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DIÁLOGO
HERMENÊUTICO

José António Domingues

2009

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Covilhã, 2009

F ICHA T ÉCNICA
Título: Diálogo Hermenêutico
Autor: José António Domingues
Colecção: Artigos L USO S OFIA
Design da Capa: António Rodrigues Tomé
Composição & Paginação: José M. Silva Rosa
Universidade da Beira Interior
Covilhã, 2009

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Diálogo Hermenêutico∗
José António Domingues
Universidade da Beira Interior

O que justifica o diálogo hermenêutico? Como se forma uma


hermenêutica? O que é um diálogo? O criticismo de Gadamer da
ciência contemporânea enquanto cultura, pela penetração do tema
no âmbito da práxis humana, levanta a questão da abordagem com-
preensiva do existir. Esta forma de abordagem fala dos saberes re-
lacionais (responsabilidade, solidariedade, respeito pelo outro...),
saberes que não se explicam pelo seu aproveitamento pragmático,
segundo o critério da eficácia em função de um modelo metódico
e operatório da ciência moderna, como, por exemplo, a ideia de
uma autonomia do humano que ocorre unicamente regulada pela
racionalidade pura. Significa que o saber científico contemporâ-
neo difere em absoluto da filosofia prática e política. Separa-se
do éthos, quer dizer, é um saber que não reflecte a possibilidade
do saber manifestado no modo de ser com os outros (compartilhar
algo de comum). A dissolução do comum (oikeîon) é o sentido
da filosofia crítica de Gadamer, que tem efeitos na investigação de
uma ordem não causal nem eficaz da práxis nos nossos dias se-
gundo uma compreensão mediada por uma relação - “oikeîon é a

Comunicação ao IIIo Congresso da AFFEN / Io Congresso Luso-Brasileiro
de Fenomenologia, Secção temática: Hermenêutica e Ciências Humanas, Lis-
boa, 2008.

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expressão para aquele lugar onde nos sentimos em casa, onde per-
tencemos e onde tudo é familiar” (H.G.-Gadamer, 1999, p.18).
A constituição de um comum encontra-se ligada ao conceito
de formação (Bildung), como um exceder de mim, fundando deste
modo um processo de realização da racionalidade mediante a rela-
cionalidade. Os preconceitos, próprios das diferenças e fronteiras
do humano temporal, e não os conceitos desencarnados, apresentam-
se como um efeito de uma consciência já sempre habitada pela re-
lação, podendo aí contrariar-se a redução a um ser isolado. Podem
permitir organizar a sua relação com a tradição do existir. Esta
formação admite uma outra relação, a que significa a abertura ao
universal (capax universi). No sentido geral de Gadamer a inte-
gração das relações históricas é conjugada com a aplicação con-
creta, logo a razão humana é articulada, é sempre ao mesmo tempo
sempre situada no limite de uma simbólica cultural e desloca-se
para outros horizontes de possibilidades simbólicas culturais estra-
nhas. Verifica-se de facto que a formação na sua estrutura pode
descrever-se segundo o modo misto ou dialogal. Desta forma im-
plica o outro no juízo do eu: a capacidade judicativa do eu é diri-
gida pelo outro, é estimulada, é a ele que submete o raciocínio, às
suas questões e às suas contestações.
As realizações interpretativas simbólicas e culturais tornam-se
num princípio essencial do diálogo. Será pois para Gadamer o diá-
logo, não o contrário, o mais importante facto da cultura. Todavia
o texto “A inaptidão ao diálogo” abre com os fenómenos técnicos
com que essa aptidão acaba: “Algo de brutal como um desalinho,
o de estar desalinhado, permanece ligado a todo o chamamento
telefónico, ainda que o interlocutor assegure vivamente que o cha-
mamento o regozija” (H.G.-Gadamer, 1995, p.167). Há um “nega-
tivo fotográfico” no diálogo telefónico, uma ineficácia que limita o
princípio da disponibilidade do ir e do voltar do eu e do outro. O
negativo fotográfico significa a regressão da capacidade de diálogo,
dado que a abertura do outro não é praticável, ela é, pelo contrá-

