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I.
"Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de
uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da
ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre
o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar
exatamente seu sentido e alcance, precisamos primeiramente despertar essa
experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda” (Merleau-Ponty,
1994:3)1
A percepção emerge assim como um contrato que assinamos com o mundo: ela nos
liga ao real, e eu posso dispor de um "mundo" somente porque percebo essa alteridade que
me afeta. Do mesmo modo, percebo o outro e sou forçado a reconhecer que seu mundo,
embora não necessariamente idêntico, é tão real quanto o meu - daí o acordo necessário ao
qual nos referimos. Antes de tudo, porém, é importante ressaltar que a percepção me dá um
mundo no qual eu acredito: a percepção funda em mim a própria noção de verdade. É a
partir dessa noção, nascida da fé com que invisto as minhas percepções de mim mesmo, dos
outros e das coisas, que a filosofia, e depois a ciência, poderão, mais tarde, trabalhar num
método capaz de garantir uma verdade "racional" e "matematicamente demonstrável".
Mesmo quando experimento uma ilusão, ela é verdadeira para mim até que seja provada
falsa por uma outra experiência; e esta última será experimentada como verdadeira, até que
uma outra experiência mostre igualmente os seus limites. Naturalmente, essas mesmas
palavras poderiam descrever o modo de operação da ciência, e é precisamente isso que
1
Em seguida. “A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser do mundo percebido, pela simples
razão de que ela é uma determinação ou uma explicação dele"
Merleau-Ponty busca demonstrar: dado que a percepção não me oferece um "caos de
sensações puras", como as teorias clássicas da percepção sustentavam, mas um conjunto
coerente de relações dinâmicas banhadas de sentido − como as pesquisas da Gestalt
demonstraram −, senso comum, filosofia e ciência sustentam-se sobre uma tese do mundo
colocada pela percepção. Apenas explicitam, em diferentes níveis, essa tarefa de constituir
um mundo já realizada na experiência perceptiva. Assim, do mesmo modo como a
concepção husserliana da consciência já demonstrara que não pode haver oposição entre
sujeito e objeto − já que são as coisas visadas que permitem à consciência constituir-se
enquanto tal − não há também oposição entre razão e sensação, já que a percepção é o
berço a partir do qual a razão pode brotar. Mas enquanto a percepção me oferece "coisas"
que são uma fonte inesgotável de significação, definidas pelo contexto e pela circunstância,
a razão toma tais coisas como seus "objetos", representados de tal modo a serem constantes,
calculáveis, perfeitamente definidos e idealmente separados de qualquer circunstância
incontrolável. Este, é claro, é o nível de abstração exigido por um modo de lide com as
coisas cujo principal objetivo é ter poder e controle sobre elas, como demonstrou Heidegger
(1977).
Mas por que razão* ciência e filosofia clássicas foram incapazes de notar as
operações da percepção que Merleau-Ponty busca descrever? É porque a percepção oculta-
se a si mesma de modo a poder nos dar um mundo, esse play-ground no qual a razão pode
brincar. Entretanto, da mesma maneira como se esconde, a percepção pode mostrar-se,
desde que sejamos capazes de retornar a ela, suspendendo todo o julgamento e prestando
atenção a essa gênese do mundo e da razão no tecido vivo da percepção, a partir do qual a
realidade emerge para nós e que é a fonte primordial da consciência − há aqui, claro, certa
similaridade com aquilo que os budistas e outras doutrinas orientais chamam de
"meditação". Em síntese, enfim, a obra de Merleau-Ponty, nos permite sugerir que os
sentidos (percepção) nos lançam no sentido (direção) do mundo, e são a fundação do
sentido (significado) com o qual investimos nossa experiência. Essa associação entre
sentidos, sentido e sentido acontece, de modo similar, em diversas línguas ocidentais. De
fato, a linguagem comum está cheia de metáforas que testemunham as relações entre a
experiência perceptiva e a gênese da linguagem. A antropóloga canadense Constance
Classen escreveu mesmo um pequeno glossário de "palavras dos sentidos" (words of
sense), das quais um bom exemplo é a palavra "pensive" (pensativo), que vem do "latim
'pensare', significando 'pesar' e portanto 'ponderar', considerar"' (Classen, 1993:70).
II.
"... as formas isoladas, integrando-se nos mais diferentes grupos, permitem quase
sempre inúmeras configurações. Basta essa constatação para que se evidencie uma
das propriedades intrínsecas do êxtase: sua incansável disposição para emprestar a
um mesmo estado de coisas - por exemplo, um cenário ou uma paisagem - os mais
diferentes aspectos, conteúdos e significações.” (Benjamin, 1984:37 -8)
Para o Huxley turbinado pela mescalina, a Arte parece não ser nada mais do que
uma prática inútil numa cultura viciada em sistemas de representação, incapaz de lidar com
o real senão através de estratégias de mediação que não são mais do que pobres simulacros
das coisas elas mesmas!
Mas mesmo se tanto Huxley como Benjamin empregaram substâncias químicas
para escapar da tirania do regime perceptivo imposto pela cultura, oferecendo-nos
testemunhos notáveis de uma experiência perceptiva intensificada, ambos os relatos ainda
são submissos à dominância do olhar, e parecem ser apenas oscilações radicais do
metrônomo de Man Ray. Mesmo se o relato de Benjamin descreve um campo de sensação
em que impressões táteis, auditivas e olfativas aparecem aqui e ali - há mesmo uma singular
descrição de sinestesia som-cor -, ele é predominantemente visual; quanto a Huxley, porém,
pode-se definitivamente afirmar que ele habita seus olhos: não importa quão determinado
esteja em liberar-se da prisão da percepção cotidiana, parece incapaz de ultrapassar as
fundações mais profundas estabelecidas em seu modo de perceber pela cultura em que
habita. Em sua experiência psicodélica, não há aromas, não há toques, não há sabores ou
sons. Somos então provocados a questionar se tal regime perceptivo é biologicamente
inevitável, ou se haveria diferentes arranjos hierárquicos dos cinco sentidos que pudessem
"fazer" um "mundo" individual, ou mesmo sustentar a cosmologia de uma cultura como um
todo.
III.
Nos anos 1960, Marshall McLuhan sugeriu que as culturas orais experienciavam um
regime perceptivo acústico, radicalmente oposto ao da cultura de orientação visual que se
consolidou após a invenção da imprensa − e, a partir de Merleau-Ponty, poderíamos mesmo
sugerir que a escrita alfabética, e portanto a própria imprensa, já fora uma explicitação da
primazia da visualidade no pensamento grego.
IV.
REFERÊNCIAS:
CLASSEN, C.: Worlds of Sense: Exploring the Senses in History and Across Cultures.
Routledge, 1993.
HEIDEGGER, Martin: The question concerning technology and other essays. (tradução de
William Lovitt). New York: Harper and Row, 1977.