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Habitus, reflexividade e

neo-objetivismo na teoria da prática


de Pierre Bourdieu*

Gabriel Peters

Introdução

* Agradeço aos colegas do Núcleo de Pesquisa em Filo- A tentativa de superação da dicotomia objeti-
sofia das Ciências Sociais (SocioFilo) do Instituto de vismo/subjetivismo está na raiz do quadro teórico-
Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj). Também tive oportu- -metodológico de análise da vida social formu-
nidades valiosas de discussão das questões debatidas lado por Pierre Bourdieu. Buscando integrar as
no presente texto em minhas participações nos grupos ferramentas analíticas legadas por ambos os tipos
de trabalho sobre teoria social e teoria sociológica que
ocorrem periodicamente nos encontros da Anpocs e de enfoque e escapar, ao mesmo tempo, às suas
da Sociedade Brasileira de Sociologia. Gostaria, por limitações, o sociólogo francês desenvolveu uma
fim, de dedicar o artigo a três amigos e mentores in- abordagem praxiológica cujo cerne é a relação dia-
telectuais que insistiram, cada um à sua singularíssima
maneira, para que eu pensasse um pouco menos com lética entre condutas individuais propelidas por
e um pouco mais contra Bourdieu: Frédéric Vanden- disposições socialmente adquiridas e reunidas em
berghe, João Daniel Lima e Luís de Gusmão. Minha um habitus, de um lado, e estruturas objetivas ou
gratidão não me exime da total responsabilidade pelo
que vai adiante.
“campos” de relações entre agentes diferencialmen-
te posicionados e empoderados, de outro. No en-
tanto, a despeito de sua intenção de transcendência
da oposição entre modalidades objetivistas e subje-
tivistas de conhecimento do social, sua abordagem
Artigo recebido em 19/08/2011 tem sido frequentemente retratada por diversos crí-
Aprovado em 03/04/2013 ticos como uma versão sofisticada de neo-objetivis-
RBCS Vol. 28 n° 83 outubro/2013
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mo e não como uma teoria sintética satisfatória da em consideração que esse universo existe sob duas
relação agência/estrutura. formas articuladas: objetivamente como “campo” e
O presente trabalho busca avaliar o sentido subjetivamente como habitus. A noção de campo
desta crítica, argumentando que ela é parcialmen- refere-se a espaços objetivos de relações entre agen-
te justificada, embora tenha comumente assumido tes diferencialmente posicionados segundo uma
roupagens simplistas, incapazes de reconhecer a su- distribuição desigual de recursos materiais e simbó-
tileza e a complexidade da sociologia bourdieusia- licos, isto é, de capitais múltiplos que operam como
na. A fonte primeira do neo-objetivismo na obra de meios socialmente eficientes de exercício do poder.
Bourdieu encontra-se em sua ênfase, valiosa porém O conceito de habitus aponta, por sua vez, para es-
unilateral, sobre o caráter tácito ou “pré-reflexivo” quemas simbólicos subjetivamente internalizados
da operação do habitus, ênfase que o leva a uma de geração e organização da atividade prática dos
teorização negligente quanto à significação agênti- agentes individuais, esquemas que tomam a forma
ca da consciência reflexiva ou “discursiva” do ator de disposições mentais e corporais, isto é, modos
(Giddens, 2003, p. 440). No limite, esta inflexão potenciais socialmente adquiridos e tacitamente
analítica tem por consequência o desenvolvimento ativados de agir, pensar, sentir, perceber, interpre-
de um instrumental teórico que oferece, mais do tar, classificar e avaliar.
que uma alternativa a modalidades objetivistas de A imensa dificuldade em se capturar analiti-
explicação sociológica, uma espécie de operaciona- camente a relação dialética entre estas duas esferas
lização das mesmas (Alexander, 1995, p. 136). entrelaçadas de existência da sociedade está vigoro-
O propósito aqui, pois, não será apenas o de samente refletida na “mais fundamental e mais per-
apontar para a inflexão neo-objetivista da praxio- niciosa [...] de todas as oposições que dividem ar-
logia estrutural de Bourdieu – um procedimento tificialmente as ciências sociais” (Bourdieu, 1990b,
que, em si mesmo, não chega a ser dos mais ori- p. 26), qual seja, o confronto entre subjetivismo e
ginais, embora tampouco dos mais produtivos –, objetivismo na análise da conduta humana e da vida
mas sobretudo o de contribuir para um diagnós- social. As manifestações de tais modos antípodas de
tico mais preciso das origens teórico-metodológi- conhecimento na filosofia e no pensamento antro-
cas dessa inflexão e dos percursos argumentativos pológico e sociológico seriam múltiplas e, além dis-
pelos quais ela pode ser corrigida. O pressuposto so, periodicamente ressuscitadas sob formas falsa-
da discussão encetada será, naturalmente, o de que mente originais mesmo após “terem sido destruídas
qualquer reflexão sobre o projeto de uma teoria mil vezes no curso da história científica” (Bourdieu
pós-bourdieusiana das práticas sociais tem de partir e Wacquant, 1992, p. 179).
necessariamente de um balanço crítico detido dos Analisando o contexto histórico e intelectual
aspectos positivos e negativos do legado sociológico específico de formação e maturação do pensamento
do mestre francês. sociológico de Pierre Bourdieu, verificamos que a
oposição entre “física social” e “fenomenologia so-
cial” (Idem, p. 135) que a sua obra intenta superar
Objetivismo e subjetivismo teve como referência primeira o embate teórico,
presente no campo intelectual francês nos anos que
A intenção de investigar a complexa relação se seguiram à Segunda Guerra, entre o existencia-
entre as dimensões subjetiva e objetiva da vida so- lismo sartriano e o estruturalismo, sobretudo tal
cial manifesta-se na afirmação de Bourdieu segun- como formulado por Lévi-Strauss no âmbito da
do a qual a tarefa da sociologia consiste em “des- antropologia, a partir do modelo da linguística es-
cobrir as estruturas enterradas de maneira mais trutural de Saussure e Jakobson. Enquanto Sartre
profunda nos diversos mundos sociais que com- emprestava forte ênfase a uma suposta liberdade
põem o universo societário, bem como os ‘meca- irrevogável da ação humana e aos poderes da sub-
nismos’ que tendem a assegurar sua reprodução ou jetividade individual como motor criativo de pro-
transformação” (Bourdieu, 1989, p. 7), levando-se dução da história, os paladinos do estruturalismo,
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com seu enfoque fortemente determinista e obje- tivamente, como executores conscientes de regras
tivista, acentuavam as determinações inconscien- coletivas explicitamente formuladas) no enfoque
tes das representações e/ou condutas individuais. levi-straussiano.
A rigor, esse conflito já sinalizava a derrocada da Compreendido como uma manifestação parti-
hegemonia da fenomenologia existencialista de cular do modo de conhecimento social objetivista,
Sartre na academia francesa diante da estrondosa o estruturalismo de Saussure e Lévi-Strauss, segun-
ascensão do estruturalismo como uma espécie de do a perspectiva bourdieusiana, compartilha com
superpoderoso paradigma multidisciplinar susten- outras manifestações desse tipo de abordagem (por
tado por uma tetrarquia de gurus intelectuais de di- exemplo, o estrutural-funcionalismo durkheimiano
ferentes campos das ciências humanas: Lévi-Strauss ou certa teleologia histórica marxista) o sensato re-
na antropologia, Lacan na psicanálise, Foucault na conhecimento da existência de padrões de conduta
historiografia (ainda que de uma espécie singular, e sistemas de relações que se reproduzem indepen-
“arqueológica”) e Althusser no terreno marxista, dentemente da intencionalidade e da consciência
cada um dos quais ofereceu sua contribuição para a de quaisquer dos atores individuais que compõem
violenta demolição do existencialismo, não apenas uma dada formação societária. A ruptura teórica
na roupagem hipersubjetivista original de O ser e o com as concepções subjetivas que organizam a ex-
nada, mas também na versão marxificada que Sar- periência de senso comum dos agentes é saudada
tre apresentou no seu outro tijolaço – Crítica da por Bourdieu como um passo epistêmico necessá-
razão dialética [1956]: rio: a) à persecução investigativa das condições so-
ciogenéticas de possibilidade de tal conhecimento e
Lévi-Strauss malhou o eurocentrismo de Sar- experiência do mundo social como horizonte tácito
tre; Lacan denunciou o mito da unidade e au- e imediatamente familiar da conduta individual, tal
tonomia do ego (o para-si, fundido mas não como retratado nas descrições fenomenológicas da
abolido nos “grupos em fusão” da violência “atitude natural” (Husserl); b) à análise das coações
revolucionária); Althusser fustigou a filosofia estruturais e dos efeitos sociais emergentes das prá-
do sujeito, a herança hegeliana do existencia- ticas individuais que escapam à consciência e à von-
lismo; e a sentença retumbante de Sartre “o tade dos atores. A postura exterior e distanciada do
existencialismo é um humanismo” não resis- método objetivista de observação científico-social,
tiu à desmoralização dos humanismos filosó- visando à superação de toda a sorte de limitações
ficos empreendida por Foucault (Merquior, sócio-históricas que incidem sobre as notiones vul-
1981, p. 194). gares experiencialmente ancoradas que integram a
visão de mundo de qualquer agente particular po-
Em face desse contexto intelectual formativo, sicionado no universo social, busca decodificar “a
o modelo estruturalista de análise, com sua recusa partir de cima”, por assim dizer, “a partitura não
do subjetivismo implicado no retrato existencialista escrita de acordo com a qual as ações dos agentes,
da conduta e experiência humanas, também mar- cada um dos quais acredita estar improvisando sua
cou de maneira bastante significativa os primeiros própria melodia, estão organizadas” (Bourdieu,
trabalhos de investigação etnológica de Bourdieu 1983b, p. 70).
na sociedade argelina. Não obstante, partindo da O procedimento metodológico de ruptura
orientação estruturalista, ele pôde confrontar os com as pré-noções espontâneas de senso comum
limites desta abordagem e forjar uma maquinaria que tão bem caracteriza o modo de conhecimento
analítica própria e original, inspirada pela tentati- social objetivista, de Marx e Durkheim a Saussure
va de resgatar o exame dos interesses estratégicos e e Lévi-Strauss, constitui, entretanto, uma ferra-
das competências práticas cotidianamente mobili- menta necessária porém não suficiente para uma
zadas pelos agentes sociais, até então concebidos, investigação dos mecanismos por meio dos quais o
segundo sua leitura, como meros epifenômenos de mundo social perdura em sua existência. Abordan-
estruturas simbólicas inconscientes (ou, alterna- do fenômenos e formações sociais como dotados
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de estruturas exteriores aos agentes individuais, es- A ênfase em tal dimensão subjetiva da vida social é
truturas empiricamente constatáveis sob a forma fundamental para evitar-se a armadilha objetivista
de padrões de conduta e/ou sistemas de relações, da reificação, isto é, a naturalização do caráter ob-
as abordagens objetivistas interrompem precoce- jetivado das estruturas e instituições sociais, o que
mente seu trabalho na fase do registro de tais regu- implica postular, ao contrário, que tais entidades
laridades ou propriedades estruturais, privando-se coletivas só existem através da reprodução e orques-
assim do diagnóstico dos princípios ou mecanismos tração contínuas das práticas históricas de indivídu-
agênticos capazes de responder pela geração e re- os concretos.
produção histórica dos padrões societários obser- Naturalmente, a rica descrição dos “estoques
vados. Nesse sentido, na ausência do exame dos de conhecimento”, “sistemas de tipificação e rele-
verdadeiros motores ou matrizes subjetivas de con- vância” (Schutz), procedimentos interpretativos
duta através das quais a agência dos atores é produ- e habilidades cognitivas, expressivas, interativas e
zida e organizada de modo a engendrar a existên- práticas competentemente mobilizadas pelos ato-
cia de regularidades institucionais, as perspectivas res sociais no curso ininterrupto da vida cotidiana
objetivistas são espuriamente levadas a passar da constitui o legado mais significativo das abordagens
hipótese do coletivo à sua hipóstase, a confundir de inspiração fenomenológica, etnometodológica
“o modelo da realidade” com “a realidade do mo- e simbólico-interacionista (Peters, 2011a), legado
delo”, reificando abstrações conceituais como “so- reconhecido e apreciado por Bourdieu (Bourdieu
ciedade”, “classe” ou “modo de produção”, isto é, e Wacquant, 1992, p. 73). Não obstante, se, por
concebendo-as como entidades autônomas capazes um lado, ele se aproxima de tais perspectivas ao ca-
de “agir” à maneira de agentes históricos concre- racterizar as estruturas sociais objetivas não como
tos. No limite, tais abordagens terminam por ca- padrões formais estáticos ou entidades ontológicas
racterizar as formações sociais humanas como en- autônomas, mas em termos de sua constituição
tidades ontológicas sui generis com leis autônomas processual contínua, dos modos pelos quais elas
de funcionamento e evolução/desenvolvimento, são historicamente reproduzidas ou transformadas
entidades cujos processos reprodutivos e transfor- pelas práticas de agentes hábeis, o autor francês
mativos obedeceriam à operação de fatores causais busca também capturar as fontes sociogenéticas (e,
profundos que independeriam completamente da portanto, social e historicamente variáveis) de tais
consciência e da vontade dos atores, tomadas então habilidades cognitivas e agenciais:
como fatores irrelevantes para a explicação desses
processos (Bourdieu, 1990a, pp. 150-151). Tanto os fenomenólogos, responsáveis pela ex-
Opondo ao modelo objetivista um método plicitação dessa primeira experiência do mundo
analítico que ele denomina “praxiológico”, Bour- como algo evidente, quanto os etnometodólo-
dieu afirma que as importantes aquisições teóricas gos, cujo projeto consiste em descrevê-la, não
resultantes daquele modelo não devem ser anula- dispõem dos meios para explicá-la: ainda que
das, mas conservadas e ultrapassadas, “integrando tenham razão de lembrar, contra a visão meca-
o que esse conhecimento teve de excluir para obtê- nicista, que os agentes sociais constroem a rea­
-las” (1983b, p. 48), isto é, o fato de que o mundo lidade social, eles omitem a questão da cons-
social também é fundamentalmente constituído de trução social dos princípios de construção dessa
“vontade e representação”, para tomar de emprésti- realidade empregados pelos agentes nesse traba-
mo as palavras de Schopenhauer. Trata-se então de lho de construção (Bourdieu, 2001c, p. 212).
recuperar o papel causal, na reprodução do mundo
social, dos estoques subjetivos de representações/ A ênfase no caráter socialmente aprendido
significados mundanos e de competências/habi- das disposições práticas e esquemas simbólico-
lidades práticas que os indivíduos mobilizam na -cognitivos que impulsionam e capacitam os ato-
interpretação dos seus universos de atuação e inves- res a intervir no curso da vida societária tem como
tem cronicamente na produção de suas condutas. implicação a impossibilidade de se tomar como ta-
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refa exclusiva da ciência social a produção de um capturar a relação histórico-dialética entre as traje-
relatório fenomenológico de explicitação do conhe- tórias biográficas dos atores individuais e a reprodu-
cimento de senso comum, ou seja, a redução das ção/transformação histórica de estruturas coletivas,
construções sociológicas a “construções de segun- tal como essa relação é corporificada em práticas
do grau, isto é, construções das construções feitas sociais. Recuperando a noção de prática formulada
pelos atores na cena social” (Schutz, 1962, p. 26). por Marx nas suas Teses sobre Feuerbach, nas quais
Isto porque a experiência simbolicamente media- o Mouro afirma que “toda a vida social é essencial-
da do mundo societário como dotado de imediata mente prática” (Marx, 2000, p. 113), Bourdieu edi-
evidência e necessidade excluiria, por definição, o fica seu esquema teórico-sociológico em torno dessa
inquérito reflexivo acerca de suas circunstâncias es- categoria, tomada como o modo mais característico
pecíficas de possibilidade. Além disso, a análise das da existência social humana, no qual estão relacio-
condições sociais de produção das estruturas subje- nadas e unificadas as diversas instâncias fenomênicas
tivas de motivação e conhecimento que orientam tradicionalmente referidas pelas clássicas dicotomias