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rio, abalada. “Porque justamente a esfera do reconhecimento e do


estar-à-escuta pela qual os homens se aproximam uns dos outros é
insensivelmente abolida pela ligação artificial do fio do telefone”
(Ib.) – a aproximação artificial está privada da espontaneidade viva
do questionar e do responder, do dizer e do deixar-se dizer, aquilo
que evoca um acontecimento onde, por sua vez, os parceiros do
diálogo estão envolvidos, como num começo de uma comunidade.
Gadamer manifesta a génese da comunidade histórica nesta comu-
nidade originária, uma génese no lógos. Ou seja, o diálogo depende
sempre de uma figuração da palavra, como uma forma de inscrição
de um fundo de acontecer efectivo. O diálogo telefónico, por outro
lado, ressurge por uma espécie de movimento de imaginação. Isto
quer dizer: o que se exige não é mais a figuração linguística, é o
que a imaginação produz de empatia.
O diálogo descreve-se como um encontro e uma permuta de
certa maneira de dois mundos, visões do mundo que se confron-
tam. O fundamental do que vemos em Platão sobre a comunicação
em diálogo escrito e em referência a Sócrates é a confirmação da
verdade como o acolhimento da razão por outro: toda a razão re-
cebe o seu assentimento e o pensar permanece pensar dependente
de outro pensar. É em torno dele que se constitui a singularidade
e o comum. Assim o programa do diálogo é como que o de abrir
a razão sobre a comunidade (Gemeinsamkeit). Será esse o caso
da concepção metafísica de Leibniz, no qual as múltiplas mónadas
do universo podem reflectir a unidade, na sua própria singulari-
dade (e onde se pode ver reflectida). A unidade é, nesta ideia, a
presença como uma só e mesma presença em todas as singulari-
dades. Dispõe-se assim em diálogo a incomunicação do ponto de
vista singular. O diálogo que expressa uma verdade vital (Soren
Kierkegaard, Ferdinand Rozenweig, Martin Buber, Friedrich Go-
garten, Ferdinand Ebner). Trata-se de uma experiência de alguma
coisa que vem ao nosso encontro na nossa experiência do mundo
(p. 170). Experiência de transformação na dimensão individual

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que se explica pela articulação com um outro. Uma metamorfose


(é através de um outro). O exame de Gadamer indica que a ex-
periência da individualidade se constitui na mediação pelo outro.
Passa-se do próprio para um outro. Assim é nesta passagem que
o diálogo sem torna operante. Finalmente, o diálogo significa a
demanda do saber neste entre o outro e o próprio – demanda pró-
pria do discurso sobre a amizade (Lísias). “Se vós sois amigos um
do outro, então, de alguma maneira, pertenceis-vos naturalmente
um ao outro” (Platão, 221e). Onde decorre uma correlação. Nesta
perspectiva a amizade será fixada por uma forma de pertença recí-
proca e a experiência assenta numa participação. A manifestação é
a de um habitar em conjunto da alteridade, isto é, mantém a confi-
guração de uma unidade como uma diferença.
No texto “A inaptidão ao diálogo” Gadamer analisa as formas
de diálogo que, segundo ele, se apresentam na nossa vida e se en-
contram sob ameaça: diálogo pedagógico, diálogo da negociação,
diálogo terapêutico e diálogo íntimo. A análise acentua que a inap-
tidão em geral para o diálogo tem que ver com a impossibilidade
de relação, que assimila a uma “impotência de escuta” do outro
e a uma rejeição do comum. Quanto a si, um diálogo é uma re-
ceptividade. Como receptividade, acentua um compromisso. A
interpretação de Gadamer dá conta deste compromisso pelo outro
ligado à recepção do outro e à implicação com o outro – o esquema
monológico do pensamento é em função da reflexão, delimitando
o espaço do diálogo a este discorrer constante sobre as representa-
ções próprias1 .
Da análise que avança do diálogo Gadamer deduz a interpreta-
ção de um texto escrito: a evidência que parece percorrer o que a
semântica exprime remete para a determinação positiva do texto.
Para Gadamer a interpretação, por outro lado, é concebível em ter-
1
H.G.-Gadamer, 1995, p. 171: “Na sessão de seminário ele [Husserl] come-
çou por colocar uma pergunta, recebeu em seguida uma resposta, e passou duas
horas a examiná-la num monólogo de ensino sem fim”.

