente
externo, e assim por diante.
O significado de cada um dos componentes do modelo pode
ser assim explicado:
1) Pessoa
É o indivíduo cujo desempenho no cargo e resultados da atuação
estão sendo analisados. Em se tratando do trabalho gerencial, o
indivíduo sob análise é alguém incumbido da gestão ou principal
responsável por certa unidade organizacional, ou pela organização
como um todo, no caso de tratar-se de seu principal dirigente. Suas
características individuais, tanto emocionais como intelectuais,
sem dúvida, influenciam significativamente seu comportamento
no cargo.
É interessante notar, já que o modelo igualmente explica o tra-
balho não gerencial, que a atuação do próprio gerente também tem
impactos sobre o trabalho dos subordinados, e até mesmo pares e
superiores. Do ponto de vista dos subordinados, o gerente é, ele
próprio, uma das influências da organização sobre seu trabalho.
O mesmo ocorre em relação a pares e superiores. E, nesse as-
pecto, o autoconhecimento pode ser de grande valia. Muitas vezes,
a divergência entre pares decorre de diferenças de personalidade,
formação, posição na organização e mesmo visão de mundo ou do
setor. Se o grupo reconhece a existência de impactos de diferenças
individuais sobre o relacionamento interpessoal, pode utilizá-la para
UM MODELO PARA COMPREENDER AS POSSIBILIDADES....... .... ..........
DE DESENVOLVIMENTO DOS GESTORES PÚBLICOS | 97 |

a montagem de uma equipe equilibrada e que se complemente em


termos de habilidades, experiência e mesmo personalidade. Uma
vez conhecidos os pontos fortes e fracos de cada um, a tolerância
mútua tende a ser estimulada e o potencial do grupo torna-se maior
que a soma dos potenciais individuais.
Apoiando-se nesse modelo relativamente simples, o gestor pode
procurar, numa reflexão solitária ou grupal, entender os pontos de
vista de seus superiores, pares e subordinados, na busca de com-
preensão mútua e obtenção de uma visão mais ampla de todo o
sistema, inclusive das carências que, ao menos em parte, podem
ser supridas por programas de desenvolvimento e daquelas que
dependem de outras políticas.
2) Exigências do cargo
O cargo é o principal determinante do que uma pessoa faz numa
organização. A afirmação é mais forte ainda na área pública, com
cargos criados por lei e admissões por concurso público, com exceção
dos comissionados. As exigências do cargo incluem o conjunto de
competências — conhecimentos e habilidades — que o ocupante
deve ter ao desempenhá-lo.
Quanto aos cargos gerenciais, um dos principais focos quando
se fala em formação para a gestão de pessoas em função de serem
os “representantes da Administração” mais próximos das operações
(sendo, portanto, os gestores de pessoas em sentido mais direto e
imediato), muitas das exigências não surgem de maneira concreta
ou claramente perceptível, em função do espaço discricionário
necessariamente presente nos cargos gerenciais, uma vez que seus
ocupantes, por definição, são responsáveis pela tomada de decisões.
Esse efeito é multiplicado quando percebemos que todo “gestor”
responde a outro “gestor”, o qual também tem seu espaço de decisão
| 98 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

discricionária, em casos permitidos, mas não previstos, em lei e nas


normas de suas organizações. Entretanto, quanto mais precisamente
forem estabelecidas as demandas do cargo, maior será a possibilida-
de de se elevar o controle sobre o fator subjetivo no momento de
treinar, desenvolver ou avaliar pessoas que o ocupam.
Na literatura sobre o trabalho do administrador, os autores, em
geral, apenas descrevem os comportamentos dos ocupantes, sem
identificar as exigências do cargo, ou são muito genéricos, prescre-
vendo comportamentos que satisfazem exigências do cargo, porém
sem identificá-las claramente. As exigências do cargo são estudadas,
em geral, por meio dos seguintes conceitos:
•  Relacionamentos: conjunto de contatos requeridos pelo
cargo, com subordinados, pares, contatos externos etc.
•  Padrão de trabalho: maneira como as atividades são distri-
buídas pelo tempo em termos de sequência, tempo de duração,
grau de repetição, origem (quem a origina: o próprio ocupante
ou um terceiro?), urgência e previsibilidade.
•  Papéis (ou funções): forma de aglutinar as atividades do
cargo em grupos de atividades, tendo em vista inter-relacionar
a atuação do ocupante do cargo com o contexto em que opera.
•  Decisões: possíveis escolhas do ocupante do cargo. São clas-
sificadas de maneira variada, utilizando categorias como nível de
abrangência das decisões, área de organização etc.
•  Processos controlados pelo cargo: fluxos diversos de traba-
lho, que ocorrem simultânea e sequencialmente, e que devem ser
mantidos e controlados pelo ocupante do cargo. Esses processos
incluem tanto o processamento de matéria-prima (processos
de produção no sentido convencional) como processamentos
financeiros (fluxos de fundos) e processamento de dados.
UM MODELO PARA COMPREENDER AS POSSIBILIDADES....... .... ..........
DE DESENVOLVIMENTO DOS GESTORES PÚBLICOS | 99 |

•  Competências ou habilidades específicas exigidas do


ocupante do cargo: comunicação, negociação, planeja-
mento, etc.
Como se pode notar, os conceitos empregados para identificar
as demandas não são mutuamente exclusivos.
3) Influências da organização
Nas influências organizacionais, devem ser incluídos concei-
tos como recursos humanos disponíveis ao administrador, a for-
ma como esses recursos estão estruturados (hierarquia, departa-
mentalização etc.), recursos financeiros, materiais e informações
disponíveis e o modo como o administrador tem acesso a esses
recursos (sistemas de autoridade e informações existentes etc.). A
organização deve ser entendida como a unidade organizacional sob
controle do administrador, podendo até mesmo ser a organização
como um todo.
Um modo interessante e bastante integrado de avaliar os im-
pactos da organização é a análise da coerência entre os resultados
exigidos, ou esperados, da atuação do gerente e alguns elementos
fundamentais do que poderíamos chamar de “microambiente” em
que se insere seu cargo. Esses elementos fundamentais são:
•  poder de decisão adequado às responsabilidades do cargo;
•  estímulos compatíveis e recompensadores, tendo em vista os
desafios da atividade;
•  recursos colocados à disposição do gestor, sejam eles físicos,
humanos ou financeiros;
•  atividades claramente definidas em termos de limites ou área
de responsabilidade no exercício do cargo ou função;
•  informações disponíveis para a tomada de decisões, em termos
de quantidade, qualidade e rapidez.
| 100 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A definição desses elementos fundamentais para o exercício das


funções gerenciais e sua distribuição entre os cargos, via de regra,
não é feita em uma única equação, de forma consciente. Resulta,
geralmente, do processo natural de evolução da organização, sendo
fruto de seu processo histórico de desenvolvimento, dos incidentes
críticos vividos e dos valores que se consolidaram em sua cultura.
Na prática, serão encontradas dispersas nas formas de articulação,
encontradas como funções comuns, estas sim conscientes e siste-
maticamente desenvolvidas, em praticamente todas as organizações
humanas: estrutura, planejamento, sistemas de informação, meca-
nismos de controle e procedimentos estabelecidos.
A percepção de insuficiência de recursos e rigidez na possibilidade
de aplicação, num contexto organizacional pleno de restrições legais,
exige esforços especiais do gestor público para que identifique e faça
distinção entre restrições, obrigações e escolhas permitidas pelo cargo.
4) Influências do ambiente externo
O ambiente externo tem influência direta no impacto que a
organização causa sobre seus cargos. Um fenômeno externo, como
uma crise internacional, uma revisão orçamentária do governo, por
exemplo, pressionará algumas pessoas a tomarem medidas corretivas.
Globalização, redes, internet e novas formas de aprendizagem e
cooperação coletiva dão um novo significado para as relações entre
as organizações e o ambiente externo. A exposição, porosidade das
fronteiras e a compactação do tempo e do espaço são cada vez mais
acentuados, independentemente da organização ser pública ou privada.
Podemos listar algumas mudanças que afetam diretamente o
trabalho dos gestores públicos:
•  crescimento do volume e da complexidade do trabalho na
organização;
UM MODELO PARA COMPREENDER AS POSSIBILIDADES....... .... ..........
DE DESENVOLVIMENTO DOS GESTORES PÚBLICOS | 101 |

•  elevação do número de especializações;


•  aumento da velocidade das mudanças;
•  aumento da necessidade de talento gerencial nos cargos de
chefia;
•  aumento da dificuldade de coordenação.
5) Comportamento do cargo
Representa o que a pessoa faz no cargo, em função de suas pró-
prias escolhas e das demandas e restrições a que está sujeita.
Campbell et al. (1970, p. 105) definem o comportamento ad-
ministrativo eficaz como:

[...] qualquer conjunto de ações administrativas acei-


tas como ótimas para identificar, assimilar e utilizar
tanto os recursos internos como externos, tendo
em vista, em longo prazo, o funcionamento da
unidade organizacional onde o administrador tem
algum grau de responsabilidade.

Dessa definição, os autores tiraram as seguintes conclusões, dentre


outras (p. 205):
•  a medida do comportamento eficaz deve ser de longo prazo;
•  o comportamento eficaz inclui diversas ações, e não apenas uma;
•  há diferentes combinações de ações que podem atingir o
mesmo resultado;
•  o comportamento eficaz deve ser medido em termos daquilo
que o administrador faz, de maneira a afetar a otimização;
•  o comportamento eficaz, mesmo quando medido apenas
por aquilo que o administrador faz, está sujeito a um conjunto
de variações casuais, que inclui não apenas as qualidades do
| 102 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

administrador, como também a natureza dos recursos humanos,


materiais e financeiros à sua disposição e à disposição do resto
da organização.
6) Desempenho no cargo
O desempenho foi separado do comportamento no cargo e dos
resultados atingidos porque, por um lado, pelo modelo adotado, o
gestor pode ter um bom desempenho dentro das fronteiras estritas
ao seu alcance sem que isso signifique resultados organizacionais
favoráveis, em decorrência de circunstâncias fora de seu controle.
Por outro lado, um desempenho inadequado pode coincidir com
resultados favoráveis, pelo menos em curto prazo. É interessante,
também, analisar o comportamento como categoria independente
em função de sua importância na composição de grupos equili-
brados. De forma geral, pode-se dizer que o desempenho no cargo
representa uma avaliação da qualidade da atuação do ocupante do
cargo administrativo, ou seja, quão bem seu comportamento se
ajusta às exigências.
Campbell et al. (1970, p. 109) mostram que as medidas globais
do comportamento eficaz (lucro, taxa de retorno, crescimento da
organização etc.)

[...] não fornecem conhecimento sobre os diferentes


níveis de eficácia administrativa na manipulação dos
diversos problemas de alocação de recursos e assim,
tacitamente, ignoram o complexo e cheio de facetas
processamento de informações requeridas pelo cargo.
UM MODELO PARA COMPREENDER AS POSSIBILIDADES....... .... ..........
DE DESENVOLVIMENTO DOS GESTORES PÚBLICOS | 103 |

Os autores não advogam

[...] a dispensa de estimativas globais de eficiência


administrativa, mas seu uso contínuo deve ser su-
plementado pela observação e registro sistemático
do comportamento administrativo, de maneira
tal que as relações entre comportamento no cargo
e as medidas mais comuns de eficácia possam ser
examinadas [...]. (p. 124)

De maneira que, para prever, desenvolver ou orientar o com-


portamento administrativo é necessário que ele seja definido e
medido, o que nem sempre é fácil ou preciso, pois, como mostra
Mlodinow (2008), no interessante livro O andar do bêbado, o
acaso, ou a sorte, também são importantes na definição do sucesso
em nossas vidas.
7) Resultados atingidos
São os resultados que indicam o desempenho da organização ou
unidade(s) sob controle do administrador. Eles podem ser medidos
em termos quantitativos ou não, como, por exemplo, crescimento
do volume de serviços, qualidade dos serviços prestados, redução
de custos, satisfação dos subordinados etc. Eficiência, eficácia e
efetividade são indicadores cada vez mais utilizados para avaliar o
desempenho das organizações públicas.
Nem sempre a relação causal entre comportamento no cargo
e resultados atingidos fica evidente, pelo menos no curto prazo.
Agravando essa situação está a dificuldade natural em desenvolver
sistemas de medição, indicadores de desempenho e sistemas de coleta
de dados confiáveis. Mesmo no longo prazo, apesar da importância
| 104 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

da atuação do administrador, este não pode ser considerado o único


responsável pelos resultados operacionais. Deve ser estabelecida, em
cada caso, a parcela de responsabilidade do gestor, bem como sua
contribuição nos resultados obtidos.
8) Informações quanto ao desempenho no cargo
A forma como o ocupante do cargo recebe informações sobre
a qualidade de seu trabalho é fundamental para seu progresso. Há
cargos cujas tarefas são concretas, e qualquer erro fica evidente ao
próprio executante. Outros cargos dependem do estabelecimento
de critérios e medidas próprias de desempenho e da comunicação
das avaliações aos ocupantes, indicando-lhes as falhas e as ações
dignas de mérito. Há, também, cargos que lidam com questões
complexas, cujos efeitos só se mostrarão no longo prazo. Nesses
casos, a percepção da qualidade do desempenho depende, ainda
mais, da autoanálise do ocupante do cargo.
9) Informações quanto aos resultados atingidos
A maneira como o gestor percebe os resultados atingidos pela
organização ou como terceiros a ele ligados entendem esses re-
sultados também afeta o seu desempenho, mesmo que seja difícil
efetuar uma correlação exata entre o seu comportamento no car-
go e as consequências do mesmo para a organização. A atuação
do gestor numa organização que está evoluindo e com prestígio
crescente difere da de outro que está trabalhando em outra, con-
siderada decadente. O primeiro enfrentará problemas de aplicação
de recursos para expansão e provavelmente deixará de lado diag-
nósticos profundos de problemas internos, inclusive quanto ao
próprio desempenho; o contrário provavelmente ocorrerá com o
segundo dirigente, que poderá se voltar para um diagnóstico das
dificuldades internas e questionar a própria atuação.
UM MODELO PARA COMPREENDER AS POSSIBILIDADES....... .... ..........
DE DESENVOLVIMENTO DOS GESTORES PÚBLICOS | 105 |

3.3 UMA VISÃO ABRANGENTE

Grandes ganhos podem ser obtidos com a convergência dos


últimos fatores descritos. Quanto maior a coerência entre a
avaliação do desempenho no cargo e o comportamento real do
gestor, entre a medida de desempenho no cargo e as medidas de
resultados globais (com a identificação precisa de quais fatores
de desempenho efetivamente geraram impactos e em que grau
nos resultados globais da organização) e, concomitantemente,
quanto maior a acuidade das medidas de desempenho global,
tanto maiores serão as possibilidades de que esses indicadores
consigam guiar o comportamento do gestor na direção desejada.
Por meio da análise desse modelo, pode-se perceber a di-
ficuldade do estudo profundo do trabalho do gestor público.
São inúmeras as variáveis que agem simultaneamente sobre o
“comportamento no cargo”: ambiente externo, pessoa, organi-
zação, exigências do cargo, características pessoais do ocupante,
informações quanto ao desempenho e quanto aos resultados
alcançados.
Um programa de desenvolvimento abrangente deve combinar
a melhoria do desempenho individual dos participantes com o
incremento do seu desempenho conjunto, ou seja, a melhoria
do trabalho em grupo e do próprio processo de gestão da orga-
nização. Deve procurar a articulação de medidas que considerem
as aspirações e os anseios dos gestores e demais profissionais e os
meios e recursos disponibilizados pela administração, conforme
a Figura 3.3.
| 106 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Figura 3.3 Desenvolvimento organizacional

A ORGANIZAÇÃO DEVE
PROPORCIONAR
• Informação
• Poder
• Responsabilidade
• Recursos
• Recompensas

DESENVOLVIMENTO
ORGANIZACIONAL

O GESTOR DEVE
DESENVOLVER
HABILIDADES

• Interpessoais
• Gerenciais
• Técnicas

Fonte: Teixeira et al. (2010)

É necessário fazer esforços para gerar e fortalecer nos participan-


tes a consciência da necessidade e o conhecimento das ferramentas
para a construção de um processo sustentado de mudança, em que
parte e todo se influenciam mutuamente, de forma transparente
e evolutiva.
A compreensão da complexa interligação entre os elementos
existentes para a formação do comportamento eficaz demonstra a
necessidade de maior abrangência e profundidade nos programas
de desenvolvimento, os quais devem ser precedidos de amplo diag-
nóstico com intensa participação, tanto para a análise dos perfis
dos gestores e das necessidades de treinamento e desenvolvimento,
quanto para a verificação das necessidades de aprimoramento dos
sistemas e modelo de gestão da organização. Ainda que nem sempre
seja possível a promoção de mudanças na organização, ao menos
a seleção e priorização dos conteúdos dos programas de formação
UM MODELO PARA COMPREENDER AS POSSIBILIDADES....... .... ..........
DE DESENVOLVIMENTO DOS GESTORES PÚBLICOS | 107 |

deve manter coerência com as prioridades e práticas organizacionais,


reduzindo dissonâncias e evitando maiores frustrações. É claro,
contudo, que isso não impede a inclusão de temas que fujam a essa
regra, mas a título exclusivo de estimular a reflexão para eventuais
transformações no cenário organizacional.
Reafirmamos que todo gestor precisa compreender as exigências
do seu cargo e o contexto de seu trabalho para poder avaliar com
mais clareza as restrições a que está sujeito e fazer as melhores es-
colhas possíveis.
Mesmo que exista a necessidade de revisão do marco institucio-
nal — conjunto de leis e normas que regem as atividades — não há
dúvida de que resta um espaço de gestão a ser mais bem utilizado
pelos administradores. A falta de tempo não impede a vitória sobre
esse desafio; é mais uma questão de direcionamento de energias.
Obstáculos existem, mas não devem ser ignorados nem tampouco
superestimados, já que não são instransponíveis. Além disso, mui-
tas políticas vigentes são adversas e precisam ser revistas. De fato,
faltam recursos humanos, materiais, financeiros e tecnológicos, e
a autoridade formal do gestor sobre os processos para obtenção
e alocação desses recursos, na maioria das vezes, é limitada. Não
bastassem esses problemas, há, também, percepções desfavoráveis
quanto à compensação (salários, benefícios e perspectiva de carreira)
e quanto ao padrão burocrático de gestão adotado na área pública.
A falta de recursos, que é real e percebida pelos gestores, traz
consequências para o bom desempenho no cargo. Configura-se
uma verdadeira síndrome da insuficiência de meios e excesso de
restrições. Os funcionários tendem a superestimar as restrições e
carências e a subestimar os próprios poderes de decisão, de escolha
e de resolução de problemas.
| 108 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A realidade é percebida com desvio que protege o indivíduo.


Sabe-se que é mais fácil para o ser humano perceber seus direitos
e dificuldades enfrentadas do que seus deveres e possibilidades de
atuação criativa. Isso não deixa de ser um mecanismo de defesa, em
que as restrições e principalmente a falta de recursos, obviamente
existentes, são superestimadas, com o propósito inconsciente
de justificar certa paralisia ou a falta de agressividade diante das
situações-problema.
Já se tornou lugar comum afirmar que a visão global ou sistêmi-
ca é essencial para qualquer dirigente. Isso é ainda mais difundido
no caso do gestor público, que deve ser um personagem ativo
no seu meio, atento às necessidades da população a que serve e
preocupado em situar essas necessidades em face dos objetivos e
orientações que derivam das políticas estabelecidas.
O gestor é um agente fundamental na articulação da equipe e
dos recursos disponíveis, configurando-se, assim, um novo quadro
de exigências a que se precisa atender. Nesse modelo, o adminis-
trador representa a figura principal, cuja atuação pode determinar
a qualidade do serviço prestado. Dimensões nem sempre muito
lembradas, desde características de personalidade até especifici-
dades do ambiente externo, passando pela capacitação da equipe
de trabalho, tornam-se prioritárias para o desempenho adequado
do gestor.

3.4 REFERÊNCIAS

CAMPBELL, J. P. et al. Managerial behavior, performance,


and effectiveness. New York: McGraw-Hill, 1970.
UM MODELO PARA COMPREENDER AS POSSIBILIDADES....... .... ..........
DE DESENVOLVIMENTO DOS GESTORES PÚBLICOS | 109 |

MLODINOW, L. O andar do bêbado: como o acaso determina


nossas vidas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
TEIXEIRA, H. J. et al. Fundamentos de Administração: a
busca do essencial. São Paulo: Elsevier, 2010.
CAPÍTULO 4

Estilos comportamentais dos


profissionais da área de gestão de
pessoas: um estudo exploratório nos
setores público e privado

ROBERTO CODA
Doutor e livre-docente em Administração pela
FEA-USP e professor da mesma instituição.

DARLY ALCARPE CODA


Economista pela FMU e consultora de RH.

MAURÍCIO SANTOS MOTTA


Profissional de Educação Física pela Uniban e
pesquisador na Fundação Instituto de Administração
(FIA).
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 113 |

4.1 INTRODUÇÃO

Este capítulo tem por objetivo principal apresentar um estudo


exploratório para identificar estilos de comportamento de profissio-
nais da área de gestão de pessoas, utilizando os conceitos de Orien-
tação Motivacional e de Estilo de Mobilização, criados com base na
abordagem do Diagnóstico M.A.R.E., desenvolvida e validada no
Brasil, tendo como origem as contribuições de Erich Fromm sobre
personalidade. O referencial teórico aborda os temas: diferenças
individuais, motivação no trabalho com ênfase em motivação in-
trínseca, além de detalhes sobre a criação e validação do instrumento
de pesquisa, bem como a metodologia utilizada para a identificação
dos padrões comportamentais avaliados. O estudo adota uma pers-
pectiva descritiva a uma amostra intencional por conveniência de
408 sujeitos, obtida com a participação voluntária de empregados
que atuam na área de gestão de pessoas (RH) em empresas do se-
tor privado e junto a uma organização do setor público. Os estilos
comportamentais pesquisados denominam-se Colaborador (foco
na ajuda a pessoas), Negociador (foco na adaptação e resolução de
conflitos), Competidor (foco nos desafios), Conquistador (foco em
resultados), Realizador (foco na ação), Mantenedor (foco na con-
| 114 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

tinuidade) e Especialista (foco na qualidade). As duas questões


básicas subjacentes aos objetivos do trabalho consideram que
deve haver um estilo de comportamento predominante entre
esses profissionais, bem como a existência de diferenças em
relação aos eventuais estilos dominantes, quando comparados
os resultados das duas amostras. Os resultados indicam que na
organização pública os profissionais são predominantemente
Negociadores e Especialistas, enquanto nas empresas privadas os
estilos mais frequentes foram o Conquistador e o Mantenedor.
Os resultados foram também comparados com uma amostra de
âmbito nacional de 4.981 casos envolvendo gerentes e profissio-
nais de várias áreas e de nível superior, amostra essa que revela
não haver predominância entre os estilos pesquisados. Além de
confirmadas as duas questões de pesquisa, o estudo discute os
caminhos e barreiras para o aperfeiçoamento da atuação dos
profissionais de gestão de pessoas, fornecendo subsídios para a
sua contratação, desenvolvimento e alocação, revelando ainda
implicações e desafios que se colocam para os profissionais e
para o campo de RH, caso se pretenda para ambos um papel
estratégico na atuação dentro das organizações.
Ao longo da história é possível perceber a capacidade do ser
humano em articular pessoas e recursos para superar obstáculos
e atingir objetivos. Para que a sociedade possa produzir os bens
necessários aos indivíduos, há a necessidade de utilização de
três recursos considerados fatores de produção: capital físico,
tecnologia e capital humano. O primeiro é caracterizado pelos
recursos naturais disponíveis, bem como ferramentas, veículos,
construções e equipamentos utilizados no processo de produção;
o segundo irá tornar a produção maior e mais rápida, garantindo
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 115 |

o diferencial competitivo frente a outras economias; e o terceiro


fator de produção é caracterizado por todo o esforço físico e
mental despendido no processo de produção.
O capital humano pode ser considerado fator relevante para o
desenvolvimento econômico de um país, sem o qual não haveria
condições de sucesso. Isso é válido também para as organizações
modernas que em um mundo globalizado e cada vez mais com-
petitivo se diferenciam, por meio das qualidades, competências e,
principalmente, ações e comportamentos de seu capital humano.
À medida que as organizações evoluem, elas estão sujeitas a
mudanças em sua estrutura organizacional, no comportamento e
na forma de relacionamento de seus empregados e colaboradores.
Tais mudanças são necessárias para que elas possam se adaptar
às transformações necessárias à sua sobrevivência no mercado.

O PAPEL DO PROFISSIONAL E DA ÁREA DE GESTÃO


DE PESSOAS (RH) NAS ORGANIZAÇÕES
Neste contexto acredita-se que o profissional de RH possa
exercer papel de destaque junto às organizações, influenciando
o clima, comportamentos e relações no ambiente corporativo, a
fim de que os objetivos estratégicos da organização, bem como
os objetivos individuais dos colaboradores, sejam atingidos.
Em primeiro lugar, faz-se necessário considerar as transforma-
ções ocorridas e o papel da área de gestão de pessoas no contexto
nacional e internacional. Como consequência do processo de glo-
balização, essa área funcional vem recebendo pressões no sentido
de se mostrar mais ágil, flexível, inovadora e, principalmente,
centrada em resultados dentro de suas diferentes atividades es-
pecíficas — recrutamento, seleção, treinamento, remuneração,
| 116 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

carreira, segurança e saúde ocupacional. É possível observar uma


mudança de paradigma para a atuação em RH nas organizações,
exigindo-se um posicionamento estratégico da área, fato que
vem fazendo que a mesma, nos últimos anos, tenha procurado
definir políticas e práticas de gestão do fator humano com base
no conceito de competências profissionais.
O desafio para a área de gestão de pessoas (RH) e seus inte-
grantes passa a ser identificar, mapear e avaliar competências da
força de trabalho que estejam alinhadas com as competências da
própria organização, colaborando, assim, de modo mais efetivo
para a geração dos resultados a serem alcançados. Portanto, o foco
passou a ser a busca por um novo modelo de gestão de pessoas
que se diferencia do tradicional por ser centrado na meritocracia,
na gestão do desempenho e na adição de valor para a organização
(CODA et al., 2009; DUTRA, 2009; ULRICH, 2009).
Essas considerações evidenciam que a atuação da área de RH
dentro desse novo paradigma irá depender, entre outros aspectos,
dos estilos preferenciais de comportamento de seus profissionais,
uma vez que são eles que deverão implementar e liderar a mu-
dança no sentido pretendido. Entretanto, essas ações serão mais
facilmente viabilizadas se os profissionais apresentarem estilos
comportamentais compatíveis à nova proposta; caso contrário,
em lugar de alavancar o novo modelo, eles representarão uma
barreira ao processo de inovação pelo qual deve passar a própria
área na qual atuam.
Em função dos desafios considerados importantes e desejáveis,
a pergunta que o presente estudo busca responder é: o profissional
de RH possui um perfil que se alinha àqueles aspectos ou deverá
realizar um considerável esforço de desenvolvimento pessoal?
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 117 |

4.2 OBJETIVO GERAL E OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Em ambientes organizacionais, a identificação de padrões ou estilos


comportamentais contribui para o reconhecimento de tendência nas
ações dos profissionais, orientando seu treinamento e desenvolvimento,
bem como sua alocação no trabalho por meio da garantia de um balan-
ceamento entre preferências naturais e necessidades ou requisitos dos
cargos que ocupam (RICCO, 2004). Tendo por referência arcabouço
concebido a partir da realidade de organizações brasileiras para identifi-
car padrões comportamentais em situação de trabalho, este trabalho tem
por objetivo geral identificar os estilos de mobilização dos profissionais
que atuam na área de gestão de pessoas (RH) nas organizações. Sua
importância justifica-se pelos motivos a seguir apresentados.
A contribuição que se pretende é mapear os estilos ou padrões
dominantes de comportamento de profissionais que estão cons-
truindo suas carreiras em áreas de gestão de recursos humanos, a
fim de fornecer subsídios para:
•  incrementar a possibilidade de mudança das áreas de gestão
de pessoas, direcionando-as, por meio das ações de seus profissio-
nais, para novos padrões de eficiência, produtividade, qualidade
e atendimento dos empregados da organização;
•  a contratação, retenção e desenvolvimento desses profissionais;
•  respeitar e levar em consideração pontos fortes e fracos in-
trinsecamente associados a prováveis estilos mais representativos,
promovendo maior adequação desses profissionais à situação ou
realidade de trabalho;
•  verificar a compatibilidade entre eventuais estilos dominantes
e os desafios e papéis previstos na literatura referente à atuação
profissional eficaz de uma área de gestão de pessoas (RH).
| 118 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Portanto, conhecer o estilo preferencial de comportamento desses


profissionais utilizando-se o diagnóstico M.A.R.E. permitirá avaliar
até que ponto a mudança necessária na atuação da área de gestão
de pessoas terá maior possibilidade de ocorrer, caso os resultados da
pesquisa apontem para um equilíbrio dos estilos mapeados.
Verificando-se uma concentração ou a predominância de de-
terminados estilos de mobilização, o presente trabalho contribuirá
também para orientar os esforços de desenvolvimento e de trei-
namento dos profissionais de RH, bem como a contratação ou a
promoção de indivíduos portadores de estilos pouco frequentes ou
de estilos que se posicionariam mais favoravelmente no sentido de
promover mudanças no papel da área de Gestão de Pessoas (RH),
conferindo-lhe uma atuação mais estratégica.
De modo específico, este trabalho visa identificar os estilos de
mobilização (RICCO, 2004) de profissionais que atuam na área de
Gestão de Pessoas (RH), a fim de:
•  identificar a eventual existência de estilos de mobilização
predominantes que possam configurar comportamentos ideais
para o ajustamento e sucesso profissional nessa área;
•  comparar os estilos de mobilização de profissionais que atuam
em empresas privadas com os estilos daqueles que exercem suas
atividades em uma organização de natureza pública.
As organizações atuais precisam atender os desafios da compe-
titividade, da inovação e da mudança, contexto este em que o fator
humano pode representar a diferenciação capaz de contribuir para
a realização efetiva de resultados e metas. Assim, cabe não só aos
líderes, mas também aos profissionais de RH, entender a organi-
zação, traduzir sua missão e objetivos para as equipes e promover a
retenção dos profissionais por meio de uma gestão eficaz que envolve
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 119 |

comportamentos, relacionamentos, motivação e comprometimento


no trabalho.
É também pressuposto deste trabalho que a compreensão das
próprias motivações e estilos de comportamentos preferenciais do
profissional de Gestão de Pessoas (RH) possa fornecer a ele bases
para que exerça seu papel nas organizações, orientando-as para as
mudanças ou desafios estabelecidos.

4.3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Neste tópico, são apresentados e discutidos os principais aspectos


conceituais que se relacionam com a compreensão e descrição dos
conhecimentos que fornecem base para a realização da pesquisa de
campo.
Basicamente são apresentados conceitos sobre diferenças indi-
viduais no trabalho, teorias motivacionais baseadas em variáveis
intrínsecas, a contribuição dos trabalhos de Erich Fromm, bem
como a interface entre motivação e liderança. Enfatiza-se também
a descrição das principais características das orientações motivacio-
nais M.A.R.E. e dos estilos comportamentais identificados (estilos
de mobilização), uma vez que esses aspectos representam não só a
base teórica do Diagnóstico M.A.R.E., mas também fornecem a
fundamentação da metodologia utilizada na pesquisa de campo.

Diferenças individuais
Bowditch (1992) entende que a personalidade é a principal de-
terminante das diferenças individuais. A personalidade refere-se
aos padrões relativamente consistentes e duradouros de percepção,
| 120 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

pensamento, sentimento e comportamento que fornecem aos in-


divíduos identidade distinta (DAVIDOFF, 2001). Relacionando
os conceitos sobre diferenças individuais às teorias motivacionais
anteriormente apresentadas, nota-se que, embora não seja uma tarefa
fácil, é de grande importância para os gerentes e supervisores diag-
nosticarem o tipo ou o estilo de pessoa que lhe é dado supervisionar
para que se possam oferecer instrumentos motivacionais adequados.
Aceitar e lidar com diferenças no comportamento humano, entre-
tanto, não é uma tarefa fácil, embora seja amplamente sabido que isso
representa um dos aspectos capazes de gerar resultados, assim como
os níveis desejados de produtividade e clima organizacional positivo
para o desenvolvimento do trabalho. É um fato inegável que cada
indivíduo tem um padrão de pensar, preferências e modos particulares
de encarar os desafios e as situações da vida cotidiana. Atualmente,
no trabalho, as necessidades e propósitos são constantemente testados
por causa da natureza mutante das atividades, tecnologias e aborda-
gens gerenciais, gerando níveis de stress mais elevados que podem
fazer com que diferenças de estilo ou de orientação se transformem
em ressentimentos, problemas de comunicação e dificuldades para
entender as reais intenções nas relações interpessoais.
Em lugar de tentar simplesmente rotular as pessoas, a percepção
e a compreensão das orientações ou preferências motivacionais dos
colaboradores que atuam em organizações representam uma resposta
para tentar liberar o potencial criativo dos indivíduos e gerenciar o
fator humano de modo mais efetivo.
Goleman (2004) afirma que pessoas são colocadas em posições
de grande responsabilidade em organizações sem que sejam levadas
em conta suas competências emocionais ou sociais. O autor define
“competências emocionais” ou comportamentais como a forma
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 121 |

pela qual as pessoas se autogerenciam e propõe uma classificação de


tais competências em seis diferentes categorias — autopercepção,
autorregulação, motivação, empatia, habilidades sociais e habili-
dades de trabalho em grupo. Para os objetivos do presente projeto
de pesquisa, essas categorias representam pontos fundamentais de
interesse, uma vez que podem ser consideradas como traços ou
orientações implícitas no perfil de qualquer profissional ou gestor.

Motivação
Como há ampla gama de teorias motivacionais, desde as clás-
sicas como, por exemplo, a teoria das necessidades de Maslow, até
as contemporâneas, como a da expectância de Vroom (ROBBINS,
2010), serão expostas a seguir somente aquelas que dão suporte ao
presente trabalho, priorizando-se aquelas que enfatizam aspectos
intrínsecos do processo motivacional.
Seja por meio do senso comum, seja intuitivamente, cada pes-
soa possui sua própria concepção do que seja motivação, fazendo
com que o conceito pareça simples. Porém, o assunto é complexo,
discutido em diversas teorias, sendo que nenhuma delas apresenta
respostas definitivas sobre o que fazer para motivar pessoas. Entende-
-se motivação como um estado interior que induz o indivíduo a
assumir determinado tipo de comportamento (SPECTOR, 2002).
Está ligada à intensidade, pois se refere ao esforço que cada indivíduo
realiza para cumprir uma tarefa e à persistência, pois diz respeito ao
seu compromisso em não abandonar determinado comportamento.
Aplicando o conceito de motivação ao trabalho, Robbins (2010,
p. 196) a define como “[...] Processo responsável pela intensidade,
direção e persistência dos esforços de uma pessoa para o alcance de
determinada meta”.
| 122 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Pretendendo sintetizar o conceito do ponto de vista das orga-


nizações, Robbins (2010) propõe como definição de motivação
o “processo que desperta a vontade ou predisposição de realizar
esforços contínuos em relação à realização de algum objetivo or-
ganizacional, influenciada pela capacidade da organização de sa-
tisfazer determinadas necessidades individuais”. Nessa definição, o
termo “despertar” refere-se ao impulso ou energia que daria base às
ações. Nesse sentido, as pessoas podem estar interessadas em obter
uma boa imagem como profissionais em uma determinada área ou
campo de conhecimento, realizar um trabalho de elevada quali-
dade, sentirem-se bem ao executar um certo elenco de atividades,
ganharem muito dinheiro, ou então experimentarem o sentimento
de estarem contribuindo para o desenvolvimento da sociedade na
qual estão atuando.
Embora seja impossível supor que esses impulsos sejam os mes-
mos para diferentes pessoas, o que aqui surge como relevante é que
sempre existe uma ou mais razões que inspiram o comportamento de
qualquer indivíduo em qualquer organização, ou seja, o conceito de
motivação tem caráter universal e ajuda a explicar o comportamento
em inúmeras situações. Assim sendo, é o interesse dos indivíduos
que os estimula a apresentarem comportamentos que julgam que
os permitirá atender a esses motivos ou impulsos.
Para os objetivos deste trabalho o conceito de motivação in-
trínseca é de especial relevância. Conforme será detalhado no item
“metodologia”, a identificação dos estilos comportamentais parte
de uma autopercepção do indivíduo sobre suas preferências ou
orientações motivacionais e que revelam impulsos para agir mani-
festos frequentemente nas atitudes de uma pessoa. São intencionais
e influenciadas por situações vividas no contexto social. Trata-se de
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 123 |

uma variável no plano do indivíduo e deve ter validade de avalia-


ção, sendo seu papel contribuir para a melhoria do desempenho
do profissional em seu trabalho (CODA; RICCO, 2009; CODA;
CESTARI, 2008).
Diante do fato de que o conceito de orientação motivacional
representa uma preferência ou predisposição interna para agir, para
se comportar, as teorias motivacionais que dão suporte ao presente
trabalho são, como afirmamos acima, as que privilegiam aspec-
tos intrínsecos, tais como a teoria da avaliação cognitiva (DECI;
FLASTE, 1998); as teorias baseadas em necessidades, como as de
Maslow, Alderfer e McClelland, assim como os pressupostos que
ligam motivação no trabalho ao sentido ou significado a ele atri-
buído pelo profissional que o desempenha (CODA; FONSECA,
2004; SIEVERS, 1994).

Orientações motivacionais: conceito e aplicações


Desde a contribuição fundamental de Maslow, é amplamente
reconhecido que o que motiva as pessoas são suas necessidades,
principalmente aquelas que não estão suficientemente atendidas
em um dado momento. Embora essas necessidades possam ser
comuns a todos os seres humanos, as maneiras segundo as quais as
pessoas se organizam para atendê-las são específicas ou peculiares
a cada indivíduo. Entretanto, é possível reconhecer tendências
relativamente estáveis no comportamento, caracterizando o que
se denomina “orientação motivacional”. Por definição, trata-se
de um padrão de comportamento que surge frequentemente nas
atitudes de alguém.
Todavia, em função da influência de traços culturais, torna-
-se necessário adaptar tipologias dessa natureza a aspectos que
| 124 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

possam ser facilmente compreendidos por profissionais que


atuam em organizações brasileiras. De maneira oposta a outras
abordagens, o Diagnóstico M.A.R.E. representa uma tentativa de
identificar as manifestações de orientações motivacionais básicas
no trabalho, em lugar de interpretar essas motivações somente
utilizando como base autopercepções de traços de personalida-
de. Consequentemente, o questionário criado como base para
condução desta pesquisa concentrou-se em autopercepções de
comportamentos e ações privilegiadas no trabalho, considerando
os traços inatos de personalidade subjacentes a todo o processo
como um tema secundário.
Embora os usos do conceito de orientações motivacionais possam
ser numerosos, indo desde a alocação de empregados em diferentes
cargos ou áreas funcionais até a gestão da cultura de uma organi-
zação, é importante esclarecer aqui algumas situações adicionais
específicas nas quais é possível utilizar essa noção. O conceito de
orientação motivacional permite também avaliar formas preferenciais
de participar de reuniões de trabalho, compatibilizar o potencial
de empregados com requisitos do cargo, inferir sobre meios de
resolução de problemas e de fixar objetivos, bem como reduzir os
níveis de stress e conflitos no trabalho pela compreensão de que o
que motiva e energiza uma pessoa pode, ao mesmo tempo, perturbar
as ações de outra.

Erich Fromm e as diferenças individuais


Autor de orientação psicanalítica, Fromm contribuiu para a
discussão do tema das diferenças individuais ao tratar a teoria psi-
canalítica à luz da psicologia social do século 20, considerando,
então, o homem como um produto da sociedade em que vive
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 125 |

(RICCO, 2004). Em estudos mais recentes, Maccoby (2005) julga


particularmente útil para a compreensão de pessoas e de compor-
tamentos profissionais e gerenciais no trabalho as contribuições de
Freud e as de Fromm, já que estes levam em conta os aspectos de
adaptação cultural.
Fromm (1986) baseia-se na teoria freudiana, destacando o sis-
tema de impulsos que servem de base para o comportamento. Não
procura encontrar a origem do comportamento humano exclusi-
vamente nos impulsos internos e nem nas pressões sociais, mas em
uma pessoa consciente que tem determinadas necessidades e existe
dentro de uma rede de exigências sociais. Assim, identifica quatro
orientações principais que revelam predisposições do indivíduo,
classificadas como: receptiva, exploradora, acumuladora e mercantil.
A orientação receptiva revela uma preocupação com as pessoas e
com o aprendizado; a exploradora prioriza a retirada do ambiente
de todas as possibilidades que o mesmo oferece; a acumuladora
tem como foco a síntese e a projeção das experiências passadas; e
a mercantil enfatiza a preocupação dos indivíduos com as trocas,
com a adaptação e a integração.
Baseando-se nas teorias que classificam o comportamento do in-
divíduo, instrumentos de mensuração são desenvolvidos, compondo
assim os diagnósticos comportamentais (RICCO, 2004). Um deles
é o Diagnóstico M.A.R.E.® de Orientações Motivacionais. Nele,
partindo-se das orientações propostas por Erich Fromm, é proposta
e realizada uma adaptação dessas orientações ao universo do tra-
balho e à realidade brasileira, buscando construir um instrumento
válido para mensuração de orientações motivacionais no contexto
profissional do nosso país.
| 126 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O Diagnóstico M.A.R.E. de Orientações Motivacionais


O Diagnóstico M.A.R.E. fundamenta-se nas quatro orientações
propostas por Fromm (1986), adaptadas por Coda (2000) para
situações e comportamentos no contexto das organizações de tra-
balho e renomeadas como orientações motivacionais Mediadora,
Analítica, Receptiva e Empreendedora. O Quadro 4.1 apresenta
uma síntese das principais características de cada uma delas, bem
como a visualização do paralelo estabelecido entre a classificação
proposta por Coda (2000) e aquela originariamente desenvolvida
por Fromm (1986):

Quadro 4.1 Principais características das orientações M.A.R.E.


FROMM CODA Características

Foco em relacionamentos. Busca de harmonia e de


Orientação Orientação integração entre visões conflitantes em situações de
Mercantil Mediadora trabalho. Compreensão das necessidades das pessoas.
(M.) (M.) Habilidade para vender novas ideias. Facilidade para
atuar em grupos; sociabilidade, afetividade.

Foco nas estratégias. Busca de continuidade nas


Orientação Orientação ações e processos. Padrões elevados de qualidade
Acumuladora Analítica em tarefas e procedimentos. Lógica e racionalidade.
(A.) (A.) Visão de longo prazo. Impessoalidade, objetividade e
sinceridade. Aversão a riscos.

