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Comércio, Cultura, Lazer e Regeneração Urbana


N. Vitoriano (a)

(a) Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, nuno.vitoriano@gmail.com

Resumo
O último quartel do século XX trouxe diversas modificações ao comércio e consumo urbano, nomeadamente com o
aparecimento de centros comerciais e diversas dinâmicas de organização do espaço urbano, como a formação de novas
centralidades decorrentes dessas novas formas de consumo. Os projetos de regeneração urbana estão na base da
construção de equipamentos ligados ao comércio, consumo e cultura, pois a cidade carece de utilizar áreas devolutas que
se tornem úteis, satisfazendo os desejos das populações e as necessidades das economias locais. A regeneração urbana é
fundamental para a renovação e reinvenção das cidades, pois áreas obsoletas nascem novamente com as intervenções
realizadas em locais que outrora estavam completamente amorfos. A construção de centros comerciais e a revitalização
de áreas degradadas das cidades, transformadas em bairros culturais, ou a edificação de complexos desportivos e outras
âncoras de desenvolvimento e atratividade local, são fundamentais para o equilíbrio e economias urbanas.

Palavras-chave: regeneração urbana; comércio; consumo; cultura; centros comerciais

1. Os centros Comerciais: âncoras de revitalização urbana

Com a descentralização das áreas comerciais tradicionais e com a expansão da cidade para as áreas
suburbanas, pela proliferação de acessibilidades e aumento dos mercados consumidores, a consolidação do
papel dos centros comerciais é uma evidência para as sociedades e o ato de fazer compras encontra-se entre
as atividades sociais mais importantes do cidadão urbano, passando a ser feita nestes locais. Para Cachinho
(2002:171), “a evolução dos centros comerciais nos últimos anos alcançou a sua maturidade nos Estados
Unidos da América, mas eventualmente inspirados nas galerias comerciais europeias, tendo o
desenvolvimento económico e crescimento urbano norte-americano sido fundamental para a expansão destes
empreendimentos”. Mas estes espaços também assumem um papel importante na constituição de novas
centralidades e reforço dos centros das cidades. Segundo Crang (2005:373), “fazer compras tornou-se numa
experiência onde as pessoas vêm e são vistas por outros consumidores, é uma atividade social”. Por isso os
centros comerciais são relevantes para esta circulação de pessoas, já que possuem caraterísticas únicas que os
diferencia das lojas tradicionais de rua como serem espaços climatizados e confortáveis, habitualmente
fechados, terem horários alargados nos dias de semana e ao fim de semana, ampliarem as opções de compra e
promoverem o convívio por serem espaços delimitados (Cachinho,2009). Wrigley e Lowe (2002:23)
defendem “que as principais formas de ambientes de comércio da era pós-moderna são os centros
especializados, as megaestruturas centrais e os centros comerciais suburbanos, numa referência às formas
encontradas nos EUA”. Estas megaestruturas centrais compreendem lojas e serviços que atraem e servem
consumidores locais e que podem ser um conjunto de edifícios ou de quarteirões ou simplesmente um centro
comercial que lidera a atividade numa área nuclear urbana. Em relação ao comércio tradicional de rua,
assiste-se a uma complementaridade ou concorrência com os centros comerciais, em que estes aumentem a
oferta disponibilizada, mas todavia contribuem para o encerramento e diminuição das vendas de muitos
pontos de retalho (Cachinho,2009).
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É por esta razão que a importância da localização dos centros comerciais nas áreas urbanas é uma prioridade
no planeamento municipal para evitar a estrangulação desta atividade económica ou contribuir para
negatividades sociais, como o desemprego, a desertificação dos centros ou a exclusão de consumidores. Para
Cachinho (2002:231-232), “os centros comerciais são assim por excelência os espaços de síntese da
sociedade pós-moderna, já que nenhuma outra forma de urbanismo comercial consegue reunir tantas funções
num mesmo espaço e responder com eficácia aos interesses da oferta e da procura, constituindo um bom
negócio para os promotores e uma alternativa ao centro para os retalhistas”.