tacitamente a experiência que os agentes têm de da teoria social e da filosofia, como indivíduo/socie-
seus mundos da vida leva à tese de que estas estru- dade, ação/estrutura, material/ideal, mente/corpo,
turas subjetivas variam sistematicamente conforme sujeito/objeto, entre outras (Parker, 2000, p. 42).
variam aquelas condições. Tal variabilidade seria re- Na tentativa de tecer um corpo de hipóteses e
sultante não apenas das diferenças entre contextos conceitos capaz de captar acuradamente a especi-
sócio-históricos diversos como também das diver- ficidade da(s) lógica(s) da(s) prática(s) levada(s) a
sas posições diferenciais ocupadas pelos indivíduos cabo pelos atores sociais, bem como a relação dessas
em um mesmo espaço social, mais precisamente em práticas com seus contextos estruturais de ocorrên-
função das coações estruturais que tais posições cia, Bourdieu faz uso criativo de uma diversidade
exercem sobre os universos representacionais dos de instrumentos conceituais e insights socioteóri-
agentes, dado que os “pontos de vista” sobre o cos colhidos de outras abordagens (Marx, Weber,
mundo societário são sempre “vistas de um ponto” Durkheim, Mauss, Bachelard, Cassirer, Saussure,
determinado desse mesmo mundo. Por fim, a in- Chomsky, Lévi-Strauss, Panofsky, Husserl, Heide-
vestigação da sociogênese das disposições práticas gger, Merleau-Ponty, Austin, “segundo” Wittgens-
e esquemas interpretativos dos atores torna possí- tein, Goffman, entre outros) e envereda por um
vel captar com maior precisão os “significados ob- projeto teórico que ele caracteriza pelo rótulo de
jetivos” de suas condutas, isto é, as contribuições “estruturalismo construtivista” ou “construtivismo
funcionais não intencionadas e não conscientes que estruturalista” (1990a, p. 151). Vejamos como ele
suas práticas oferecem à reprodução das configura- mesmo explica sucintamente essa autodesignação:
ções macrossociais objetivas onde esses indivíduos
atuam (Bourdieu, 1979a, p. 73; 1983b, p. 15). Por estruturalismo, ou estruturalista, quero di-
zer que existem, no próprio mundo social e não
apenas nos sistemas simbólicos – linguagem,
A praxiologia estrutural como estratégia de mito, etc. –, estruturas objetivas, independen-
síntese tes da consciência e da vontade dos agentes,
as quais são capazes de orientar ou coagir suas
Dessa forma, podemos observar que, na arqui- práticas e representações. Por construtivismo,
tetura do modelo teórico-metodológico de Bour- quero dizer que há, de um lado, uma gênese
dieu, o acervo das ferramentas conceituais e expli- social dos esquemas de percepção, pensamento
cativas mais úteis legadas pelos modos objetivista e ação que são constitutivos daquilo que cha-
e subjetivista de análise passa a ser aproveitado em mo de habitus e, de outro, das estruturas so-
um quadro de referência novo, que toma ambas as ciais, em particular do que chamo de campos
maneiras de investigação como “momentos” de um e grupos, e particularmente do que se costuma
método de pesquisa construído justamente para chamar de classes sociais1 (Idem, p. 149).
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De um lado, as estruturas objetivas que o so- meça sempre pelo campo – que se encontra o prin-
ciólogo constrói no momento objetivista, cípio da gênese das práticas sociais que articulam
descartando as representações subjetivas dos inextricavelmente os polos da ação e da estrutura,
agentes, são o fundamento das representações ou do “sentido subjetivo” e das “relações objetivas”,
subjetivas e constituem as coações estruturais para utilizarmos as clássicas expressões de Weber e
que pesam nas interações; mas, de outro lado, Marx respectivamente. Na maior parte das situa-
essas representações também devem ser reti- ções empíricas pesquisadas por Bourdieu, essa rela-
das, sobretudo se quisermos explicar as lutas ção manifesta-se sob uma roupagem de “cumplici-
cotidianas, individuais ou coletivas, que visam dade ontológica”, permitindo compreender como
transformar ou conservar essas estruturas. Isso a conduta social pode se ajustar objetivamente a
significa que os dois momentos, o objetivista determinados fins sem que estes tenham sido explí-
e o subjetivista, estão numa relação dialética cita e conscientemente visados pelos atores. O ajus-
(Idem, p. 152). te dar-se-ia por meio da operação tácita ou “pré-
-reflexiva” de um habitus socialmente estruturado
Como instrumento heurístico de orientação à (inculcado a partir de uma trajetória experiencial
pesquisa de universos sócio-históricos diversifica- percorrida ao longo de uma ou mais posições em
dos, a teoria da prática de Bourdieu está ancorada uma estrutura objetiva de relações) e estruturante
na tese da existência de uma inter-relação causal en- (pois tende a reproduzir as estruturas que o cons-
tre as matrizes socialmente adquiridas de produção tituíram quando mobilizado recursivamente nas
da conduta individual (habitus), de um lado, e as ações dos indivíduos). É ao enfatizar esse aspecto
propriedades estruturais dos contextos de socializa- dinâmico da vida social que ele concebe, como foi
ção, atuação e experiência dos agentes (campos), de visto, sua perspectiva teórica como um estruturalis-
outro. Não obstante, sua abordagem não abre mão mo genético ou construtivista, centrado na relação
do caráter metodologicamente ordenado e até mes- entre as estruturas sociais objetivas distribuídas no
mo hierarquizado do uso das ferramentas analíticas espaço social (campos) e as estruturas subjetivas de
próprias aos momentos objetivista e subjetivista, orientação prática (habitus) que as atualizam ou as
conferindo precedência teórica ao primeiro desses transformam no fluxo das contínuas lutas históri-
estágios sobre o segundo. Nos termos da distinção cas3 entre os diversos agentes do mundo societário.
metodológica clássica entre Erklären e Verstehen, ex- Além da tendência (como tal, historicamente
plicação causal e entendimento interpretativo, isto reversível) à reprodução de práticas sociais e rela-
implica que, na visão do autor francês, a compre- ções de poder, a circularidade do habitus permite
ensão empática ou hermeneuticamente fundada do compreender sua existência como mediação causal
sentido subjetivo de uma dada conduta, tal como entre o individual e o social, como princípio gera-
experienciado e representado pelo próprio agen- dor, socialmente gerado, de práticas e representa-
te, jamais poderia constituir o caminho heurístico ções, “estrutura estruturada predisposta a funcionar
primeiro para sua explicação causal. Ao contrário, como estrutura estruturante” das mesmas estrutu-
seria somente a reconstrução do campo de relações ras que o estruturaram (Bourdieu, 1983b, p. 61).
objetivas em que um dado ator se insere como uma Esta historicidade circular explica também a relação
posição e perfaz uma trajetória o que constituiria o de tácita familiaridade (o mundo social como taken
procedimento analítico que permite o acesso à sua for granted, na expressão de Schutz) que os atores
experiência subjetiva e aos móbeis internos de suas experienciam na sua realidade cotidiana, experiên-
ações (Peters, 2011b). Trata-se, por assim dizer, de cia “dóxica” (Husserl) de familiaridade que as abor-
iniciar a investigação sempre pela floresta de modo dagens fenomenológicas tematizam e descrevem
a compreender as árvores, nunca realizando o per- com acurácia, negligenciando, entretanto, a análise
curso inverso.2 de suas condições sócio-históricas de possibilidade,
Segundo Bourdieu, é na relação dialética entre isto é, “a coincidência entre as estruturas objetivas
habitus e campo – mas em uma dialética que co- e as estruturas internalizadas que provê a ilusão da
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compreensão imediata” (Bourdieu, 1990b, p. 26; avançar uma compreensão não dualista da relação
ver também Ortiz, 1983, e Miceli, 2001). Nes- mente/corpo, refletida na duplicidade semântica
se sentido, a realidade social não é percebida por da noção de “sentido”, simultaneamente referente
Bourdieu apenas como exterioridade (à maneira de ao aparato sensorial por meio do qual nossos cor-
Durkheim) ou interioridade (à maneira da socio- pos experienciam sua imersão na realidade social
logia fenomenológica de Schutz), mas simultanea- e aos instrumentos simbólico-interpretativos que
mente como exterioridade objetiva e interioridade imbuem essa experiência de significados subjeti-
subjetiva, ou ainda – se quisermos dinamizar e dia- vos. Além de propiciar um caminho fecundo para
letizar este retrato, prestando de quebra uma ho- a captura de tal articulação entre o sentido sensó-
menagem aos famosos (ou infames) malabarismos reo e o sentido significante, a insistência no modo
verbais do mestre francês – como exterioridade ob- pré-reflexivo de ajustamento criativo dos habitus às
jetiva subjetivamente interiorizada e interioridade suas circunstâncias sociais de funcionamento impli-
subjetiva objetivamente exteriorizada. ca uma rejeição vigorosa, na esteira das contribui-
ções de autores tão diversos como Heidegger, Mer-
leau-Ponty, Wittgenstein e até mesmo Dewey, dos
O habitus como mediação tácita entre retratos excessivamente intelectualistas das ações
agência e estrutura e motivações humanas que resultariam da “falá-
cia escolástica”, procedimento no qual os modelos
“O duplo processo de interiorização da exterio- analíticos que o/a cientista social constrói para dar
ridade e exteriorização da interioridade” (Bourdieu, conta das propriedades das práticas são projetados
1983b, p. 47) – ou, em outros termos, a “cumplici- nas mentes ou consciências dos agentes e tomados
dade ontológica” (Bourdieu, 1988a, p. 52) estabe- como as causas reais, empiricamente operantes,
lecida entre estruturas objetivas e subjetivas – torna dessas mesmas práticas.
possível que as diversas condutas sociais sejam ob- O “juridicismo estruturalista” consistiu, no
jetivamente orientadas para determinados fins sem trabalho de Bourdieu, no primeiro exemplo desse
que estes tenham sido explicitamente visados pelos modo falacioso de caracterização das motivações
indivíduos que as realizam, bastando que eles atua- subjetivas das práticas individuais por meio da
lizem seus habitus de maneira prático-intuitiva (daí projeção inconsciente do sujeito cognoscente (su-
a referência a um sens pratique) quando exigidos jet connaissant) no sujeito atuante (sujet agissant).
nas diferentes situações de sua existência social.4 O Em discussões mais recentes, Bourdieu se dedicou
conceito de habitus permitiria compreender como a apontar para o mesmo tipo de erro em seus aná-
as condutas levadas a cabo pelos atores tendem a temas ocasionais contra o intelectualismo da teo-
se adaptar estrategicamente às condições objetivas ria da escolha racional, caracterizando o modelo
de suas ações, não sendo essas, no entanto, fruto de do agente humano avançado por essa abordagem
um cálculo racional e deliberado (as condições para como “uma espécie de monstro com a cabeça do
o cálculo quase nunca seriam dadas na prática), da pensador pensando a sua prática de modo reflexi-
obediência consciente a regras explicitamente de- vo e lógico montada sobre o corpo de um homem
finidas ou de uma determinação mecânica e auto- de ação engajado na ação” (Bourdieu e Wacquant,
mática por causas coletivas inconscientes, mas sim 1992, p. 123).
de um processo em que os atores atualizam conti- A concepção bourdieusiana da relação entre
nuamente as intuições tácitas de um sentido práti- agência e estrutura está, portanto, intimamente
co adquirido a partir de sua experiência societária, atada à sua visão do caráter fundamentalmente tá-
ou, mais precisamente, da exposição continuada e cito da operação dos motores subjetivos da conduta
recorrente a condições semelhantes de ação (para humana. O problema é que não é preciso superes-
mais detalhes, ver Peters, 2010). timar o grau de autotransparência motivacional
A caracterização do habitus como um “senti- dos atores leigos para reconhecer que a ênfase de
do prático” também tem a virtude heurística de Bourdieu sobre o funcionamento tácito do habitus,
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ainda que valiosa, leva-o a negligenciar o relativo só possam ser reconhecidos qua estímulos por in-
controle reflexivo e consciente que aqueles podem divíduos cognitivamente aparelhados para percebê-
exercer sobre suas próprias disposições práticas de -los.
conduta. No que parece ser, à primeira vista, um A designação da articulação dialética entre ha-
paradoxo, a sociologia reflexiva de Bourdieu é tre- bitus e campo como princípio histórico-genético
mendamente cética quanto à possibilidade de que das práticas societárias é sensível à variabilidade dos
os próprios atores tematizem reflexivamente as pro- caracteres específicos de cada uma dessas instâncias,
priedades de seus habitus e transformem-nas criati- bem como dos tipos multiformes de relação que
vamente em certa medida. Dentro dos quadros da podem ser estabelecidas entre as mesmas. É atra-
teoria bourdieusiana da prática, tais processos de vés dessa tese que Bourdieu visa escapar à frequente
autorreflexão e autotransformação reflexiva só po- acusação de “reprodutivismo” dirigida à sua teoria
deriam ocorrer, grosso modo, em duas situações: o da prática, pois a tendência à reprodução das estru-
efeito de hysteresis e o trabalho de auto-objetivação turas sociais objetivas por meio da coordenação
possibilitado pela sociologia. espontânea e não intencionada de uma multiplici-
dade de ações individuais subjetivamente impulsio-
nadas por habitus semelhantes ou reciprocamente
Reprodução, mudança e o efeito de hysteresis “harmonizados” (por exemplo, na relação cúmpli-
ce entre dominantes e dominados que caracteriza
A articulação entre agência e estrutura deline- a “violência simbólica”) não é tida por ele como
ada na praxiologia relacional de Bourdieu é infensa um caso sociológico universal, mas sim como uma
ao postulado de que as condutas dos agentes huma- condi­ção histórica particular, proveniente da iden-
nos podem ser diretamente deduzidas de estímulos tidade ou homologia estrutural entre as circunstân-
exteriores instantâneos derivados de seus ambientes cias de constituição e as circunstâncias de operação
de atuação, dado o papel fundamental do habitus, do habitus. Este também poderia experimentar si-
como repositório sedimentado de influências socie- tuações críticas de discrepância nos momentos de
tárias passadas, na configuração de ações no presente, desaparecimento de tal cumplicidade ontológica
repositório que, como tal, possui uma autonomia entre o universo subjetivo do agente (“um mundo
relativa vis-à-vis as coações externas imediatamen- dentro do mundo” [Bourdieu, 1990b, p. 56]) e o
te vigentes em um determinado contexto de com- universo objetivo que o circunda.
portamento social. Por outro lado, a designação da O caráter relacional das análises de Bourdieu
prática como o produto da relação habitus/campo, não é abandonado, portanto, nos casos de hystere-
ao escapar da armadilha da caracterização exclusi- sis (Bourdieu e Passeron, 1975, p. 69; Bourdieu,
vamente externalista e instantaneísta da ação pos- 1979a, p. 89) em que a ativação das disposições
tulada por certas abordagens, não descamba para o encarnadas no habitus é exigida em contextos di-
polo unilateralmente internalista na explicação da ferentes daqueles que o produziram, circunstâncias
conduta humana. Isto porque os propulsores sub- sócio-históricas de desajuste entre as condições de
jetivos da conduta internalizados ao longo de uma produção e as condições de funcionamento do ha-
trajetória biográfica submetida às exigências de de- bitus que constituem a principal fonte de mudança
terminadas condições sócio-históricas de existência social discutida na obra de Bourdieu, em particular
apresentam-se, ante um certo palco ou milieu de na sua análise do Maio de 68 na França (Bourdieu,
ações e relações societárias, como disposições ou pro- 1988b, cap. 5). Do ponto de vista de suas concep-
pensões. Estas, por definição, não constituem, por ções acerca das engrenagens que movem a conduta
si mesmas, forças suficientes para a parturição de individual, essa análise também é elucidativa, pois
um comportamento, já que sua ativação tem de ser a quebra da cumplicidade ontológica entre ex-
engatilhada por demandas práticas que os mundos pectativas e disposições subjetivas, de um lado, e
sociais exteriores impõem aos atores, ainda que (de condições e efeitos objetivos do milieu societário,
novo a circularidade) tais estímulos exteriores à ação de outro, abre espaço para que a conduta “natural-
Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria… 55

