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COMENTÁRIO À

EPÍSTOLA DE TIAGO
POR

JOÃO CALVINO1

O ARGUMENTO
A partir dos escritos de Jerônimo e Eusébio, parece que antigamente esta E-
pístola não era recebida sem oposição por muitas igrejas. Hoje também exis-
tem alguns que não a consideram com digna de autoridade. Contudo, estou
disposto a recebê-la sem controvérsia, porque não vejo boa causa para rejeitá-
la. Pois aquilo que no capítulo dois parece inconsistente com a doutrina da jus-
tificação gratuita, explicaremos facilmente em seu devido lugar. Embora, ao
proclamar a graça de Cristo, ele pareça ser mais escasso do que convinha a
um apóstolo, certamente não é necessário que todos lidem com os mesmos
argumentos. Os escritos de Salomão diferem muito dos de Davi – enquanto o
primeiro estava atento à formação do homem exterior e ao ensino dos precei-
tos da vida civil, o último falava continuamente da adoração espiritual a Deus,
da paz de consciência, da misericórdia de Deus e da promessa gratuita da sal-
vação. Mas esta diversidade não deveria nos levar a aprovar um e a condenar
o outro. Além disso, entre os próprios evangelistas existe tanta diferença ao
demonstrar o poder de Cristo, que os outros três, comparados a João, mal
possuem centelhas do pleno esplendor que se mostra tão conspícuo neste; e,
no entanto, nós recomendamos a todos eles de igual modo.
É suficiente dizer, para que os homens recebam esta Epístola, que ela não
contém nada indigno de um apóstolo de Cristo. Na verdade, está cheia de ins-
trução sobre vários assuntos, cujo benefício se estende a todos os aspectos da
vida cristã; pois aqui há passagens notáveis sobre a paciência, oração a Deus,
a excelência e o fruto da verdade celestial, humildade, deveres sagrados, o
comedimento da língua, o cultivo da paz, a repressão das paixões, o desprezo
do mundo, e coisas semelhantes, que discutiremos separadamente em seus
devidos lugares.
Mas, quanto ao autor, existe um pouco mais de razão para dúvidas. Na verda-
de, é certo que não foi o filho de Zebedeu, pois Herodes o matou logo após a
ressurreição de nosso Senhor. Os antigos são quase unânimes em pensar que
fosse um dos discípulos e parente de Cristo, chamado Oblias, que fora coloca-
do sobre a igreja em Jerusalém; e eles consideravam que fosse aquele que
Paulo mencionara juntamente com Pedro e João – os quais afirma serem con-
siderados as colunas (Gl 2:9). Mas que um dos discípulos fosse mencionado

1
Tradução: Rodrigo Reis de Faria (rodrigoreisdefaria@gmail.com). Fonte: Calvin’s
Commentaries (traduzido para o inglês por John King, disponível no site:
http://www.sacred-texts.org).
2 Comentários de Calvino

como uma das três colunas, e assim exaltado acima dos demais apóstolos, não
me parece provável. Portanto, estou mais inclinado a conjecturar que aquele de
quem Paulo fala fosse o filho de Alfeu. Contudo, não nego que um outro fosse
o governante da igreja em Jerusalém, e, de fato, alguém do colégio dos discí-
pulos; pois os apóstolos não estavam vinculados a nenhum local particular.
Mas qual dos dois foi o escritor desta Epístola, não cabe a mim dizer. Que O-
blias era realmente um homem de grande autoridade entre os judeus revela-se
inclusive a partir disto, que, como havia sido cruelmente condenado à morte
pela facção de um ímpio sumo sacerdote, Josefo não hesitou em imputar a
destruição da cidade em parte à sua morte.

TIAGO 1:1-4
1. Tiago, servo de Deus, e do Senhor 1. Jacobus, Dei ac Domini Jesu Christi
Jesus Cristo, às doze tribos que andam servus, duodecim tribubus quae in disper-
dispersas, saúde. sione sunt, salutem.
2. Meus irmãos, tende grande gozo 2. Omne gaudium existimate, fratres mei,
quando cairdes em várias tentações; quum in tentationes varias incideritis;
3. Sabendo que a prova da vossa fé ope- 3. Scientes quod probatio fidei vestrae,
ra a paciência. patientiam operatur
4. Tenha, porém, a paciência a sua obra 4. Patientia vero opus perfectum habeat,
perfeita, para que sejais perfeitos e com- ut sitis perfecti et integri, in nullo
pletos, sem faltar em coisa alguma. deficientes.
1. Às doze tribos. Quando as dez tribos foram deportadas, o rei da Assíria as
estabeleceu em diferentes lugares. Depois, como normalmente ocorre nas re-
voluções dos reinos (tal como ocorreu então), é mui provável que eles se mo-
vessem daqui para lá, em todas as direções. E os judeus estavam espalhados
em quase todos os cantos do mundo. Então, ele escreveu e exortou a todos
aqueles a quem não podia se dirigir pessoalmente, porque estavam espalha-
dos por toda a parte. Mas, que ele não fale da graça de Cristo e da fé nele, a
razão parece ser porque se dirigia àqueles que já haviam sido devidamente
ensinados por outros; de modo que não precisavam tanto de doutrina como
dos aguilhões das exortações.2

2
A saudação é peculiar; mas no mesmo formato da carta enviada a Antioquia pelos
apóstolos (dos quais Tiago era um), e pela igreja em Jerusalém (At 15:23). Portanto, é
apostólica, ainda que adotada a partir de um formato normalmente utilizado pelos es-
critores pagãos. Vede At 23:26. João (em Jo 2:10 e 11) usa o verbo χαίρειν em um
sentido similar; e este significa propriamente regozijar-se. Sendo um infinitivo, o verbo
λέγω, dizer ou mandar, é expresso antes por João, e evidentemente está subentendi-
do aqui. Por isso, a saudação pode ser traduzida assim: “Tiago, servo de Deus e do
Senhor Jesus Cristo, manda (ou envia, ou deseja) alegria às doze tribos que estão na
sua dispersão”. Houvera uma dispersão oriental e outra ocidental, a primeira no cati-
veiro assírio e babilônico, e a segunda durante o predomínio do governo grego, que
começou com Alexandre o Grande. Como esta epístola foi escrita em grego, não há
dúvida de que fora planejada mais especificamente para os desta última dispersão.
Mas o benefício da dispersão oriental logo fora considerado, uma vez que a primeira
Epístolas Gerais – Tiago 3

2. Grande gozo. A primeira exortação é: suportar as provas com um espírito


alegre. E naquele tempo era especialmente necessário confortar os judeus,
praticamente esmagados como estavam por dificuldades. Pois o próprio nome
da nação era tão infame que eles eram odiados e desprezados por todos os
povos, para onde quer que fossem; e sua condição como cristãos os tornava
ainda mais miseráveis, porque tinham sua própria nação como seus inimigos
mais inveterados. Ao mesmo tempo, esta consolação não era tão apropriada
para um único momento, mas é sempre útil para os fiéis, cuja vida é uma
constante batalha na terra.
Mas para que saibamos mais perfeitamente o que ele quer dizer, sem dúvida
precisamos entender tentações ou provas como incluindo todas as coisas ad-
versas; e elas são assim chamadas porque são os testes da nossa obediência
a Deus. Ele manda aos fiéis, enquanto exercitados por elas, a se regozijarem;
e isto não apenas quando caem em uma única tentação, e sim em muitas; não
apenas de um tipo, mas de vários tipos. E, sem dúvida, visto como servem
para mortificar a nossa carne, assim como os vícios da carne espocam
constantemente em nós, do mesmo modo elas devem ser necessariamente
repetidas com frequência. Além disso, assim como labutamos sob
enfermidades, do mesmo modo não é de se surpreender que devam ser
aplicados remédios diferentes para removê-las.
Então, o Senhor nos aflige de várias maneiras, porque a ambição, avareza,
inveja, glutonaria, intemperança, o amor excessivo ao mundo, e as inúmeras
paixões em que abundamos, não podem ser curadas pelo mesmo remédio.
Quando ele nos manda ter grande gozo, é o mesmo que se tivesse dito que as
tentações devem ser estimadas como ganho, a fim de que fossem considera-
das como ocasiões de alegria. Em suma, ele quer dizer que não há nada nas
aflições que deva perturbar a nossa alegria. E, assim, não apenas nos manda
suportarmos as adversidades tranqüilamente, e com um espírito sereno, mas
nos revela que esta é a razão pela qual os fiéis deveriam se regozijar quando
abatidos por elas.
De fato, é certo que todos os sentidos da nossa natureza estão formados de tal
modo que toda a prova produz em nós aflição e tristeza; e nenhum de nós po-
de se despir da sua natureza de tal modo a não se afligir e ficar triste sempre
que sinta algum mal. Mas isto não impede que os filhos de Deus se ergam, pe-
la orientação do Espírito, acima da tristeza da carne. Pois, por outro lado, al-
guém poderia objetar: “Como podemos considerar como doce aquilo que é
amargo ao sentido?” Então, ele revela, através do efeito, que devemos nos re-
gozijar nas aflições porque elas produzem um fruto que deve ser sumamente
valorizado – a paciência. Se, então, Deus providencia a nossa salvação, ele
nos concede um motivo de alegria. Pedro usa um argumento semelhante no
começo da sua primeira Epístola: “Para que a prova da vossa fé, mais preciosa
do que o ouro, possa estar, etc.” (1 Pe 1:7). Certamente tememos as doenças,
e a necessidade, e o exílio, e a prisão, e o opróbrio, e a morte, porque as con-

versão do Novo Testamento fora preparada nesta língua, ou seja, no siríaco; e isto
fora feito no começo do segundo século.
4 Comentários de Calvino

sideramos como males; mas, quando entendemos que elas são transformadas
pela bondade de Deus em socorros e auxílios para a nossa salvação, é ingrati-
dão murmurar, e não nos submetermos, de boa vontade, a sermos assim trata-
dos paternalmente.
Paulo diz, em Rm 5:3, que devemos nos gloriar nas tribulações; e Tiago diz
aqui que devemos nos regozijar. “Nos gloriamos”, diz Paulo, “nas tribulações;
sabendo que a tribulação produz a paciência”. O que vem logo em seguida pa-
rece ser contrário às palavras de Tiago; pois ele menciona a provação em ter-
ceiro lugar, como o efeito da paciência, que aqui é expressa primeiro, como se
fosse a causa. Mas a solução é óbvia; a palavra ali tem um sentido ativo, mas
aqui, passivo. A provação, ou prova, segundo afirma Tiago, produz a paciência;
pois, se Deus não nos provasse, mas nos deixasse livres de dificuldades, não
haveria a paciência – que não é outra coisa senão firmeza de espírito em su-
portar os males. Mas Paulo quer dizer que enquanto, suportando, vencemos os
males, experimentamos o quanto é útil o auxílio de Deus nas necessidades;
pois, então, a verdade de Deus é como que manifestada a nós na realidade.
Por onde ocorre que nos atrevemos a nutrir maior esperança quanto ao futuro;
pois a verdade de Deus, conhecida pela experiência, é crida mais plenamente
por nós. Por isso, Paulo ensina que por meio de tal provação, ou seja, por tal
experiência da graça divina, é produzida a esperança; não que a esperança só
comece aí, mas que ela aumenta e é confirmada. Mas ambos querem dizer
que a tribulação é o meio pelo qual a paciência é produzida.
Além disso, os espíritos dos homens não são formados pela natureza de tal
modo que a aflição em si produza a paciência neles. Mas Paulo e Pedro não
consideram tanto a natureza dos homens quanto a providência de Deus atra-
vés da qual ela vem, que os fiéis aprendam a paciência através das dificulda-
des; pois os infiéis são, por meio delas, provocados mais e mais à loucura, co-
mo prova o exemplo do Faraó.3
4. Tenha, porém, a paciência a sua obra perfeita. Como a ousadia e a coragem
geralmente aparecem em nós e logo falham, por isso ele pede a perseverança.
“A verdadeira paciência”, diz, “é aquela que sofre até o fim”. Pois obra aqui sig-
nifica o esforço, não apenas para vencer em uma única disputa, mas para per-
severar por toda a vida. Sua perfeição também pode estar relacionada à since-
ridade da alma – que os homens devem de boa vontade, e não fingidamente,
se submeterem a Deus; mas, como é acrescentada a palavra obra, prefiro ex-
plicá-la no sentido da constância. Pois existem muitos, conforme dissemos, que
a princípio mostram uma grandeza heróica, e logo depois se cansam e desfa-
lecem. Portanto, ele manda àqueles que queriam ser perfeitos e completos4
3
A palavra usada por Tiago é δοχίµιον, prova, o ato de testar; e, por Paulo, δοχιµὴ, o
resultado do teste, a experiência. Tiago fala da provação, e Paulo da experiência obti-
da através dela.
4
“Perfeitos, τέλειοι”, plenamente desenvolvidos, maduros; “completos, ὁλόχληζοι”, in-
teiros, não faltando nenhuma parte. O primeiro se refere à maturidade da graça; e o
segundo à sua completude, não estando em falta nenhuma graça. Eles deviam ser
como homens plenamente desenvolvidos; e não deformados ou mutilados, mas tendo
todos os seus membros completos.
Epístolas Gerais – Tiago 5

que perseverassem até o fim. Mas, o que quer dizer com estas duas palavras,
depois ele explica com respeito àqueles que não fracassam nem se cansam;
pois os que, sendo vencidos quanto à paciência, se abatem, necessariamente
se enfraquecerão aos poucos, e finalmente fracassarão por completo.

TIAGO 1:5-8
5. E, se algum de vós tem falta de sabe- 5. Porro si quis autem vestrum destituitur
doria, peça-a a Deus, que a todos dá libe- sapientia, postulet a Deo, qui dat omnibus
ralmente, e o não lança em rosto, e ser- simpliciter, nec exprobrat; et dabitur ei.
lhe-á dada.
6. Peça-a, porém, com fé, em nada duvi- 6. Postulet autem in fide, nihil haesitans;
dando; porque o que duvida é semelhan- nam qui haesitat similis est fluctui maris,
te à onda do mar, que é levada pelo ven- qui a vento agitur et circumfertur.
to, e lançada de uma para outra parte.
7. Não pense tal homem que receberá do 7. Non ergo existimet homo ille quod sit
Senhor alguma coisa. quicquam accepturus a Domino.
8. O homem de coração dobre é incons- 8. Vir duplici animo, instabilis est in omni-
tante em todos os seus caminhos. bus viis suis.
5. Se algum de vós tem falta de sabedoria. Como a nossa razão, e todos os
nossos sentimentos, são avessos ao pensamento de que podemos ser felizes
em meio aos infortúnios, ele nos manda pedirmos ao Senhor que nos dê sabe-
doria. Pois sabedoria aqui eu limito ao assunto da passagem – como se tivesse
dito: “Se esta doutrina é mais alta do que vossas mentes possam alcançar, pe-
di ao Senhor que vos ilumine pelo seu Espírito; pois, assim como somente esta
consolação é suficiente para mitigar todas as amarguras dos infortúnios – que
aquilo que é doloroso para a carne é salutar para nós; do mesmo modo, sere-
mos necessariamente vencidos pela impaciência, a menos que sejamos sus-
tentados por esta espécie de conforto”. Como sabemos que o Senhor não exi-
ge tanto de nós o que esteja acima da nossa força, mas que ele está pronto a
nos ajudar, desde que peçamos; portanto, sempre que nos comanda alguma
coisa, aprendamos a pedir dele o poder para cumpri-lo.
Embora, nesta passagem, ser sábio seja submeter-se a Deus na resignação
dos males, sob a devida convicção de que ele ordena todas as coisas de tal
modo a promover a nossa salvação; por outro lado, a sentença pode ser apli-
cada em geral a todos os ramos do verdadeiro conhecimento.
Mas, por que ele diz: Se algum de vós, como se todos eles não precisassem de
sabedoria? A isto respondo que todos estão, por natureza, sem ela; mas que
alguns são dotados com o espírito de sabedoria, enquanto outros estão sem.
Como, então, nem todos tivessem feito progresso tal para se regozijarem na
aflição, mas havia poucos a quem isto havia sido concedido; Tiago se referia a
casos como estes; e ele lembrava àqueles que ainda não estavam plenamente
convencidos de que, através da cruz, sua salvação fora promovida pelo Se-
nhor, que eles deviam pedir para que fossem dotados de sabedoria. E, contu-
do, não há dúvida de que a necessidade nos lembra a todos de pedirmos a
mesma coisa; pois aquele que tem feito o maior progresso ainda está muito
6 Comentários de Calvino

longe do alvo. Mas, pedir o incremento da sabedoria é algo diferente de pedi-la


pela primeira vez.
Quando nos manda pedirmos ao Senhor, ele nos sugere que somente ele pode
curar as nossas enfermidades e aliviar as nossas necessidades.
Que a todos dá liberalmente. Por todos, ele se refere aos que pedem; pois a-
queles que não buscam remédio para as suas necessidades, merecem consu-
mir-se nelas. Contudo, esta declaração universal, pela qual todos nós somos
convidados a pedir, sem exceção, é muito importante; por isso, nenhum ho-
mem deve privar-se de tão grande privilégio.
Tem o mesmo propósito a promessa que vem logo em seguida; pois, assim
como, por meio desta ordem, ele mostra qual é o dever de todos; do mesmo
modo afirma que eles não fariam em vão o que ele comanda; conforme aquilo
que é dito por Cristo: “Batei, e abrir-se-vos-á” (Mt 7:7; Lc 11:9).
A palavra liberalmente, ou gratuitamente, denota prontidão em dar. Assim tam-
bém Paulo, em Rm 12:8, requer simplicidade nos diáconos. E, em 2 Co 8 e 9,
quando fala da caridade, ou amor, ele repete a mesma palavra diversas vezes.
O sentido, então, é de que Deus está tão disposto e pronto a dar, que ele não
rejeita ninguém, nem usa arrogantemente de evasivas para com eles, não sen-
do como os mesquinhos e sôfregos que, ou, com mão fechada, dão escassa-
mente pouco; ou dão apenas uma parte do que estavam para dar; ou discutem
por longo tempo consigo mesmos se devem dar ou não.5
E não lança em rosto. Isto é acrescentado para que ninguém temesse se a-
chegar muitas vezes a Deus. Aqueles que são os mais liberais entre os ho-
mens, quando alguém pede para ser ajudado muitas vezes, mencionam seus
atos formais de bondade, e assim se escusam quanto ao futuro. Por isso, te-
mos vergonha de cansar um homem mortal, por mais generoso que possa ser,
pedindo demasiadas vezes. Mas Tiago nos lembra de que não há nada seme-
lhante a isto em Deus; pois ele sempre está pronto para acrescentar novas
bênçãos às anteriores, sem fim ou limitação.
6. Peça-a, porém, com fé. Ele mostra aqui, primeiro, o modo correto de orar;
pois, assim como não podemos orar sem a palavra, por assim dizer, mostrando
o caminho, do mesmo modo devemos crer antes de orarmos; pois testificamos
pela oração que esperamos alcançar de Deus a graça que ele tem prometido.
Assim, todo aquele que não tem fé nas promessas ora dissimuladamente. Por
onde também aprendemos o que é a verdadeira fé; pois Tiago, após ter nos
mandado pedir com fé, acrescenta esta explicação: não vacilando, ou em nada
duvidando. Então, a fé é aquilo que se apóia nas promessas de Deus, e nos
torna seguros de alcançar o que pedimos. Por onde segue-se que ela está co-
nectada à confiança e certeza quanto ao amor de Deus para conosco. O verbo
5
O sentido literal de ἁπλῶς é simplesmente sem qualquer mistura; o substantivo
ἁπλότης é usado no sentido de sinceridade, que não tem nenhuma mistura de fraude
ou hipocrisia (2 Co 1:12), e no sentido de liberalidade, ou disposição livre do que é
sórdido ou parcimonioso, não tendo nenhuma mistura de mesquinhez (2 Co 8:2). Este
último evidentemente é o sentido aqui, de modo que “liberalmente”, conforme a nossa
versão, é a melhor palavra.
Epístolas Gerais – Tiago 7

διακρίνεσθαι, que ele usa, significa propriamente indagar de ambos os lados


uma questão, à maneira de litigantes. Ele queria então que estivéssemos de tal
modo convencidos do que Deus outrora prometeu, que não admitíssemos dú-
vida quanto a se seremos ouvidos ou não.
Aquele que vacila, ou duvida. Por meio desta comparação ele expressa admi-
ravelmente como Deus castiga a incredulidade daqueles que duvidam das suas
promessas; pois, através da sua própria inquietação, eles se atormentam inte-
riormente; pois nunca há calma para as nossas almas, a não ser que repousem
na verdade de Deus. Finalmente, ele conclui que os tais são indignos de rece-
ber qualquer coisa de Deus.
Esta é uma passagem notável, adequada para contestar aquele dogma ímpio
que é reputado como um oráculo sob todo o Papado – ou seja, de que deve-
mos orar duvidando, e com incerteza quanto ao nosso sucesso. Este princípio,
então, defendemos, que nossas orações não são ouvidas pelo Senhor, exceto
quando temos uma confiança de que alcançaremos. De fato, não pode ser de
outro modo, senão que, pela fraqueza da nossa carne, devamos ser sacudidos
por várias tentações, as quais são como meios empregados para abalar a nos-
sa confiança; de modo que não há ninguém que não vacile e trema segundo o
sentimento da sua carne; mas tentações desta natureza devem ser finalmente
vencidas pela fé. É o mesmo caso de uma árvore que lançou raízes firmes; ela
balança, de fato, pelo sopro do vento, mas não é desarraigada; pelo contrário,
permanece firme em seu lugar.
8. O homem de coração dobre, ou, o homem de espírito dobre. Esta sentença
pode ser lida por si mesma, uma vez que ele fala genericamente dos hipócritas.
Contudo, parece-me antes ser a conclusão da doutrina precedente; e, assim,
há um contraste implícito entre a simplicidade ou liberalidade de Deus, mencio-
nada antes, e a dobreza de coração do homem; pois, assim como Deus nos dá
com mão estendida, do mesmo modo nos convém abrir, em troca, o âmago do
nosso coração. Então, ele diz que os incrédulos, que possuem recessos tortuo-
sos, são inconstantes, porque nunca estão firmes ou fixos, mas a um momento
incham com a confiança da carne, e em outro afundam nas profundezas do
desespero.6

TIAGO 1:9-11
9. Mas glorie-se o irmão abatido na sua 9. Porro glorietur frater humilis in sublima-
exaltação, te sua;
10. E o rico em seu abatimento; porque 10. Dives autem in humilitate sua, quia
ele passará como a flor da erva. tanquam flos herbae prateteribit.
11. Porque sai o sol com ardor, e a erva 11. Nam sol exortus est cum aestu, et
seca, e a sua flor cai, e a formosa apa- exarescit herba, et flos ejus cecidit, et de-

6
“De coração dobre”, ou homem com duas almas, δίψυχος, sem dúvida refere-se aqui
ao homem que hesita entre a fé e a incredulidade – porque a fé é o assunto da passa-
gem. Quando usada novamente, em Tg 4:8, significa uma hesitação entre Deus e o
mundo.
8 Comentários de Calvino

rência do seu aspecto perece; assim se cor aspectus ejus periit; sic et dives in suis
murchará também o rico em seus cami- viis (vel, copiis) marcescet.
nhos.
9. O irmão abatido. Assim como Paulo, exortando os servos a suportarem
submissamente a sua sorte, apresenta diante deles esta consolação – de que
eram livres de Deus, tendo sido libertados pela sua graça do cativeiro mais mi-
serável de Satanás – e os lembra de que, embora livres, eram servos de Deus;
do mesmo modo Tiago aqui manda que os abatidos se gloriem nisto, em que
haviam sido adotados pelo Senhor como seus filhos; e os ricos, porque haviam
sido abatidos à mesma condição, a vaidade do mundo tendo se tornado evi-
dente para eles. Assim, a primeira coisa que deviam fazer era contentar-se
com o seu estado abatido e humilde; e ele proíbe os ricos de serem orgulho-
sos. Visto como é incomparavelmente a maior dignidade ser introduzido na
companhia dos anjos; não somente isto, mas ser feito associado de Cristo; a-
quele que estima devidamente este favor de Deus considerará todas as demais
coisas como indignas. Então, nem a pobreza, nem o desprezo, nem a nudez,
nem a fome, nem a sede, deixarão seu espírito tão ansioso que ele não se
mantenha com esta consolação. “Como o Senhor me concedeu a coisa princi-
pal, convém que eu suporte pacientemente a perda das demais coisas, as
quais são inferiores”.
Vede, como um irmão abatido deve se gloriar na sua elevação ou exaltação;
pois, se ele é aceito por Deus, tem consolação suficiente apenas na sua ado-
ção, não se afligindo excessivamente por um estado de vida menos próspero.
10. E o rico em que seja abatido, ou, em seu abatimento. Ele mencionara o
particular pelo geral; pois esta admoestação diz respeito a todos aqueles que
se sobressaem em honra, ou em dignidade, ou em qualquer outra coisa exteri-
or. Ele manda que se gloriem em seu abatimento ou insignificânica, a fim de
reprimir a altivez daqueles que normalmente se incham com a prosperidade.
Mas chama isto de abatimento, porque o reino de Deus manifestado deve nos
levar a desprezar o mundo, uma vez que sabemos que todas as coisas que
antes admirávamos grandemente, ou não são nada, ou são coisas muito pe-
quenas. Pois Cristo, que não é mestre senão de bebês, refreia pela sua doutri-
na toda a altivez da carne. Então, para que a vã alegria do mundo não cative
os ricos, eles devem se habituar a gloriar-se no abatimento da sua excelência
carnal.7
Como a flor da erva. Se alguém dissesse que Tiago faz alusão às palavras de
Isaías, eu não objetaria tanto; mas não posso admitir que ele cite o testemunho
do Profeta, que fala não apenas acerca das coisas desta vida e do caráter pas-
sageiro do mundo, mas do homem todo, tanto corpo como alma (Is 40:6-8);
mas aquilo de que se fala aqui é a pompa dos bens ou das riquezas. E o senti-

7
A opinião de Macknight e de alguns outros, de que a referência é ao abatimento a
que os ricos estavam reduzidos pela perseguição, não concorda com a passagem,
pois o Apóstolo fala a seguir acerca da brevidade da vida humana e da sua incerteza,
e não da natureza passageira das riquezas – o que teria sido mais apropriado, se ele
tivesse em vista confortar os ricos pela perda de propriedade. O estado cristão era de
“abatimento” segundo a apreciação do mundo.
Epístolas Gerais – Tiago 9

do é de que o gloriar-se nas riquezas é absurdo e insensato, porque elas pas-


sam em um momento. Os filósofos ensinam a mesma coisa; mas a canção é
entoada para surdos, enquanto os ouvidos não são abertos pelo Senhor, para
que ouçam a verdade concernente à eternidade do reino celestial. Por isso ele
menciona irmão – sugerindo que não há lugar para esta verdade, enquanto não
somos admitidos na ordem dos filhos de Deus.
Embora a leitura aceita seja ἐν ταῖς πορείαις, concordo com Erasmo, e leio a
última palavra, πορίαις, sem o ditongo: “em suas riquezas”, ou, com suas ri-
quezas; e eu prefiro este último.8