Figura 1 - Via Catarina, localizado no centro histórico do Porto, e El Corte Inglés, produto da regeneração urbana no
centro de Lisboa, têm papel fundamental na captação de consumidores para essas áreas. Fonte: Google.com/images

A regeneração urbana e outros processos de requalificação e renovação possibilitaram que os centros


comerciais se instalassem em áreas preferenciais da cidade, contribuindo para a sua revitalização, ancoradas
nesses complexos, muitos deles de âmbito regional, pela atratividade arquitetónica e funcional que possuem.
Há que distinguir alguns modelos de empreendimentos localizados nos centros, mas todos eles contribuem
com impactos, atendendo à sua localização. Cachinho (2005:58) resume as positividades desses impactos no
centro da cidade “ao fato de os centros se tornarem âncoras da revitalização dessas áreas e multiplicando
motivos para a sua frequência, modernizando a atividade e elevando o estatuto dessa área urbana” (ver tabela
I). Os empreendimentos comerciais edificados nos centros através de processos de intervenção no espaço
consolidado ou livre, pelas oportunidades de consumo, mix comercial e arquitetura são importantes
locomotivas de revitalização dessas áreas, sobretudo em lugares classificados como cidades médias ou
periféricas, pois dão acesso a emprego e à formação, melhoram a imagem dos lugares, incrementam a
integração e coesão social, promovem a atração de novos habitantes para bairros próximos, fortalecem as
acessibilidades, proporcionam mais segurança, limpeza e conetividade entre os lugares, fornecem mais
oportunidades para os investidores locais e reforçam a qualidade de vida.
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Tabela I - Positividades e negatividades da localização dos centros comerciais nas áreas centrais das cidades. Adaptado
de Cachinho (2005) – Avaliação dos impactos dos centros comerciais.

2. A regeneração urbana ancorada no comércio e no consumo

No Reino Unido, onde os processos de regeneração urbana se tornaram exemplos para aplicações futuras de
benchmarking, como os casos da revitalização do centro de Birmingham (Jayne, 2006:187), os canais
fluviais de Leeds (Speake e Fox, 2002:27) ou o desenvolvimento planificado de centros comerciais como
âncora da regeneração urbana em várias cidades britânicas, caso do West Quay em Southampton. Este
empreendimento comercial com uma área de intervenção próxima dos cem mil metros quadrados foi
inaugurado em 2000 no antigo espaço da fábrica Pirelli Cable Works. Tornou-se no centro líder da costa sul
britânica, teve um impacto fundamental na identidade e forma urbana da cidade e revela-se um grande
exemplo de espaço comercial resultante da regeneração urbana. Para além de espelhar a política britânica de
regeneração dos centros urbanos, a estratégia comercial é baseada no desenvolvimento e promoção de
lugares de sucesso, promovendo-se a urgente renovação urbana para manter a viabilidade económica.
Southampton foi pioneira neste tipo de projetos (Lowe,2005).
Mas nem todas as cidades foram capazes de ultrapassar o legado industrial ou o fizeram de forma eficiente,
como por exemplo a cidade industrial de Stoke-on-Trent, no Reino Unido, que decaiu economicamente,
com elevado desemprego provocado pelo encerramento das fábricas, muito agarrada ao seu passado
industrial sem uma classe criativa ou uma dinâmica regenerativa ancorada no comércio e no consumo
(Jayne,2006).
A importância do comércio e consumo é fundamental para estes processos de revitalização dos lugares
urbanos, quer a nível económico ou social. As cidades vão ancorar a regeneração urbana no comércio e no
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consumo pela capacidade de atração que devolve aos centros e a localizações específicas um potencial de
consumidores internos e turistas capazes de revitalizar as economias locais. A construção de centros
comerciais em áreas com ocupação obsoleta de antigas funções ou a requalificação de edifícios antigos, em
muitos casos passa a dotá-las de flagships comerciais que alteram a paisagem, elevando o estatuto da cidade
na hierarquia urbana e conferindo-lhe a mudança para um patamar superior a nível regional, nacional ou
mesmo supranacional, dependendo da escala e da capacidade do mercado de cada lugar. A regeneração
urbana possibilitou que os centros comerciais se instalassem em áreas preferenciais da cidade, contribuindo
para a revitalização dessas áreas, ancoradas nesses espaços de consumo e lazer (Cachinho,2005).