-performativa” do habitus possa ser substituída por capitalista naquele país (Bourdieu, 1979b).
motivações “hipotético-reflexivas” (os termos são De todo modo, o problema central que nos
de Habermas) demandadas por aquela dissonância. interessa aqui é que a referência à “crise objetiva”
Esta última estimularia, assim, a recuperação dis- como requisito para o acesso reflexivo do ator a
cursiva e a crítica explícita do que até então tinham dimensões outrora inconscientes de seu próprio
sido assunções doxicamente aceitas, a transmutação habitus é signo do fato de que Bourdieu não con-
da práxis em logos, a passagem do senso prático à sidera essa possibilidade de acesso um atributo
elaboração discursiva e à consideração consciente universal do agente humano, mas sim um fenô-
de alternativas de ação: meno específico a circunstâncias históricas em
que os atores são submetidos a efeitos de histerese
A crítica que traz o não discutido à discussão, e forçados a sair, por assim dizer, do “piloto au-
o não formulado à formulação, tem como sua tomático”. A dependência que a interrupção dos
condição de possibilidade a crise objetiva, a efeitos reprodutivistas do habitus tem dessa mes-
qual, quebrando o laço imediato entre as estru- ma “crise objetiva” indica que, ainda que este ga-
turas subjetivas e as estruturas objetivas, destrói ranta ao ator uma capacidade inventiva, o caráter
a autoevidência no âmbito prático (Bourdieu, criativo desse sistema de disposições não chega,
1979a, p. 169). por si só, a constituir uma ameaça à reprodução
das estruturas dos campos onde ele viceja, na me-
Montaigne afirma que compreendeu muito dida em que essa inventividade funciona dentro
bem “a força do costume quem primeiro inventou de fronteiras objetivas estabelecidas na sua própria
essa história de uma mulher que, tendo-se habitu- gênese e infusos na sua constituição mesma. A
ado a acariciar e a carregar nos braços um bezer- prioridade conferida, em termos habermasianos,
ro, desde o nascimento, e o fazendo diariamente, à “crise sistêmica” sobre a “crise vivida” torna pa-
chegou, pela força do hábito, a carregá-lo ainda tente que o ator individual não possui, na pers-
quando já se tinha tornado um boi” (Montaigne, pectiva de Bourdieu, um poder causal autônomo
1987, p.178). Bourdieu seria o último a negar tal de transformação dos pilares fundamentais dos
inércia relativa de nossos habitus, tendendo, por ve- ambientes estruturais onde opera, algo que leva
zes, na verdade, a exagerá-la quase tanto quanto o/a diversos autores a afirmar que, no fim das contas,
autor/a da anedota de Montaigne. Nesse sentido, o pensador francês não ultrapassa o objetivismo,
é óbvio que ele reconhece que o efeito de histerese pois subordina teoricamente o polo da agência ao
não acarreta o desaparecimento imediato dos es- polo da estrutura. A teoria do habitus ofereceria,
quemas e disposições próprios aos antigos habitus, a rigor, não “uma alternativa à explicação socioes-
agora descompassados em relação às injunções de trutural”, mas a sua operacionalização (Alexander,
uma nova estrutura, mas os submete a um confron- 1995, p. 136).
to dialético com as orientações de conduta fabri- De qualquer forma, mesmo o reconhecimento,
cadas por uma reflexão consciente dos atores sobre por parte de Bourdieu, de que o conceito de habitus
suas próprias práticas, como resposta à defrontação se refere a um princípio causal de formas particu-
com um ambiente social estruturalmente modi- lares (embora “particularmente freqüentes” [Bour-
ficado. Os cursos de ação engendrados por esses dieu, 2001c, p. 177]) de ação socialmente situada,
processos reflexivos são social e historicamente di- o qual coexiste no mundo societário com outras
versos, podendo não apenas parir a mobilização co- modalidades de propulsão subjetiva da conduta
letiva para a insurreição social transformativa, como operantes em contextos diferenciados (tais como a
no caso supracitado do movimento de maio de 68, adequação racional-calculista de meios a fins base-
mas também a submissão resignada a condições de ada na consideração consciente de alternativas pos-
existência as mais desfavoráveis, exemplificada na síveis de ação ou a obediência consciente a normas
situação do subproletariado argelino na passagem de conduta explicitamente estatuídas), é insuficien-
de uma economia tradicional para uma economia te para evitar seu deslize teórico-metodológico em
56  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 28 N° 83