Foco nas pessoas. Desenvolvimento do talento de


Orientação Orientação equipes. Desenvolvimento das próprias habilidades
Receptiva Receptiva e competências. Reconhecimento do valor da
(R.) (R.) diversidade. Preocupação em viabilizar coisas em
lugar de dificultá-las.

Foco nos resultados. Busca por mudanças e


Orientação Orientação desafios constantes. Capacidade de agir e obter
Exploradora Empreendedora aquilo que é esperado. Inovação e inventividade.
(E.) (E.) Exploração de novos mercados e oportunidades de
negócio.

Fonte: Coda (2000, p. 6)


ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 127 |

Importante salientar que a abordagem considera que os profis-


sionais no trabalho apresentam todas essas orientações durante o
exercício de suas atividades, sendo que as diferenças ocorrem na
frequência e ordem de preferência de utilização de cada uma delas.
O Diagnóstico de Orientações Motivacionais M.A.R.E. é um
instrumento com dezesseis afirmações que retratam comporta-
mentos em situações de trabalho e que devem ser avaliadas pelo
respondente dentro de quatro alternativas possíveis. O respondente
indica qual das quatro alternativas apresentadas em cada afirmação
seria aquela com que mais se identifica como ação preferencial para
atuação, atribuindo à mesma a nota 4; a que vem em segundo
lugar, nota 3; e assim sucessivamente até atribuir nota 1 à alterna-
tiva que é mais diferente de sua preferência ou modo de agir. Esse
procedimento irá gerar oito escores, sendo um para cada uma das
quatro orientações motivacionais (M.A.R.E.) em duas situações
diferentes e que correspondem a condições normais de trabalho
(CN) e sob pressão (SP).

Caracterização dos estilos comportamentais – Estilos de Mo-


bilização (EM) brasileiros com base no Diagnóstico M.A.R.E.
Baseando-se no Diagnóstico M.A.R.E. de Orientações Motiva-
cionais, Ricco (2004) identifica, em tese de doutoramento apresen-
tada na FEA-USP em 2004, estilos de mobilização que representam
o modo de agir dos gestores e profissionais brasileiros, avançando
no que concerne à manifestação das orientações motivacionais.
Utilizando-se do banco de dados M.A.R.E., composto por 4.981
casos, Ricco (2004) realiza a comparação das possibilidades teóricas
de agrupamento com os agrupamentos obtidos por meio de análise
estatística multivariada, identificando os padrões por intermédio da
| 128 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

análise de conglomerados, descrevendo os padrões identificados e


gerando os sete perfis utilizados no presente trabalho.
A expressão Estilo de Mobilização (EM) não existia na literatura
que trata de comportamento organizacional e foi criada para atender
à necessidade de nomear os padrões comportamentais encontrados
por Ricco (2004), resultantes do Diagnóstico M.A.R.E., concebido e
validado por Coda (2000). Esse conceito refere-se ao modo peculiar
e intencional de agir nas organizações de trabalho na busca de resul-
tados e é resultante da interação entre as orientações motivacionais
em situações normais e as sob pressão. Os agrupamentos estatísti-
cos encontrados por Ricco (2004) foram considerados padrões de
comportamento gerencial e profissional, sendo descritos e nomea-
dos como Especialista, Colaborador, Conquistador, Mantenedor,
Competidor, Negociador e Realizador.
A linha de pesquisa do Diagnóstico M.A.R.E. continua a avan-
çar no que diz respeito ao mapeamento de estilos comportamen-
tais de diferentes profissionais brasileiros e na busca de relações
entre esses estilos e outras variáveis independentes, tais como o
desempenho no trabalho. Por exemplo, com base nos estilos de
mobilização, Coda e Cestari (2008) investigam as relações entre
o perfil comportamental do indivíduo e seu desempenho diante
de uma estratégia motivacional composta pelo estabelecimento
de metas, remuneração variável e concessão de promoções por
desempenho. O estudo realizado com 119 gerentes de um banco
de varejo indica que os diferentes perfis comportamentais apre-
sentam uma diferença estatisticamente significativa em relação
ao cumprimento das metas estabelecidas pela instituição e sugere
que os indivíduos com o EM Conquistador apresentam melhor
desempenho em relação aos demais, enquanto que os de EM
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 129 |

Colaborador e Especialista têm desempenhos inferiores quando


comparados aos outros estilos.
Miguel (2009) realiza estudo voltado para identificar os Esti-
los de Mobilização junto a profissionais da área de Relações com
Investidores (RI) no Brasil, revelando ser o estilo Conquistador
aquele que se apresenta como dominante. Zucco (2010) aplica a
abordagem Diagnóstico M.A.R.E. em professores de administração
em nível de graduação junto a uma expressiva universidade privada
em São Paulo, identificando como dominantes os estilos Negociador
e Mantenedor, enquanto que os estilos Colaborador e Realizador
revelaram-se significativamente mais ausentes.
O Quadro 4.2 apresenta a descrição resumida das principais ca-
racterísticas comportamentais dos Estilos de Mobilização oriundos
do Diagnóstico M.A.R.E.

Quadro 4.2 Principais características dos Estilos de Mobilização


(EM)

ESTILO DESCRIÇÃO DAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS

Controlar e reunir experiências válidas traz segurança e os relacionamentos


devem estar baseados tanto no crescimento pessoal como no bom uso das
competências dos outros. Fixa desafios referendados por ações cuidadosas
ESPECIALISTA que geram resultados contínuos, bem como preocupação para exercer
racionalidade. Tomada de decisão baseada em dados e informações
pertinentes. Busca ser expert em seu campo de atuação e é orientado para a
estratégia e processos. Apresenta-se como dono da verdade e do
conhecimento existente, agindo de modo persistente, cuidadoso e metódico.

Consegue o que é considerado de valor via troca com outras pessoas e tende
a enfatizar os relacionamentos como o único modo de receber coisas e
COLABORADOR eventos positivos, assim como obter sucesso. Mostra desejo de participar de
equipes como forma de autodesenvolvimento pessoal e profissional.
Orientado para pessoas e para a qualidade do processo de trabalho. Gosta de
ajudar os outros a encontrar soluções para os problemas existentes.

Atribui sentido a atingir objetivos e controlar o que é obtido. Assume a posse


do que é considerado de valor. Gosta de situações competitivas que
CONQUISTADOR proporcionam crescimento pessoal. Preocupado com novos horizontes de
desempenho a serem alcançados e demonstra comprometimento com
resultados baseados em processos. Busca situações em que pode mostrar
sua capacidade de desempenho e conseguir o que é esperado.

O importante é garantir ações que assegurem a continuidade de ações e de


inovações no contexto organizacional. Estabelece relacionamentos nos quais
a enfatizar os relacionamentos como o único modo de receber coisas e
COLABORADOR eventos positivos, assim como obter sucesso. Mostra desejo de participar de
equipes como forma de autodesenvolvimento pessoal e profissional.
Orientado para pessoas e para a qualidade do processo de trabalho. Gosta de
ajudar os outros a encontrar soluções para os problemas existentes.
| 130 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Atribui sentido a atingir objetivos e controlar o que é obtido. Assume a posse
do que é considerado de valor. Gosta de situações competitivas que
CONQUISTADOR proporcionam crescimento pessoal. Preocupado com novos horizontes de
desempenho a serem alcançados e demonstra comprometimento com
resultados baseados em processos. Busca situações em que pode mostrar
sua capacidade de desempenho e conseguir o que é esperado.

O importante é garantir ações que assegurem a continuidade de ações e de


inovações no contexto organizacional. Estabelece relacionamentos nos quais
MANTENEDOR pode controlar e gerenciar variáveis situacionais, enfatizando o follow-up e a
preocupação com os processos operacionais. Compreende as crenças e
opiniões das pessoas, agindo de modo responsivo, compreensivo, metódico e
persistente. Tende a evitar riscos, buscando a segurança.

Atribui sentido em obter o que é melhor no mundo, sempre pronto a correr


riscos e tomar decisões sobre o que precisa ser feito. Busca desafios que
COMPETIDOR dependem do desempenho competitivo, obstinado e determinado. Focado em
vencer e obter resultados, como com os processos que os asseguram.
Compara-se com os outros ao obter resultados, assumindo a
responsabilidade pela resolução de problemas.

O importante é obter resultados positivos, mesmo que seja necessário mudar


de atitudes para tanto. Promove ações voltadas para a consecução de metas
REALIZADOR organizacionais e prefere lidar com situações nas quais pode fazer as coisas
acontecerem. Orientado para resultados pessoais e organizacionais, age de
modo flexível, animado e proativo.

O importante é implementar trocas vantajosas, resguardando o que foi obtido.


Adaptar-se a novas situações e mudar de opinião não significa perda de
NEGOCIADOR território pessoal. Promove a integração. Demonstra capacidade de
convencimento e considerável habilidade de compreender as necessidades
das pessoas e de resolver conflitos. Coloca-se no lugar dos outros e
orienta-se para a aquisição da visão organizacional.

Fonte: Adaptado de Ricco (2004).

Questões de pesquisa
O contexto e a fundamentação teórica apresentados permitem
o estabelecimento das questões de pesquisa deste trabalho, a seguir
identificadas.
QP1 - Há estilo(s) de mobilização (EM) predominante(s) entre os
profissionais da área de gestão de pessoas (RH)?
QP2 - Há diferenças de estilo(s) de mobilização predominante(s)
entre os profissionais da área de gestão de pessoas (RH) que atuam em
organizações de natureza pública e aqueles que exercem suas atividades
em organizações privadas?
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 131 |

4.4 METODOLOGIA

A fim de tornar claro como o presente estudo foi realizado, são


apresentadas a seguir a caracterização do tipo de pesquisa, seus su-
jeitos, ferramentas utilizadas, procedimentos para a coleta de dados,
bem como as diferentes etapas levadas a efeito.
A metodologia utilizada para o desenvolvimento deste trabalho
tem caráter quantitativo, marcada pelo uso de medidas descritivas
para a análise dos dados. Sob o ponto de vista dos objetivos e na-
tureza do problema, a pesquisa caracteriza-se como exploratória, já
que procura proporcionar maior familiaridade com o problema com
vistas a torná-lo explícito ou a construir hipóteses. O instrumento
de coleta de dados utilizado foi o Diagnóstico M.A.R.E. descrito
em tópicos anteriores, disponibilizado sob autorização de Coda, e os
Estilos de Mobilização foram apurados conforme os procedimentos
sugeridos por Ricco (2004). As etapas metodológicas executadas
durante a realização da pesquisa acham-se descritas a seguir.

ETAPAS
A. Formação e análise da amostra setor público
Foram utilizados os dados coletados de 321 profissionais da
área de gestão de pessoas (RH) da Secretaria Municipal de Saúde
da Prefeitura da Cidade de São Paulo (SMS-SP) e de diferentes
secretarias de estado também em São Paulo. Os resultados do diag-
nóstico de orientações motivacionais desses profissionais pertencem
ao banco de dados do Diagnóstico M.A.R.E., sob responsabilidade
do Prof. Dr. Roberto Coda. A coleta foi realizada em programas de
desenvolvimento profissional executados pelo referido professor no
período de 2009 a 2012.
| 132 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

B. Formação e análise da amostra setor privado


O questionário de orientações motivacionais M.A.R.E. foi
aplicado também para 87 profissionais da área de gestão de pes-
soas (RH) que atuam exclusivamente em empresas privadas. Nesse
caso, a forma de coleta dos dados foi tanto presencial quanto por
meio eletrônico. O público alvo dessa consulta é formado por
integrantes do Grupo Abril e por alunos e ex-alunos de turmas
do curso MBA em Recursos Humanos da Fundação Instituto
de Administração (FIA).
A estratégia de levantamento dos dados utilizada para as duas
amostras caracteriza um processo de amostragem por conveniên-
cia. Os profissionais que fizeram parte da pesquisa tiveram suas
identidades protegidas e receberam, sem custo, o laudo descritivo
de seu Estilo de Mobilização, além de material explicativo sobre
a abordagem M.A.R.E. e seu instrumento de diagnóstico.
C. Identificação dos Estilos de Mobilização
Conforme procedimentos descritos por Ricco (2004), com
os valores obtidos para as quatro diferentes orientações motiva-
cionais avaliadas, foram processados em software específico os
cálculos que permitem identificar o estilo de mobilização para
cada participante das duas diferentes amostras coletadas.
D. Análise comparativa geral
Os estilos de mobilização (EM) do total de profissionais de
Gestão de Pessoas (RH), englobando a soma dos profissionais
da empresa pública com aqueles atuando nas empresas priva-
das, foram comparados com os EM disponíveis para a amostra
de profissionais brasileiros, a fim de identificar a ocorrência de
estilos dominantes.
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 133 |

E. Análise comparativa específica


Nesta etapa foram comparados os estilos de mobilização dos
profissionais de gestão de pessoas (RH) que atuam nas organi-
zações públicas pesquisadas com aqueles dos profissionais que
trabalham nas empresas privadas, a fim de identificar a ocor-
rência de diferentes estilos dominantes entre as duas amostras
consideradas.

4.5 RESULTADOS DA PESQUISA

CARACTERIZAÇÃO DAS AMOSTRAS


As informações sobre os 321 profissionais do setor público
referem-se somente aos respectivos Estilos de Mobilização (EM).
No que tange os 87 indivíduos que atuam em empresas privadas,
eles trabalham em empresas nacionais e multinacionais perten-
centes a diversos setores, tais como bancos, indústrias, comércio,
internet, varejo, mídia, gráfica, logística e distribuição, educação,
farmacêutica, construção e consultoria. Do total, 68% pertencem
ao Grupo Abril e 32% são alunos e ex-alunos do MBA de RH da
FIA; 58% têm curso de pós-graduação (MBA ou especialização) e
45% ocupam posição gerencial (alta e média gerência) ou de nível
executivo. Entre os profissionais do Grupo Abril, 55% atuam na
área de processos e os demais em áreas consideradas estratégicas,
como consultoria interna, remuneração, comunicação, desenvol-
vimento organizacional e gestão de desempenho.
Entre os profissionais do setor público, 85% são do sexo femi-
nino e 15% são do sexo masculino, enquanto que nas empresas
privadas 78% são do sexo feminino e 22% são do sexo masculino.
| 134 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

OS ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS


DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS

A Tabela 4.1 apresenta a composição dos Estilos de Mobilização


(EM) identificados junto aos profissionais de gestão de pessoas
(RH), considerando a soma das duas amostras. Os dados indicam
como tendência geral que esses profissionais são principalmente
Negociadores, Mantenedores e Colaboradores e que há menor
representatividade entre os Competidores, Realizadores, Conquis-
tadores e Especialistas.

Tabela 4.1 Distribuição dos Estilos de Mobilização dos


profissionais de gestão de pessoas pesquisados nas amostras
coletadas (setor público e privado)

ESTILO DE MOBILIZAÇÃO Total Porcentagem

Colaborador 56 14%

Competidor 29 07%

Conquistador 49 12%

Especialista 50 12%

Mantenedor 88 22%

Negociador 102 25%

Realizador 34 08%

Total 408 100%

A Tabela 4.2 revela os EM identificados junto aos profissionais


das secretarias do setor público. Os dados indicam um padrão
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 135 |

bastante próximo à amostra geral, uma vez que esses profissionais


são também principalmente Negociadores, Mantenedores e Co-
laboradores; e há menor representatividade dos EM Competidor,
Realizador, Conquistador e Especialista.

Tabela 4.2 Distribuição dos Estilos de Mobilização nas


Secretarias do setor público

ESTILO DE MOBILIZAÇÃO Total Porcentagem

Colaborador 54 17%

Competidor 19 06%

Conquistador 31 10%

Especialista 34 11%

Mantenedor 70 22%

Negociador 92 29%

Realizador 21 07%

Total 321 100%

A Tabela 4.3 apresenta os EM identificados junto aos profissionais


das empresas privadas. Os dados indicam um padrão diferente
da amostra geral, uma vez que os indivíduos do setor privado são
principalmente Conquistadores, Mantenedores, Especialistas e
Realizadores; e há menor representatividade dos EM Colaborador,
Competidor e Negociador, diferentemente do que ocorre na amostra
de profissionais do setor público.
| 136 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Tabela 4.3 Distribuição dos Estilos de Mobilização nas empresas


privadas (Grupo Abril e MBA-FIA)

ESTILO DE MOBILIZAÇÃO Total Porcentagem

Colaborador 02 02%

Competidor 10 11%

Conquistador 18 21%

Especialista 16 18%

Mantenedor 18 21%

Negociador 10 11%

Realizador 13 15%

Total 87 100%

A Tabela 4.4 apresenta a comparação dos EM identificados


junto aos profissionais de RH dos setores público e privado com a
amostra em escala nacional coletada junto a profissionais de todas
as áreas. Embora o valor do teste qui-quadrado não tenha revelado
diferença significante entre a amostra nacional e a de profissionais
de gestão de pessoas, (p<0,05), é possível observar que os estilos
Competidor e Realizador apresentam uma proporção menor na
amostra de profissionais de RH em relação à amostra nacional geral,
enquanto que os estilos Mantenedor e Negociador apresentam uma
proporção maior, confirmando, em parte, a questão de pesquisa 1
do presente estudo.
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 137 |

Tabela 4.4 Comparação da distribuição dos Estilos de


Mobilização dos profissionais de gestão de pessoas (RH)
pesquisados (408) com a amostra nacional de profissionais
(4981)

ESTILO DE MOBILIZAÇÃO Total Porcentagem

Colaborador 14% 15%

Competidor 07% 13%

Conquistador 12% 15%

Especialista 12% 15%

Mantenedor 22% 14%

Negociador 25% 14%

Realizador 08% 14%

Total 100% 100%

A Tabela 4.5 apresenta a comparação dos EM identificados junto


aos profissionais das empresas privadas com a amostra de profissio-
nais em nível nacional. Os dados indicam haver diferenças signifi-
cativas para os estilos Colaborador, Conquistador e Mantenedor. A
proporção destes dois últimos estilos é maior entre os profissionais
do campo de gestão de pessoas do setor privado, enquanto a do estilo
Colaborador revela-se bastante menor em relação à amostra nacional.
| 138 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Tabela 4.5 Comparação da distribuição dos Estilos de


Mobilização dos profissionais de gestão de pessoas (RH)
nas empresas privadas (Grupo Abril e MBA-FIA) com a amostra
nacional

ESTILO DE MOBILIZAÇÃO Total Porcentagem

Colaborador 02% 15%

Competidor 11% 13%

Conquistador 21% 15%

Especialista 18% 15%

Mantenedor 21% 14%

Negociador 11% 14%

Realizador 15% 14%

Total 100% 100%

A Tabela 4.6 apresenta a comparação dos EM identificados junto


aos profissionais de gestão de pessoas (RH) no setor público com
a amostra de profissionais em nível nacional. Os dados indicam
haver diferenças significativas para os estilos Competidor, Reali-
zador, Conquistador, Mantenedor e Negociador. A ocorrência dos
estilos Competidor, Realizador e Conquistador é menor entre os
profissionais da área de gestão de pessoas e a dos estilos Negociador
e Mantenedor revela-se maior em relação à amostra nacional.
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 139 |

Tabela 4.6 Comparação da distribuição dos Estilos de


Mobilização dos profissionais de gestão de pessoas (RH)
nas organizações públicas com a amostra nacional

ESTILO DE MOBILIZAÇÃO Total Porcentagem

Colaborador 17% 15%

Competidor 06% 13%

Conquistador 10% 15%

Especialista 11% 15%

Mantenedor 22% 14%

Negociador 29% 14%

Realizador 07% 14%

Total 100% 100%

A Tabela 4.7 apresenta a comparação dos EM identificados


junto aos profissionais da área de gestão de pessoas (RH) da or-
ganização pública com aqueles dos indivíduos de instituições
privadas, atuando também na área de RH. O valor obtido para o
teste qui-quadrado indica que existem diferenças estatísticas signi-
ficantes entre os valores obtidos para as duas amostras ao nível de
p<0,001. Os dados mostram divergências significativas para todos
os estilos, exceto o Mantenedor, para o qual as proporções são equi-
valentes. Nas empresas privadas, é maior a ocorrência dos estilos
Competidor, Realizador, Conquistador e Especialista, enquanto
que a dos estilos Colaborador e Negociador são mais frequentes
| 140 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

entre os profissionais que atuam nas organizações públicas. Esses


resultados confirmam a questão de pesquisa 2 do presente estudo.
Tabela 4.7 Estilos de Mobilização dos profissionais de gestão de
pessoas nas empresas privadas e na empresa pública

ESTILO DE MOBILIZAÇÃO Total Porcentagem

Colaborador 17% 2%

Competidor 6% 11%

Conquistador 10% 21%

Especialista 11% 18%

Mantenedor 22% 21%

Negociador 29% 11%

Realizador 7% 15%

Total 100% 100%

4.6 CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

O profissional de gestão de pessoas, elo entre o corpo de co-


laboradores e a direção da organização, tem se deparado, assim
como profissionais de outros campos, com um ambiente corpo-
rativo em constante mudança e também com crescentes níveis de
competitividade e de complexidade. Para enfrentar esses desafios,
o indivíduo desenvolve comportamentos específicos que são for-
madores de seu estilo de mobilização no trabalho, caracterizando-o
como um integrante de um conjunto de profissionais de ações
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 141 |

similares, ou seja, como uma população com características com-


portamentais próprias. O presente estudo contribuiu para esclare-
cer quais características são essas no que diz respeito ao modo desse
profissional agir em busca de resultados, atendendo seu objetivo
geral. Assim, os dados do conjunto dos 408 respondentes obtidos
confirmam a questão inicial, uma vez que revelam que há estilos de
mobilização (EM) predominantes entre os profissionais de RH,
a saber: Negociador, Mantenedor e Colaborador. Os EM Com-
petidor, Realizador e Conquistador são pouco representativos
nesse grupo.
Esses resultados revelam-se compatíveis com padrões tradi-
cionais de atuação e até certo ponto esperados do profissional de
gestão de pessoas (RH). O indivíduo que trabalha nessa área, desde
o seu surgimento no Brasil em meados dos anos 1970, sempre foi
responsabilizado pela intermediação entre as necessidades da força
de trabalho e as efetivas possibilidades de atendimento das mes-
mas por parte da direção da organização. Portanto, nesse âmbito
de atuação, estabelecer acordos vantajosos para ambas as partes
— característica marcante do estilo Negociador —, bem como
estabelecer e dar continuidade às políticas e normas de gestão de
pessoas — comportamentos típicos do Mantenedor — equilibram-
-se com o que historicamente é considerado ideal e mesmo eficaz
para o desempenho enquanto profissional “padrão” da área. O
terceiro estilo identificado como dominante — o Colaborador
— também se encaixa nesse contexto que considera ainda a área
de gestão de pessoas como provedora de ajuda aos empregados
no trabalho. Essa ajuda viria seja por meio da execução de pro-
gramas de desenvolvimento e de treinamento, seja pela melhoria
contínua das demais políticas de RH, principalmente aquelas
| 142 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

ligadas à valorização e ao reconhecimento dos empregados. Além


disso, vale lembrar que, quando ainda era dominante essa visão
mais tradicional da gestão de RH, não se exigia do profissional
da área, de modo mais intenso e frequente, uma postura voltada
especificamente para a geração de resultados e criação de valor
nas organizações.
A partir do final dos anos 1990 essa situação se altera substan-
cialmente com o início da era da globalização e da competitividade,
trazendo o imperativo — inclusive para o profissional de RH
— de orientar-se para a consecução dos resultados organizacio-
nais. Provavelmente, essa nova realidade explica parcialmente as
diferenças entre os profissionais do setor público e privado, no
que se refere às proporções em que apresentam os estilos ligados
à orientação empreendedora — o Realizador, o Conquistador
e o Competidor —, cujos comportamentos típicos pautam-se
pela realização do que foi planejado, geração de resultados e de
produtividade, assim como pela busca de desafios constantes
no exercício das atividades. Ainda assim, a primeira questão de
pesquisa levantada pelo presente estudo tem resposta afirmativa
quando se comparam os perfis dos profissionais de RH com os da
amostra nacional geral, uma vez que foram identificados estilos
de mobilização mais frequentes e estilos com menos ocorrência
junto aos profissionais de gestão de pessoas, restando explorar
mudanças na composição desses estilos em função do tipo de
organização em que o profissional trabalha.
Neste sentido, ainda que em caráter preliminar em razão de sua
abrangência, outro resultado significante do presente estudo e que
atende ao seu segundo objetivo definido diz respeito às diferenças de
estilo de mobilização encontradas entre os profissionais de gestão de
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 143 |

pessoas que atuam em empresas privadas e aqueles das organizações


públicas. Conforme mencionado, nas empresas privadas são maiores
as proporções dos estilos Competidor, Realizador, Conquistador e
Especialista, enquanto que a proporção dos estilos Colaborador e
Negociador é maior junto aos profissionais que atuam na instituição
pública.
Esses resultados parecem indicar a ocorrência de dois fatos distin-
tos no contexto das organizações privadas. Em primeiro lugar, pode
ter havido uma substituição dos profissionais de gestão de pessoas,
contratando-se profissionais com foco em resultados e, portanto,
com estilos comportamentais mais compatíveis às necessidades de
curto prazo das empresas de fazer frente a um mundo corporativo
pautado pela competitividade. Em segundo lugar, há a possibilida-
de, mais complexa e desafiadora, de os profissionais da área terem
conseguido efetuar um salto qualitativo em termos de foco para seu
desempenho. Assim, em função das necessidades de contexto, eles
podem ter passado a se orientar mais para a geração de resultados,
busca e consecução dos desafios, preocupações principais de três
dos estilos de mobilização dominantes (competidor, conquistador
e realizador). A importância também do estilo de mobilização Es-
pecialista nas empresas privadas indica que, nessas organizações,
seja a substituição, seja a mudança comportamental ocorrida, não
se fizeram sem se perder de vista a qualidade e a eficiência técnica
nos processos e atividades de RH, preocupações essenciais de pro-
fissionais desse estilo de mobilização.
Já nas organizações públicas pesquisadas, os estilos encontrados
— Negociador e Mantenedor — dão conta de atender aos desafios
mais tradicionais de atuação do profissional de gestão de pessoas
com foco na resolução de conflitos entre empregado e empregador
| 144 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

e promoção da evolução paulatina das políticas voltadas para a


valorização do quadro de funcionários. Vale também lembrar que
no setor público a preocupação direta com resultados e metas é
mais recente ou ainda não se incorporou às agendas de trabalho. A
resposta que vem sendo dada resume-se nas tentativas de implan-
tação de modelos de gestão de pessoas com base em competências
que promovam, mesmo que de modo indireto, a alavancagem dos
objetivos organizacionais pretendidos.
Outro ponto de interesse em termos de implicações do presente
trabalho é seu diálogo com as perspectivas de Ulrich (1997, 2000)
e Smilansky (1997) para atuação da área de gestão de pessoas (RH).
Segundo esses autores, a nova agenda para a área de RH e seus
profissionais prioriza dois pontos essenciais: primeiro, alavancar a
competitividade do negócio e, em segundo lugar, caso o primeiro
aspecto seja alcançado, desempenhar um papel e ser reconhecido
como estratégico no contexto organizacional. Para tanto, os pro-
fissionais devem focar as “entregas” de seu trabalho, mais do que
a qualidade técnica e a especialização no que fazem. Eles devem
articular seu papel em termos de valor criado, reorientando as
funções de RH para que façam os resultados fluírem rapidamente;
desenvolver a capacidade de medir resultados e impactos de suas
políticas e procedimentos no aumento da competitividade de
suas organizações, em lugar de prioritariamente prover conforto
e bem-estar aos empregados. Em resumo, os profissionais devem
se conscientizar que precisam liderar a transformação cultural em
seus contextos de trabalho.
No que diz respeito aos papéis operacionais e estratégicos a
serem desempenhados pela área de RH e seus profissionais, Ulrich
(1997, 2000) indica que os principais são: (1) parceiro estratégico:
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 145 |

significa alinhar a estratégia de RH com a do negócio por meio de


diagnósticos, caracterizando como entrega final a execução da estra-
tégia empresarial; (2) especialista administrativo: representa os esforços
para analisar e propor melhorias não somente dos processos de RH,
mas também dos organizacionais; sendo a entrega final a eficiência
administrativa; (3) defensor dos empregados: caracteriza-se pela preocu-
pação e postura de ouvir as demandas e dar respostas aos empregados,
fornecendo como entrega final o aumento das competências e do
comprometimento dos empregados e (4) agente de mudança: busca
a garantia da execução e da operacionalização de processos que dão
suporte à mudança, tendo como entrega final a capacidade da orga-
nização para mudar e perseguir seus objetivos, metas e resultados.
Dentro desse quadro referencial, os resultados do estudo de
campo revelam que, nas organizações públicas pesquisadas, os pro-
fissionais de RH possuem estilos de mobilização mais compatíveis
com os papéis de parceiro estratégico e de defensor dos empregados,
uma vez que os estilos dominantes são Mantenedor, Negociador
e Colaborador, enquanto que nas empresas privadas os estilos
identificados como dominantes — Competidor, Realizador, Con-
quistador e Especialista — apoiam mais diretamente os papéis de
agente de mudança e de especialista administrativo.
Para finalizar este estudo, vale ressaltar que conhecer os esti-
los de mobilização dos profissionais de Gestão de Pessoas (RH)
permite não somente compreender melhor suas motivações e
principais características comportamentais, mas também orientar
a contratação, a retenção e o desenvolvimento desses profissionais.
Estilos de mobilização identificados como dominantes permitem
avaliar quais papéis terão maior probabilidade de serem cumpri-
dos, uma vez que determinados estilos fornecem base natural para
| 146 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

determinados papéis. Assim, se o desafio para atuação estiver ligado


à geração de resultados, recomenda-se buscar profissionais com
os estilos Conquistador, Competidor e Realizador. Se o interesse
é obter o comprometimento, a valorização e a identificação dos
empregados com a empresa, os estilos Colaborador e Negociador
seriam mais indicados.
Em termos de desenvolvimento desses profissionais, no caso da
organização pública, seriam recomendáveis programas de treina-
mento voltados para a gestão empreendedora e para o estabele-
cimento e derivação de metas departamentais em apoio a metas
organizacionais, independentemente da estratégia empresarial
vigente, uma vez que a presença dos estilos de mobilização deri-
vados da orientação empreendedora revelou-se muito baixa. De
outro modo, nas empresas privadas, o esforço de desenvolvimento
do profissional de gestão de pessoas deve ser direcionado para o
papel de defensores dos empregados que depende, essencialmente,
da orientação motivacional receptiva, presente de modo intenso
no estilo Colaborador. Pode-se, por exemplo, realizar programas
de treinamento voltados para a compreensão de diferenças indi-
viduais, diversidade, ética, relacionamento interpessoal e trabalho
em equipe.
Cumpre ainda observar que são limitações deste estudo o
tamanho e a intencionalidade das amostras utilizadas na análise.
Dessa forma, no estágio atual da pesquisa, não é ainda possível
generalizar os resultados obtidos para todos os profissionais de
gestão de pessoas (RH), uma vez que isso dependeria de um
planejamento detalhado de amostragem e coleta de dados.
Recomenda-se, portanto, que outros estudos sejam realizados
com amostras maiores e mais representativas, com organizações
ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 147 |

públicas e privadas de vários segmentos e portes para que seja


possível avaliar, em função de resultados mais abrangentes, o
próprio caráter estratégico da área da gestão de pessoas (RH)
nas organizações.

4.7 REFERÊNCIAS

BOWDITCH, J. L. Elementos de comportamento organiza-


cional. São Paulo: Pioneira, 1992.
CODA, R.; CESTARI, R. V. A relação entre perfis de com-
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fissionais de ciência, tecnologia e informação (C,T&I). Revista
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p. 15-33, 2009.
______. Understanding intrinsic motivation: a research among
Brazilian professionals. In: Annual Research Conference, North Ca-
rolina, Proceedings..., Bowling Green: Academy of Human Resource
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______.; FONSECA, G. F. Em busca do significado do trabalho
– relato de um estudo qualitativo entre executivos. RBGN – Revista
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| 148 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

DAVIDOFF, L. L. Introdução à psicologia. São Paulo: MaKron


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DECI, E.; FLASTE, R. Porque fazemos o que fazemos – en-
tendendo a automotivação. São Paulo: Negócio, 1998.
DUTRA, J. S. Gestão de pessoas. São Paulo: Atlas, 2009.
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MIGUEL, L. F. Estilos comportamentais dos profissionais
da área de relações com investidores. Dissertação (Mestrado em
Administração) — Universidade Municipal de São Caetano do Sul,
São Paulo, 2009.
RICCO, M. F. F. Construindo perfis de mobilização em am-
biente organizacional: os estilos de mobilização dos gestores bra-
sileiros. Tese (Doutorado em Administração ) — Universidade de
São Paulo (USP), São Paulo, 2004.
ROBBINS, S. P. Comportamento organizacional. São Paulo:
Pearson Prentice Hall, 2010.
SIEVERS, B. Work, death, and life itself. Berlin: Walter de
Gruyter, 1994.
SMILANSKY, J. The New HR. Boston: International Thomson
Business Press, 1997.
SPECTOR, P. E. Psicologia nas organizações. São Paulo:
Saraiva, 2002.
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ESTILOS COMPORTAMENTAIS DOS PROFISSIONAIS ........................
DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS | 149 |

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os profissionais de RH. São Paulo: Futura, 2000.
Zucco, A. Estilos de mobilização profissional de docentes em
cursos de graduação em Administração. Dissertação (Mestrado
em Administração) — Universidade Municipal de São Caetano do
Sul, São Paulo, 2010.
CAPÍTULO 5

Relações de trabalho e gestão pública


no Brasil contemporâneo1

ARNALDO JOSÉ FRANÇA MAZZEI


NOGUEIRA
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade
Estadual de Campinas e professor da PUC-SP e
FEA-USP.
CAPÍTULO 5
2

1 Este capítulo é uma versão reduzida e modificada do artigo Relações de Trabalho e Gestão
Pública no Brasil Contemporâneo, publicado na Revista do Departamento de Direito do Trabalho e da
Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP (v.2, n. 3, jan./jun. 2007)..
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 153 |

As questões principais que se pretendem discutir neste capítulo


são as seguintes: como entender os conflitos e as relações de trabalho
no Estado em comparação com o setor privado? Qual o papel do
sindicalismo público nesse contexto? No Brasil, como se deram as
mudanças na gestão pública e nas relações de trabalho e sindicais
no Estado?
Os conflitos são inerentes às relações entre trabalho e capital na
sociedade. E no interior do Estado capitalista quais são as fontes
do conflito?
As fontes de conflito no Estado capitalista encontram-se du-
plamente determinadas pelas relações diretas entre funcionários
e níveis de governo do Estado e pelas contradições do regime
capitalista de produção. Importantes referências sobre o tema
foram desenvolvidas por Poulantzas em vários trabalhos. No seu
livro Poder político e classes sociais, há indicações teóricas relevantes
sobre o tema, em especial na parte sobre a burocracia e as elites
(parte V), onde se discute a primeira negando-lhe um papel de
força social independente ou com poder próprio, e afirmando a
natureza de uma categoria específica, com uma certa autonomia
relativa (a autonomia relativa do Estado) e uma unidade própria
| 154 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

de interesses. Em seguida, o mesmo autor, em coletânea sob sua


organização intitulada O Estado em crise, desenvolve discussão
específica sobre o pessoal do Estado no contexto de suas transfor-
mações contemporâneas e de sua crise política e funcional. Nas
palavras de Polantzas (1977):

Insisti até aqui no aspecto de crise do Estado, que


concerne a suas instituições e aparelhos, e que é o
aspecto fundamental desta crise. Ele não impede que
esta crise do Estado se manifeste igualmente sob um
outro aspecto que é o da crise do pessoal do Esta-
do (pessoal político, funcionários, juízes, militares,
policiais, professores etc.), em suma, uma crise da
burocracia de Estado em sentido amplo. Na verdade,
a crise política se traduz no próprio interior do corpo
do pessoal estatal de várias maneiras: a) como crise
institucional do Estado, quer dizer precisamente
como reorganização do conjunto dos aparelhos de
Estado; b) como acentuação, com traços próprios,
da luta e das contradições de classe tal como, elas se
exprimem, de modo específico, no seio do pessoal
de Estado; c) como ascensão das reivindicações e
das lutas próprias ao pessoal do Estado.

Em seguida, Poulantzas argumenta que ocorrem divisões e con-


tradições internas acirradas no seio do pessoal do Estado, colocando
em questão a sua própria unidade específica, no que se refere à
estrutura organizacional própria dos aparelhos estatais, seguindo a
trama de sua autonomia relativa. Diferente do conflito entre capital
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 155 |

e trabalho, no aparelho de Estado esses conflitos se revestem na


forma de brigas, fissuras e reorganizações entre membros de diver-
sos ramos, além de fricções entre facções e corporações. Ocorrem
também divergências de natureza política e ideológica que dividem
o pessoal entre posições mais à esquerda ou à direita, muitas vezes,
estranhas ao papel aparente de neutralidade e de árbitro, acima das
classes, que o Estado exerce na sociedade.
Por último, Poulantzas retoma a discussão em O Estado, o poder,
o socialismo, mostrando os limites das lutas internas e da própria
politização do pessoal, diante do problema mais fundamental, que
é o da transformação do Estado em suas relações com as massas
populares. Ao indagar sobre

[...] se é preciso transformar o Estado a fim de poder


modificar as práticas de seu pessoal, em que medida
se pode contar, nessa transformação do aparelho de
Estado, com o pessoal que se inclina para as massas
populares? (POULANTZAS, 1981)

A resposta de Poulantzas é de desconfiança quanto a essa possibi-


lidade, porque além do pessoal resistente a qualquer transformação,
o pessoal mais à esquerda tende às massas populares apenas sob a
condição de uma determinada continuidade que sustente o próprio
Estado ou exatamente para que esta continuidade do Estado seja
assegurada.
Nas palavras do autor:

Esta atitude, constantemente verificada, não se atém


apenas à defesa de privilégios corporativistas, aliás
| 156 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

evidentes: se a burocracia de Estado tem igualmente


interesses próprios a defender [...] interesse pela es-
tabilidade [...] isso não é o essencial. Paralelamente
à considerável extensão desse pessoal do Estado, os
privilégios da função pública são postos em questão
por uma importante parcela desse pessoal. Mas, se
esta situação favorece incontestavelmente sua poli-
tização para a esquerda, parece certamente apontar
sempre os limites relativos ao arcabouço material
do Estado.

Assim, Poulantzas aponta limites para qualquer processo de


transformação do Estado no sentido do socialismo democrático
que parta do seu interior e com a iniciativa do próprio pessoal
do Estado, mesmo que este se incline às massas populares. Há os
limites relativos ao arcabouço material do Estado.
Guardadas as devidas proporções, o argumento de Poulantzas
informa e ajuda a entender os limites da mobilização sindical do
pessoal do Estado no Brasil no contexto da democracia constitu-
cional entre 1988 e 2005. Tal argumento contribui também para
a discussão da dinâmica do conflito das relações de trabalho no
Estado, que passa pela própria crise política e funcional do Estado
capitalista e do papel da burocracia enquanto categoria específica
(o pessoal do Estado) na luta pelos seus interesses específicos.
Em particular, a luta do pessoal pelos seus interesses específicos
não corresponde diretamente às mudanças necessárias no próprio
Estado no sentido de responder com mais efetividade aos interesses
das massas populares, o que implicaria na expansão da democracia
e abertura de outras possibilidades no futuro.
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 157 |

Na verdade, o que ocorreu com o Estado em geral entre o fim dos


anos 1970 e o início dos 2000 foi uma profunda transformação no
sentido da crise mesma do Estado, ganhando cada vez mais espaço
o programa do Estado mínimo ou enxuto, informado pela hege-
monia neoliberal, em contraponto ao Estado do bem-estar social.
Assim, as lutas sociais que envolveram o setor público nas últimas
duas décadas visavam sobretudo a manutenção geral do Estado do
bem- estar social.
Uma passagem de Kliksberg (2005) atualiza os termos do de-
bate tendo como objeto a discussão do atual papel do Estado na
América Latina:

El Estado reaparece en este nuevo contexto políti-


co, como un actor imprescindible para promover e
impulsar cambios en los rumbos deseados. La po-
blación descontenta ha renovado según las encuestas
sus expectativas sobre el rol del Estado. El péndulo
ha dado una vuelta completa, desde su absoluta
desacreditación a inicios de los 80, hasta una gran
expectativa actualmente, tras la desilusión con los
logros de la minimización del Estado y de la mano
invisible. Pero la población aspira claramente a un
Estado de nuevo tipo, muy diferente de aquel del
pasado. El mandato emergente va en la dirección
de un Estado activo, pero asociado estrechamente
con la sociedad civil, y potenciador de la producción
nacional, fuertemente centrado en lo social, descen-
tralizado con gran parte de su acción desarrollada
a nivel regional y local, totalmente transparente,
| 158 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

rendidor de cuentas, y sujeto al control social, de alta


eficiencia gerencial, y apoyado en un servicio civil
profesionalizado basado en el mérito. Asimismo se
aspira que sea un Estado abierto a canales continuos
de participación ciudadana.

Concorde-se ou não com Kliksberg sobre a ideia de um novo


tipo de Estado mais associado à sociedade civil etc., cabe a pergun-
ta sobre quem são os agentes capazes de encaminhar o projeto de
transformação democrática do Estado colocado no momento como
uma das possibilidades objetivas.
Essa tarefa pressupõe uma articulação das forças sociais e políticas
divergentes de fora e de dentro do Estado, o que pode se configurar
em conflito mais complexo em determinados momentos de crise e
mudança do próprio Estado, envolvendo a questão das relações de
trabalho e do comportamento social e político do pessoal do Estado.