Figura 2 - West Quay, Southampton (Reino Unido). Fonte: Lowe (2005)

3. Cultura e Lazer: revitalizar áreas centrais e atrair públicos

A economia pós-industrial é alicerçada no desenvolvimento da atividade política e económica que torna


invisível o passado industrial bem como uma economia criativa e cultura que melhore a habitabilidade da
cidade (Jayne,2006). Vários exemplos de intervenções na cidade consolidada, como a requalificação de
edifícios, renovação do edificado em áreas de dimensão razoável, reutilização de unidades industriais e
revitalização de áreas degradadas centrais, poderão ser encontrados em diferentes centros urbanos que
possuem manifestações culturais diversas e cujas diferenças se podem encontrar na arquitetura ou na
disposição espacial e ainda em infraestruturas criadas propositadamente para demonstrar essas
manifestações culturais. Importa neste domínio realizar uma análise a várias escalas urbanas, do global para
o local. Para Jayne (2006:189), “a cultura assume um papel de atração de novos públicos, como no caso de
Singapura, transformada em cidade global das artes”.
Nesta cidade-estado realizam-se anualmente centenas de congressos, são fomentadas estratégias para
importar a cultura ocidental e estes processos foram ancorados na regeneração da área industrial ligada ao
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porto comercial com a instalação de vários equipamentos culturais, comerciais e turísticos, como o
complexo Marina Bay Sands, o centro de congressos ou o Gardens by the Bay, um parque temático
ambiental igualmente erguido na área de intervenção do porto.

Figura 3 - Singapura: Gardens by the Bay e Marina Bay Sands Fonte: http://yoursingapore.com