direção a “um objetivismo de segunda ordem”. Sua objetivas, teríamos de acrescentar, pace Bourdieu,
concepção quanto à precedência ontológica e me- que, em algum grau, tais situações de quebra são
todológica do nível objetivo sobre o nível subjetivo “radicalmente mais freqüentes” (Elder-Vass, 2007,
da realidade social permanece patente na ideia de p. 341) no mundo social do que reconhece o so-
que, ao menos que tange ao ator leigo, é a desesta- ciólogo francês – entre outros motivos porque,
bilização da cumplicidade ontológica entre as dis- como mostrou Lahire (2002) em certo detalhe,
posições dos agentes e seus ambientes estruturais de mesmo os atores mais intensamente engajados
atuação/experiência que está na base do surgimento em lutas de campo também são obrigados a atuar
de ações fundadas sobre deliberações reflexivas. É, em uma pletora de outros contextos sociopráticos
assim, negada a possibilidade do processo inverso, de atividade para os quais as disposições de seus
isto é, de que o próprio exercício consciente da re- habitus podem não estar bem ajustadas. Portanto,
flexividade pelos atores acarrete por sua vez uma as inadequações entre as expectativas subjetivas
quebra total ou parcial daquela cumplicidade. oriundas do habitus e os resultados das experiên-
Se Bourdieu pensava os quadros teórico-meto- cias práticas efetivas não se encontram apenas nas
dológicos de análise da vida social como instrumen- situações de crise radical que Bourdieu caracteriza
tos heurísticos “ontologicamente flexíveis” (Sibeon, por meio da ideia de efeito de histerese, mas cons-
2004, p. 197), ou seja, sensíveis à variabilidade em- tituem parte e parcela da existência social cotidia-
pírica dos processos sócio-históricos (incluindo-se na de qualquer ator.5 Se, como Bourdieu afirma,
aí os motores subjetivos da conduta), ele deveria tais disjunções práticas entre antecipações mentais
ter reconhecido de modo mais consequente no seu tácitas e efeitos mundanos da ação levam o agente
repertório conceitual a possibilidade de ações de- não apenas a buscar o auxílio agêntico da consi-
terminadas, ao menos em parte, pela consciência deração consciente de modalidades alternativas de
reflexiva, mesmo que estas fossem tomadas como conduta, como também a operar conscientemen-
variedades empíricas raras de comportamento. De te sobre si mesmo um trabalho de transformação
qualquer forma, a própria hipótese quanto a esta adaptativa de seu habitus (de modo a torná-lo
suposta raridade também está em jogo na crítica mais adequado às novas circunstâncias), a intera-
ao déficit de reflexividade presente na caracteriza- ção e, portanto, o condicionamento mútuo entre
ção bourdieusiana do ator. Não se trata, portanto, disposições habituais e reflexões conscientes na
apenas da ideia de que um quadro teórico-metodo- produção da ação é um fenômeno bem menos ex-
lógico de análise da agência humana e da vida so- cepcional do que pensa Bourdieu.
cial deva possuir flexibilidade ontológica de modo
a incluir múltiplos tipos empiricamente possíveis
de conduta subjetivamente motivada; o problema A sociologia como arma de reflexividade
é também substantivo e diz respeito ao fato de que
“simplesmente não é verdade que o voluntarismo, Ainda que o habitus seja o propulsor mais fre-
sob a forma da formação racional de decisões, do quente da ação, bem como uma propriedade uni-
planejamento, da elaboração ‘calculada’ de estraté- versal da prática humana, Bourdieu não afasta a
gias e contraestratégias, refere-se a situações extre- possibilidade de condutas causalmente eficazes mo-
mas ou raras” (Mouzelis, 1995, p. 112; Crossley, tivadas por deliberações explicitamente articuladas
2001, p. 97). na mente dos atores, apenas apontando para o fato
No que diz respeito à discussão sobre a relação de que tal forma de comportamento dependeria de
entre consciência reflexiva, reprodução e mudan- circunstâncias sócio-históricas específicas:
ça, podemos concluir enfim que, mesmo se acatás-
semos a tese de que o papel causalmente determi- [...] o habitus é um princípio entre outros de
nante da consciência reflexiva do agente depende produção das práticas e, ainda que esteja in-
sempre da quebra sócio-histórica da cumplicidade dubitavelmente em jogo de maneira mais fre-
ontológica entre estruturas subjetivas e estruturas qüente que quaisquer outros – “Somos empíri-
Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria… 57