5.1 AS ESPECIFICIDADES DAS RELAÇÕES DE


TRABALHO NO CAMPO ESTATAL

Hyman (1981), ao estudar as relações industriais, propõe um


enfoque em que elas aparecem como um elemento dentro de
uma totalidade que compreende o conjunto de relações sociais
de produção. Ciente de que a noção de relações industriais possa
ocultar as contradições entre trabalho e capital, Hyman considera
a existência de processos e forças contraditórias que trazem tanto
estabilidade como instabilidade nos sistemas; e a regulação do
trabalho depende do conflito nas relações de trabalho. O autor
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 159 |

entende as relações industriais em geral como os processos de


controle sobre as relações de trabalho e entre esses processos,
a organização e ação coletiva dos trabalhadores se revestem da
maior importância.
Nessa linha, discutir uma teoria sobre as relações de trabalho de
forma abrangente envolve pensar sobre um conjunto complexo de
relações, a começar pela relação direta entre trabalhadores e empre-
gadores, trabalhadores e organizações sindicais (lideranças e bases),
formas de controle (pessoal, burocrático e técnico) sobre a força de
trabalho nas empresas e nas organizações, relações entre sindicatos
trabalhistas e patronais, legislação trabalhista e as políticas no campo
das relações de trabalho do Estado.
Para o caso do setor público, ou para a esfera interna do Estado
capitalista, o termo “relações industriais”, evidentemente, não seria
adequado. Por isso é mais apropriado adotar a noção de “relações de
trabalho no setor público”, cuja especificidade não nega sua condição
de pertencer a uma totalidade de relações sociais de produção, pre-
dominantemente capitalistas, que informam as fontes dos conflitos
do trabalho no setor público e no Estado.
No entanto, as especificidades desse setor devem ser apontadas.
Em primeiro lugar, são relações de trabalho entre não proprietários
de meios de produção (funcionários e governo ou governantes e
dirigentes), em vez de relações sociais diretamente capitalistas. Isso
significa, em uma análise marxista, que não há no relacionamento
coletivo dentro do Estado, nas atividades de administração, con-
trole e de prestação de serviços públicos, produção direta de valor
para acumulação de capital. Trata-se então de trabalho assalariado
improdutivo, nos termos discutidos no Capítulo VI (inédito) de O
Capital, de Marx.
| 160 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Isso, porém, não significa que não haja exploração direta do trabalho
pelo Estado. A exploração ocorre na esfera da reprodução do capital, ou
seja, nos processos de serviços e administração voltados à reprodução
social e política do conjunto da sociedade de classes. A taxa de explora-
ção do trabalho no Estado envolve a quantidade de salário em relação
à jornada de trabalho e às condições necessárias de vida em sociedade,
mas não é realizada para produzir, e sim reproduzir o capital.
A questão dos salários informa sobre o padrão de vida dos assa-
lariados. Assim, as políticas de contenção dos gastos públicos para
enfrentar as crises dos Estados capitalistas submetem os funcionários
públicos a permanentes arrochos salariais e deteriorações das suas
condições de trabalho. Qualquer proposta atual sobre um sistema
de relações de trabalho para o setor público depende do encaminha-
mento dessas questões da defasagem e das perdas salariais históricas
e da melhoria das condições gerais de trabalho.
Na condição de assalariado, o trabalhador do setor público, no
caso brasileiro, encontra-se atualmente em três regimes diferentes: 1)
servidor estatutário, sujeito a um regime que significa, na verdade,
“parte do Estado” ou “ocupante de cargo público” — trata-se de
um assalariado possuidor de um cargo com direitos especiais que
reflete em sua identidade, ora visto como servidor público, ora como
trabalhador assalariado; 2) os assalariados ou empregados públicos
que são contratados no regime de mercado ou sob a legislação traba-
lhista, adquirindo a condição de ocupante de emprego público, que,
dependendo da interpretação, pode reivindicar direitos especiais; e
3) servidores ou assalariados temporários e eventuais, que formam
o elo fraco da categoria do Estado porque são trabalhadores que
exercem funções sem vínculos a cargos ou emprego público e sem
qualquer segurança ou estabilidade.
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 161 |

Nessa tríplice condição, além dos conflitos inerentes às desigual-


dades entre categorias, a questão salarial e das condições de trabalho
representam fontes permanentes do conflito.
A produção do conflito no Estado fundamenta-se também em
um problema classicamente levantado por Max Weber (1964). O
desenvolvimento da burocracia produz um conflito entre a pessoa
e a administração. A burocracia é poder, controle, dominação e
alienação segundo Motta. Ou seja, na divisão entre as camadas
que controlam os meios de administração e de poder e os que não
controlam, há probabilidade de conflitos.
Nesse âmbito, situam-se as relações conflituosas entre indivíduo
e organização burocrática; as divergências inter-pessoais, entre gru-
pos sociais, entre diferentes posições hierárquicas, entre o pessoal
da máquina permanente e o pessoal temporário; o abuso do poder
estatal sobre os funcionários; a ausência de participação na decisão,
entre muitos outros aspectos.
Na visão mais geral de Weber sobre o tipo ideal da burocracia, a
expansão da racionalidade legal e burocrática (da organização dos
meios e dos interesses em busca dos fins e dos resultados econômi-
cos) e de suas formas de dominação e autoridade correspondentes
eram inevitáveis e incontroláveis. Em suma, a burocracia acabaria
por condenar a democracia e a liberdade, sendo esse um conflito
permanente nas sociedades modernas.
Nessa perspectiva, o conflito poderia ser reduzido e administrado,
independentemente da esfera das relações sociais de produção, por
meio da desburocratização, da gestão das disfunções da burocracia,
do aumento da participação dos funcionários e da ampliação das
formas de controle político e público sobre a burocracia do Estado.
Isso remete à questão da democracia e da participação no interior da
| 162 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

burocracia estatal. No entanto, sendo o Estado o aparato da ordem


social e política em geral, sua autonomia é relativa, o que dificulta
processos internos e contínuos de administração do conflito nas
relações de trabalho por meio da participação.
No caso da empresa capitalista, a própria contradição entre capital
e trabalho, a necessidade de expansão do capital e de seu controle
sobre a força de trabalho, além da concorrência e da busca pelo lucro
pressionam por mudanças no padrão das relações de trabalho, de
um sistema mais coercitivo para o sistema participativo. Desde a
década dos anos 1970 até a dos anos 1990, está em pauta a demo-
cracia industrial, o trabalho em grupo e as formas participativas de
gestão como novos meios para conseguir produtividade, qualidade
e competitividade.
No caso do Estado, essa ideologia da administração participativa
vai sendo aos poucos incorporada no discurso e nas práticas como
estratégia de mudança do padrão antigo e burocrático para um
padrão gerencial moderno.
Como se observa no seguinte discurso:

Nas origens da administração do Estado (era ab-


solutista) os funcionários públicos nada mais eram
do que funcionários do Rei, ou seja, paniguados do
poder que recebiam um salário e administravam o
Estado segundo seus próprios lemas e determina-
ções. A vontade do povo não tinha influência na
organização do Estado. O advento das democracias
participativas e a eleição dos líderes do executivo e do
parlamento trouxeram várias mudanças no escopo e
na representatividade da administração pública. No
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 163 |

entanto, o corpo de funcionários governamentais


continuava com raras exceções a separar o planeja-
mento e a ação da determinação da vontade social.
A fase taylorista sancionou tal comportamento, e o
fordismo, a despeito de proporcionar espaço para
a mudanças, não transformou substancialmente tal
prática, que tornou-se arraigada no âmbito das ad-
ministrações públicas dos países centrais. Uma pri-
meira mudança de comportamento, produzida pela
introdução da administração flexível, ocasionou uma
transformação na visão de mundo da administração
pública: a sociedade não é composta de súditos ou
concorrentes, mas sim de clientes e cidadãos. (MÉ-
DICI; SILVA, 1993)

Isso reflete todo um movimento aparentemente positivo de trazer


para dentro do Estado os novos padrões de gestão do setor privado.
Osborne e Gaebler no livro Reinventando o governo expõem com
clareza essa tendência, influenciando todas as formulações sobre o
gestão estatal, em particular o Plano de Reforma do Estado Brasileiro
do Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE).
É óbvio que a lógica de funcionamento do Estado difere da ló-
gica das empresas capitalistas, porque sua função é a manutenção
da ordem como um todo do sistema capitalista. Nesse aspecto, o
Estado tem uma autonomia relativa no capitalismo (ver debate
entre Miliband (1975) e Poulantzas sobre o assunto e também as
ideias expostas por Giddens). Aparentemente, o Estado representa
o espaço de equilíbrio e é o árbitro dos conflitos; a razão absoluta
e o espaço da decisão coletiva e pública, mas na realidade, e aí a
| 164 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

contradição propriamente política, o Estado capitalista tem como


função manter a ordem do capital em detrimento das esferas sociais
e coletivas. Contudo, as lutas de classes têm um papel determinante
na qualidade da sua atuação.

5.2 RELAÇÕES DE TRABALHO NO SETOR PRIVADO


E NO SETOR PÚBLICO

Nas relações entre trabalho e capital no setor privado, a instân-


cia do político é percebida por meio da intervenção do Estado, via
legislação do trabalho e sindical. No entanto, a atuação sindical e
dos trabalhadores pode alterar as condições de trabalho em cada
empresa por meio de mobilizações, da negociação e de acordos. No
campo público, as relações coletivas se dão diretamente na superes-
trutura política e jurídica e dependem dos estatutos específicos das
diversas categorias, ou seja, do estatuto jurídico oriundo do direito
administrativo e constitucional que regula as circunstâncias e os
interesses em jogo.
A relação existente entre o servidor público e a unidade admi-
nistrativa é de natureza diversa da existente na iniciativa privada.
O administrador público está sujeito ao “princípio da legalidade”.
Assim, a organização sindical dos servidores públicos tem maior
dificuldade em alterar as condições de trabalho de forma abrangente
porque elas dependem das instâncias políticas e administrativas. As
dificuldades das relações coletivas de trabalho no setor público na
instância do político são inúmeras. A primeira delas é defrontar-se
com um poder difuso de decisão entre o Executivo e o Legislativo,
poderes esses definidos, em situação normal, pela participação de-
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 165 |

mocrática formal, reduzida às eleições e ao voto do conjunto dos


eleitores. Isso torna a relação entre servidor e Estado dependente da
política propriamente dita. Não é preciso dizer que nesse quadro
a instabilidade e o conflito nas relações coletivas são permanentes
e envolvem um conjunto de forças complexas que tornam os pro-
cessos de decisão demorados e instáveis. A mudança de governo
influi diretamente nesse processo e pode fazer voltar à estaca zero
qualquer conquista anterior. A ausência de convenções coletivas ou
acordos coletivos de trabalho, a falta de uma Justiça do Trabalho
específica para dirimir conflitos trabalhistas no setor público e de
outros mecanismos de mediação e arbitragem explicam também a
recorrência do conflito. Idealmente, o Poder Legislativo deveria exer-
cer esse papel, desde que agisse com independência e mais afinado
com os eleitores. No entanto, no atual esquema de poder, fundado
em frágil estrutura partidária, o interesse pessoal de continuidade
política prevalece sobre o interesse público.
O Estado contém processos de trabalho geralmente voltados aos
serviços, muito diversos e heterogêneos. A organização e a dinâmica
desses processos são influenciadas tanto pela mudança tecnológica
como pelas novas formas de gestão. A tecnologia de produção sempre
foi típica da empresa industrial e separava claramente os sistemas
produtivos dos serviços privados e públicos. Contudo, com a ex-
pansão da microeletrônica e da revolução informacional, isto tem
se modificado bastante, por meio da redução das fronteiras entre
trabalho produtivo e improdutivo.
De qualquer maneira, é importante destacar que, no caso do
serviço público, a essência do trabalho é o processamento intelectual
e administrativo. O processo de trabalho lida diretamente com a
informação, o atendimento, a prestação de serviços, além das ativi-
| 166 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

dades de planejamento, administração e controle. A tecnologia de


informação, nesse caso, pode servir como ferramenta auxiliar para
melhorar o fluxo do serviço e como qualificadora do trabalho, mas
também pode reproduzir a lógica destrutiva de postos de trabalho
(substituição do trabalho vivo pelo morto), típica da organização
capitalista produtiva e de serviços.
Para sintetizar essa discussão, entende-se que, na origem, os
funcionários do Estado são assalariados livres que apenas dispõem
de sua força de trabalho para vender e sobreviver na sociedade e,
nesse aspecto, igualam-se aos demais assalariados submetidos à
ordem do capital e do mercado em sentido mais abrangente. No
entanto, no momento que são ocupantes de um cargo ou emprego
público, diferenciam-se dos demais trabalhadores porque as relações
de trabalho estão caracterizadas, de modo específico, como parte do
Estado. Em princípio, a relação de trabalho não pode ser rompida
como nos contratos de trabalho firmados com empresas privadas.
O funcionário público, geralmente, tem condições especiais, como
aposentadoria integral e outros benefícios que são garantidos pela
sociedade. Afinal, os servidores públicos devem “servir ao público”,
ao mesmo tempo em que são “empregados do Estado” (ou seja, da
sociedade dividida em classes sociais, entre o pólo do trabalho e o
pólo do capital).
Há, na verdade, maior complexidade das fontes contraditórias
do conflito e do confronto coletivo no Estado. Com efeito, é preciso
captar e inserir a questão das relações de trabalho no setor público
em uma rede de relações mais complexa entre funcionário público
assalariado e Estado e os seus diferentes poderes, mercado capitalista
e sociedade civil.
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 167 |

5.3 AS FORMAS DE GESTÃO/CONTROLE ENTRE


O PRIVADO E O PÚBLICO

Quanto às formas de gestão/controle e sua intervenção na or-


ganização do trabalho, há que se destacar que, no setor público,
o taylorismo e o fordismo só podem ser referidos na sua instância
administrativa e burocrática, exercendo sobre os funcionários, muitas
vezes, papel semelhante ao que acontece na produção: divisão do
trabalho, parcelamento das tarefas, separação entre planejamento e
execução do trabalho, hierarquias, controles burocráticos e expro-
priação do saber sobre a totalidade dos processos organizacionais
e de trabalho. Esses aspectos são férteis na produção do conflito
interno ao Estado e implicam em alienação e estranhamento do
trabalho nessa esfera.
As modernas estratégias de gestão/controle na organização e na
produção, desde as abordagens comportamentais até as experiências
da volvo sueca e da toyota japonesa (volvismo e toyotismo de acordo
com Wood) — experiências essas baseadas nos grupos semiautôno-
mos, na integração flexível do trabalho, na multifuncionalidade e
na busca da qualidade total —, aparecem nas esferas administrativas
públicas com outros nomes e por meio das formas participativas
de gestão, trabalho em equipe, grupos de discussão, formação de
comissões, programas de qualidade nos serviços etc. Essas formas
podem ser amplamente utilizadas como meio de administração
dos conflitos na esfera pública, pois, muitas vezes, na ausência do
atendimento das necessidades salariais, elas podem suprir outras
necessidades sociais e psicológicas de reconhecimento e realização,
gerando motivação para o trabalho. Isso acontece, principalmente,
nas camadas intermediárias e técnicas e pode influenciar as camadas
| 168 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

operacionais da base hierárquica. Ainda nos processos de trabalho


do setor público, há conflito potencial nas relações entre áreas de
controle administrativo e de prestação dos serviços, estas últimas
ligadas diretamente à prestação dos serviços à população e que podem
resistir a ao controle sobre seu trabalho e resultado.
Quanto à instância das políticas de recursos humanos (RH), há
diferenças essenciais entre o setor privado e público. No primeiro,
as funções de RH (seleção, treinamento, desenvolvimento, manu-
tenção, entre outras) têm como critério básico a economicidade (a
nomenclatura “recurso” humano é insuspeita neste caso), procu-
rando estabelecer diretrizes compatíveis entre o desempenho do
trabalhador e os objetivos da empresa. Geralmente, é nessa área
que ocorre a definição dos contornos das relações de trabalho ou
industriais no âmbito da empresa, atuando também na mediação
entre base do trabalho e direção da organização e no obscurecimento
das contradições entre capital e trabalho. É por excelência a área que
teoricamente está mais preparada para lidar com o conflito traba-
lhista. No entanto, em muitos casos, os departamentos de RH não
administram diretamente as relações de trabalho, a organização do
trabalho e nem o cotidiano dos trabalhadores. Esses departamentos
atuam nas dimensões externas do trabalho.
Em empresas modernas, é comum ocorrer, em paralelo ou em
complementação à função de recursos humanos, a organização de
áreas específicas de relações industriais que lidam diretamente com as
relações de trabalho, em particular com os processos de negociação
coletiva dos salários, de organização e processo de trabalho.
No setor público, a área de RH restringe-se à tradicional função
de administração de pessoal, concentrando seus esforços basica-
mente nos processos de seleção, treinamento e remuneração, não
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 169 |

desenvolvendo qualquer ação no campo das relações coletivas ou


como instâncias mediadoras dos conflitos dentro das diversas insti-
tuições ou órgãos. Geralmente, essas relações envolvem diretamente
os níveis de direção, assessorias e o titular da pasta. Enquanto no setor
privado e no que pode ser denominado setor público empresarial
(das empresas públicas e estatais), com a emergência do conflito
coletivo e sindical, ocorre um investimento na modernização das
áreas de relações industriais e recursos humanos, no Estado a velo-
cidade das mudanças é muito menor, e a conservação do sistema
tradicional de “gestão do pessoal”, incapaz de responder às novas
demandas, tende a permanecer. Isso é consequência do pouco in-
vestimento na qualificação profissional de pessoal específico de RH
e da intervenção direta do nível político nas questões sindicais e das
relações de trabalho no Estado.
Com isso, a greve como momento especial e estratégico do con-
flito trabalhista no Estado influencia diretamente na legitimidade
dos governos e politiza o próprio conflito, que geralmente tem
causalidade econômica e salarial.
Em levantamento feito nas Revistas do CLAD, que sintetiza o
debate sobre as mudanças na gestão pública, a questão da incorpo-
ração do modelo de gestão privada no setor público ganha bastante
destaque desde o primeiro número.
Observemos por exemplo o resumo do artigo de Portillo e Rabell
(1996) sobre a reinvenção do governo nos idos da década de 1990:

En este artículo se analiza de manera crítica el libro


Reinventing Government: How the Entrepreneurial
Spirit is Transforming the Public Sector, de David
Osborne y Ted Gaebler, el cual se ha convertido en
| 170 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

un éxito de ventas sin precedentes en el campo de


la administración pública en los Estados Unidos.
Las ideas planteadas en este libro se han difundido
rápidamente a nivel internacional creándose un gran
movimiento para reinventar el gobierno; es decir,
transformar las burocracias públicas en gobiernos
empresariales, productivos y eficientes. El éxito de
esta nueva retórica administrativa obedece al crecien-
te escepticismo de los ciudadanos sobre la capacidad
del Estado para administrar la sociedad y satisfacer
las necesidades sociales. A pesar de las valiosas apor-
taciones de Osborne y Gaebler para entender las
estrategias de cambio que se están formulando en
los países del capitalismo avanzado para enfrentarse
a los nuevos retos de la sociedad post industrial, el
libro presenta serias limitaciones conceptuales y me-
todológicas. Se concluye que el modelo de reinven-
ción del gobierno carece de una discusión profunda
sobre los aspectos constitucionales y normativos del
gobierno democrático. Tampoco ofrece una reflexión
sobre las limitaciones del gobierno empresarial para
tomar decisiones políticas en el sector público, en el
cual compiten múltiples intereses y racionalidades
y que se caracterizan por ser sumamente complejas,
fragmentadas y altamente politizadas. Finalmente, la
metodología que se utiliza en el libro plantea serias
interrogantes sobre la posibilidad de extrapolar ge-
neralizaciones conceptuales que puedan ser válidas
y aplicables a la realidad latinoamericana.
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 171 |

O Brasil rapidamente absorveu a ideologia da privatização na ges-


tão pública desde o governo Collor, mas foi no governo FHC que o
programa de privatização ganhou o formato definitivo, como mostra
o argumento de Luis Carlos Bresser Pereira (1995), então Ministro
da Administração e Reforma do Estado, contra a Constituição de
1988 que Ulisses Guimarães nomeou como a Constituição cidadã.

Se caracteriza la crisis confrontada por el Brasil du-


rante los últimos años, que afecta el aspecto fiscal,
las formas de intervención estatal y el aparato del
Estado. Se examinan las respuestas de la sociedad,
considerando inadecuadas las opciones que ofrece la
Constitución de 1988 y se exponen las prioridades
establecidas por el actual gobierno para modificar
la situación.
La crisis económica sin precedentes enfrentada por
Brasil, que se desencadenó en 1979 con el segundo
shock petrolero, tuvo como una de sus causas fun-
damentales la crisis del Estado. Esta crisis se define
en lo fundamental por la crisis fiscal del Estado, por
la crisis del modo de intervención en la economía y
en lo social, y por la crisis del aparato del Estado. A
esto se suma una crisis política, la caída del régimen
autoritario que culminó con la restauración de la
democracia y su consolidación en la Constitución de
1988. La respuesta de la sociedad a la crisis política
fue adecuada, dando a la democracia brasileña una
estructura jurídica sólida. Sin embargo, las disposi-
ciones constitucionales no sólo no ayudaron, sino
| 172 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

que contribuyeron a agravar los problemas derivados


de la crisis fiscal del Estado, de la crisis del modo
de intervención y de la crisis del aparato estatal. En
relación con la crisis fiscal y al modo de interven-
ción del Estado, se procuró retomar el modelo de
los años cincuenta, mientras que en relación con
la administración pública, se intentó volver a los
parámetros vigentes en los años treinta.
La primera prioridad del gobierno de Fernando
Henrique Cardoso será la reconstrucción del Estado,
a partir de la reforma en profundidad del aparato
estatal. Se trata de tornar la administración pública
más flexible y eficiente, reducir su costo, garantizar
una mejor calidad de los servicios públicos, espe-
cialmente los servicios sociales, y hacer que el fun-
cionario público sea más valorizado por la sociedad.
El segundo objetivo prioritario se refiere a la atri-
bución de una amplia autonomía financiera y ad-
ministrativa a los servicios sociales del Estado. Este
objetivo será alcanzado principalmente mediante el
proyecto de creación de “organizaciones sociales”,
fundaciones públicas de derecho privado que asumi-
rán las responsabilidades de suministrar los servicios
públicos en materia social.
El tercer proyecto prioritario tiene que ver con la
profesionalización del núcleo burocrático de la ad-
ministración, que incluye los funcionarios de la
administración central que tienen competencias
y obligaciones exclusivas, del poder judicial y de
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 173 |

las fuerzas policiales. Se plantea la definición y el


diseño de un sistema de carreras, que garantice la
capacitación para una adecuada gestión profesio-
nal. Los proyectos prioritarios serán viabilizados
a través de una reforma constitucional, en la que
deben tomarse en cuenta dos temas fundamentales
concernientes al aparato del Estado: la flexibilización
de la administración, con cambios profundos en el
régimen jurídico y laboral del funcionariado; y la
modificación radical del sistema de previsión, que
actualmente es fuente de injusticias y que representa
un costo insostenible para el Estado.

Assim, a relação entre a gestão pública e a gestão privada começa


a ser muito mais permeável e o impacto sobre as relações de trabalho
no Estado é fortemente sentido. Na verdade, aquela classificação das
categorias trabalhistas estatais, com exceção das atividades exclusivas
do Estado, é pressionada para a adoção de um regime único: o de
mercado. Para isso, era necessária a reforma da Constituição de
1988 nos capítulos dos direitos públicos e sociais.
Novamente a arguição de Bresser Pereira:

[...] La reforma del Estado en el Brasil se presenta


como una necesidad en razón de la profunda cri-
sis económica y sobre todo de la crisis del propio
Estado, ante la necesidad de adaptarse eficazmente
a los cambios ocurridos en el escenario económico
mundial. Esta crisis puede definirse como una crisis
fiscal, crisis del modo de intervención del Estado,
| 174 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

como una crisis de la forma burocrática de la ad-


ministración pública y como una crisis política. Las
respuestas de la sociedad a estas diferentes dimen-
siones fueron diferentes. La primera fue la demo-
cratización, que encauzó las soluciones políticas,
seguida de las reformas económicas que propiciaron
la estabilización económica. Sin embargo, en lo que
concierne al modo de intervención del Estado y a
la organización burocrática de la administración
pública, las respuestas concretadas en la Constitu-
ción de 1988 representaron un clásico ejemplo de
vuelta atrás, hacia modelos que tuvieron vigencia
en décadas anteriores.
La adopción de estas orientaciones trajo como con-
secuencia que algunas de las distorsiones más gra-
ves de la administración pública a nivel federal se
mantuvieran o se profundizaran. Tal es el caso de la
pérdida de autonomía de la denominada adminis-
tración indirecta, y sobre todo, el establecimiento de
privilegios injustos como parte de un programa mal
entendido de protección al funcionariado público.
Esto se manifiesta principalmente en la rigidez de
la estabilidad laboral y en las exageradas prebendas
jubilatorias. La propuesta actual de reforma, que ha
venido cobrando fuerza con el gobierno de Fernando
Henrique Cardoso, se orienta hacia una administra-
ción pública gerencial, que flexibilice las relaciones
laborales y que establezca vínculos dinámicos entre
Estado y sociedad, sobre la base de una concepción
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 175 |

clara de lo público y de lo privado. En este marco,


se define la existencia de cuatro sectores dentro del
Estado: 1) el núcleo estratégico del Estado; 2) las
actividades exclusivas del Estado; 3) los servicios
no exclusivos o competitivos; y 4) la producción de
bienes y servicios para el mercado. Esta propuesta
pretende superar la dicotomía clásica que confunde
lo estatal con lo gubernamental, y que hace que
la privatización aparezca como una única opción
para superar la ineficiencia de las organizaciones
gubernamentales. En consecuencia, se propone un
proceso de “publicización”, que incluye la creación
y promoción de organizaciones sociales, de carácter
público, pero sometidas al derecho privado.
Entre las reformas más importantes que se deben
emprender se encuentra la reforma constitucional,
porque de ella depende la mayoría de las demás
reformas. Se considera que en el momento actual
están dadas las condiciones para emprender esta
reforma, ya que se cuenta con el apoyo de amplios
sectores, incluyendo la alta gerencia pública, cuya
participación, junto con la voluntad política del
gobierno, es un factor clave de éxito.

Enquanto Bresser Pereira vale-se de certa sutileza ao apresentar


conceitos como “publicização” como contraponto à “estatização”
para mostrar que a privatização, em sua concepção, pode ter cará-
ter público contra os privilégios da administração pública, alguns
autores são mais diretos na defesa da adoção da reestruturação pura
| 176 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

e simples, sem rodeios, conforme se observa no resumo abaixo, que


defende a adoção dos cinco “R” na organização do setor público.

[…] La nueva gerencia pública debe su populari-


dad en los Estados Unidos en gran medida al li-
bro de David Osborne y Ted Gaebler, Reinventing
Government, y al informe de Al Gore proponien-
do un gobierno que ponga a la gente en primer
lugar, creando un sentido de misión, tomando más
el timón y remando menos, delegando autoridad,
reemplazando normas y regulaciones por incentivos,
desarrollando presupuestos basados en resultados,
exponiendo las operaciones del gobierno a la com-
petencia, orientando las actividades hacia el mercado
y evaluando el éxito de los servicios públicos en
términos de satisfacción del usuario. Los concep-
tos básicos de la nueva gerencia pública se reúnen
bajo la denominación de las cinco “R”: reestruc-
turación, reingeniería, reinvención, realineamien-
to y reconceptualización. Estos principios pueden
también considerarse como los pasos que debe dar
sucesivamente la nueva gerencia para reformar las
organizaciones del sector público, con el propósito
fundamental de incrementar su eficiencia y su efica-
cia, y dotar al público de servicios de mayor calidad.
La reestructuración es el primer paso en el proceso
de reforma, y significa eliminar de la organización
todo lo que no contribuya con un valor agregado al
servicio o producto suministrado a los usuarios. La
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 177 |

reestructuración implica identificar las competencias


claves de la organización y proceder a eliminar los
elementos inapropiados utilizando instrumentos
tales como la gerencia de calidad total y la estima-
ción de costos sobre la base de las actividades del
proceso productivo.
La reingeniería incorpora las nuevas tecnologías
computarizadas para ahorrar tiempo y recursos en
el ciclo productivo. Se trata más bien de incorporar
nuevos procesos y no de intentar corregir o mejorar
procesos que se han vuelto obsoletos. Mediante la
reinvención se desarrolla una nueva planificación y
se definen las estrategias de mercado y del servicio
a ser ofrecido a los clientes.
La realineación o rediseño de la organización implica
la coordinación de las estructuras de responsabilidad,
presupuesto y rendición de cuentas, con las estrategias
de los servicios y del mercado, que han sido decidi-
das por la organización, tomando en consideración
el entorno interno y externo. Por último, la recon-
ceptualización se orienta a disminuir el tiempo que
requiere el ciclo productivo, a efectos de aprovechar
las ventajas competitivas, mediante la aplicación de
los siguientes pasos: observación, orientación, toma
de decisión, y paso a la acción, a los que se agrega la
evaluación del impacto de la acción.

Com isso, fica consignado que o setor público, por meio dos
dirigentes eleitos e agentes da “modernização”, necessita reestruturar
| 178 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

todos os seus esquemas antigos ao incorporar o modelo empresarial


de gestão. Os servidores públicos e os seus sindicatos exercem o papel
de contraponto à formulação “neoliberal” e tida como “moderniza-
dora” ao defenderem a manutenção do velho Estado e suas condições
especiais de trabalho. É uma luta de resistência difícil e complexa.

5.4 NOTAS SOBRE AS RELAÇÕES DE TRABALHO E


OS SINDICATOS NO ESTADO BRASILEIRO

Qual era o quadro das relações de trabalho e sindicais no pe-


ríodo da transição política e institucional brasileira vivida entre a
promulgação da Constituição cidadã e a reestruturação do Estado?
A periodização da organização dos servidores é peculiar em com-
paração com a dos demais assalariados, pois por um longo período,
compreendido entre 1930 e 1978, predominam as associações de
caráter assistencial, não se podendo falar de um sindicalismo no
Estado, mas apenas de um ensaio do movimento, enquanto, para
o conjunto da classe trabalhadora, o que prevalecia era exatamente
a construção e consolidação do sindicalismo de Estado. A história
desse sindicalismo começa de fato em 1978, estabelecendo com o
novo sindicalismo uma relação direta e recíproca.
A prática da liberdade sindical, paradoxalmente, foi experimen-
tada do ponto de vista organizatório pelo movimento associativo
e sindical dos funcionários públicos em um contexto em que o
direito de greve e o de formação de sindicatos públicos eram ain-
da proibidos. A Constituição de 1988 formalizou esse processo,
determinando apenas que a associação dos servidores públicos em
sindicatos passava a ser livre, mas não dizendo nada sobre a estrutura
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 179 |

e o sistema de organização, fato que pode ser interpretado como


uma conquista parcial da mobilização sindical dos servidores. Por
que parcial? Porque a Constituição não determinava nenhum dever
para o Estado, em termos de criar um sistema de negociação ou de
solução de conflitos salariais nas diversas instâncias governamentais.
Nesse sentido, a liberdade sindical conquistada poderia, na prática,
se transformar em “letra morta”.
Mesmo com esses limites, a emergência do sindicalismo no
Estado, por meio das mudanças das associações tradicionais em
associações de caráter sindical e de oposição política, estampou as
fraturas existentes no interior do próprio Estado. A crise do Estado
se apresentava no plano interno também como crise das relações de
trabalho entre servidores públicos e o próprio Estado.
Esse processo desenvolveu-se por meio das greves econômicas, da
luta política pela democratização e da articulação das organizações
dos servidores públicos com o conjunto do movimento sindical.
Na transição da abertura do regime militar para a Nova República
e desta para a democracia constitucional, o movimento associativo-
-sindical dos servidores públicos experimenta uma expansão em sua
organização e mobilização.
Após a Constituição de 1988, o direito à livre associação sindi-
cal não alterou as características básicas desse movimento; apenas
multiplicou a diversidade e a pluralidade organizatórias entre as
associações assistenciais que foram mantidas e os novos sindicatos
legalizados. Regras estabelecidas pela Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), tais como a contribuição sindical obrigatória, a
unicidade sindical por lei, a base territorial e o poder normativo
da Justiça de Trabalho não foram e nem podiam ser observadas na
esfera da administração direta.
| 180 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

No plano específico da organização sindical, os funcionários pú-


blicos produziram modalidades diversas nas três esferas do governo.
Pudemos verificar e constatar essa diversidade de estruturas na qual
é visível o problema da superposição e duplicidade nas formas de re-
presentação. No entanto, na prática, essas formas ocorrem em maior
grau em nível nacional ou por meio de entidades que pretendem
representar um conjunto de servidores por cima dos sindicatos ou
associações de base. Nos outros níveis de organização, a tendência
forte é pela organização corporativa e fragmentada por categoria, se-
tor ou instituição. A liberdade sindical não produz, necessariamente,
o pluralismo sindical no caso do setor público. O que existe é uma
pluralidade de associações e sindicatos e uma verdadeira pulveriza-
ção e fragmentação. Para se ter uma ideia, calcula-se desde meados
dos anos 1990 mais de 1.300 entidades sindicais de trabalhadores
públicos no Brasil. É o que entendemos por corporativismo espon-
tâneo não conduzido pelo Estado, mas que funciona dentro dele
de forma fragmentada, dificilmente se articulando em torno de um
projeto mais amplo sobre a efetivação da esfera pública democrática.
Observando ainda as três esferas de governo, temos, no caso do
estado de São Paulo, a predominância de sindicatos por categoria
e setor, direrentemente dos sindicatos gerais da esfera federal, onde
também se estruturaram sindicatos de categorias específicas. No caso
do município, concorrem as duas modalidades: o sindicato geral
e os sindicatos por categorias. Tanto na esfera estadual quanto na
municipal, as tentativas de unificação dos funcionários em entida-
des de caráter geral não se efetivam e a diversidade organizatória
prevalece. Apesar da existência do CONSESP no estado e do Sin-
dicato dos Servidores Públicos (SINDSEP) no município de São
Paulo, prepondera a organização fragmentada dentro dos ramos da
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 181 |

administração pública. Os ramos da educação, da saúde e previdên-


cia mostram essa situação. No caso federal, mesmo com a presença
dos sindicatos gerais e dos divididos em ramos e instituições, outras
modalidades de organização por categorias, principalmente as típicas
e exclusivas de Estado, atuam como “territórios” e “domínios” com
lógicas específicas.
A pluralidade possível e a diversidade organizatória real estão
informadas pelas orientações e concepções sindicais. Melhor di-
zendo, há uma clara diversidade política e ideológica por detrás das
entidades dos funcionários públicos. Resumidamente, colocam-se
três situações principais. A primeira delas é novo sindicalismo, ori-
ginado das novas associações e geralmente dirigido por lideranças de
esquerda que defendem propostas políticas socialistas; estas tendem
a um sindicalismo de oposição política aos governos. A pesquisa com
os delegados da Confederação de Servidores Públicos Federais do
Brasil (CONDSEF) ilustra esse posicionamento, ainda que encon-
tremos em diversas questões muitas divergências. Geralmente esses
sindicatos são filiados à Central Única dos trabalhadores (CUT),
definindo-se como classistas, democráticos e buscando enraizarem-
-se nas bases e nos locais de trabalho; organizando-se em torno
das modalidades de sindicatos gerais, por setor, por categorias e
defendendo o sindicalismo por ramo (Ex. SINDSEPs federais,
SINSPREV, UTE-MG, APEOESP-SIND., ANDES Sindicato
Nacional, SINPEEM, SINDSAÚDE).
A segunda situação é o sindicalismo em transição de caráter cor-
porativo, não filiado a CUT, que se mobiliza mais exclusivamente
em defesa dos interesses econômicos e sociais das categorias. Mas,
na conjuntura atual, muitos sindicatos e associações têm assumido
posições políticas contrárias ao governo e atuado conjuntamente com
| 182 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

outras entidades mais combativas; é um sindicalismo que nasce das


associações assistenciais e corporativas, mas encontra-se em processo
de transição para posições mais combativas no campo econômico
e também esboçando um processo de politização (Ex. SINDFISP,
UDEMO-SIND., Sindicato dos Agentes Federais, UNAFISCO,
SINESP, SISPESP).
A terceira e última situação é o sindicalismo associativo e apo-
lítico de base mais conservadora que atua de forma mais fechada
voltado apenas para o interesse de suas categorias, que tendem
a formar suas próprias entidades gerais, abrangendo inclusive
as associações tradicionais do funcionalismo; esse sindicalismo
tende a conservar o caráter dessas entidades, por causa do grande
patrimônio que algumas delas acumularam ao longo dos anos. O
sindicalismo associativo e apolítico representaria uma tendência
como a do velho sindicalismo do setor privado, arraigado nos
princípios da estrutura sindical celetista (Ex. CPP, AFPESP, entre
outras associações e sindicatos geralmente de pequeno porte).
Na esfera política, diferentemente do sindicalismo do setor
privado, o do público vivencia o seguinte dilema: é impulsiona-
do a atuar sob uma lógica de luta econômica e salarial, tal como
qualquer organização da sociedade civil dentro do Estado, ou
seja, na especificidade do Estado enquanto sociedade política. Isso
implica na atuação dos sindicatos do setor público não apenas de
forma corporativista, mas também sob uma lógica política, e isso
condiciona os resultados de sua ação reivindicatória e grevista. Essa
dimensão do sindicalismo público interfere nas relações políticas
entre a população em geral e os governantes ou dirigentes, que
estão interessados em sua imagem e reprodução positivas na vida
pública.
RELAÇÕES DE TRABALHO E GESTÃO PÚBLICA........ ... .........
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO | 183 |

No plano sindical, o movimento do setor público por meio das


greves e da inserção na CUT revelava cada vez mais os conflitos e
as contradições dentro do Estado brasileiro. As greves no setor pú-
blico brasileiro foram econômicas e políticas. A causa primeira dos
movimentos grevistas era econômica e salarial, e, por ocorrerem nas
atividades públicas e estatais, ganhavam caráter diretamente político
porque questionavam o poder e a legitimidade dos governos na
sociedade. A greve era também política, pois interferia diretamente
nos interesses das classes que vivem do trabalho. Estas, os setores po-
pulares, têm uma maior dependência dos serviços públicos e seriam
em tese beneficiadas com a expansão dos processos de estatização
dos setores sociais, em particular, saúde, educação e transporte. Essa
dupla dimensão da greve no setor público — Estado e interesse
público — deve ser entendida e muito bem avaliada, tendo em vista
compatibilizar interesses corporativos das categorias e interesses
públicos e de classe com os demais trabalhadores. Nesse sentido,
mais do que nunca é necessária uma articulação ou mesmo uma
aliança entre os trabalhadores públicos e demais trabalhadores no
encaminhamentodesse “complexo” de questões da esfera do poder
e das políticas do Estado. É necessário articular sindicatos, partidos
e movimentos sociais no sentido de aprofundar o debate político
acerca do projeto de Estado que atenda aos interesses estratégicos
do mundo do trabalho.
Colocando a discussão nesses termos, os problemas teóricos e
práticos apenas começaram e envolvem uma discussão mais ampla
sobre o caráter do Estado e a permanência ou a mudança dos re-
gimes de trabalho no seu interior. Os estatutos do funcionalismo
público que, por si, desqualificam a ideia de relações de trabalho
como partes em disputa no mercado podem limitar-se, cada vez
| 184 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

mais, a poucas categorias públicas por causa do processo crescen-


te de privatização. Trata-se também de limitar a ação sindical no
Estado enquanto organismo que visa, sobretudo, valorizar a força
de trabalho no interior da esfera estatal que, por sua própria natu-
reza, não é diretamente mercado. Por um lado, a determinação de
critérios políticos sobre os critérios econômicos na definição das
condições de trabalho e salários cria dificuldades enormes para a
atividade sindical puramente econômica na esfera do Estado. Por
outro lado, abre-se a possibilidade de maior possibilidade de atuação
em torno dos problemas da democratização e da própria natureza
e limite do Estado brasileiro, bem como da gestão e qualidade dos
serviços públicos.

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SINSPREV. Disponível em: <www.sinsprevsp.org.br>.
ASSOCIAÇÃO DOS DOCENTES DA UNIVERSIDADE DE
SÃO PAULO. Disponível em: <www.adusp.org.br>.
CAPÍTULO 6

Contratualização e gestão de pessoas


na administração pública

HÉLIO JANNY TEIXEIRA


Doutor e Livre-docente em Administração pela
FEA-USP e professor da mesma instituição.