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mos de experiência de interrogação - o texto apresenta-se como um


estado de não evidência. E neste sentido a interpretação é induzida
por um saber que se desloca. A interrogação do texto em Verdade e
Método, subcapítulo “O primado hermenêutico da questão” do ca-
pítulo III, Secção II, desenvolve o modelo da dialéctica platónica
(H.G.-Gadamer, 1996, pp.385-402), descrita por intermédio da re-
alização de uma lógica de questão-resposta. À questão Gadamer
atribui uma estrutura de abertura no campo da experiência herme-
nêutica, a de uma orientação. O autor pensa evidentemente numa
estrutura não lógica. Para saber correctamente descrever como é
uma dada coisa é preciso pois pô-la em questão. Pôr o problema
dos modos de ser – as representações. A questão manifesta-se, por
conseguinte, como saber, melhor, forma de negar a ideia de uma
experiência de saber científico ideal sem ambiguidades. A questão
dissimula a ontologia da finitude e da limitação que origina uma
experiência de saber e da abertura que caracteriza a hermenêutica.
O sentido da questão, que leva a uma resposta que possa ser ope-
rativa, constitui o princípio da abertura no que concerne ao ser da
questão – o que é? e do discurso – como é? A hermenêutica fi-
losófica, precisamente, procura reafirmar este sentido, vendo nele
uma ilustração da vida da própria interpretação. Donde o movi-
mento de várias questões para penetrar como que por efracção em
qualquer coisa, para “abrir” a realidade da questão em relação ao
conhecimento e discurso, é visto a partir deste primado fundamen-
tal: a questão põe em evidência a natureza de uma verdade que se
abre em torno de uma razão de uma realidade. Aquilo que Gada-
mer realça na questão é o facto de suspender o que é questionado,
a que corresponde uma passagem no eixo do saber. Nos termos
de Gadamer, a realidade é problemática, ela será esta questão, de
facto, verdadeiramente em trânsito no tempo. Inevitavelmente, a
hermenêutica está em tensão com a resposta que fixa e decide. Um
horizonte, um limite de resposta, dirige a abertura original, a par-
tir deste é atingida a questão. Quais são os limites da questão?

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Os limites são inexauríveis. Esta análise trata de distinguir o que


permite a questão: é determinada pelo apreender da coisa (uma
razão que se deve a um sentido de uma justeza (richting) possí-
vel, diferente da razão exclusiva). O interesse da questão decorre
da possibilidade. É essa decorrência que a análise de Gadamer da
questão considera na possibilidade especulativa da dialéctica. De
forma que o acto por excelência de questionar neste autor, que re-
vela Sócrates, a sua elênquica, consiste propriamente numa criação
da condição do saber. Tal como Platão analisa. Este saber na sua
relação com a interrogação tem sentido, como? Duas afirmações
precisam-nos a sua posição: uma ideia é recebida, não figura a sua
elaboração por um sujeito que a suscita com vista a responder à
sua questão. Em concreto uma ideia é uma questão que surge no
pensamento. Define-se como uma irrupção, como uma imposição
ontológica: “pressupõe já que estejamos orientados para uma di-
mensão suspensa de onde emana a ideia” (p.389); a recepção faz
com que a descrição da acção de um sujeito como actividade passe
como paixão, a de religar-se com a força da questão: “o questionar
é mais uma paixão do que uma acção” (p.390). Gadamer assinala,
todavia, que nós não questionamos independentemente da vontade.
A questão apresenta-se no quadro dialéctico como uma prática de-
liberada, de outro modo, o sentido da questão figura a dialéctica
como a arte de manter a atenção da consciência em direcção à sig-
nificação que paira em suspenso.
O objectivo do diálogo é apresentado como consistindo na rea-
lização do pensar. O diálogo espera a aquiescência dos interlocuto-
res em termos de se libertarem do seu desenvolvimento individual
através do problema a que eles são submetidos. Será para se “ser
levado” por isso, fazendo intervir o exame do que se responde, a
pôr em jogo a resposta e fazer prova desta. É uma orientação que
decorre da debilidade da resposta. É uma orientação que se des-
tina a dar força de pensamento à própria resposta. No fundo esta
posição sobre a questão, pode dizer-se, leva não só a opor-se à ri-