cos”, disse Leibniz, “em três quartos das nossas mas como resultantes da inevitável inserção do/a
ações” –, não se pode descartar que ele possa pesquisador/a em uma formação sócio-histórica
ser substituído em certas circunstâncias – cer- que emoldura seu modus cognoscendi.
tamente em situações de crise que rompem o Se transposto da esfera da prática sociocientí
ajustamento imediato do habitus ao campo – fica para o universo social mais amplo e pensado não
por outros princípios, como a computação ra- apenas como preceito metodológico, mas também
cional e consciente (Bourdieu, 1990c, p. 108). ético-político, o procedimento da crítica em Bour-
dieu, além de demonstrar (no rastro do Durkheim
Segundo o sociólogo do Béarn, afora o des- de As formas elementares da vida religiosa) o caráter
compasso histórico entre disposições e interesses socialmente constituído das capacidades operativas
subjetivos, de um lado, e as probabilidades obje- formadoras da sensibilidade e do entendimento
tivas de lucro material e/ou simbólico, de outro, dos agentes, ainda une o sentido kantiano de esca-
a tentativa de obtenção do domínio reflexivo do vação sistemática de pressupostos do pensamento
próprio habitus (ou de parte dele) também pode e da ação a um sentido mais afeito ao marxismo,
ser amparada pela própria sociologia quando esta associado ao esforço de desvendamento de modali-
é mobilizada como um ferramental de autossocio- dades ideologicamente mascaradas de dominação e
análise, isto é, em um trabalho de investigação au- exploração. Isto porque as categorias de percepção
tocognoscitiva. Tal trabalho reflexivo pode ter um e orientação da conduta que garantem a inteligibi-
papel emancipatório ou libertador, em particular lidade do mundo social para os agentes são, na vi-
nos casos em que ele expõe ao escrutínio crítico dis- são do sociólogo francês, as mesmas que os levam a
posições e esquemas interpretativos que levam os naturalizar e essencializar as assimetrias duráveis de
atores a perceber como legítima (e, assim, a cola- poder que perpassam esse mesmo mundo.
borar, ainda que tacitamente, com) a sua própria Nesse sentido, a obra de Bourdieu pretende
dominação: contribuir para a desnaturalização, desbanalização
e desessencialização dessas relações de dominação,
[...] não apenas pode o habitus ser transforma- desnudadas como arbitrariedades históricas contin-
do praticamente (sempre dentro de fronteiras gentes falsamente travestidas como ordenamentos
definidas) pelo efeito de uma trajetória social naturais das coisas para a (in)consciência comum.
levando a condições de vida distintas daque- No seu Esboço de autoanálise,6 Bourdieu também
las iniciais, como também pode ser controlado faz votos de que seus instrumentos sociológicos se-
por meio do despertar da consciência e pela so- jam utilizados como ferramentas de autorreflexão,
cioanálise (Idem, p. 116). autognose e autoajuda, compreendendo-se essa
última expressão, é claro, no sentido da tradição
A empreitada de uma sociologia reflexiva, que filosófica clássica de reflexão sobre os modos de
Bourdieu propugnava ser sua principal contribui- aplacar o sofrimento e os caminhos da “boa vida”
ção às ciências sociais, assenta precisamente na pos- (Aristóteles) e não daquela indústria bibliográfica
sibilidade de que disposições impensadas de pensa- contemporânea tão desprezada por um contingente
mento e comportamento possam ser racionalmente substancial de intelectuais:
controladas ao acederem ao nível da consciência.
No âmbito epistemológico, trata-se, na verdade, [...] nada me deixaria mais feliz do que lograr
de uma reatualização propriamente sociológica da levar alguns dos meus leitores ou leitoras a re-
noção kantiana de crítica, originalmente concebida conhecer suas experiências, suas dificuldades,
como a capacidade de reflexão do pensamento ou suas indagações, seus sofrimentos, etc. nos
razão acerca de seus próprios pressupostos e limites, meus e a poder extrair dessa identificação rea-
sendo tais pressupostos e limites historicizados e lista, justo o oposto de uma projeção exaltada,
sociologizados por Bourdieu, isto é, não mais pen- meios de fazer e viver um pouco melhor aquilo
sados como atributos de um sujeito transcendental, que vivem e fazem (Bourdieu, 2005, p. 135).
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A despeito da diferença de teses e métodos, a da natureza, reconhecer as forças que agem sobre
referência implícita à psicanálise na noção de socio- nós e, em particular, “dentro” ou “através” de nós,
análise serve para manifestar o enraizamento moral é adquirir uma ferramenta para fazer alguma coisa a
comum no projeto socrático da autoconsciência respeito, agindo sobre ou contra tais forças. Ao tra-
como caminho existencial emancipatório, no pro- zer a pretensão “clínica” ou “délfica”7 para o campo
pósito de expandir o nível da consciência humana das ciências sociais, Bourdieu propõe a tese de que
para dimensões determinantes da sua conduta, as “a sociologia liberta libertando da ilusão de liberda-
quais, se deixadas intocadas por esse esforço refle- de” (Bourdieu, 1990a, p. 28). O verbo “libertando”,
xivo metodologicamente municiado, permanecem nesse caso, é tudo menos uma repetição pedante e
escondidas, reprimidas, inconscientes, dissimula- desnecessária, pois comunica a ideia de que a possi-
das. Um Aufklärer como Freud, Bourdieu persegue, bilidade de liberdade oferecida pela objetivação dos
no entanto, um inconsciente distinto daquele pen- condicionantes societários do pensamento e da con-
sado pelo pai da psicanálise: a matriz socialmente duta vai além do resignado e impotente “reconheci-
interiorizada de onde florescem as ações, percep- mento da necessidade” (Spinoza/Hegel). Sendo as
ções e avaliações (inseparavelmente éticas, estéticas “necessidades” operantes no mundo social historica-
e afetivas) que configuram nosso modo de ser no mente constituídas e reproduzidas através das ações e
mundo, isto é, nosso habitus. representações dos atores humanos, o reconhecimen-
Se, como afirma Durkheim, “o verdadeiro in- to de tais “necessidades” pode dar ensejo ao seu ques-
consciente é a história”, o/a autoanalista sociologi- tionamento, combate ou destruição. Ao amplificar a
camente municiado/a pelo pensamento de Bour- consciência dos deter­minismos que coagem a condu-
dieu, trabalhando sob a égide do princípio “De ta social, não apenas daqueles que se exercem sobre
te fabula narratur”, conhece a si mesmo/a como os atores a partir de “fora”, mas também através dos
“história feita corpo”, personalidade socialmen- atores a partir de dentro, subcutaneamente conduzi-
te constituída, ser dotado de um habitus que, em dos, por assim dizer, nos meandros de seus corpos e
princípio, o possui, mais do que é possuído por ele. mentes, Bourdieu pretende oferecer armas eficientes
A dimensão de desencanto dessa linha de análise de contra-atuação sobre­essas estruturas e mecanis-
é inegável, dado que ela não nos pinta como seres mos coativos e contribuir com a consecução de uma
irredutíveis ao mundo, mas mundanos, demasiado margem de liberdade em relação aos mesmos.
mundanos, moldados nos territórios mais íntimos A reflexividade aparece, assim, como uma fer-
de nossa personalidade por determinações sócio- ramenta passível de transposição do domínio da
-históricas exteriores a nós, porém objetivadas na ciência social para aquele da ética e da política.
nossa subjetividade mesma. A autoanálise sociolo- No plano epistemológico, devido ao “racionalis-
gicamente armada leva assim às descobertas des- mo aplicado” que herdou de Bachelard, Bourdieu
confortáveis e até mesmo dolorosas da objetividade advoga uma leitura “disposicional” do seu quadro
situada no seio da subjetividade, da externalidade teórico-metodológico de análise da vida social,
no coração da internalidade, da banalidade no que pensado como um programa intelectual voltado
até então fundamentava uma autorrepresentação à inculcação gradual de um habitus sociocientífico
ilusória de raridade. que guie o pesquisador de modo heuristicamente
Todas essas implicações podem possuir, entre- fecundo nas suas investigações de cenários sociais
tanto, um caráter potencialmente emancipatório sob concretos. O mesmo enfoque disposicional pode
as lentes de Bourdieu, na medida em que esse esfor- ser mantido no caso da transposição do impera-
ço sociológico-reflexivo de “anamnese” (Platão), isto tivo da reflexividade do plano da metodologia
é, de recuperação de significações persistentemente sociológica para o de uma proposta ético-política
atuantes em nós e, ao mesmo tempo, opacas à nossa de autoconsciência e autoconstrução, em função
consciência, constitui uma via de acesso a um traba- da qual Bourdieu pode ser frouxamente conec-
lho de autorreapropriação. Em uma esfera de realida- tado a uma tradição que pensa o conhecimento
de onde não estão em operação as leis trans-históricas (do) humano de modo entrelaçado à conduta da
Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria… 59