Parafraseando Cachinho (2010:3), “o mix das pessoas que vive nas cidades é mais importante que a
regeneração assente na construção civil, devido às relações sociais que produzem competitividade e
especialização na economia pós-industrial”. O consumo associado à cultura tornou-se essencial para definir
a cidadania e construir identidades e a presença de uma classe criativa é a chave para as cidades manterem a
competitividade, inserindo-se no domínio cultural, incluindo uma grande diversidade de grupos, desde os
artistas aos gays, gestores de topo e turistas cosmopolitas (Florida,2004). Muitos exemplos se podem
apontar neste domínio, especialmente na Europa e nos EUA, com a transformação de lugares em bairros
culturais, ancorados nos negócios criativos e nas artes. Esses bairros culturais são mecanismos da
intervenção na cidade constituindo muitas vezes processos de regeneração ou requalificação urbana nas
áreas centrais em declínio e surgem a várias escalas, combinando estratégias para o grande consumo das
artes e produção cultural, marcando lugares urbanos como o Soho em Londres, o Lower East Side em Nova
Iorque ou a margem esquerda do Sena em Paris, pejados de história, aparecendo quase como por acidente ou
pelo menos no desenvolvimento geral dessas cidades através do tempo (Montgomery,2003). Estes bairros
culturais são igualmente meios para criar altos valores de propriedade em novas áreas urbanas gentrificadas.
Para Montgomey (2003:296), “a atividade nestes bairros deve incluir produção cultural (objetos, produtos,
serviços) bem como consumo cultural (espetáculos de vária ordem, museus ou exposições) e em que as salas
onde se realizam esses consumos devem ser variadas em dimensão e proporcionar ainda dinâmica às ruas
desses bairros”. De referir ainda que os bairros culturais de sucesso conjugam a vida diurna com a animação
noturna havendo uma grande correlação entre a economia ligada à noite. As economias culturais de sucesso
são caraterizadas por elevados volumes de negócio, constante inovação e aparecimento de novos produtos e
serviços, fornecedores e clientes, operando junto das indústrias culturais e criativas (Montgomery,2003).
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Por outro lado, os grandes eventos que surgem nas cidades são ligados ao desporto e à música. Os Jogos
Olímpicos ou os campeonatos mundiais e europeus de futebol sénior têm sido responsáveis nos últimos anos
por grandes operações de regeneração urbana nas cidades-sede desses eventos. A construção de estádios e
infraestruturas associadas realiza-se normalmente em áreas devolutas ou ocupadas por outras funções
englobando enormes investimentos público-privados que deveriam revelar ou revelaram proveitos
financeiros para equilibrar os investimentos realizados. As metrópoles de Londres, Pequim, Doha, Atlanta,
Sidney, entre outras, são exemplos de avultadas transformações nas áreas urbanas para estes fins. Estas
novas construções potenciam o consumo nos locais onde se realizam, são âncoras das centralidades e
recebem milhares de visitantes.
Os espetáculos musicais, nomeadamente os festivais urbanos, provocam a renovação ou regeneração urbana
para receber os milhares de visitantes e infraestruturas necessárias à sua realização. Embora de curta
duração, as mais-valias que trazem para as áreas urbanas justificam a aposta das autoridades locais no
licenciamento e apoio a estes eventos, como é exemplo o Rock in Rio Lisboa. Outros projetos relacionados
com a indústria do lazer também estão ligados à regeneração urbana, como o parque de diversões do Prater
em Viena (datado de 1892 e antiga área industrial) ou outras áreas preparadas para a fusão do consumo,
com a cultura e o lazer e que foram objeto de intervenção para a viabilidade da sua realização.

4. Bibliografia

Cachinho, H. (2010). Comércio, Consumo, Lazer e os Projetos de Regeneração Urbana”. Lisboa: IGOT
Cachinho, H. (2005). Avaliação dos Impactos dos Centros Comerciais: Elementos para a Conceção de um Modelo
Conceptual e Metodológico. Lisboa: L’ATTITUDE 38º 45, pp 52 e 58.
Cachinho, H. (2002). O Comércio Retalhista Português: Pós-modernidade, consumidores e espaço. Lisboa: GEPE
Crang, P. (2005). Consumption and its geographies In P. Daniels M. Bradshaw, D. Shaw, J. Sidaway (eds) – An
introduction to Human Geography, Issues for 21 st century, 2nd edition (p 373) Londres: Pearson Prentice Hall.
Florida, R. (2004). Cities and the Creative Class. Londres: Routledge.
Jayne, M. (2006). Consumption and urban regeneration – In M. Jayne(ed), Cities and Consumption, Critical
Introductions to Urbanism and the City (pp 185-189) Londres: Routledge.
Lowe, M. (2005) . The Regional Shopping Centre in the Inner City: A Study of Retail-led Urban Regeneration,, Urban
Studies, 42:3. (pp 450-455) Londres: Routledge.
Montgomery, J. (2003). Cultural Quarters as Mechanisms for Urban Regeneration: Conceptualising Cultural
Quarters. Planning, Practice & Research, 18 (4), 293-306.
Speake, J. , Fox, V. (2002). Regenerating City Centers, Séries Changing Geography (pp 5, 27). Sheffield:
Geographical Association/Rose Pipes.
Wrigley, N. e Lowe, M. (2002) – The Mall” In N. Wrigley, M. Lowe (eds), Reading Retail: A Geographical
Perspective on Retailing and Consumption Spaces (p 231). Londres: Arnold.

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