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gidez da resposta (será uma possibilidade) como a pedir a razão do


conteúdo do que é dito, desta forma fazendo emergir um lógos (o
conceito) relacionado a uma unidade de perspectiva. Especifica-
se esta unidade em interpretação de sentido. O que se concebe
nesta interpretação é um diálogo, sob a mediação da linguagem.
Com efeito, o diálogo produzido na interpretação retoma as signi-
ficações do texto que constituem o presente, nas quais a questão
constitui o primeiro plano, têm a capacidade de pôr a linguagem e
conceitos em movimento. Desta forma, a interpretação, dir-se-ia,
determinada por um movimento original de questão-resposta, pre-
serva a linguagem das acções possíveis de abuso dogmático, que
não lhe correspondem. Nesta posição teórica os conceitos passam
a ser componentes da palavra que cria o diálogo, o que significa
que são relação a uma questão interminável que engloba.
O diálogo e a lógica questão-resposta definem, segundo Gada-
mer, o fenómeno hermenêutico, e este resulta da aquisição de uma
visão de horizonte, o “horizonte hermenêutico2 . Propõe uma com-
preensão presente do texto apresentando a interrogação aquém do
dito (ou do enunciado). Deste ponto de vista, compreende-se o
sentido inscrito no dito pela questão a que o dito responde. Liga-
se a proposição e a resposta que ela precisamente comporta com
o plano de interrogação. Associada a esta ligação ele constitui a
possibilidade de outras respostas. Será, assim, para ir além neces-
sariamente do enunciado o papel da questão – o intérprete volta à
questão para superar o que é dito. É então uma interrogação que
a compreensão passa, sendo por isso aporética esta compreensão –
desta forma não é nunca construída somente pelas unidades de sen-
2
H.G.-Gadamer, 1996, p.327: “O conceito de horizonte deve aqui ser retido
porque ele exprime a elevada amplitude de visão que deve ter quem compreende.
Adquirir um horizonte significa aprender sempre a ver além do que está próximo,
demasiado próximo, não para afastar o olhar, mas para melhor ver, num conjunto
mais vasto e em proporções mais justas”.

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tido imediato, da adequação de uma questão e de uma resposta3 .


Gadamer liga esse aspecto hermenêutico a uma antecipação4 . Esta
antecipação é o axioma da hermenêutica. Apresenta o compreen-
der como jogo, um jogo comunitário (Gemeinsamkeit): uma par-
ticipação no próprio projecto comunitário que o precede é a pers-
pectiva que caracteriza a compreensão de todo o texto (p. 313):
“A tarefa da hermenêutica é a de elucidar este milagre da compre-
ensão, que não é comunhão mística das almas, mas participação a
uma significação comum”5 . É a antecipação que se pode formular
a respeito do texto, um modo originário do texto, a arqueologia da
questão. É a antecipação que se pode formular igualmente a res-
peito da acção histórica? Os textos têm lugar no devir. A progres-
são da acção histórica, da mesma maneira, faz-se na base de uma
interpretação inexaurível. “Nos dois casos é a continuação do devir
histórico que faz aparecer sob novos aspectos a significação do que
é transmitido” (p. 396-397). Esta interpretação significa “influên-
cia” da história. A influência quer dizer actualizar a interpretação
como possibilidade. A possibilidade é analisada em termos da teo-
ria do Dasein, da nossa qualidade finita, corresponde à necessidade
de compreensões contínuas, compreensões organizadas pela trans-
formação. A continuidade dessas compreensões revela-se na histó-
ria, ela mesma significação que permanece por determinar. Por tal
continuidade a história não fica imobilizada pela redução à inten-
ção dos actores e os autores dos textos não retêm em si o sentido.
Tradição e sentido são, então, eles mesmos, transformações feitas
à medida da interpretação.
3
Ibidem, p. 393: “(...) a lógica das ciências do espírito (...) é uma
lógica da interrogação. Nós aí, apesar de Platão, estamos mal preparados.
R.G.Collingwood é o único de onde eu posso partir”. Gadamer diz, como Col-
lingwood: “não compreendemos nada se não compreendemos a questão à qual
responde” (p. 398).
4
Cf. Ib., p. 315.
5
Nesta participação: “compreender implica o acordo”. Cf. Ib., p. 313, nota
224.