vida. Na medida em que o cultivo reflexivo de um do que aqueles em que existe um vínculo socioge-
novo habitus não se reduz à dimensão cognitiva da nético e um reforço circular entre habitus e campo
subjetividade, mas engaja a personalidade inteira, (Vandenberghe, 2010, p. 290).
essa tarefa pode ser concebida como um “exercício Do ponto de vista teórico, o que está em jogo é
espiritual” no sentido secular pensado por Pierre o status da relação ontológica entre três níveis da re-
Hadot (1995, 2004). alidade societária (Kogler, 1997, pp. 142-143): a) as
Não obstante, vale dizer que a proposta de au- condições sociais objetivas que conformam os am-
tolibertação e autotransformação reflexiva por meio bientes estruturados em que os indivíduos atuam e
da socioanálise não deve ser pensada como uma que tomam a forma de ordens distributivas de uma
substituição da ação política por uma orientação pletora de recursos materiais ou simbólicos (formas
ética individualista. A objetivação sociológica de pa- de capital, diria Bourdieu), ordens que coagem em
drões de dominação e violência simbólica, ao apon- variados graus os cursos factíveis de ação e as “opor-
tar para os profundos efeitos cognitivos, morais, tunidades de vida” (Weber) dos agentes; b) as cren-
emocionais e corpóreos que estas possuem sobre as ças e intenções explicitamente sustentadas pelos
subjetividades individuais, acarreta consequên­cias atores e conscientemente mobilizadas por estes na
inseparavelmente políticas e “existenciais”. Se “o pes- produção de seus comportamentos; c) os esquemas
soal é social” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p. 202) simbólico-interpretativos operantes sob a forma de
e, portanto (feministas, uni-vos!), político, a ética crenças tácitas e “etnométodos” que se referem ao
da boa vida se entrelaça à política da Cidade Justa, que Bourdieu denomina de habitus. Como vimos,
a “sociologia clínica” torna-se parte de uma “polí- ainda que considere esse último nível sócio-ontoló-
tica reflexiva” (Frangie, 2009, p. 213), enquanto o gico como o mais frequente e decisivamente deter-
questionamento/luta contra a dominação exterior minante na relação dos agentes com seus contextos
e interiorizada se torna tanto um ato ético de auto- societários objetivos e, por meio desse relaciona-
construção reflexiva quanto uma manobra política mento, na gênese das práticas sociais que desenham
de resistência à dominação. o curso da evolução sócio-histórica, Bourdieu não
chega a oferecer um estatuto puramente epifeno-
mênico ao nível das orientações subjetivas de con-
Recuperando a reflexividade do ator leigo duta explícita e discursivamente mobilizadas pelos
atores. Ele efetivamente coloca, no entanto, uma
A proposta de Bourdieu é, sem dúvida, muito série de restrições à sua eficácia causal.
valiosa, mas parece levar longe demais a ideia de que, Na medida em que o ator leigo não está, como
fora da situação sócio-histórica de hysteresis, ape- o/a sociólogo/a, armado de um arsenal de técnicas de
nas a auto-objetivação sociológica permite o aces- ruptura com as representações espontâneas do mun-
so reflexivo e consciente do ator (não sociólogo) a do societário, condição metodológica fundamen­tal,
certas dimensões do seu próprio habitus. Assim, segundo Bourdieu, da explicitação científica dos es-
as propriedades dos habitus dos agentes leigos só quemas práticos do habitus, ele não teria como re-
poderiam ser reflexivamente tematizadas por seus cuperar reflexivamente tais esquemas, em virtude da
próprios possuidores nos contextos “histerésicos” presença de uma série de coações obstaculizadoras
em que houvesse uma disjunção entre as circuns- objetivas e subjetivas: a “urgência da prática”, que
tâncias estruturais de parturição e as circunstâncias impede que os indivíduos se retirem do mundo so-
estruturais de mobilização agêntica de seus sistemas cial para examiná-lo, a necessidade de dissimulação
de disposições práticas e esquemas simbólicos in- seja do caráter “interessado” de certas ações (como
ternalizados. Tais contextos em que está ausente a nos ciclos da dádiva nas sociedades não capitalistas
cumplicidade ontológica entre estruturas subjetivas ou nas tomadas de posição estética no campo artís-
e objetivas tendem a ser tidos como social e his- tico contemporâneo), seja da arbitrariedade de assi-
toricamente excepcionais por Bourdieu e, de todo metrias de poder percebidas como legítimas mesmo
modo, são mais raramente escrutinados na sua obra por aqueles que não são seus beneficiários, ou ainda,
60  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 28 N° 83

a própria docta ignorantia que avultaria como carac- vamente” com base em um estoque de disposições
terística definidora do habitus, “um modo de conhe- práticas e categorias de percepção e orientação que
cimento prático que não abarca o conhecimento dos constituem a interiorização das injunções dos seus
seus próprios princípios” e que teria dificuldade em espaços objetivos de socialização. Nesse sentido,
pensá-los e nomeá-los, uma vez que eles constituem eles/as de fato só podem ser percebidos como “os
as condições mesmas de possibilidade do pensar e sujeitos aparentes de ações que têm a estrutura
nomear (Bourdieu, 1979a, p. 19). objetiva como seu sujeito” verdadeiro (Bourdieu
A comparação com a abordagem estruturacio- e Wacquant, 1992, p. 49). Esse postulado não se-
nista de Giddens (1979, 2003; para uma análise, ria, aliás, afetado pela identificação do encontro
ver Peters, 2011c; no prelo) pode ser útil para iden- dialético entre habitus e campo como o princípio
tificar o déficit de reflexividade presente no retrato histórico-genético de produção das práticas sociais,
bourdieusiano do ator. Na teoria da estruturação, pois as propriedades de quaisquer habitus, en-
ainda que seja reconhecida a distinção entre conhe- quanto interiorizações subjetivas de objetividades,
cimento teórico explícito e conhecimento prático poderiam ser reduzidas às suas condições sociais
(know how, savoir-faire), bem como a extraordiná- particulares de produção, sendo o habitus capaz de
ria importância desse último para a continuidade produzir “pensamentos, percepções e ações” ajusta-
da vida social, todos os agentes, e não apenas os dos a tais circunstâncias sócio-históricas e “apenas
cientistas sociais, são tidos como inerentemente do- estes” (Bourdieu, 1990b, p. 55, grifos meus). Dessa
tados da capacidade de refletir acerca dos princípios forma, aquele encontro pode ser alternativamente
da própria conduta e de atuar eficaz e consciente- lido como ocorrendo não entre um agente e uma
mente para modificá-los. Assim, uma autonomia estrutura social na qual este está imerso, mas entre
relativa é teoricamente concedida não apenas à di- duas estruturas: aquela onde o agente foi formado –
mensão do habitus/consciência prática e à instância e que está, por assim dizer, sedimentada na matriz
analítica das condições sociais objetivas, mas tam- de disposições estruturadas do seu corpo e da sua
bém, e independentemente da existência ou inexis- mente – e aquela onde ele está agindo.
tência da chamada “cumplicidade ontológica”, ao A ação seria assim reduzida a uma dialética
plano da reflexão consciente dos atores, sendo essa entre estruturas objetivas, a do passado e a do
vista como capaz de influenciar causalmente cada presente, ainda que tal dialética seja possibilitada
um daqueles níveis sócio-ontológicos, ao mesmo apenas pela mediação do habitus como instância
tempo em que é influenciada por eles. de atualização ou presentificação (com o perdão
Tal reflexão permite entrever que a principal da heideggerianice) dos contextos estruturais de
fonte do neo-objetivismo de Bourdieu é a ausên- formação do agente no interior dos seus ambien-
cia de um conceito que possa incluir a consciência tes estruturados de atuação. Na medida em que
reflexiva do ator como um componente funda- Bourdieu atesta que a reapropriação reflexiva de si
mental à explicação da agência individual. Embora mesmo, que está na base da possibilidade de auto-
seja um elemento necessário, o conceito de habitus determinação racional, só pode ser levada a cabo
é claramente insuficiente para uma caracterização por meio da escavação sistemática das estruturas
heuristicamente mais fecunda dos motores subjeti- sociais objetivadas na subjetividade do agente sob
vos da conduta do ator leigo. Como bem observou a forma de um habitus, e tendo-se em mente que
Crossley­(2001, p. 97), a categoria é submetida a são pouquíssimas as pessoas que realizaram ou
uma carga excessiva de trabalho socioanalítico no teriam condições de realizar esse trabalho, somos
pensamento de Bourdieu, e a pesada ênfase sobre levados a concluir que a imensa maioria dos ato-
o caráter tácito e infraconsciente do seu funciona- res que povoam o mundo social pode ser, assim,
mento parece ser a porta de entrada para uma for- fidedignamente caracterizada, na sua perspectiva,
ma de neo-objetivismo na sua teoria da prática. como formada por “sujeitos aparentes de ações
Isto fica patente no momento em que Bour- que têm a estrutura como seu sujeito” (Bourdieu e
dieu reconhece que os agentes atuam “pré-reflexi- Wacquant, 1992, p. 49).
Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria… 61