SÉRGIO MATTOSO SALOMÃO


Administrador pela FEA-USP e pesquisador da
Fundação Instituto de Administração (FIA).
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 193 |

6.1 INTRODUÇÃO

Embora bastante presente nos debates atuais sobre a expansão


dos serviços públicos por meio de parcerias público-privadas (PPPs),
organizações sociais (OS) e terceirizações, o tema objeto do presente
capítulo não é novo. Nem poderia ser. Os contratos e a contratua-
lização marcam a essência do próprio Estado e da administração
pública, pois nada pode ser feito sem o respaldo das leis, que, por
serem amplas e genéricas, dependem na maioria das vezes de ins-
trumentos específicos como os contratos para orientar e determinar
obrigações e prestações específicas de funcionários, concessionários,
conveniados, prestadores de serviços e parceiros em geral. Concei-
tualmente, contrato é algo simples: um vínculo jurídico entre dois
ou mais sujeitos. O código civil brasileiro (BRASIL; 2002), no seu
artigo 82 (BRASIL; 2002), apenas estabelece que, ao contratar, é
necessário que as partes tenham capacidade de exercício e que o ob-
jeto seja lícito e que tenha forma prescrita ou não proibida pela lei.
O conceito é claro no campo no direito e também a ideia é simples:
um vínculo jurídico que estabelece obrigações mútuas entre partes.
Não seria imprescindível, mas pode enriquecer a compreensão
do tema um brevíssimo comentário etimológico e semântico sobre
| 194 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

a expressão contratualização, se já não bastasse a consagração pelo


uso que se verifica na prática e na literatura sobre a administração
pública. O substantivo contratualização e o verbo contratualizar, salvo
engano, ainda não assumidos pelos dicionaristas brasileiros, são, no
entanto, encontrados em dicionários portugueses. Contratualizar
define-se lá como “estabelecer as regras contratuais” (PRIBERAM,
2010). Veja-se, então, a diferença em relação a contratar, que se define
como “garantir por contrato”. Além de mera “afetação” conceitual,
é importante o uso do termo contratualizar quando se tratar não
de um mero ato de assinar um contrato em bases já conhecidas ou
típicas, comumente aceitas (em que se poderia falar em contratar),
mas de um esforço para repensar, negociar e reestabelecer as próprias
bases do acordo que servirá de referência para a contratação, a qual
deve decorrer ao final do “processo”.
Trazendo a discussão semântica para o âmbito da gestão públi-
ca, contratualização é expressão que tem sido preferida e adotada
por gestores e acadêmicos por denotar o esforço e a novidade de
estabelecer, em contrato, relações que instituem novas bases, novo
caráter, agora contratual, para relações entre instituições, já previstas
e correntes, mas em outras bases não contratuais: hierárquicas, po-
líticas ou comerciais. A contratualização significa, então, na gestão
pública e também neste trabalho, tentativa de incorporação mais
transparente de aspectos políticos aos compromissos entre partes do
governo, possibilidade de consideração de especificidades setoriais
e organizacionais, flexibilidade para adaptação estratégica a novos
contextos, possibilidade de aprimorar a qualidade dos investimentos
e de rever políticas que não tenham atingido os resultados espera-
dos, momento de promover formas de participação, entre outras
inúmeras possibilidades, infelizmente pouco exploradas.
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 195 |

Na prática brasileira, principalmente da gestão pública, a questão


dos contratos envolve muitas incertezas e polêmicas. Vivemos num
ambiente normativo problemático. As pesquisas internacionais como
“The Global Competitiveness Report 2011-2012 (World Economic
2011)”, mostra a enorme fragilidade do nosso ambiente institucio-
nal, que foi classificado em 79º lugar entre 144 países. Avaliações
desfavoráveis também se repetem em relatórios como “Doing Bu-
siness in Brazil” (The World Bank 2006). O ambiente institucional
é determinado pela infraestrutura legal e administrativa, na qual os
indivíduos, empresas e governo interagem para gerar renda e riqueza
na economia. Também inclui burocracia, a proteção dos direitos de
propriedade e contratos, ética e corrupção, eficiência do governo,
segurança e funcionamento do judiciário.
Muitos pensam que só o Estado pode defender o interesse público
e prestar bons serviços e, portanto, são contrários a privatizações,
contratação de organizações sociais e terceirização de serviços. Outros
têm posição oposta. Acham que é impossível melhorar a atuação
do Estado, principalmente da gigantesca administração direta, que
deveria ser reduzida, contando com mais apoio e trabalho da ad-
ministração indireta e de organizações não estatais.
Bem expresso por Cunha Jr. (2011, p. 31), a regulamentação
jurídica, quanto à organização administrativa das entidades indi-
retas no Estado brasileiro, está marcada por casuísmos e também
por imprecisões conceituais. Isso porque, com a inexistência de
um referencial normativo claro, emergem soluções por parte das
entidades, que geram desentendimentos, inclusive do ponto de
vista conceitual, e refletem não só na agilidade da administração
pública, mas também em confusões nos órgãos de controle, como
observa o autor:
| 196 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A confusão em matéria organizatória apresenta re-


percussões práticas imediatas, pois (a) estimula de-
mandas judiciais; (b) engendra indefinição de limites
de agir dos órgãos e entidades públicas; (c) promo-
ve atrasos no processo decisório da administração;
(d) inibe os administradores a adotarem iniciativas
criativas de gestão, com receio da responsabilização
posterior; (e) acrescenta custos desnecessários no
desenvolvimento de serviços públicos e sociais da
maior significação pública. (CUNHA Jr., 2011, p. 5)

No intuito de melhorar o desempenho, os governos, ao longo


dos anos, buscaram alternativas que deram maior flexibilidade a
algumas entidades, do ponto de vista de gestão de pessoas, financeira
e orçamentária, e de contratações e aquisições. Entre as organiza-
ções, está a Petrobras, que, reconhecidamente, com a adoção de
“Modelo Derivado”, buscou na flexibilização o favorecimento da
sua competitividade e eficiência.
Para Cunha Jr (2011, p. 31), os modelos derivados são originados
nos modelos básicos estabelecidos na Constituição Federal de 1988
e configuram-se como meios de adequação “às novas necessidades,
ou a necessidades pré-existentes, cujas condições de funcionamento
foram alteradas pela CF/88 ou suas Leis regulamentadoras”. Em
outras palavras, diante da dificuldade de enquadrar as instituições
na legislação vigente, criam-se modelos com base nos referenciais
básicos, procurando considerar e atender às suas especificidades.
Como estabelecer uma política de recursos humanos sem clareza
das perspectivas de evolução das estruturas do Estado? Mais gente
na administração direta ou mais na indireta? Mais pessoal próprio
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 197 |

ou mais terceiros contratados, credenciados ou conveniados? Ou


é melhor privatizar de vez certas atividades? Quais cargos, quais
carreiras permanecem e devem ser fortalecidas? Quais competências
devem ser desenvolvidas? Mal comparando, as dúvidas equivalem
a ter de renovar um guarda-roupa desconhecendo o tamanho do
corpo e os hábitos de vida que demandam vestimentas específicas.
O indivíduo pratica esportes? Quais? Natação ou esgrima? Prefere
o estilo social ou esportivo? Roupas claras ou escuras?
Modesto e Cunha Jr. (2011, p. 24) apontam o descompasso entre
regime jurídico e necessidades de atuação do Estado que envolve
não apenas modificações da estrutura institucional do próprio poder
público como transformações nas formas de interação com outros
atores sociais.
No próximo tópico, vamos abordar sucintamente as tentativas
de mudança das relações entre público e estatal e da concepção do
aparelho do Estado e das políticas de pessoal decorrentes.

6.2 VALORES, REFORMAS DO ESTADO E POLÍTICA


DE RECURSOS HUMANOS

Keinert (2007, p. 107-108), no Capítulo II de seu livro, mostra


como evoluiu o conceito de público como referencial paradigmático.

Num primeiro momento (1937-1979), público


refere-se a estatal e, consequentemente, as ações
eram pensadas do Estado para a Sociedade. Num
momento posterior, o conceito de “público extrapola
o limite estatal tornando-se mais amplo que este
| 198 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

último, envolvendo uma multiplicidade de atores,


formas jurídicas e gerências”. [...] Emerge paradigma
do ‘Público’ como interesse público [...] com novas
formas de participação e gestão do espaço público.

Reforçamos a ideia com uma citação de terceiros, escolhida pela


autora:

Como coloca Cunnil Grau (1995) e também Ra-


botnikof (1993), paulatinamente, o adjetivo público
irá marcando uma mudança nestas relações dando
lugar a uma progressiva diferenciação entre o Estado,
a comunidade e o indivíduo, exigindo a criação de
uma “nova institucionalidade” que não somente cria
a possibilidade de tornar a gestão pública mais per-
meável às demandas emergentes da sociedade, mas
que também retira do Estado e dos agentes sociais
privilegiados, o monopólio exclusivo da definição
da agenda social. (KEINERT, 2007, p. 62).

Consideramos que o interesse público deve ser defendido de forma


ampla, como valor compartilhado que demanda atuação conjunta
do Estado, mercado e sociedade conforme conveniências históricas.
Nenhum segmento possui o monopólio das virtudes e soluções e
tampouco dispõe de recursos e energias para atender às crescentes
demandas sociais. Articulação criativa, novas contratualizações, co-
produção público-privado são essenciais. Infelizmente, preconceitos,
corporativismo, clientelismo, patrimonialismo, entre outros “ismos”,
têm truncado os debates e a evolução das ideias e soluções.
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 199 |

O fortalecimento do “público não estatal” foi uma das linhas


adotadas pela principal referência quando se pensa em Reforma do
Estado e contratualizações no Brasil,o Plano Diretor da Reforma do
Aparelho de Estado (PDRAE), de 1995 (BRASIL, 1995), protago-
nizado pelo então Ministro do extinto Ministério da Administração
e Reforma do Estado (MARE). O ministério foi batizado de forma
um tanto pretensiosa, que faz supor atuação de abrangência superior
às reais possibilidades, mas as reflexões que promoveu propiciaram
a concepção de um modelo abrangente e ousado, uma verdadeira
proposta de engenharia institucional, expressa no gráfico seguinte,
bastante divulgado:

Figura 6.1. Matriz de vocações, formas de propriedade e


administração de instituições e organizações do aparelho de
Estado [título nosso]

ESTATAL PÚBLICA PRIVADA BUROCRÁTICA GERENCIAL


Não Estatal
NÚCLEO ESTRATÉGICO
Legislativo, Judiciário, Presidência,
Cúpula dos Ministérios, Ministério
Público

ATIVIDADES EXCLUSIVAS
Regulamentação Fiscal, Fomento,
Segurança Pública, Seguridade
Social Básica
SERVIÇOS NÃO-EXCLUSIVOS
Universidades, Hospitais, Publicização
Centros de Pesquisa, Museus

PRODUÇÃO PARA
O MERCADO Privatização
Empresas Estatais

Fonte: Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995, p. 59).


| 200 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A proposta central é a seguinte: administração direta com pessoal


estatutário e concursado apenas para certas carreiras que trabalha-
riam no núcleo estratégico e parte das atividades exclusivas; agências
executivas autônomas, com pessoal celetista, também cuidariam
das atividades exclusivas; os serviços sociais, de saúde, científicos e
outros, ou seja, os serviços considerados não exclusivos do Estado,
poderiam ser prestados na esfera do “público não estatal”, com
a participação de organizações sociais. Conforme o PDRAE, as
organizações sociais são entidades de direito privado que obtêm
autorização legislativa para celebrar “contrato de gestão” e assim ter
direito a dotação orçamentária. O documento é bastante otimista
quando à possibilidade de transformar as estruturas do Estado e até
propõe um checklist para facilitar os trabalhos.

O projeto parte de algumas perguntas básicas: 1)


Qual a missão desta entidade? 2) O Estado deve se
encarregar dessa missão e das respectivas atividades
envolvidas? 3) Quais podem ser eliminadas? 4) Quais
devem ser transferidas da União para os estados ou
para os municípios? 5) E quais podem ser transfe-
ridas para o setor público não estatal? 6) Ou então
para o setor privado?
Por outro lado, dadas as novas funções, antes regu-
ladoras que executoras: 1) Deve o Estado criar novas
instituições? 2) Quais?
A resposta a estas perguntas deverá ser a menos
ideológica e a mais pragmática possível. O que inte-
ressa é obter um resultado ótimo, dados os recursos
escassos. (PDRAE, 1995, p. 72.)
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 201 |

Pode-se observar que mesmo o PDRAE não é esclarecedor em


todos os sentidos. No que tange às sociedades de economia mista,
por exemplo, coloca-as na classificação de “produção de bens e
serviços para o mercado” e, consequentemente, supõe-se, candi-
datas preferenciais à privatização. No entanto, não ocorrendo a
privatização, como é o caso da Petrobras e outras instituições como
a Eletrobras, Banco do Brasil e tantas outras, deveria ser realizado,
também como suposição decorrente, um contrato de gestão para
firmar suas especificidades. Vale afirmar que a criação de empresas
estatais é algo que restou presente nas políticas da gestão do governo
federal também nas gestões seguintes. Recentemente, foi criada a
Empresa de Planejamento e Logística (EPL), com a missão de agilizar
a efetivação dos projetos de infraestrutura. Outras foram submetidas
à apreciação do Legislativo para criação, ainda em tramitação.
O PDRAE não desconsiderou a necessidade de uma nova política
de Recursos Humanos. Partindo de um diagnóstico de que:

A legislação que regula as relações de trabalho no


setor público é inadequada, notadamente pelo seu
caráter protecionista e inibidor do espírito empreen-
dedor. São exemplos imediatos deste quadro a aplica-
ção indiscriminada do instituto da estabilidade para
o conjunto dos servidores públicos civis submetidos
a regime de cargo público e de critérios rígidos de
seleção e contratação de pessoal que impedem o
recrutamento direto no mercado, em detrimento
do estímulo à competência.
Enumeram-se alguns equívocos da Constituição
de 1988 no campo da administração de recursos
| 202 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

humanos. Por meio da institucionalização do Re-


gime Jurídico Único, deu início ao processo de uni-
formização do tratamento de todos os servidores
da administração direta e indireta. Limitou-se o
ingresso ao concurso público, sendo que poderiam
ser também utilizadas outras formas de seleção que
tornariam mais flexível o recrutamento de pessoal
sem permitir a volta do clientelismo patrimonialista
(por exemplo, o processo seletivo público para fun-
cionários celetistas, que não façam parte das carreiras
exclusivas de Estado).
Os concursos públicos, por outro lado, são realizados
sem nenhuma regularização e avaliação periódica da
necessidade de quadros, fato que leva à admissão de
um contingente excessivo de candidatos a um só tem-
po, seguida de longos períodos sem uma nova seleção,
o que inviabiliza a criação de verdadeiras carreiras.
[...]
Concluindo, a inexistência tanto de uma política
de remuneração adequada (dada a restrição fiscal do
Estado) como de uma estrutura de cargos e salários
compatível com as funções exercidas, e a rigidez
excessiva do processo de contratação e demissão do
servidor (agravada a partir da criação do Regime Jurí-
dico Único), tidas como as características marcantes
do mercado de trabalho do setor público, terminam
por inibir o desenvolvimento de uma administração
pública moderna, com ênfase nos aspectos gerenciais
e na busca de resultados. (PDRAE, 1995, p. 27-36.)
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 203 |

O documento propõe uma nova política de Recursos Humanos


envolvendo profissionalização e valorização do servidor público
mediante capacitação de novos servidores, adequação aos novos
papéis exigidos do Estado, desenvolvimento de pessoal, um sistema
remuneratório adequado, incentivos de carreira, promoção basea-
da no mérito e adequação de estímulos para resgatar talentos e a
motivação do servidor público. Consideramos o PDRAE a única
proposta abrangente de Reforma de Estado do Brasil. Por que tal
proposta foi tão rejeitada durante a existência do MARE? Houve
falhas? Em que sentido foi melhor do que outras propostas de Re-
forma, principalmente a que criou o Departamento Administrativo
do Serviço Público (DASP), em 1938, e a decorrente do Decreto-
-Lei 200 de 1967?
Em primeiro lugar, as propostas de Reforma (1939, 1967 e 1995)
não contaram com participação e apoio da sociedade e dos próprios
servidores públicos. As duas primeiras, por razões evidentes, pois
ocorreram durante períodos ditatoriais (Vargas e Militares). E a de
1995, embora num período democrático, não conquistou o apoio
dos servidores, dos órgãos de controle do legislativo e dos demais
ministérios além do MARE.
Segundo Loureiro, Abrucio e Pacheco (2010, p.18), a proposta
teria seguido “o paradigma comum do modelo reformista brasileiro:
centralizador, autoritário e insulado em relação ao sistema político”.
As duas primeiras reformas foram mais focalizadas e menos abran-
gentes. A primeira, com a criação do DASP, representou um marco
da burocracia pública brasileira. E o Decreto-Lei 200, de 1967,
em vigência até hoje, representa a primeira classificação relevante
dos órgãos de burocracia brasileira e fomentou o desenvolvimento
da administração indireta: autarquias, fundações e sociedades de
| 204 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

economia mista. Tal decreto procurou, de certa forma, trazer a “ra-


cionalidade” do setor privado para dentro da administração pública.
Como é comum a todas as reformas administrativas no Brasil,
as implantações não foram completas. O DASP sucumbiu aos
interesses particularistas com duas castas de funcionários públicos:
a dos selecionados por concursos e promovidos por mérito e a dos
extranumerários, contratados por favoritismos político ou pessoal,
fora do sistema de mérito. Desde a criação do DASP, o formalismo
foi manipulado de acordo com as circunstâncias (ANDREWS,
2009, p. 56).
O DASP pecou por praticar a mesma legislação para a adminis-
tração direta e indireta.
O Decreto-Lei 200, embora tenha proposto princípios de
administração válidos até hoje, como planejamento e descentra-
lização, estimulou uma fratura entre a administração indireta,
considerada moderna (principalmente empresas públicas e mis-
tas), e administração direta, contrapostamente obsoleta. A falta
de integração entre ministérios tutelares, órgãos de controle e
empresas contratadas cresceram mesmo após a criação de órgãos
como a Secretaria de Controle das Empresas Estatais (SEST),
hoje substituída pelo Departamento de Coordenação e Controle
das Empresas Estatais (DEST), vinculado ao Ministério do Pla-
nejamento. Mesmo após as privatizações acentuadas no período
do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), con-
tinuamos com Ministérios, Secretarias e Agências Reguladoras
“fracas”, diante de concessionárias, empresas e autarquias “for-
tes”. Deu-se mais valor à indireta sem fortalecer a direta. Muita
fragmentação e pouca coordenação na administração pública,
como coloca Abrucio (2010).
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 205 |

Voltando ao PDRAE, a principal causa do desencontro en-


tre a qualidade, a abrangência das propostas e a efetividade das
mesmas foram as resistências de atores relevantes para o processo
de mudanças num período democrático. Outros ministérios,
sindicatos e órgãos de controle se opuseram principalmente às
ideias de “desafogar” e reduzir o porte da administração direta
mediante agências executivas , organizações sociais (OSs), bem
como as propostas do MARE de revisão Constitucional, efetiva-
das por meio da Emenda 19/98, envolvendo questões sensíveis
como estabilidade, regime único e diferenças entre administração
direta e indireta.
Pensamos que o corporativismo imperou mais do que a defesa do
interesse público, mesmo compreendendo-se as falhas e inevitáveis
incompletudes do PDRAE em questões como a tentativa frustrada
ou conceitualmente incorreta de diferenciar “administração buro-
crática” e “administração gerencial”, as dificuldades de estabelecer
mecanismos de controle das Agências Executivas e das OSs e as pro-
postas excessivamente ambiciosas de examinar e rever globalmente a
estrutura do Estado. Também o relacionamento entre administração
direta e indireta, bem como as possibilidades de terceirização, não
ficaram bem definidas.
Julgamos que alocação de atividades entre administração
direta, autarquias, empresas públicas e mistas, agências execu-
tivas, OSs, empresas privadas e outras instituições não é algo
simples e linear e depende de análise de complexas circunstâncias
sociopolíticas e econômicas. Contudo, nas esferas estaduais e
municipais, gradativamente o PDRAE foi ganhando força como
referencial para as mudanças, como mostra exemplarmente os
casos dos estados de São Paulo e Minas Gerais, com a utilização
| 206 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

crescente de OSs na saúde e na cultura, Organizações da So-


ciedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), contratualizações,
PPPs, fortalecimento das carreiras vinculadas ao núcleo estratégico
do estado e sistematização das terceirizações para as quais Minas
Gerais desenvolveu a Gestão Estratégica de Suprimentos (GES), e
São Paulo, o Caderno de Terceirizações (CADTERC). As contra-
tualizações desenvolvidas pelo governo mineiro estão bem descritas
em Vilhena, 2006, parte III e cap. 13.
Proposta recente de nova Organização Administrativa Brasi-
leira (MODESTO, 2010), realizada por um grupo renomado de
juristas e expressa num anteprojeto de lei que estabelece normas
gerais sobre a administração pública direta e indireta, as entidades
paraestatais e as de colaboração, tem poucas possibilidade de
avançar e transformar-se em lei. Um dos autores do anteprojeto
menciona que “o anteprojeto embutiu uma crítica à recorrente
tendência brasileira de centralização, unificação e hierarquização
de toda a administração Pública, tanto Direta como Indire-
ta” (MODESTO, 2010, p. 61). Com base neste diagnóstico,
“[...] a preocupação do anteprojeto é viabilizar a construção de
uma organização estatal policêntrica e melhorar o regime de
relação do Estado e as entidades não estatais de Colaboração”
(SUNDFELD in Modesto, 2010, p. 61), e ainda, conforme
menciona Sundfeld, “[...] não faz sentido querer tratar toda a
Administração Pública como uma unidade, é importante permitir
que ela se organize com muitos centros, dotada de níveis variados
de autonomia com meios próprios de controle” (SUNDFELD
in Modesto, 2010, p. 62).
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 207 |

6.3 EVOLUÇÃO E LIMITES DOS


CONTRATOS DE GESTÃO

Os contratos de gestão no Brasil ganharam maior evidência no


debate público com o PDRAE, apresentado no tópico anterior, e
sua proposta de contratualizar a relação entre o núcleo estratégico
do Estado e as demais organizações, tanto públicas quanto privadas.
Mas não se trata de algo que tenha começado com o PDRAE. Antes,
com base na experiência francesa, houve a tentativa de adotá-los
para facilitar a gestão e o controle das empresas estatais, no início
dos anos 1990. Uma análise mais detalhada da experiência é útil
para demonstrar um equívoco típico das reformas brasileiras quando
mimetizam indevidamente experiências bem sucedidas no exterior,
em contextos institucionais totalmente distintos.
O Decreto Federal 137, de 27 de maio de 1991, ao instituir o
“Programa de Gestão de Empresas”, previu os contratos de ges-
tão como um de seus componentes. Tais contratos, estipulando
os compromissos reciprocamente assumidos entre União e em-
presa, deveriam conter cláusulas especificando objetivos, metas,
indicadores de produtividade, prazos para consecução das metas
estabelecidas e para vigência do contrato, critérios de avaliação
de desempenho, condições para revisão, renovação, suspensão e
rescisão; penalidades aos administradores que descumprirem as
resoluções do Comitê de Controle das Empresas Estatais (mais
tarde denominado Comitê de Coordenação das Empresas Estatais)
ou as cláusulas contratuais.
Os contratos de gestão também foram adotados em outras esfe-
ras da administração pública, caso, por exemplo, do Estado de São
Paulo, em que foram firmados 88 contratos em dezembro de 1991.
| 208 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O objetivo principal dos contratos de gestão é permitir uma defi-


nição clara das intenções, responsabilidades e acordos recíprocos entre
Estado e os gestores das instituições que o compõem. Nesse sentido,
representam uma nova linguagem para o diálogo interinstitucional
na área pública, usualmente dificultado pela multiplicidade de in-
terlocutores e pelas particularidades dos procedimentos adotados.
Sabe-se que os controles estabelecidos dentro da administração
pública voltaram-se quase exclusivamente para o controle dos meios,
sem que se realizasse uma política de meios propriamente dita —
sejam meios humanos, materiais ou financeiros. Na verdade, no
círculo vicioso dos controles de meios não referenciados à eficácia
no uso dos próprios recursos, pouco se pode avançar no sentido de
uma gestão racional. Contudo, é possível conceber uma sistemática
de gestão com uma estrutura razoavelmente simples, tendo como
característica marcante a condição de estimular a busca da eficiência
e o cumprimento dos objetivos das diferentes atividades de governo.
Os contratos de gestão constituem instrumento útil nesse sentido:
permitem estabelecer critérios de avaliação da eficiência das empre-
sas (e, portanto, de incentivo à eficiência) e também viabilizam,
pela definição de metas plurianuais, a compatibilidade da ação das
diferentes esferas do governo.
Os contratos de gestão, no estado atual, configuram um processo
de aprendizagem com múltiplas facetas. Mais importante até que o
resultado final é o processo de negociação para definição de metas,
aprimoramento de indicadores de desempenho e melhor definição
de responsabilidades no aparelho estatal. É certo, também, que
muitas normas em vigor ainda restringem a autonomia de gestão
das empresas para atingir as metas pactuadas nos contratos. Apesar
dessas limitações práticas, os contratos de gestão mostram-se como
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 209 |

instrumento promissor no processo de aprimoramento da gestão


das empresas estatais. Um resgate da experiência do governo federal
na implantação de contratos de gestão, vivida por um dos autores
e relatada em Johnson (1996), é ilustrativa da potencialidade e das
limitações inerentes a esse instrumento.
O Decreto 137, de 27 de abril de 1991, atribuiu ao Comitê de
Controle das Empresas Estatais (CCE) — posteriormente denomi-
nado Comitê de Coordenação das Estatais — papel central na im-
plementação dos contratos de gestão: constituído pelos Ministérios
do Planejamento e da Fazenda, junto com seus respectivos secretários
executivos, as reuniões do CCE contaram com a participação (com
direito a voto) dos ministros e secretários executivos dos ministérios
a que fossem vinculadas as empresas cujos interesses estivessem em
pauta, bem como o ministro e o secretário executivo do Ministério
do Trabalho, quando a pauta da reunião incluísse matéria relativa
à política trabalhista e salarial das empresas estatais (Decreto 725,
de 19 de janeiro de 1993).
O modelo proposto procurou claramente superar a forma vi-
gente de controle dos meios e caminhar na direção da avaliação
do desempenho e dos resultados. Ou seja, amplia-se a autonomia
da empresa estatal para a gestão de seus recursos (materiais, finan-
ceiros e humanos), cobrando-se, em contrapartida, o desempenho
correspondente a objetivos e metas fixadas no contrato de gestão.
O Decreto 1050, de 27 de janeiro de 1994, que dispõe sobre as
condições para a celebração do contrato de gestão entre a União e a
Petrobras, traz exemplos nítidos dessa mudança de enfoque. Assim,
entre os objetivos do contrato de gestão constaram: eliminar fatores
restritivos à flexibilidade da ação administrativa e empresarial da
Petrobras, com vistas a alcançar seus objetivos estratégicos; atingir
| 210 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

metas e resultados específicos, fixados periodicamente e aferidos


conjuntamente pela União e a Petrobrás, por meio de indicadores
e sistemática de avaliação.
Para tanto, o decreto ampliou a autonomia da empresa, de acordo
com o estabelecido no Artigo 5:

Ressalvados os casos previstos em lei e os termos


do contrato individual de gestão, não dependerá de
autorização prévia do Poder Executivo a prática, pela
Petrobras, dos seguintes atos de gestão administrativa
e empresarial:
I. seleção, admissão, remuneração, promoção e de-
senvolvimento de pessoal, bem como a prática de
todos os demais atos próprios de gestão de recursos
humanos;
II. negociação e celebração de acordos coletivos de
trabalho, de natureza econômica ou jurídica, bem
como sua defesa ou postulação judicial por meios
próprios;
III. realização de viagens ao exterior de administra-
dores e empregados;
IV. contratação e renovação de operações de crédito
de quaisquer espécies com instituições financeiras
e com fornecedores de bens e serviços, nacionais e
internacionais, inclusive arrendamento mercantil;
bem como a emissão de obrigações e de quaisquer
outros títulos nos mercados nacional e internacional,
observando os limites de endividamento fixados pelo
Senado Federal;
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 211 |

V. contratação e renovação de operações de em-


préstimos e financiamentos, títulos descontados,
adiantamentos, arrendamento mercantil e garantias
de qualquer natureza, realizadas pelas instituições
financeiras e sociedades de arrendamento mercantil;
VI. elaboração, execução e revisão do planejamento
e dos respectivos orçamentos, em consonância com
as orientações gerais do planejamento federal.

Os itens acima implicam substancial redução dos controles da


União sobre os atos administrativos da empresa estatal, sem que
representem necessariamente redução do controle da União sobre o
desempenho da organização. Obviamente, trata-se de buscar novos
mecanismos que permitam avaliar resultados em relação a objetivos
e metas previamente definidos.
Apesar das disposições do Decreto 1.050 permitirem maior
autonomia à Petrobras – indicando o potencial dos contratos de
gestão – algumas restrições impõem limites a tal autonomia. A for-
malização do orçamento interno da empresa estatal, por exemplo,
só pode se fazer após a aprovação da lei orçamentária da União. Se
lembrarmos que o orçamento público federal de 1994 só foi apro-
vado por Lei em 09 de novembro de 1994, podemos imaginar as
restrições à efetiva autonomia gerencial daí decorrentes.
Adicionalmente, outras instâncias do Estado também podem
limitar o alcance dos contratos de gestão. O Tribunal de Contas da
União (TCU) - Ata nº 3, Decisão 20 de 2 de fevereiro de 1994 —,
por exemplo, apresentava algumas considerações restritivas a respeito
dos contratos de gestão. Estes não poderiam ser considerados como
“contrato administrativo ou programa de governo” sem “autorização
| 212 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

legal”; sua assinatura não deveria interferir nas competências da fis-


calização e controle externos vigentes; e - apesar de, na referida ata,
o TCU congratular-se de poder contar com os referenciais de metas
e indicadores assumidos nos contratos de gestão para suas próprias
auditorias futuras, reafirma que, “em hipótese alguma”, os contratos
poderiam “conduzir à inobservância de preceitos constitucionais e
legais pertinentes à espécie, haja vista o consagrado princípio da
hierarquia das leis.”
A postura TCU se inspira claramente na tendência presente na
Constituição de 1988, (o que é, de resto, compreensível) que é de
igualar o regime jurídico das entidades da administração direta com
os da administração indireta, o que significa um contrassenso, pois,
se essas entidades, principalmente as empresariais, atraem o poder
público pelo fato de atuarem pelos métodos do direito privado, elas
perdem a sua razão de ser quando são submetidas ao regime jurídico
de administração pública.
Além das restrições do TCU, até certo ponto secundárias, pois
discutíveis e sujeitas a questionamento, devem ser apontadas outras
para as quais não pode faltar atenção.
Assim, convém frisar que, não obstante a singularidade atribuída
pelos contratos de gestão a determinados entes governamentais, em
pelo menos três pontos o seu poder de ação fica claramente delimita-
do por comandos constitucionais e legais específicos. Primeiramente,
no que concerne à seleção e admissão de pessoal, é imprescindível
a realização de concurso público, ante o disposto no Art. 37-II da
Carta Magna. Em segundo lugar, no que tange à remuneração de
dirigentes e servidores, não há como deixar de observar o limite
máximo estipulado no art. 37-XI. Por último, no que diz respeito
à contratação de obras e serviços, aquisição e alienação de bens, é
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 213 |

inegável a obrigatoriedade do cumprimento do disposto no art.


37-XXI da Constituição, regulamentado pela Lei 8.666, de 21 de
junho de 1993, que instituiu normas para licitações e contratos do
setor público, alcançando indiscriminadamente a administração
direta e a indireta.
Essas breves indicações reafirmam, portanto, as limitações ainda
presentes à plena eficácia dos contratos de gestão, o que, evidente-
mente, não invalida os esforços no sentido de sua implantação e aper-
feiçoamento, num quadro global de reestruturação da gestão pública.
A emenda Constitucional nº 19/98, procurou viabilizar o con-
texto legal para a aplicação dos contratos de gestão, já previstos na
legislação infraconstitucional, no Art. 37 § 8º:

§ 8º - A autonomia gerencial, orçamentária e finan-


ceira dos órgãos e entidades da administração direta
e indireta poderá ser ampliada mediante contrato,
a ser firmado entre seus administradores e o poder
público, que tenha por objetivo a fixação de metas
de desempenho para órgão e entidade, cabendo à
lei dispor sobre:
I – o prazo de duração do contrato;
II – os limites e critérios de avaliação de desempe-
nho, direitos, obrigações e responsabilidades dos
dirigentes;
III – a remuneração do pessoal.

Mesmo com previsão legal sólida, esse instrumento ainda carece


de estabilidade jurídica. Di Pietro (1996, p. 6), ao tratar dos con-
tratos de gestão, coloca que “à vista das dificuldades apontadas, é
| 214 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

indispensável, para assegurar a almejada autonomia, mudar o direito


positivo. Não se pode, por meio de contrato de gestão, descumprir
normas legais e preceitos da própria constituição”; e adiciona que
“é evidente que o contrato de gestão pode ser útil para o Estado e
para suas empresas. Mas há que ser respeitado o direito positivo”.
Artigos recentes, como os de Pires (2012) — referente à expe-
riência brasileira em contratualização —, de Ghelman (2012) —
abordando especificamente o INMETRO — e de Perdicaris (2012)
— sobre a experiência do contrato programa (nesse caso, firmados
com organizações da sociedade civil) nos hospitais da administração
direta no estado de São Paulo, apresentam as seguintes conclusões:

− O conjunto de flexibilidades permitidas é tímido,


gerando desinteresse pelo modelo. (PIRES, 2012).
− A experiência de contratualização do INMETRO
(única autarquia com status de agência Executiva do
governo federal) é considerada frutífera e evolutiva,
como aprendizagem, apesar da quase inexistência de
flexibilidade para a gestão de pessoas e morosidade dos
processos de contratualização. (GHELMAN, 2012).
− Nos casos dos contratos de gestão denominados
Contrato Programa, nos hospitais da administração
direta no Estado de São Paulo, a experiência foi
considerada positiva em termos de desempenho,
aprendizagem, facilidade de coordenação e resul-
tados alcançados. Como entraves ao desempenho,
não superados pelo contrato, repetem-se as dificul-
dades na gestão de pessoas, em compras e licitações.
(PERDICARIS, 2012)
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 215 |

Há, contudo, um novo campo do conhecimento, discutido no


tópico seguinte, que muito poderia contribuir para o aprimoramento
da contratualização na área pública.

6.4 A NOVA ECONOMIA INSTITUCIONAL


E A CONTRATUALIZAÇÃO

Muitas vezes, o diálogo social referente às grandes questões de


administração pública se fecha em dicotomias empobrecedoras que
não respeitam a evolução e o acúmulo de ideias no campo do direito,
economia, administração e política, só para citar alguns grandes
domínios do conhecimento. Partidos políticos, candidatos e gestores
públicos opõem-se quase como torcedores de futebol. Contagens
simples e ironias substituem as análises mais profundas. A favor
vs. contra a privatização. A favor vs. contra a contratação de OSs.
A favor vs. contra a terceirização da prestação de serviços. Todos
têm direito à opinião, mas cria-se um processo de contraposições
em que o grande derrotado é o interesse público, pouco defendido
e considerado nas arenas competitivas e sangrentas dos duelos de
interesses corporativos, clientelísticos, ou simplesmente sectários.
Nesse contexto, queremos trazer para o debate dos contratos as ideias
apresentadas em trabalhos acadêmicos abrigados sob a denominação
comum de “Nova Economia Institucional (NEI)”.
Não se trata de assunto novo, pois um artigo, considerado se-
minal nesse assunto, foi publicado por Ronald Coase, em 1937.
Suas ideias hibernaram até 1970, e ele ganhou o prêmio Nobel
de Economia em 1991, assim como Oliver Williamson, também
intelectual importante e discípulo de Coase, o fez em 2009. Com
| 216 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

essas distinções, a NEI, que já estava em evolução, ganhou maior


relevância. Neste capítulo, não há intenção de aprofundamento no
tema, mas sim de demonstrar a necessidade de considerar a NEI
nos estudos de contratualização da área pública. Vamos nos basear,
principalmente, nas publicações e palestras do professor Décio
Zylbersztajn (1995) e em um livro do professor Williamson (1985).
Na visão de Williamson (1985, p.1) as instituições têm como
propósito principal economizar nos custos de transação. Uma tran-
sação ocorre sempre que um bem ou serviço é transferido por meio
de uma interface tecnológica. Um estágio da atividade termina e
outro é iniciado. Se as transações são organizadas dentro da fir-
ma (hierarquicamente) ou entre firmas autônomas (por meio do
mercado) é (ou deve ser) uma decisão variável. Cada modalidade
é adotada dependendo dos custos de transação associados a elas
(WILLIAMSON, 1985, p. 4).
Aqui cabe um primeiro comentário importante sobre a dico-
tomia comprar vs. fazer. Williamson trata esse “dilema” como
uma questão econômica da maior importância e, entendendo as
organizações como “feixe de contratos”, prefere transferir a discri-
cionariedade da decisão para os administradores, que deveriam,
então, pautar-se pelo critério do custo da transação. A natureza da
transação e do objeto envolvido, a qualidade e caráter estratégico,
devem ser criteriosamente analisados, considerando-se inclusive
os impactos no médio e longo prazo, optando-se, ao final, pelo
menor custo. Não há, portanto, nenhuma divisão dogmática entre
atividades meio e fim, mas um critério econômico preponderante,
ponderado por outras considerações que abordaremos mais adiante.
A abordagem proposta sustenta que qualquer operação que surja e
possa ser tratada como um contrato (problem of contracting) pode
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 217 |

ser frutiferamente examinada em termos de custo de transação.


(Ibid,, p. xii).
Mas, longe de poder ser acusado de excessivamente ingênuo e
reducionista, o autor adota pressupostos de comportamento humano
bastante pessimistas como elementos fundamentais de seu modelo. Os
pressupostos assumidos no suporte à abordagem utilizada no estudo
dos contratos são a racionalidade limitada e o oportunismo. Estes
dão suporte à seguinte declaração sumária do problema central da
organização econômica: projetar contratos e estruturas de governança
que tenham o propósito e o efeito de economizar num ambiente de
racionalidade limitada, enquanto, simultaneamente, salvaguarda as
transações contra os riscos do oportunismo (Ibid., p. xiii).
Em outra passagem muito reveladora e sugestiva, Williamson
afirma que a Economia baseada em custos de transação considera a
empresa (ou, por extensão, a organização econômica) como uma es-
trutura de governança em vez de um processo (function) de produção
(Ibid., p. 18). Os custos de transação são reduzidos pela submissão
das transações a estruturas de governança (Ibid., p. 18). Outro trecho
do trabalho de Williamson pode ser capaz de enriquecer essa decla-
ração. Segundo o autor, a mais importante lição, para os propósitos
do estudo das organizações econômicas, é esta: transações sujeitas
a oportunismo ex post serão beneficiadas se para elas puderem ser
delineadas garantias ex ante (Ibid., p. 48). Nesse ponto em particular,
cabe ressaltar a importância de novas ferramentas legais, adminis-
trativas e tecnológicas já disponíveis e que permitem o aumento da
governança em processos de compras e contratações públicas, sobre
os quais já há razoável experiência e mesmo literatura: mecanismos
de transparência obrigatória (com divulgação de editais, contratos
— inclusive os contratos de gestão — e pagamentos), sistemas de
| 218 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

compras eletrônicas, pregão, cadernos de padronização de serviços,


preços máximos de referência, pré-qualificação de fornecedores e
de candidatos a concursos, entre outros.
Um último aspecto do trabalho de Williamson que merece ser
destacado quando se fala em racionalidade econômica em compras
públicas, para que não se confunda essa expressão, como muito se
faz com a submissão automática a propostas de menor preço, são
as dimensões principais segundo as quais as transações diferem.
São elas a especificidade do ativo, a incerteza e a frequência, sendo
a primeira a mais importante delas (Ibid., p. 52). Segundo esses
critérios, quanto menos específico o objeto da contratação e mais
frequente sua necessidade, maiores as vantagens da terceirização. O
Quadro 6.1 apresenta uma simplificação das ideias apresentadas no
trabalho do autor, registrando apenas os extremos de uma escala
que, no dia a dia do gerenciamento das organizações, apresenta-se
muito mais complexa e com inúmeras situações mistas e combinadas.

Quadro 6.1 Matriz de decisão sobre a composição dos contratos


da organização

INCERTEZA
ESPECIFICIDADE
DOS ATIVOS
BAIXA MÉDIA ALTA

BAIXA Mercado Mercado Mercado

Contrato ou Contrato ou
MÉDIA Contrato
Integração Vertical Integração Vertical

Contrato ou Contrato ou
ALTA Contrato
Integração Vertical Integração Vertical

Fonte: Williamson, O. (1995).


CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 219 |

Fica claro que, além das restrições da falta de racionalidade do


comportamento humano, sempre presente na questão das contra-
tações, a disponibilidade de fornecedores, a especificidade, o caráter
estratégico do objeto da contratação e o volume de compras são
importantes para a decisão sobre contratar no mercado ou fazer
internamente.
Apresentamos a seguir uma visão gráfica e sintética dos pontos
centrais da NEI abordados acima.

Figura 6.2 Componentes e condicionantes da governança de


custos na NEI

AMBIENTE
INSTITUCIONAL

• Aparanto Legal
• Tradição
• Cultura

FORMAS
CARACTERÍSTICAS RESULTANTES DE
BÁSICAS DAS GOVERNANÇA
CONTRATOS
TRANSAÇÕES MINIMIZADORAS DE
CUSTOS DE
• Especificidade TRANSAÇÃO
• Risco
• Frequência
PRESSUPOSTOS
COMPORTAMENTAIS

• Oportunismo
• Racionalidade Limitada

Fonte: Adaptado de Zylberztajn (1995).


| 220 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Em resumo, a diversidade contratual é imprescindível para o


setor público, e devem ser escolhidos modelos de articulação e
governança que reduzam os custos de transação e respeitem o am-
biente institucional, reconsiderem as fragilidades comportamentais
do ser humano e as características básicas das transações. Se possível,
devem ser empregados mais ciência, mais experimentação e menos
ideologias e sectarismos.

6.5 COMENTÁRIOS FINAIS

Neste tópico final, gostaríamos de destacar brevemente algumas


das mais importantes implicações do tema e do contexto atual da
contratualização para a gestão de pessoas no setor público, apresen-
tadas esparsamente ao longo do capítulo.
Permitimo-nos fazê-lo na forma de minitópicos ou “aforismos”
para tornar sua leitura mais dinâmica:
(1)
Os órgãos da administração pública são contratantes e comprado-
res da maior importância na economia. Os contratos e a contratua-
lização merecem, portanto, ser tratados como uma de suas funções
centrais. O setor público depende dos contratos para orientar e
determinar obrigações e prestações específicas de funcionários,
concessionários, conveniados, prestadores de serviços, entre outros
parceiros e colaboradores. Assim, quem não sabe contratualizar
com terceiros, não o sabe igualmente com o pessoal próprio. Quem
não estabelece compromissos com contratados, provavelmente não
os tem com seus próprios colaboradores. Em contrapartida, quem
tem o costume de encarar as relações de trabalho como contratos
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 221 |

estabelecidos em bases claras, julgará estranho que a instituição não


os tenha com seus controladores, parceiros e prestadores de serviço.
(2)
Como a contratualização afetará toda a forma de trabalhar da
organização, se não for possível a participação das áreas responsáveis
pelas políticas de gestão de pessoas, como normalmente ocorre, ao
menos os impactos para as decisões da área devem ser pensados
desde o início do processo. A concepção de uma política de recur-
sos humanos depende de clareza sobre a matriz institucional de
fornecedores e colaboradores e da natureza dos contratos que serão
firmados com eles. Disso depende o balanceamento de todas as
funções de recursos humanos: fazer ou contratar; pessoal próprio ou
de terceiros contratados, credenciados ou conveniados; determinar
quais atividades terceirizar e quais cargos e carreiras permanecem e
devem ser fortalecidos; estabelecer quais competências devem ser
desenvolvidas se a organização ampliar seu feixe de contratos; definir
as implicações nas demais funções de RH, como recrutamento, sele-
ção e concursos; gerir carreiras; formação e desenvolvimento; avaliar
desempenho; e remunerar. Entendendo que o interesse público não
é monopólio de qualquer grupo, cabe aos gestores de pessoas e às
áreas de gestão de RH a competência de tornarem-se estratégicos
pela capacidade de avaliar a legitimidade, a oportunidade, e de se
adaptar rapidamente à combinação contratual de sua organização.
A “matriz” de possibilidades de contratações, de pessoal estatutário,
“celetista”, cargos de “livre provimento”, terceiros e “terceirizados”,
OSs, PPPs, convênios e credenciamentos, alternativas pouco estuda-
das e explicitadas, até por preconceito, receio ou corporativismo, é
tema fundamental para o estabelecimento de uma política de gestão
de pessoas que mereça esse nome.
| 222 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

(3)
A confusão em matéria organizatória apresenta repercussões prá-
ticas imediatas, pois (a) estimula demandas judiciais, (b) engendra
indefinição de limites de agir dos órgãos e entidades públicas; (c)
promove atrasos no processo decisório da administração; (d) inibe
os administradores a adotarem iniciativas criativas de gestão, com
receio da responsabilização posterior; (e) acrescenta custos desneces-
sários no desenvolvimento de serviços públicos e sociais da maior
significação pública. (CUNHA Jr, 2011, p. 5).
(4)
O Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado (PDRAE),
de 1995 (BRASIL, 1995), parte de algumas perguntas básicas: 1)
Qual a missão desta entidade? 2) O Estado deve se encarregar dessa
missão e das respectivas atividades envolvidas? 3) Quais podem
ser eliminadas? 4) Quais devem ser transferidas da União, para os
estados ou para os municípios? 5) E quais podem ser transferidas
para o setor público não estatal? 6) Ou então para o setor privado?
Não parece possível responder a essas perguntas para o Estado ou o
governo como um todo, em qualquer dos níveis ou poderes. Mas,
dada uma organização específica, com autonomia administrativa
suficiente para tal, parece bastante razoável ao menos refletir sobre
essas questões na definição de suas estratégias e estrutura.
(5)
Mas resta a insegurança jurídica para os gestores, sem dúvida.
Normalmente, a autorização legal dando autonomia a um órgão
ou empresa pública para praticar atos de gestão administrativa e
empresarial começa com a fatídica expressão: “Ressalvados os casos
previstos em lei...” Qual a segurança jurídica dos gestores? Pouca
ou nenhuma. Assim, autonomia especial eventualmente dada às
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 223 |

organizações por meio da assinatura de contrato de gestão, inclusive


na gestão de RH, termina por não ter o efeito esperado. As ressalvas
mencionadas deixam enormes espaços para a reação dos interesses
conservadores, legítimos e ilegítimos.
(6)
Em resumo, a diversidade contratual é imprescindível para o setor
público e devem ser escolhidos modelos de articulação e governança
que reduzam os custos de transação e respeitem o ambiente insti-
tucional, que considerem as fragilidades comportamentais do ser
humano e as características básicas das transações. É muito difícil,
no entanto, assim como foi e ainda é no Reino Unido a recuperação
do Civil Service, implantar a gestão estratégica e sistêmica de pessoas,
bem como qualquer inovação de maior impacto nessa área, sem uma
revisão mais abrangente dos marcos legais e institucionais brasileiros.