TIAGO 1:12-15
12. Bem-aventurado o homem que supor- 12 Beatus vir qui suffert temptationem;
ta a tentação; porque, quando for prova- quod quum probatus fuerit, accipiet coro-
do, receberá a coroa da vida, a qual o nam vitae, quam promisit Deus diligenti-
Senhor tem prometido aos que o amam. bus ipsum.
13. Ninguém, sendo tentado, diga: De 13 Nemo quum tentatur dicat, a Deo ten-
Deus sou tentado; porque Deus não pode tor; Deus enim nec tentari malis potest,
ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta. nec quenquam tentat.
14. Mas cada um é tentado, quando atra- 14 Sed unusquisque tentatur, dum a sua
ído e engodado pela sua própria concu- concupiscentia abstrahitur, et inescatur.
piscência.
15. Depois, havendo a concupiscência 15 Postquam antum concupiscentia con-
concebido, dá à luz o pecado; e o peca- ceperit, parit peccatum vero perfectum
do, sendo consumado, gera a morte. generat mortem.
12. Bem-aventurado o homem. Após ter aplicado a consolação, ele moderou a
tristeza daqueles que eram duramente tratados neste mundo, e novamente
humilhou a arrogância dos grandes. Agora ele tira esta conclusão – de que são
felizes aqueles que suportam magnanimamente as dificuldades e outras pro-
vas, elevando-se acima delas. A palavra tentação pode ser, de fato, entendida
de outro modo – no sentido dos aguilhões das paixões que incomodam interi-
ormente a alma; mas o que é recomendado aqui, conforme penso, é a firmeza
de espírito em suportar as adversidades. Contudo, é um paradoxo que não se-
jam felizes aqueles a quem todas as coisas vêm de acordo com os seus dese-
jos, e sim aqueles que não são vencidos pelos infortúnios.
Porque, quando for provado. Ele dá uma razão para a sentença anterior; pois a
coroa vem após a competição. Então, se for a nossa maior alegria sermos co-
roados no reino de Deus, segue-se que as lutas com que o Senhor nos prova
são auxílios e socorros para a nossa felicidade. Assim, o argumento é a partir
da finalidade, ou efeito; por onde concluímos que os fiéis são afligidos por tan-
tos infortúnios com este propósito – para que a sua piedade e obediência pos-
sam se tornar manifestas, e para que assim eles sejam finalmente preparados
para receberem a coroa da vida.
8
O texto recebido é considerada a melhor leitura; a outra encontra-se em bem poucas
cópias.
10 Comentários de Calvino

Mas raciocinam absurdamente aqueles, que a partir daqui, inferem que, atra-
vés da luta, merecemos a coroa; pois, como Deus a designou gratuitamente
para nós, nossa luta apenas nos tornará aptos para recebê-la.
Ele acrescenta que ela está prometida para aqueles que amam a Deus. Falan-
do assim, não quer dizer que o amor do homem é a causa de ele alcançar a
coroa (pois Deus se antecipa a nós pelo seu amor gratuito); mas apenas suge-
re que os eleitos, os quais o amam, são os únicos aprovados por Deus. Então,
ele nos lembra que os vencedores de todas as tentações são aqueles que a-
mam a Deus; e que, quando somos provados, não falhamos em coragem por
qualquer outra causa, senão porque o amor do mundo prevalece em nós.
13. Ninguém, sendo tentado. Aqui, sem dúvida, ele fala de outro tipo de tenta-
ção. É abundantemente evidente que as tentações exteriores, até aqui mencio-
nadas, são enviadas a nós por Deus. Deste modo, Deus tentou a Abraão (Gn
22:1), e diariamente nos tenta – ou seja, ele nos prova quanto ao que somos,
pondo diante de nós uma oportunidade pela qual nossos corações possam se
manifestar. Mas extrair o que está oculto em nossos corações é algo bem dife-
rente de seduzir interiormente os nossos corações através de paixões perver-
sas.
Então, ele trata aqui de tentações interiores, as quais não são nada mais do
que desejos desordenados que incitam ao pecado. Ele nega justamente que
Deus seja o autor destas, porque elas decorrem da corrupção da nossa nature-
za.
Este aviso é mui necessário, pois nada é mais comum entre os homens do que
transferir para outro a culpa dos males que cometem; e, então, eles parecem
especialmente se livrar quando atribuem isto ao próprio Deus. Imitamos cons-
tantemente este tipo de evasiva, transmitida a nós, de alguma forma, desde o
primeiro homem. Por esta razão, Tiago nos convida a confessarmos a nossa
própria culpa, e a não comprometermos Deus, como se ele nos compelisse a
pecar.
Mas toda a doutrina da Escritura parece ser inconsistente com esta passagem;
pois ela nos ensina que os homens são cegados por Deus, são entregues a
uma mente réproba, e abandonados às paixões vergonhosas e imundas. A isto
eu respondo que Tiago fora induzido a negar que somos tentados por Deus
provavelmente pela seguinte razão – porque os infiéis, a fim de criarem uma
escusa, armavam-se com os testemunhos da Escritura. Mas há duas coisas a
serem notadas aqui: quando a Escritura atribui a cegueira ou dureza de cora-
ção a Deus, ela não lhe designa o princípio desta cegueira, nem faz dele o au-
tor do pecado, atribuindo-lhe a culpa; e é apenas nestas duas coisas que Tiago
se detém.
A Escritura afirma que os réprobos são entregues a paixões depravadas; mas
será porque o Senhor deprava ou corrompe seus corações? De modo nenhum;
pois os corações deles estão sujeitos a paixões depravadas porque já são cor-
ruptos e viciosos. Mas, como Deus cega ou endurece, não é ele o autor ou mi-
nistro do mal? Sim, mas deste modo ele castiga os pecados, e confere uma
justa recompensa aos infiéis, que se recusaram a ser governados pelo seu Es-
pírito (Rm 1:26). Por onde segue-se que a origem do pecado não está em
Epístolas Gerais – Tiago 11

Deus, e nenhuma culpa pode ser imputada a ele, como se tivesse prazer nos
males (Gn 6:6).
O sentido é de que em vão se esquiva o homem que tenta lançar a culpa dos
seus vícios em Deus – porque todo o mal não procede de outra fonte senão da
ímpia paixão humana. E o fato na verdade é que não somos desencaminhados
de outro modo senão porque todos têm a sua própria inclinação como seu guia
e impulsor. Mas, que Deus não tenta a ninguém, ele prova através disto – por-
que ele não é tentado pelo mal.9 Pois é o diabo que nos persuade a pecar, e
por esta razão – porque ele queima inteiramente de insana paixão pelo pecado.
Mas Deus não deseja o que é mau; portanto, ele não é o autor da má ação em
nós.
14. Quando engodado pela sua própria concupiscência. Como a inclinação e o
incitamento ao pecado são interiores, em vão o pecador busca uma causa a
partir de um impulso exterior. Ao mesmo tempo, estes dois efeitos da paixão
devem ser notados – que ela nos seduz pelos seus engodos, e que ela nos
atrai; cada um dos quais sendo suficiente para nos tornar culpados.10
15. Depois, havendo a concupiscência concebido. Primeiro, ele chama de pai-
xão, não a que seja algum tipo de má afeição ou desejo, e sim a que é a fonte
de todas as más afeições; por meio de que, conforme explica, é concebida uma
prole má, que finalmente irrompe em pecados. Contudo, parece impróprio, e
não de acordo com o uso da Escritura, restringir a palavra pecado a obras exte-
riores, como se na verdade a própria paixão não fosse um pecado, e como se
os desejos corruptos, permanecendo encerrados e suprimidos no interior, não
fossem tantos pecados. Mas, como o uso de uma palavra é diverso, não há
nada de desarrazoado se for entendida aqui, como em muitos outros lugares,
no sentido de pecado real.
E os papistas ignorantemente se apegam a esta passagem, e procuram provar
através dela que as paixões viciosas, sim, imundas, ímpias e mais abominá-
veis, não são pecados, desde que não haja assentimento; pois Tiago não ex-
plica quando o pecado começa a ser gerado – tornando-se pecado, e deste
modo sendo imputado por Deus – mas quando o mesmo irrompe. Pois ele pro-
cede gradualmente, e mostra que a consumação do pecado é a morte eterna, e

9
Literalmente, “não sujeito à tentação pelo mal”, ou seja, incapaz de ser tentado ou
seduzido pelo mal, por coisas ímpias e pecaminosas. Ele é tão puro que não é influen-
ciado por nenhuma propensão maligna – que ele não está sujeito a nenhuma sugestão
maligna. Por onde segue-se que ele não tenta nem seduz o homem ao que é pecami-
noso. Sendo ele mesmo inatacável pelo mal, não pode seduzir outros ao que é mau.
Como Deus não pode ser tentado a fazer o que é pecaminoso, ele não pode tentar
outros a pecar. As palavras podem ser traduzidas assim: “Nenhum homem, quando
seduzido, diga: ‘Por Deus sou seduzido’; pois Deus não pode ser seduzido pelo mal, e
ele mesmo não seduz a ninguém”.
10
As palavras são bem surpreendentes: “Mas cada um é tentado (ou, seduzido) quan-
do, pela sua própria paixão, é atraído (ou seja, do que é bom) e apanhado por uma
isca (ou, engodo)”. Ele é, primeiro, afastado da linha do dever, e depois é apanhado
por algo que é agradável e plausível, mas que, semelhante à isca, possui em si um
anzol mortal.
12 Comentários de Calvino

que o pecado surge a partir de desejos depravados, e que estes desejos ou


afeições depravadas têm sua raíz na paixão. Por onde segue-se que os ho-
mens colhem fruto em perdição eterna, e fruto que têm granjeado para si.
Portanto, por pecado consumado, entendo, não algum ato de pecado perpetra-
do, mas o curso completo do pecado. Pois, embora a morte seja merecida por
qualquer pecado que seja, é dito que ela é a recompensa de uma vida ímpia e
perversa. Por onde é refutado o desvario daqueles que concluem, a partir des-
tas palavras, que o pecado não é mortal enquanto não irrompe, como dizem,
em um ato exterior. E também não é disto que Tiago trata; mas o seu objetivo
era apenas este – ensinar que está em nós a raíz da nossa própria destruição.

TIAGO 1:16-18
16. Não erreis, meus amados irmãos. 16. Ne erretis, fratres mei dilecti:
17. Toda a boa dádiva e todo o dom per- 17. Omnis donatio bona et omne donum
feito vem do alto, descendo do Pai das perfectum desursum est, descendens a
luzes, em quem não há mudança nem Patre luminum; apud quem non est trans-
sombra de variação. mutatio, aut conversionis obumbratio.
18. Segundo a sua vontade, ele nos ge- 18. Is sua voluntate genuit nos veritatis, ut
rou pela palavra da verdade, para que essemus primitiae quaedam suaram crea-
fôssemos como primícias das suas criatu- turarum.
ras.
16. Não erreis. Este é um argumento a partir do que é contrário; pois, como
Deus é o autor de todo o bem, é absurdo supor que ele seja o autor do mal.
Fazer o bem é o que propriamente lhe pertence, e está de acordo com a sua
natureza; e dele vêm todas as coisas boas para nós. Então, qualquer mal que
ele faça não estará de acordo com a sua natureza. Mas, como às vezes acon-
tece que aquele que se sai bem durante toda a vida, falhe, por outro lado, em
algumas coisas, ele trata desta dúvida negando que Deus seja mutável como
os homens. Mas, se Deus é em todas as coisas e sempre o mesmo, segue-se
que fazer o bem é a sua obra perpétua.
Este raciocínio é bem diferente do de Platão, que defendia que nenhuma cala-
midade é enviada aos homens por Deus, porque ele é bom; pois, embora seja
justo que os crimes dos homens sejam castigados por Deus, não é certo, com
respeito a ele, considerar entre os males aquele castigo que ele justamente
inflige. De fato, Platão era ignorante; mas Tiago, deixando a Deus o seu direito
e ofício de castigar, apenas remove dele a culpa. Esta passagem nos ensina
que devemos ser tocados pelas inúmeras bênçãos de Deus, que diariamente
recebemos da sua mão, de tal modo que não pensemos em nada além da sua
glória; e que devemos aborrecer qualquer coisa que venha à nossa mente, ou
seja sugerida por outros, que não seja compatível com o seu louvor.
Deus é chamado de Pai das luzes, como possuindo toda a excelência e a mais
alta dignidade. E, quando acrescenta em seguida que nele não há sombra de
Epístolas Gerais – Tiago 13

variação, ele continua a metáfora; para que não meçamos o esplendor de Deus
pela irradiação do sol que se mostra a nós.11
18. Segundo a sua vontade. Ele apresenta agora uma prova especial da bon-
dade de Deus que havia mencionado – a saber, que ele nos regenerou para a
vida eterna. Este benefício inestimável todos os fiéis sentem em si. Então, a
bondade de Deus, quando conhecida pela experiência, deve remover deles
toda a opinião contrária a seu respeito.
Quando diz que Deus, segundo a sua vontade, ou espontaneamente, nos ge-
rou, ele sugere que ele não fora induzido por outra razão – uma vez que a von-
tade e o conselho de Deus são freqüentemente definidos em oposição aos mé-
ritos humanos. Que coisa grandiosa, de fato, teria sido dizer que Deus não fora
constrangido a fazer isto? Mas ele assinala algo mais – que Deus, segundo a
sua boa vontade, nos gerou, e deste modo foi uma causa para si. Por onde
segue-se que é natural para Deus fazer o bem.
Mas esta passagem nos ensina que, assim como a nossa eleição antes da
fundação do mundo foi gratuita, do mesmo modo somos iluminados exclusiva-
mente pela graça de Deus quanto ao conhecimento da verdade, de modo que
o nosso chamado corresponde à nossa eleição. A Escritura revela que fomos
adotados gratuitamente por Deus antes de nascermos. Mas Tiago expressa
aqui algo mais – que obtemos o direito de adoção porque Deus também nos
chama gratuitamente (Ef 1:4, 5). Ademais, por aqui aprendemos que é o ofício
peculiar de Deus regenerar-nos espiritualmente; pois o fato de que o mesmo às
vezes seja atribuído aos ministros do evangelho não significa outra coisa senão
isto – que Deus age através deles; e, de fato, isto acontece através deles, mas,
não obstante, somente ele faz a obra.
A palavra gerou significa que nos tornamos novo homem, de modo que nos
despimos de nossa natureza anterior quando somos eficazmente chamados
por Deus. Ele acrescenta como Deus nos gera – a saber, pela palavra da ver-
dade – para que saibamos que não podemos entrar no reino de Deus por qual-
quer outra porta.

11
Este verso deve ser entendido em conexão com o que vem antes. Quando mencio-
na “toda boa dádiva”, isto se opõe ao mal de que ele diz que Deus não é o autor. Vede
Mt 7:11. E “todo dom perfeito”, conforme significa δώρηµα, faz referência à correção
do mal que surge do próprio homem. E ele chama de dom perfeito porque não tem
nenhuma mistura de mal – o que nega completamente que Deus seja o seu autor.
Então, a última parte do verso traz uma correspondência com o primeiro. Ele chama
Deus de “Pai das luzes”. Luz, na linguagem da Escritura, significa especialmente duas
coisas, a luz da verdade – o conhecimento divino – e a santidade. Deus é o pai, o ge-
nitor, a origem, a fonte destas luzes. Por isso, dele desce toda a boa, útil e necessária
dádiva, para livrar os homens do mal, da ignorância e do engano, e todo o dom perfei-
to, para libertar os homens das paixões malignas, e para torná-los santos e felizes. E,
para mostrar que Deus é sempre o mesmo, ele acrescenta: “em que não há mudança
nem sombra (ou matiz, do mais ligeiro aspecto) de variação” – ou seja, quem nunca
muda em seus tratos com o homem, e não mostra sintomas de qualquer mudança,
sendo o autor e conferidor de todo o bem, e autor de nenhum mal, ou seja, de nenhum
pecado.
14 Comentários de Calvino

Para que fôssemos como primícias das suas criaturas. A palavra τινὰ, “alguns”,
tem o sentido de semelhança – como se ele tivesse dito que, de certa maneira,
somos as primícias. Mas isto não deve ser restrito a alguns dos fiéis, mas diz
respeito a todos em comum. Pois, assim como o homem se distingue entre to-
das as criaturas, do mesmo modo o Senhor elege alguns dentre toda a massa
e os separa como uma oferta santa para si.12 Não é a uma nobreza comum que
Deus exalta seus filhos. Então, justamente se diz que são excelentes como
primícias, quando a imagem de Deus é renovada neles.

TIAGO 1:19-21
19. Portanto, meus amados irmãos, todo 19. Itaque, fratres mei dilecti, sit omnis
o homem seja pronto para ouvir, tardio homo celer ad audiendum, tardus autem
para falar, tardio para se irar. ad loquendum, tardus ad iram:
20. Porque a ira do homem não opera a 20. Ira enim hominus justitiam Dei non
justiça de Deus. operatur.
21. Por isso, rejeitando toda a imundícia e 21. Quapropter deposita omni inmunditie,
superfluidade de malícia, recebei com et redundantia malitiae, cum mansuetudi-
mansidão a palavra em vós enxertada, a ne suscipite insitum sermonem qui potest
qual pode salvar as vossas almas. servare animas vestras.
19. Todo o homem. Fosse esta uma senteça geral, a inferência seria forçada;
mas como, logo em seguida, acrescenta uma sentença a respeito da palavra
da verdade que é apropriada para o último verso, não tenho dúvida de que ele
acomoda esta exortação particularmente ao assunto em questão. Então, tendo
apresentado diante de nós a bondade de Deus, ele mostra como nos convém
estarmos preparados para receber a graça que ele demonstra para conosco. E
esta doutrina é muito útil, pois a geração espiritual não é obra de um momento.
Como alguns vestígios do velho homem ainda residem em nós, devemos ne-
cessariamente ser renovados durante toda a vida, até que a carne seja abolida;
pois, seja a nossa perversidade, ou arrogância, ou preguiça, são um grande
impedimento para Deus aperfeiçoar a sua obra em nós. Por isso, quando Tiago
quer que sejamos prontos para ouvir, ele recomenda a prontidão – como se
tivesse dito: “Quando Deus tão livre e generosamente se vos apresenta, vós
também deveis vos tornar ensináveis, para que vossa indolência não o faça
desistir de falar”.
Mas, porquanto não ouvimos tranquilamente Deus falando conosco, quando
parecemos ser muito sábios a nós mesmos, mas pela nossa pressa o inter-
rompemos quando se dirige a nós, o Apóstolo pede que fiquemos em silêncio,
sejamos tardios em falar. E, sem dúvida, ninguém pode ser um verdadeiro dis-
cípulo de Deus, a não ser que o ouça em silêncio. Contudo, ele não requer o
silêncio da escola pitagórica, como se não fosse correto indagar sempre que

12
Primícias sendo uma parte e garantia da colheita futura, para retermos a metáfora
precisamos considerar “criaturas” aqui como incluindo todos os salvos nas eras futu-
ras. Por isso, deve ser preferida a opinião daqueles que consideram os primeiros con-
versos, que eram judeus, como as primícias.
Epístolas Gerais – Tiago 15

desejamos aprender o que é preciso saber; mas ele quer apenas que corrija-
mos e refreemos a nossa precipitação, para que, como normalmente acontece,
não interrompamos oportunamente a Deus, e para que, enquanto ele abre a
sua boca santa, possamos abrir para ele nossos corações e nossos ouvidos, e
não impedi-lo de falar.
Tardio para se irar. Penso que a ira também é condenada com respeito à aten-
ção que Deus pede que lhe seja dada, como se, criando um tumulto, ela per-
turbasse e o impedisse – pois Deus não pode ser ouvido exceto quando o espí-
rito está tranquilo e sereno. Por isso, ele acrescenta que, enquanto a ira tem o
controle, não há lugar para a justiça de Deus. Em suma, a não ser que o calor
da contenda seja banido, nunca observaremos para com Deus aquele silêncio
tranquilo do qual ele acaba de falar.
21. Por isso, rejeitando. Ele conclui dizendo como a palavra da vida deve ser
recebida. E, de fato, primeiro sugere que ela não pode ser devidamente recebi-
da, a menos que seja implantada, ou lance raízes em nós. Pois a expressão:
recebei a palavra enxertada, deve ser explicada assim: “recebei-a, para que
seja realmente implantada”. Pois ele faz alusão à semente muitas vezes seme-
ada e lançada, e não recebida nos recessos úmidos da terra; ou, a plantas que,
sendo lançadas no solo, ou colocadas sobre madeira morta, logo secam. En-
tão, ele pede que ela seja um enxerto vivo, através do que a palavra se torna
unida ao nosso coração.
Ao mesmo tempo, mostra a maneira e o modo desta recepção – a saber, com
mansidão. Por esta palavra, ele se refere à humildade e prontidão de um espíri-
to disposto a aprender, tal como Isaías descreve quando diz: “Em quem repou-
sa o meu Espírito, senão nos mansos e humildes?” (Is 57:15). Por onde isso
está longe de ser proveitoso na escola de Deus, porque dificilmente um em
cem renuncia à obstinação do seu próprio espírito, e submete-se gentilmente a
Deus; mas quase todos são convencidos e refratários. Mas, se queremos ser a
plantação viva de Deus, devemos submeter nossos corações orgulhosos e
sermos humildes, e nos esforçarmos para ser como cordeiros, permitindo-nos
ser governados e guiados pelo nosso Pastor.
Mas, assim como os homens nunca são tão tratáveis assim, para terem um
coração tranquilo e manso, a não ser que sejam purificados das afeições de-
pravadas; do mesmo modo ele nos manda rejeitarmos toda a imundícia e su-
perfluidade de malícia. E, como Tiago tomou emprestada uma comparação a
partir da agricultura, era necessário que ele observasse esta ordem, começan-
do por arrancar as ervas nocivas. E, como se dirigiu a todos, a partir disto po-
demos concluir que estes são os males inatos da nossa natureza, e que eles
se apegam a todos nós; sim, como se dirige aos fiéis, ele explica que nunca
estamos totalmente purificados deles nesta vida, mas que estão continuamente
espocando, e por isso ele requer que se tome constante cuidado por erradicá-
los. Como a palavra de Deus é algo especialmente santo; para estarmos aptos
a recebê-la, devemos nos despir das coisas imundas pelas quais temos sido
contaminados.
Sob a palavra κακία, ele inclui a hipocrisia e obstinação, bem como os desejos
ou paixões ilícitas. Não satisfeito em especificar a sede da impiedade como
16 Comentários de Calvino

estando na alma humana, ele nos ensina que tão abundante é a impiedade que
habita aí, que ela transborda, ou cresce como que em um montão; e, sem dú-
vida, todo aquele que se examinar bem descobrirá que há dentro de si um i-
menso caos de males.13
A qual pode salvar. É um sublime elogio à verdade celestial, que por meio dela
alcancemos uma salvação segura; e isto é acrescentado para que aprendamos
a buscar, e a amar, e a magnificar a palavra como um tesouro incomparável.
Então, é um aguilhão afiado para açoitar a nossa ociosidade, quando ele diz
que a palavra que costumamos ouvir tão negligentemente é o meio da nossa
salvação, ainda que, com este propósito, o poder de salvar não seja atribuído à
palavra – como se a salvação fosse transmitida através do som externo da pa-
lavra, ou como se o ofício de salvar fosse retirado de Deus e transferido para
outra parte; pois Tiago fala da palavra que, pela fé, penetra nos corações dos
homens, e apenas sugere que Deus, o autor da salvação, comunica-a pelo seu
Evangelho.

TIAGO 1:22-27
22. E sede cumpridores da palavra, e não 22. Estote factores sermones, et non audi-
somente ouvintes, enganando-vos com tores solum, fallentes vos ipsos.
falsos discursos.
23. Porque, se alguém é ouvinte da pala- 23. Nam si quis auditor est sermones, et
vra, e não cumpridor, é semelhante ao non factor, hic similis est homini conside-
homem que contempla ao espelho o seu ranti faciem nativitatis suae in speculo.
rosto natural;
24. Porque se contempla a si mesmo, e 24. Consideravit enim seipsum, et abiit, et
vai-se, e logo se esquece de como era. protinus oblitus est qualis sit.
25. Aquele, porém, que atenta bem para 25. Qui vero intuitus fuerit in legem perfec-
a lei perfeita da liberdade, e nisso perse- tam, quae est libertatis, et permanserit, hic
vera, não sendo ouvinte esquecidiço, mas non auditor obliviosus, sed factor operis,
fazedor da obra, este tal será bem- beatus in opere suo erit.
aventurado no seu feito.
26. Se alguém entre vós cuida ser religio- 26. Si quis videtur religiosus esse inter
so, e não refreia a sua língua, antes en- vos, nec refraenat linguam suam, sed de-
gana o seu coração, a religião desse é cipits cor suum, hujus inanus est religio.
vã.