Lições de A miséria do mundo capacidade mesma que tornaria o “autoesclareci-


mento” reflexivo pelo uso da sociologia possível em
A sociologia de Bourdieu foi frequentemente primeiro lugar.
acusada de criptonormativismo, isto é, de haver Nesse sentido, o avanço de uma sociologia re-
avançado uma teoria da dominação simbólica com flexiva que mobilize as ferramentas da ciência para
óbvias ressonâncias morais e políticas, mas sem prover aos agentes uma empoderadora compreen-
estabelecer critérios normativos claros para fun- são das conexões entre suas biografias singulares e
damentar e justificar sua postura hipercrítica em os contextos estruturais mais amplos em que estão
relação ao mundo social (Vandenberghe, 2010, p. embebidos não será diluído, mas fortalecido pelo re-
84; Sayer, 2005, p. 16). Como também acontece conhecimento de que os atores leigos estão de posse
costumeiramente com Foucault, tal combinação de poderes de reflexividade maiores do que Bour-
entre uma ausência de ideais normativos explícita dieu estava disposto a admitir em seu esquema teó-
ou sistematicamente apresentados, de um lado, e rico. A reintrodução da reflexividade leiga na teoria
um retrato impiedoso do quão abrangente e pro- da prática e a proposta emancipatória de uma so-
fundo é o alcance do poder e da dominação na vida ciologia reflexiva podem, assim, ser tomadas como
social, de outro, pôde até mesmo levar da imputa- partes complementares de um mesmo exercício.
ção de criptonormatividade às acusações mais sérias De certa forma, a articulação entre esses dois
de cinismo e niilismo (Alexander, 1995, pp. 129, projetos chegou a ser inadvertidamente reconheci-
211; para o caso de Foucault, ver Merquior, 1985). da por Bourdieu na obra que ele publicou, com um
Ambas as acusações podem ser substancial- time de colaboradores, sobre múltiplas formas de
mente mitigadas à luz do programa ético-político “sofrimento social” na contemporaneidade: A mi-
da sociologia reflexiva que acabamos de localizar séria do mundo (1997). O livro oferece uma mani-
na sua obra, isto é, do seu projeto de oferecer aos festação palpável de sociologia reflexiva in actu, um
atores leigos ferramentas intelectuais e práticas exercício sociocientífico de exploração das articu-
com as quais eles possam contra-atuar diante dos lações entre as situações biográficas de indivíduos
constrangimentos sócio-históricos que pesam sobre particulares e suas localizações estruturais em uma
suas condutas, não apenas sob a forma de restrições história macrossocial. No entanto, os insights que
exteriores às suas iniciativas de ação, mas também ele oferece sobre as “misérias de reconhecimento”
de coações que operam “dentro” ou “através” deles, como modalidades de sofrimento social traem tam-
mediadas por suas disposições mentais e corporais bém uma demonstração do alcance da reflexividade
interiorizadas via socialização. Entretanto, parece dos agentes leigos, inclusive daqueles que ocupam
haver um enorme hiato entre o “pessimismo do posições mais subordinadas no espaço social, a qual
intelecto” que caracteriza seu retrato teórico subs- não é congruente com sua visão teórico-metodoló-
tantivo do agente leigo, no mais das vezes quase gica padrão sobre o tema.
plenamente identificado às disposições práticas e Toda a teoria da violência simbólica de Bour-
infraconscientes do seu habitus, e o “otimismo da dieu depende da ideia de uma “cumplicidade on-
vontade” embutido na versão ético-política amplia- tológica” entre habitus e campo em função da qual
da do programa de uma sociologia reflexiva (am- um ambiente estrutural atravessado por uma dis-
pliada, isto é, para uma população mais abrangente tribuição assimétrica de poder e de recursos é per-
do que aquela dos cientistas sociais). O único modo cebido e vivenciado como a ordem natural e evi-
pelo qual esse último projeto poderia escapar a uma dente das coisas pelos atores nele imersos e por ele
espécie de contradição autoderrotista seria através socializados. Mas não é apenas através de tal natu-
do postulado de que os atores leigos já possuem, em ralização simbólico-cognitiva que a relação circular
princípio, a capacidade de estabelecer algum dis- entre estruturas sociais e estruturas mentais leva à
tanciamento reflexivo (relativo e variável, mas não cumplicidade prática, demonstrada tanto por do-
negligenciável) tanto em relação aos seus habitats minantes quanto por dominados, em relação à de-
exteriores quanto aos seus habitus interiorizados – a sigualdade nas “oportunidades de vida” (Weber) de
62  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 28 N° 83

indivíduos e grupos. A reprodução da dominação é bastante consciente e, por vezes, discursivamente


tremendamente reforçada, em um nível motivacio- articulada de crítica aguda e rejeição dolorosa das
nal, pelo fato de que condições sociais de existência próprias condições sociais de existência 8 (Sayer,
distintas, isto é, restrições e oportunidades objetivas 2005, p. 35). É necessário apenas sublinhar que
que influenciam diferencialmente atores assimetri- Nietzsche utilizou a expressão latina para designar
camente posicionados no espaço social, são tradu- um estado de espírito feliz para que reconheçamos a
zidas pela socialização em orientações duráveis de pertinência de se distinguir entre o amor fati como
conduta que pré-ajustam as aspirações de tais agen- cumplicidade prática e o amor fati como assenti-
tes a uma antecipação prática, “intuitiva”, de suas mento subjetivo.9 No nível de seu quadro teórico-
chances “realistas” na vida. A “situação existencial” -metodológico de análise da vida social, Bourdieu
(Mannheim) de uma classe ou grupo favorece a for- poderia lidar com essa distinção apenas se houvesse
mação de um habitus dotado de um senso prático mitigado sua pesada ênfase sobre o caráter tácito ou
de antevisão do que é “possível” ou “impossível” infraconsciente dos motores subjetivos da conduta
para os ocupantes daquela posição no mundo so- humana, concedendo um espaço mais significativo
cial. Os membros de tais classes ou grupos fazem à reflexividade do ator leigo em face tanto de seus
da necessidade uma virtude e excluem tacitamente ambientes sociais externos quanto de suas disposi-
do domínio do que é realisticamente desejável os ções subjetivas internalizadas.
próprios bens ou práticas aos quais eles já não têm
acesso, de qualquer modo, em uma distribuição as-
simétrica de recursos vigente. Disposições habituais e deliberações
Como notou Andrew Sayer (2005, p. 31), esta reflexivas
noção teórica do amor fati exibido pelos domina-
dos torna simplesmente ininteligíveis as expressões Verificamos que, em contextos e situações
discursivas de insatisfação e sofrimento tão bem e cuja frequência é bem maior do que parece supor
comoventemente documentadas em A miséria do Bourdieu, a consciência reflexiva do ator intervém
mundo. Por definição, a dor e a frustração psicoló- entre as disposições práticas habituais e o contex-
gicas derivadas do fato de se ter negadas as próprias to estrutural objetivo em que o agente está imerso
pretensões a condições satisfatórias de existência, como um fator mediador relativamente autônomo
tais como conforto material ou reconhecimento na determinação da ação. Deve-se ressaltar, entre-
social, podem ocorrer apenas se há um hiato entre tanto, que, embora o habitus possa reinar absoluto
desejos ou expectativas subjetivos, de um lado, e como motor subjetivo da conduta em dados con-
as experiências efetivas por que se passa no mundo textos sociopráticos (aqueles em que o mergulho na
social, de outro. O retrato bourdieusiano da subor- ação é tamanho que leva ao esquecimento de si –
dinação das classes populares em A distinção (2007, os exemplos esportivos diletos de Bourdieu vêm
pp. 350-370) tem sido comumente criticado por à mente), a consciência reflexiva do agente nunca
negligenciar ou tornar inexplicáveis as diversas prá- pode ter esse privilégio, pois sempre trabalha tendo
ticas ocasionais ou mesmo diárias de oposição e re- como background irrefletido uma série de habilida-
sistência levadas a cabo pelos dominados (Swartz, des fundacionais do habitus, o que é evidenciado,
1997, p. 174; Lovell, 2007, p. 85). Mas o que um por exemplo, pelo fato prosaico de que o exercício
livro como A miséria do mundo também mostra é discursivo da consciência ou a formulação explícita
que, mesmo em situações em que não há, ao menos de cursos possíveis de conduta estão vincados na
para todos os propósitos práticos, qualquer resis- operação tácita de regras sociolinguísticas de pro-
tência à dominação estrutural e à distribuição de- dução e interpretação de enunciados. Assim, recu-
sigual de recursos, a cumplicidade habitual dos do- perar a reflexividade do ator leigo não significa, de
minados com a própria dominação que é observada modo algum, fazer vista grossa às pertinentes críti-
no domínio da prática social pode coexistir com (e cas que Bourdieu dirige aos retratos excessivamente
talvez até intensificar) uma experiência reflexiva, intelectualistas dos motores subjetivos da conduta
Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria… 63

presentes em outras paragens teórico-metodoló- pende necessariamente de deliberações reflexivas,