6.6 REFERÊNCIAS

ANDREWS, C. W.; BARIANI E. Administração pública no


Brasil: uma breve história política. São Paulo: Editora Unifesp,
2010.
BRASIL;. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro e 2002. Novo Código
Civil Brasileiro. Legislação Federal. Disponível em: <planalto.gov.
br>. 10 jan. 2002.
BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
(MPOG). Relatório Final do Anteprojeto de Lei Orgânica da Ad-
ministração Pública Federal e Entes de Colaboração. Disponível
em: <http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/
seges/comissao_jur/arquivos/090729_seges_Arq_leiOrganica.pdf.>.
| 224 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

COASE, R. The Nature of the Firm. Economica, New Series,


vol. 4, n. 16, p. 386-405, nov. 1937.
CUNHA Jr., L. A. P.. Taxonomia dos orgãos e entidades da
administração pública federal e de outras entidades e instrumentos
de implementação de políticas públicas. In: IV CONGRESSO
CONSAD DE GESTÃO PÚBLICA. Brasilia, 25-27 maio 2011.
DI PIETRO, M. S. Z.. Contratos de gestão. Contratualização
do controle administrativo sobre a administração pública e sobre
as organizações sociais. Revista da Procuradoria Geral do Estado,
São Paulo, 1996.
GHELMAN, S.. A contratualização de resultados no âmbito da
administração pública federal brasileira: a experiência do Instituto
Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia. 2012.
JOHNSON, B. B. et al. Serviços públicos no Brasil: mudanças
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KEINERT, T. M. M.. Administração pública no Brasil: crises,
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LOUREIRO, M. R.; ABRUCIO, F. L.; PACHECO, R. C.
Burocracia e política no Brasil — Desafios para o Estado demo-
crático no século XXI. Sao Paulo: FGV, 2010.
MODESTO, P.; CUNHA, L. A. P. (Coord.) Terceiro setor e
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PERDICARIS, P. R.. Contratualização de resultados e desem-
penho no setor público: a experiência do Contrato Programa nos
hospitais da Administração Direta no Estado de São Paulo. São
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PIRES, A. K.. Experiência Brasileira em Contratualização. 2012.
PRIBERAM. Dicionário Priberan da Língua Portuquesa. Lisboa,
2010. Disponível em:<http://www.priberam.pt>.
CONTRATUALIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS............................
NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA | 225 |

BRASIL. Câmara da Reforma do Estado. Plano Diretor da


Reforma, 1995.
THE WORLD BANK. Doing Business in Brazil, 2006.
VILHENA, R. et al. (Orgs.). O choque de gestão em Minas
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WILLIAMSON, O. E. The Economic Institutions of Capita-
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WORLD ECONOMIC. The Global Competitiveness Report,
2011–2012.
ZYLBERSZTAJN, D. Estruturas de governança e coordenação
do agribusiness: uma aplicação da nova economia das Instituições.
Tese (Livre Docência) — Departamento de Administração da Fa-
culdade Economia e Contabilidade da Universidade de São Paulo
(FEA-USP), São Paulo, 1995.
CAPÍTULO 7

Terceirização e gestão
de pessoas no setor público

HÉLIO JANNY TEIXEIRA


Doutor e Livre-docente em Administração pela
FEA-USP e professor da mesma instituição.

LETICIA QUEIROZ DE ANDRADE


Doutora em Direito do Estado pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e professora na
mesma universidade.

LUIZ PATRÍCIO CINTRA DO PRADO FILHO


Economista pela FEA-USP e consultor da Fundação
Instituto de Administração (FIA).

SÉRGIO MATTOSO SALOMÃO


Administrador pela FEA-USP e pesquisador da
Fundação Instituto de Administração (FIA).
TERCEIRIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS NO SETOR PÚBLICO | 229 |

A terceirização, comumente entendida como a contratação de


uma pessoa jurídica para a prestação de serviços a outra pessoa
jurídica, não é fenômeno recente e seu ingresso na estrutura das
organizações do Estado visa à descentralização de atividades ope-
racionais, à eficiência de gestão e à economicidade, objetivos que
correspondem a diretrizes legais aplicáveis à administração pública.
No entanto, diversamente do que ocorre na esfera privada, na
qual vigora o princípio da autonomia da vontade, a administração
pública exerce função regida por disposições normativas, além de
estar submetida a uma série de controles que acarretam impactos
no campo da terceirização.
Portanto, a terceirização deve ser tratada de forma distinta na
administração privada e na pública, embora a justificativa para sua
aplicação seja a mesma em ambos os setores: proporcionar ganho
em eficiência e economicidade.
Para tanto, não basta terceirizar, já que esse processo não é sinô-
nimo de economicidade e eficiência. É necessário definir, de acordo
com as peculiaridades de cada organização, quais atividades devem
ser ou não objeto de terceirização, as condições nas quais serão pro-
cessadas e contratadas as atividades a serem terceirizadas e, por fim,
os parâmetros para o acompanhamento e controle dessas atividades.
| 230 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A terceirização não é recente na história da humanidade. Sabe-se


que mesmo os pintores clássicos, que assinavam individualmente seus
quadros, contratavam estúdios especializados em segmentos diversos,
como o de instrumentos musicais, de animais, para facilitar o seu
trabalho. Quem cuida da informática e do processamento de dados
do Pentágono e da CIA? Uma empresa privada! Trata-se, portanto,
de uma velha questão técnica: fazer internamente ou contratar fora?
Ocorre que, na área pública, o assunto ganha maior complexi-
dade. Há grupos que veem a terceirização como um instrumento
neoliberal, decorrente do consenso de Washington e voltada à con-
figuração do Estado mínimo. Trata-se de um exagero, sem nenhum
fundamento histórico. A despesa pública tem crescido em todos
os países, com pouquíssimas exceções, independentemente de pri-
vatizações, terceirizações e adoção de outras medidas congêneres.
Na ponta oposta da polêmica, também há concepções taxativas e
errôneas, segundo as quais o Estado sempre trabalha mal ou pior do
que as empresas privadas e, portanto, a terceirização automaticamen-
te elevaria a eficiência. As privatizações já demonstraram que nada
funciona bem se não for bem administrado, seja público ou privado.
A terceirização deve ser vista como uma opção a ser adotada
quando fundamentada em amplo planejamento que deve resultar
das respostas às seguintes questões: (i) o interesse público será mais
bem atendido por meio da promoção de concursos para contratação
de empregados para realizar determinada atividade ou por meio da
terceirização do serviço? (ii) haverá ganho de eficiência com a tercei-
rização? (iii) a terceirização trará economicidade? (iv) as atividades
podem ser legalmente terceirizadas?
Assim, a resposta à questão “Vamos contratar mais funcioná-
rios ou terceirizar certas atividades?” não deve ser resumida, como
TERCEIRIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS NO SETOR PÚBLICO | 231 |

costumam fazer os críticos de ambos os lados, a uma suposta decisão


entre inchar a máquina ou destruí-la, perdendo-se inteligência e
capacidade executiva.
O presente trabalho busca distanciar-se desse cenário de po-
larizações, por meio de uma abordagem mais científica acerca do
instituto da terceirização. Parte-se, portanto, do reconhecimento
de que a gestão, sobretudo pública, não é algo simples. A “solu-
ção ótima” não tem uma fórmula fixa e universal, pois tal solução
exige análise do contexto econômico, social e jurídico, e envolve
necessariamente aprimoramento tanto da máquina pública, ou seja,
das relações internas, quanto das terceirizações e outras formas de
contratação externa.
Por um lado, não há como terceirizar bem sem um bom plane-
jamento e controle do processo; por outro lado, não se deve realizar
concurso público simplesmente para “completar os quadros”. O
conjunto, o composto, a organização societária, envolvendo Estado,
mercado e sociedade devem melhorar suas articulações para que se
efetivem progressos verdadeiros e de fato ocorra a defesa do interesse
público, acima de ilusões e ideologias.

7.1CARACTERÍSTICAS E AVALIAÇÃO DA GESTÃO


DE RECURSOS HUMANOS NA ÁREA PÚBLICA E OS
REFLEXOS NA TERCEIRIZAÇÃO

Segundo o relatório de “Avaliação da Gestão de Recursos Hu-


manos no Governo: Brasil 2010” (OCDE, 2010), da Organização
de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), “cerca
de 40% da força de trabalho do governo federal supera 50 anos e
| 232 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

logo vai se aposentar” e, portanto, é preciso definir uma estratégia


de longo prazo “baseada numa visão sólida” e “integrada nos es-
forços globais de reforma de gestão pública” (OCDE, 2010, p.11;
21). O relatório ressalta ainda que, atualmente, a gestão de recursos
humanos do governo federal tende a concentrar mais esforços no
controle do cumprimento das regras e normas básicas, com pouco
espaço para a gestão estratégica baseada em competências e desem-
penho. Reconhece-se no documento, portanto, que o planejamento
estratégico do pessoal deve ser prioridade.
Fica evidente pelo estudo que a gestão de recursos humanos, ou
a própria modernização das práticas nessa área, não é tarefa fácil,
considerando o sistema de composição do quadro de pessoal do
serviço público brasileiro.
O próprio relatório reconhece que existem muitos impedi-
mentos para a gestão estratégica de recursos humanos no governo
federal, entre eles: “o quadro de servidores é bastante rígido e não
permite muita mobilidade”; “os servidores são contratados em
uma carreira [específica] e devem fazer concursos para mudar de
carreira”; e se forem identificadas novas necessidades o governo
deve preencher somente com a realização de novos concursos
(OCDE, 2010, p. 74-75). Isto porque, em caso de investidura em
determinada carreira pública, torna-se inconstitucional a realocação
de servidor em cargos integrantes de outra carreira, ou mesmo o
deslocamento do próprio cargo para outro órgão ou ente público.
Ou seja, não é possível a mudança de cargo, numa hipótese de
alteração nas atribuições do servidor, sem a previsão de concurso
para o novo cargo pretendido.
Além desses pontos, o relatório destaca que:
TERCEIRIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS NO SETOR PÚBLICO | 233 |

A mobilidade é limitada pelo fato de que muitas


categorias estão estreitamente definidas e são espe-
cíficas para ministérios individuais ou agências, até
mesmo para funções semelhantes, sem qualquer
sistema de classificação geral que permitiria deter-
minar posições equivalentes entre os ministérios.
[...] as funções e atributos de cada carreira são defi-
nidos por meio da legislação e tendem a ser interpre-
tadas estreitamente. O resultado é que os servidores
públicos têm posse efetivamente em uma posição
individual e é virtualmente impossível transferir
pessoal disponível para outro ministério.
Os concursos parecem ser relativamente rudimenta-
res na maioria dos casos devido à interpretação res-
tritiva da cláusula constitucional relevante. (OCDE,
2010, p. 177)

Como então prover serviços e atender às necessidades deman-


dadas sem ter condições estruturais de gerir seu quadro de recursos
humanos?
Surge nesse cenário a possibilidade de minimizar os reflexos de
tais impedimentos com a terceirização. Nesse aspecto, o relatório
da OCDE destaca que: “Muitos países membros da OCDE au-
mentaram a terceirização, dado que esta é, por vezes, considerada
mais eficiente do que a mão de obra do setor público para deter-
minadas atividades e mais flexível”. O mesmo documento ressalta,
porém, que, de acordo com a experiência desses países, devem-se
considerar, na decisão de terceirizar, os “investimentos internos no
acompanhamento dos contratos” e a necessidade de tornar “legível”
| 234 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

a prestação de serviços de tal forma que permita o acompanhamento


das unidades contratantes (2010, p. 71).
Dessa forma, a OCDE coloca que as “Decisões sobre terceiriza-
ção devem ter participação do planejamento da força de trabalho e
serem descritas nos diversos documentos de prestação de contas”.
(OCDE, 2010, p. 84)
Apesar de considerar que a “questão da subcontratação é com-
plexa e politicamente complicada no Brasil”, a OCDE (2010,
p. 184-185) conclui que:

[...] a administração federal do Brasil se beneficiaria


de uma política menos restritiva relativa ao uso de
prestadores de serviço externos, mas com planeja-
mento transparente das atividades a serem terceiri-
zadas e uma lógica clara exposta.

Para tanto, o relatório da organização (OCDE, 2010, p. 184-


-185) esclarece que:

A terceirização não deve ser vista, porém, como


uma meta política em si mesma e não deve haver
nenhum objetivo a este respeito. Ao invés disso,
as organizações federais deverão ser encorajadas e
auxiliadas a desenvolverem políticas organizacio-
nais específicas para maior uso dos prestadores de
serviço externos. Um modo para fazer isto seria
montar uma rede igualitária para a terceirização
dentro da administração federal. Por meio de uma
rede igualitária, as diferentes organizações federais
TERCEIRIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS NO SETOR PÚBLICO | 235 |

poderiam trocar experiências e prover apoio mú-


tuo. Há grupos de trabalhadores que trabalham
para prestadores de serviço externos chamados de
“trabalhadores terceirizados irregulares”. Parece ra-
zoável assumir que, para alguns postos, o motivador
principal não foi o melhor custo ou patronato, mas
a necessidade de acessar competências especializadas
que não podem ser adquiridas pelo atual sistema
de carreiras e concursos. Neste caso, soluções mais
sofisticadas precisam ser estabelecidas para ter acesso
a essas habilidades dado que simplesmente proibir
tais contratações privará as administrações de habi-
lidades necessárias.

Por tudo que se disse, parece importante tanto retirar a discussão


da terceirização exclusivamente do campo ideológico, colocando-a
igualmente no campo técnico, quanto entender que não se pode
terceirizar “com qualidade” sem o fortalecimento das próprias car-
reiras técnicas do serviço público, cujos ocupantes serão responsáveis
pela especificação, consumo e avaliação dos serviços terceirizados,
bem como pela gestão dos respectivos contratos.

7.2 PRINCIPAIS MARCOS NORMATIVOS DA


TERCEIRIZAÇÃO NA ÁREA PÚBLICA

A primeira referência legal quanto à terceirização na área pública


é apresentada pelo Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967,
o qual, no § 7º de seu artigo 10, assim dispõe:
| 236 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Art. 10. A execução das atividades da Administração


Federal deverá ser amplamente descentralizada.
[...]
§ 7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de pla-
nejamento, coordenação, supervisão e controle e
com o objetivo de impedir o crescimento desmesu-
rado da máquina administrativa, a Administração
procurará desobrigar-se da realização material das
tarefas executivas, recorrendo, sempre que possí-
vel, à execução indireta, mediante contrato, desde
que exista na área iniciativa privada suficientemente
desenvolvida e capacitada para desempenhar os en-
cargos de execução.

Podemos notar que o preceito legal, ainda em vigência, abre


amplas possibilidades de terceirização, embora não conceitue com
precisão o que significa “realização material das tarefas executivas”.
Posteriormente, veio a Lei Federal nº 5.645, de 10 de dezembro
de 1970, que, em seu art. 3º, parágrafo único, já revogado pela Lei
9.527/97, definia atividades que deveriam, preferencialmente, ser
executas de forma indireta, nos seguintes termos:

As atividades relacionadas com transporte, conser-


vação, custódia, operação de elevadores, limpeza e
outras assemelhadas serão, de preferência, objeto de
execução indireta, mediante contrato, de acordo com
o artigo 10, § 7º, do Decreto-Lei nº 200, de 25 de
fevereiro de 1967 (Revogado com atualização das
atividades pelo Decreto 2.271/97).
TERCEIRIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS NO SETOR PÚBLICO | 237 |

Já a Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, XXI, pre-


vê, expressamente, a possibilidade de contratação de serviços pela
Administração, como forma de terceirização de determinadas ati-
vidades, impondo, para tanto, o dever de licitar. Confira-se o teor
do dispositivo:

XXI - ressalvados os casos especificados na legisla-


ção, as obras, serviços, compras e alienações serão
contratados mediante processo de licitação pública
que assegure igualdade de condições a todos os con-
correntes, com cláusulas que estabeleçam obrigações
de pagamento, mantidas as condições efetivas da
proposta, nos termos da lei, o qual somente per-
mitirá as exigências de qualificação técnica e eco-
nômica indispensáveis à garantia do cumprimento
das obrigações.

De forma a regulamentar esse inciso, foi editada a Lei nº 8.666,


de 21 de junho de 1993, que foi categórica em prever a possibilidade
de execução indireta de serviço pela Administração, nos termos dos
artigos 6º e 10:

Art.6º. Para os fins desta Lei, considera-se:


[...]
VIII Execução indireta ‒ a que o órgão ou entidade
contrata com terceiros sob qualquer dos seguintes
regimes:
a) empreitada por preço global ‒ quando se contrata a
execução da obra ou do serviço por preço certo e total;
| 238 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

b) empreitada por preço unitário quando se contrata


a execução da obra ou do serviço por preço certo de
unidades determinadas;
Art.10. As obras e serviços poderão ser executados
nas seguintes formas:
I - execução direta;
II - execução indireta, nos seguintes regimes:
a) empreitada por preço global;
b) empreitada por preço unitário;
c) (Vetado);
d) tarefa;
e) empreitada integral.

Tal diploma normativo não só previu a possibilidade de a Ad-


ministração executar serviços de forma indireta, como meio de
terceirização, mas, também, estabeleceu de que maneira se efetivará
a contratação, o que, como regra, será por meio de licitação.
Nesse ponto vale uma observação, tendo em vista o tratamento
diferenciado que é dado à matéria quando se fala de empresas pú-
blicas e sociedades de economia mista que desenvolvem atividade
econômica.
Embora a Lei nº 8.666/93 estabeleça normas gerais sobre li-
citações e contratos administrativos, aplicáveis à administração
direita e indireta, o art. 173, § 1º, da Constituição Federal, prevê a
possibilidade de as empresas públicas e as sociedades de economia
mista, exploradoras de atividade econômica, adotarem um regime
próprio de licitação e contratação, distinto do estabelecido na Lei
nº 8.666/93, inclusive para serviços, o que repercute, portanto,
também nas terceirizações.
TERCEIRIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS NO SETOR PÚBLICO | 239 |

Por fim, como marco normativo da terceirização, vale mencionar


o Decreto n° 2.271, de 7 de julho de 1997, que procurou estabelecer
uma política de terceirização para a administração pública federal di-
reta, relacionada às “atividades materiais acessórias, instrumentais ou
complementares aos assuntos que constituam área de competência
legal do órgão ou entidade” (Art. 1º, caput). Tal diploma norma-
tivo prevê a aplicação preferencial da terceirização às atividades de
conservação, limpeza, segurança, vigilância, transporte, informática,
copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção
de prédios, equipamentos e instalações. No entanto, o Decreto veda
a terceirização no caso de atividades inerentes às categorias funcio-
nais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade, posição
consagrada pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

7.3 A SÚMULA Nº 331 DO TRIBUNAL SUPERIOR


DO TRABALHO (TST)

Os conflitos entre locação de mão de obra e proteção dos direitos do


trabalhador ficam evidentes na leitura da Súmula nº 331 do Tribunal
Superior do Trabalho (TST). Essa súmula deu mais flexibilidade à
súmula anterior sobre o assunto, a 256 de 22/09/1986, que restringia
a terceirização para o trabalho temporário e serviços de vigilância.
Vejamos alguns itens da Súmula nº 331, de 17 de dezembro de
1993, do TST:

I – A contratação de trabalhadores por empresa


interposta é ilegal, formando-se o vínculo empre-
gatício diretamente com o tomador dos serviços,
| 240 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019,


de 07/01/74).
II – A contratação irregular de trabalhador, através
de empresa interposta, não gera vínculo de emprego
com os órgãos da Administração Pública Direta,
Indireta ou Fundacional (art. 37, II da Constituição
da República).
III – Não forma vínculo de emprego com o tomador
a contratação de serviços de vigilância (Lei nº. 7102,
de 20-06-83), de conservação e limpeza, bem como
a de serviços especializados ligados à atividade-meio
do tomador, desde que inexistentes a pessoalidade e
a subordinação direta.

No Decreto n°2.271/97 é apontada a necessidade de regula-


mentação específica para administração indireta no que tange à
contratação de serviços, como disposto no Art. 9º:

As contratações visando à prestação de serviços,


efetuadas por empresas públicas, sociedades de eco-
nomia mista e demais empresas controladas direta
ou indiretamente pela União, serão disciplinadas
por resoluções do Conselho de Coordenação das
Empresas Estatais – CCE.

Mas essa regulamentação nunca aconteceu. O CCE, que deveria


cuidar da regulamentação das contratações de prestação de servi-
ços nos entes integrantes da administração indireta foi desativado
em 1998. Diante desse fato, o próprio TCU recomenda como
TERCEIRIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS NO SETOR PÚBLICO | 241 |

providência a ser tomada por parte do Departamento de Coor-


denação e Governança das Empresas Estatais (DEST), mesmo
reconhecendo que não foram transferidas a esse órgão as atribuições
do antigo CCE, a regulamentação da contratação de serviços na
administração indireta, nos seguintes termos:

[...] recomendar ao Departamento de Coordenação


e Controle das Empresas Estatais, do Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão, que adote pro-
vidências no sentido de regulamentar as contratações
visando à prestação de serviços, efetuadas por empre-
sas públicas, sociedades de economia mista e demais
empresas controladas direta ou indiretamente pela
União, competência prevista no art. 9º do Decreto
nº 2.271/97, informando ao Tribunal os resultados
obtidos. (TCU, 2010, p. 9-10)

Apesar das recomendações do TCU, até hoje a matéria não foi


regulamentada pelo DEST. Sendo assim, o TCU acabou aplicando,
para a administração indireta, por analogia, o Decreto n° 2.271,
de 7 de Julho de 1997, e a Súmula TST n° 331, que reservam as
funções relacionadas à atividade-fim da entidade exclusivamente a
empregados concursados em respeito ao mandamento expresso no
Art. 37, inciso II da Constituição Federal de 1988.
Fica evidente que a aplicação analógica dos regramentos da adminis-
tração direta para as empresas mistas configura-se como um retrocesso.
Em síntese, temos que, de acordo com a regulamentação atual,
a terceirização na administração pública é reconhecidamente lícita
se seguir os seguintes preceitos:
| 242 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

•  Terceirizar serviços especializados ligados à atividade-meio


e não à atividade-fim do tomador (Súmula n° 331, III, TST).
•  Não se estabelecerem relações de subordinação direta e pes-
soalidade entre agentes públicos e empregados da empresa terceira
contratada (Súmula n° 331, III, TST).
•  Terceirizar atividades que não sejam inerentes às categorias
funcionais abrangidas pelo Plano de Cargos e Salários (art. 1°,
§ 2, Decreto 2.271/97).
Todas essas restrições surgem, entre outras razões, para evitar
que a terceirização seja utilizada como meio de “burlar” o concurso
público. Consagrado no art. 37 da CF/88, o concurso é tido como
o único meio de composição do quadro de pessoal na administra-
ção direta e indireta, com exceção aos cargos comissionados e aos
contratos temporários, conforme segue:

A administração pública direta e indireta de qualquer


dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Fe-
deral e dos Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade
e eficiência e, também, ao seguinte:
I - os cargos, empregos e funções públicas são aces-
síveis aos brasileiros que preencham os requisitos
estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros,
na forma da lei;
II - a investidura em cargo ou emprego público
depende de aprovação prévia em concurso público
de provas ou de provas e títulos, de acordo com a
natureza e a complexidade do cargo ou emprego,
na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações
TERCEIRIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS NO SETOR PÚBLICO | 243 |

para cargo em comissão declarado em lei de livre


nomeação e exoneração.

Em virtude da regra constitucional acima exposta, que impõe a


aprovação em concurso público como condição para acesso a em-
pregos e cargos públicos, a constitucionalidade da terceirização de-
pende de que se trate, efetivamente, de uma contratação de serviços,
configuração que deve ser espelhada no correspondente contrato.

7.4 A IMPOSSÍVEL DISTINÇÃO ENTRE


ATIVIDADE-FIM E ATIVIDADE-MEIO

De acordo com a literatura, a atividade-meio encontra no cam-


po legal sua principal limitação conceitual. Isso porque é com base
no que se entende por atividade-fim que se orienta o sentido do
que deve ser reconhecido como atividade-meio na administração.
Para Oliveira e Brizola (2010), a atividade-meio deve ser entendida
como o caminho a ser percorrido para atingir o objetivo final da
organização. Dessa forma, a atividade-meio não se concentra no
núcleo de empreendimento na qual estão inseridas as atividades-
-fim que, por sua vez, estão relacionadas ao objeto principal da
organização.
Ainda assim, alguns autores esclarecem que as atividades-
-meio são todas aquelas que não estão relacionadas à missão
e objetivos estratégicos da organização, denominadas também
como “atividades acessórias”. São exemplos de atividades-meio,
consagradas pela legislação, segurança, limpeza e conservação,
manutenção predial.
| 244 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Já no ponto de vista jurídico, como apresenta Maurício Go-


dinho Delgado, a diferenciação desses conceitos está definida da
seguinte forma:

Atividades-fim podem ser conceituadas como as


funções e tarefas empresariais e laborais que se ajus-
tam ao núcleo da dinâmica empresarial do tomador
dos serviços, compondo a essência dessa dinâmica e
contribuindo inclusive para a definição de seu posi-
cionamento e classificação no contexto empresarial
e econômico. São, portanto, atividades nucleares e
definitórias da essência da dinâmica empresarial do
tomador dos serviços.
Por outro lado, atividades-meio são aquelas funções
e tarefas empresariais e laborais que não se ajustam
ao núcleo da dinâmica empresarial do tomador dos
serviços, nem compõem a essência dessa dinâmica
ou contribuem para a definição de seu posiciona-
mento no contexto empresarial e econômico mais
amplo. São, portanto, atividades periféricas à essên-
cia da dinâmica empresarial do tomador dos servi-
ços. (DELGADO apud SALVINO; FERREIRA,
2009, p. 129)

As citações apenas ilustram quão infrutíferos são os esforços para


a distinção entre atividade-fim e atividade-meio.
Além disso, como considera Marques Neto (2000), o campo do
Direito, muitas vezes, tenta classificar alguns termos com o intuito
de torná-los mais didáticos, porém, às vezes são gerados “efeitos
TERCEIRIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS NO SETOR PÚBLICO | 245 |

colaterais”, pois as palavras adquirem vida própria, tornando-se


verdades inquestionáveis. Para o autor, esse fato é, claramente, o
que ocorre com a distinção entre atividade-meio e atividade-fim.
Marques Neto esclarece que a classificação confusa surge da Justiça
Trabalhista, com a Súmula TST 331, que dispõe sobre o não esta-
belecimento de vínculo empregatício com a contratação de serviços
especializados ligados à atividade-meio do tomador. Para o autor,
essa distinção não é possível, pois:

No mundo hodierno, pautado pela especialização e


sinergia das atividades econômicas e, de outro lado,
pela sofisticação tecnológica, coloca-se praticamente
impossível distinguir o que seja e o que não seja
atividade-meio. (MARQUES NETO, 2000, p. 72)

Nesse sentido, Robortella (1998, apud OLIVEIRA; BRIZOLA,


2010, p. 6) mostrou-se também categórico ao demonstrar a comple-
xidade dessa definição: “Há atividades-fim que, ao mesmo tempo
em que dependem da orientação tecnológica, podem converter-se
em atividades-meio e vice-versa [...]”.
Consideramos, portanto, que os esforços da literatura em con-
ceituar atividade-fim e atividade-meio são inconclusivos e abarcam
conceitos vazios e imprecisos do ponto de vista da teoria da admi-
nistração.
O próprio TCU, ao longo do relatório já mencionado, demons-
tra algumas tentativas de conceituar atividade-fim, com destaque
para os trechos a seguir: “constitui a área de competência legal ou
a missão institucional da empresa” (TCU, 2010, p. 3); “atividades
dos principais atores dos macroprocessos decisórios da empresa
| 246 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

[...] e aquelas que, independentemente da complexidade em sua


execução, interferem diretamente, positiva ou negativamente, nas
atividades estratégicas” (TCU, 2010, p. 21). Notem-se as dificul-
dades: “missão institucional”, “macroprocessos”, “atividades que
interferem diretamente nas atividades estratégicas” são definições
tão imprecisas e tão amplas, envolvendo certamente porções tão
majoritárias das organizações, que podem abarcam praticamente
qualquer tipo de atividade.
Porém, em consonância com o que afirmamos, o TCU também
considera que há certo grau de subjetivismo nessas definições, de-
mandando um olhar caso a caso, e que caberia, no caso específico,
à própria empresa examinada definir o que é atividade-fim ou
atividade-meio em seus processos, como dispõe o trecho a seguir:

[...] a definição de atividade-fim possui certo grau


de subjetivismo, podendo gerar questionamentos
por parte dos gestores. (TCU, 2010, p. 4)
[...] seria a própria empresa a mais habilitada para
definir materialmente o que venha a ser atividade-
-meio ou fim em seus processos”. (TCU, 2010, p. 21)

Podemos concluir, então, que a tentativa de diferenciar atividade-


-meio de atividade-fim é infrutífera e até prejudicial para o debate,
seja pela imprecisão, seja pela inadequação de foco e até desrespeito
aos avanços do funcionamento das organizações, podendo, somente
de forma casuística, serem determinadas as hipóteses passíveis de
terceirização, por meio de um planejamento bem estruturado, em-
basado em estudos técnicos elaborados para tanto.
TERCEIRIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS NO SETOR PÚBLICO | 247 |

7.5 O MARCO NORMATIVO INADEQUADO E O


CONTRASSENSO DA APLICAÇÃO DE LEGISLAÇÃO
POR ANALOGIA PARA ORGANIZAÇÕES
INTRINSECAMENTE DIFERENCIADAS EM SEU
NASCEDOURO INSTITUCIONAL

Para a administração indireta, não há na Constituição Federal


de 1988 a proibição de contratação de serviços de terceiros cuja
atividade esteja refletida no plano de cargos e salários do órgão em
questão. O que de fato existe é uma restrição aplicada pelo Decreto
n° 2.271, 7/7/1997, que se dirige à administração pública federal
direta, autárquica e fundacional, como disposto abaixo:

Art. 1º No âmbito da Administração Pública Fe-


deral direta, autárquica e fundacional poderão ser
objeto de execução indireta as atividades materiais
acessórias, instrumentais ou complementares aos
assuntos que constituem área de competência legal
do órgão ou entidade.

§ 2º Não poderão ser objeto de execução indireta as


atividades inerentes às categorias funcionais abrangi-
das pelo plano de cargos do órgão ou entidade, salvo
expressa disposição legal em contrário ou quando
se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no
âmbito do quadro geral de pessoal.

Em falta de normatização específica, é replicada a proibição


colocada pelo Decreto n° 2.271/97 para as empresas públicas e
| 248 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

sociedades de economia mista, como no caso da Petrobras. Esse


fato é considerado no relatório de auditoria do TCU (2010, p. 35):

“[...] propor que o TCU firme entendimento no


sentido de que, até a devida regulamentação do art.
9° do Decreto n° 2.271/97, aplicam-se às estatais,
por analogia, as disposições daquele decreto dirigidas
à Administração Direta.”

Há, portanto uma interpretação abusiva quanto ao que é estabe-


lecido nos marcos legais. Em vez de se apontarem as discrepâncias
jurídicas, opta-se por fazer analogias e “legislar” mediante instru-
mentos próprios como as súmulas, a exemplo da Súmula 331.
Reforçando a ideia de que o modelo de gestão das sociedades de
economia mista exploradoras de atividade econômica deve ser, por
definição, diferenciado, e, portanto, submetido a regras próprias
distintas das aplicáveis à administração direta, o estudo da OCDE
comentado anteriormente aponta as grandes amarras e problemas
na gestão de pessoal na administração direta, ao mesmo tempo em
que, recorrentemente, a Petrobras é apontada como benchmark de
gestão em geral, e de RH em especial. Então, apenas como exemplo,
por que pressionar a Petrobras a se enquadrar em modelo pior que
o da própria empresa? Nesse contexto, “o sucesso pode estar exata-
mente no desvio”. Ressalte-se que, enquanto a realidade econômica,
tecnológica e mesmo a social mudam de forma vertiginosamente
rápida, exigindo das corporações modernas adaptações, às vezes
radicais, em horizontes de poucos anos, cada servidor público está-
vel, contratado por concurso, representa o estabelecimento de um
pacto trabalhista com um horizonte em torno de 50 a 70 anos, se
TERCEIRIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS NO SETOR PÚBLICO | 249 |

considerarmos todos os passivos envolvidos. Multiplique-se isso por


dezenas de milhares de “primeirizações” recomendadas, e pode-se
ter uma noção do impacto esperado.
É evidente que o arcabouço jurídico, aplicado de forma ana-
lógica à regulamentação da administração direta, gera conflitos e
ambiguidades para o funcionamento das empresas, representando,
sem dúvida, se aplicado automaticamente, um grande retrocesso.
Reconhece-se que a tentativa do TCU de estabelecer diretrizes,
inclusive para poder exercer seu trabalho com base nos referenciais
legais existentes, ainda que patentemente inadequados, surge em
função da falta de atuação do Poder Executivo, seja por meio da
antiga CCE (extinta), da Secretaria de Controle das Empresas Esta-
tais (SEST), do DEST ou mesmo do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão (MPOG), aos quais, em diversos momentos,
foi delegada a incumbência de desenvolver regulamentação específica
da matéria, aplicável às empresas estatais e de economia mista, com
impactos em estados e municípios.

7.6 A IMPRODUTIVIDADE DA TENTATIVA DE


LEGISLAR SOBRE A “CONCEITUAÇÃO” DA ATIVIDADE
PASSÍVEL DE TERCEIRIZAÇÃO

Por toda a análise desenvolvida neste capítulo, percebe-se que


as tentativas de produzir definições universalmente aplicáveis de
atividade-fim, atividade-meio, atividade estratégica ou função es-
sencial do Estado não têm respondido ao problema colocado e
acabam por acrescentar novas limitações para a terceirização na
administração pública — sejam essas tentativas oriundas do meio
| 250 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

acadêmico, de juristas doutrinadores ou de instituições de quaisquer


dos três poderes do próprio Estado.
A abordagem contingencial é um dos conceitos mais aceitos na
administração contemporânea, mas ao mesmo tempo um dos que
conta com menos experimentação, tanto científica, quanto em
termos de ferramentas concretas de aplicação na prática.
Ainda assim, o que se produziu sobre o tema é suficiente para o
entendimento da importância da consideração de inúmeros aspectos
do contexto, antes negligenciados pelos administradores. Empre-
sas de produtos de consumo de base tecnológica, como celulares
e dispositivos de reprodução de música e vídeo (hoje, até mesmo
convergindo entre si e com TV, rádio, computadores, GPS e outros),
têm contextos muito diferentes de concessionárias de rodovias, de
mineradoras ou empresas de energia; e as condições do sucesso para
essas mesmas empresas mudam completamente se elas se mudarem
da Finlândia para a Austrália ou da Nigéria para o Brasil, ou ainda
se mudarem de região dentro do próprio país.
Uma implicação segura dessas constatações é que o planejamen-
to, tanto quanto possível, deve ser adaptativo e mais permeável a
reformulações. O ambiente econômico e tecnológico muda, sendo
fundamental respeitar as contingências estratégicas e novos pre-
ceitos, por exemplo, na gestão de pessoas. Uma empresa como a
Petrobras está extremamente exposta a essas variações. Mudanças
na matriz energética do País, nas regras ambientais, no estatuto das
concessões e direitos de monopólio, na estrutura do seu capital,
nas relações com investidores, entre muitas outras, devem merecer
rápida resposta em suas estratégias empresariais e, consequente-
mente, nos perfis de competências de boa parte do seu pessoal. É
preciso manter a flexibilidade e a agilidade nas respostas. Por isso
TERCEIRIZAÇÃO E GESTÃO DE PESSOAS NO SETOR PÚBLICO | 251 |

mesmo, é importante estimular o hibridismo de modelos (por que


generalizar alguns conceitos, hegemonizando-os, e eliminar outras
possibilidades?), que atendam a todas ou a várias circunstâncias.
Paralelamente, o gigantismo com retorno duvidoso (como o gerado
pela generalização de um modelo de mão de obra estável) expõe o
sistema público a deseconomias de escala e engessamento de ações
que dificultam alterar prioridades e ênfases estratégicas.
Assim, o que hoje é essencial, amanhã pode ser acessório; o que
hoje é atividade-fim, amanhã pode tornar-se meio; o que hoje pa-
rece perene, amanhã torna-se transitório; o que hoje é volumoso,
amanhã tende a ser escasso. Daí a grande dificuldade, improdu-
tividade mesmo, da tentativa de generalizar e, pior, generalizar e
posteriormente perenizar, conceitos rígidos sobre o que pode ou
deve ser terceirizável.

7.7 BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil


(1988). Disponível em: <http://www.senado.gov.br/legislacao/
const/con1988/CON1988_13.07.2010/CON1988.pdf>.
IMHOFF, M. M.; MORTATI, A. P. Terceirização, vantagens
e desvantagens para as empresas. Revista Eletrônica de Contabi-
lidade do Curso de Ciências Contábeis UFSM, Rio Grande do
Sul, v. 2, n. 3, p. 82-94, jul. 2005.
OCDE. Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econô-
micos. Avaliação da Gestão de Recursos Humanos no Governo:
Brasil 2010 – Governo Federal. Traduzido pelo Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão, Brasil. 2010.
| 252 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

OLIVEIRA, L. J.; BRIZOLA, S. E. Garantias Constitucionais


no Processo de Terceirização no Brasil. Disponível em: http://
www.google.com.br/#sclient=psy&hl=pt-BR&source=hp&q=
atividade-fim+atividade-meio+oliveira+brizola&aq=f&aqi=&aql=
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&biw=1024&bih=585 Acesso em: 1 ago. 2011.
SALVINO, M. R.; FERREIRA, S. R. Terceirização de serviços
na administração pública e responsabilidade trabalhista. Revista
Novatio Iuris, ano II, n. 3, p. 119-146, jul. 2009.
MARQUES NETO, F.A. A contratação de empresas para suporte
da função reguladora e a “indelegabilidade do poder de polícia”.
Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo: Malheiros,
n. 32, p. 74, 2000.
BRASIL. Tribunal de Contas da União (TCU). Rela-
tório de Auditoria. TC 023.627/2007-5. Disponível em:
http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/ Arquivos/
dest/download/110214_acordao_tcu.pdf.
CAPÍTULO 8

Mensuração de desempenho no setor


público: os termos do debate1

REGINA SILVIA PACHECO


Doutora em Desenvolvimento Urbano e Meio
Ambiente pela Université de Paris XII. Professora na
EASP-FGV e coordenadora do mestrado profissional
em gestão e políticas públicas da mesma instituição.
CAPÍTULO 8
2

1 Versão revista de trabalho apresentado no II Congresso CONSAD de Gestão Pública,


Brasilia, 2009 e publicado em Cadernos Gestão Pública e Cidadania, v.14, n. 55, jul./dez. 2009.
MENSURAÇÃO DE DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 255 |

8.1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é contribuir para a sistematização do


debate sobre mensuração de desempenho no setor público. O tema
é polêmico e sua implementação nas duas últimas décadas tem sido
acompanhada de inúmeros artigos e estudos.
Para alguns autores, a mensuração de desempenho no setor públi-
co é um dos pilares mais importantes da nova governança em torno
do Estado-rede (GOLDSMITH, EGGERS, 2006; BEHN, 1995) e
tem contribuído para o alcance de múltiplos objetivos, entre eles a
transparência de custos e de resultados, a melhoria da qualidade dos
serviços prestados e a motivação dos funcionários.. Para os críticos,
no entanto, a mensuração do desempenho é transposição indevida
de um instrumento desenvolvido para a gestão empresarial, que gera
graves distorções quando aplicado ao setor público (DUNLEAVY;
HOOD, 1994; HOOD, 2007).
Apesar da polêmica, as experiências de mensuração de desem-
penho e contratualização de resultados têm-se expandido tanto em
outros países como no Brasil; diferentes governos vêm enfrentando
as dificuldades introduzidas por essa nova forma de gestão e procu-
rando aperfeiçoar metas e indicadores.
| 256 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A mensuração de desempenho é central nas mudanças em curso.