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Do ponto de vista de Gadamer temos uma reconstituição da


questão incompreendida na tradição, obrigando a uma reformula-
ção da questão do texto e do horizonte histórico imediato que al-
cança, um horizonte inicial que a compreensão inclui sempre e com
que tem de reconciliar-se. A questão aproxima-nos de um modo de
suspender o pensar (aqui reconstruir a questão adquire um sentido
de não imobilizar), e, por conseguinte, ser submetido àquilo que
não pensou. Dependência do pensar da questão: pode-se mesmo
dizer que pensar é o acto de ser interpelado, englobado pelo hori-
zonte da questão, e isto de modo a trazer à luz o lógos do próprio
acto da interpelação. A interpelação que passa pelo pensamento
é a tradição. O pensamento encontra na tradição uma questão a
compreender, a reflexão sobre os seus conceitos, implica, portanto,
relacioná-los com a interrogação que os efectiva. E por todo o tra-
balho de os pôr em comum, visa uma fusão ou reciprocidade entre
uma origem e uma deriva dos conceitos. Essa fusão significa a
confluência de dois horizontes independentes, o passado activo e o
presente a explorar, colocados como adjuvantes um do outro: para
uma relação de horizontes6 . Este pôr em relação de horizontes de
tempo reflecte a compreensão da “coisa” como sentido, o fazer-
se unicamente como suspensão (das Offene) da verdade, define-se
como interrogação porque interrogar equivale para o intérprete a
pôr a si mesmo possibilidades à prova. Neste caso, compreender
a questão é a chave de explicação da experiência hermenêutica, de
uma digressão fundamental em relação ao sentido no pensamento
do intérprete.
A compreensão será um modo de relação cuja reciprocidade
o diálogo confirma de maneira análoga com o seu modo de rea-
lização como fusão de horizontes. É esta realização que dirige a
compreensão: “A partir do diálogo que nós somos” (p. 401), ou
seja, pressupõe um carácter de mediação. Gadamer indica-nos que
essa mediação é operada pela linguagem. É a dimensão de lingua-
6
Cf. Ib., p. 327-328.

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gem (Sprachlichkeit) esse espaço da compreensão e de diálogo. O