13
O que torna esta passagem insatisfatória é o sentido dado a περισσεία, traduzida
por alguns como “superfluidade”, e por outros como “redundância”. O verbo
περισσεύω não significa apenas abundar, mas também ser um resíduo, permanecer,
restar. Vede Mt 14:20, Lc 9:17. E seu derivado, περίσσευµα, é usado no sentido de
restante ou remanescente – Mc 8:8; e esta mesma palavra é usada na Septuaginta em
lugar de ‫ יתר‬, que significa resíduo, remanescente, ou o que resta, Ez 6:8. Tenha ela
este significado aqui, e o sentido não apenas será claro, mas muito surpreendente.
Tiago estava se dirigindo àqueles que eram cristãos; e os exortava a lançarem fora
toda a impureza e vestígio de impiedade – ou mal, como significa mais apropriada-
mente a palavra κακία. Vede At 8:22; 1 Pe 2:16.
Epístolas Gerais – Tiago 17

27. A religião pura e imaculada para com 27. Religio pura et impolluta coram Deo et
Deus, o Pai, é esta: Visitar os órfäos e as Patre, haec est, Visitare pupillos et viduas
viúvas nas suas tribulações, e guardar-se in afflictione ipsorum, inmaculatum servare
da corrupção do mundo. se a mundo.
22. Sede cumpridores da palavra. O cumpridor aqui não é o mesmo que em
Rm 2:13, o qual satisfez a lei de Deus e a cumpriu em todos os aspectos; mas
o cumpridor é aquele que abraça de coração a palavra de Deus e testifica, a-
través da sua vida, que ele realmente crê – de acordo com as palavras de Cris-
to: “Bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a guardam” (Lc
11:28); pois ele mostra pelos frutos o que é aquele enxerto anteriormente cita-
do. Devemos ainda observar que é incluída por Tiago a fé com todas as suas
obras – sim, a fé especialmente, pois ela é a maior obra que Deus requer de
nós. A importância de tudo isto é que devemos nos esforçar para que a palavra
do Senhor lance raízes em nós, para que em seguida possa frutificar.14
23. É semelhante ao homem. A doutrina celestial é de fato um espelho, no qual
Deus se apresenta à nossa vista; mas para que sejamos transformados à sua
imagem, como Paulo diz em 2 Co 3:18. Mas aqui ele fala do vislumbre exterior
dos olhos, não da meditação vivida e eficaz que penetra no coração. É uma
comparação surpreendente, pela qual sugere, em poucas palavras, que uma
doutrina meramente ouvida, e não recebida interiormente no coração, de nada
serve, porque logo desaparece.
25. A lei perfeita da liberdade. Após ter falado acerca da especulação vazia, ele
passa agora àquela intuição penetrante que nos transforma à imagem de Deus.
E, como tinha de lidar com os judeus, ele emprega a palavra lei – familiarmente
conhecida deles – como incluindo toda a verdade de Deus.
Mas, por que ele a chama de lei perfeita, e lei da liberdade, os intérpretes não
têm sido capazes de entender; pois não perceberam que aqui há um contraste
– o que pode ser deduzido a partir de outras passagens da Escritura. Enquanto
a lei é pregada pela voz exterior do homem, e não gravada pelo dedo e Espírito
de Deus no coração, ela é apenas letra morta, e, por assim dizer, algo sem vi-
da. Então, não é de se surpreender que a lei seja considerada imperfeita, e que
seja a lei da servidão; pois, como Paulo ensina em Gl 4:24, separada de Cristo,
ela gera para a condenação; e, como o mesmo nos mostra em Rm 8:13, ela
não pode fazer nada além de nos encher de desconfiança e temor. Mas o Espí-
rito de regeneração, que a grava em nosso interior, traz também a graça da
adoção. Então, isto é o mesmo que se Tiago tivesse dito: “Que o ensino da lei
não vos leve mais em cativeiro, mas, pelo contrário, traga-vos à liberdade; que
não seja mais apenas um pedagogo, mas vos traga à perfeição; ela deve ser
recebida por vós com sincera afeição, a fim de que possais levar uma vida san-
ta e piedosa”.
Além disso, com é uma bênção do Antigo Testamento que a lei de Deus deve-
ria nos corrigir, tal como se revelado por Jr 31:33 e outras passagens, segue-se

14
Calvino não toma nota da última sentença: “enganando-vos a vós mesmos”. O parti-
cípio significa enganar através de falso raciocínio; pode ser traduzido, juntamente com
Doddridge, por: “enganando-vos sofisticamente”.
18 Comentários de Calvino

que isto não pode ser alcançado enquanto não nos achegamos a Cristo. E,
sem dúvida, somente ele é o fim e a perfeição da lei; e Tiago acrescenta liber-
dade, como um associado inseparável, porque o Espírito de Cristo nunca rege-
nera apenas, sem que também se torne um testemunho e uma garantia da
nossa adoção divina, libertando nossos corações do temor e tremor.
E persevera. Isto é perseverar firmemente no conhecimento de Deus; e, quan-
do acrescenta: este tal será bem-aventurado no seu feito, ou obra, ele quer
dizer que a bem-aventurança deve ser encontrada no fazer, não em um frio
ouvir.15
26. Cuida ser religioso. Agora ele censura, até mesmo naqueles que se orgu-
lhavam de que fossem praticantes da lei, um vício sob o qual os hipócritas
normalmente laboram; ou seja, o desregramento da língua na difamação. Antes
ele tratara do dever de refrear a língua, mas com um propósito diferente; pois
ali ele ordenara o silêncio diante de Deus, para que estivéssemos mais em
condições de aprender. Agora, ele fala de outra coisa – que os fiéis não deviam
empregar sua língua em maledicência.
De fato, era necessário que este vício fosse condenado, quando o assunto era
a observância da lei; pois aqueles que deixam os vícios mais grosseiros estão
especialmente sujeitos a esta enfermidade. Aquele que não é nem adúltero,
nem ladrão, nem beberrão, mas, pelo contrário, parece brilhante com certa
amostra exterior de santidade, se estragará defamando os outros – e isto sob o
pretexto de zelo, mas na verdade pela paixão da calúnia.
O objetivo aqui, então, era distinguir entre os verdadeiros adoradores de Deus
e os hipócritas, que estão tão cheios de orgulho farisaico, que buscam louvor
através dos defeitos de outros. Se alguém, diz ele, cuida ser religioso, ou seja,
que tem uma aparência de santidade, e ao mesmo tempo se gaba falando mal
dos outros, por aqui fica evidente que ele não serve verdadeiramente a Deus.
Pois, dizendo que a sua religião é vã, ele não apenas sugere que outras virtu-
des são desfiguradas pela mácula da maledicência, mas que a conclusão é de
que o zelo aparente pela religião não é sincero.
Antes engana o seu coração. Não aprovo a versão de Erasmo: “Mas permite
que seu coração erre”, pois ele indica a fonte dessa arrogância em que estão
viciados os hipócritas, através da qual, estando cegados por um amor imode-
rado de si mesmos, eles acreditam ser bem melhores do que realmente são; e
daqui, sem dúvida, vem a doença da calúnia, porque o alforge, como diz Esopo
em seu Apólogo, pendurado por detrás, não é visto. Justamente, então, Tiago,
querendo remover o efeito, ou seja, a paixão da maledicência, acrescentou a
causa – a saber, que os hipócritas se gabem imoderadamente. Pois eles esta-
riam prontos para perdoar se, por sua vez, reconhecessem precisar de perdão.
Por isso as bajulações pelas quais se enganam a si mesmos quanto aos seus
próprios vícios os tornam censores tão sobranceiros dos outros.

15
Isto pode ser traduzido assim: “O mesmo será abençoado em (ou, por) fazê-lo” –
isto é, o feito. A prática mesma da lei da liberdade, que o evangelho prescreve, torna o
homem bem-aventurado ou feliz.
Epístolas Gerais – Tiago 19

27. A religião pura. Como passa por aquelas coisas que são da maior impor-
tância em religião, ele não define genericamente o que é a religião, mas lem-
bra-nos de que a religião sem as coisas que menciona não é nada; como
quando alguém dado ao vinho e à glutonaria se orgulha de ser temperado, e
outro objeta, e diz que o homem temperado é aquele que não se indulta em
excesso de vinho ou comida; seu objetivo não é expressar tudo o que é a tem-
perança, e sim referir-se apenas a uma coisa, adequada para o assunto em
questão. Pois em vão são religiosos aqueles de quem ele fala, uma vez que
são na sua maior parte fingidores levianos.
Tiago então nos ensina que a religião não deve ser estimada pela pompa das
cerimônias; mas que existem deveres importantes aos quais os servos de Deus
devem atender.
Visitar nas tribulações é estender uma mão de ajuda para aliviar aqueles que
estão em aflição. E, como existem muitos outros a quem o Senhor nos manda
socorrer, ao mencionar os órfãos e as viúvas, ele declara uma parte pelo todo.
Então, não há dúvida de que, sob algo particular, ele nos recomenda todos os
atos de amor – como se tivesse dito: “Que aquele que deseja ser considerado
religioso prove ser tal por meio da auto-negação e pela misericórdia e benevo-
lência para com o seu próximo”.
E ele diz: diante de Deus, para sugerir que na verdade parece ser diferente
para os homens, que são enganados por máscaras exteriores; mas que deve-
mos buscar o que o agrada. Por Deus e Pai, devemos entender Deus, que é
um pai.

TIAGO 2:1-4
1. Meus irmãos, não tenhais a fé de nos- 1. Fratres mei, ne in acceptionabus perso-
so Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória, narum fidem habeatis Domini Jesu Christi
em acepção de pessoas. ex opinione, (vel, gloriae.)
2. Porque, se no vosso ajuntamento en- 2. Si enim ingressus fuerit in coetum ves-
trar algum homem com anel de ouro no trum vir aureos anulos gestans, veste in-
dedo, com trajes preciosos, e entrar tam- dudus spliendida; ingressus autem fuerit
bém algum pobre com sórdido traje, et pauper in sordida veste;
3. E atentardes para o que traz o traje 3. Et respexeritis in cum qui vestem fert
precioso, e lhe disserdes: Assenta-te tu splendidam, et ei dixeritis, Tu sede hic
aqui num lugar de honra, e disserdes ao honeste, et pauperi dixeritis, Tu sta illic,
pobre: Tu, fica aí em pé, ou assenta-te vel, Sede hic sub scabello pedum meo-
abaixo do meu estrado, rum;
4. Porventura não fizestes distinção entre 4. An non dijudicati eestis in vobisipsis, et
vós mesmos, e não vos fizestes juízes de facti judices malarum cogitationum?
maus pensamentos?
À primeira vista, esta repreensão parece ser dura e desarrazoada; pois é um
dos deveres da cortesia, que não deve ser negligenciado, honrar aqueles que
são nobres no mundo. Ademais, se o respeito às pessoas fosse mau, os ser-
vos deveriam se libertar de toda a sujeição – pois a liberdade e a servidão são
consideradas por Paulo como condições de vida. O mesmo se deve pensar
20 Comentários de Calvino

acerca dos magistrados. Mas a solução destas questões não é difícil, se o que
Tiago escreve não for isolado. Pois ele não desaprova simplesmente a honra
prestada aos ricos, mas que isso não deveria ser feito de modo a desprezar ou
censurar os pobres; e isto se torna ainda mais claro, quando passa a falar a-
cerca da regra do amor.
Portanto, lembremo-nos de que o respeito às pessoas condenado aqui é aque-
le pelo qual os ricos são exaltados de tal modo que é feita injustiça aos pobres
– o que também ele mostra claramente pelo contexto; e, certamente, é ambi-
ciosa, e cheia de vaidade, a honra demonstrada pelos ricos em desprezo aos
pobres. E também não há dúvida de que a ambição reina, e a vaidade também,
quando somente as máscaras deste mundo estão em alta estima. Devemos
nos lembrar desta verdade, de que deve ser considerado entre os herdeiros do
reino de Deus aquele que despreza os réprobos e honra os que temem a Deus
(Sl 15:4).
Aqui, então, é condenado o vício contrário – a saber, quando, apenas por res-
peito às riquezas, alguém honra os ímpios e, como foi dito, desonra os bons.
Se, então, lêsseis assim: “Peca aquele que respeita o rico”, a sentença seria
absurda; mas se, como segue: “Peca aquele que honra apenas o rico e des-
preza o pobre, e o trata com desrespeito”, esta seria uma doutrina verdadeira e
piedosa.
1. Não tenhais a fé, etc. em acepção de pessoas. Ele quer dizer que o respeito
às pessoas é inconsistente com a fé de Cristo, de modo que não podem estar
unidos, e isto com razão; pois, através da fé, somos unidos em um só corpo, no
qual Cristo tem a primazia. Portanto, quando as pompas do mundo se tornam
tão proeminentes que encobrem o que Cristo é, fica evidente que a fé tem pou-
co vigor.
Ao traduzir τὢς δόξης como “por consideração” (ex opinione), segui Erasmo;
embora o intérprete antigo não possa ser acusado por tê-lo traduzido como
“glória”, pois a palavra significa as duas coisas; e pode ser convenientemente
aplicada a Cristo – e isto de acordo com o propósito da passagem. Pois, tão
grande é o esplendor de Cristo, que facilmente extingue todas as glórias do
mundo – se de fato ela irradia aos nossos olhos. Por onde segue-se que Cristo
é pouco estimado por nós, quando a admiração da glória mundana se nos a-
pega. Mas a outra exposição também é mui apropriada, pois, quando a consi-
deração ou o valor das riquezas ou das honras fascina os nossos olhos, a ver-
dade, que deveria prevalescer, é suprimida. Assenta-te convenientemente sig-
nifica assentar-se com honra.
4. Porventura não fizestes distinção em vós mesmos? ou, não estais condena-
dos em vós mesmos? Isto pode ser lido tanto afirmativa como interrogativa-
mente, mas o sentido seria o mesmo, pois ele enfatiza a falta por meio disto –
que eles tinham prazer e se indultavam em tão grande impiedade. Se for lido
interrogativamente, o sentido é: “Vossa própria consciência não vos acusa, de
modo que não precisais de outro juiz?” Se for preferida a afirmativa, isto é o
Epístolas Gerais – Tiago 21

mesmo que se ele tivesse dito: “Este mal também acontece, que não pensais
que tendes pecado, nem sabeis que vossos pensamentos sejam tão ímpios”.16

TIAGO 2:5-7
5. Ouvi, meus amados irmãos: Porventu- 5. Audite, fratres mei dilecti, nonne Deus
ra não escolheu Deus aos pobres deste elegit pauperes mundi hujus divites in fide
mundo para serem ricos na fé, e herdei- et heredes regni quod promisit iis qui dili-
ros do reino que prometeu aos que o a- gunt eum?
mam?
6. Mas vós desonrastes o pobre. Porven- 6. Vos autem contemptui habiustis paupe-
tura não vos oprimem os ricos, e não vos rem: nonne divites tyrnnidem in vos exer-
arrastam aos tribunais? cent et iidem trahunt vos ad tribunalia?
7. Porventura não blasfemam eles o bom 7. Et iidem contumelia afficiunt bonum
nome que sobre vós foi invocado? nomen quod invocatum est super vos?
5. Ouvi, meus amados irmãos. Agora ele prova, por meio de dois argumentos,
que eles agiam de modo ridículo, quando, por amor aos ricos, desprezavam os
pobres. O primeiro é que é inconveniente e vergonhoso abater aqueles a quem
Deus exalta, e tratar injuriosamente aqueles a quem ele honra. Como Deus
honra aos pobres, então todo aquele que os repudia inverte a ordem de Deus.
O outro argumento é tomado a partir da experiência comum; pois, como os ri-
cos são em grande parte opressivos para com os bons e inocentes, é mui de-
sarrazoado prestar tal recompensa pelos males que causam, para que sejam
mais aprovados por nós do que os pobres – os quais nos ajudam mais do que
prejudicam. Agora veremos como ele procede com estes dois pontos.
Não escolheu Deus aos pobres deste mundo? De fato, não exclusivamente,
mas ele quis começar com eles, a fim de abater o orgulho dos ricos. É isto o
que Paulo também diz – que Deus escolheu, não muitos nobres, nem muitos
poderosos do mundo, mas os que são fracos, a fim de envergonhar aqueles
que são fortes (1 Co 1:25). Em suma, embora Deus derrame a sua graça sobre
os ricos em comum com os pobres, sua vontade é preferir estes àqueles, a fim
de que os poderosos aprendessem a não se gabarem, e para que os ignóbeis

16
Isto é normalmente admitido como uma sentença interrogativa: “E não fazeis dife-
rença entre (ou, em) vós, e vos tornais juízes, tendo maus pensamentos?” – literal-
mente, “juízes de maus pensamentos”, este sendo, como dizem, o caso genitivo de
posse. Ou, as palavras podem ser traduzidas como: “e vos tornais juízes de maus (ou,
falsos) raciocínios?”, ou, como Beza traduz a sentença, “e vos tornais juízes, racioci-
nando falsamente” – concluindo que o homem rico fosse bom e o pobre, mau.
É dito, por Beza e outros, que διακρίνοµαι nunca significa ser julgado ou condenado,
mas distinguir, discriminar, fazer diferença, e também contender e duvidar. A diferença
feita aqui era o respeito às pessoas que fora demonstrado – e eles faziam esta dife-
rença em si mesmos, em suas próprias mentes, através de pensamentos falsos ou
perversos, ou raciocínios que entretiam. Mas parece que estas preferências eram de-
monstradas, não aos membros da Igreja, e sim a estranhos que por acaso pudessem
vir às suas assembléias.
22 Comentários de Calvino

e obscuros atribuíssem o que são à misericórdia de Deus, e para que ambos


fossem educados à mansidão e humildade.
Ricos na fé não são os que abundam em grandeza de fé, e sim aqueles que
Deus enriqueceu com os diversos dons do seu Espírito, os quais recebemos
pela fé. Pois, sem dúvida, como o Senhor trata generosamente a todos, cada
um se torna participante dos seus dons segundo a medida da sua fé. Se, en-
tão, estamos vazios ou necessitados, isto prova a deficiência da nossa fé; pois,
se tão somente alargarmos o regaço da fé, Deus estará sempre pronto a en-
chê-lo.
Ele afirma que um reino está prometido aos que amam a Deus; não que a pro-
messa dependa do amor; mas ele nos lembra de que somos chamados por
Deus para a esperança da vida eterna, sobre esta condição e com esta finali-
dade – para que o amemos. Nesse caso, o fim, e não o começo, é assinalado
aqui.
6. Porventura os ricos. Ele parece instigá-los à vingança ao apresentar o domí-
nio injusto dos ricos, para que aqueles que eram tratados injustamente retribu-
íssem de igual para igual; e, por outro lado, somos mandados em toda a parte
a fazer o bem àqueles que nos injuriam. Mas o objetivo de Tiago era outro; pois
ele apenas queria mostrar que estavam sem razão ou juízo aqueles que, por
ambição, honravam os seus executores, e ao mesmo tempo prejudicavam os
seus próprios amigos – ao menos, aqueles dos quais nunca sofreram nenhum
mal. Pois, por isso, mostrava-se ainda mais plenamente a vaidade deles – que
não fossem induzidos por nenhum ato de bondade; eles apenas admiravam os
ricos porque eram ricos; não somente isto, mas bajulavam servilmente aqueles
que descobriam, para sua própria perda, serem injustos e cruéis.
Existem, de fato, alguns ricos que são justos, e mansos, e detestam toda a in-
justiça; mas poucos homens assim serão encontrados. Tiago, então, menciona
o que ocorre com a maioria, e o que a experiência diária prova como verdadei-
ro. Pois, como os homens geralmente exercem o seu poder fazendo o que é
errado, por aqui se mostra que, quanto mais poder alguém tenha, pior ele é, e
tanto mais injusto para com o seu próximo. Tanto mais cuidadosos então de-
vem ser os ricos, para que não contraiam nada desse contágio que em toda a
parte prevalece entre aqueles de seu próprio nível.
7. Digno, ou bom nome. Não tenho dúvida de que ele se refere aqui ao nome
de Deus e de Cristo. E diz: por, ou sobre vós foi invocado, não em oração, co-
mo a Escritura às vezes tende a falar, mas por confissão – assim como é dito
que o nome de um pai, em Gn 48:16, é invocado sobre a sua descendência, e,
em Is 4:1, o nome de um marido é invocado sobre a esposa. Então, isto é o
mesmo que se ele tivesse dito: “O bom nome em que vos gloriais, ou pelo qual
considerais uma honra serdes chamados; mas, se eles orgulhosamente caluni-
am a glória de Deus, quão indignos são de serem honrados pelos cristãos!”
Epístolas Gerais – Tiago 23

TIAGO 2:8-11
8. Todavia, se cumprirdes, conforme a 8. Si legem quidem regiam perfectis juxta
Escritura, a lei real: Amarás a teu próximo scripturum, Diliges proximum tuum sicut te
como a ti mesmo, bem fazeis. ipsum, bene facitis. (Lv 19:18, Mt
22:39, Mc 12:31, Rm 13:9, Gl 5:14.)
9. Mas, se fazeis acepção de pessoas, 9. Sin personam respicitis, peccatum
cometeis pecado, e sois redargüidos pela committis, et redarguimini a lege veluti
lei como transgressores. transgressores. (Lv 19:15, Dt 1:17, 19.)
10. Porque qualquer que guardar toda a 10. Quisquis enim totam legem servaverit,
lei, e tropeçar em um só ponto, tornou-se offenderit autem in uno, factus est omnium
culpado de todos. reus.
11. Porque aquele que disse: Não come- 11. Nam qui dixit, Ne moecheris, dixit eti-
terás adultério, também disse: Não mata- am, Ne occidas. Quod si non fueris moe-
rás. Se tu pois não cometeres adultério, chatus, occideris tamen, factus es trans-
mas matares, estás feito transgressor da gressor legis.
lei.
Agora segue-se uma declaração mais evidente; pois ele assinala expressa-
mente a causa da última repreensão – pois eles eram servilmente atenciosos
para com os ricos, não por amor, mas, pelo contrário, por um vão desejo de
alcançar o seu favor. E isto é uma antecipação, pela qual, por outro lado, ele
prevenia uma desculpa; pois eles poderiam ter objetado e dito que não devia
ser acusado aquele que humildemente se submete aos indignos. De fato, Tiago
admite que isto é verdade, mas mostra que era falsamente pretendido por eles,
porque mostravam esta submissão de homenagem, não por amor ao seu pró-
ximo, mas por acepção de pessoas.
Na primeira cláusula, então, ele reconhece como justos e louváveis os deveres
do amor que cumprimos para com o nosso próximo. Na segunda, nega que o
respeito ambicioso às pessoas deva ser considerado como desta natureza,
pois difere muito do que a lei prescreve. E o ponto crítico desta resposta gira
em torno das palavras “próximo” e “acepção de pessoas” – como se ele tivesse
dito: “Se pretendeis que existe algum tipo de amor no que fazeis, isto pode ser
facilmente contestado; pois Deus nos manda amarmos o nosso próximo, e não
fazermos acepção de pessoas”. Ademais, esta palavra, “próximo”, inclui toda a
humanidade; então, aquele que diz que muito poucos, segundo a sua própria
fantasia, devem ser honrados, e outros ignorados, não guarda a lei de Deus,
mas se sujeita aos desejos depravados do seu coração. Deus expressamente
nos recomenda os estranhos e inimigos, e todos, até os mais desprezíveis. A
esta doutrina, a acepção de pessoas é totalmente contrária. Por isso, Tiago
corretamente afirma que a acepção de pessoas é inconsistente com o amor.
8. Se cumprirdes a lei real. A lei aqui entendo simplesmente como regra de vi-
da; e cumprir, ou realizá-la, é guardá-la com verdadeira integridade de coração
– e, como dizem, circularmente (rotunde); e ele põe essa forma de guarda em
oposição a uma observância parcial dela. É dito, na verdade, que ela é uma lei
real, tal como é o caminho, ou estrada real – ou seja, plana, direta e uniforme –
o que, por implicação, está em oposição a trilhas e curvas sinuosas.
24 Comentários de Calvino

Contudo, é feita alusão, conforme penso, à obediência servil que eles presta-
vam aos ricos, quando podiam, servindo com sinceridade ao seu próximo, ser
não apenas homens livres, mas viver como reis.
Quando, em segundo lugar, ele diz que aqueles que faziam acepção de pesso-
as eram redargüidos, ou reprovados pela lei, a lei é tomada de acordo com o
seu sentido próprio. Pois, como somos ordenados por mandamento de Deus a
abraçar a todos os mortais, todo aquele que, com algumas exceções, rejeita a
todos os demais, quebra o vínculo de Deus, e inverte também a sua ordem, e
é, por conseguinte, justamente chamado de transgressor da lei.
10. Porque qualquer que guardar toda a lei. Ele só quer dizer que Deus não
será honrado com exceções, nem nos permitirá cortar da sua lei o que é menos
agradável a nós. À primeira vista, esta sentença parece difícil para alguns –
como se o apóstolo aprovasse o paradoxo dos estóicos, que torna todos os
pecados iguais; e como se ele afirmasse que aquele que peca em uma só coi-
sa devesse ser castigado igualmente com aquele cuja vida inteira foi pecami-
nosa e perversa. Mas é evidente, a partir do contexto, que nada disso se pas-
sava pela sua mente.
Pois devemos sempre observar a razão pela qual alguma coisa é dita. Ele nega
que o nosso próximo seja amado quando apenas alguns deles são, por ambi-
ção, escolhidos, e o restante negligenciado. Isto ele prova porque não é obedi-
ência a Deus, quando não é prestada uniformemente de acordo com o seu
mandamento. Então, assim como a regra de Deus é clara e completa, ou per-
feita, do mesmo modo devemos considerar a inteireza, a fim de que nenhum de
nós separe presunçosamente o que ele uniu. Que haja, portanto, uma unifor-
midade, se desejamos obedecer corretamente a Deus. Assim como, por exem-
plo, se um juíz punisse dez roubos, mas deixasse um homem sem castigo, ele
trairia a obliqüidade da sua mente, pois assim se mostraria mais indignado con-
tra homens do que contra crimes – porque o que condena em um ele absolve
em outro.
Então agora entendemos o propósito de Tiago – ou seja, que, se separamos da
lei de Deus o que é menos agradável a nós, ainda que em outras partes seja-
mos obedientes, tornamo-nos culpados de tudo, porque em algo particular vio-
lamos toda a lei. E, embora ele acomode o que é dito ao tema em questão, isto
é tomado a partir de um princípio geral – que Deus nos prescreveu uma regra
de vida, a qual não nos é lícito mutilar. Pois isto não é dito acerca de uma parte
da lei: “Este é o caminho, andai por ele”; nem a lei promete uma recompensa,
exceto à obediência total.
Insensatos, então, são os escolásticos, que julgam que a justiça parcial, tal
como a chamam, seja meritória; pois esta passagem, e muitas outras, clara-
mente mostram que não existe justiça senão em uma obediência perfeita à lei.
11. Porque aquele que disse, ou que tem dito. Esta é uma prova do verso ante-
rior – porque o Legislador deve ser mais considerado do que cada preceito par-
ticular isoladamente. A justiça de Deus, como um corpo indivisível, está contida
na lei. Então, todo aquele que transgride um só artigo da Lei destrói, até onde
pode, a justiça de Deus. Além disso, assim como em uma parte, do mesmo
modo em cada parte, a vontade de Deus é provar a nossa obediência. Por isso,
Epístolas Gerais – Tiago 25

um transgressor da lei é todo aquele que peca quanto a qualquer um dos seus
mandamentos, segundo este dito: “Maldito aquele que não cumpre todas as
coisas” (Dt 27:26). Vemos ainda que transgressor da lei, e culpado de todos,
significam a mesma coisa, de acordo com Tiago.

TIAGO 2:12-13
12. Assim falai, e assim procedei, como 12. Sic loquimini, et sic facite, ut per legem
devendo ser julgados pela lei da liberda- libertatis judicandi.
de.
13. Porque o juízo será sem misericórdia 13. Judicium enim sine misericordia ei qui
sobre aquele que não fez misericórdia; e non praestiterit misericordiam; et gloriatur
a misericórdia triunfa do juízo. misericordia adversus judicium.
12. Assim falai. Alguns dão esta explicação – de que, como se gabavam dema-
siadamente, eles são convocados ao justo tribunal; pois os homens se absol-
vem de acordo com os seus próprios conceitos porque se afastam do julga-
mento da lei divina. Então ele os lembra de que todos os feitos e obras alí se-
rão levados em conta, porque Deus julgará o mundo de acordo com a sua lei.
Como, porém, tal declaração poderia tê-los afetado de terror imoderado, para
corrigir ou mitigar o que poderiam ter considerado severo, ele acrescenta: a lei
da liberdade. Pois sabemos o que Paulo diz: “Todos aqueles que estão debaixo
das obras da lei estão debaixo da maldição” (Gl 3:10). Por onde o julgamento
da lei em si mesmo é condenação à morte eterna; mas ele quer dizer, através
da palavra liberdade, que estamos livres do rigor da lei.
Este sentido não é completamente inadequado, ainda que, se alguém examinar
mais precisamente o que vem logo em seguida, verá que Tiago queria dizer
outra coisa; o sentido é como se ele tivesse dito: “A não ser que desejais sofrer
o rigor da lei, deveis ser menos rígidos para com o vosso próximo; pois a lei da
liberdade é idêntica à misericórdia de Deus, que nos livra da maldição da lei”.
E, assim, este verso deve ser lido com o que segue, onde ele fala do dever de
suportar as fraquezas. E, sem dúvida, toda a passagem soa melhor assim: “Co-
mo nenhum de nós pode permanecer de pé diante de Deus, a não ser que se-
jamos salvos e livres do rigor estrito da lei, assim devemos agir, para que, por
demasiada severidade, não excluamos a indulgência ou misericórdia de Deus,
da qual todos nós precisamos até o fim”.
13. Porque o juízo será. Esta é uma aplicação do último verso ao tema em
questão, que confirma totalmente a segunda explicação que citei; pois ele mos-
tra que, como permanecemos de pé somente pela misericórdia de Deus, de-
vemos demonstrar isto àqueles que o próprio Senhor nos recomenda. De fato,
é uma recomendação singular de bondade e benevolência, que Deus prometa
ser misericordioso para conosco, se assim formos para com nossos irmãos;
não que nossa misericórdia, por maior que possa ser, demonstrada aos ho-
mens, mereça a misericórdia de Deus; e sim que Deus deseja que aqueles que
ele adotou, assim como ele é para com eles um Pai bondoso e indulgente, tra-
gam e demonstrem a sua imagem na terra, de acordo com as palavras de Cris-
26 Comentários de Calvino

to: “Sede vós misericordiosos, assim como vosso Pai que está nos céus é mi-
sericordioso” (Mt 5:7).
Por outro lado, devemos notar que ele não poderia denunciar nada mais severo
ou mais terrível sobre eles do que o juízo de Deus. Por onde segue-se que são
todos miseráveis e perdidos aqueles que não fogem para o asilo do perdão.
E a misericórdia triunfa. Como se tivesse dito: “Somente a misericórdia de
Deus é o que nos livra do terror e tremor do juízo”, ele toma regozijar-se ou
gloriar-se no sentido de ser vitorioso ou triunfante – pois o juízo de condenação
está suspenso sobre todo o mundo, e nada além da misericórdia pode trazer
alívio.
Dura e forçada é a explicação daqueles que consideram a misericórdia expres-
sa aqui no sentido da pessoa, pois não se pode dizer propriamente que os ho-
mens se regozijam ou se gloriam contra o juízo de Deus; mas a própria miseri-
córdia de certo modo triunfa, e reina sozinha, quando a severidade do juízo
diminui; ainda que eu não negue que por esta causa surja a confiança em re-
gozijar-se – ou seja, quando os fiéis sabem que a ira de Deus de certo modo se
sujeita à misericórdia, de modo que, sendo livrados pela última, não são sobre-
pujados pela primeira.