É o pilar de sustentação de duas das três inovações responsáveis pela
melhoria das organizações públicas, segundo pesquisa comparada
compreendendo sete países: a contratualização de resultados e o
orçamento por produto aliado à contabilidade gerencial (JANN,
REICHARD, 2002).2
Mensurar resultados é uma ferramenta que vem sendo parte de
um conjunto abrangente de mudanças que incluem a revisão da
macroestrutura do Estado e a criação de “arm’s lenght organizations”
(agências e organizações públicas não estatais), a definição prévia
de resultados a alcançar, a concessão de flexibilidades à organização
que se compromete previamente com resultados, o reconhecimento
do papel do public manager a quem é concedida maior autonomia
e imputada nova responsabilização pelos resultados visados. Tais
mudanças são acompanhadas, portanto, de uma nova distribuição
de responsabilidades ou accountability por resultados.
A montante, tais inovações requerem o recurso ao planejamento
estratégico a fim de que sejam clareados os objetivos e fixados os
resultados visados; a jusante, novas formas de controle são desen-
volvidas, menos baseadas no controle formal de procedimentos e
mais voltadas à comparação de resultados obtidos por organizações
similares, ou simplesmente objetivando maior transparência quanto
ao uso dos recursos públicos por meio do acompanhamento dos
resultados alcançados. Essa é também a base para o desenvolvimen-
to de novas formas de relacionamento entre entidades públicas e
parceiros — públicos, públicos não estatais ou privados.
2 Os países pesquisados, Dinamarca, EUA, Holanda, Nova Zelândia, Reino Unido, Suécia e
Suíça, têm diferentes histórias administrativas e contextos políticos. A terceira inovação identificada pela
pesquisa refere-se a mudanças nas relações de trabalho, diminuindo as diferenças entre os contratos
de trabalho nos setores público e privado e introduzindo flexibilidades na gestão de pessoas.
MENSURAÇÃO DE DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 257 |

8.2 DUAS ORIENTAÇÕES DISTINTAS

Apesar de parte de a literatura remeter à gestão pública por re-


sultados a uma única visão — a que enxerga a gestão privada como
superior e quer introduzir seus métodos no setor público —, há
autores que identificam pelo menos duas correntes distintas como
fontes de inspiração das mudanças em curso.
Kettl (1997) organiza essas duas correntes em torno de dois lemas
distintos: por um lado, make managers manage, reunindo países que
criaram incentivos com o objetivo de influenciar comportamentos;
por outro, let managers manage, expressando a visão de que há inú-
meras barreiras a serem removidas, regras, procedimentos e estruturas
rígidas que impedem o administrador público de administrar. No
primeiro caso, a contratualização de resultados representa uma nova
forma de controle, e vem acompanhada do estabelecimento de san-
ções positivas e negativas; o país que levou mais longe tal perspectiva
é a Nova Zelândia, com a primeira geração de reformadores. No
segundo caso, o acordo de resultados é visto como instrumento de
coordenação, ajuste e aprendizado organizacional; a experimentação,
e não o controle, é a aposta para a melhoria do desempenho. Essa
tem sido a marca das reformas na Austrália e Suécia.
De maneira similar, Jann e Reichard (2002) também fazem
referência a dois grupos de inspiração distinta, ao analisar a con-
tratualização de resultados. Os autores identificam um dos grupos
como os defensores da eficiência (ou minimizadores do custo), o
outro como reformadores em busca da melhoria de desempenho
do setor público (maximizadores dos resultados). O primeiro grupo
recorre a mecanismos de punição e recompensas de acordo com o
desempenho alcançado; o segundo tem como alvo o aprendizado
| 258 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

baseado em relações de confiança como caminho para alcançar


melhores resultados. Os autores identificam a escolha racional e a
teoria da agência como referência do primeiro grupo, ao adotar o
contrato de resultados como um novo instrumento de controle para
enfrentar o problema do comportamento maximizador do autoin-
teresse; na segunda vertente, é destacado o comportamento cívico
dos agentes, que dá sustentação à lógica do aprendizado mútuo.
Trosa (2001) também destaca diferentes perspectivas acerca da
mensuração de resultados e seu uso por diferentes países e governos.
Suas análises são análogas às já citadas. No caso do uso radical da
mensuração e contratualização de resultados como nova forma de
controle, a autora vê o risco de um novo formalismo e rigidez. Após
ter acompanhado a experiência de vários países, Trosa conclui que
os resultados são melhores quando as metas são negociadas (e não
impostas unilateralmente) e quando as flexibilidades são concedidas
tendo metas a alcançar como contrapartida.
As orientações sobre o tema são tão distintas que levaram alguns
autores a defender a existência de uma forma de “mensuração de
desempenho à la nórdicos”.3 Para eles, a perspectiva nórdica afasta-se
da anglo-saxã, já que esta associa desempenho a incentivos finan-
ceiros individuais, enquanto que aquela valoriza o aprendizado:

Given the egalitarian values, many Scandinavians


may well be puzzled by the importance imputed to
individual financial incentives in the Anglo-Ameri-
can culture. Organisational learning […] may better
suit the Nordic approach. Naturally, in the Nordic
3 Uma edição especial da revista Financial Accountability and Management (vol. 22, n. 3,
2006) foi dedicada ao tema, com introdução de Johnsen, Norreklit e Vakkuri (2006), em que explicitam
e defendem a nordic perspective on public sector performance measurement.
MENSURAÇÃO DE DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 259 |

countries too, individuals are assessed and rewarded


for their contribution to organisational effectiveness,
viability and so on, but probably not as extensively,
and certainly not as taken-for granted in such a
manner as seems to prevail in some Anglo-Ame-
rican cultures [...]. (JOHNSEN, NORREKLIT,
VAKKURI, 2006, p. 208)

Distinguir esses dois grupos de inspiração pode ajudar a cla-


rear o debate no Brasil. Aqui, muitos críticos referem-se apenas às
experiências mais difundidas dos países anglo-saxões, que levam
a atribuição de recompensas e penalidades até o nível individual.
Também é interessante que os formuladores da política de gestão
conheçam a experiência dos países nórdicos e possam optar por um
modelo ou outro, conhecendo as implicações de ambos.

8.3 POLÊMICAS E PROBLEMAS FREQUENTES

Ainda que vários autores ressaltem a importância da gestão por


resultados para a melhoria do desempenho do setor público, eles
apontam também polêmicas e problemas frequentes associados a
essa nova forma de gestão. Tais problemas não têm justificado o
abandono do modelo; têm, ao contrário, levado ao seu aprofunda-
mento, buscando corrigir rotas e superar os obstáculos identificados.
Parte dos problemas relacionados à mensuração de desempenho
pode ser atribuída à adoção prematura ou isolada apenas dessa ferra-
menta, desvinculada do conjunto de mudanças que a acompanham
e que constituem elementos de uma ampla reforma da organização
| 260 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

e funcionamento do Estado. Assim, são grandes as chances de in-


sucesso quando a mensuração de desempenho é adotada sem que
as demais inovações na gestão estejam presentes. O grande risco é
que a mensuração se torne um fim em si mesma, desvinculada do
objetivo maior que é a melhoria do serviço público prestado ao
cidadão (BEHN, 1995).
Além desse aspecto — a adoção parcial e isolada da mensuração
de desempenho —, é possível sintetizar as polêmicas em torno da
mensuração de resultados em três grupos: o da discussão em torno
do que mensurar — produtos (outputs) ou impactos (outcomes);
o da adoção de sanções positivas e negativas; e o da vinculação de
parte da remuneração individual ao desempenho.
Em texto anterior, sistematizamos o debate em torno do que
mensurar — outputs vs. outcomes (PACHECO, 2006). A defesa
da mensuração de impactos (outcomes) ou a contribuição efetiva
para a resolução de um problema tem levado alguns analistas,
tanto no Brasil como em outros países, a criticar boa parte
das experiências em curso, já que a maioria delas se inicia pela
mensuração da prestação de determinados serviços previamente
especificados (outputs).
Mas há autores que consideram tal debate inócuo. Para eles,
ambas as opções apresentam vantagens e inconvenientes. Na mensu-
ração de impactos é difícil estabelecer relações de causalidade entre as
ações empreendidas e o resultado observado — é difícil isolar, entre
as inúmeras variáveis que afetam a situação, aquelas diretamente
ligadas aos serviços prestados por uma determinada organização
pública. Por vezes as ações requerem longo tempo de maturação
para que os impactos possam ser observáveis. Os impactos desejados
podem depender de mudanças substanciais no comportamento dos
MENSURAÇÃO DE DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 261 |

cidadãos. Por outro lado, mensurar produtos pode levar a um foco


excessivo em ações voltadas para o curto prazo.
Para Trosa (2001), ambas as formas de contratação são impor-
tantes e respondem a duas perguntas distintas. A mensuração de
outputs permite conhecer o que é efetivamente produzido com os
recursos públicos; já a preocupação com outcomes ou impactos per-
mite indagar sobre a eficácia e utilidade daquilo que é produzido.
Segundo a autora, a resposta a esse debate deve ser pragmática:
governos devem começar pelos serviços prestados, cuja mensuração
é mais fácil, e ir evoluindo em direção aos impactos, por meio da
construção da cadeia lógica que liga as ações aos objetivos visados,
relacionando impactos, resultados intermediários e ações.
Já Behn (2004) defende enfaticamente a mensuração de outputs,
entre outras razões porque é um instrumento poderoso a ser utili-
zado pelo dirigente de uma organização pública para motivar seus
funcionários. Para esse autor, o objetivo do administrador é motivar,
enquanto o do economista é controlar. Outra vantagem da opção
pela mensuração de produtos é que desse modo é possível definir
metas claras a serem buscadas. Behn ressalta que cabe à atividade de
avaliação do programa estabelecer os elos entre os impactos visados
e os produtos ou serviços a serem prestados, de forma que os nexos
lógicos entre estes e aqueles sejam sempre explicitados.
Assim, não há evidências que comprovem a superioridade da
mensuração de impactos sobre a mensuração de produtos. As ten-
tativas de opor as duas formas de medidas parecem não fazer sen-
tido à luz das lições aprendidas da experiência internacional. Países
que contrataram extensivamente resultados via produtos (outputs),
como Nova Zelândia, trataram de corrigir excessos introduzindo
a mensuração de impactos; países que privilegiaram a mensuração
| 262 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

de outcomes, como Austrália, deixaram espaço amplo demais às or-


ganizações sem cobrar delas compromisso com ações diretamente
mensuráveis.
Também há variações de um setor a outro. Na saúde, desenvol-
veram-se os indicadores de produto e de resultados intermediários,
e as cadeias lógicas entre produtos e impactos estão mais claramente
estabelecidas e aceitas. Na educação, tem-se multiplicado as políticas
onde a mensuração de impactos é adotada via avaliação externa do
rendimento dos alunos.
No Brasil, o setor de saúde parece muito mais preparado para
conviver com a mensuração do que a área da educação, talvez porque
a própria lógica de remuneração do Sistema único de Saúde (SUS),
via procedimentos, tenha aberto caminhos para a mensuração de
serviços prestados. Segundo depoimento de um gestor municipal, o
foco em procedimentos foi tão disseminado pelo SUS que hoje ele
impede avanços para uma visão de “linha de cuidados” ou para ati-
vidades não finalísticas, como supervisão médica.4 Na Grã-Bretanha,
a política de mensuração de resultados em saúde se aprofunda, com
a adoção recente da mensuração da satisfação do paciente sobre a
qualidade da atenção médica recebida, com impactos para a remu-
neração do médico.
Já na área da educação, no Brasil, a adoção de avaliação externa
da aprendizagem dos alunos (impacto) tem provocado reação aguda
dos sindicatos de professores, com exceção talvez de Minas Gerais.5
A principal alegação de lideranças sindicais e de especialistas em pe-
dagogia diz respeito à autonomia do professor, que seria desrespeitada
4 Palestra da secretária-adjunta da saúde de Curitiba, GV Saúde, abril de 2009.
5 A maior aceitação, pelos professores mineiros, pode ter como parte da explicação o fato
de se tratar de uma política abrangente de governo para todos os setores; em outros
casos, trata-se de uma política setorial isolada.
MENSURAÇÃO DE DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 263 |

ao impor a ele metas de aprendizagem a serem alcançadas por seus


alunos. Também se alega impossibilidade de atribuição de causalidade
entre a atuação do professor e o rendimento do aluno, que estaria
condicionado por múltiplos fatores extraclasse, tornando impossível
medir o impacto de sua ação — em sintonia direta com o que foi
relatado antes sobre as dificuldades de mensuração de outcomes.
Médicos e professores da rede pública fazem parte do segmento
denominado por Lipsky (1980) como street level bureaucrats, ou
funcionários de ponta, especializados, para quem a deontologia de
sua profissão está acima de seu vínculo com o Estado e que resistem
a serem submetidos a controles externos. A adoção de medidas de
desempenho provoca sentimento de perda de autonomia, que ten-
de a mobilizar reação contrária à política. No entanto, temos visto
maiores avanços na saúde do que na educação.
Outra explicação para essa diferença, além da já assinalada, pode
estar associada ao status do gerenciamento nos dois setores: enquanto
o diretor de hospital é já um papel aceito e destacado entre pro-
fissionais da área da saúde, o diretor de escola pública é um entre
pares, não sendo visto como autoridade legítima responsável pelos
resultados da escola que dirige e, portanto, sem poder de direção
sobre os professores que ali atuam. Outro motivo pode estar vin-
culado à introdução do novo formato organizacional na saúde — a
mensuração de desempenho difunde-se no momento em que são
criados os hospitais no novo formato de organização social de saú-
de, enquanto que as escolas públicas permanecem como parte da
administração direta, em que ainda impera a ausência praticamente
total de autonomia de gestão.
Na área da cultura, a mensuração de resultados está apenas come-
çando, também ligada à adoção do formato “organização social”. No
| 264 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

estado de São Paulo, adotaram-se indicadores de produção bastante


simplificados e homogêneos para instituições de natureza distinta.
Assim, o desempenho de museus passou a ser medido em termos
de número de dias abertos ao público, número de exposições realizadas,
número de visitantes, sem distinção entre um museu de vocação para
grande público e outro especializado. Um equipamento cultural
dedicado à interação entre arte e tecnologia não conseguiu fazer
valer o número de acessos ao seu site como indicador de presença
junto ao público — insistindo a Secretaria Estadual da Cultura em
contar apenas as visitas físicas ao local.
O debate sobre o que e como medir não chegou à imprensa, a não
ser por meio do conflito entre lideranças sindicais dos professores e
secretaria da educação. Assim, a polêmica fica restrita aos especia-
listas e afetados pela mensuração, sem que a opinião pública ou os
beneficiários do serviço público possam se envolver e pressionar por
avanços. Em alguns casos, quando usuários tomaram conhecimento
do sistema de metas, passaram a pressionar por punições em caso de
não alcance das mesmas — o que nem sempre é o fim visado pelo
gestor da política de mensuração de resultados.
O ex-secretário de Modernização Administrativa de Santo
André relatou as dificuldades que enfrentou junto aos represen-
tantes dos usuários ao adotar a mensuração de resultados nas
unidades básicas de saúde — queriam punição aos funcionários a
cada vez que uma meta não era cumprida; no entanto, o objetivo
da política municipal adotada era o de promover o aprendizado
sobre como melhorar o serviço prestado, e não o de penalizar
funcionários em caso de dificuldades com o cumprimento das
metas.6

6 Marcio Bellisomi, palestra, EAESP-FGV.


MENSURAÇÃO DE DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 265 |

Na seção anterior, apresentamos as duas visões sobre o tema das


recompensas e punições. Tais visões se desdobram também na questão
da remuneração variável. Assim, os defensores da “perspectiva nór-
dica” consideram que os problemas da mensuração de desempenho
aparecem quando se vincula resultados a recompensas financeiras:

In fact, much of the perverse learning from perfor-


mance measurement may be due to using performan-
ce measurement in close conjunction with organisa-
tional objectives and financial rewards. Performance
measurement has a number of functions, including
enhancing transparency, improving organisational
learning and appraising performance. The more per-
formance measurement is used compulsively for more
of these functions, the more the performance measu-
rement will be experienced as unfair. (JOHNSEN,
NORREKLIT, VAKKURI, 2006, p. 208)

A associação entre mensuração de desempenho e recompensas


financeiras é menos difundida do que se crê. Segundo pesquisa
realizada pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE) junto a seus países-membros,7 apenas 18%
ligam orçamento a resultados (Nova Zelândia, Holanda, por exem-
plo), poucos têm mecanismos formais de premiação ou punição
segundo resultados; 41% não têm; só 11% dos países sempre
vinculam salário ao alcance de metas e 26% fazem tal vinculação
esporadicamente.8

7 Dos 30 países-membros da OCDE, 27 responderam à pesquisa.


8 OECD/World Bank Budget Practices and Procedures Database, 2003.
| 266 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Outro estudo ressalta que o sucesso de sistemas de remuneração


variável segundo desempenho depende de fatores como transparência
na definição de metas, nas regras segundo as quais os funcionários
serão avaliados e nas relações entre medidas de desempenho e re-
muneração (PERRY et al., 2009, p.14).
Portanto, mensurar desempenho não implica sempre adotar re-
muneração variável ou recompensas financeiras segundo o desempe-
nho. O tema é polêmico e imerso em controvérsias. Há um número
significativo de países que adotam a mensuração de desempenho e
divulgam os resultados obtidos, globalmente pelo governo ou se-
torialmente; apenas parte desses países têm atribuído recompensas
financeiras a funcionários e entre os que o fazem, muitos adotam
valores de impacto moderado sobre a remuneração, a fim de não
provocar desvios de comportamento importantes.
Em outros casos, aprofundam-se as consequências da avaliação
de desempenho. O presidente Obama, em seu primeiro pronuncia-
mento sobre a política educacional nos EUA, afirmou que o mau
desempenho de alunos em avaliações externas de aprendizagem
poderá levar à demissão de professores — dando seguimento e
aprofundando a política de seu antecessor denominada “No Child
Left Behind” (NCLB), que introduziu metas para o aprendizado
de estudantes em escolas públicas em todo o país.
No Brasil, um dos problemas relacionados à remuneração variável
por desempenho tem sido sua adoção isolada de outras medidas re-
formadoras. Na administração federal, essa forma de remuneração foi
generalizada no segundo governo FHC, sem que tenham avançado as
outras medidas propostas de contratualização de resultados; no governo
Lula, os valores variáveis foram aumentados significativamente, passando
a representar mais de 50% da remuneração total em muitos casos, para
MENSURAÇÃO DE DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 267 |

em seguida reverter tudo em aumento salarial, incorporando 100% da


parcela variável aos salários (transformados em “subsídio”).

8.4 “DOENÇAS” DA MENSURAÇÃO DE


RESULTADOS NO SETOR PÚBLICO

Além das polêmicas frequentes em torno da mensuração de re-


sultados, a literatura aponta problemas inerentes à forma com que
foi adotada no setor público. Assim,

a plethora of unintended, negative consequences are


documented. Teachers are teaching the test; ambu-
lances are waiting outside of the hospital to improve
response times; waiting lists are reduced by creating
waiting lists for waiting lists; follow up visits are
cancelled; delayed trains are wrongly registered as
broken and ‘creative accounting’ is abound... (Van
DOOREN, 2008)

Bouckaert e Balk (1991) sistematizaram um conjunto de pro-


blemas relativos à medida de desempenho em organizações pú-
blicas, apresentando-os como “doenças” e suas prováveis “curas”.
Os autores organizam as doenças com relação a três diferentes
aspectos: 1) alegações para não medir o desempenho; 2) proble-
mas com a percepção das medidas; 3) problemas relacionados
às próprias medidas. Ao todo, os autores apontam doze tipos de
“doenças” relacionadas à mensuração de desempenho no setor
público.
| 268 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

As justificativas para não mensurar estão relacionadas com a


“doença do dr. Pangloss”,9 ou a insistência em não medir algo por
acreditar que aquilo não existe; “doença da impossibilidade”, que
alega ser impossível medir; “hipocondria”, que considera que no
setor público não se deve vangloriar de algo que tenha resultados
positivos.
As doenças relativas à percepção dos números e volumes foram
denominadas “doença do côncavo/convexo”, que leva à percepção
aumentada ou diminuída do que está sendo medido; “hipertrofia/
atrofia”, na qual o ato de medir estimula a produção desnecessária
de mais output ou sua redução indesejada; e “doença de Mandelbrot”,
que ignora o fato de que o resultado da medida depende de como
se mede.
Quanto às medidas propriamente, Bouckaert e Balk elencam as
seguintes “doenças”: “poluição”, ou o fato de misturar diferentes
elementos daquilo que está sendo medido; “inflação”, ou o uso
desnecessário de grande número de medidas; “doença dos ilumina-
dos ou top-down”, pela qual os dirigentes decidem sozinhos o que
e como medir e impõem o conjunto à organização sem suficiente
comunicação, levando à desmotivação dos funcionários; “doença
do curto-prazo”, que estimula comportamentos voltados apenas
para os resultados imediatos; “miragem”, quando se mede algo
diferente do que se considera estar medindo; e a “doença de desvio
de comportamento” (shifting disease), causada por medidas que
não contemplam a finalidade da organização e acabam provocando
comportamento adverso.
Parte desses problemas é também ressaltada por outros autores.
Goldsmith e Eggers (2006) referem-se à competição entre diferentes
9 Em referência à obra Candido, de Voltaire.
MENSURAÇÃO DE DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 269 |

provedores10 pelos casos mais fáceis — podendo ser entendidos em


sentido amplo como tipo de produto ou serviço fornecido, região
a atender ou tipo de “clientela”, dependendo do campo de atuação
em análise, visando melhorar seu desempenho medido. Ou ainda
a prejuízos à qualidade do serviço quando as medidas enfatizam
economias, o que pode levar a cortes de custo que prejudicam a
qualidade. Os autores também fazem referência à polêmica acerca
do que medir — insumos, produtos ou impactos — e apontam
problemas decorrentes da ausência de dados confiáveis sobre a
situação inicial em que se encontrava o “fenômeno” a ser medido
— quando subavaliados, podem levar a metas frouxas, muito fáceis
de atingir. Outros autores também se referem ao cream skimming,
a atitude de prestar os serviços mais fáceis ou atender os usuários
mais simples, de modo a obter tempos de atendimento menores
ou maior número de casos atendidos, enquanto Jann e Reichard
(2001) relatam problemas referentes a metas pouco ambiciosas e
falhas no seu monitoramento, entre outras dificuldades similares.

8.5 LIÇÕES APRENDIDAS

Em boa parte dos problemas identificados na literatura, mesclam-


-se as dificuldades de mensuração de resultados no setor público
com a introdução de formas de contratualização de resultados,
pilar das reformas atuais. Ainda assim, muitos autores consideram
ambas como avanços irreversíveis, que continuarão na agenda da
modernização do Estado nos próximos anos (LAPSLEY, 2008).
10 Termo amplamente utilizado pelos autores ao longo da obra, significando qualquer produtor
e/ou prestador de serviços de interesse do governo ou da sociedade, sejam eles instituições,
unidades ou departamentos públicos ou empresas privadas/não governamentais. (N.R.)
| 270 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Como buscamos apontar, as dificuldades relativas à mensuração


de desempenho no setor público são substantivas, tanto no Brasil
como nas experiências internacionais em curso. Não se trata de
atitudes intencionais voltadas à manipulação de dados ou falsea-
mento dos resultados; são antes dificuldades ligadas à natureza das
atividades desempenhadas pelo Estado e ao fato de estarmos diante
de um grande empreendimento reformador, do qual a mensuração
de resultados é apenas um dos instrumentos — isolá-la do conjunto
das reformas correntes é uma distorção que pode comprometer seus
resultados.
Os comportamentos adversos não derivam, como vimos, de
intenções individuais; mas são explicados pela assimetria de in-
formações ou por outros construtos da teoria dos jogos, podendo
estar presentes em diferentes contextos institucionais ou tradições
político-administrativas — não são, portanto, comparáveis a práticas
clientelistas ou desvios similares de conduta. Na prática, no Brasil,
nenhuma denúncia de grande vulto foi associada à mensuração
de desempenho ou aos novos formatos organizacionais que a vêm
adotando (organizações sociais).
Apesar das dificuldades, o sentido das experiências em andamento
é o de aprofundar as reformas na direção da gestão voltada para
resultados. Isso implica enfrentar as dificuldades de mensuração
de desempenho, ultrapassando as justificativas simplistas para não
medi-lo ou as críticas superficiais que veem nessas iniciativas a
“privatização do Estado”, simplesmente porque emprestam técnicas
antes aplicadas pelas empresas privadas. Adaptações são requeridas,
assim como esforços continuados de aperfeiçoamento das medidas
e dos medidores, já que há evidências suficientes que comprovam a
contribuição da mensuração de desempenho para a efetiva melhoria
MENSURAÇÃO DE DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 271 |

de resultados alcançados pelas organizações públicas, principalmente


aquelas que prestam serviços, onde é mais fácil medir atividades e
produtos do que nas secretarias formuladoras de políticas públicas.
As contribuições da mensuração de resultados para a transpa-
rência são notáveis. Por mais problemas que tenham os indicado-
res, é melhor contar com eles do que não tê-los. A emenda à lei
orgânica do município de São Paulo, proposta por iniciativa de
um conjunto de entidades da sociedade civil, obriga os prefeitos
da cidade de São Paulo eleitos a partir de 2008 a traduzirem suas
promessas de campanha em um plano com metas e indicadores de
desempenho. O conjunto de metas que passa, por obrigação legal,
a ser apresentado à cidade constitui uma base para o acompanha-
mento das ações de governo pela sociedade É possível que haja
várias das doenças mencionadas — inflação, poluição, top-down;
não há metas de impacto; algumas dessas metas são excessivamente
genéricas, outras pontuais demais. Ainda assim, melhor tê-las e
debatê-las em audiências públicas em todas as regiões da cidade
do que não tê-las.
O mesmo pode ser dito dos avanços recentes da Previdência
Social. Ter indicadores e metas sobre o tempo de concessão de
benefícios é requisito indispensável para chegar a conceder aposen-
tadorias em trinta minutos. Pode haver cream skimming ou perda de
qualidade, caso não haja outros parâmetros de controle associados
ao tempo de concessão do benefício, mas uma cesta de indicadores
combinados pode contribuir para evitar a shifting disease.
Outras experiências merecem atenção por serem abrangentes e
constituírem elemento central de uma política pública voltada para
a gestão, como é o caso das prefeituras de Curitiba e Porto Alegre
e do governo de Minas Gerais. Tais experiências são laboratórios
| 272 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

a serem acompanhados, de onde sairão várias lições sobre possibi-


lidades de melhorar o desempenho do setor público, trabalhando
e retrabalhando medidas de desempenho, tanto de outputs como
de outcomes, como um dos elementos de um conjunto de ações de
modernização do Estado.

8.6 REFERÊNCIAS

BEHN, R. D. The big questions of public management. Public


Administration Review, vol. 5, n. 4, p. 313-324, 1995.
______. Why public managers must measure outputs. Public
Management Report, vol.1, n. 10, June 2004.
DUNLEAVY, P.; HOOD, C. From old public administration
to new public management. Public Money and Management,
v.14, n. 3, p. 9-16, 1994.
GOLDSMITH, S.; EGGERS, W. Governar em rede. O novo
formato do setor público. Brasília: ENAP, 2006.
HOOD, C. Public service management by numbers: why does it
vary? Where has it come from? What are the gaps and the puzzles?
Public Money and Management, 27: p. 95-102, 2007.
JANN, W.; REICHARD, C. Melhores práticas na modernização
do Estado. Revista do Serviço Público, v. 53, n. 3, p. 31-50, 2002.
JOHNSEN, A.; NØRREKLIT, H.; VAKKURI, J. Introducing a
nordic perspective on public sector performance measurement. Finan-
cial Accountability and Management, v. 22, n. 3, p. 207--12, 2006.
KETTL, D. F. The global revolution in public management:
driving themes, missing links. Journal of Policy Analysis and
Management, v. 16, n. 3, p. 446-62, 1997.
MENSURAÇÃO DE DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 273 |

LAPSLEY, I. The NPM agenda: back to the future. Financial


Accountability and Management, v. 24, n. 1, p. 77-96, February
2008.
LIPSKY, M. Street-level bureaucracy: dilemmas of the indivi-
dual in public services. New York: Russell Sage Foundation, 1980.
PACHECO, R. S. Brasil: avanços da contratualização de
resultados no setor público. Texto apresentado ao XI Congreso
Internacional del CLAD, Ciudad de Guatemala, 2006.
PERRY, J. L. et al. Back to the future? Performance-related pay,
empirical research, and the perils of persistence. Public Adminis-
tration Review, 69(1):1-31, January-February, (2009).
TROSA, S. Gestão pública por resultados: quando o Estado se
compromete. Rio de Janeiro: Revan; Brasília: ENAP, 2001.
VAN DOOREN, W. Performance indicators: a wolf in sheep’s
clothing?, mimeo, 2008.
CAPÍTULO 9

Remuneração variável por


desempenho no setor público:
investigação das dificuldades e
implicações para o Estado brasileiro1

LUÍS OTÁVIO MILAGRES DE ASSIS


Servidor concursado no cargo de Especialista em
Políticas Públicas e Gestão Governamental do Governo
do Estado de Minas Gerais.

MÁRIO TEIXEIRA REIS NETO


Doutor em Administração pela Universidade
Federal de Minas Gerais, professor do Programa
de Mestrado e Doutorado em Administração da
Universidade FUMEC.
2

1 Versão revisada de artigo publicado anteriormente no Encontro da International


Research Society for Public Management (IRSPM – Latin America), 2011; na Revista Eletrônica de
Gestão Organizacional (GESTÃO.Org – Vol. 9, No. 3 p. 585 - 614, set. / dez. 2011) e apresentado
no V Congresso CONSAD de Gestão Pública (Conselho Nacional de Secretários de Estado da
Administração; Brasília/DF – 4, 5 e 6 de junho de 2012).
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 277 |

9.1 INTRODUÇÃO

Dois momentos marcam a implementação de sistemas de remu-


neração variável (performance-related pay ou PRP) no setor público
brasileiro: a experiência do governo federal pós-FHC e a recente
expansão dessas iniciativas nas administrações estaduais brasileiras.
No final da década de 1990, o governo federal generalizou a
implementação de remuneração variável na forma de gratificações
por desempenho acrescidas ao salário mensal na administração pú-
blica federal (PACHECO, 2009). No período 1995-2002, foram
criadas várias gratificações de desempenho. Além de possibilitar a
concessão de aumentos diferenciados, a utilização desse mecanis-
mo permitiu desvincular a remuneração dos servidores ativos da
dos inativos e, assim, conceder aumentos maiores aos primeiros.
No entanto, ainda no governo FHC, algumas gratificações foram
estendidas aos inativos, por pressão legal (PACHECO, 2010). No
segundo governo FHC, a remuneração variável por desempenho
foi generalizada, sem o avanço de outras medidas que subsidiassem
o sistema, como a contratualização de resultados.
No governo Lula, os valores variáveis foram aumentados sig-
nificativamente, passando a representar, em muitos casos, entre
| 278 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

22% e 94% das tabelas salariais. Em seguida, pressões corporativas


conquistaram a incorporação integral da parcela variável ao salário
fixo. Ainda segundo Pacheco, o governo Lula adotou como política
a extensão de todas as gratificações aos inativos. No Brasil, a maior
parte das gratificações “variáveis” tende a ser, na verdade, prenúncio
de simples aumento salarial. Boa parte dessas gratificações acabou,
simplesmente, incorporada ao salário, evidenciando um prognós-
tico sombrio para experiências de remuneração variável no setor
público brasileiro.
Mais recentemente, especialmente após 2008, o País parece viver
uma nova onda de criação de incentivos. Programas de remuneração
variável, geralmente em formato de bônus periódicos semestrais ou
anuais, foram implantados em diversos governos estaduais. Minas
Gerais é o estado em que a iniciativa é mais abrangente, tendo
sido expandida em 2008 para mais de 90% dos funcionários do
executivo estadual. Segundo Reis Neto e Assis (2010), de 2004 a
2009 foram distribuídos R$ 905 milhões a título de premiação por
produtividade.
São Paulo implantou a PRP, em 2009, nas áreas de educação,
fazenda e planejamento e distribuiu mais de R$ 600 milhões em
premiação.2 Pernambuco distribuiu aos servidores da educação, em
2009, um total de R$ 29 milhões em função do cumprimento de
metas definidas para cada escola.3 No nível federal, foi aprovada a
Lei no 12.155, de 23/12/2009, que atribui aos servidores do Depar-
tamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) bônus
de R$ 3 mil a R$ 28 mil (dependendo do cargo) em função do
cumprimento de metas do Programa de Aceleração do Crescimento
2 Segundo dados publicados no Relatório de Gestão 2007-2010,
Secretaria de Gestão Pública–SP.
3 Diário de Pernambuco, 29/05/2009.
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 279 |

(PAC). No Rio de Janeiro, em 2010, policiais civis e militares foram


premiados em função de metas de redução da criminalidade, sendo
que R$ 6 milhões foram distribuídos no estado até o momento.4
Parece haver um otimismo generalizado dos gestores públicos
quanto ao potencial dessas iniciativas, mas esse otimismo não en-
contra fundamento na teoria. A literatura mostra que sistemas de
remuneração variável no setor público fracassam ou têm sucesso
muito limitado (Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico ‒ OCDE, 2005a; PERRY, ENGBERGS, JUN, 2009;
BOWMAN, 2010; WEIBEL, ROST, OSTERLOH, 2010). Em
algumas situações, o modelo gera resultados positivos, mas, em
diversos outros casos, ele fracassa em seu objetivo de motivar as
pessoas e pode, inclusive, gerar efeitos perversos.
A experiência no governo federal brasileiro já traz um sinal adi-
cional de alerta. O uso da PRP como instrumento de legitimação
de simples aumentos salariais ilustra, de forma contundente, o
fato de que características culturais brasileiras parecem influenciar
negativamente a implantação de sistemas de avaliação e incentivo,
conforme argumento de Barbosa (1996). Diante da recente expansão
da remuneração variável no Brasil, praticamente ainda não existem
trabalhos acadêmicos que avaliam a implantação desses modelos.5

4 Informações do site oficial da Secretaria de Segurança Pública, acesso em 19/06/2010.


5 Um estudo recente mostrou resultados razoavelmente positivos em Minas Gerais.
Um survey que foi realizado com 339 servidores da Secretaria da Saúde apontou que
56% dos servidores acreditam que a qualidade do seu trabalho melhorou com o incentivo dado
pela remuneração variável, enquanto 19% discordam. Foi estudada, entretanto, apenas uma
organização estadual entre as 60 que implementaram o modelo. Para detalhes, ver Albergaria,
Ariane, R. (2010) Remuneração Variável no Setor Público: Estudo de Caso sobre a Percepção
dos Servidores da Secretaria de Saúde de Minas Gerais sobre o Prêmio por Produtividade e
suas Relações com o Desempenho Funcional e a Adaptação Social. Dissertação (Mestrado em
Administração). Belo Horizonte: FACE-UFMG. Paralelamente, Reis Neto e Assis (2010) levantam
indícios que de os resultados em outros setores do governo mineiro podem não ser tão positivos.
| 280 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Nesse cenário, justifica-se entender melhor as razões pelas quais


os sistemas de remuneração variável estão apresentando, em outros
países, resultados aquém do desejado. O estudo também se justifica
na medida em que a recente implantação de modelos dessa natu-
reza na administração pública nacional não deveria repetir erros já
observados na experiência internacional. Assim sendo, o presente
artigo objetiva sistematizar o debate atual sobre o tema, à luz da
literatura sobre remuneração variável, da experiência internacional
e do conhecimento disponível a respeito do contexto brasileiro.
Como estratégia metodológica, utilizou-se a revisão da literatura
com foco em dois objetivos: a) analisar estudos que sistematizam
os principais argumentos teóricos que explicam fracasso ou sucesso
da implantação de modelos de incentivo no setor público — nesse
ponto, destacam-se os trabalhos de Burgess e Ratto (2003) e Weibel
et al. (2010) e b) analisar resultados de pesquisas empíricas que bus-
caram investigar casos concretos de implementação de modelos de
PRP — a este respeito, destacam-se os estudos de Marsden (2004),
OCDE (2005) e Perry et al. (2009).
Pode-se dizer que a questão central que norteou o trabalho foi:
quais são as práticas que terão mais chances de conduzir um sistema
de remuneração variável a gerar bons resultados no serviço público
brasileiro?

9.2 A INEFICÁCIA DOS SISTEMAS DE


REMUNERAÇÃO VARIÁVEL NO SETOR PÚBLICO

O aspecto mais debatido na produção científica mundial a res-


peito de programas de remuneração variável no setor público tem
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 281 |

sido sua efetividade. Parece óbvio que implantar um sistema de


remuneração variável vinculado ao desempenho seja positivo, mo-
derno e eficaz. Entretanto, pesquisas realizadas nos países da OCDE
apontam que a remuneração variável no setor público fracassa ou
tem sucesso muito limitado (OCDE, 2005a; PERRY et al., 2009;
BOWMAN, 2010; WEIBEL et al., 2010).
A OCDE (2005b) investigou modelagens bem e mal sucedidas
de remuneração variável na área pública de 14 países desenvolvidos.
Sua conclusão foi que a PRP motiva apenas uma pequena parcela
dos funcionários, enquanto a grande maioria não a vê como um
incentivo para um melhor desempenho. Extensas pesquisas empíricas
conduzidas no Reino Unido e nos Estados Unidos mostraram que,
apesar do apoio à ideia de vincular a remuneração ao desempenho,
apenas um pequeno percentual dos empregados acredita que ela os
induz a produzir acima dos requisitos do trabalho. Em muitos casos,
ocorreu um desestímulo à cooperação. Muitos servidores públicos,
particularmente aqueles em funções não gerenciais, consideram o
valor do salário-base e sua comparação com os valores de mercado
muito mais importantes do que os acréscimos salariais vinculados
ao desempenho.
A natureza e o conteúdo do trabalho e as perspectivas de de-
senvolvimento na carreira são considerados, por esses servidores,
como as verdadeiras fontes de incentivo. A remuneração variável
geralmente não motiva a maioria dos funcionários, independente
de sua configuração (OCDE, 2005b).
Perry, Engbergs e Jun (2009) analisaram as conclusões de 57
estudos publicados entre 1977 e 2008 sobre a implantação de sis-
temas de remuneração variável no setor público em diversos países.
Entre as constatações, foi destacado que a remuneração variável
| 282 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

por desempenho no setor público falha em sua promessa, pois não


se apresenta como um incentivo para a maioria dos colaboradores
(PERRY et al., 2009, p. 43). Na percepção dos funcionários, a
PRP não promoveu uma motivação adicional. Complementando,
os autores analisaram, desses estudos, os 14 trabalhos julgados de
melhor qualidade e encontraram resultados contraditórios. Quatro
são claramente negativos, outros cinco não permitem tirar qualquer
conclusão e cinco são favoráveis à remuneração variável. Estudos
mais recentes são ainda mais pessimistas. Bowman (2010) revisa os
resultados de mais de vinte anos de uso da remuneração variável no
governo federal americano. O autor argumenta que o desempenho
de programas de remuneração variável é, no mínimo, decepcionante
em relação às expectativas. O resultado da implantação é, muitas
vezes, contraprodutivo. Dois livros recentemente publicados sobre
a reforma do serviço civil — Bilmes e Gould (2009)6 e Donahue
(2008)7 — rejeitam a ideia de remuneração variável nos governos.
Segundo Bowman (2010), muitos estudos sugerem que os indiví-
duos não querem acreditar que trabalham apenas por dinheiro. Isso
vale especialmente para os servidores públicos. Eles podem até se
sentir ofendidos quando são tratados como se pudessem ser mani-
pulados por incentivos monetários. Um argumento semelhante ao
de Bowman (2010) é defendido por Weibel, Rost e Osterloh (2010).
Para estes, a remuneração variável, em geral, destrói a motivação
intrínseca,8 levando, assim, a uma queda no desempenho. Weibel
6 Bilmes, L., E Gould, W. (2009). The people factor: Strengthening America by investing in
public service. Washington, DC: Brookings Institution Press, como citado em Bowman (2010).
7 Donahue, J. (2008). The warping of government work. Cambridge, MA: Harvard University
Press, como citado em Bowman (2010).
8 Atividades intrinsecamente motivadas são realizadas porque o indivíduo as enxerga como
prazerosas, desafiadoras, interessantes ou recheadas de propósito. Ou seja, neste tipo de motivação, não há
necessidade de benefícios externos: a tarefa ou atividade vai ser realizada porque o indivíduo assim o deseja.
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 283 |

et al. (2010) propõem a suspensão da implantação da remuneração


variável no setor público.
Importantes estudos (OCDE, 2005; PERRY et al., 2009;
MARSDEN, 2010; BURGESS, RATTO, 2003) enfatizam que as
limitações dos modelos de remuneração variável no setor público
são sérias, recorrentes e estão relacionadas às más condições insti-
tucionais, estruturais, ambientais e de implementação.
Por que, então, a PRP fracassa na maior parte dos casos? E por
que ela, às vezes, tem efeitos positivos? Algumas dessas questões
serão exploradas a seguir.

9.3 A VISÃO DOS ECONOMISTAS:


A REMUNERAÇÃO VARIÁVEL SOB A ÓTICA DA
ESCOLHA RACIONAL E DA RELAÇÃO
AGENTE X PRINCIPAL

Estudos publicados, principalmente no campo da Economia,


argumentam que os problemas de ineficácia da remuneração va-
riável no setor público estão relacionados a esquemas de incentivo
modelados e administrados incorretamente. Weibel et al. (2010)
afirmam que esses estudos baseiam-se na teoria da escolha racional,
do indivíduo autointeressado, egoísta e extrinsecamente motiva-
do.9 Segundo os autores dessa vertente, em situações adequadas a
PRP geraria, necessariamente, aumento no desempenho das pes-
soas. Entretanto, existiriam problemas típicos da relação agente x
principal e características estruturais da administração pública que
9 Motivação extrínseca é aquela baseada nas recompensas externas. As tarefas são
realizadas porque elas geram compensações (como o dinheiro) que podem ser, posteriormente,
convertidas em produtos ou serviços que vão preencher necessidades e, aí, gerar satisfação.
| 284 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

levariam a incentivos subótimos. O foco dos pesquisadores é, então,


compreender essas situações, estudar formas adequadas de mode-
lagem e implementação e possíveis soluções para esses problemas.
Essa ótica enxerga a PRP por meio da relação agente x principal. Nessa
relação, um ator (principal) delega a outro ator (agente) a realização de
determinada atividade. A relação fica problemática na medida em que
principal e agente não compartilham os mesmos objetivos, o que possi-
bilita ao último atuar contrariamente aos interesses desejados. Podem-se
enxergar os servidores públicos como agentes de cidadãos, políticos e
lideranças burocráticas (principais). O principal, no exercício de suas
atribuições e na busca de seu interesse, pode exigir maior produtividade
dos servidores. Estes não necessariamente compartilham dessa vontade
e podem se negar ao pretendido desempenho superior. O problema se
agrava quando o comportamento ou o desempenho do agente é difícil
de ser medido, e o principal tem informação incompleta, insuficiente,
para avaliar quão bem o agente está atuando no exercício de suas funções
(EISENHARDT, 1989).