que a caracteriza é a ambivalência: significa o universal e a ante-
cipação de tudo e significa uma realidade obscura, pouco objectiva
na sua realização, uma realidade que se esconde de si mesma. É a
característica que adquire a compreensão que confronta o objecto
que visa com uma dizibilidade que entra no domínio da sua cons-
tituição. Efectivamente, o que revela a compreensão é a essência
sempre de uma existência da tradição, sendo ela assim uma exis-
tência de carácter linguístico, pela natureza do meio que a significa.
Isto quer dizer que a compreensão vem a ser, desde o início em que
se propõe, um acordar do sentido da linguagem em que aparece a
verdade da coisa que um e outro interlocutor procura encontrar, a
“linguagem comum” ou ainda “explicação-conjugada” (p. 402). O
comum significa que o meio (o nós) como diálogo transforma os
processos de realização da acção de compreender em processos de
comunicação. Este comum está na base dos conceitos de verdade e
de vida dos meios. Altera a relação da palavra e da coisa na medida
em que a compreensão de um interlocutor requer uma especial in-
tegração no diálogo – a compreensão é uma recepção de qualquer
coisa que interroga, o comum (oikeîon). O comum é esta coisa que
para todos é o que dirige o diálogo7 . Como dirige? Como se forma
um comum no diálogo?
O estudo de Gadamer do Lísias de Platão utiliza a argumen-
tação da relação entre lógos e érgon para decifrar a direcção do
oikeîon (H.G.-Gadamer, 1980). O diálogo é antes de mais, na pro-
posta deste estudo, um problema de poder compreender que rela-
ção existe entre as noções antagónicas de lógos (razão, saber claro)
e érgon (realização, obra). O ponto saliente do diálogo socrático
sobre o problema da articulação lógos/érgon surge da necessidade
de abordar a compreensão da experiência real de amizade (philía)
de Lísias e Menexeno. Assim, trata-se, no diálogo, de defender um
7
Ib., p. 405: “os interlocutores não são tanto os que dirigem quanto os que
são dirigidos”.

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lógos para o que é já érgon. “Porque vós os dois sois amigos, não
é verdade?” (Platão, 207c). O sentido da amizade, desde logo, não
está na realização, simplesmente, mas no sentido da realização. É
pouco claro que se suponha compreender o que seja a amizade de
uma forma que não seja distinguir a questão que ela responde: o
que é, de facto, ser amigo? Para Lísias: “Os amigos têm tudo em
comum, são semelhantes em tudo” (Ib.). É um comum, por conse-
guinte, a hipótese crucial de que parte o diálogo. Mas a natureza
do comum é uma ignorância de Lísias – com que é que o comum
articula? “Bem, então, poderemos vir a ser amigos de alguém,
ou alguém pode vir a amar-nos como um amigo naquelas coisas
nas quais nós somos bons sem razão nenhuma?” (210c) – é assim
que Lísias entende a amizade, articulada com o bem sem razão ne-
nhuma. Mas antes Sócrates tinha dito: “Então, é assim, meu caro
Lísias: naquelas coisas que nós realmente compreendemos alguma
coisa todos – Gregos e bárbaros, homens e mulheres – confiam em
nós, e aí nós agiremos como nós escolhermos, e no poder sobre os
outros” (Ib.). Sócrates apresenta a amizade como o saber do con-
ceito da amizade, sem o qual não se pode ter efectivamente o acto
que ela afecta. Os actos de amizade caem sob o efeito do lógos,
quer dizer, ela é primeiramente um lógos, de onde Lísias deriva a
sua prática. É da visão do lógos, que serve como antecedente, que
o érgon parte. Portanto, a amizade real é dele consequente e não
inversamente: é porque alguma coisa deriva uma coisa que uma
coisa é derivada. Logo, para desenrolar este érgon é preciso saber
a que se refere a amizade. “Se te tornares sábio, meu jovem, então
todos serão teus amigos, todos se sentirão próximos de ti, porque
tu serás prestável e bom” (210d). Assim o que suscita a amizade é,
para Sócrates, o fim do diálogo.
O contexto dialéctico dispõe pois de uma situação lógica-prática
da amizade que Gadamer explora ao longo da sua análise. Com
esta análise trata, igualmente, de reflectir sobre todo o exercício
dialéctico complexo de Lísias, que a Menexeno, sobretudo, parece