TIAGO 2:14-17
14. Meus irmãos, que aproveita se al- 14. Quid prodest, fratres mei, si fidem di-
guém disser que tem fé, e não tiver as cataliquis se habere, opera autem non
obras? Porventura a fé pode salvá-lo? habeat? nunquid potest fides salvum face-
re ipsum?
15. E, se o irmão ou a irmã estiverem 15. Quod si frater aut soror nudi fuerint, et
nus, e tiverem falta de mantimento quoti- egentes quotidiano victu,
diano,
16. E algum de vós lhes disser: Ide em 16. Dicat autem aliquis vestrum illis, Abite
paz, aquentai-vos, e fartai-vos; e não lhes cum pace, calescite et saturamini; non
derdes as coisas necessárias para o cor- tamen dederitis quae sunt necessaria cor-
po, que proveito virá daí? pori, quae utilitas?
17. Assim também a fé, se não tiver as 17. Sic et fides, si opera non habuerit,
obras, é morta em si mesma. mortua est per se.
14. Que aproveita. Ele passa a recomendar a misericórdia. E, como havia a-
meaçado que Deus seria um Juíz severo para conosco, e ao mesmo tempo
mui terrível, a não ser que sejamos benignos e misericordiosos para com o
nosso próximo; e como, por outro lado, os hipócritas objetavam e diziam que a
fé, na qual consiste a salvação dos homens, é suficiente para nós; ele condena
agora esta vã jactância. A suma, então, do que se diz, é que a fé sem o amor
de nada aproveita, e que, por isso, está completamente morta.
Mas aqui surge uma questão: Pode a fé ser separada do amor? De fato, é ver-
dade que a exposição desta passagem tem produzido aquela distinção comum
dos sofistas, entre a fé informe e fé formada; mas Tiago não sabia nada a res-
peito de tal coisa, pois está claro, a partir das primeiras palavras, que ele fala
Epístolas Gerais – Tiago 27

da falsa confissão de fé; pois ele não começa assim: “Se alguém tem fé”, e sim:
“Se alguém diz que tem fé” – por meio de que certamente sugere que os hipó-
critas se vangloriam do nome oco da fé, a qual na verdade não lhes pertence.
O que ele chama então de fé é uma concessão, como dizem os retóricos; pois,
quando discutimos um ponto, não faz mal – mais ainda, às vezes é aconselhá-
vel – conceder a um adversário o que ele pede, pois, tão logo a coisa em si
seja conhecida, o que é concedido pode ser facilmente retirado dele. Tiago,
então, como estava satisfeito com que este fosse um falso pretexto com o qual
os hipócritas se encobriam, não estava disposto a levantar disputa sobre uma
palavra ou expressão. Contudo, lembremo-nos de que ele não fala segundo a
impressão da sua mente quando faz menção à fé, mas que, pelo contrário, dis-
puta contra aqueles que faziam uma falsa pretensão quanto à fé, da qual esta-
vam totalmente destituídos.
Porventura a fé pode salvá-lo? Isto é o mesmo que se ele tivesse dito que não
alcançamos a salvação por um mero e frígido conhecimento de Deus, o qual
todos confessam ser mui verdadeiro; pois a salvação vem a nós através da fé
por esta razão – porque ela nos une a Deus. E isto não ocorre de nenhum ou-
tro modo senão por estarmos unidos ao corpo de Cristo, de modo que, vivendo
pelo seu Espírito, também somos governados por ele. Não existe nada disto na
imagem morta da fé. Então, não é de se surpreender que Tiago negue que a
salvação esteja unida a ela.17
15. Se o irmão, ou, pois, se o irmão. Ele toma um exemplo a partir do que está
relacionado com o seu assunto; pois vinha exortando-os ao exercício dos deve-
res do amor. Se alguém, pelo contrário, se jactasse de que estava satisfeito
com a fé sem as obras, ele compara esta fé obscura com as palavras de al-
guém que manda um homem faminto saciar-se sem lhe fornecer o alimento de
que este está destituído. Então, assim como aquele que despede um homem
pobre com palavras, e não lhe oferece ajuda, trata-o com escárnio, do mesmo
modo aqueles que inventam para si uma fé sem obras, e sem nenhum dos de-
veres da religião, brinca com Deus.18
17. É morta em si mesma. Ele afirma que a fé é morta em si mesma, ou seja,
quando destituída de boas obras. Por onde concluímos que, na verdade, isto
não é fé, pois, quando morta, não retém devidamente o nome. Os sofistas ape-
lam para esta expressão e dizem que algum tipo de fé existe em si mesma;
mas esta objeção frívola e capciosa é facilmente refutada; pois é suficiente-
mente evidente que o Apóstolo raciocina a partir do que é impossível – assim

17
Quando ele diz: “Porventura a fé pode salvá-lo?”, seu sentido é: “Porventura a fé
que ele diz ter pode salvá-lo?” – a fé que está morta e não produz obras; pois essa é
claramente a fé pretendida aqui, tal como se mostra pelo que se segue. Para tornar o
sentido mais evidente, Macknight traduz a sentença assim: “Porventura esta fé pode
salvá-lo?” – ou seja, a fé que não tem obras.
18
Isto é aduzido como uma ilustração – assim como as palavras de um homem ao nú:
“Veste-te”, quando ele nada faz, não produz nenhum bem, é totalmente inútil; do
mesmo modo é aquela fé que não produz obras – estando como que morta, não pode
salvar.
28 Comentários de Calvino

como Paulo chama um anjo de anátema, se tentasse subverter o evangelho (Gl


1:8).

TIAGO 2:18-19
18. Mas dirá alguém: Tu tens a fé, e eu 18. Quin dicat quispam, Tu fidem habes,
tenho as obras; mostra-me a tua fé sem et ego opera habeo; ostende mihi fidem
as tuas obras, e eu te mostrarei a minha tuam sine operibus (alias, ex operibus)
fé pelas minhas obras. tuis, et ego tibi ex operibus meis ostendam
fidem meam.
19. Tu crês que há um só Deus; fazes 19. Tu credis quod Deus unus est, bene
bem. Também os demônios o crêem, e facis; et daemones credunt, ac contremis-
estremecem. cunt.
18. Mas dirá alguém. Erasmo introduz aqui duas pessoas como interlocutores,
das quais uma se gloria da fé sem as obras, e a outra das obras sem a fé; e ele
acredita que ambas finalmente são refutadas pelo Apóstolo. Mas esta visão
parece-me forçada demais. Ele acha estranho que isto devesse ser dito por
Tiago: Tu tens a fé – o qual não admite nenhuma fé sem obras. Mas nisto ele
está muito enganado, porque não percebe uma ironia nestas palavras. Então,
ἀλλὰ entendo no sentido de “não, mas antes”; e τὶς no sentido de “alguém” –
pois o propósito de Tiago era expor o orgulho insensato daqueles que imagina-
vam que tinham fé, quando, pela sua vida, mostravam que eram incrédulos;
pois ele sugere que seria fácil para todos os fiéis que levavam uma vida santa
despojar os hipócritas dessa jactância com que estavam inchados.19
Mostra-me. Embora a leitura mais aceita seja: “pelas obras”, a Antiga Latina é
mais apropriada, e a leitura também se encontra em algumas cópias gregas.
Portanto, não hesitei em adotá-la. Então, ele manda mostrar a fé sem as obras,
e assim raciocina a partir do que é impossível, para provar o que não existe.
Portanto, ele fala ironicamente. Mas, se alguém prefere a outra leitura, ela re-
dunda na mesma coisa: “Mostra-me pelas obras a tua fé” – pois, como ela não
é algo inativo, necessariamente deverá ser provada por meio das obras. O sen-
tido então é: “A menos que a tua fé produza frutos, eu nego que tenhas qual-
quer fé”.20

19
Eu traduziria o verso assim: “Mas alguém pode dizer: Tu tens fé, eu também tenho
obras; mostra-me a tua fé que é sem obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas
obras”. É o mesmo que se ele tivesse dito: “Tu tens apenas a fé, eu tenho também as
obras em acréscimo à minha fé; agora, prove-me que tu tens a verdadeira fé sem ter
obras conectadas a ela (o que era impossível, por isso é chamado de ‘homem vão’, ou
cabeça-oca, em Tg 2:20), e eu provarei a minha fé pelos seus frutos, a saber, as boas
obras”.
20
Griesbach e outros consideram χωρὶς como a verdadeira leitura, favorecida pela
maioria dos manuscritos, e encontrada na Siríaca e na Vulgata.
Este verso é uma chave para o sentido de Tiago; a fé deve ser provada por meio das
obras; então, a fé propriamente justifica e salva, e as obras provam a sua autenticida-
de. Quando ele diz que o homem é justificado pelas obras, o sentido, de acordo com
este verso, é de que o homem é provado pelas suas obras que está justificado, sua fé
Epístolas Gerais – Tiago 29

Mas, pode-se questionar se a justiça de vida exterior é uma evidência segura


da fé. Pois Tiago diz: “Eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras”. A isto eu
respondo que os incrédulos às vezes se sobressaem em virtudes especiosas, e
levam uma vida honrosa, livre de todo o crime; e, por isso, obras aparentemen-
te excelentes podem existir à parte da fé. E, na verdade, Tiago também não
defende que todo aquele que parece bom possua fé. Ele quer dizer apenas isto
– que a fé, sem a evidência das boas obras, é pretendida em vão, porque sem-
pre nasce fruto da raiz viva de uma boa árvore.
19. Tu crês que há um só Deus. A partir desta única sentença, torna-se eviden-
te que toda a disputa não é sobre fé, e sim sobre o conhecimento comum de
Deus – que não pode conectar os homens a Deus mais do que a vista do sol
pode levá-los ao céu; mas é certo que, pela fé, chegamos perto de Deus. Além
disso, seria ridículo se alguém dissesse que os demônios têm fé; e Tiago prefe-
re-os a eles do que aos hipócritas, neste aspecto. O diabo estremece, diz ele, à
menção do nome de Deus, porque, quando reconhece o seu próprio juíz, en-
che-se de temor dele. Então, aquele que despreza um Deus reconhecido é
muito pior.
Fazes bem é dito com o fim de extenuar – como se ele tivesse dito: “É, certa-
mente, algo magnífico ficar abaixo dos demônios!”21

TIAGO 2:20-26
20. Mas, ó homem vão, queres tu saber 20 Vis autem scire, O homo inanis! quod
que a fé sem as obras é morta? fides absque operibus mortua sit?
21. Porventura o nosso pai Abraão não 21. Abraham pater noster, nonne ex ope-
foi justificado pelas obras, quando ofere- ribus justificatus est, quum filium suum
ceu sobre o altar o seu filho Isaque? Isaac super altare?

sendo, por meio disso, revelada como uma fé viva, e não uma fé morta. Podemos bem
nos surpreender, assim como Doddridge, de que alguém, tendo em vista toda esta
passagem, pense que haja alguma contrariedade, no que é dito aqui, com o ensino de
Paulo. A doutrina de Paulo, de que o homem é justificado pela fé, e não pelas obras –
ou seja, por uma fé viva, que opera através do amor – é perfeitamente consistente
com o que diz Tiago – ou seja, que o homem não é justificado por uma fé morta, e sim
por aquela fé que prova o seu poder vivo produzindo boas obras, ou prestando obedi-
ência a Deus. A suma do que Tiago diz é que uma fé morta não pode salvar, e sim
uma fé viva, e que uma fé viva é uma fé operante – uma doutrina ensinada por Paulo,
assim como por Tiago.
21
O propósito de se aludir à fé dos demônios parece ter sido este – mostrar que, em-
bora um homem bom possa crer e tremer, se não obedece a Deus e não faz boas o-
bras, ele não tem verdadeira evidência da fé. A fé obediente é a que salva, e não ape-
nas a que nos faz estremecer. A relação com o verso precedente parece ser a seguin-
te: no primeiro verso, o ostentador da mera fé é desafiado a provar que a sua fé é ver-
dadeira e, portanto, salvífica; o desafiador provaria pelas suas obras. Então, neste
verso, é aplicado um teste – é mencionado o primeiro artigo de fé: “Seja que creias
nisto, contudo esta fé não te salvará – os demônios têm esta fé e, ao invés de serem
salvos, eles estremecem”.
30 Comentários de Calvino

22. Bem vês que a fé cooperou com as 22. Vides quod fides cooperata fuerit ejus
suas obras, e que pelas obras a fé foi operibus, et ex operibus fides perfecta
aperfeiçoada. fuerit?
23. E cumpriu-se a Escritura, que diz: E 23. Atque implenta fuit scriptura, quae
creu Abraão em Deus, e foi-lhe isso impu- dicit, Credidit Abraham Deo, et imputatum
tado como justiça, e foi chamado o amigo illi fuit in justitiam, et Amicus Deo vacatus
de Deus. est?
24. Vedes então que o homem é justifica- 24. Videtis igitur quod ex operibus justifi-
do pelas obras, e não somente pela fé. catur homo, et non ex fide solum.
25. E de igual modo Raabe, a meretriz, 25. Similiter et Rahab meretrix, nonne ex
não foi também justificada pelas obras, operibus justificata est, quum excepit nun-
quando recolheu os emissários, e os tios, et alia via ejecit?
despediu por outro caminho?
26. Porque, assim como o corpo sem o 26. Quemadmodum enim corpus sine a-
espírito está morto, assim também a fé nima mortuum est, ita et fides sine operi-
sem obras é morta. bus mortua est.
20. Mas, queres tu saber. Devemos entender o estado da questão, pois a dis-
puta aqui não é a respeito da causa da justificação, mas apenas de que apro-
veita uma confissão de fé sem as obras, e que opinião devemos formar acerca
disto. Absurdamente, então, agem aqueles que se esforçam por provar, através
desta passagem, que o homem é justificado pelas obras; porque Tiago não
queria dizer nada disso, pois as provas que ele acrescenta se referem a esta
declaração – de que não existe fé, ou apenas uma fé morta, sem as obras.
Ninguém jamais entenderá o que é dito, nem avaliará sabiamente as palavras,
exceto aquele que mantiver em vista o propósito do escritor.
21. Não foi Abraão. Os sofistas se apegam à palavra justificado, e então bra-
dam, como se fossem vitoriosos, que a justificação é parcialmente através das
obras. Mas devemos procurar uma interpretação correta, de acordo com a in-
tenção geral de toda a passagem. Já temos dito que Tiago não fala aqui da
causa da justificação, ou da maneira como os homens alcançam a justiça – e
isto está claro a todos; mas que o seu objetivo era apenas mostrar que as boas
obras sempre estão conectadas à fé; e, portanto, como declara que Abraão
fora justificado pelas obras, ele está falando a respeito da prova que ele dera
da sua justificação.
Quando, portanto, os sofistas colocam Tiago contra Paulo, eles se perdem pelo
sentido ambíguo de um termo. Quando Paulo diz que somos justificados pela
fé, ele não significa outra coisa senão que, pela fé, somos reputados por justos
diante de Deus. Mas Tiago tem em vista algo completamente diferente – a sa-
ber, mostrar que aquele que confessa ter fé deve provar a realidade da sua fé
por meio das suas obras. Sem dúvida, Tiago não pretendia nos ensinar aqui o
fundamento sobre o qual a nossa esperança de salvação deve se apoiar; e é
nisto somente que Paulo se detém.22

22
É justamente observado por Scott que existe a mesma dificuldade em reconciliar
Tiago consigo mesmo, assim como com Paulo. E esta dificuldade desaparece de uma
Epístolas Gerais – Tiago 31

Então, para que não caiamos nesse falso raciocínio que tem enganado os so-
fistas, devemos notar o duplo sentido da palavra justificado. Paulo se refere,
por meio dela, à imputação gratuita da justiça diante do tribunal de Deus; e Ti-
ago, à manifestação da justiça através da conduta – e isso diante dos homens,
conforme podemos deduzir a partir das palavras precedentes: “Mostra-me a tua
fé etc.”. Neste verso, admitimos plenamente que o homem é justificado pelas
obras – como quando alguém diz que o homem é enriquecido pela compra de
um grande e valioso baú, porque suas riquezas, anteriormente ocultas, encer-
radas no baú, foram deste modo reveladas.
22. Pelas obras a fé foi aperfeiçoada.23 Através disto ele mostra novamente
que a questão aqui não é a respeito da causa da nossa salvação, mas se as
obras acompanham necessariamente a fé; pois, neste sentido, é dito que ela
foi aperfeiçoada pelas obras, porque não foi inativa. Diz-se que ela foi aperfei-
çoada pelas obras, não porque recebesse delas a sua própria perfeição, e sim
porque deste modo provou ser verdadeira. Pois a distinção fútil que os sofistas
fazem a partir destas palavras, entre fé informe e formada, não precisa de uma
refutação elaborada; pois a fé de Abrão foi formada e, portanto, aperfeiçoada
antes de sacrificar seu filho. E esta obra não foi como que a obra final, ou con-
clusiva. Depois seguiram-se coisas pelas quais Abraão provou o incremento da
sua fé. Por isso, isto não foi o aperfeiçoamento da sua fé, e ela também não
obteve a sua forma pela primeira vez nessa ocasião. Tiago então não entendia
outra coisa, senão que a integridade da sua fé se revelou nessa ocasião por-
que produziu aquele fruto notável de obediência.
23. E cumpriu-se a Escritura. Aqueles que procuram provar, a partir desta pas-
sagem de Tiago, que as obras de Abraão foram imputadas para justiça, neces-
sariamente confessarão que a Escritura é pervertida por ele; porque, por mais
que se retorçam de todos os lados, nunca poderão tornar o efeito em sua pró-
pria causa. A passagem é citada de Moisés (Gn 15:6). A imputação da justiça
que Moisés menciona precedeu mais de trinta anos à obra pela qual eles que-
rem que Abraão tenha sido justificado. Como a fé fora imputada a Abraão quin-
ze anos antes do nascimento de Isaque, certamente isto não poderia ter sido
realizado através do ato de sacrificá-lo. Considero que estão fortemente atados

vez, quando temos em vista toda a passagem, e não nos confinamos a expressões
isoladas.
23
A sentença anterior é dificilmente inteligível na nossa versão ou na de Calvino. “Vês
tu como a fé operou (cooperou, por Calvino) com as suas obras?” O verbo é
συνεργέω, que significa propriamente operar junto, cooperar; e significa também, co-
mo efeito da cooperação, ajudar, auxiliar. “Vês tu como a fé ajudou-o em suas obras?”
Schleusner fornece esta paráfrase: “Tu vês que Abraão foi ajudado pela sua fé a tor-
nar suas obras notórias”. A versão de Beza é: “Tu vês que a fé foi o assistente (admi-
nister) das suas obras”. Alguns dão a idéia de combinar a cooperar: “Tu vês que a fé
cooperou com as suas obras” – ou seja, na justificação. É dito que, se esta combina-
ção fosse pretendida, deveria ter sido dito que as obras cooperaram com a sua fé,
uma vez que a fé, de acordo com o testemunho da Escritura e a natureza das coisas,
é a coisa principal e primária, e uma vez que não pode haver boas obras sem fé. Mas
a primeira explicação é a mais coerente com as palavras e com a intenção da passa-
gem.
32 Comentários de Calvino

por um nó indissolúvel aqueles que imaginam que a justiça fora imputada a


Abraão diante de Deus porque ele sacrificou seu filho Isaque, o qual ainda não
era nascido quando o Espírito Santo declarou que Abraão fora justificado. Por
onde necessariamente segue-se que algo posterior é indicado aqui.
Por quê, então, Tiago diz que ela foi aperfeiçoada? A saber, porque ele preten-
dia mostrar que tipo de fé era aquela que justificara Abraão – ou seja, que ela
não era inativa ou evanescente, mas tornara-o obediente a Deus, conforme
também encontramos em Hb 11:8. A conclusão, que é acrescentada logo em
seguida, como depende disso, não tem outro significado. O homem não é justi-
ficado pela fé somente – ou seja, por um mero e vazio conhecimento de Deus;
ele é justificado pelas obras – ou seja, sua justiça é conhecida e provada atra-
vés dos seus frutos.
25. E de igual modo Raabe, não foi também. Parece estranho que ele relacio-
nasse aqueles que eram tão diferentes. Por que não escolheu antes alguém
dentre um número tão grande de ilustres patriarcas, e o uniu a Abraão? Por
que preferiu uma meretriz a todos os demais? Ele propositalmente uniu duas
pessoas tão diferentes no seu caráter, a fim de mostrar mais claramente que
ninguém, seja qual for a sua condição, nação ou classe social, jamais foi repu-
tado por justo sem as boas obras. Ele havia citado o patriarca, de longe o mais
eminente de todos; agora inclui, sob a pessoa de uma meretriz, todos aqueles
que, sendo estrangeiros, foram unidos à Igreja. Então, todo aquele que procura
ser reputado por justo, ainda que possa estar até entre os mais inferiores, deve
mostrar que é tal por meio de boas obras.
Tiago, segundo a sua maneira de falar, declara que Raabe foi justificada pelas
obras; e os sofistas concluem, por causa disto, que alcançamos a justiça pelos
méritos das obras. Mas negamos que a disputa aqui seja concernente ao modo
de alcançar a justiça. De fato, admitimos que as boas obras são necessárias
para a justiça – apenas removemos delas o poder de conferir a justiça, porque
elas não podem permanecer diante do tribunal de Deus.24

TIAGO 3:1-5
1. Meus irmãos, muitos de vós não sejam 1. Nolite plures magistri fieri, fratres mei;
mestres, sabendo que receberemos mais scientes quod majus judicium sumpturi
duro juízo. sumus.
2. Porque todos tropeçamos em muitas 2. In multis enim labimur omnes: si quis in
coisas. Se alguém não tropeça em pala- sermone non labitur, hic perfectus est vir,
vra, o tal é perfeito, e poderoso para tam- ut qui posssit fraeno moderari totum etiam
bém refrear todo o corpo. corpus.
3. Ora, nós pomos freio nas bocas dos 3. Ecce equis fraena in ora injicimus, ut

24
O último verso passou despercebido: “Porque, assim como o corpo sem o espírito
está morto, assim também a fé sem obras (ou, não tendo obras) é morta”. O sentido
não é de que as obras são para a fé o que o espírto é para o corpo, pois isto faria das
obras a vida da fé – o contrário da realidade; mas o sentido é de que a fé, não tendo
obras, é como uma carcassa morta, sem vida.
Epístolas Gerais – Tiago 33

cavalos, para que nos obedeçam; e con- obediant nobis; et totum illorum corpus
seguimos dirigir todo o seu corpo. circumagimus:
4. Vede também as naus que, sendo tão 4. Ecce etiam naves, cum tantae sint, et a
grandes, e levadas de impetuosos ven- saevis ventis pulsentur, circumagnuntur a
tos, se viram com um bem pequeno leme minimo gubernaculo, quocunque affectus
para onde quer a vontade daquele que as dirigentis voluerit:
governa.
5. Assim também a língua é um pequeno 5. Ita et lingua pusillum membrum est, et
membro, e gloria-se de grandes coisas. magna jactat.
1. Muitos não sejam mestres. A interpretação comum e quase universal desta
passagem é que o Apóstolo desencoraja o desejo pelo ofício do ensino, e por
esta razão – porque é perigoso, e expõe o indivíduo a um juízo mais pesado,
caso ele transgrida; e pensam que ele disse: Muitos não sejam mestres, por-
que devia haver alguns. Mas entendo que mestres não são os que cumpriam
um dever público na Igreja, e sim aqueles que tomavam sobre si o direito de
julgar os outros – pois tais repreensores deveriam ser considerados como mes-
tres da moral. E é um modo de falar usual entre os gregos, bem como latinos –
que fossem chamados de mestres aqueles que arrogantemente censurassem
aos outros.
E que ele os proibisse de serem muitos, foi pela seguinte razão – porque havia
muitos em toda a parte que confiavam em si mesmos; pois é, por assim dizer,
uma enfermidade inata aos homens procurar obter reputação acusando aos
outros. E, neste aspecto, um duplo vício prevalece – ainda que poucos se so-
bressaiam em sabedoria, todos se intrometem indiscriminadamente no ofício
de mestres; e assim poucos são influenciados por um sentimento justo, pois a
hipocrisia e a ambição os estimulam, e não um cuidado pela salvação de seus
irmãos. Pois deve-se observar que Tiago não desencoraja aquelas admoesta-
ções fraternais, que o Espírito frequentemente e tanto nos recomenda, mas
aquele desejo imoderado de condenar, que procede da ambição e do orgulho,
quando alguém se exalta contra o seu próximo, difama, critica, corrói e procura
malevolamente aquilo que ele possa desviar para um propósito sinistro – pois
isto é normalmente feito quando censores impertinentes desta natureza se
vangloriam insolentemente na obra de expor os vícios dos outros.
Deste ultraje e aborrecimento Tiago nos manda voltar; e ele acrescenta uma
razão – porque aqueles que deste modo são severos para com os outros sofre-
rão um castigo mais pesado; pois impõe uma lei dura sobre si aquele que pro-
va as palavras e feitos dos outros de acordo com a regra do extremo rigor; e
também não merece perdão aquele que não quer perdoar ninguém. Esta ver-
dade deve ser cuidadosamente observada – de que aqueles que são rígidos
demais para com seus irmãos provocam contra si mesmos a severidade de
Deus.
2. Porque todos tropeçamos em muitas coisas. Isto pode-se admitir como tendo
sido dito por concessão – como se tivesse dito: “Seja que encontrastes o que
seja culpável em teus irmãos, pois ninguém está livre de pecados; mas pensas
que és perfeito, tu que usas de uma língua difamadora e virulenta?” Mas a mim
parece que Tiago nos exorta, por meio deste argumento, à mansidão, visto
34 Comentários de Calvino

como também estamos nós mesmos cercados de muitas fraquezas; pois age
injustamente aquele que nega aos outros o perdão de que ele mesmo precisa.
Assim também Paulo diz, quando manda que os que caíram sejam repreendi-
dos amavelmente, e com espírito de mansidão; pois acrescenta logo em segui-
da: “olhando por ti mesmo, para que também não sejas tentado” (Gl 6:1). Pois
não há nada que sirva melhor para moderar o rigor extremo do que o conheci-
mento da nossa própria fraqueza.
Se alguém não tropeça em palavra. Após ter dito que não há ninguém que não
peque em muitas coisas, agora ele mostra que a fraqueza da maledicência é
mais odiosa do que outros pecados; pois, dizendo que aquele que não peca
com a sua língua é perfeito, ele sugere que o comedimento da língua é uma
grande virtude, e uma das maiores virtudes. Por isso agem mui perversamente
aqueles que examinam curiosamente cada falta, até as menores, e por outro
lado se indultam tão grosseiramente.
Então, aqui ele trata indiretamente da hipocrisia dos censores, porque, ao se
examinarem, eles omitiam o mais importante, e que era de grande importância
– a saber, a sua maledicência; pois aqueles que reprovavam a outros pretendi-
am um zelo de santidade perfeita, mas deviam ter começado com a língua, se
quisessem ser perfeitos. Como não faziam caso de refrear a língua, mas, pelo
contrário, mordiam e despedaçavam os outros, eles exibiam apenas uma san-
tidade fictícia. Por onde fica evidente que eles eram os mais repreensíveis de
todos, porque negligenciavam uma virtude primária. Este contexto torna o sen-
tido do Apóstolo claro para nós.
3. Nós pomos freio nas bocas dos cavalos. Por meio destas duas comparações
ele prova que grande parte da verdadeira perfeição está na língua, e que ela
exerce domínio, como acabara de dizer, sobre toda a vida. Ele compara a lín-
gua, primeiro, a um freio, e depois ao leme de um barco. Embora o cavalo seja
um animal violento, ele é submetido à vontade do seu cavaleiro porque lhe é
posto o freio; não menos a língua pode servir para governar o homem. Assim
também com respeito ao leme de um barco, que guia uma grande embarcação
e supera a impetuosidade dos ventos. Embora a língua seja um membro pe-
queno, ela é de grande valia para regular a vida do homem.
E gloria-se de grandes coisas. O verbo µεγαλαυχεῖν significa gloriar-se, ou os-
tentar. Mas, nesta passagem, Tiago não intentava tanto reprovar a ostentação
quanto mostrar que a língua é executora de grandes coisas – pois nesta última
cláusula ele aplica as comparações anteriores ao seu assunto; e a vanglória
não é conveniente para o freio e o leme. Então, ele quer dizer que a língua é
dotada de grande poder.
Verti o que Erasmo traduziu como impetuosidade por inclinação do piloto ou
guia – pois ὁρµὴ significa desejo. De fato, admito que entre os gregos designa
aquelas paixões que não são subservientes à razão. Mas aqui Tiago simples-
mente fala da vontade do piloto.
Epístolas Gerais – Tiago 35