AS CONSEQUÊNCIAS DAS MÚLTIPLAS TAREFAS NO


SISTEMA DE INCENTIVOS
Segundo Burgess e Ratto (2003), características típicas do setor
público, como a existência de múltiplas tarefas desempenhadas pelos
agentes, por si só dificultam a implantação de sistemas de incentivos.
Se as ações forem substituíveis entre si (no sentido de que mais
tempo numa atividade significa menos tempo em outra), o uso de
poderosos sistemas de incentivo pode gerar efeitos indesejados nos
resultados globais. Segundo MacDonald e Marx (2001),10 diante

10 Macdonald, G.; Marx, L. M. (2001). Adverse specialization, Journal of Political Economics,


17, 199-236, como citado em Burgess e Ratto (2003).
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 285 |

da existência de atividades substitutas, os agentes irão privilegiar as


tarefas menos difíceis, enquanto o principal desejará que eles realizem
todas as atividades. Os autores afirmam que, se o principal não tem
certeza sobre as preferências de seus agentes, estabelecer recompensas
por desempenho a tarefas individuais pode ser subótimo, já que pode
induzir os empregados a focar em tarefas mais fáceis.
Uma possível solução seria fazer que todas as atividades impor-
tantes fossem mensuradas de forma separada, com metas específicas.
A cada meta atribuir-se-ia uma recompensa ou uma parcela distinta
da recompensa. Quanto mais metas fossem atingidas, maior seria a
premiação auferida. Novamente o risco de múltiplas tarefas existe.
O peso da gratificação a cada tarefa deve, então, ser cuidadosamente
calculado em função da dificuldade de executá-la e de sua impor-
tância relativa face às prioridades da organização.

O PROBLEMA DOS MÚLTIPLOS PRINCIPAIS


Uma característica-chave do setor público é que os agentes
(servidores públicos) trabalham para diversos principais (cida-
dãos, lideranças políticas, altas lideranças da burocracia, gerência
intermediária da burocracia). Nessas circunstâncias, estabelecer
incentivos adequados é mais complicado, uma vez que cada um
desses principais está interessado em apenas alguns aspectos dos
resultados e, ainda, por vezes, os interesses dos diversos principais
não estão alinhados.
O argumento elaborado por Bernheim e Whinston (1986)11
é que, nessas condições, cada principal vai oferecer mais incenti-
vos positivos aos elementos em que está interessado e incentivos

11 Berheim, B.; Whiston, M. (1986) Common Agency. Econometrica 54(4), 923-42, como
citado por Burgess e Ratto (2003).
| 286 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

negativos aos demais, enquanto os agentes vão acabar privilegiando


aqueles que oferecerem incentivos maiores, deixando de lado outros
principais e outras tarefas. Uma possível solução é tentar negociar
com os diversos principais para formalizar os objetivos e metas,
deixando-os claros para os agentes.

DIFICULDADES NA MENSURAÇÃO DE RESULTADOS NO


SETOR PÚBLICO
Segundo Burgess e Ratto (2003), alguns tipos de tarefas no setor
público são particularmente difíceis de serem mensuradas e recom-
pensadas. Isso ocorre por duas razões: a) na administração pública,
parte dos servidores é tomadora de decisão em diversas atividades,
tais como as dos policiais, fiscais de renda e assistentes sociais e b)
os servidores trabalham para organizações que não têm uma meta
única, clara e evidente. Para os autores, as duas características com-
binadas tornam mais difícil o incentivo e o monitoramento desses
indivíduos.
Considerando a dificuldade em se mensurar resultados finais,
torna-se ainda mais importante monitorar o desempenho durante
a execução das atividades, mas novamente, características típicas
de organizações públicas complicam essa tarefa. Wilson (1989)
analisou diversas organizações do governo dos Estados Unidos e
as classificou em relação à possibilidade de mensurar os meios que
os funcionários utilizam e os fins (resultados) que elas perseguem.
Nessa classificação, surgem organizações nas quais nem os resulta-
dos nem os meios são fáceis de medir.12 Nelas, os burocratas têm
o controle da distribuição de bens e serviços para o cliente e suas
decisões dependem de fatores ou variáveis que não são facilmente

12 Wilson (1989) as chamou de coping organizations.


REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 287 |

observados por seus superiores. Policiais são o exemplo típico: a


decisão de prender uma pessoa é baseada na suspeita imediata de
culpa, o que não é observável por seus superiores. E a decisão de
transferir um bem ou prestar um serviço não pode ser baseada num
preço pago pelo cliente, o que seria facilmente observável. Nessas
organizações, em que nem o esforço do agente nem o resultado
entregue são facilmente observáveis, a mensuração do desempenho
é desafio e um problema recorrente.
Burgess e Ratto (2003) argumentam que, nessas situações, as
informações sobre desempenho estão geralmente disponíveis so-
mente de forma mais agregada. Os resultados são produzidos por
indivíduos, mas são mensuráveis tendo por referência o grupo de
indivíduos (unidade gerencial). Assim, o foco em equipes é particu-
larmente relevante como solução para mensuração de desempenho
no setor público.

O TRABALHO EM EQUIPE E SUA RELAÇÃO COM


INCENTIVOS
Holmström (1982) argumenta que, em uma situação em que os
membros de uma equipe dependem uns dos outros para a produ-
ção dos resultados, surge o problema do “carona” (free rider). Esse
problema fica mais grave quanto maior for a organização. Uma
recompensa ótima, nessa situação, depende de quanto o resultado é
fácil de medir e também do tamanho da equipe. Quanto maior for a
dificuldade em mensurar os resultados, maior e mais complexa será
a concepção de um sistema ótimo de incentivos. O problema do free
rider é a explicação mais comum da Economia para a dificuldade em
se ter sucesso com sistemas de recompensas por equipes (Burgess e
Ratto, 2003). Ainda segundo essa visão, no trabalho em grupo, uma
| 288 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

situação que pode estimular o desempenho é o monitoramento pelos


pares (colegas de trabalho). Vincular gratificações ao desempenho
do grupo estimula esse monitoramento e, consequentemente, reduz
a prática do free rider. Kendel e Lazear (1992) mostram que um
maior monitoramento pelos pares pode induzir a um maior esforço
dos indivíduos caso o risco de ser pego “fazendo corpo mole” seja
maior. Isso tem uma implicação no tamanho das equipes; se estas
forem muito grandes, fica mais difícil o monitoramento pelos pares.
Na análise de Holmström (1982), a equipe é definida por ser uma
unidade de produção, na qual seus membros contribuem para um
mesmo resultado.
Um importante debate a respeito da modelagem de sistemas
de incentivo ocorre entre os defensores de avaliações baseadas no
indivíduo e avaliações baseadas em equipes. Gehardt (2009) aponta
que, quanto ao nível de mensuração do desempenho, os modelos
de remuneração variável se dividem em individuais, coletivos ou
híbridos (em que a remuneração baseia-se parte no desempe-
nho individual e parte no desempenho coletivo). Embora a visão
econômica apresente riscos envolvidos na utilização de modelos
coletivos, eles estão crescentemente ganhando força nas experiên-
cias de PRP nos governos. Os modelos focados em indivíduos,
embora possam promover forte incentivo em função da ligação
direta desempenho individual-premiação, também possuem aspec-
tos negativos, principalmente vinculados à cooperação. Gehardt
(2009) argumenta que o uso de modelos de incentivo individuais
pode fomentar a desagregação e dificultar o trabalho em grupo,
na medida em que cada servidor será avaliado e recompensado
individualmente, e o resultado coletivo do trabalho pode deixar de
ser prioridade. Os estudos da OCDE (2005a, 2005b) e de Perry
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 289 |

et al. (2009) concluem que modelagens focadas em equipe parecem


ter melhores resultados do que esquemas baseados na avaliação
individual de desempenho.
Uma das principais consequências do relatório Makinson
(2000),13 que sugeriu modelagens de incentivos para o serviço
público britânico, foi o surgimento de sistemas de remuneração
variável baseados em equipes. Estas variavam desde 100 funcio-
nários até milhares de empregados de divisões inteiras. Burgess
e Ratto (2003) argumentam que uma definição clara da equipe
é muito importante para a concepção exitosa de um sistema de
incentivos. Assim, equipes podem ser definidas em função do pro-
cesso de produção ou, então, serem “forjadas artificialmente”, no
sentido de proporcionarem um estímulo para a cooperação entre
unidades distintas. Deve haver uma racionalidade na definição
da equipe e isso deve ser estudado caso a caso. Por exemplo, se
o objetivo for gerar incentivo e controle pelos pares (colegas de
trabalho), evitando assim o free rider, a concepção da equipe deve
considerar esse aspecto, especialmente em função do tamanho do
grupo, devendo esse ser relativamente pequeno.

9.4 AS INTERFERÊNCIAS DA QUESTÃO


PSICOLÓGICA NA REMUNERAÇÃO VARIÁVEL
Visões mais ligadas à Psicologia enxergam as causas do fracasso
de sistemas de PRP não em incentivos subótimos, mas sim na mo-
tivação dos empregados. Segundo Weibel et al. (2010), as teorias
econômicas baseadas no autointeresse não possuem uma estrutura

13 Makinson, J. (2000) Incentives for change: rewarding performance in national government


networks. Public Service Productivity Panel, como citado em Burgess e Ratto (2003).
| 290 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

analítica suficiente para analisar a motivação dos empregados, es-


pecialmente os do serviço público. O uso da remuneração variável
geraria efeitos adversos nos servidores públicos, muitas vezes redu-
zindo sua motivação.
As modernas teorias psicológicas fundamentam-se na ideia de
que existem dois grupos de fatores motivacionais: os intrínsecos e
os extrínsecos. Enxergar o peso desses dois tipos de componentes
na motivação dos indivíduos parece ser fundamental para a com-
preensão do impacto da remuneração variável no desempenho de
cada profissional. Segundo Weibel et al. (2010), no serviço público
os funcionários têm, em geral, motivação intrínseca significativa,
realizando tarefas em função do senso de dever, lealdade e prazer,
ou seja, realizam as atividades porque acreditam nelas e, ao fazê-lo,
têm a sensação de que estão cumprindo seu dever. Essa motivação
intrínseca, em certas condições, pode ser reduzida ao ser introduzida a
remuneração variável. Dar a alguém incentivos financeiros para realizar
tarefas que já seriam feitas por prazer reduz a motivação, na medida
em que a pessoa passa a enxergar a tarefa como algo controlado por
incentivos externos e não por um prazer, por uma vontade interna.
Portanto, nesses casos, as gratificações podem produzir custos ocultos
e, assim, reduzir o desempenho (WEIBEL et al., 2010). Esse efeito
da redução ou neutralização da motivação intrínseca em função da
existência de recompensas extrínsecas é genericamente conhecido na
literatura como efeito deslocamento ou expulsão (crowding-out effect).
Em outras palavras, o aumento da motivação extrínseca por meio de
mecanismos externos (recompensas) provoca o “deslocamento” ou a
“expulsão” da motivação intrínseca. É atribuída a esse efeito boa parte
das limitações motivacionais da remuneração variável.
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 291 |

O EFEITO CROWDING-OUT14
Diversos autores têm buscado compreender o problema do efeito
crowding-out. Osterloh e Frey (2002) sintetizam argumentos teóricos
e resultados de pesquisas empíricas sobre o assunto. Duas visões
existem a respeito desse efeito.
Segundo a perspectiva da teoria da avaliação cognitiva, o
referido efeito faz que a motivação intrínseca seja substituída
pela intervenção externa, o que é percebido como uma restrição
à autonomia do indivíduo. Este não mais se sente responsável
por determinada atividade, já que ela está sendo “controlada”
e incentivada pelo dinheiro, pela premiação variável. A tarefa
passa a ser orientada não mais pelo prazer, mas pelo dinheiro. O
indivíduo passa, então, a atribuir a responsabilidade do trabalho
para quem está pagando por ele, isentando a si próprio de investir
energia em sua realização.
Já a teoria dos contratos psicológicos argumenta que cada relação de
trabalho inclui um aspecto extrinsecamente motivado (dinheiro) e
um aspecto relacional entre as duas partes. Caso a parte relacional
do contrato seja quebrada, a boa-fé recíproca é colocada em xeque.
Evidências empíricas demonstram que, quando isso ocorre, as partes
no contrato percebem que a realização da tarefa foi transformada
numa simples relação comercial. Por exemplo, quando um super-
visor cumprimenta um empregado por um grande esforço com um
presente simbólico (flores, por exemplo), a motivação intrínseca
desse empregado tende a aumentar porque ele sente que seu esforço
é valorizado. Entretanto, se por algum motivo, o indivíduo percebe
que o gesto do superior serve somente a um objetivo instrumental,
sua motivação intrínseca é afetada negativamente. As flores passam a

14 Uma tradução aproximada para o português seria “efeito de amontoamento”.


| 292 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

ser percebidas como controladoras, e a relação é interpretada como


comercial, reduzindo a motivação (OSTERLOH, FREY, 2002).
Diversas análises empíricas têm sido realizadas a respeito do
crowding-out effect. Uma das mais relevantes (Eisenberger, Cameron,
1996)15 analisou um total de 59 artigos produzidos entre 1971 e
1997 e concluiu que recompensas reduzem a motivação intrínseca
para atividades consideradas interessantes (aquelas que os experi-
mentos mostraram ser intrinsecamente orientadas) de uma maneira
altamente significante e bastante confiável. Osterloh e Frey (2002)
argumentam, portanto, que não há dúvidas de que o crowding-out
effect existe e é um fenômeno significativo sob certas condições. As-
sim, é necessário calcular o resultado líquido entre o efeito-premiação
(decorrente da recompensa) e o efeito crowding-out, para avaliar de
fato o impacto da remuneração variável sobre a motivação.

A COMPARAÇÃO ENTRE ESTÍMULOS INTRÍNSECOS E


EXTRÍNSECOS
Como vimos, a visão da Psicologia propõe que a remuneração
variável reduz o desempenho no caso de tarefas interessantes. Em
oposição, a visão da Economia argumenta que a remuneração variável
aumenta o desempenho independentemente do tipo da tarefa, quando
o sistema de incentivos está modelado e implementado corretamente.
Novos estudos publicados por Weibel et al. (2010) iluminam
essa aparente controvérsia. Os autores revisaram conclusões de 46
estudos publicados em revistas acadêmicas das áreas de economia
e psicologia. Os estudos foram classificados de acordo com suas
referências a atividades interessantes e não interessantes. Os autores

15 Eisenberger, R.; Cameron, J. (1996). Detrimental effects of reward: reality or myth?


American Psychologist, 51, 1153–66, como citado em Osterloh e Frey (2002).
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 293 |

concluíram que a remuneração variável aumenta significativamente


o desempenho no caso de atividades não interessantes, enquanto
no caso das interessantes ela o reduz. No estudo, não foram en-
contradas diferenças significativas entre os estudos publicados em
revistas de Economia e Psicologia. Assim, é possível articular as duas
visões (econômica e psicológica) em uma conclusão convergente. A
Economia argumenta que boa parte dos problemas da remuneração
variável está relacionada a incentivos modelados inadequadamente.
A visão da Psicologia complementa esse raciocínio acrescentando
um aspecto: PRP funciona bem para atividades não interessantes e
tem sérias limitações para atividades interessantes, podendo, nesses
casos, até reduzir o desempenho do funcionário.
Essas conclusões têm importantes consequências para a mode-
lagem de incentivos no setor público. O estudo da OCDE (2005a)
mostrou que os incentivos variáveis tendem a ser de, no máximo,
10% da remuneração para o nível não gerencial. Como consequên-
cia, o efeito-premiação é pequeno no serviço público.16
O efeito crowding-out, contudo, é alto, já que o conteúdo do
trabalho e a motivação intrínseca parecem ser importantes fatores de
incentivo no serviço público, o que é confirmado por uma série de
autores.17 Um pequeno efeito-premiação somado a um grande efeito

16 Uma série de autores confirma essa afirmação: Ingraham, P. W. (1993). Of pigs in pokes
and policy diffusion – Another look at pay-for-performance. Public Administration Review 53:348-
-56, Kellough, J. E.; Haoran, L. (1993). The paradox of merit pay in the public sector: Persistence of a
problematic procedure. Review of Public Personnel Administration 13 (2): 45-64 e Moon, M J. (2000).
Organizational commitment revisited in new public management: Motivation, organizational culture,
sector, and managerial level. Public Performance & Management Review 24, 177-94.
17 ara mais informações sobre esse argumento, ver: François, P. (2000). Public service
motivation‘ as an argument for government provision. Journal of Public Economics 78:275-99, Frank,
S. A.; Gregory, L. 2004. Government employees — Working hard or hardly working? American Review
of Public Administration 34:36-51, e Grand, J. (2006). Motivation, agency, and public policy: Of knights
and knaves, pawns and queens. Oxford: Oxford University Press.
| 294 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

crowding-out resulta em uma queda de desempenho, especialmente


para tarefas interessantes.
Para Weibel et al. (2010), essa realidade sintetiza a maior parte
das causas do fracasso da remuneração variável no setor público.
Nesse ambiente, servidores de nível operacional são bons candidatos
para a remuneração variável, pois são mais propensos a conside-
rarem seus trabalhos menos interessantes do que os gerentes.18 Já
para estes, a PRP seria uma estratégia arriscada e potencialmente
negativa, uma vez que a função gerencial tende a ser interessante
em razão do desafio e da complexidade da tarefa. Essas afirmações
teóricas parecem estar de acordo com estudos empíricos. Perry
et al. (2009) concluem, após avaliar a efetividade das experiências
de PRP, que elas parecem ter mais sucesso nos níveis operacionais,
onde as tarefas são menos ambíguas e os resultados mais concretos e
mensuráveis, contradizendo a premissa de que seriam mais efetivas
nos níveis gerenciais.

9.5 EM BUSCA DO IMPACTO POSITIVO: OUTRAS


CONDIÇÕES CRÍTICAS DE IMPLEMENTAÇÃO

A maioria dos estudos enfatiza, porém, que a remuneração variá-


vel no setor público pode ter efeitos positivos (OCDE, 2005; PERRY
et al., 2009; MARSDEN, 2010; BURGESS, RATTO, 2003). O
modelo não é um simples fracasso. Suas limitações, embora sérias
e recorrentes, podem ser enfrentadas ou minimizadas, e resultados
positivos podem ser obtidos.

18 Buelens, M.; van der Broeck, H. (2007) An analysis of differences in work motivation
between public and private organizations. Public Administration Review 67: 65-74.
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 295 |

Segundo Marsden (2010), embora a remuneração variável pos-


sa ter efeitos perversos sobre a motivação em algumas condições,
existem contribuições para a melhoria do desempenho das orga-
nizações. A mensuração do desempenho e a definição de metas
(que geralmente são fortalecidas com a implantação da PRP) têm
contribuído para um melhor desempenho. O autor afirma que a
implantação da remuneração variável tem incentivado a renego-
ciação de prioridades e padrões de desempenho entre empregados
e chefia. Uma vez que metas e objetivos organizacionais são a base
de cálculo da parcela variável, torna-se necessário que eles sejam
esclarecidos, comunicados, negociados e repactuados com os fun-
cionários. A relação contratual entre chefe e subordinado passa a
ser regularmente rediscutida e favorece a convergência das metas
individuais e organizacionais.
Os estudos reforçam uma importante constatação: discutir a
relação entre remuneração variável e melhoria do desempenho não
implica, somente, em verificar possível aumento no esforço dos
funcionários. Há de se verificar, também, em que grau esse esforço
foi redirecionado aos objetivos desejados (GERHART, 2009). O
simples redirecionamento do esforço (mesmo que não haja aumento
dele) em direção às prioridades da organização pode gerar melhoria
do desempenho. Mesmo que a PRP não gere mais esforço, ela pode
induzir a um esforço de melhor qualidade, ou seja, pode melhorar
o alinhamento entre indivíduo e organização. Essas observações são
coerentes com importantes estudos publicados recentemente. Os
trabalhos de Perry et al. (2009) e OCDE (2005a, 2005b) concluíram
que a PRP pode melhorar o desempenho, em geral, não por via da
motivação. Os bons resultados são decorrentes de efeitos deriva-
dos, como o alinhamento de esforços em torno de prioridades, a
| 296 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

mensuração e avaliação do desempenho, melhor tomada de decisão


e maior cooperação quando as metas são coletivas.
A literatura aponta, entretanto, que esses efeitos positivos ocorrem
quando há boas condições de implementação. Mas essas condi-
ções parecem presentes em poucas experiências investigadas. Uma
vez que grande parte dos autores mostra-se reticente e pessimista
quanto aos resultados da remuneração variável no serviço público,
é necessário aprimorar a modelagem e os processos para por esse
mecanismo em prática, a fim de fortalecer seus aspectos positivos.
A seguir, serão discutidos outros aspectos relevantes de modelagem
e implementação.

PRIMEIROS PASSOS NA INTRODUÇÃO DE SISTEMAS


DE PRP
Kerr (2004) afirmou que para se ter uma gestão efetiva, o esta-
belecimento das recompensas deve ser a terceira coisa com o que
se preocupar. Mensurar o desempenho deve vir em segundo lugar
e tanto as gratificações quanto a mensuração devem estar subordi-
nadas à definição clara e precisa sobre o que, de fato, deve ser feito.
O primeiro passo, portanto, deve ser a construção de um plano
estratégico para a organização. Ele pode estar em uma folha de pa-
pel com as dez prioridades para o ano ou em um mapa estratégico
elaborado com o apoio de uma boa consultoria. Ainda segundo o
autor, o mais interessante desse princípio é que ele, por mais senso
comum e autoevidente que seja, é violado sistematicamente.
Kerr (2004) ensina que estabelecer indicadores de desempenho e
metas para verificar o cumprimento (ou não) das prioridades defini-
das pela organização deve vir antes de se pensar na implantação de
um sistema de PRP. A ausência de um plano estratégico com metas
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 297 |

organizacionais anteriores à introdução de sistemas de incentivo pode


levar a metas criadas de qualquer maneira, apenas para a implantação
da PRP, desconectadas de um processo maior, estipuladas apenas
para setores (ou carreiras) específicos da organização e direcionadas
para objetivos nebulosos (já que não se discutiram as prioridades
e a estratégia para a organização como um todo). Assim, surgem,
naturalmente, situações como a descrita por Kerr (1975), ou seja,
a organização pode estar recompensando coisas erradas e, inclusive,
aquilo que deseja evitar.

DEFINIÇÃO DOS INDICADORES DE DESEMPENHO


Segundo Pacheco (2009) diversos autores têm discutido a
questão de mensurar os produtos/serviços ou impactos. Entende-se
produtos/serviços, conhecidos na literatura como outputs, como
aqueles oferecidos ou prestados em nome do governo pelos minis-
térios/secretarias a indivíduos ou a organizações externas (TROSA,
2001). Os produtos/serviços são diretamente vinculados às políticas
públicas; por exemplo, o número de atendimentos preventivos nos
postos de saúde. Já os impactos, também chamados de outcomes, são
as mudanças efetivas desejadas pela sociedade em decorrência das
políticas públicas; por exemplo, a redução da mortalidade infantil
em determinada região.
Os produtos/serviços são muito importantes para avaliar o resul-
tado da política pública de forma mais específica e concreta, esta-
belecendo relação entre processos e resultados. Existem argumentos
clássicos: os defensores dos produtos/serviços argumentam que eles
são mais facilmente mensuráveis, são consequência direta da política
pública e, portanto, medem melhor o desempenho. Os defensores
dos impactos argumentam que são estes que medem, de fato, se a
| 298 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

política está funcionando, embora apenas sejam observáveis em


médio/longo prazo.
Trosa (2001) apresenta uma solução pragmática: produtos/serviços
e impactos são, ambos, importantes e respondem a perguntas distin-
tas. Para a autora, a mensuração dos primeiros permite conhecer o
que é efetivamente produzido com os recursos públicos, e os segun-
dos permitem indagações sobre a eficácia e utilidade daquilo que é
produzido. Os governos devem começar pelos produtos/serviços, cuja
mensuração é mais fácil, e ir evoluindo em direção aos impactos, por
meio da construção da cadeia lógica que liga as ações aos objetivos
visados, relacionando impactos, resultados intermediários e ações.
Para Behn (2003, 2004a), não basta discutir a medição de pro-
dutos/serviços ou impactos. Deve-se explicitar qual o propósito com
a mensuração, pois diversos objetivos requerem diferentes medidas.
Segundo o autor, para motivar as pessoas, a organização precisa de
medidas praticamente em tempo real, pois só tem sentido a recom-
pensa caso seja possível monitorar os resultados a tempo de corrigir
rumos. Behn defende enfaticamente a mensuração de produtos/ser-
viços, especialmente quando o objetivo é motivar. Portanto, quando
se fala em remuneração variável por desempenho, a literatura nos
esclarece que o foco em medidas de produtos/serviços é mais eficaz,
pois gera condições efetivas de corrigir rumos e também gera a per-
cepção, nos servidores, de que basta modificar o comportamento
para melhorar os resultados, já que estes são consequência direta
da ação da organização.
Segundo Pacheco (2010),19 parece haver, no Brasil, uma tendên-
cia a supervalorizar os impactos. Fala-se cada vez mais em impactos,
como se eles representassem a mais moderna face da gestão por

19 Regina Pacheco, palestra de encerramento, congresso CONSAD 2010, Brasília-DF.


REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 299 |

resultados no serviço público. Entretanto, embora sejam medidas


importantes e que devem ser mensuradas, restringir-se aos impactos
traz sérias limitações. Eles podem demorar muito tempo (às vezes
muitos anos) para manifestar o resultado de ações. Eles são tam-
bém influenciados por diversos fatores. Por exemplo, a melhoria
das condições de saúde da população não depende somente do
número de atendimentos preventivos. Há também influências do
padrão de saneamento, do nível de educação e higiene e de uma
série de outros fatores. Embora a mensuração desses impactos seja
importante e necessária para uma série de objetivos, a utilização
deles para sistemas de PRP deve ser bastante reduzida.

O PAPEL DA DIFICULDADE E DO VOLUME DAS METAS


NO DESEMPENHO
Locke e Latham (2002) afirmam que metas difíceis levam
a melhores resultados. Foi encontrada uma correlação positiva
linear, fortemente significativa, de que as metas mais difíceis (na
percepção de quem deve cumpri-las) levam a maiores níveis de
esforço e desempenho. Segundo os autores, essa relação entre metas
difíceis e desempenho foi comprovada por 35 anos de pesquisas
e verificada em mais de 100 diferentes tarefas envolvendo 40 mil
participantes em 8 países, tanto em laboratório quanto em estu-
dos de campo. Os resultados são aplicáveis a indivíduos e grupos
(LOCKE; LATHAM, 2002). Os autores também compararam os
efeitos da definição de metas desafiadoras e específicas à simples
utilização do incentivo moral “faça o seu melhor”. Os resultados
mostram que metas difíceis, específicas e claramente definidas
levam a um desempenho superior do que simples incentivo de
um dito moral.
| 300 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Outro ponto importante é que metas em excesso levam a uma


“sobrecarga cognitiva”. A não ser que a maior parte delas possa ser
delegada, um gerente sozinho, provavelmente, tem condições de
gerenciar entre três e sete metas, dependendo de sua complexidade
e de quanto tempo elas demandam para sua consecução (LOCKE,
2004). Os autores também argumentam que, para que as metas se-
jam efetivas, as pessoas precisam de feedbacks periódicos para revelar
a evolução do seu desempenho. Se elas não souberem de que forma
estão desempenhando sua função, será praticamente impossível ajus-
tar ou redirecionar o esforço e as estratégias em direção à meta. Esse
é mais um argumento a favor dos produtos/serviços, em detrimento
dos impactos, para subsidiar sistemas de incentivo.

OS RISCOS ASSOCIADOS AO FENÔMENO DO GAMING


EM SISTEMAS DE PRP
A palavra gaming se refere à situação em que os controlados
aprendem “a regra do jogo” e passam a “jogar” em busca do seu
interesse, mesmo que isso vá de encontro aos objetivos do sistema.
Trata-se de uma manipulação e mau uso do sistema, especialmente
por parte dos controlados (agentes). Qualquer modelo de incentivo
que se baseie na avaliação de indicadores e metas está sujeito a esse
fenômeno, o que representa, assim, uma limitação e um risco para
os sistemas de remuneração variável.
A literatura está recheada de exemplos desse fenômeno. Hood
(2006) mostra que, na Inglaterra, houve situações em que foi so-
licitado a pacientes que aguardassem dentro das ambulâncias (evi-
tando que chegassem à recepção) até que o hospital tivesse certeza
de que eles poderiam ser atendidos dentro da meta de quatro horas
de espera. Observaram-se, também, professores treinando alunos
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 301 |

especificamente para o teste que avalia as escolas, esquecendo qual-


quer outro conteúdo ou disciplina que não fossem aqueles da prova;
ainda, há relatos de que estudantes com desempenho insatisfatório
são “deixados de lado”, na expectativa de focar a atenção naqueles
considerados os melhores para representar a escola no teste.20
Incentivos perversos geralmente aparecem quando o trabalho
exige uma série de tarefas, mas somente algumas são mensuradas
e recompensadas. Nesse caso, o trabalhador concentra esforços
somente nas segundas, em detrimento dos objetivos organiza-
cionais. Robert Behn (2007) alerta os gestores públicos a esse
respeito ao afirmar que poucas medidas concentram a atenção
das pessoas, o que é uma vantagem óbvia e, ao mesmo tempo,
uma desvantagem. Para o autor, o que não é medido não é feito
e, portanto, os gestores devem avaliar cuidadosamente o que deve
ser mensurado e, especialmente, quais medidas devem ser a base
do sistema de incentivo.
Segundo Hood (2006), especialistas identificaram no mínimo
três tipos de gaming e comportamentos oportunistas em torno de
metas. O mais conhecido ocorre quando os controlados (agentes)
percebem que as próximas metas serão influenciadas pelo maior
desempenho obtido no passado (rachet effect ou efeito bola de neve).
Assim, eles passam a acreditar que se trabalharem muito durante
o ano irão prejudicar a si próprios, já que uma meta ainda maior
lhes será imposta no próximo ano. Consequentemente, os agentes
tendem a reduzir a produtividade no período corrente para ficarem
mais confortáveis no futuro. Um segundo tipo é conhecido como
efeito do limite mínimo ou “nivelamento por baixo” (threshold effect).

20 van Dooren, W. (2008) Performance indicators: wolf in sheep‘s clothing?, mimeo, como
citado em Pacheco (2009).
| 302 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Ele ocorre quando metas iguais são impostas a todas as unidades


do sistema, fazendo que não haja incentivos para a excelência e que
aqueles que têm melhor desempenho sejam encorajados a reduzir a
quantidade e qualidade de seus serviços em direção ao nível mínimo
definido pela meta. Um terceiro tipo de gaming consiste na distorção
dos objetivos — hitting the target and missing the point, “atingir o
alvo, mas não o sentido” — como situações em que tempos de res-
posta são reduzidos com perda da qualidade de atendimento. Nessas
condições, o processo de definição de metas pode se assemelhar a um
jogo entre agente e principal, em que ganha quem for mais esperto.
E o objetivo de melhor desempenho se perde nesse jogo.
Na concepção e implementação de um sistema de remuneração
variável, mais importante do que tentar reduzir o gaming depois
de identificada sua existência, é evitar estímulos que o originem. A
possibilidade de ocorrer o gaming está relacionada a dois aspectos:
a pressão exercida nos indivíduos em função do sistema de metas,
por um lado, e a existência de mecanismos anti-gaming, por outro.
A existência de remuneração variável atrelada à avaliação dos
resultados ou a um sistema de monitoramento de metas gera maior
pressão e maior incentivo para que as pessoas pratiquem o gaming.
Uma situação típica ocorre quando há forte cobrança de metas pela
liderança, como no caso inglês na gestão de Tony Blair (em que ges-
tores sofriam pesada cobrança executiva21 e poderiam ser demitidos
em função de resultados ruins). Nesse sentido, o valor ou o peso
monetário da remuneração variável faz diferença. Segundo a OCDE
(2005b), o valor monetário da PRP no setor público tem ficado, nos
países desenvolvidos, até o limite de 10% do salário para servidores
21 Para maiores detalhes sobre o funcionamento do sistema inglês ver Kelman, S. (2006).
Improving service delivery performance: organization theory perspectives on central intervention
strategies Journal of Comparative Policy Analysis, 8(4) 393-419.
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 303 |

e de 20% para o nível gerencial. Não ultrapassar esse limite parece


ser importante para evitar o “vale-tudo” na busca de resultados, o
que incentivaria a prática de gaming.
Mecanismos anti-gaming podem minimizar a ocorrência desse fe-
nômeno. Hood (2006) cita a definição de especificações detalhadas em
relação aos indicadores e metas, a realização de auditorias e a punição
exemplar de controlados mal-intencionados. Para Locke (2004), uma
forma adequada à prevenção desse tipo de comportamento é fazer
que regras de conduta, normas éticas e padrões de comportamento
sejam claramente comunicados e sistematicamente reforçados pela
liderança. Outras medidas são possíveis para reduzir o efeito bola de
neve. O principal pode buscar meios de aumentar o conhecimento
sobre a execução da tarefa, reduzindo a assimetria de informações e
conhecendo mais sobre o nível de esforço despendido na produção.
Além disso, esse principal pode comparar o desempenho de sua uni-
dade de produção com o de outras similares na mesma organização
ou em outras organizações, é o chamado benchmarking.
A definição de metas pode, por si só, minimizar o gaming. A
pactuação de resultados pode ser feita por “conjunto de indicadores”,
buscando contemplar, nesses indicadores, quantidade e qualidade,
gerando incentivos para evitar efeitos perversos. Metas de redução de
tempo de espera de serviços, por exemplo, devem vir acompanhadas
de indicadores de qualidade e satisfação desses serviços.
A aplicação desses mecanismos anti-gaming demanda, entretanto,
análise, pesquisa, diálogo e conhecimento da política pública. A
existência de uma unidade de inteligência composta por servidores
qualificados, ligada diretamente ao principal e que o auxilie nos
detalhes da negociação com o agente parece ser fundamental. Na
relação agente x principal, solucionar o problema da assimetria de
| 304 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

informação pode ser impossível, mas implementar mecanismos para


minimizá-la parece necessário.

A CULTURA BRASILEIRA E SUA INFLUÊNCIA SOBRE OS


RESULTADOS DO SISTEMA DE PRP
Barbosa (1996) mostrou que tentativas de implementar sistemas
de avaliação individual por mérito no Brasil foram feitas diversas vezes
em nossa história, mas pressões sociais sempre levaram os modelos ao
fracasso. Embora todos apoiem a lógica meritocrática, a prática social
não a legitima. A autora argumenta que o valor de igualdade no Brasil
é diferente do existente nos Estados Unidos. Lá, a ideia de igualdade
significa o tratamento igual perante a lei, e não necessariamente a
busca de um estado substancialmente igualitário. A existência da
diferença entre os indivíduos é reconhecida, legitimada e percebida
como o resultado do diferencial de talento (aptidão inata), que per-
mite a alguns indivíduos realizar e praticar certas ações com muito
melhor desempenho do que outros, em função de sua capacidade e
desejo de realização. As diferenças são, assim, percebidas como inevi-
táveis e desejadas. A sociedade americana está pronta para admitir a
igualdade jurídica e a desigualdade de fato, em função das diferenças
de desempenho individual. Nesse contexto, o desempenho funciona
como um mecanismo socialmente legítimo, que permite à sociedade
diferenciar, avaliar, hierarquizar e premiar os indivíduos entre si.
A noção de igualdade no Brasil é diferente. Barbosa (1996) afirma
que o desempenho é entendido mais como resultado do ambiente do
que como esforço do indivíduo. A consequência disso é que produ-
ções individuais não são comparáveis, pois o produto de cada uma é
visto como fruto de condições históricas subjetivas. Para a autora, os
brasileiros atribuem um desempenho ruim à falta de oportunidades
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 305 |

na vida, não legitimando o mérito enquanto fonte natural de diferen-


ciação social — em uma frase: “no Brasil, desempenho não se avalia,
se justifica”. Daí a síndrome da isonomia, as progressões automáticas
para todos e o engessamento do serviço público, no qual diferentes
categorias funcionais se encontram amarradas umas às outras, de for-
ma que qualquer diferenciação, mesmo que baseada na diferença de
funções, é vista como concessão de direitos que devem ser estendidos
a todos, o que leva ao famoso efeito cascata.
Na sociedade brasileira, o estabelecimento de gradações ou hie-
rarquias é visto como a introdução de uma desigualdade que vai de
encontro ao próprio objetivo do sistema. Em um universo como esse,
a luta pelo reconhecimento do mérito individual é extremamente
difícil e polêmica. Especialmente quando essa avaliação tem impactos
financeiros, o problema se radicaliza. Mesmo quando há avaliações
objetivas sobre diferenciação de desempenhos, no momento de
eventuais distribuições financeiras, estas acabam sendo igualitárias.
O argumento é que, normalmente, como o dinheiro disponível é
muito pouco, é melhor “dar um pouquinho para cada um, para que
todos recebam alguma coisa”. Por isso é que ou todos são avaliados
positivamente, ou ninguém é avaliado (BARBOSA, 1996).
As consequências dessa análise são impactantes para a modelagem
e para a possibilidade de sucessos de sistemas de PRP no Brasil. Em-
bora o argumento de Barbosa se volte especificamente à noção de
avaliação de desempenho individual, qualquer modelo de incentivo
vai se basear nessa parcela individual ou em uma avaliação coletiva
para aferição da remuneração variável. A síndrome da isonomia e
a busca de uma igualdade substantiva fazem que, mesmo havendo
diferença de desempenho, exista uma pressão social para que todos
ganhem de forma igual. Isso leva a pressões adicionais no sistema
| 306 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

de avaliação, porque, como afirmamos anteriormente, a cultura


brasileira atribui a desigualdade de desempenho à falta de opor-
tunidades na vida. Assim, não faz sentido dar uma nota diferente
de 10, uma vez que cada um fez o que pôde. A implantação de
sistemas de PRP no Brasil deve considerar esse aspecto cultural e,
assim, prever mecanismos que possam tornar o mais objetiva possível
a diferenciação do desempenho. Modelos baseados em resultados
mensurados de forma objetiva são, por esse motivo, mais adequa-
dos ao caso brasileiro do que modelos estruturados em avaliações
subjetivas de desempenho.

OS EFEITOS DA CREDIBILIDADE E DO SENSO DE


JUSTIÇA
A imagem que os empregados constroem sobre o funcionamento
do sistema de remuneração variável influencia o fracasso ou o sucesso
do modelo. Perry et al. (2009) concluíram que o sucesso da PRP
depende da percepção, por parte dos empregados, de que o sistema
é justo, transparente e não político.
O nível de confiança e a consistência do sistema de avaliação
foram observados como fatores críticos para o sucesso do modelo.
Se os empregados perceberem que as regras do sistema foram rela-
tivizadas, flexibilizadas ou manipuladas em benefício de alguns, o
sistema cairá em descrédito. Os autores também argumentam que
a credibilidade da liderança parece ter um papel importante para
induzir os funcionários a um senso de justiça em relação à PRP.
Gehardt (2009) e Dahlström e Lapuente (2010) também reafir-
mam a importância de que os empregados tenham o sentimento
de confiança e credibilidade em relação às regras, para a efetividade
do modelo.
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 307 |

9.6 ESCOLHENDO MODELAGENS ADEQUADAS


PARA SISTEMAS DE INCENTIVO NO CASO
BRASILEIRO

As experiências investigadas nas diversas publicações aqui refe-


renciadas e os argumentos teóricos propostos pelos autores indi-
cam práticas que terão mais chances de conduzir um sistema de
remuneração variável a gerar bons resultados no serviço público
brasileiro. A seguir, descreve-se uma proposta preliminar dessas
práticas, que podem e devem ser aprimoradas pela literatura ge-
rencial brasileira.

CONSTRUÇÃO DE UMA AGENDA ESTRATÉGICA PARA


TODA A ORGANIZAÇÃO
Conforme foi possível observar na literatura, para que o PRP
realmente contribua para a melhoria do desempenho, é necessário
garantir que o modelo incentive o comportamento e os resul-
tados na direção adequada. Metas criadas apenas para compor
o cálculo variável da remuneração dificilmente são levadas a
sério. A remuneração variável é, nas experiências exitosas, parte
de um sistema mais amplo de gestão de resultados e metas, em
que as informações do desempenho são monitoradas e utilizadas
para a tomada de decisão no dia a dia. É nessas condições que
o potencial do sistema é utilizado plenamente, já que os incen-
tivos podem ser acompanhados e redirecionados à medida que
prioridades específicas da organização forem identificadas. Assim,
cabe esperar que a prática 1, a seguir, gere bons resultados no
contexto brasileiro:
| 308 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Prática 1: Uma primeira e indispensável etapa para a concepção


de um sistema eficaz é a construção de uma agenda estratégica (com
indicadores e metas) para toda a organização (e não para apenas
partes dela).

AVALIAÇÃO DE RESULTADOS QUANTIFICÁVEIS E


FOCADA EM PRODUTOS/SERVIÇOS
Conforme apontado na literatura, é arriscado estruturar o modelo
de PRP em torno de avaliações de comportamento que têm um grau
maior de subjetividade. O motivo principal é o risco de tendência
benevolente. Dessa forma, parece ser mais indicado estruturar a
mensuração em torno de produtos/serviços. Eles são mais adequados
para proporcionar redirecionamento de esforços em busca de re-
sultados, uma vez que podem ser medidos praticamente em tempo
real. Eles também são mais adequados para representar, de fato, o
esforço empreendido na execução da política pública. Os produtos/
serviços “enxergam” melhor e mais diretamente o desempenho, sendo
mais úteis para a tomada de decisão e gestão do dia a dia. Estudos
apontam que as pessoas precisam ter a sensação de que cabe a elas
alcançar as metas para, assim, sentirem-se motivadas. Uma pequena
parcela da composição variável pode ser reservada aos impactos,
apenas para que eles exerçam a função de inspiradores e para que o
exercício de repensar a relação processos x resultados seja constante.
Assim, cabe esperar que a prática 2, a seguir, venha a gerar bons
resultados no contexto brasileiro:

Prática 2: O modelo deve basear-se na avaliação de resultados


objetivamente quantificáveis, exclusivamente. Os resultados devem
privilegiar mais produtos/serviços e menos impactos.
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 309 |

ESTABELECIMENTO DE METAS E PREMIAÇÃO POR


EQUIPE
Sistemas baseados em equipes têm sido apontados como mais
eficazes no setor público, seja pela dificuldade em medir resultados
no nível individual, seja porque fortalecem a cooperação. Não existe
uma receita única para a definição da equipe. Deve-se avaliar, caso
a caso, o que favorece mais o desempenho. A equipe deve ser com-
posta por indivíduos que respondam pela produção de um único
produto/serviço, ou seja, indivíduos que contribuam para um mesmo
resultado. Equipes pequenas podem favorecer o controle pelos pares,
se esse objetivo for relevante para o caso concreto. E, finalmente,
grupos podem ser ampliados, para que diferentes unidades persigam
as mesmas metas, fortalecendo a cooperação. Assim, cabe esperar
que a prática 3, a seguir, venha a gerar bons resultados:

Prática 3: O modelo deve basear-se em metas por equipe e em


premiação por equipe. A composição e o tamanho da equipe devem
ser estudados caso a caso e privilegiar dois critérios: unicidade da
produção/serviço e possibilidade de controle pelos pares.