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erístico. A pergunta de Sócrates dirigida a Menexeno: “Diz-me,


quando alguém ama outra pessoa, qual dos dois é o amigo do outro,
aquele que ama ou aquele que é amado? Ou não existe diferença
nenhuma?” (212b). Encontramos nesta pergunta uma disjunção
sobre os principais termos da experiência de amizade: temos pre-
sente um amante e um amado. E pode dizer-se que o amante ama
e o amado pode não amar. Amar não é o mesmo que ser amado,
porque é porque alguém ama que alguém é amado e não é por-
que alguém é amado que alguém ama. É porque alguém age que
alguma coisa é afectada, e não é porque ela é uma coisa que é afec-
tada que é uma coisa que afecta. O que é evidente na pergunta de
Sócrates é uma tentativa de esclarecer a condição de determinação
activa ou passiva em que se coloca cada termo na relação. “Queres
dizer que eles são amigos um do outro quando só um deles ama
o outro?” (Ib.). Para Menexeno apenas é problemática a possibi-
lidade activa de existência da amizade e distingue-a radicalmente
da possibilidade passiva. Para Sócrates, a justificação desta dis-
junção das coisas amadas e das coisas amantes apresenta-se como
uma aporia, a de o amante criar por si mesmo relação, um só cons-
tituir relação. Porque assim a amizade não acontece dentro de uma
simetria de relação de acção-paixão, mas fora. Sócrates dirá que
experimentar essa via de exterioridade é experimentar o fracasso
da relação.
Lísias no fim desta parte do diálogo vai presumir a amizade
como uma constituição de semelhança entre amigos. E segue esta
ideia como uma condição da amizade. O seu argumento é: “o se-
melhante deve ser sempre amigo do semelhante” (214b). Por este
argumento designa-se a amizade demonstrando-se a semelhança.
As consequências do argumento são exploradas por Sócrates: “Pare-
ce-me que o sentido oculto dos que dizem [alusão a Homero e Em-
pédocles] ‘o semelhante visa o semelhante’ é o de que somente o
bom é um amigo, e exclusivamente para o bom, enquanto o mau
nunca fará parte de uma amizade verdadeira quer seja com o bom

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quer seja com o mau” (214d). Segundo o que se disse, a seme-


lhança tem como modo de fundamentação a finalidade do bom –
isto é, é para o bem que existe a amizade, logo o bem é o controlo
da semelhança. Sócrates verifica que há reducionismos evidentes
nesta articulação do semelhante e do bem – “Os homens pobres
são obrigados a ser amigos dos ricos, e os fracos dos fortes – por
causa da assistência – e o homem doente do doutor, e em geral o
ignorante tem de louvar o sábio” (215d-e). O bem permanece um
fim para a amizade e um meio. Nos exemplos, uma coisa é amada
porque é útil e por um propósito. Por outras palavras, a amizade
explica-se objectivamente por um encadeamento de coisas que são
meios (phármakon) e coisas que são fins. Não se distinguem estes
dois valores que representam o porque uma coisa é, através do que
é (diá ti), e aquilo em razão da qual é, um propósito ou fim (heneka
tou). Meios e fins podem ver-se, nesta óptica, como condições de
produção do objecto amizade.
O terceiro argumento sobre o que é a amizade é avançado por
Sócrates: a amizade corresponde à natureza do “que não é bom
nem mau” (216e) – é, portanto, uma possibilidade que parece con-
ter os traços essenciais que caracterizam a amizade. Primeiramente
apresenta-se a amizade como uma falta – do bom e do mau. Toma-
se depois esta falta como uma consequência positiva da amizade,
enquanto é uma falta que está presente, como um mal, e comporta
a necessidade de um valor. Nestes termos, a utilização do mal terá
de ver-se como um desejo de novas necessidades, da repleção que
transcende tudo. A falta ligada à transcendência é aqui um tema
determinante da amizade, cuja natureza traduz um poder ser. A
amizade é uma potência na sua manifestação. Logo, a questão fun-
damental é a de confrontar a parousia que comporta uma presença
falsa à perspectiva da passagem a um bem. “Portanto, o que não é
bom nem mau é amigo do bom por causa da presença do mau”
(217b). Quer isto dizer que a amizade para se instituir recorre
a uma falta originária em ordem a gerar uma situação própria de