TIAGO 3:5-6
5. Vede quäo grande bosque um peque- 5. Ecce exiguus ignis quantam sylvam
no fogo incendeia. incendit.
6. A língua também é um fogo; como 6. Et lingua ignis est, et mundus iniquitatis:
mundo de iniqüidade, a língua está posta sic inquam lingua constituta est in mem-
entre os nossos membros, e contamina bris nostris, inquinans totum corpus, in-
todo o corpo, e inflama o curso da natu- flammans rotam nativitatis, et inflammatur
reza, e é inflamada pelo inferno. a gehenna.
Agora ele explica os males que procedem da negligência no comedimento da
língua, para que saibamos que a língua pode causar muito bem ou muito mal –
que, se for modesta e bem regulada, ela se torna um freio para a vida inteira;
mas que, se for petulante e violenta, como um fogo ela destrói todas as coisas.
Ele a representa como um pequeno fogo, para sugerir que esta pequenez da
língua não será um impedimento para que seu poder não se estenda a toda a
parte, causando dano.
Acrescentando que ela é um mundo de iniquidade, é o mesmo que se a tivesse
chamado de mar ou abismo. E apropriadamente ele relaciona a pequenez da
língua com a vastidão do mundo; de acordo com este significado, uma porção
delgada de carne contém em si todo o mundo de iniquidade.
Assim também a língua. Ele explica o que queria dizer pelo termo mundo – a
saber, porque o contágio da língua se espalha por toda a parte da vida; ou an-
tes, ele mostra o que entendia pela metáfora do fogo – a saber, que a língua
contamina todo o homem. Contudo, logo em seguida volta para o fogo, e diz
que todo o curso da natureza é inflamado pela língua. E compara a vida huma-
na a um curso, ou roda; e γένεσις, assim como antes, ele toma no sentido de
natureza (Tg 1:23).
O sentido é que, quando outros vícios são corrigidos pela idade ou pela suces-
são do tempo, ou quando ao menos nesse caso não possuem todo o homem, o
vício da língua se espalha e prevalece sobre cada parte da vida; a menos que
alguém prefira tomar inflamando como significando um impulso violento – pois
chamamos de abrasamento aquilo que é acompanhado de violência. E assim
Horácio fala acerca das rodas – pois ele chama as carruagens em batalha de
abrasadoras, por conta da sua rapidez. O sentido então seria de que a língua é
como cavalos indomados – pois, assim como estes puxam violentamente as
carruagens, do mesmo modo a língua incita o homem abruptamente pelo seu
próprio desregramento.25

25
O “curso da natureza”, ou compasso da natureza – ou seja, tudo o que está incluído
na natureza – significa evidentemente o mesmo que “todo o corpo” na cláusula prece-
dente. Não existe nenhum sentido, compatível com a passagem, no que alguns têm
sugerido: “todo o curso da vida” – pois, que idéia é transmitida, quando dizemos que a
língua inflama ou põe em chamas todo o curso da vida? Mas há um sentido inteligível,
quando se diz que a língua põe em chamas todo o mecanismo da nossa natureza,
cada faculdade que pertence ao homem.
36 Comentários de Calvino

Quando diz que ela é inflamada pelo inferno, é o mesmo que se ele tivesse dito
que o ultraje da língua é a chama do fogo infernal.26 Pois, assim como os poe-
tas pagãos imaginavam que os ímpios são atormentados pelas tochas das Fú-
rias, do mesmo modo é verdade que Satanás, pelos abanos da tentação, incita
o fogo de todos os males no mundo; mas Tiago quer dizer que o fogo, enviado
por Satanás, é mais facilmente apanhado pela língua, de modo que ela queima
imediatamente – em suma, que ela é um material apropriado para receber, ou
alimentar, ou aumentar o fogo do inferno.

TIAGO 3:7-12
7. Porque toda a natureza, tanto de bes- 7. Omnis enim natura ferarum et volucrum
tas feras como de aves, tanto de répteis et serpentium et marinorum, a natura hu-
como de animais do mar, se amansa e foi mana domatur et dimota est:
domada pela natureza humana;
8. Mas nenhum homem pode domar a 8. Linguam vero nullus hominum domare
língua. É um mal que não se pode refre- potest, incoercibile malum, plena veneno
ar; está cheia de peçonha mortal. mortifero.
9. Com ela bendizemos a Deus e Pai, e 9. Per ipsam benedicimus Deum et
com ela amaldiçoamos os homens, feitos Patrem; et per ipsam execramur homines
à semelhança de Deus. ad similitudinem ejus factos.
10. De uma mesma boca procede bênção 10. Ex eodem ore procedit benedictio et
e maldição. Meus irmãos, não convém maledictio. Non onvenit, fratres mei, haec
que isto se faça assim. ita fieri.
11. Porventura deita alguma fonte de um 11. An fons ex codem foramine ejicit dulce
mesmo manancial água doce e água a- et amarum?
margosa?
12. Meus irmãos, pode também a figueira 12. Non potest, fratres mei, ficus oleas
produzir azeitonas, ou a videira figos? proferre; aut vitis ficus; sic nullus fons sal-
Assim tampouco pode uma fonte dar á- sam et dulcem gignere aquam.
gua salgada e doce.
7. Porque toda a natureza de bestas feras. Esta é uma confirmação da última
cláusula; pois, que Satanás governe mais eficazmente através da língua ele
prova por meio disto – que ela não pode ser trazida de modo algum à devida
ordem; e enfatiza isto por meio de comparações. Pois afirma que não existe
nenhum animal tão selvagem ou feroz que não seja domesticado pela habilida-
de humana – quer sejam peixes, que de certo modo habitam em outro mundo;
quer aves, que são tão ligeiras e móveis; e quer serpentes, que são tão inimi-
gas do homem, às vezes são domesticadas. Como, então, a língua não pode
ser refreada, deve haver algum fogo secreto do inferno oculto nela.
O que ele diz acerca de feras selvagens, de serpentes, e de outros animais,
não deve ser entendido com respeito a todos eles; basta que a habilidade hu-
mana subjugue e domestique alguns dos mais ferozes deles, e também que
serpentes às vezes sejam domesticadas. Ele se refere ao tempo presente e

26
“Uma má língua é o orgão do diabo”.—Estius.
Epístolas Gerais – Tiago 37

passado – o presente diz respeito ao poder e capacidade, e o passado, ao uso


ou experiência. Por onde justamente conclui que a língua está cheia de veneno
mortal.
Embora todas estas coisas mui apropriadamente se refiram, em primeiro lugar,
ao tema desta passagem – que reivindicam um mando excessivo sobre outros
aqueles que laboram sob um vício pior – contudo, pode-se entender que uma
doutrina universal é ensinada aqui – que, se desejamos formar corretamente a
nossa vida, devemos nos esforçar especialmente por refrear a língua, pois ne-
nhuma parte do homem causa maior dano.
9. Com ela, ou, por meio dela, bendizemos a Deus. É um exemplo claro do seu
veneno mortal – que ela possa, deste modo, por uma leviandade monstruosa,
transformar-se; pois, quando pretende bendizer a Deus, imediatamente o a-
maldiçoa na sua própria imagem – ou seja, amaldiçoando os homens. Pois,
como Deus deve ser bendito em todas as suas obras, ele deve ser tanto mais
especialmente quanto aos homens, em quem a sua imagem e glória resplan-
decem peculiarmente. Então, é uma hipocrisia insuportável, quando o homem
emprega a mesma língua para bendizer a Deus e amaldiçoar os homens. Nes-
se caso, não pode haver nenhuma invocação a Deus, e o seu louvor necessa-
riamente cessará, quando a maledicência prevalecer; pois é uma ímpia profa-
nação do nome de Deus, que a língua seja virulenta para com os nossos ir-
mãos e pretenda louvá-lo. Portanto, para que possa louvar devidamente a
Deus, a visão da maledicência quanto ao nosso próximo deve ser especialmen-
te corrigida.
Esta verdade particular também se deve ter em mente – de que censores rigo-
rosos revelam a sua própria virulência, quando subitamente vomitam contra os
seus irmãos qualquer maldição que possam imaginar, após terem oferecido,
em doces melodias, louvores a Deus. Se alguém objetasse e dissesse que a
imagem de Deus na natureza humana foi apagada pelo pecado de Adão, de
fato, temos de confessar que ela foi miseravelmente deformada, mas de tal
modo que ainda se mostram alguns dos seus contornos. A justiça e a retidão, e
a liberdade de escolher o que é bom, foram perdidas; mas muitos dons exce-
lentes, pelos quais nos sobressaímos aos animais irracionais, ainda permane-
cem. Então, aquele que verdadeiramente adora e honra a Deus terá receio de
falar caluniosamente acerca do homem.
11. Porventura alguma fonte. Ele aduz estas comparações a fim de mostrar
que uma língua amaldiçoadora é algo monstruoso, contrário a toda a natureza,
e subverte a ordem estabelecida por Deus em toda a parte. Pois Deus ordenou
as coisas contrárias de tal modo que os seres inanimados deveriam nos impe-
dir de uma mistura caótica, tal como certamente se encontra em uma língua
dupla.27

27
Há uma leitura diferente no final de Tg 3:12, adotada por Griesbach, embora rejeita-
da por Mill e outros: οὕτως οὔτε ἁλυχὸν γλυχὺ ποιὢσαι ὕδωρ, “Assim também água
salgada não pode produzir doce”. Esta leitura é favorecida pela Siríaca e pela Vulgata,
embora as palavras sejam um pouco diferentes.
38 Comentários de Calvino

TIAGO 3:13-18
13. Quem dentre vós é sábio e entendi- 13. Quis sapiens et intelligens inter vos?
do? Mostre pelo seu bom trato as suas ostendat ex honesta conversatione opera
obras em mansidão de sabedoria. sua in mansuetudine sapientiae.
14. Mas, se tendes amarga inveja, e sen- 14. Si vero aemulationem amaraem habe-
timento faccioso em vosso coração, não tis, et contentionem in corde vestro, ne
vos glorieis, nem mintais contra a verda- gloriemini, et mentiamini adversus verita-
de. tem.
15. Essa não é a sabedoria que vem do 15. Non est haec sapientia de sursum
alto, mas é terrena, animal e diabólica. veniens, sed terrestris, animalis, daemoni-
ca.
16. Porque onde há inveja e espírito fac- 16. Ubi enim aemulatio et contentio, ibi
cioso aí há perturbação e toda a obra perturbatio et omne pravum opus.
perversa.
17. Mas a sabedoria que do alto vem é, 17. Quae autem e sursum est sapientia,
primeiramente pura, depois pacífica, mo- primum pura est, deinde pacata, aequa,
derada, tratável, cheia de misericórdia e comis, plena misericordiae et bonorum
de bons frutos, sem parcialidade, e sem operum, sine disquisitione, sine simulatio-
hipocrisia. ne.
18. Ora, o fruto da justiça semeia-se na 18. Fructus autem justitiae in pace semi-
paz, para os que exercitam a paz. natur facientibus pacem.
13. Quem é sábio. Como a paixão da calúnia surge principalmente pelo orgu-
lho, e como o falso conceito de sabedoria na maioria das vezes gera orgulho,
por isso ele fala aqui a respeito da sabedoria. É comum que os hipócritas exal-
tem e se destaquem incriminando todos os outros, como acontecia antigamen-
te com muitos filósofos, que buscavam glória para si por um cáustico abuso de
todas as outras ordens. Tal arrogância com que os homens difamadores se
incham e pela qual são cegados, Tiago contém negando que a presunção de
sabedoria, de que os homens se gabam, tenha em si algo de divino; mas, pelo
contrário, ele declara que ela procede do maligno.
O sentido então é de que censores arrogantes, que muito se indultam, e ao
mesmo tempo não poupam ninguém, parecem ser muito sábios a si mesmos,
mas estão muito enganados; pois o Senhor ensina seu povo de modo mui dife-
rente – ou seja, a serem mansos, e corteses para com os outros. Então, so-
mente são sábios à vista de Deus aqueles que unem esta mansidão a um mo-
do de viver honesto – pois aqueles que são severos e inexoráveis, ainda que
possam se sobressair a outros em muitas virtudes, não seguem o caminho reto
da sabedoria.28

28
“Quem é sábio e inteligente entre vós? mostre por uma boa conduta as suas obras
em mansidão de sabedoria”.
A ordem aqui é de acordo com o que é comum na Escritura: a sabedoria – o efeito –
primeiro, depois o conhecimento – a causa, ou o que a precede. No que se segue a
ordem é invertida; o conhecimento distingue entre obras boas e más, e as boas devem
ser exibidas com aquela mansidão que a sabedoria prescreve.
Epístolas Gerais – Tiago 39

14. Mas, se tendes amarga inveja. Ele assinala os frutos que procedem daque-
la austeridade extrema que é contrária à mansidão; pois o rigor imoderado ne-
cessariamente gera emulações perniciosas, que logo irrompem em contendas.
De fato, é um modo inapropriado de falar, situar as contendas no coração; mas
isto não afeta o significado, pois o objetivo era demonstrar que a má disposição
do coração é a fonte destes males.
Ele chamou a inveja, ou emulação, de amarga, porque ela não prevalece, se-
não quando as mentes são de tal modo infectadas com o veneno da maligni-
dade que tornam todas as coisas em amargura.29
Para que então possamos realmente nos gloriar de que somos filhos de Deus,
ele nos manda agirmos tranquila e mansamente em relação aos nossos ir-
mãos; de outro modo, declara que estamos mentindo, ao assumir o nome de
cristãos. Mas não é sem razão que ele acrescentou a companhia da inveja – a
saber, o sentimento faccioso, ou contenda; pois as disputas e rixas sempre
surgem a partir da malignidade e inveja.
15. Essa não é a sabedoria que vem do alto. Como os hipócritas cedem com
dificuldade, ele conteve prontamente a arrogância deles, negando que fosse da
verdadeira sabedoria que estivessem inchados, enquanto fossem extremamen-
te rabugentos em descobrir os vícios de outros. Concedendo-lhes, porém, o
termo sabedoria, ele mostra por meio das palavras que aplica ao seu verdadei-
ro caráter, e diz que ela é terrena, animal, diabólica ou demoníaca, enquanto a
verdadeira sabedoria deve ser celestial, espiritual, divina – estas três coisas
sendo diretamente contrárias às três precedentes. Pois Tiago tem por certo que
não somos sábios, senão quando somos iluminados do alto por Deus, através
do seu Espírito. Então, por mais que a mente humana possa se engrandecer,
toda a sua agudez será vaidade; e não somente isto, mas, estando finalmente
envolvida nos ardis de Satanás, ela se tornará completamente delirante.30
Sensual, ou animal, está em oposição ao que é espiritual – como em 1 Co
2:14, onde Paulo afirma que o homem sensual ou animal não recebe as coisas
de Deus. E o orgulho do homem não poderia ter sido humilhado mais eficaz-
mente, do que quando assim é condenada toda a sabedoria que ele tenha de si
mesmo, sem o Espírito de Deus; não somente isto, mas quando de si é feita

29
Uma ordem semelhante quanto às palavras encontra-se aqui, assim como no verso
anterior – a amarga inveja é ocasionada pela discórdia da contenda. Pode haver inveja
sem contenda, mas é a contenda que geralmente a torna amarga.
30
Scott considera que esta sabedoria foi chamada de “terrena” porque buscava distin-
ções terrenas, e era de origem terrena – “animal”, ou antes “natural”, tal como a pala-
vra é traduzida em 1 Co 2:14, porque era resultado de princípios pelos quais os ho-
mens naturais são impulsionados, como a inveja e ambição; e “demoníaca” porque
veio primeiro do diabo, e constituía a imagem do seu orgulho, ambição, malignidade e
mentira.
A palavra “animal” tem levado alguns a supor que a referência seja à sensualidade, a
gratificação das paixões carnais; mas não há nada na passagem que favoreça esta
visão. As únicas coisas mencionadas são a inveja e um espírito contencioso – coisas
que pertencem ao homem natural.
40 Comentários de Calvino

uma transição para o diabo. Pois isto é o mesmo que se ele tivesse dito que os
homens, seguindo o seu próprio sentido, ou mentes, ou sentimentos, logo se
tornaram presa das ilusões de Satanás.
16. Porque onde há inveja. É um argumento a partir do que é contrário; pois a
inveja, pela qual os hipócritas são influenciados, produz efeitos contrários à
sabedoria. Pois a sabedoria exige um estado de espírito que seja tranquilo e
sereno, mas a inveja o perturba, de modo que, em si mesmo, se torna de certo
modo tumultuoso, e se excita imoderadamente contra os outros.
Alguns traduzem ἀκαταστασία por inconstância – e às vezes significa isto; mas,
como também significa sedição e tumulto, perturbação parece ser mais apro-
priado para esta passagem. Pois Tiago pretendia expressar algo mais do que
leviandade – a saber, que o maligno e caluniador faz tudo confusa e temerari-
amente, como se estivesse fora de si; e por isso ele acrescenta: toda a obra
perversa.
17. Mas a sabedoria que do alto vem. Agora ele menciona os efeitos da sabe-
doria celestial, os quais são totalmente contrários aos efeitos anteriores. Ele diz
primeiro que ela é pura – por cujo termo exclui a hipocrisia e ambição.31 Em
segundo lugar, ele a chama de pacífica, para sugerir que não é contenciosa.
Em terceiro lugar, ele a chama de moderada, ou humana, para que saibamos
que ela está muito longe daquela austeridade imoderada que não tolera nada
em nossos irmãos. Ele também a chama de gentil, ou tratável – querendo dizer
com isto que ela difere muito do orgulho e da malignidade. Por último, ele diz
que ela é cheia de misericórdia, etc., enquanto a hipocrisia é desumana e ine-
xorável. Por bons frutos, ele se refere em geral a todos aqueles deveres que
homens benevolentes desempenham para com os seus irmãos – como se ti-
vesse dito que ela é cheia de benevolência. Por onde segue-se que mentem
aqueles que se gloriam em sua cruel austeridade.
Mas, embora tivesse condenado suficientemente a hipocrisia quando disse que
a sabedoria é pura, ou sincera; ele torna isto mais claro, repetindo a mesma
coisa no final. Por aqui somos lembrados de que somos desmedidamente ra-
bugentos e austeros por nenhuma outra razão senão por isto – porque nos
poupamos demais, e somos coniventes com os nossos próprios vícios.
Mas o que ele diz: sem parcialidade (sine dijudicatione), parece estranho; pois
o Espírito de Deus não remove a diferença entre o bem e o mal; nem nos torna
insensíveis a ponto de ficarmos tão sem juízo que louvamos o vício, e o consi-
deramos como virtude. A isto eu respondo que Tiago aqui se refere, por discer-
nimento ou parcialidade, àquela inquirição superescrupulosa e excessivamente
preocupada, tal como é geralmente mantida pelos hipócritas, que com demasi-

31
“Pura”, ἁγνή, deve ser entendida de acordo com o que o contexto contém. Significa
o que é livre de mancha ou contaminação – o tipo de mancha deve ser desvendado a
partir da passagem. A sabedoria do alto é contrastada com a sabedoria de baixo –
esta última tem inveja e contenda; a primeira é “pura”, estando livre de inveja, e é “pa-
cífica”.
Epístolas Gerais – Tiago 41

ada minúcia examinam os ditos e feitos de seus irmãos, e lhes dão a pior inter-
pretação.32
18. Ora, o fruto da justiça. Isto admite dois significados – o fruto semeado pelos
pacíficos, que depois eles colhem; ou, embora tolerem com mansidão muitas
coisas em seu próximo, não cessam de semear a justiça. Contudo, esta é uma
antecipção de uma objeção – pois aqueles que são arrebatados à maledicência
pela paixão da calúnia sempre têm esta escusa: “O quê! podemos então remo-
ver o mal pela nossa cortesia?” Por isso Tiago diz que aqueles que são sábios
segundo a vontade de Deus, são tão bondosos, mansos e misericordiosos que
não encobrem os vícios, nem os favorecem; mas, pelo contrário, de tal modo
que se esforçam por corrigi-los, e contudo de um modo pacífico – ou seja, com
moderação, de modo que a união é preservada. E, deste modo, ele testifica
que aquilo que até aqui havia dito não tende em nenhum grau a acabar com
calmas repreensões; mas que aqueles que querem ser médicos para curar ví-
cios não devem ser executores.
Por isso ele acrescenta: para os que exercitam a paz – o que deve ser explica-
do assim: aqueles que buscam a paz, não obstante são cuidadosos em semear
a justiça; e também não são indolentes ou negligentes em promover e encora-
jar as boas obras; mas moderam o seu zelo com o condimento da paz, enquan-
to os hipócritas lançam todas as coisas em confusão por uma violência cega e
furiosa.

32
A palavra ἀδιύκριτος encontra-se apenas aqui, e tem sido diversamente traduzida,
porque o verbo do qual ela se origina possui vários significados – discernir, fazer dife-
rença, julgar, examinar, contender ou litigar, e duvidar. É traduzida pela Vulgata como
“não julgando” – não-censurador; por Beza, como “sem contender” – incontroversa;
por Erasmo, como “não fazendo diferença” – imparcial; e por Hammond, como “não
duvidando”, ou seja, quanto à fé. “Não-censurador”, ou “imparcial”, parece a tradução
mais apropriada – não dado à temeridade em julgar os outros, ou não fazendo a acep-
ção de pessoas anteriormente condenada em Tg 2:1. Então, segue-se “sem hipocrisia”
– não dizendo uma coisa e querendo dizer outra.
Parece haver um completo contraste entre os dois tipos de sabedoria. A sabedoria do
alto não é invejosa, mas pura; não é contenciosa, mas pacífica; não cria confusão,
mas é paciente e conciliadora; e, ao invés de produzir “toda a obra perversa”, é cheia
de misericórdia e benevolência, e dos frutos da benevolência, não sendo censuradora
ou parcial no juízo, e não sendo hipócrita, ou agindo desonestamente. Por meio desta
comparação, vemos quais eram algumas das coisas incluídas em “toda a obra perver-
sa” – elas eram o inverso da misericórdia ou benevolência, e seus frutos, a saber, a
mania de censurar ou parcialidade, e a dissimilação. E, contudo, aqueles que exibiam
todas estas coisas perversas pensavam que tinham sabedoria! – e até se gloriavam
nisto!
42 Comentários de Calvino

TIAGO 4:1-3
1. De onde vêm as guerras e pelejas en- 1. Unde bella et pugnae inter vos? nonne
tre vós? Porventura não vêm disto, a sa- hinc, ex voluptatibus vestris, quae militant
ber, dos vossos deleites, que nos vossos in membris vestris.
membros guerreiam?
2. Cobiçais, e nada tendes; matais, e sois 2. Concupiscitis et non habetis; invidetis et
invejosos, e nada podeis alcançar; com- aemulamini, et non potestis obtinere; pug-
bateis e guerreais, e nada tendes, porque natis et belligeramini, non habetis, propte-
não pedis. rea quod non petitis;
3. Pedis, e não recebeis, porque pedis 3. Petitis, et non accipitis, quia male peti-
mal, para o gastardes em vossos delei- tis, ut in voluptates vestras insumatis.
tes.
1. De onde vêm as guerras. Como havia falado de paz, e os havia lembrado de
que os vícios devem ser exterminados de modo a preservar a paz, agora ele
passa às disputas deles, pelas quais criavam confusão entre si mesmos; e
mostra que estas surgiam a partir de seus desejos e paixões invejosas, ao in-
vés de um zelo pelo que era justo e correto – pois, se cada um observasse a
moderação, eles não teriam perturbado e aborrecido uns aos outros. Eles ti-
nham seus ardentes conflitos, porque deixavam suas paixões prevalecerem
descontroladas.
Por onde se mostra que teria havido maior paz entre eles, se cada um se absti-
vesse de prejudicar os outros; mas os vícios que prevaleciam entre eles eram
tantos serventes armados para incitar disputas. Ele chama nossas faculdades
de membros. Emprega paixões como designando todos os desejos ou propen-
sões sensuais e ilícitas que não podem ser satisfeitas sem causar dano a ou-
tros.
2. Cobiçais, ou desejais, e nada tendes. Ele parece sugerir que a alma do ho-
mem é insaciável, quando este indulta paixões perversas; e isto é realmente
assim, pois quem permite que suas propensões pecaminosas governem des-
controladas, não conhecerá fim para a sua concupiscência. Ainda que o mundo
lhe fosse dado, desejaria que outros mundos fossem criados para ele. Assim
ocorre que os homens procuram tormentos que excedem a crueldade de todos
os executores. Pois aquele dito de Horácio é verdadeiro: “Os tiranos da Sicília
não encontraram tormento maior do que a inveja”.33
Algumas cópias trazem φονεύετε, “matais”; mas não tenho dúvida de que deve-
ríamos ler φθονεῖτε, “invejais”, conforme traduzi; pois o verbo matar não se en-
caixa de modo nenhum com o contexto.34

33
Invidia Siculi non invenere tyranni Majus tormentum. — EPIST. Lib. I. 2:58.
34
Não existe nenhum manuscrito ou versão em favor de φθονεῖτε. Quando se diz:
“matais”, o sentido é de que eles faziam isto quanto ao ódio ou inveja que nutriam,
pois o ódio é a raíz do homicídio, e geralmente surge da inveja. O que evidentemente
levou Calvino e outros a conjecturar um erro aqui tem sido a dificuldade que surge da
ordem das palavras: “Matais e invejais”; mas esta ordem é totalmente consoante com
o estilo da Escritura, onde muitas vezes o mal ou bem maior é mencionado primeiro, e
Epístolas Gerais – Tiago 43