CRIAÇÃO DE UNIDADE DE INTELIGÊNCIA


A construção de indicadores e metas de forma que eles orientem
os comportamentos desejados não é trivial. Cada resultado requer um
conjunto de indicadores para promover o incentivo na direção correta
e evitar o gaming. Essa construção requer pesquisa, análise e conheci-
mento da política pública. Além disso, considerando a relação agente
x principal, quanto mais informação puder ser levantada sobre bench-
marking, melhor será a efetividade da relação e melhor será a definição
das metas. Contudo, não parece crível que metas difíceis, que levam a
| 310 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

melhores resultados, possam ser definidas sem uma análise detalhada do


desempenho. É, portanto, indispensável para a efetividade de modelos
de PRP, o estabelecimento de uma unidade de inteligência, dotada de
alta qualificação e ligada diretamente ao principal, com o propósito de
coordenar o modelo e assessorar a liderança. Assim, cabe esperar que a
prática 4, a seguir, venha a gerar bons resultados:

Prática 4: Uma unidade de inteligência deve ser constituída


para negociar metas ousadas, reduzir a assimetria de informações
e evitar o gaming.

CONTRATUALIZAÇÃO FORMAL DAS METAS


Para minimizar o problema dos múltiplos principais, um processo
de formalização daquilo que será a base para o cálculo da parcela
variável parece importante. Quanto mais esse processo for formal,
sistemático, discutido e negociado, melhor será o resultado final
em termos de efetividade da PRP. Os estudos mostram, também,
que a credibilidade do modelo perante os empregados é fator im-
prescindível para se obter sucesso. E essa credibilidade depende da
percepção, por esses empregados, de que o sistema tem regras claras,
de que ele é justo, transparente e não político. Assim, cabe esperar
que a prática 5, a seguir, venha a gerar bons resultados:

Prática 5: É necessário um processo formal, sistemático e perió-


dico de contratualização de metas quantitativas que servirão como
base do sistema. Nesse processo, os empregados devem ser ouvidos.
Regras claras de funcionamento do sistema devem ser estabelecidas,
divulgadas e respeitadas. Deve-se investir na transparência das metas
e do processo de avaliação.
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 311 |

ADAPTAÇÃO DA MODELAGEM DO SISTEMA AO TIPO DE


ATIVIDADE
A teoria claramente mostra que a PRP funciona muito bem
para tarefas pouco interessantes. Nessa parcela do funcionalismo,
deve-se tomar cuidado apenas para que o valor monetário da pre-
miação não gere pressões fortes demais, de modo a estimular o
gaming. O teto identificado na experiência internacional, de 10%
da remuneração dos servidores, parece adequado. Assim, a prática
6 parece apropriada:

Prática 6: A modelagem do sistema deve adaptar-se em função


do tipo de atividade. Uma modelagem única parece ser ineficaz.
Tarefas (ou funcionários) com características diferentes precisam de
modelagens de remuneração variável também distintas. No nível
operacional, especialmente em setores que realizam tarefas pouco
interessantes, a implantação da PRP com valores monetários relati-
vamente baixos é altamente eficaz para a melhoria do desempenho.

Excetuando-se tarefas operacionais e pouco interessantes, as quais


são, claramente, alvos preferenciais de sistemas de remuneração
variável, uma questão mais estrutural aparece: deve-se implantar
PRP nas outras parcelas do funcionalismo? Uma resposta precisa
e definitiva a essa questão não parece possível neste momento.
Pode-se arriscar uma hipótese: uma vez que os efeitos positivos e
não mensuráveis da PRP parecem estar levando esse método a ser
implantado em governos de todo o mundo, pode-se inferir que
os ganhos derivados são suficientemente interessantes para que se
aceite os custos ocultos da perda de parte da motivação. Mas não há
consenso. Para atividades interessantes, outros fatores motivacionais
| 312 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

como possibilidade de participação em treinamentos especializados,


alocação do servidor em ações estratégicas e premiação e divulgação
dos bons resultados parecem mais eficazes.22 A remuneração variável
como fator motivador para esse tipo de tarefa parece muito limitada.

9.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho mostrou que os sistemas de remuneração


variável utilizados no setor público estão fracassando ou têm sucesso
muito limitado. As explicações para um desempenho insuficiente
estão reunidas em duas vertentes teóricas. A primeira origina-se dos
trabalhos no campo da Economia e se estrutura em torno da teoria
da escolha racional e da relação agente x principal. O argumento
dessa perspectiva é que boa parte dos problemas da remuneração
variável está relacionada aos incentivos modelados inadequadamen-
te e às características estruturais do serviço público (BURGESS;
RATTO, 2003). A segunda vertente, mais ligada às teorias psicoló-
gicas, explica que a remuneração variável, sob certas condições, não
tem motivado as pessoas a ter um melhor desempenho. Segundo
Weibel et al. (2010), no serviço público, os funcionários têm, em
geral, motivação intrínseca significativa, realizando tarefas em função
do senso de dever, lealdade e prazer. As pessoas realizam as atividades
porque acreditam nelas e, ao fazê-lo, têm a sensação de que estão
cumprindo seu dever. Nesse contexto, a implantação de sistemas
de incentivo monetário pode gerar efeitos negativos na motivação,
especialmente no caso de tarefas interessantes.

22 Argumento do professor Jobst Fidler (Hertie School of Governance), durante conferência


na Fundação Getúlio Vargas-SP entitulada Comparative Public Management Reform, em 21/07/2010.
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL POR DESEMPENHO NO SETOR PÚBLICO | 313 |

Discutiu-se, também, uma série de argumentos fundamentados


em pesquisas empíricas que indicaram fatores críticos de implementa-
ção, dentre os quais os gestores devem dedicar atenção: ao necessário
cumprimento de certas etapas na implementação, à importância de
metas difíceis, à relevância do fenômeno do gaming e às implicações
da cultura brasileira na modelagem de esquemas de incentivo.
Foram, ainda, identificadas as seguintes práticas que podem contri-
buir para melhorar os resultados dos sistemas de remuneração variável
no setor público brasileiro: 1) a construção de uma agenda estratégica
com indicadores e metas para toda a organização; 2) o estabelecimento
de resultados quantitativos, preferencialmente produtos/serviços, como
base da premiação; 3) o uso de metas e prêmios por equipes; 4) o uso de
uma unidade de inteligência contra o “gaming”; 5) a realização de um
processo formal e periódico de contratualização de metas e 6) a criação
de sistemas de incentivo diferenciados em função do tipo de tarefa.
Os argumentos analisados neste artigo não deixam dúvida de que
é importante melhorar o design e a implementação de modelos de
incentivo. De toda forma, o contraste entre a opinião pessimista dos
acadêmicos e a prática otimista dos gestores (que estão expandindo
o uso da PRP) pode ter explicações no desenho das pesquisas. Os
estudos acadêmicos procuraram enxergar sucesso ou fracasso dos
modelos de incentivo em função da análise de séries históricas de
indicadores de desempenho que estariam mensurando os principais
resultados das organizações. Esses estudos, dessa maneira, são inca-
pazes de enxergar outros efeitos positivos da PRP, como a melhoria
do desempenho em função do estímulo ao debate em torno de me-
tas e resultados. O incentivo a esse debate pode propiciar reflexões
relevantes, eventualmente alterando os produtos/serviços, e provocar
modificações sobre os processos e estratégias utilizados no ambiente
| 314 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

de trabalho. Um eventual redirecionamento de esforços, decorrente


dessa discussão, não é captado pelas pesquisas, uma vez que o foco
no desempenho pode se deslocar e não ser mensurado pela mesma
série histórica de indicadores. Colocar o desempenho no centro do
debate cotidiano da organização parece ter um importante — porém,
ainda pouco estudado — efeito positivo. Essa é uma das lacunas
que poderiam ser investigadas por novas pesquisas.
Outras duas lacunas do conhecimento poderiam ser preenchi-
das por novos estudos. Não obstante a crítica metodológica acima,
continua sendo indispensável o estudo sobre quais resultados estão
sendo obtidos pelas experiências de PRP em funcionamento no
governo brasileiro. E, finalmente, a experiência internacional nos
mostra, de forma inequívoca, que distintas modelagens e estratégias
de implementação são variáveis importantes para explicar fracassos
ou sucessos de sistemas de incentivo. Compreender melhor o impac-
to de diferentes modelagens e diferentes práticas de implementação
no contexto nacional é outro passo indispensável para gerar uma
perspectiva mais otimista para a utilização da remuneração variável
no setor público brasileiro.

9.8 REFERÊNCIAS

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CAPÍTULO 10

Práticas inovadoras em gestão de


pessoas: um estudo de caso no setor
de saúde

LUÍS FERNANDO ASCENÇÃO GUEDES


Doutor em Administração pela FEA/USP e Mestre
pela EAESP /FGV, graduado em Engenharia Elétrica
pela FEI. Professor da FIA.

ADORINDA LAMANA
Psicóloga e Pedagoga com especialização em
Administração Hospitalar pela Faculdade de Saúde
Pública da USP e Gestão da Atenção à Saúde pela
Fundação Dom Cabral (FDC). Diretora de Gestão
de Pessoas do Instituto da Criança (ICr).

MARIANA NUTTI DE ALMEIDA CORDON


Médica especialista em Administração Hospitalar
e Sistemas de Saúde pela EAESP/FGV. Diretora
Executiva do Instituto da Criança (ICr).

LILIANA VASCONCELLOS GUEDES


Doutora em Administração pela FEA/USP
e professora na mesma instituição.
PRÁTICAS INOVADORAS EM GESTÃO DE PESSOAS | 321 |

Assim como o sol derrete o gelo, a gentileza evapora


mal entendidos, desconfianças e hostilidade.
Albert Schweitzer (1875-1965)

O Instituto da Criança (ICr) foi criado formalmente em 1970


por um Decreto do Governo do Estado de São Paulo com o objetivo
de se reunir em uma unidade hospitalar específica todo o serviço
de pediatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (HCFMUSP). Em 1976, a totalidade
das atividades do ICr estava implantada em um novo prédio. Esse
instituto é hoje uma das sete unidades hospitalares que, juntas,
formam o complexo do HC-FMUSP, a cuja Superintendência
se subordina administrativamente. O ICr conta com o apoio da
Fundação Criança e da Ação Solidária Contra o Câncer Infantil,
parceiros responsáveis pela construção do prédio do Instituto de
Tratamento do Câncer Infantil (ITACI), que hoje abriga o Serviço
de Onco-hematologia do ICr.
O ICr, localizado no Jardim Paulista, junto ao HCFMUSP, é
uma instituição de grande porte: numa área de 25 mil m2, conta
com aproximadamente 1.500 colaboradores (entre funcionários e
| 322 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

terceiros) e 207 leitos. Em 2011, realizou2 mais de 5.800 inter-


nações e cerca de 520 mil procedimentos ambulatoriais. Somente
o Serviço de Onco-hematologia realizou naquele ano mais de 16
mil consultas médicas, 25 transplantes de medula óssea e cerca de
4.500 quimioterapias (FFM, 2011).
Associando a prática da medicina à pesquisa acadêmica de
ponta, desde 1999 o ICr é considerado pelo Ministério da Saúde
um Centro de Referência Nacional em Saúde da Criança (CRNS-
-Criança).
O ICr presta serviços ambulatoriais e internações predominan-
temente para pacientes provenientes do Sistema Único de Saúde
(SUS) e, em menor escala, para pacientes do sistema de saúde
suplementar. O atendimento do ICr abrange 21 especialidades em
pediatria e sua vocação principal são os procedimentos diagnós-
ticos e terapêuticos de alta complexidade, tais como transplantes
de fígado, rim e medula óssea; diálise especializada para crianças;
atenção ao recém-nascido de alto risco e terapia intensiva neo-
natal e pediátrica. A assistência especializada a pacientes graves,
frequentemente portadores de doenças crônicas e degenerativas,
foi se estabelecendo no decorrer da década de 1980, a fim de re-
duzir a mortalidade infantil e a morbidade por doenças pediátricas
agudas na Grande São Paulo. O Estado possui o segundo menor
número de mortes por mil nascimentos da Federação, atrás apenas
do Rio Grande do Sul (IBGE, 2010). O gráfico a seguir ilustra
a evolução taxa de mortalidade infantil do estado de São Paulo
entre 1921 e 2011.

2 Esses valores incluem os atendimentos realizados pelo Instituto de Tratamento de Câncer


Infantil do ICr.
PRÁTICAS INOVADORAS EM GESTÃO DE PESSOAS | 323 |

Gráfico 10.1 Evolução da taxa de mortalidade infantil do


estado de São Paulo (1921/2011)
TMI (mortes/1.000 nascimentos)

250

200

150

100

50

0
1921
1924
1927
1930
1933
1936
1939
1942
1945
1948
1951
1954
1957
1960
1963
1966
1969
1972
1975
1978
1981
1984
1987
1990
1993
1996
1999
2002
2005
2008
2011
Fonte: Dados brutos da SEADE (Fundação Estadual de Análise de Dados); elaboração dos autores.

Os procedimentos técnicos são de responsabilidade das áreas es-


pecialistas: pediatria neonatal, pediatria clínica e cirurgia pediátrica;
e das áreas de apoio técnico: enfermagem, fisioterapia, nutrição,
terapia ocupacional, farmácia clínica, serviço social, psicologia e
psiquiatria. Os processos de apoio administrativo incluem, entre
outros: gestão financeira, gestão de pessoas, tecnologia de informa-
ção em saúde, saúde suplementar, suprimentos, farmácia hospitalar,
engenharia hospitalar e assessoria de comunicação.
O faturamento do ICr compõe-se dos serviços estratégicos de
média e alta complexidade prestados ao SUS e dos serviços pres-
tados à rede de Saúde Suplementar. Os casos atendidos pelo SUS
são majoritariamente provenientes do estado de São Paulo (95%
dos atendimentos em 2010), mas o ICr também é referência para
outras partes do Brasil.
| 324 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Em 2007, o Sistema FMUSP/HC, por meio da Fundação Fa-


culdade de Medicina da USP, passou a ser beneficiário de algumas
doações realizadas a título de substituição de reparação de dano
moral coletivo, oriundas de ações civis públicas movidas pelo Mi-
nistério Público do Trabalho. Em 2011, essas doações totalizaram
R$ 1,5 milhão e foram utilizadas para modernização do Centro
Diagnóstico e do Centro Cirúrgico do ICr.

Gráfico 10.2 FaturamentoFaturamento


ICr (R$MM)ICr
(R$MM)
Faturamento ICr
2009(R$MM)
2010
2009 2010

$ 17,80 $ 19,40
$ 17,80 $ 19,40
$ 6,40 $ 7,60
$ 3,90 $ 4,30
$ 6,40 $ 7,60
SUS média e alta Saúde $ 3,90SUS
$ 4,30
complexidade suplementar estratégicos
SUS média e alta Saúde SUS
complexidade suplementar estratégicos
Fonte: Dados brutos do ICr (2010, p. 16); elaboração dos autores.
Composição das receitas do ICr (2010)
Gráfico 10.3 Composição
Composiçãodas
dasreceitas
receitasdedoICr
ICr(2010)
(2010)

Saúde
suplementar
Saúde
$ 7,60
suplementar
24%
$ 7,60
24%

SUS
$ 23,70
SUS
76%
$ 23,70
76%

Fonte: Dados brutos do ICr (2010, p. 16); elaboração dos autores.


PRÁTICAS INOVADORAS EM GESTÃO DE PESSOAS | 325 |

Em termos gerais, a adoção da estratégia organizacional que


atribui a visão do cliente como foco das atividades teve início em
princípios da década de 1980. A adoção de tal estratégia por or-
ganizações de saúde foi um processo lento e ainda hoje, encontra
resistência, notadamente em instituições do setor público. Teixeira
(1983) explica que “o hospital deve atender diferentes objetivos,
sendo o principal satisfazer as necessidades do paciente para tra-
tamento e cura”, mas ao mesmo tempo o autor salienta que “cada
profissional ou grupo interpreta o significado de atender esses
objetivos em função do seu próprio sistema de valores”. O foco
inicial das organizações hospitalares modernas privilegiava a aten-
ção sobre as atividades específicas, calcadas na prática médica. Esse
foco foi gradativamente sendo substituído pela gestão estratégica,
crescentemente integrada e coordenada, em que a tecnologia e a
visão humanista em relação ao atendimento aos pacientes passam a
desempenhar papéis de grande relevância, assim como as condições
de trabalho dos profissionais da área.

10.1 ASPECTOS FUNDAMENTAIS DAS INOVAÇÕES


NA ÁREA DE SAÚDE

A dinâmica da inovação tecnológica no setor de saúde apresenta


ao menos uma característica que a distingue daquela comumente
observada nos demais setores econômicos: a de situar-se majorita-
riamente na intersecção do sistema de bem-estar social e o sistema
nacional de inovação. O progresso científico-tecnológico é um dos
principais motores do desenvolvimento econômico de uma nação
e decorre de articulações institucionais complexas, nas quais as
| 326 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

empresas (por meio de seus laboratórios de P&D), as universida-


des, o governo, as instituições de pesquisa, de ensino e fomento
coordenam-se na busca pela competitividade e completude de sua
função social.
Há fundamentalmente três eixos da inovação tecnológica no
setor de saúde:
1. O complexo médico-industrial
A estreita relação entre pesquisa básica e aplicada que se observa
no setor de saúde demarca as fronteiras desse subsistema. A cadeia
produtiva do complexo médico-industrial é fundamentalmente
composta pelos provedores de assistência médica, redes de forma-
ção profissional específicas, indústria farmacêutica e indústria de
equipamentos médico-hospitalares. O complexo médico-industrial
está inserido no Sistema Nacional de Inovação (SNI), uma vez
que a base produtiva do setor farmacêutico constitui importante
alavanca do desenvolvimento econômico, da capacitação científica
e tecnológica do país.
2. O sistema biomédico de inovação
O foco desse subsistema de inovação em saúde é a contribuição
científica derivada da prática médica. Hicks e Katz (1996) identi-
ficaram que os hospitais britânicos formam um grupo de pesquisa
altamente produtivo e independente das indústrias, do governo e das
universidades. A participação dos hospitais britânicos, segundo os
autores, chegou a 25% da produção científica britânica nos anos 1980.
3. A rede universidade-indústria-sistema de assistência médica.
A inovação em saúde, assim como em outros ramos da econo-
mia, é multidimensional e demanda pluralidade de competências,
interesses e capacidades para seu pleno desenvolvimento. O estudo
realizado por Gelijns e Rosenberg (1995) identificou que a rede
PRÁTICAS INOVADORAS EM GESTÃO DE PESSOAS | 327 |

de pesquisa formada por universidades, indústria farmacêutica e


prestadores de serviço de assistência médica3 é fonte importante de
inovações, notadamente na área de tecnologia médica.
Diferente do que comumente ocorre na indústria e no setor de
serviços, a inovação tecnológica aplicada à área de saúde raramente
libera mão de obra. Novos equipamentos e materiais são desenvol-
vidos tendo em vista o benefício que se espera entregar ao paciente.
É dessa forma que com o passar do tempo as unidades de assistência
médica de ponta veem seus custos operacionais e seu orçamento
aumentar significativamente, o que demanda dos gestores formas
criativas de controlar despesas, identificar novas formas de receitas
e otimizar investimentos.
Uma vertente importante da inovação no setor de saúde é aquela
não tecnológica, mas sim gerencial. Esta tem como objetivo fun-
damental a elaboração de meios criativos e eficazes de mediar as
relações da corporação e seus colaboradores. São exemplos desse tipo
de inovação a gestão por competências, a participação nos lucros e
a jornada com horário flexível.
Outra dimensão da inovação é aquela aplicada ao produto ofe-
recido aos pacientes, notadamente pelos provedores de assistência
médica. Os hospitais particulares e outras instituições públicas
de vanguarda passaram a complementar os serviços médicos com
os de acolhimento, conforto e hotelaria, antes somente vistos em
hotéis de luxo. Instituições médicas de ponta vêm investindo em
treinamento do pessoal de linha de frente com vistas a oferecer
um padrão de atendimento compatível com o crescente nível de
exigência de pacientes e acompanhantes. Não é raro que hospitais
3 Nesse contexto, os prestadores de serviço de assistência médica são os hospitais
universitários e os centros médicos acadêmicos, ambos detentores de posição-chave no processo de
difusão das inovações.
| 328 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

e centros de diagnóstico focados em pacientes da classe A dispo-


nibilizem para seus clientes estacionamento com manobristas,
internet sem fio em todas as dependências; tenham hall de entrada
de hotel cinco estrelas, cardápio assinado por um chef; ofereçam
concertos e atividades lúdicas e tenham serviços de camareiras e
mensageiros.
As acomodações são outro exemplo de inovação, digamos, na
embalagem do produto. Padrões de móveis, cores e ornamentos e
iluminação buscam oferecer aos pacientes e seus familiares e acom-
panhantes uma sensação de aconchego que em nada lembra os
hospitais e centros de diagnóstico tradicionais de uma década atrás.
São exemplos desse conceito as novas unidades de internação na
maternidade, no berçário, na Unidade de Terapia Intensiva (UTI)
e no centro cirúrgico do Hospital Santa Catarina, em São Paulo.
As instalações do ITACI, por sua vez, são divididas em três andares
temáticos, Água, Terra e Ar, todos decorados de forma lúdica com
o personagem Nino, mascote da instituição.
Não importa qual a dimensão da inovação que seja analisada
ou implementada, o bem-estar do paciente e de seus familiares
e acompanhantes é o princípio norteador básico. Sendo assim, é
necessário antes de tudo conhecer os clientes com a maior riqueza
de detalhes possível, sua cultura, valores e as regras sociais do seu
grupo. Os provedores de assistência médica que aspiram cativar
seus clientes têm a importante e difícil missão de oferecer trata-
mento médico de ponta, humanizado e num ambiente o mais
agradável possível, dadas as circunstâncias que cercam a prestação
do serviço.
PRÁTICAS INOVADORAS EM GESTÃO DE PESSOAS | 329 |

INOVAÇÕES NO ICR
O Instituto da Criança é submetido ao orçamento público do
Estado de São Paulo, com todas as decorrências legais e burocráticas
para aquisição de equipamentos, manejo de cargos e salários e políti-
cas de progressão de carreira que decorrem dessa submissão. Em que
pesem essas limitações (quando se compara com instituições privadas
semelhantes em escopo), o ICr tem consistentemente desenvolvido e
adotado inovações de grande impacto para seus pacientes, familiares
e acompanhantes, entre as quais podemos destacar:
•  Assistência ao paciente com abordagem de equipe multidisci-
plinar formada por assistentes sociais, educadores, enfermeiros,
fisioterapeutas, médicos, nutricionistas, psicólogos e terapeutas
ocupacionais.
•  Pioneirismo em projetos de humanização do atendimento
médico, com destaque para o projeto Mãe Acompanhante (que
viria a ser adotado como lei alguns anos depois).
•  Instituição de serviço de camareira no processo de trabalho
da área de Hotelaria dentro dos hospitais públicos.
•  Transplante de fígado intervivos em crianças.
•  Prescrição eletrônica completa, incluindo dieta e dosagem de
medicamentos conforme peculiaridades do paciente.
•  Modelo de gestão por competências.
•  Instituição do Programa de Diagnóstico Amigo da Criança,
que utiliza micrométodos nos procedimentos diagnósticos com
crianças. O programa, cujo mote é: “Mais raciocínio clínico,
menos exames complementares”, abrange desde procedimentos
do time de linha de frente até o desenvolvimento e utilização
de equipamentos especiais. Os pilares do desenvolvido foram
os seguintes:
| 330 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

»» Utilização do menor volume possível de sangue nas aná-


lises laboratoriais.
»» Escolha de métodos imagenológicos que utilizem doses
mais baixas de radiação ionizante ou que efetivamente não
a utilizem.
»» Redução das indicações de anestesia ou mesmo de sedação
em pré-escolares, escolares e adolescentes a serem submetidos
a exames imagenológicos ou funcionais complexos.
•  Integração eletrônica do sistema de consulta a resultados de
exames. O corpo médico do ICr e os pacientes ou responsáveis
podem verificar o resultado dos exames realizados na instituição
por meio de qualquer equipamento conectado à internet, no
Portal do Paciente do Instituto da Criança.
Observa-se que a adoção de inovações no ICr tem sido pautada
pelo alinhamento estreito com a estratégia da instituição, que visa
não somente o tratamento tecnicamente avançado, no que diz
respeito ao conhecimento médico, mas também a humanização
do relacionamento do time de linha de frente com os pacientes e
seus familiares.

GESTÃO DE PESSOAS NA ÁREA DE SAÚDE


O trabalho na área de saúde é fundamentalmente caracterizado
pela incerteza e complexidade. Entre outros fatores, contribuem
para essas características o caráter pouco previsível da demanda, a
descontinuidade da operação, a complexidade intrínseca da prática
da medicina e a eventual flutuação na disponibilidade de recursos
(AMANCIO FILHO, 2004). A atuação do profissional de saúde é
tal que se torna pouco prática a adoção de uma cartilha de procedi-
mentos rígidos; o que se espera, então, é o exercício do diagnóstico
PRÁTICAS INOVADORAS EM GESTÃO DE PESSOAS | 331 |

situacional, amparado pelas políticas gerais da instituição. Esse


cenário demanda um novo enquadramento da lógica de operação
e mesmo de avaliação de sua produtividade e desempenho.
Quando voltamos nossa atenção para uma organização pública
de saúde, notamos que são particularmente intrincadas as relações
dos diversos atores: pacientes e seus familiares, profissionais de saúde,
gestores, fornecedores, dirigentes executivos, facilitadores políticos,
segmentos organizados da sociedade, órgãos de fiscalização esta-
tal, entre outros. A despeito da dinâmica dos acontecimentos em
organizações públicas ser distinta do ambiente competitivo, novos
paradigmas de operação são eventualmente internalizados, com os
desafios próprios de uma organização pública (FONTENELE, 2010).
Nesse contexto, demanda-se que entre os requerimentos da dinâmica
profissional, o trabalhador possua competências que se desdobram
na capacidade de diagnóstico, de solução de problemas e tomada de
decisão sob ambiente de incerteza, além de possuir disposição para
atuar em equipe e se auto-organizar (AMANCIO FILHO, 2004).
Para lidar com esse desafio, a gestão de pessoas consiste de um
conjunto de políticas e práticas que buscam gerenciar e orientar o
comportamento humano no trabalho, de forma a conciliar as expec-
tativas da organização e do indivíduo (FISCHER, 2002; DUTRA,
2002). Na organização, a coordenação dessas políticas e práticas
é responsabilidade da área de Recursos Humanos (RH), que tem
como principais papéis: (1) administração de estratégias de recursos
humanos alinhadas à estratégia organizacional, (2) desenvolvimento
de processos eficientes para gerir os colaboradores, (3) administração
da contribuição dos colaboradores, incluindo o desenvolvimento
de competências e o comprometimento e (4) gestão da mudança
(ULRICH, 1998).
| 332 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A área de RH deve lidar com algumas especificidades em uma


instituição de saúde, entre elas, a estrutura organizacional típica de
organizações dessa natureza — que deve idealmente levar em
conta a centralidade pouco usual do trabalho exercido pelos
profissionais da área e sua relativa autonomia operacional, ao
mesmo tempo em que deve considerar a necessidade de pro-
cedimentos estáveis, previsíveis e nos quais se aspira máxima
eficiência operacional. Segundo Mintzberg e Quinn (2001),
a síntese de ambas as demandas enseja uma estrutura que é ao
mesmo tempo democrática, flexível e negociada (voltada para
os profissionais da área médica) e mecânica, rígida e hierárquica
(voltada principalmente, mas não somente, para as equipes de
apoio). Coordenar essas visões demanda da área de RH consi-
derável habilidade, tanto no trato com os profissionais das áreas
de apoio, que podem se ressentir da assimetria de tratamento,
quanto dos profissionais da área médica, ansiosos por mais li-
berdade de atuação e menos afeitos a seguir regras e protocolos
administrativos. É nesse contexto também que se ressalta o papel
fundamental da liderança que, além de ser responsável pela apli-
cação das práticas de gestão de pessoas, pode atuar como agente
ativo de coesão entre as subculturas médica e administrativa,
mediadora de conflitos e promotora do alinhamento estratégico
da organização (VENDEMIATTI et al., 2010). Matus (1993)
sugere que o poder de fato nas organizações de saúde é compar-
tilhado por vários grupos, o que denota a complexidade do papel
desempenhado pela alta liderança da organização.
Há dois outros aspectos da dinâmica da administração hos-
pitalar que outorgam à área de RH papel de crescente relevân-
cia: a administração dos colaboradores que estão submetidos a
PRÁTICAS INOVADORAS EM GESTÃO DE PESSOAS | 333 |

considerável e reiterado stress, e a demanda por humanização


no relacionamento com pessoas fragilizadas por enfermidades
e familiares desgastados pelo sofrimento. Nesse contexto, os
processos de gestão de pessoas, que incluem movimentação, de-
senvolvimento e valorização (DUTRA, 2002), precisam ir além
das melhores práticas utilizadas nas organizações em geral, sendo
necessário buscar alternativas que auxiliem os colaboradores a
lidar saudavelmente com o stress, que estimule o aprendizado
contínuo e a iniciativa competente, que facilite o crescimento
pessoal e que motive os colaboradores a humanizar seus esforços,
tendo o paciente e seus familiares como centro da sua atenção
profissional.

10.2 A ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS NO ICR

As bases da estrutura organizacional da área de gestão de pessoas


foram estabelecidas em 1998, tendo sido reformuladas em 2003,
com a adoção da gestão por processos. Foi estimulado o desen-
volvimento de competências estratégicas para o ICr, entre elas, a
liderança, o trabalho em equipe e a capacitação técnica, visando
autonomia operacional, integração e agilidade nos processos deci-
sórios (LAMANA, 2010).
O ICr implantou em 2009 um modelo de gestão por compe-
tências, com objetivo de estabelecer uma base única sobre a qual
pudesse ser elaborado um método de avaliação objetivo e sistemático
de seus colaboradores. Para tanto, foram inicialmente definidos os
perfis profissionais ideais de cada atividade (alinhados aos objetivos
organizacionais), e em seguida realizada a primeira avaliação de
| 334 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

desempenho dos gestores e a primeira avaliação de competências


dos colaboradores.
Pode-se entender a avaliação de desempenho como, em última
instância, um instrumento de tomada de decisão, que fornece in-
formações para os processos de promoção, premiação e capacitação.
A definição da mecânica de avaliação (aspectos a serem medidos,
coleta de dados, consolidação dos resultados) é tão importante
quanto os resultados, já que ela imprime credibilidade ao pro-
cesso. A avalição de desempenho é um instrumento de mudança
sofisticado e útil, mas assenta-se sobre a credibilidade da área de
gestão de pessoas.
Ressalte-se que tanto a avaliação de desempenho dos gestores
quanto a avaliação de competências dos colaboradores constituíram
uma inovação no Complexo HC e demandaram das lideranças do
ICr considerável habilidade política e capacidade de articulação,
tanto com os colaboradores, quanto com a alta direção. Foram
aspectos críticos dessa fase a comunicação acerca dos objetivos do
processo, a forma como seria conduzido, a diminuição das tensões
que eventualmente gerou nos colaboradores e o ajuste das expecta-
tivas em relação à progressão de carreira e, principalmente, salário.
Com base nos gaps de competência identificados, foi elaborado a
quatro mãos (gestor e colaborador) um plano de ação conjunta.
Além disso, com objetivo de subsidiar as avaliações de desempe-
nho posteriores, foi desenvolvida uma ficha de acompanhamento
de desempenho do colaborador, por meio da qual passou a ser
possível o acesso e o acompanhamento sistêmico de sua atuação
profissional (LAMANA, 2010).
PRÁTICAS INOVADORAS EM GESTÃO DE PESSOAS | 335 |

10.3 PROJETOS DE HUMANIZAÇÃO

O comportamento dos colaboradores da área de saúde em geral


e, em particular, nos hospitais, tem sofrido uma mudança sensível
nos últimos anos, uma vez que os profissionais estão substituindo
uma visão predominantemente tecnicista por outra que agrega à
técnica o lado humano do tratamento dos pacientes e da relação
com seus familiares e acompanhantes. Sentimentos e emoções,
cooperação e competição, amizades e antipatias, constituintes
das regras gerais de convivência em sociedade, são cada vez mais
considerados nas práticas hospitalares, fazendo parte inclusive
dos procedimentos e normas. Mais do que uma prática de gestão
de pessoas, instrumentalizada pelo Grupo de Trabalho em Hu-
manização, a humanização hospitalar está no centro do alvo da
estratégia do ICr e consolidada na missão do instituto. Assim o
relatório de atividades afirma a importância de “prestar assistência
de alta complexidade e de excelência ao recém-nascido, criança e
adolescente, por meio de atendimento humanizado e interdisci-
plinar, integrado ao ensino e à pesquisa”.
Essa filosofia de tratamento dos pacientes e familiares estende-se
também à relação estabelecida entre a instituição e seus colabora-
dores, e está aí uma chave importante do sucesso do programa: o
discurso de estreitar o relacionamento com pacientes e familiares,
respeitando-os até em detalhes que poderiam, à primeira vista,
parecer irrelevantes, é também levado para a prática de gestão de
pessoas, afetando igualmente a relação colaboradores-organização,
o que é percebido pelos profissionais.
A dimensão das duas listas de práticas e projetos de humanização que
citamos a seguir ilustra por si só a importância que o tema tem para o
| 336 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

ICr, sendo, não por acaso, um dos principais diferenciais do instituto.


As práticas e projetos têm como alvo os pacientes e seus familiares,
colaboradores; e algumas propostas servem a ambos os públicos.
•  Para os pacientes e acompanhantes:
»» Acompanhamento dos pacientes em procedimento en-
doscópico.
»» Atendimento preferencial para pacientes com necessi-
dades especiais.
»» Comemoração de aniversário no ICr.
»» Biblioteca digital do ITACI.
»» Biblioteca Viva em Hospitais.
»» Brinquedoteca.
»» Caminhada do Dia Nacional do Combate ao Câncer.
»» Acompanhamento escolar para pacientes internados
(Classe Hospitalar).
»» Comissão de assistência religiosa.
»» Comitê juvenil.
»» Conhecendo Quem Faz (visita guiada ao hospital para
pacientes internados).
»» Conselho familiar.
»» Contadores de história (em parceria com a Associação
Viva e Deixe Viver).
»» Doutores da Alegria.
»» Educação nutricional para pacientes internados.
»» Exposição de talentos.
»» Farmácia 24h para pacientes do pronto-socorro e egressos
da internação.
»» Horário de visita ampliado.
»» Jornal mirim.
PRÁTICAS INOVADORAS EM GESTÃO DE PESSOAS | 337 |

»» Mãe acompanhante.
»» Método mãe-canguru.
»» Nutrição - Uma Tarde Especial.
»» Oficina de culinária, de dobradura e de artesanato.
»» Ouvidoria.
»» Pet Smile.
»» Posso ajudar.
»» Projeto CRIARTE.
»» Recreação na sala de espera do ambulatório.
»» Sala de descanso para acompanhantes.
»» Sessão pipoca (ITACI).
»» Teatro de fantoches.
»» Uso de vídeo game para assistência à fisioterapia.
»» Uso de brinquedos para orientação sobre procedimentos
de enfermagem.
•  Para os colaboradores:
»» Assistência médica.
»» Avaliação física.
»» Blitz postural.
»» Boletim perfeito (reconhecimento de profissionais de
destaque da enfermaria).
»» Caminhada.
»» Comemoração dos aniversariantes do mês.
»» Confraternização de final de ano.
»» Dia feliz (folga no aniversário do colaborador).
»» Exposição de fotos (Projeto Flashes do ICr).
»» Festas temáticas.
»» Flexibilização de horário para facilitar frequência em
cursos de qualificação.
| 338 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

»» Ginástica laboral.
»» Grêmio recreativo.
»» Jornal da Nutrição.
»» Momento homenagem.
»» Prata da casa.
»» Programa de Calorias Inteligentes.
»» Programa de integração para novos colaboradores.
»» Programa de qualidade de vida.
»» Programa Saia da Rotina.
»» Projeto Mãos que cuidam (convênio com massoterapeutas
que atendem on site).
»» Projeto Speak English.
»» Projeto Viva Leve.
»» Yoga no ICr.
Foram realizadas 118 atividades de humanização durante 2010,
divididas por público e área temática da forma como apresentada
nos gráficos a seguir.

Gráfico 10.4 Atividades de humanização

Total de ações de humanização por publico alvo

118

44 47
27

Total de ações Público interno Público externo Público interno


e externo

Ações por temática das ações


Total de ações Público interno Público externo Público interno
e externo
PRÁTICAS INOVADORAS EM GESTÃO DE PESSOAS | 339 |

Gráfico 10.5 Ações por temáticas

Ações por temática das ações

Arte e cultura
13% Gestão
Fest. e EV. comemorativos
38% Ambiência
22%
Educação permanente
Acolhimento
7% Outro
14% 4%
2%

De acordo com Przeworski (1998, p. 46), “os agentes devem bene-


ficiar-se quando se comportam a favorecer o interesse público e devem
sofrer algum prejuízo quando não o fazem”. É dessa forma que um
conjunto bem elaborado de regras e incentivos induzem o engajamento
dos colaboradores em ações que tenham sido estrategicamente definidas.
Além disso, as instituições de saúde de ponta em geral, e o ICr
em particular, têm investido na capacitação de seus colaboradores em
aspectos que vão além da excelência técnica e alcançam a capacidade
de expressão e comunicação (tanto inter-pares quanto entre liderança
e liderados), as capacidades sociais (negociação, cooperação, trabalho
em equipe, por exemplo) e as habilidades comportamentais (como
iniciativa, criatividade, ética, abertura à mudança).
A humanização das relações com os pacientes e seus familiares, o apri-
moramento constante da qualidade técnica do atendimento, a avaliação
sistemática dos colaboradores e a renegociação dentro do possível das
relações de trabalho são aspectos de complexa coordenação e aplicação
prática, mas que vem sendo conduzidos de forma bem-sucedida no ICr,
constituindo os fundamentos do sucesso do instituto.
| 340 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

10.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O profissional típico da área de saúde está exposto a diversos


fatores potenciais de stress, entre eles longas jornadas de trabalho,
alta demanda de trabalho, necessidade de aprimoramento técnico
constante, exposição a riscos biológicos, assim como o contato
frequente com o sofrimento dos pacientes e familiares e, muitas
vezes, com a morte (BENEVIDES-PEREIRA, 2002). O bom de-
sempenho desses profissionais requer não somente controle mental
e emocional muito maior do que a média de outras profissões, mas
também condições de trabalho adequadas aos desafios da atividade.
Uma das práticas de gestão de pessoas adotadas pelo ICr que
chama atenção pela relevância que exerce no dia a dia dos colabores
é a avaliação de desempenho tanto de gestores quando dos profis-
sionais não gestores de pessoas. Assim como indica Böhmerwald
(1996), por muito tempo a avaliação de desempenho esteve rela-
cionada fundamentalmente à promoção por mérito, o que causava
frustração e reações contrárias quando tal promoção não acontecia.
A falta de cultura das organizações do setor público em estabelecer
metas e avaliar a produtividade não auxilia na distinção, por parte
dos colaboradores, de objetivos organizacionais mais relevantes e,
em alguma medida, dificulta a adoção de ações de ajuste frente a
desvios de desempenho.
O estudo do caso do ICr ilustra o papel fundamental da liderança,
seja em articular a estratégia e desdobrá-la em projetos coordenados,
seja em exercitar o comportamento que espera do time de liderados.
O sucesso do projeto de humanização é um exemplo de ambas as
práticas e chama a atenção pelo engajamento e entusiasmo dos
colaboradores. O que se observa no ICr é uma liderança atenta às
PRÁTICAS INOVADORAS EM GESTÃO DE PESSOAS | 341 |

demandas (articuladas ou não) de seus profissionais e considerável


dose de criatividade para fazer frente às necessidades que são iden-
tificadas. As ações propostas no instituto consolidam, pela prática
reiterada, uma cultura ao mesmo tempo inovadora e estrategica-
mente alinhada aos objetivos da organização.
Nota-se também que a dignificação do trabalho do time de linha
de frente não pode se ater exclusivamente às questões salariais, em-
bora o tema continue sendo central para os colaboradores e gestores.
Há diversas outras formas de valorizar o trabalho, e um exemplo
claro pode ser visto no projeto Speak English do ICr, que subsidia
o curso de inglês, em horário de expediente, para os colaborado-
res que obtêm resultados positivos nas avaliações de desempenho
formais. Importante ressaltar que os recursos necessários para sub-
venção desse projeto não derivam do orçamento público, mas são
captados em outras fontes de renda, manejadas criativamente pela
liderança do ICr.
A inovação aplicada à gestão de pessoas no setor público tem
ainda considerável caminho a ser percorrido, tendo em vista o de-
senvolvimento que tem sido observado no setor privado. Inovações
em geral e, em particular, na área de RH, encontram resistências
por todo caminho, o que exige dos líderes inovadores doses extras
de criatividade, empenho e resiliência. O caso do ICr mostra que,
mesmo sob o domínio das regras de contratação, cargos e salários,
movimentação de pessoal e tantas outras normas que regem o setor
público, é possível inovar na prática diária da gestão de pessoas e
políticas de RH, produzindo resultados positivos e duradouros, não
somente para os colaboradores, mas também para os clientes, que
nesse caso são merecedores da maior consideração possível.

| 342 | CONTRIBUIÇÕES PARA A GESTÃO DE PESSOAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

10.5 REFERÊNCIAS

AMANCIO FILHO, A. Dilemas e desafios da formação profis-


sional em saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v. 8,
n. 15, p. 375-80, mar./ago. 2004.
BENEVIDES-PEREIRA, A. M. T. Burnout: o processo de adoe-
cer pelo trabalho. In: Benevides-Pereira (Org.). Burnout: quando
o trabalho ameaça o bem-estar do trabalhador. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2002. p. 21-91.
BOHMERWALD, Pedro. Gerenciando o sistema de avaliação
de desempenho. Belo Horizonte: UFMG, Escola de Engenharia,
Fundação Cristiano Ottoni, 1996.
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e perspectivas, São Paulo: São Paulo, 2002.
FISCHER, A. L. Um resgate conceitual e histórico dos mode-
los de gestão de pessoas In: FLEURY, M.T. (Org.) As pessoas na
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INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTI-


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de vida da população brasileira. Estudos & Pesquisas: Informação
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VENDEMIATTI, M. et al. Conflito na gestão hospitalar: o papel
da liderança. Revista Ciência & Saúde Coletiva, n. 15 (Supl. 1),
p. 1301-1314, 2010.
Esta obra foi composta em Adobe Garamond Pro
e impressa em papel offset 90 g/m²
pela Prol Editora Gráfica em fevereiro de 2013.

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