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bem. A presença falsa não fecha, assim, a hipótese de a amizade


se tornar um bem eo ipso.
A formulação de Gadamer da abordagem socrática da amizade
resulta da noção de oikeîon, que corresponde a um lugar que en-
trelaça – a falta e a repleção. É um lugar que reverte os concei-
tos próprios em função de uma constituição única. O lugar, neste
sentido, passa a conter os meios e os fins em função de uma situa-
ção de indiferenciação na relação destes elementos – deste modo,
um meio produzido poderá ter formas de finalidade e a finalidade
traduzir-se imediatamente por meio. Donde, este lugar torna-se o
lugar de uma acção de correlação de dois processos distintos. Quer
dizer que a amizade é fixada por uma forma de reciprocidade, sig-
nifica para aqueles que a experimentam uma realidade que assenta
na crítica da consciência individual, não aceita uma apropriação de
alguma coisa por alguém. É como uma acção de participação num
puro habitar em conjunto da alteridade. E sobre o saber que o diá-
logo produziu, propriamente?! “Estas pessoas aqui vão-se embora
a dizer que nós somos amigos uns dos outros – porque eu estou
entre vós – mas o que é um amigo é o que nós ainda não fomos ca-
pazes de descobrir” (223a). O saber o que é a amizade, na verdade,
permanece por saber, o saber de um horizonte único da amizade.
O diálogo é o demonstrar simplesmente do sentido de um oi-
keîon. O que sugere que a força do compreender é “o ‘nós’ que nós
somos todos” (H.G.-Gadamer, 1999, p. 34). Finalmente, a tese do
diálogo hermenêutico toma como paradigma mais claro da episte-
mologia e metodologia da compreensão um acordo (Einverständ-
nis) ontológico. A fórmula do acordo troca o distanciamento pelo
entendimento (Verständigung): “porque nós somos conduzidos por
aquilo que nos é familiar, porque há acordo, é que nós podemos
interessar-nos pelo outro, receber o que é estranho e, daí, prolon-
gar e enriquecer a nossa experiência do mundo” (p. 43). A nota
saliente da passagem é a resistência da fórmula do acordo à situ-
ação de separação – a separação acompanha-se sempre por uma

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Diálogo Hermenêutico 17

relação. A experiência de compreensão é, primitivamente, recep-


ção de um acordo. Esse acordo nunca é definido ou justificado ou
certo. Mas é como tal que é condição de compreensão. É enten-
dido, fundamentalmente, como uma questão, isto é, uma disponi-
bilidade (lassen) e atenção da consciência relativamente ao outro e
a todas as suas significações. Gadamer fala de uma compreensão
que não é igual à coisa: “nós estamos comprometidos com qual-
quer coisa e é precisamente por isso que nos compromete que nos
abrimos para qualquer coisa de novo, de outro, de verdadeiro” (p.
36). Esta compreensão é, fundamentalmente, uma experiência do
compromisso. Que o diálogo arquitecta, em termos do privilegiar
o alargamento do horizonte de um compreender. Devemos pensar
que este é a contrapartida da estreiteza de toda a experiência de
raiz?

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18 José António Domingues

Bibliografia

• Gadamer, H.G.- (1980) - “Logos and Ergon in Plato’s Ly-


sis”, Dialogue and dialectic. New Haven and London: Yale
University Press, pp. 1-20.

• Gadamer, H.G.-(1995) - “L’inaptitude au dialogue” [1971],


Langage et vérité. Trad. et préface par Jean-Claude Gens.
Paris: Gallimard, pp.165-175.

• Gadamer, H.G.-(1996) - Vérité et méthode. Les grandes lig-


nes d’une herméneutique philosophique. Trad. par Pierre
Fruchon, Jean Grondin et Gilbert Merlio. Paris: Seuil.

• Gadamer, H.G.-(1999) - “Le problème herméneutique”, Her-


méneutique et philosophie. Paris: Beauchesne, pp. 29-54.

• Plato (1997) - “Lysis”, Plato complete works. Indianapolis /


Cambridge: Hackett Publishing Company, pp. 687-707.

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