Combateis. Ele não se refere àquelas guerras e combates em que os homens


se envolvem com espadas desembainhadas, mas às disputas violentas que
prevaleciam entre eles. Eles não derivavam nenhum benefício de contendas
desta natureza, pois ele afirma que recebiam o castigo da sua própria impieda-
de. Deus, de fato, a quem não reconheciam como autor de bênçãos, justamen-
te os desapontava. Pois, quando contendiam de formas tão ilícitas, eles busca-
vam se enriquecer mais pelo favor de Satanás do que pelo favor de Deus. Um
por meio de fraude, outro por violência, outro por calúnias, e todos por algum
mal ou arte ímpia, se esforçavam por obter a felicidade. Então eles procuravam
ser felizes, mas não através de Deus. Portanto, não era de se surpreender que
estivessem frustrados em seus esforços, visto como nenhum sucesso se pode
esperar senão através das bênçãos de Deus somente.
3. Pedis e não recebeis. Ele vai além – ainda que buscassem, eram merecida-
mente rejeitados, porque queriam fazer de Deus ministro das suas próprias
paixões. Pois eles não colocavam limites para os seus desejos, como ele havia
mandado, mas davam permissão irrestrita a si mesmos, pedindo aquelas coi-
sas das quais o homem, consciente do que é reto, deveria especialmente se
envergonhar. Plínio em certo lugar ridiculariza esta impudência – de que os
homens abusem tão perversamente dos ouvidos de Deus. Ainda menos tolerá-
vel é tal coisa em cristãos, que tiveram a regra da oração dada a eles pelo seu
Mestre celestial.
E, sem dúvida, parece não haver em nós nenhuma reverência a Deus, nenhum
temor a ele – em suma, nenhuma consideração por ele – quando ousamos lhe
pedir o que até mesmo a nossa própria consciência não aprova. Tiago queria
resumidamente dizer isto – que nossos desejos devem ser refreados, e o modo
de refreá-los é sujeitando-os à vontade de Deus. E ele também nos ensina que
aquilo que desejamos com moderação devemos buscar do próprio Deus – o
que, se for feito, seremos preservados de disputas perversas, da fraude e da
violência, e de cometer qualquer dano aos outros.

depois o que precede ou leva a ele. É a mesma coisa aqui, como se a copulativa e
fosse traduzida causativamente: “matais porque invejais”. Inveja é homicídio à vista de
Deus.
A linguagem de toda a passagem é altamente metafórica. Ele chama suas disputas de
“guerras e combates”, pois todo o teor da passagem é contrário à suposição de que
ele se refira a guerras reais. Ele adota um termo militar quanto às paixões interiores ou
desejos ambiciosos, porque elas “faziam guerra” em seus membros – a expedição
para suas disputas era preparada no interior, reunindo tropas em seus corações. En-
tão, o caráter desta guerra é mais claramente definido por: “Desejais; não, cobiçais;
matais, ou cometeis homicídio, pois ‘invejais’; quando não podeis alcançar vossos ob-
jetivos, ‘fazeis guerra e combate’, ou seja, contendeis e disputais”. A avareza e a am-
bição eram os dois males prevalecentes, mas especialmente a avareza; e a avareza
também com o propósito de gratificar as paixões e propensões da sua natureza peca-
minosa – tal como se mostra a partir do verso três.
44 Comentários de Calvino

TIAGO 4:4-6
4. Adúlteros e adúlteras, não sabeis vós 4. Adulteri et adulterae, an nescitis quod
que a amizade do mundo é inimizade amicitia mundi inimictia Dei est? qui ergo
contra Deus? Portanto, qualquer que qui- voluerit amicus esse mundi, inimicus Dei
ser ser amigo do mundo constitui-se ini- constituitur.
migo de Deus.
5. Ou cuidais vós que em vão diz a Escri- 5. An putatis quod frustra dicat scriptura?
tura: O Espírito que em nós habita tem An ad invidiam concupiscit spiritus qui
ciúmes? habitat in nobis?
6. Antes, ele dá maior graça. 6. Quin majorem dat gratiam: —
4. Adúlteros. Eu relaciono este verso com os versos precedentes; pois ele os
chama de adúlteros, conforme penso, metaforicamente, pois se corrompiam
com as vaidades deste mundo, e se alienavam de Deus – como se tivesse dito
que eles haviam se tornado degenerados, ou bastardos. Sabemos quão fre-
quentemente, na Santa Escritura, é mencionado o matrimônio que Deus contrai
conosco. Ele queria, então, que fôssemos como uma virgem casta, como diz
Paulo (2 Co 11:2). Esta castidade é violada e corrompida por todas as afeições
impuras pelo mundo. Tiago, então, não sem razão compara o amor do mundo
com o adultério.
Então, aqueles que entendem suas palavras literalmente, não observam sufici-
entemente o contexto – pois ele ainda continua a falar contra as paixões dos
homens, que afastam de Deus aqueles que estão envolvidos com o mundo, tal
como segue:
A amizade do mundo. Ele chama de amizade do mundo quando os homens se
rendem às corrupções do mundo, e se tornam escravos delas. Pois tal e tão
grande é o desacordo entre o mundo e Deus, que, quanto mais alguém se in-
clina para o mundo, tanto mais ele se aliena de Deus. Por onde a Escritura nos
manda muitas vezes renunciarmos ao mundo, se quisermos servir a Deus.
5. Ou cuidais vós. Ele parece aduzir a partir da Escritura a próxima sentença.
Por isso os intérpretes se cansam tanto, porque nada parecido, ao menos nada
exatamente parecido, é encontrado na Escritura. Mas nada impede que seja
feita referência ao que já foi dito – ou seja, que a amizade do mundo é adversa
a Deus. Além disso, tem-se dito corretamente que esta é uma verdade que o-
corre em toda a parte da Escritura. E que ele tenha omitido o pronome, que
teria tornado a sentença mais clara, não deve ser motivo de surpresa, pois,
como está evidente, em toda a parte ele é bastante conciso.
O Espírito, ou, porventura o Espírito? Alguns pensam que isto se refira à alma
do homem, e por isso lêem a sentença afirmativamente, e de acordo com este
significado – que o espírito do homem, como é maligno, está tão infectado de
inveja que sempre possui uma mistura dela. Contudo, pensam melhor aqueles
que consideram que isto se refere ao Espírito de Deus – pois é ele que é dado
para habitar em nós.35 Então entendo o Espírito como sendo o de Deus, e leio

35
Existem fardos de interpretações, diz Erasmo, sobre esta passagem. A que é forne-
cida por Calvino, e adotada por Whitby, Doddridge, Scholefield, e outros, é a mais sa-
Epístolas Gerais – Tiago 45

a sentença como uma pergunta; pois o seu objetivo era provar que, porque in-
vejavam, eles não eram governados pelo Espírito de Deus – porque ele ensina
os fiéis de modo diferente; e isto ele confirma no verso seguinte, acrescentando
que: ele dá maior graça.
Pois é um argumento que surge a partir do que é contrário. A inveja é prova ou
sinal de malignidade; mas o Espírito de Deus se mostra generoso pela afluên-
cia de suas bênçãos. Não existe então nada de mais repugnante à sua nature-
za do que a inveja. Em suma, Tiago nega que o Espírito de Deus governe onde
prevaleçam as paixões depravadas, as quais incitam à contenda mútua; porque
é peculiarmente o ofício do Espírito enriquecer os homens cada vez mais,
constantemente, com novos dons.
Não me deterei para refutar outras explicações. Alguns dão este significado –
de que o Espírito cobiça contra a inveja; o que é áspero e forçado demais. En-
tão eles dizem que Deus dá maior graça para vencer e subjugar a paixão. Mas
o sentido que forneci é mais apropriado e simples – que ele nos restaura, pela
sua bondade, do poder da emulação maligna. A partícula continuativa δὲ deve
ser entendida adversativamente, no sentido de ἀλλὰ ou ἀλλά γε; por isso a tra-
duzi por quin, mas.

TIAGO 4:7-10
7. Sujeitai-vos, pois, a Deus, resisti ao 7. Subjecti igitur estote Deo; Resistite dia-
diabo, e ele fugirá de vós. bolo, et fugiet a vobis;
8. Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a 8. Appropinquate Deo, et appropinquabit
vós. Alimpai as mãos, pecadores; e, vós vobis; mundate manus, peccatores; purifi-
de duplo ânimo, purificai os corações. cate corda duplici animo;
9. Senti as vossas misérias, e lamentai e 9. Affligimini, lugete et plorate; risus vester
chorai; converta-se o vosso riso em pran- in luctum vertatur et gaudium in mo-
to, e o vosso gozo em tristeza. erorem.
10. Humilhai-vos perante o Senhor, e ele 10. Humiliamini coram Deo, et eriget vos.
vos exaltará.
7. Sujeitai-vos. A submissão que ele recomenda é a da humildade; pois não
nos exorta genericamente a obedecer a Deus, mas requer a submissão; pois o
Espírito de Deus repousa sobre os humildes e mansos (Is 57:15). Por esta

tisfatória, e a única que nos permite ver um sentido nas palavras: “maior graça”, no
verso seguinte. O Espírito habita no povo de Deus, e ele habita ai para dar mais e
crescente graça, de acordo com o teor de Is 57:15, onde é dito que Deus “habita com
aquele que é de espírito contrito e humilde”, e com este propósito – “vivificar o espírito
do humilde”, etc.
5, 6. “Pensais que a escritura fala assim em vão? Porventura o Espírito que habita em
nós tem ciúmes? Não somente isto, mas ele dá maior (ou crescente) graça; por isso
diz, Deus está em ordem contra os insolentes, mas dá graça aos humildes”.
Os humildes são aqueles que são feitos tais pela graça; mas Deus promete dar-lhes
maior graça, para aperfeiçoar o que ele havia começado.
46 Comentários de Calvino

causa, ele usa a partícula ilativa. Pois, como havia declarado que o Espírito de
Deus é generoso em aumentar os seus dons, por isso ele conclui que devemos
pôr de lado a inveja, e nos submetermos a Deus.
Muitas cópias introduziram aqui a seguinte sentença: “Portanto diz: Deus resis-
te aos soberbos, mas dá graça aos humildes”. Mas em outras não é encontra-
da. Erasmo suspeita de que a princípio era uma nota na margem, e depois se
introduziu sorrateiramente no texto. Pode ter sido assim, embora não seja ina-
propriada para a passagem. Pois o que pensam alguns – que é estranho que o
que somente se encontra em Pedro deva ser citado como Escritura – pode ser
facilmente descartado. Mas prefiro conjecturar que esta sentença, a qual está
de acordo com a doutrina comum da Escritura, tornara-se então um tipo de dito
proverbial comum entre os judeus. E, de fato, não é nada mais do que aquilo
que se encontra em Sl 18:27, “Porque tu, ó Senhor, livrarás o humilde, e abate-
rás os olhos altivos”, e sentenças similares são encontradas em muitas outras
passagens.36
Resisti ao diabo. Ele mostra qual é a disputa em que devemos nos envolver –
como diz Paulo, que a nossa luta não é contra a carne e o sangue, mas nos
estimula a um combate espiritual. Então, após ter nos ensinado a mansidão
para com os homens, e a submissão para com Deus, ele apresenta diante de
nós Satanás como nosso inimigo, a quem nos cabe combater.
Contudo, a promessa que acrescenta, a respeito da fuga de Satanás, parece
ser refutada pela experiência diária; pois é certo que, quanto mais ativamente
alguém resista, mais furiosamente ele é incitado. Pois Satanás, de certo modo,
age galhofeiramente, quando não é repelido com determinação; mas contra
aqueles que realmente lhe resistem, ele emprega toda a força que possui. E
ainda, ele nunca se cansa de lutar, mas, quando vencido em uma batalha, i-
mediatamente se envolve em outra. A isto eu respondo que a fuga deve ser
entendida aqui no sentido de pôr para correr, ou desbaratar. E, sem dúvida,
embora repita seus ataques constantemente, ele sempre vai embora derrotado.
8. Chegai-vos a Deus. Ele novamente nos lembra de que o auxílio de Deus não
nos faltará, desde que demos lugar a ele. Pois, quando nos manda chegarmos
a Deus, para que saibamos que ele está perto de nós, ele sugere que estamos
destituídos da sua graça porque nos retiramos dele. Mas, como Deus está do
nosso lado, não há motivo para temer a queda. Mas, se alguém conclui a partir
desta passagem que a primeira parte da obra pertence a nós, e que depois a
graça de Deus fluirá, o Apóstolo não queria dizer tal coisa; pois, embora deva-
mos fazer isto, não decorre de imediato que possamos. E o Espírito de Deus,
exortando-nos ao nosso dever, não rebaixa nada de si mesmo, ou do seu po-
der, mas a própria coisa que nos manda fazer, ele mesmo cumpre em nós.

36
A passagem se encontra em todos os manuscritos e versões; não há, portanto, ne-
nhuma base para pensar que seja uma interpolação. E é tomada literalmente de Pv
3:34, de acordo com a Septuaginta – embora a primeira cláusula difira do hebraico em
palavras, é substancialmente idêntica. “Desprezar os desprezadores” e “resistir (ou,
estar em ordem contra) os orgulhosos”, ou insolentes, significam a mesma coisa.
Epístolas Gerais – Tiago 47

Em suma, Tiago não queria dizer outra coisa nesta passagem, senão que Deus
nunca falta para nós, exceto quando nos alienamos dele. Ele é como alguém
que leva o faminto até uma mesa e o sedento até uma fonte. Há esta diferença
– que nossos passos devem ser guiados e sustentados pelo Senhor, pois nos-
sos pés nos traem. Mas o que sofismam alguns, e dizem – que a graça é se-
cundária para a nossa preparação, e é como que uma criada à espera, é sim-
plesmente frívolo; pois sabemos que não é algo novo que ele acrescenta agora
a graças anteriores, e assim enriquece cada vez mais aqueles a quem já tem
concedido muito.
Alimpai as vossas mãos. Aqui ele se dirige a todos os que estavam alienados
de Deus, e não se refere a dois tipos de homens, mas chama os mesmos de
pecadores e de duplo ânimo. E também não entende todo o tipo de pecadores,
mas os perversos e de vida corrupta. É dito em Jo 9:3: “Deus não ouve a peca-
dores”, no mesmo sentido em que uma mulher é chamada de pecadora por
Lucas (Lc 7:39). É dito pelo mesmo e pelos outros evangelistas: “Ele bebe e
come com pecadores”. Portanto, ele não golpeia a todos indiscriminadamente
com o tipo de arrependimento mencionado aqui, mas aqueles que são perver-
sos e corruptos no coração, e cuja vida é abjeta e hedionda, ou ao menos per-
versa – é destes que ele requer uma pureza de coração e limpeza exterior.
Por aqui aprendemos qual é o verdadeiro caráter do arrependimento. Não é
apenas uma correção de vida, mas seu princípio é a purificação do coração.
Também é necessário, por outro lado, que os frutos do arrependimento interior
apareçam no esplendor de nossas obras.37
9. Lamentai e chorai. Cristo denuncia o pranto sobre aqueles que riem, como
uma maldição (Lc 6:25); e Tiago, no que vem logo a seguir, aludindo às mes-
mas palavras, ameaça os ricos com o pranto. Mas aqui ele fala daquele pranto
ou tristeza salutar que nos leva ao arrependimento. Ele se dirige àqueles que,

37
No verso sete ele ainda parece continuar os termos militares: “Sujeitai-vos, pois, a
Deus, resisti ao diabo, e ele fugirá de vós”. Deve-se especialmente observar que a
primeira coisa é estar sob a bandeira e proteção de Deus, e depois podemos com su-
cesso resistir ao diabo – sem Deus, não temos nenhum poder para resisti-lo.
A ordem no verso seguinte, o oito, é digna de nota, como um exemplo daquilo que é
muito comum na Escritura. A coisa principal é declarada primeiro – chegar-se a Deus
– e depois as coisas que são anteriormente necessárias: limpar suas mãos e purificar
seus corações – provavelmente uma alusão à prática entre os sacerdotes da lei, de
lavarem-se antes de se envolverem no serviço do templo. Eles deviam lavar suas
mãos como se tivessem se contaminado com sangue, assim como o crime de homicí-
dio lhes foraimputado em Tg 4:2; e deviam purificar seus corações das cobiças e de-
sejos ambiciosos que haviam nutrido. A não ser que tais coisas fossem feitas, eles não
poderiam se chegar a Deus. E ainda, chegar-se a Deus era necessário antes que pu-
dessem se sujeitar à sua autoridade, de modo que há uma relação entre este verso e
o anterior – o objetivo final, declarado primeiro, era a submissão a Deus, e estar sob a
sua proteção; e tudo o que segue era necessário para esse fim. A orgem regular seria:
Purificai vossos corações, alimpai vossas mãos, chegai-vos a Deus, e sujeitai-vos a
ele. Mas este modo de declaração, voltando para trás ao invés de ir adiante, será en-
contrado em todas as partes da Escritura. Vede sobre este assunto no Prefácio ao
terceiro volume dos Comentários de Calvino sobre Jeremias.
48 Comentários de Calvino

estando inebriados em suas mentes, não percebiam o juízo de Deus. Assim,


acontecia que eles se gabavam de seus vícios. Para que pudesse sacudir de-
les este torpor mortal, ele os admoesta a aprenderem a chorar, para que, sen-
do tocados pela tristeza de consciência, pudessem deixar de se gabar e exultar
à beira da destruição. Então, riso deve ser entendido como significando a adu-
lação com que os infiéis se enganam, enquanto se enfatuam pela doçura dos
seus pecados e se esquecem do juízo de Deus.
10. Humilhai-vos, ou sede humilhados. A conclusão do que veio antes é que a
graça de Deus está pronta então para nos exaltar quando ele perceber que os
nossos espíritos orgulhosos estão postos de lado. Nós emulamos e invejamos
porque desejamos ser eminentes. Esta é uma atitude completamente irracional,
pois é a obra peculiar de Deus exaltar os abatidos, e especialmente aqueles
que voluntariamente se humilham. Todo aquele, então, que busca uma eleva-
ção segura, seja abatido sob o senso da sua própria fraqueza, e pense humil-
demente sobre si mesmo. Agostinho observa apropriadamente em certo lugar:
Assim como uma árvore deve lançar raízes profundas para baixo, para que
possa crescer para cima, do mesmo modo todo aquele que não tem sua alma
profundamente fixada na humildade, exalta-se para sua própria ruína.

TIAGO 4:11-12
11. Irmãos, não faleis mal uns dos outros. 11. Ne detrahatis invicem, fratres; qui de-
Quem fala mal de um irmão, e julga a seu trahit fratri, aut judicat fratrem suum, de-
irmão, fala mal da lei, e julga a lei; e, se tu trahit legi, et judicat legem; si autem judi-
julgas a lei, já não és observador da lei, cas legem, non es factor legis sed judex.
mas juiz.
12. Há só um legislador que pode salvar 12. Unus est legislator, qui potest servare
e destruir. Tu, porém, quem és, que jul- et perdere: tu, quis es qui judicas alterum?
gas a outrem?
11. Não faleis mal, ou, não difameis. Vemos quanto trabalho Tiago tem para
corrigir a avidez pela difamação. Pois a hipocrisia sempre é presunçosa, e so-
mos por natureza hipócritas, apaixonadamente nos exaltamos caluniando os
outros. Existe também outra doença inata à natureza humana – que cada um
queira que todos vivam de acordo com a sua própria vontade ou capricho. Esta
presunção Tiago condena convenientemente nesta passagem – ou seja, por-
que ousamos impor sobre nossos irmãos nossa regra de vida. Ele então em-
prega falar mal como incluindo todas as calúnias e obras suspeitas que deri-
vam de um juízo maligno e pervertido. O mal da difamação assume uma ampla
variedade, mas aqui ele se refere propriamente àquele tipo de difamação que
eu mencionei, ou seja, quando desdenhosamente determinamos a respeito dos
feitos e ditos de outros – como se a nossa própria morosidade fosse a lei;
quando confiantemente condenamos tudo o que não nos agrada.
Que tal presunção é aqui reprovada fica evidente a partir da razão que é imedi-
atamente acrescentada: Quem fala mal, ou difama seu irmão, fala mal, ou di-
fama a lei. Ele sugere que muita coisa é tomada da lei quando alguém reivindi-
ca autoridade sobre seus irmãos. Falar mal, então, contra a lei é oposto àquela
reverência com a qual convém que a consideremos.
Epístolas Gerais – Tiago 49

Paulo lida praticamente com o mesmo argumento em Rm 14, embora em uma


ocasião diferente. Pois, quando a superstição na escolha das carnes possuía
alguém, o que consideravam ilícito para si mesmos, eles condenavam também
em outros. Ele então os lembrou de que existe apenas um Senhor, de acordo
com a vontade do qual todos devem ficar de pé ou cair, e em cujo tribunal to-
dos devemos comparecer. Por onde ele conclui que aquele que julga a seus
irmãos de acordo com sua própria visão das coisas assume para si o que per-
tence peculiarmente a Deus. Mas Tiago reprova aqui aqueles que, sob o pre-
texto de santidade, condenavam a seus irmãos, e por isso colocavam sua pró-
pria morosidade no lugar da lei da divina. Ele, contudo, emprega o mesmo ra-
ciocínio que Paulo – ou seja, que agimos presunçosamente quando assumimos
autoridade sobre nossos irmãos, enquanto a lei de Deus subordina todos nós a
si mesma sem exceção. Aprendamos então que não devemos julgar, exceto de
acordo com a lei de Deus.
Não és observador da lei, mas juíz. Esta sentença deveria ser explicada assim:
“Quando reivindicas para ti mesmo um poder de censurar acima da lei de
Deus, tu isentas a ti mesmo do dever de obedecer à lei”. Então, aquele que
julga temerariamente a seu irmão, sacode o jugo de Deus, pois não se subme-
te à regra comum de vida. Então, este é um argumento a partir do que é con-
trário; porque a observância da lei é completamente diferente desta arrogância,
quando os homens atribuem à sua própria vaidade o poder e autoridade da lei.
Por onde segue-se que então somente guardamos a lei quando dependemos
totalmente do seu ensino, e não distinguimos de outra maneira o bem e o mal;
pois todos os feitos e palavras dos homens devem ser regulados por ela.
Se alguém objetasse e dissesse que, mesmo assim, os santos serão juízes do
mundo (1 Co 6:2), a resposta é óbvia – que esta honra não lhes pertence se-
gundo o seu direito próprio, e sim porque são membros de Cristo; e que agora
eles julgam segundo a lei, de modo que não devem ser considerados juízes
apenas porque concordam obedientemente que Deus seja seu próprio juíz e
julgue a todos. Com respeito a Deus, ele não deve ser considerado observador
da lei, porque sua justiça é anterior à lei; pois a lei flui da justiça eterna e infinita
de Deus, como um rio da sua fonte.
12. Há só um legislador.38 Agora ele relaciona o poder de salvar e destruir com
o ofício de um legislador, sugerindo que toda a majestade de Deus é forçosa-
mente assumida por aqueles que reivindicam para si mesmos o direito de fazer
a lei; e isto é o que é feito por aqueles que impõem como lei sobre outros o seu
próprio comando ou vontade. E lembremo-nos de que o assunto aqui não é o
governo civil, no qual os editos e leis dos magistrados têm lugar, mas o gover-
no espiritual da alma, no qual a palavra de Deus somente deve exercer domí-
nio. Existe então um só Deus, que tem as consciências sujeitas por direito às
suas próprias leis, assim como só ele tem em sua mão o poder de salvar e des-
truir.

38
Griesbach acrescenta καὶ κριτής, “e juíz”, uma leitura favorecida por muitos manus-
critos e versões; e, sem dúvida, isto torna a passagem mais completa, especialmente
quando aquilo que segue pertence mais ao juíz do que ao legislador – isto é, salvar ou
destruir.
50 Comentários de Calvino

Por aqui se mostra o que se deve pensar acerca dos preceitos humanos, que
lançam o laço da obrigação sobre as consciências. Alguns, de fato, querem
que mostremos modéstia, quando chamamos o Papa de anticristo, que exerce
tirania sobre as almas dos homens, fazendo-se um legislador igual a Deus.
Mas aprendemos a partir desta passagem algo mais – a saber, que são mem-
bros do Anticristo aqueles que voluntariamente se submetem para que sejam
assim enganados, e que assim renunciam a Cristo, quando se unem a um ho-
mem que não apenas é mortal, mas também se exalta contra ele. Digo que é
uma obediência prevaricadora, prestada ao diabo, quando permitimos que
qualquer outro que não o próprio Deus seja legislador para governar nossas
almas.
Quem és tu. Alguns pensam que aqui eles são admoestados a se tornarem
repreensores de seus próprios vícios, a fim de que começassem a se examinar
a si mesmos; e que, descobrindo que não eram mais puros do que os outros,
pudessem deixar de ser tão severos. Penso que a sua própria condição é sim-
plesmente sugerida aos homens, de modo que possam pensar o quanto estão
abaixo daquela dignidade que assumiram – como Paulo também diz: “Quem és
tu que julgas a outrem?” (Rm 14:4).

TIAGO 4:13-17
13. Eia agora vós, que dizeis: Hoje, ou 13. Age nunc, qui dicitis, Hodie et cras
amanhã, iremos a tal cidade, e lá passa- eamus in civitatem, et transigamus illic
remos um ano, e contrataremos, e ganha- annum unum, et mercemur et lucremur;
remos;
14. Digo-vos que não sabeis o que acon- 14. Qui nescitis quid cras futurum sit; quae
tecerá amanhã. Porque, que é a vossa enim est vita nostra? vapor est scilicet ad
vida? É um vapor que aparece por um exiguum tempus apparens, deinde eva-
pouco, e depois se desvanece. nescens:
15. Em lugar do que devíeis dizer: Se o 15. Quum dicere debeatis, Si Dominus
Senhor quiser, e se vivermos, faremos voluerit, et vixerimus, faciemus hoc vel
isto ou aquilo. illud.
16. Mas agora vos gloriais em vossas 16. Nunc autem gloriamini in superbiis
presunções; toda a glória tal como esta é vestris; omnia gloriatio talis, mala est.
maligna.
17. Aquele, pois, que sabe fazer o bem e 17. Qui ergo novit facere bonum, nec facit,
não o faz, comete pecado. peccati reus est.
13. Eia agora. Ele condena aqui outro tipo de presunção – que muitos, que de-
veriam ter dependido da providência de Deus, confiantemente determinavam o
que fariam, e ordenavam seus planos para um longo período de tempo, como
se tivessem muitos anos à sua própria disposição, embora não estivessem cer-
tos nem de um só momento. Salomão também ridiculariza severamente este
tipo de vanglória louca, quando diz que “o homem faz as preparações no seu
coração, mas o Senhor dá a resposta da língua” (Pv 16:1). E é algo muito insa-
no nos incumbirmos de executar o que não podemos pronunciar com a nossa
língua. Tiago não reprova a forma de expressão, mas antes a arrogância de
Epístolas Gerais – Tiago 51

espírito, que os homens se esqueçam de sua própria fraqueza, e falem assim


presunçosamente; pois mesmo os fiéis, que pensam humildemente sobre si
mesmos, e reconhecem que seus passos são guiados pela vontade de Deus,
contudo às vezes podem dizer, sem nenhuma cláusula modificadora, que farão
isto ou aquilo. De fato, é correto e próprio, quando prometemos algo quanto ao
tempo futuro, acostumarmo-nos a palavras tais como estas: “Se Deus se agra-
dar”, “se o Senhor permitir”. Mas não se deve nutrir nenhum escrúpulo, como
se fosse pecado omiti-las; pois lemos em toda a parte nas Escrituras que os
santos servos de Deus falavam incondicionalmente de coisas futuras, quando,
por outro lado, tinham como um princípio firme em suas mentes, que não pode-
riam fazer nada sem a permissão de Deus. Então, quanto à prática de dizer:
“Se o Senhor quiser ou permitir”, deve ser cuidadosamente observada por to-
dos os fiéis.
Mas Tiago despertava a estupidez daqueles que desprezavam a providência
de Deus, e reivindicavam para si um ano inteiro, embora não tivessem um úni-
co momento em seu próprio poder – o lucro que estava distante eles prometi-
am a si, embora não tivessem nenhuma posse do que estava diante de seus
pés.
14. Porque, que é a vossa vida? Ele poderia ter reprimido esta liberdade insen-
sata de determinar coisas futuras por muitas outras razões – pois sabemos
como o Senhor frustra diariamente aqueles homens presunçosos que prome-
tem as grandes coisas que farão. Mas ele estava satisfeito com este único ar-
gumento – quem te prometeu a vida amanhã? Podes, um homem moribundo,
fazer o que tão confiantemente resolves fazer? Pois aquele que se lembra da
brevidade de sua vida, terá a sua audácia facilmente refreada, de modo a não
estender demasiadamente suas resoluções. Não somente isto, mas por ne-
nhuma outra razão os infiéis se indultam tanto, senão porque se esquecem de
que são homens. Pela comparação do vapor, ele mostra notavelmente que os
propósitos que estão fundados apenas na vida presente são totalmente eva-
nescentes.
15. Se o Senhor quiser. Uma dupla condição é formulada: “Se vivermos tanto
tempo” e “se o Senhor quiser” – porque muitas coisas podem se interpor para
frustrar o que podemos ter determinado, pois estamos cegos quanto a todos os
eventos futuros.39 Por vontade ele quer dizer não a que é expressa na lei, mas
o conselho de Deus pelo qual ele governa todas as coisas.
16. Mas agora regozijais, ou, vos gloriais. Podemos aprender a partir destas
palavras que Tiago condenava algo mais do que uma fala passageira. Regozi-
jais, ou, vos gloriais, diz ele, em vossas vanglórias. Embora privassem a Deus
de seu governo, eles ainda se gabavam – não que abertamente se colocassem
como superiores a Deus, embora estivessem especialmente inchados de confi-
ança em si mesmos; mas suas mentes estavam tão inebriadas de vaidade que
desprezavam a Deus. E, como avisos desta natureza são geralmente recebi-

39
As palavras podem ser traduzidas assim: “Se o Senhor quiser, tanto viveremos co-
mo faremos isto ou aquilo”. De modo que viver e fazer são ambos dependentes da
vontade de Deus.
52 Comentários de Calvino

dos com desprezo pelos infiéis – não somente isto, mas esta resposta é dada
de imediato: “é conhecido de nós o que nos é oferecido, por isso não há ne-
cessidade de tal aviso”, ele alega contra eles este conhecimento em que se
gloriavam, e declara que pecavam ainda mais gravemente, porque não peca-
vam por ignorância, mas por desprezo.

TIAGO 5:1-6
1. Eia, pois, agora vós, ricos, chorai e 1. Agedum nunc divites, plorate, ululantes
pranteai, por vossas misérias, que sobre super miseriis vestris quae advenient vo-
vós hão de vir. bis.
2. As vossas riquezas estão apodrecidas, 2. Divitiae vestrae putrefactae sunt, vesti-
e as vossas vestes estão comidas de menta vestra a tineis excesa sunt.
traça.
3. O vosso ouro e a vossa prata se enfer- 3. Aurum et argentum vestrum aerugine
rujaram; e a sua ferrugem dará testemu- corruptum est; et aerugo eorum in testi-
nho contra vós, e comerá como fogo a monium vobis erit, et exedet carnes ves-
vossa carne. Entesourastes para os últi- tras sicut ignis: thesaurum congessistis in
mos dias. extremis diebus.
4. Eis que o jornal dos trabalhadores que 4. Ecce merces operariorum, qui messue-
ceifaram as vossas terras, e que por vós runt regiones vestras, quae fraude aversa
foi diminuído, clama; e os clamores dos est a vobis, clamat; et clamores eorum qui
que ceifaram entraram nos ouvidos do messuerunt, in aures Domini Sabaoth in-
Senhor dos exércitos. troierunt.
5. Deliciosamente vivestes sobre a terra, 5. In deliciis vixistis super terram; lacivistis,
e vos deleitastes; cevastes os vossos enutristis corda vestra, sicut in die macta-
corações, como num dia de matança. tionis.
6. Condenastes e matastes o justo; ele 6. Condemnastis et occidistis justum, et
não vos resistiu. non resistit vobis.
1. Eia, pois, agora. Estão equivocados, conforme penso, aqueles que conside-
ram que Tiago aqui exorta os ricos ao arrependimento. Isto me parece ser uma
simples denúncia do juízo de Deus, pela qual pretendia aterrorizá-los sem dar-
lhes nenhuma esperança de perdão – pois tudo o que ele diz tende apenas ao
desespero. Portanto, ele não se dirige a eles a fim de convidá-los ao arrepen-
dimento, mas, pelo contrário, tem em consideração os fiéis, para que estes,
ouvindo sobre a miséria dos ricos, não invejassem a sua fortuna; e também
para que, sabendo que Deus seria vingador das injustiças que sofriam, eles
pudessem suportá-las com um espírito manso e resignado.40

40
Muitos comentaristas, como Grocio, Doddridge, Macknight e Scott, consideram que
o Apóstolo se refere, no começo deste capítulo, não a cristãos professos, mas a ju-
deus incrédulos. Não se diz nada que possa levar a tal opinião; e, se os dois capítulos
anteriores foram dirigidos (conforme admitido por todos) àqueles que professavam a
fé, não há razão para que este não tenha sido dirigido a eles – os pecados aqui con-
denados não são piores do que aqueles condenados antes. De fato, vemos, pelas
Epístolas de Pedro, e pela de Judas, que, naquele tempo, havia homens que profes-
Epístolas Gerais – Tiago 53

Mas ele não fala dos ricos indiscriminadamente, e sim daqueles que, estando
imersos em prazeres e inchados de orgulho, não pensavam em nada além do
mundo, e que, como abismos inesgotáveis, devoravam tudo; pois estes, pela
sua tirania, oprimiam os outros, tal como se evidencia a partir de toda a passa-
gem.
Chorai e pranteai, ou, lamentai chorando. O arrependimento tem de fato o seu
choro, mas, estando misturado com a consolação, não passa para o pranto.
Então, Tiago sugere que o peso da vingança de Deus será tão terrível e severo
sobre os ricos, que eles serão constrangidos a irromper em pranto – como se
lhes tivesse dito, em poucas palavras: “Ai de vós!” Mas este é um modo proféti-
co de falar – os infiéis terem o castigo que os espera apresentado diante de si,
e serem representados como já o sofrendo. Como, então, agora eles se gaba-
vam, e prometiam a si mesmos que a prosperidade em que se consideravam
felizes seria perpétua, ele declarou que as misérias mais terríveis estavam
quase presentes.
2. As vossas riquezas. O sentido pode ser duplo: que ele ridiculariza a louca
confiança deles, porque as riquezas em que colocavam sua felicidade eram
totalmente passageiras – sim, que elas podiam ser reduzidas a nada por um
único golpe de Deus; ou que ele condena como avareza insaciável deles, por-
que amontoavam bens apenas para isto – para que estes perecessem sem
qualquer proveito. Este último sentido é o mais apropriado. De fato, é verdade
que são insanos aqueles ricos que se gloriam em coisas tão passageiras como
vestes, ouro, prata e coisas semelhantes, uma vez que isto não é nada mais do
que tornar a glória deles sujeita à traça e à ferrugem; e bem conhecido é aque-
le dito: “O que é mal adquirido logo é perdido”, porquanto a maldição de Deus
consome tudo, pois não é justo que os incrédulos ou os seus herdeiros desfru-
tem de riquezas que arrebataram, por assim dizer, com violência da mão de
Deus.
Mas, como Tiago enumera os vícios pelos quais os ricos traziam sobre si
mesmos a calamidade que ele menciona, o contexto exige, conforme penso,
que afirmemos que aquilo que ele condena aqui é a avidez extrema dos ricos,
ao reterem tudo de que pudessem lançar mão, para que apodrecesse inutil-
mente em seus baús. Pois assim era que aquilo que Deus havia criado para
uso dos homens, eles destruíam, como se fossem inimigos da humanidade.41

savam a religião que não eram nem um pouco melhores (se não piores) do que muitos
que professam a religião em nosso tempo.
Além disso, não era incomum, em discursos a cristãos, dirigir-se aos incrédulos. De
fato, Paulo diz expressamente: “Que tenho de julgar os que estão de fora?”
Que naquele tempo havia homens ricos que professavam o evangelho, é evidente a
partir de Tg 1:10.
41
Aqui se faz referência a três tipos de riquezas – riquezas de grãos, que apodreciam;
de vestes, que eram comidas pela traça; e de metais preciosos, dinheiro e jóias, etc.,
que enferrujavam.
54 Comentários de Calvino

Mas deve-se observar que os vícios que ele menciona aqui não pertencem a
todos os ricos, pois alguns deles se indultam na luxúria, outros gastam muito
em exibição e aparência, e outros são mesquinhos, e vivem miseravelmente
em sua própria imundície. Saibamos, então, que ele reprova aqui alguns vícios
em alguns, e outros vícios em outros. Contudo, são genericamente condena-
dos todos aqueles que acumulam riquezas injustamente, ou que insensatamen-
te abusam delas. Mas o que Tiago diz agora não é apropriado apenas para os
ricos de tenacidade extrema (como Êuclio, de Plauto), mas também para aque-
les que se deleitam em pompa e luxúria, e no entanto preferem mais ajuntar
riquezas do que empregá-las para fins necessários. Pois tal é a malignidade de
alguns, que invejam dos outros o sol e o ar comuns.
3. Testemunho contra vós. Ele confirma a explicação que já dei. Pois Deus não
designou o ouro para a ferrugem, nem as vestes para as traças; mas, pelo con-
trário, ele os projetou como auxílios e socorros à vida humana. Portanto, até
mesmo gastar sem proveito é um testemunho de desumanidade. O enferruja-
mento do ouro e da prata serão, por assim dizer, a ocasião de a ira de Deus se
inflamar, de modo que, como fogo, os consumirá.
Entesourastes. Estas palavras também podem admitir duas explicações: que
os ricos, enquanto vivem, nunca estão satisfeitos, mas se esgotam ajuntando o
que possa ser suficiente até o fim do mundo; ou, que eles amontoam a ira e a
maldição de Deus para o último dia – e eu adoto esta segunda visão.42
4. Eis que o jornal. Agora ele condena a crueldade – a companheira invariável
da avareza. Mas ele se refere apenas a um tipo que, acima de todos os outros,
deve ser justamente considerado odioso. Pois, se um homem justo e bondoso,
como diz Salomão em Pv 12:10, tem consideração pela vida do seu animal, é
uma barbaridade monstruosa quando o homem não sente nenhuma compaixão
por aquele cujo suor empregou em benefício próprio. Por esta causa o Senhor
proibiu estritamente, na lei, que o salário do trabalhador dormisse conosco (Dt
24:15). Além disso, Tiago não se refere aos trabalhadores em geral, mas, por
ênfase, menciona lavradores e ceifeiros. Pois o que pode ser mais abjeto do
que serem afligidos pela necessidade aqueles que nos fornecem o pão pelo
seu trabalho? E, contudo, esta coisa monstruosa é comum; pois existem muitos
de uma disposição tão tirânica que pensam que o resto da humanidade vive
apenas para o seu exclusivo benefício.
Mas ele diz que este salário clama, pois tudo o que os homens retêm, quer por
fraude ou violência, daquilo que pertence a outro, clama por vingança como

42
Por “últimos dias” são normalmente referidos os dias do evangelho. O dia do juízo é
muitas vezes chamado por João, em seu Evangelho, de “último dia”, e o mesmo pare-
ce ser chamado aqui de “últimos dias”. A referência feita por alguns à destruição de
Jerusalém não tem na passagem nada em seu favor. “Entesourar”, ou armazenar um
depósito, faz uma evidente referência ao dia do juízo, tal como Paulo faz uso da mes-
ma expressão em Rm 2:5 – ele apenas lhe acrescenta “ira”, a qual também é acres-
centada aqui pela Vulgata. Todo o verso é cominatório, e nesta sentença os ricos são
lembrados do resultado, o resultado final da sua conduta. O caráter do depósito deve
ser percebido a partir da parte precedente do verso. Ao entesourar riquezas desones-
tas, eles estavam entesourando ira para si mesmos.
Epístolas Gerais – Tiago 55

que em alta voz. Devemos notar o que ele acrescenta – que os clamores dos
pobres chegam aos ouvidos de Deus – para que saibamos que a injustiça feita
a eles não ficará impune. Portanto, aqueles que são oprimidos pelos injustos
devem suportar resignadamente seus males, porque terão Deus como seu de-
fendor. E aqueles que têm o poder de fazer o mal devem se abster da injustiça,
para que não provoquem contra si mesmos a Deus, que é o protetor e benfeitor
dos pobres. E por esta razão ele também chama Deus de Senhor de Sabaoth,
ou dos exércitos – sugerindo, através disto, o seu poder e força, pelos quais
torna o seu juízo mais temível.
5. Deliciosamente. Ele passa agora a outro vício – a saber, a luxúria e as grati-
ficações pecaminosas; pois aqueles que abundam em riqueza raramente se
mantêm dentro dos limites da moderação, mas abusam da sua abundância
através de extremas indulgências. Existem, de fato, alguns homens ricos, con-
forme eu disse, que definham em meio à sua abundância. Pois não era sem
razão que os poetas conceberam Tântalo faminto próximo a uma mesa bem
guarnecida. Sempre houve tantalianos no mundo. Mas Tiago, conforme foi dito,
não fala de todos os ricos. Basta que vejamos este vício comumente prevale-
cendo entre os ricos – que sejam demasiadamente dados a luxúrias, a pompas
e a superfluidades.
E, embora o Senhor permita que vivam livremente do que possuem, a profusão
deve ser evitada e a frugalidade, praticada. Pois não era em vão que o Senhor,
pelos seus profetas, reprovava severamente aqueles que dormiam em leitos de
marfim, que usavam unguentos preciosos, que se deleitavam em seus banque-
tes com o som da harpa, que eram como vacas gordas em ricas pastagens.
Pois todas estas coisas foram ditas com este fim – para que saibamos que a
moderação deve ser observada, e que a extravagância é desagradável a Deus.
Cevastes os vossos corações. Ele quer dizer que eles se indultavam, não ape-
nas até satisfazer a natureza, mas até onde a sua cupidez os levasse. Ele a-
crescenta uma comparação: como num dia de matança, porque estavam habi-
tuados em seus sacrifícios solenes a comer mais livremente do que de acordo
com os seus hábitos diários. Então, ele diz que os ricos se banqueteavam to-
dos os dias da sua vida porque se imergiam em perpétuas indulgências.
6. Condenastes. Aqui se segue outro tipo de desumanidade – que os ricos pelo
seu poder oprimissem e destruíssem os pobres e fracos. Ele diz, por uma me-
táfora, que os justos eram condenados e mortos; pois, quando não os matam
pela sua própria mão, ou os condenam como juízes, eles ainda empregavam a
autoridade que tinham para cometer injustiça, corrompiam os juízos e inventa-
vam diversos artifícios para destruir os inocentes – ou seja, na verdade para
condená-los e matá-los.43

43
Muitos têm considerado que aquilo a que se refere aqui seja a condenação de nos-
so Salvador pela nação judaica, especialmente porque ele é cha-mado de ὁ δίκαιος, “o
justo”. Isto é verdade, mas o cristão também é chamado assim, em 1 Pe 4:18. Tiago
mui frequentemente individualiza o fiel, usando o singular em lugar do plural. Todo o
contexto prova que ele fala aqui dos fiéis pobres que sofriam injustiça dos ricos, pro-
fessando a mesma fé. Ademais, a morte de Cristo não é atribuída aos ricos, mas aos
anciãos e principais dos sacerdotes.
56 Comentários de Calvino

Acrescentando que o justo não lhes resistiu, ele sugere que a audácia dos ricos
fora maior; porque aqueles que eles oprimiam estavam sem qualquer proteção.
Contudo, ele os faz lembrar de que mais pronta e imediata seria a vingança de
Deus, quando os pobres não têm nenhuma proteção dos homens. Mas, embo-
ra o justo não resistisse, porque devia ter sofrido pacientemente as injustiças,
ainda penso que a fraqueza deles ao mesmo tempo é referida – ou seja, ele
não resistiu, porque estava desprotegido e sem qualquer ajuda dos homens.

TIAGO 5:7-9
7. Sede pois, irmãos, pacientes até à vin- 7. Patienter ergo agite, fratres, usque in
da do Senhor. Eis que o lavrador espera adventum Domini. Ecce agricola expectat
o precioso fruto da terra, aguardando-o pretiosum fructum terrae, patienter se ge-
com paciência, até que receba a chuva rens erga eum, donec recipiat pluvium
temporã e seródia. matutinam et vespertinam.
8. Sede vós também pacientes, fortalecei 8. Patienter ergo agite et vos; confirmate
os vossos corações; porque já a vinda do corda vestra, quonim adventus Domini
Senhor está próxima. propinquus est.
9. Irmãos, não vos queixeis uns contra os 9. Ne ingemiscatis alii in alios, fratres, ne
outros, para que näo sejais condenados. condemnemeni: ecce judex stat pro fori-
Eis que o juiz está à porta. bus.
7. Sede pois, pacientes. A partir desta inferência, é evidente que aquilo que até
aqui se tem dito contra os ricos refere-se à consolação daqueles que pareciam
por um momento estar expostos às suas injustiças com impunidade. Pois, após
ter mencionado as causas daquelas calamidades que estavam suspensas so-
bre os ricos, e tendo declarado esta entre outras – que eles orgulhosa e cruel-
mente governavam sobre os pobres – imediatamente acrescenta que nós, que
somos injustamente oprimidos, temos esta razão para sermos pacientes – por-
que Deus se tornaria o juíz. Pois isto é o que quer dizer quando afirma: até a
vinda do Senhor – ou seja, que a confusão de coisas que agora é vista no
mundo não será perpétua, porque o Senhor, na sua vinda, reduzirá as coisas à
ordem, e que, portanto, nossas mentes devem entreter boa esperança; pois
não é sem razão que a restauração de todas as coisas nos é prometida naque-
le dia. E, embora o dia do Senhor seja, em toda a parte da Escritura, chamado
de manifestação do seu juízo e graça, quando ele socorre seu povo e castiga
os infiéis, ainda prefiro considerar a expressão aqui como se referindo ao nos-
so livramento final.

Os dois primeiros verbos, sendo aoristos, podem ser traduzidos no tempo presente,
especialmente quando o último verbo está nesse tempo. Pois, no próprio verso seguin-
te, o sétimo, o aoristo é assim utilizado. Podemos então dar esta versão: 6. “Conde-
nais, matais o justo; ele não se põe em ordem contra vós”.
Provavelmetne o aoristo é usado porque expressa o que era feito habitualmente, ou
um ato continuado, assim como, frequentemente, o tempo futuro em hebraico. O verso
precedente, o quinto, onde todos os verbos são aoristos, seriam melhor traduzidos do
mesmo modo: “Viveis em prazer”, etc.
Epístolas Gerais – Tiago 57

Eis que o lavrador. Paulo refere-se brevemente à mesma comparação, em 2


Tm 2:6, quando diz que o lavrador deve trabalhar antes de colher o fruto; mas
Tiago expressa mais plenamente a idéia, pois menciona a paciência diária do
lavrador que, após ter depositado a semente na terra, confiantemente, ou ao
menos pacientemente, aguarda até que chegue o tempo da colheita; e também
não se atormenta porque a terra não produza imediatamente um fruto suculen-
to. Por onde ele conclui que não devemos ficar imoderamente ansiosos, se a-
gora devemos trabalhar e semear, até que a colheita, por assim dizer, chegue
– a saber, o dia do Senhor.
O precioso fruto. Ele chama de precioso, porque é o sustento da vida e o meio
de mantê-la. E Tiago sugere que, visto como o lavrador suporta que sua vida,
tão preciosa a ele, permaneça por muito tempo depositada no seio da terra, e
tranqüilamente suspende o seu desejo de colher o fruto, não devemos ficar
demasiadamente inquietos ou impacientes, mas aguardar resignadamente o
dia da nossa redenção. Não é necessário explicar particularmente as outras
partes da comparação.
A chuva temporã e seródia. Pelas duas palavras, temporã e seródia, são assi-
naladas duas estações – a primeira vem logo após a semeadura, e a outra,
quando a espiga está madura. Assim também falaram os profetas, quando pre-
tendiam anunciar o tempo da chuva (Dt 28:12; Jl 2:23; Os 6:3). E ele mencio-
nou ambas as épocas, a fim de mais plenamente mostrar que os lavradores
não ficam desanimados com o lento avanço do tempo, mas toleram a demora.
8. Fortalecei os vossos corações. Para que ninguém objetasse e dissesse que
o tempo de livramento era dilatado por muito tempo, ele impede esta objeção e
diz que o Senhor estava próximo, ou (o que é a mesma coisa) que sua vinda
estava próxima. Ao mesmo tempo, manda que corrijamos a brandura do cora-
ção, que nos enfraquece, de modo a não perseverarmos na esperança. E, sem
dúvida, o tempo parece longo, porque somos tenros e delicados demais. De-
vemos, então, juntar forças para que nos robusteçamos, e isto não pode ser
melhor obtido do que pela esperança, e, por assim dizer, por uma visão per-
ceptiva da aproximação iminente de nosso Senhor.
9. Não vos queixeis, ou não gemais. Como as queixas de muitos eram ouvidas
– de que eram mais severamente tratados do que outros – esta passagem é
explicada por alguns de tal modo como se Tiago mandasse cada um ficar con-
tente com a sua própria sorte, não invenjando os outros, nem se queixando, se
a condição de outros era mais tolerável. Mas eu tenho outra visão; pois, após
ter falado da infelicidade daqueles que angustiam os homens mansos e bons
pela sua tirania, agora ele exorta os fiéis a serem justos uns para com os ou-
tros, e a estarem prontos a ignorar as ofensas. Que este é o verdadeiro signifi-
cado, pode-se deduzir a partir da razão que é acrescentada: Não vos queixeis
uns contra os outros, para que não sejais condenados. Podemos, de fato, nos
queixar, quando algum mal nos atormenta; mas ele se refere a uma queixa a-
cusadora, quando alguém protesta com o Senhor contra outro. E ele declara
que assim seriam todos condenados, porque não há um que não ofenda a seus
irmãos, e lhes dê ocasião de se queixar. Ora, se todos reclamassem, todos
58 Comentários de Calvino

teriam se acusado a si mesmos, pois ninguém era tão inocente que não cau-
sasse algum dano a outros.
Deus será o juíz comum de todos. Qual será então o caso, senão que todo a-
quele que busca trazer juízo sobre os outros, deve admitir o mesmo contra si –
e assim serão entregues à mesma ruína. Que ninguém, então, peça vingança
contra outros, a não ser que queira trazê-la sobre a sua própria cabeça. E, para
que não fossem precipitados em fazer reclamações desta natureza, ele declara
que o juíz estava às portas. Pois, como a nossa propensão é profanar o nome
de Deus, nas menores ofensas apelamos para o seu juízo. Nenhuma outra coi-
sa é um freio mais apropriado para conter a nossa temeridade do que conside-
rar que nossas imprecações não se desvanecem no ar, porque o juízo de Deus
está próximo.

TIAGO 5:10-11
10. Meus irmãos, tomai por exemplo de 10. Exemplum accipite afflictionis, fratres
aflição e paciência os profetas que fala- mei, et tolerentiae, prophetas, qui loquuti
ram em nome do Senhor. sunt in nomine Domini.
11. Eis que temos por bem-aventurados 11. Ecce beatos esse ducimus eos qui
os que sofreram. Ouvistes qual foi a paci- sustinent: patientiam Job audistis, et finem
ência de Jó, e vistes o fim que o Senhor Domini vidistis, quod multum sit misericors
lhe deu; porque o Senhor é muito miseri- et commiserans.
cordioso e piedoso.
10. Meus irmãos, tomai os profetas. O conforto que ele traz não é aquele de
acordo com o provérbio comum – que os miseráveis esperam por companhei-
ros iguais nas dificuldades. Que apresentasse diante deles companheiros, em
cujo número era desejável ser classificado, e ter a mesma condição com eles,
não era miséria alguma. Pois, assim como necessariamente sentiremos extre-
ma tristeza, quando nos ocorre algum mal que os filhos de Deus nunca experi-
mentaram, do mesmo modo é uma consolação singular quando sabemos que
não sofremos nada de diferente deles; não somente isto, mas quando sabemos
que temos de suportar o mesmo jugo com eles.
Quando Jó ouviu de seus amigos: “Vira-te para os santos, podes encontrar al-
guém que te assemelhe?” (Jó 5:1), era a voz de Satanás, porque este queria
levá-lo ao desespero. Quando, por outro lado, o Espírito, pela boca de Tiago,
propõe despertar-nos para uma boa esperança, ele nos mostra todos os santos
precedentes, os quais, por assim dizer, estendem a sua mão para nós, e, pelo
seu exemplo, nos encorajam a sofrer e a vencer as aflições.
A vida dos homens é, de fato, indiscriminadamente sujeita a dificuldades e ad-
versidades; mas Tiago não apresenta qualquer classe de homens como exem-
plos – pois de nada valeria perecer com a multidão – mas escolheu os profetas,
com os quais uma associação é bem-aventurada. Nada nos abate e nos desa-
nima tanto como o sentimento de miséria; portanto, é uma verdadeira consola-
ção saber que as coisas comumente consideradas males são auxílios e socor-
ros para a nossa salvação. Isto é, de fato, algo que está longe de ser compre-
endido pela carne; contudo, os fiéis devem estar convencidos disto – de que
Epístolas Gerais – Tiago 59

são felizes quando, através de várias dificuldades, são provados pelo Senhor.
Para nos convencer disto, Tiago nos lembra para que consideremos o fim ou o
propósito das aflições sofridas pelos profetas; pois, enquanto nossos próprios
males, estamos sem discernimento, sendo influenciados pela tristeza, aflição,
ou algum outro sentimento imoderado, quando não vemos nada sob um céu
nebuloso e em meio a tempestades, e sendo atirados de lá para cá como que
por um temporal; por isso é necessário que lancemos nossos olhos para uma
outra parte, onde o céu de certo modo esteja sereno e brilhante. Quando as
aflições dos santos são relatadas a nós, não há um que admita que eles foram
miseráveis, mas, pelo contrário, que foram felizes.
Então, Tiago fez um favor para nós, pois estabeleceu diante de nós um padrão,
para que aprendamos a olhar para o mesmo sempre que sejamos tentados à
impaciência ou ao desespero; e ele toma este princípio por certo – que os pro-
fetas foram bem-aventurados em suas aflições, pois as suportaram corajosa-
mente. Visto como foi assim, conclui que o mesmo juízo deveria ser formado a
nosso respeito, quando afligidos.
E diz: os profetas que falaram em nome do Senhor, por meio de que sugere
que foram aceitos e aprovados por Deus. Se, então, lhes tivesse sido útil que
estivessem livres de misérias, sem dúvida Deus os teria mantido livres. Mas foi
o contrário. Por onde segue-se que as aflições são salutares para os fiéis. Por
isso, ele manda que sejam tomados como exemplo de aflição sofredora. Mas a
paciência também deve ser acrescentada, a qual é uma verdadeira evidência
da nossa obediência. Por isso uniu ambas.
11. A paciência de Jó. Tendo falado genericamente dos profetas, agora ele se
refere a um exemplo notável acima dos demais; pois ninguém, até onde pode-
mos aprender pelas histórias, jamais foi submetido a dificuldades tão duras e
diversas como Jó; e, contudo, ele saiu de abismo tão profundo. Todo aquele,
então, que imitar a sua paciência, sem duvida descobrirá que a mão de Deus,
que finalmente o livrou, é a mesma. Sabemos com que finalidade sua história
foi escrita. Deus não permitiu que seu servo Jó afundasse, porque este pacien-
temente suportou suas aflições. Então, ele não desapontará a paciência de
ninguém.
Se, porém, for questionado: Por que o Apóstolo recomenda tanto a paciência
de Jó, quando este mostrou tantos sinais de impaciência, sendo arrebatado por
um espírito precipitado? A isto eu respondo que, embora às vezes falhasse
devido à fraqueza da carne, ou murmurasse dentro de si, contudo ele sempre
se sujeitou a Deus, e sempre esteve disposto a ser refreado e governado por
ele. Embora, então, sua paciência fosse um tanto deficiente, ela é merecida-
mente recomendada.
O fim que o Senhor. Por estas palavras ele sugere que as aflições devem sem-
pre ser estimadas pelo seu fim. Pois, a princípio, Deus parece estar mui distan-
te, e Satanás ao mesmo tempo se revela na confusão; a carne nos sugere que
estamos abandonados por Deus, e perdidos. Devemos, então, estender a nos-
sa visão mais além, pois perto de nós e à nossa volta não se mostra nenhuma
luz. Além disso, ele chamou de o fim do Senhor, porque é a sua obra dar um
resultado próspero às adversidades. Se cumprimos o nosso dever em suportar
60 Comentários de Calvino

os males obedientemente, de modo algum ele deixará de cumprir a sua parte.


A esperança nos direciona apenas para o fim; Deus se mostrará então mui mi-
sericordioso, por mais rígido e severo que possa parecer enquanto nos aflige.44

TIAGO 5:12-13
12. Mas, sobretudo, meus irmãos, não 12. Ante omnia vero, fratres mei, Ne jure-
jureis, nem pelo céu, nem pela terra, nem tis, neque per coelum, neque per terram,
façais qualquer outro juramento; mas que neque aliud quodvis jusjurandum; sit au-
a vossa palavra seja sim, sim, e não, não; tem vestrum. Est, est; Non, non: ne in ju-
para que não caiais em condenação. dicium (vel, simulationem) incidatis.
13. Está alguém entre vós aflito? Ore. 13. Afflgitur quis inter vos? oret: hilari est
Está alguém contente? Cante louvores. animo? psallat.
12. Mas, sobretudo. Tem sido um vício comum em quase todas as épocas jurar
leviana e irrefletidamente. Pois tão ruim é a nossa natureza que não conside-
ramos que crime atroz é profanar o nome de Deus. Pois, embora o Senhor es-
tritamente nos mande reverenciarmos o seu nome, os homens inventam vários
subterfúgios, e pensam que podem jurar com impunidade. Eles imaginam, en-
tão, que não existe nenhum mal, desde que não mencionem abertamente o
nome de Deus; e esta é uma antiga interpretação. Por isso os judeus, quando
juravam pelo céu ou pela terra, pensavam que não profanavam o nome de
Deus porque não o mencionassem. Mas, enquanto os homens procuram ser
engenhosos em dissimular com Deus, enganam-se com as evasivas mais frívo-
las.
Fora uma vã desculpa desta natureza que Cristo condenou em Mt 5:34. Tiago,
subscrevendo agora ao decreto de seu mestre, manda-nos abstermos destas
forma indireta de juramento, pois todo aquele que jura em vão e em ocasiões
frívolas, profana o nome de Deus, seja qual for a forma que dê às suas pala-
vras. Então, o sentido é de que não é mais legítimo jurar pelo céu ou pela terra
do que abertamente pelo nome de Deus. A razão é mencionada por Cristo –
porque a glória de Deus está inscrita em toda a parte, e em toda a parte res-
plandece. Não somente isto, mas os homens não tomam as palavras céu e
terra, em seus juramentos, em outro sentido e com outro propósito senão como
se citassem o próprio Deus – pois assim falando, apenas designam o Criador
pelas suas obras.
Mas ele diz: sobretudo, porque a profanação do nome de Deus não é uma o-
fensa leve. Os anabatistas, fundamentando-se sobre esta passagem, conde-
nam todos os juramentos, mas apenas mostram a sua ignorância. Pois Tiago
não fala dos juramentos em geral, nem Cristo, na passagem a que me referi;

44
“O fim do Senhor” parece ser uma expressão singular; mas τέλος – propriamente,
fim – significa também resultado, desfecho, término, conclusão. É genitivo de causa
eficiente, “o fim (ou resultado) dado pelo Senhor”. Vede Jó 42:12. De acordo com Gri-
esbach, existem três manuscritos que trazem ἒλεος, “misericórdia” – o que seria bas-
tante apropriado: “e vistes a misericórdia do Senhor, porque o Senhor é mui cheio de
piedade, e compassivo”. Mas a autoridade não é suficiente.
Epístolas Gerais – Tiago 61

mas ambos condenam aquela evasiva que havia sido inventada – quando os
homens tomam a liberdade de jurar sem expressar o nome de Deus – o que
era uma liberdade repugnante à proibição da lei.
E é isto o que as palavras claramente significam: Nem pelo céu, nem pela ter-
ra. Pois, se a questão fosse quanto aos juramentos em si, com que propósito
estas formas foram mencionadas? Então, torna-se evidente que, tanto por Cris-
to como por Tiago, é reprovada a astúcia pueril daqueles que ensinavam que
podiam jurar com impunidade, desde que adotassem alguma expressão indire-
ta. Para que possamos, então, entender o sentido de Tiago, devemos entender
primeiro o preceito da lei: “Não tomarás o nome de Deus em vão”. Por onde se
torna claro que existe um uso correto e legítimo do nome de Deus. Ora, Tiago
condena aqueles que, de fato, não se atreviam a profanar de modo direto o
nome de Deus, mas se esforçavam por evadir-se à profanação que a lei con-
dena por meio de circunlocuções.
Mas que seja o vosso sim, sim. Ele apresenta o melhor remédio para corrigir o
vício que condena – ou seja, que eles deviam habitualmente se limitar à verda-
de e fidelidade em todos os seus ditos. Pois de onde vem o ímpio hábito de
jurar, senão porque tal é a falsidade dos homens que somente as suas pala-
vras não são cridas? Pois, se observassem a fidelidade, como deveriam, em
suas palavras, não haveria necessidade de tantos juramentos supérfluos. Co-
mo, então, a perfídia ou leviandade dos homens é a fonte da qual se deriva o
vício dos juramentos, a fim de remover o vício, Tiago ensina-nos que a fonte
deve ser removida; pois o modo correto de curar é começando com a causa da
doença.
Algumas cópias trazem: “Seja a vossa palavra (ou discurso) sim, sim; não,
não”. Contudo, a verdadeira leitura, e a comumente recebida, é a que forneci; e
o que ele quer dizer eu já expliquei – isto é, que devemos dizer a verdade, e
ser fiéis em nossas palavras. Com o mesmo propósito é o que Paulo diz em 2
Co 1:18 – que ele não era em sua pregação sim e não, mas seguia a mesma
direção desde o começo.
Para que não caiais em condenação. Existe uma leitura diferente, devido à afi-
nidade das palavras ὑπὸ κρίσιν e ὑπόκρισιν.45 Se lerdes: “em juízo” ou conde-
nação, o sentido será claramente de que tomar o nome de Deus em vão não
ficará impune. Mas não é inadequado dizer: “em hipocrisia”, porque, quando a
simplicidade, conforme já foi dito, prevalece entre nós, a ocasião para juramen-
tos supérfluos é cortada. Se, então, a fidelidade se mostra em tudo o que di-
zemos, a dissimulação, que nos leva a jurar temerariamente, será removida.
13. Está alguém entre vós aflito? Ele quer dizer que não há tempo em que
Deus não nos convide a si. Pois as aflições devem nos estimular à oração; a
prosperidade nos fornece ocasião para louvarmos a Deus. Mas tal é a perver-
sidade dos homens que não podem se regozijar sem se esquecer de Deus, e
que, quando afligidos, são abatidos e levados ao desespero. Devemos, então,

45
Para εἰς ὑπόκρισιν existem diversos manuscritos, mas para ὑπὸ κρίσιν existem não
apenas diversos manuscritos, mas as versões mais antigas – a Siríaca e a Vulgata;
assim também Griesbach toma esta última como a leitura verdadeira.
62 Comentários de Calvino

nos manter dentro dos devidos limites, de modo que a alegria, que normalmen-
te nos faz esquecer de Deus, possa nos induzir a anunciar a bondade de Deus;
e que a nossa tristeza possa nos ensinar a orar. Pois ele pôs o cantar de sal-
mos em oposição à alegria profana e desenfreada; e assim expressam sua a-
legria aqueles que pela prosperidade são levados, tal como deveriam, a Deus.

TIAGO 5:14-15
14. Está alguém entre vós doente? Cha- 14. Infirmatur quis inter vos? Advocet
me os presbíteros da igreja, e orem sobre presbyteros ecclesiae, et orent super eum,
ele, ungindo-o com azeite em nome do unguentes oleo in nomine Domini:
Senhor.
15. E a oração da fé salvará o doente, e o 15. Et oratio fidei servabit aegrotum, et
Senhor o levantará; e, se houver cometi- excitabit eum Dominus; et si peccata ad-
do pecados, ser-lhe-ão perdoados. miserit, remittentur illi.
14. Está alguém entre vós doente? Como o dom da cura ainda perdurava, ele
direciona os doentes a recorrerem a esse remédio. De fato, é certo que nem
todos eram curados; mas o Senhor concedia este favor quantas vezes e até
onde sabia ser oportuno; e também não é provável que o óleo fosse aplicado
indiscriminadamente, mas somente quando houvesse alguma esperança de
restauração. Pois, juntamente com o poder, também fora dada discrição aos
ministros, para que não profanassem o símbolo pelo abuso. O propósito de
Tiago não era outro senão recomendar a graça de Deus de que os fiéis podiam
então desfrutar, para que o seu benefício não fosse perdido por desprezo ou
negligência.
Com este propósito, ele ordenou que os presbíteros fossem buscados, mas o
uso da unção deveria ser confinado ao poder do Espírito Santo.
Os papistas se jactam muitíssimo desta passagem, quando procuram passar a
sua extrema unção. Mas quão diferente é a corrupção deles da antiga orde-
nança mencionada por Tiago. No momento, não me ocuparei de demonstrar.
Que os leitores aprendam isto pelas minhas Institutas. Apenas direi isto – que
esta passagem é ímpia e ignorantemente pervertida quando a extrema unção é
estabelecida através dela, e é chamada de sacramento a ser perpetuamente
observado na Igreja. De fato, admito que foi usada como um sacramento pelos
discípulos de Cristo (pois não posso concordar com aqueles que pensam que
fosse remédio); mas, como a realidade deste sinal perdurou apenas por um
período de tempo na Igreja, o símbolo também deveria existir apenas por um
tempo. E está bem evidente que nada é mais absurdo do que chamar de sa-
cramento aquilo que é nulo e não nos apresenta realmente o que significa. Que
o dom de cura foi temporário, todos são obrigados a admitir, e os eventos pro-
vam claramente; nesse caso, o seu sinal não deveria ser considerado perpé-
tuo. Por onde segue-se que aqueles que atualmente põem a unção entre os
sacramentos não são os verdadeiros seguidores, e sim macaqueadores dos
Apóstolos, a não ser que restaurem o efeito produzido por ela – o qual Deus
retirou do mundo há mais de mil e quatrocentos anos. Por isso não temos ne-
nhuma disputa quanto a se a unção fora antes um sacramento; mas se ela foi
Epístolas Gerais – Tiago 63

dada para existir perpetuamente. Este último negamos, porque é evidente que
a coisa significada há muito cessou.
Os presbíteros, ou anciãos, da igreja. Incluo aqui genericamente todos os que
presidiam sobre a Igreja, pois não somente os pastores eram chamados de
presbíteros ou anciãos, mas também aqueles que eram eleitos dentre o povo
para serem como que censores para garantir a disciplina. Pois toda a igreja
possuía, por assim dizer, o seu próprio senado, escolhido dentre homens de
influência e integridade comprovada. Mas como era costumeiro escolher espe-
cialmente aqueles que eram dotados de dons mais do que ordinários, ele os
mandou buscar os anciãos, como sendo aqueles em quem o poder e a graça
do Espírito Santo mais particularmente se revelava.
Orem sobre ele. Este costume de orar sobre alguém tinha a finalidade de mos-
trar que eles estavam como que diante de Deus; pois, quando chegamos como
que à própria cena, expressamos orações com maior sentimento; e não apenas
Eliseu e Paulo, mas o próprio Cristo, estimularam o fervor na oração e reco-
mendaram a graça de Deus assim orando pelas pessoas (2 Rs 4:32; At 20:10;
Jo 11:41).
15. A oração da fé salvará. Mas deve-se observar que ele relaciona a promes-
sa com a oração para que não fosse feita sem fé. Pois aquele que duvida, co-
mo alguém que não invoca corretamente a Deus, é indigno de obter qualquer
coisa, conforme vimos em Tg 1:5-8. Todo aquele então que realmente procura
ser ouvido deve estar plenamente persuadido de que não ora em vão.
Como Tiago apresenta diante de nós este dom especial, para o qual o ritual
externo era apenas um acréscimo, por aqui aprendemos que o óleo não pode-
ria ser usado corretamente sem fé. Mas, visto como se torna evidente que os
papistas não têm nenhuma certeza quanto à sua unção, pois é manifesto que
eles não têm o dom, é evidente que a unção deles é espúria.
E, se houver cometido pecados. Isto não é acrescentado apenas por ênfase –
como se tivesse dito que Deus daria algo mais ao doente além da cura do cor-
po – mas porque as doenças eram muitas vezes infligidas por conta de peca-
dos; e, falando da sua remissão, ele sugere que a causa do mal seria removi-
da. E, de fato, sabemos que Davi, quando afligido com a doença e, procurando
alívio, empenhara-se totalmente em buscar o perdão dos seus pecados. Por
que razão fez isto, senão porque, embora reconhecesse o efeito das suas fal-
tas em seu castigo, considerasse que não houvesse outro remédio, a não ser
que o Senhor deixasse de lhe imputar os seus pecados?
Os profetas estão cheios desta doutrina – de que os homens são socorridos de
seus males quando são libertados da culpa das suas iniqüidades. Saibamos
então que este é o único remédio apropriado para nossas doenças e outras
calamidades – quando atentamente nos examinamos, sendo solícitos em nos
reconciliar com Deus, e obter o perdão de nossos pecados.
64 Comentários de Calvino

TIAGO 5:16-18
16. Confessai as vossas culpas uns aos 16. Confitemini invicem peccata vestra, et
outros, e orai uns pelos outros, para que orate invicem alii pro aliis, ut salvemini:
sareis. A oração feita por um justo pode multum valet precatio justi efficax.
muito em seus efeitos.
17. Elias era homem sujeito às mesmas 17. Elias homo erat passionibus similiter
paixões que nós e, orando, pediu que não obnoxius ut nos; et precatione precatus
chovesse e, por três anos e seis meses, est, ne plueret; et non pluit super terram
não choveu sobre a terra. annos tres et sex menses.
18. E orou outra vez, e o céu deu chuva, 18. Et rursum oravit, et coelum dedit pluvi-
e a terra produziu o seu fruto. am, et terra protulit fructum suum.
16. Confessai as vossas culpas uns aos outros. Em algumas cópias é apresen-
tada a partícula ilativa, e também não é inapropriada, pois, mesmo quando não
expressa, deve ser subentendida. Ele havia dito que os pecados seriam perdo-
ados aos doentes sobre os quais os anciãos orassem; agora, lembra-os de
quão útil é revelar nossos pecados aos nossos irmãos – isto é, para que pos-
samos obter o perdão dos mesmos pela sua intercessão.46
Sei que esta passagem é explicada por muitos como se referindo à reconcilia-
ção de ofensas; pois aqueles que querem voltar em favor devem necessaria-
mente conhecer primeiro as suas próprias faltas e confessá-las. Pois de onde
vem que os ódios lancem raízes, sim, e aumentem e se tornem irreconciliáveis,
senão porque cada um defenda perniciosamente a sua própria causa. Por isso
muitos pensam que Tiago aponta aqui o meio da reconciliação fraternal – a
saber, pelo reconhecimento mútuo dos pecados. Mas, conforme se disse, seu
objetivo era diferente; pois relaciona a oração mútua com a confissão mútua,
por meio de que sugere que a confissão serve a este fim – que possamos ser
ajudados quanto a Deus pelas orações de nossos irmãos; pois aqueles que
conhecem as nossas necessidades são estimulados a orar para nos auxiliar,
mas aqueles a quem nossas doenças são desconhecidas são mais tardios em
nos trazer auxílio.

46
O ilativo οὖν, embora se encontre em alguns manuscritos, não é introduzido no texto
por Griesbach, não havendo evidência suficiente em seu favor. E também não há uma
razão suficiente para a relação mencionada por Calvino. Os dois casos parecem ser
diferentes. Os anciãos da igreja, no caso anterior, deveriam ser chamados, os quais
orariam e ungiriam o doente – e é dito que a oração da fé (ou seja, da fé miraculosa)
salvaria o doente, e que seus pecados lhe seriam perdoados. Este era claramente um
caso de cura miraculosa. Mas aquilo de que se fala neste verso parece ser bem dife-
rente. Somente a oração é mencionada, não pelos anciãos, mas por um justo; não
salvando, como no caso anterior, mas sendo muito útil. Parece provável então que os
pecados do doente miraculosamente curado eram mais especificamente contra Deus;
e que os pecados que eles deviam confessar uns aos outros eram contra os irmãos,
também visitados com juízo e cujo remédio era a confissão mútua, e oração mútua;
mas o sucesso neste caso não era tão seguro ou tão certo como no primeiro – apenas
somos informados de que uma oração sincera é muito útil. Então, para encorajar esta
oração sincera e fervorosa, o caso de Elias é aduzido; mas não tinha nada que ver
com cura miraculosa.
Epístolas Gerais – Tiago 65

Maravilhosa, de fato, é a loucura ou a insinceridade dos papistas, que se esfor-


çam por fundamentar a sua confissão murmurada sobre esta passagem. Pois
seria fácil inferir, a partir das palavras de Tiago, que somente os sacerdotes
deveriam confessar. Pois, visto como uma confissão mútua ou, para dizer mais
claramente, recíproca é exigida aqui, ninguém mais é ordenado a confessar os
seus próprios pecados, senão aqueles que, por sua vez, estão aptos para ouvir
a confissão de outros; mas isto os sacerdotes reivindicam para si mesmos so-
mente. Então, a confissão é exigida somente deles. Mas, visto como as puerili-
dades não merecem refutação, que a verdadeira e genuína explicação já dada
seja considerada suficiente por nós.
Pois as palavras significam claramente que a confissão não é exigida com ou-
tro fim, senão para que aqueles que conheçam os nossos males possam ser
mais solícitos em nos trazer auxílio.
Pode muito. Para que ninguém pense que isto é feito sem fruto – ou seja,
quando outros oram por nós – ele menciona expressamente o benefício e o
efeito da oração. Mas ele nomeia especificamente a oração de um reto ou jus-
to; porque Deus não ouve aos infiéis, nem é aberto o acesso a Deus, senão
através de uma boa consciência; não que as nossas orações estejam funda-
mentadas em nossa própria dignidade, e sim porque o coração deve ser purifi-
cado pela fé antes de podermos nos apresentar diante de Deus. Então, Tiago
testifica que o justo ou fiel ora beneficamente por nós, e não sem fruto.
Mas o que ele quer dizer, ao acrescentar efetiva ou eficaz? Pois isto parece
supérfluo, já que, se a oração pode muito, sem dúvida é eficaz. O intérprete
antigo traduziu como “assídua”, mas isto é forçado demais. Pois Tiago usa o
particípio grego, ἐνεργούµεναι, que significa “operante”. E a sentença pode ser
explicada assim: “pode muito, porque é eficaz”.47 Como é um argumento tirado
deste princípio – que Deus não permitirá que as orações dos fiéis sejam nulas
ou inúteis – por isso, não injustamente ele conclui que ela pode muito. Mas eu
preferiria confinar isto ao presente caso: nossas orações podem ser apropria-
damente consideradas ἐνεργούµεναι, operantes, quando vem ao nosso encon-
tro alguma necessidade que incite em nós uma oração sincera. Oramos diari-
amente por toda a Igreja, para que Deus perdoe os seus pecados; mas, nesse
caso, nossa oração só é realmente sincera quando nos apresentamos para
socorrer aqueles que estão em dificuldade. Mas tal eficácia não pode estar nas
orações de nossos irmãos, a não ser que saibam que estamos em dificuldades.
Por isso a razão dada não é genérica, mas deve-se referi-la especialmente à
sentença anterior.

47
Isto dificilmente pode ser admitido. A palavra expressa que tipo de oração pode mui-
to. Ademais, poder muito, e ser efetiva, são duas coisas distintas. A palavra como ver-
bo e como particípio geralmente tinha um sentido ativo. Schleusner apresenta apenas
um caso em que ela tem um sentido passivo: 2 Co 1:6 – à qual pode-se acrescentar 2
Co 4:12. Se tomada passivamente, pode ser traduzida como: “operada”, isto é, pelo
Espírito – de acordo com Macknight. Mas tem sido mais comumente entendida como
ativa, e no sentido do adjetivo verbal ἐνεργὴς – energizante, poderosa, ardente, fervo-
rosa.
66 Comentários de Calvino

17. Elias era homem. Existem inúmeros casos na Escritura do que pretendia
provar; mas ele escolheu um que é notável acima de todos os demais, pois foi
algo formidável que Deus fizesse o céu de certo modo sujeitar-se às orações
de Elias, obedecendo aos seus desejos. Elias manteve o céu fechado pelas
suas orações durante três anos e meio; e abriu-o novamente, de modo que
derramou abundância de chuva. Por onde se revelou o poder maravilhoso da
oração. Bem conhecida é esta notável história, e encontra-se em 1 Rs 17 e 18.
E, embora ali não se diga expressamente que Elias orou pedindo seca, pode-
se facilmente deduzir isto, e que a chuva também fora dada em resposta às
suas orações.
Mas devemos observar a aplicação do exemplo. Tiago não diz que se deve
pedir seca ao Senhor porque Elias a obteve; pois podemos, por zelo irrefletido,
imitar presunçosa e insensatamente o Profeta. Devemos então observar a re-
gra da oração, de modo que ela seja pela fé. Portanto, ele assim acomoda este
exemplo – que, se Elias foi ouvido, do mesmo modo também seremos ouvidos
quando orarmos corretamente. Pois, assim como a ordem para a oração é co-
mum, e assim como a promessa é comum, segue-se que o efeito também será
comum.
Para que ninguém objetasse e dissesse que estamos mui longe da dignidade
de Elias, ele o coloca em nosso próprio nível, dizendo que era homem mortal e
sujeito às mesmas paixões que nós. Pois tiramos menos proveito dos exem-
plos dos santos porque os imaginamos terem sido semideuses ou heróis, que
tinham uma comunicação peculiar com Deus; de modo que, pelo fato de terem
sido ouvidos não recebemos nenhuma confiança. A fim de remover esta su-
perstição profana e pagã, Tiago nos lembra de que os santos devem ser consi-
derados como tendo a fraqueza da carne; de modo que aprendamos a atribuir
o que alcançaram do Senhor, não aos seus méritos, e sim à eficácia da oração.
Por aqui se mostra quão pueris são os papistas, os quais ensinam os homens
a correrem para a proteção dos santos, porque estes foram ouvidos pelo Se-
nhor. Pois assim raciocinam: “Porque ele alcançou o que pediu enquanto viveu
no mundo, agora, depois da morte, será o nosso melhor benfeitor”. Este tipo de
requinte sutil era completamente desconhecido ao Espírito Santo. Pois Tiago
argumenta que, pelo contrário, assim como as orações deles puderam muito,
também devemos, de modo semelhante, orar hoje de acordo com o exemplo
deles, e que não faremos isto em vão.

TIAGO 5:19-20
19. Irmãos, se algum dentre vós se tem 19. Fratres mei, si quis inter vos erraverit a
desviado da verdade, e alguém o conver- veritate, et converterit quispiam eum;
ter,
20. Saiba que aquele que fizer converter 20. Cognoscat quod qui converterit pecca-
do erro do seu caminho um pecador, sal- torem ab errore viae suae, servabit ani-
vará da morte uma alma, e cobrirá uma mam a morte, et multitudinem operiet pec-
multidão de pecados. catorum.
Epístolas Gerais – Tiago 67

20. Saiba. Estou em dúvida se isto deveria antes ter sido escrito γιvώσκετε,
“sabeis”. Em ambos os casos, porém, o sentido é o mesmo. Pois Tiago reco-
menda-nos a correção de nossos irmãos a partir do efeito produzido, para que
mais assiduamente atentemos para este dever. Nada é melhor ou mais desejá-
vel do que livrar uma alma da morte eterna; e isto é o que faz aquele que res-
taura um irmão errante ao caminho reto; portanto, uma obra tão excelente não
deve de modo algum ser negligenciada. Dar comida aos famintos, e bebida aos
sedentos – sabemos o quanto Cristo valoriza tais atos; mas a salvação da alma
é considerada por ele muito mais preciosa do que a vida do corpo. Devemos,
portanto, ter cuidado para que, pela nossa indolência, não pereçam as almas
cuja salvação de certo modo Deus põe em nossas mãos. Não que possamos
conferir a salvação a elas; mas Deus, pelo nosso ministério, livra e salva aque-
les que parecem, de outro modo, estar próximos da destruição.
Algumas cópias trazem sua alma, o que não provoca nenhuma mudança no
sentido. Contudo, prefiro a outra leitura, pois tem mais força.
E cobrirá uma multidão de pecados. Ele faz mais uma alusão a um dito de Sa-
lomão do que uma citação (Pv 10:12). Salomão afirma que o amor cobre peca-
dos, assim como o ódio os proclama. Pois aqueles que odeiam ardem com o
desejo da difamação mútua; mas aqueles que amam estão dispostos ao exer-
cício da indulgência mútua. O amor, então, sepulta pecados quanto aos ho-
mens. Tiago ensina aqui algo mais elevado – ou seja, que os pecados são a-
pagados diante de Deus; como se tivesse dito que Salomão declarou isto como
o fruto do amor – que o mesmo cobre pecados. Mas não existe nenhum modo
melhor ou mais excelente de cobri-los do que quando são completamente abo-
lidos diante de Deus. E isto é feito quando o pecador é trazido, pela nossa ad-
moestação, ao caminho reto; devemos então atentar especialmente e ainda
mais cuidadosamente para este dever.
FIM DO COMENTÁRIO À EPÍSTOLA DE TIAGO

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