gicas, mas avançar no sentido de uma perspectiva mas pode estar incorporada à matriz mesma de
não unilateral que seja capaz de perceber a ação respostas improvisadas do “senso prático” (Dalton,
humana como um produto contínuo da complexa 2004, p. 604). Caberia aqui uma distinção entre
interação intrassubjetiva (isto é, interna ao agente) criatividade prática e criatividade reflexiva, já que
entre disposições práticas habituais e processos de o recurso bourdieusiano ao termo latino habitus
deliberação reflexiva. expressa precisamente a tentativa de escapar às co-
O exame da interação intrassubjetiva entre notações behavioristas da noção de hábito como
habitus e reflexividade requer, entretanto, o reco- uma associação fixa e atomizada entre estímulo(s) e
nhecimento de que a “fronteira” entre essas duas resposta(s), quando o que está em jogo no habitus é
instâncias é muito mais flutuante e permeável do uma matriz gerativa que oferece ao agente uma ca-
que pensava Bourdieu, bem como de que a condu- pacidade genérica, versátil e inventiva de responder
ta socialmente situada transita cotidianamente en- tacitamente a desafios situacionais contingentes.
tre uma e outra modalidade de motivação. Como Bourdieu adorava mobilizar ilustrações oriun-
notaram Hans Joas (1996) e Mitchell Aboulafia das do esporte (1990a, p. 21) para questionar con-
(1999, pp. 160-161), a conceituação da ação so- cepções excessivamente intelectualistas dos propul-
cial em autores como George Herbert Mead e sores subjetivos da conduta social, as quais tendiam
John Dewey, por exemplo, já trilhava uma frutí- a projetar nas mentes dos atores, como causas empí-
fera via média entre um retrato anti-intelectualista ricas de suas práticas, os modelos “escolásticos” por
de disposições infraconscientes que reproduziriam meio dos quais a “racionalidade” de seus compor-
fluentemente interações rotineiras, de um lado, e tamentos, isto é, seu ajuste pragmaticamente eficaz
uma pintura mais intelectualista da agência huma- às demandas do contexto, podia ser reconstruída.
na como movida pelo enfrentamento reflexivo de Uma das formas pelas quais Bernard Lahire criti-
problemas conscientemente formulados em uma ca (corretamente) o acento exagerado de Bourdieu
dada situação, de outro. Nessa perspectiva legada sobre o caráter tácito das motivações subjetivas da
por certas versões do pragmatismo, os seres huma- ação individual, com sua correlata negligência da
nos entregam-se a uma economia do pensamento importância motivacional de deliberações reflexivas
reflexivo que prescinde de deliberações e cálculos na organização das práticas, é precisamente conce-
conscientes nas situações em que suas propensões bendo o retrato bourdieusiano do ator como fun-
práticas habituais se ajustam, de modo infracons- dado sobre uma generalização abusiva do “modelo
ciente e espontâneo, às exigências de seus ambien- esportivo da ação” (Lahire, 2002, p. 145).
tes. Apenas diante de maiores ou menores desajus- No entanto, uma mirada na literatura sobre a
tes entre nossas intenções e intervenções práticas, aquisição de competências esportivas profissionais
de um lado, e os desafios agênticos colocados por indica que o modelo esportivo do aprendizado não
nossos cenários de atuação, de outro, é que nossas se aplica com perfeição sequer ao domínio do es-
faculdades criativas seriam requisitadas e se mani- porte. Ao contrário, o que especialistas na expert
festariam sob a forma de uma busca reflexiva de performance como o psicólogo sueco Anders Erics-
soluções àqueles desafios. Tal perspectiva recebe son denominam “prática deliberada” (Ericsson e
uma formulação sistemática inegavelmente rica e Charness, 1994) – fundada sobre um treinamento
sofisticada na pena de Joas em The creativity of ac- acompanhado de feedback sistemático (normalmen-
tion (1996). No entanto, embora a ideia de uma al- te oferecido por um treinador habilitado) e especifi-
ternância contínua entre hábito e reflexão no curso camente projetada para o aperfeiçoamento das sub-
da experiência cotidiana seja útil para combater os competências envolvidas no alcance de expertise em
excessos de anti-intelectualismo presentes na teoria determinada modalidade esportiva – constitui um
bourdieusiana do habitus, ela termina por deixar na exemplo quase paradigmático de interação mutua-
sombra o caráter relativamente criativo das próprias mente transformadora entre disposições habituais­e
condutas habituais, cuja natureza inventiva não de- deliberações reflexivas. Por um lado, espetáculos es-
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portivos de alto nível podem ser vistos, sim, como a De modo irônico para um exterminador de du-
prova viva de que o treinamento engendra nos seres alismos sociocientíficos, a tentativa de estabelecer
humanos capacidades que podem ser mobilizadas, uma cisão bem definida entre habitus e consciência
de maneira ao mesmo tempo espontânea e fluente, reflexiva no processo de socialização paga o preço
em respostas criativas e instantaneamente adequa- de negligenciar o quanto nossas experiências de
das às injunções de um contexto – respostas que aprendizado, ao longo da vida, envolvem combina-
pareceriam resultar da consideração consciente de ções contínuas e frequentes entre incorporações ir-
alternativas factíveis de ação se esta não fosse torna- refletidas e orientações explícitas de conduta. Com
da impossível pela “urgência da prática”. Por outro efeito, em um texto que versa sobre Merleau-Ponty,
lado, qualquer etnografia que mergulhe nos basti- mas está recheado de argumentos que poderiam
dores de tais espetáculos verá também que a capa- valer muito bem para Bourdieu, Richard Shuster-
cidade de operar com fluência e destreza nos ce- man mostrou que a possibilidade de transformação
nários de prática urgente depende necessariamente de princípios reflexivos conscientes em propensões
da contraparte que ela parece esconder: uma lida automatizadas inconscientes vale até mesmo para o
lenta, dividida em fragmentos incessantemente re- domínio predileto das diatribes anti-intelectualistas
petidos e analisados, um treinamento que, longe de de Bourdieu (1990b, pp. 66-79), qual seja, o das
se abandonar a supostas autocorreções espontâneas “técnicas do corpo” (Mauss):
do habitus do atleta, é pontuado a cada passo pelo
retorno reflexivo do agente sobre os movimentos A misteriosa eficácia de nossa intencionalidade
realizados e pela antecipação prospectiva dos movi- espontânea é certamente impressionante, mas
mentos a realizar – ambas as tarefas, aliás, realizadas não pode explicar sozinha todos os nossos po-
com a orientação dialógica de um técnico imbuído deres ordinários de movimento e percepção,
do conhecimento perito acumulado a respeito da- discurso e pensamento. [...] Muitas coisas que
quele esporte. agora fazemos (ou conhecemos) espontanea-
As lições da análise da aquisição de competên- mente estiveram, em algum momento, abaixo
cias esportivas acarretam implicações ainda mais do nosso repertório de performances irrefleti-
abrangentes. No que toca ao aprendizado de modo das. Elas tiveram de ser aprendidas [...]. Mas
geral, assim como o habitus constitui não um reper- como? Um modo de explicar esse aprendizado
tório de associações mecânicas e fixas do tipo estí- seria pelo uso de vários tipos de representação
mulo/resposta propensas a gerar comportamentos (imagens, símbolos, proposições etc.) nos quais
repetidos, mas uma capacidade genérica e versátil nossa consciência poderia se focar [...]. Mas
de oferecer adaptações criativas (embora regradas), Merleau-Ponty [assim como Bourdieu] pare-
o modelo esportivo do progresso na fluência da ce demasiado crítico das representações para
ação utilizado por Bourdieu funda-se sobre o ca- aceitar essa opção. Em vez disso, ele explica tal
ráter tácita ou espontaneamente autocorretivo da aprendizado inteiramente em termos da aqui-
prática. Além disso, nas poucas sugestões que ele sição automática de hábitos corporais por meio
oferece para tornar translúcidas as caixas-pretas do de condicionamentos motores irrefletidos ou
processo de transmissão das primeiras estruturas sedimentação somática. [...] Mas há limites
do habitus no espaço familiar, o autor repele ver- preocupantes à eficácia dos hábitos irrefletidos,
sões intelectualistas da socialização como imitação mesmo no nível de ações corporais básicas. Ir-
consciente de exemplares de conduta tomados ex- refletidamente, podemos adquirir maus hábi-
plicitamente como tais e defende que a absorção tos tão facilmente quanto bons. [...] Uma vez
de disposições se processa sobretudo através de um que maus hábitos sejam adquiridos, como os
mimetismo inconsciente fundado na identificação corrigimos? Não podemos simplesmente nos
global com gestos, atos, enunciados e atores e no entregar ao hábito sedimentado para corrigi-
aprendizado das “gramáticas gerativas” subjacentes -los, já que os hábitos sedimentados são preci-
a estes. samente o que está errado. [...] É por isso que
Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria… 65

várias disciplinas do corpo tipicamente envol- contexto, mas que elencarei de modo breve:
vem representações e concentrações somáticas
autoconscientes para corrigir as nossas falhas a) Neo-objetivismo e pancratismo: a quase-abso-
de autopercepção e uso do corpo (Shusterman, lutização do senso prático como motor da ação
2005, pp. 164-165). também tem como consequência uma espécie
de “reducionismo do poder” (Giddens, 1998,
É gratificante perceber que o próprio Bour- p.323) ou “pancratismo” (Merquior, 1985,
dieu veio a falar tardiamente em entrelaçamentos p.176), expressões cunhadas em críticas dirigi-
situacionais entre orientações reflexivas e manobras das, na verdade, a um colega de Bourdieu no
práticas: Collège de France: Michel Foucault. Vimos
que Bourdieu defende a tese de que o habitus
[...] as improvisações do pianista ou as ditas fi- engendra práticas e representações “que podem
guras livres do ginasta nunca acontecem sem ser objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem
[...] uma certa forma de pensamento ou mes- serem produto da obediência a regras, objeti-
mo de reflexão prática, reflexão em situação e vamente adaptadas a seu fim sem supor a in-
ação que se faz necessária para avaliar em cima tenção consciente dos fins” (Bourdieu, 1983a,
do lance a ação ou o gesto realizado e assim p. 61), utilizando tal tese para reduzir a hetero-
poder corrigir uma má posição do corpo, reto- geneidade motivacional da ação a estratégias de
mar um movimento imperfeito (a mesma coisa conquista ou manutenção de poder/capital sim-
ocorre, a fortiori, em condutas de aprendiza- bólico, ainda que sempre faça questão de des-
gem (Bourdieu, 2001c, p. 198, grifo do autor). tacar que se refere a estratégias historicamente
específicas de luta por formas historicamente
De fato, a proposta inteira da sociologia re- específicas de poder associadas a campos histo-
flexiva será inócua se não pressupor que podemos ricamente específicos. Sua economia geral das
utilizar a reflexividade, em conluio com o corpo, práticas multiplica as possibilidades de bens
para corrigir maus hábitos – ou até mesmo maus simbólicos e espécies de interesses perseguidos
habitus. em espaços sócio-históricos particulares, ao
mesmo tempo em que caracteriza, entretanto,
a luta pela maximização do capital simbólico
Notas crítico-reconstrutivas per se, do “reconhecimento” ou distinção so-
cial, como o motor fundamental da vida hu-
A crítica supradelineada do neo-objetivismo na mana em sociedade. Como demonstram as
teoria da prática de Bourdieu foi concebida como críticas de Giddens e Merquior ao método ge-
parte de um esforço teórico-metodológico recons- nealógico de Foucault, as quais poderiam valer,
trutivo cujo propósito é o de aproximá-la (mesmo mutatis mutandis, para o próprio Bourdieu, su-
que isso signifique necessariamente dissolver, em blinhar corretamente que todo processo social
maior ou menor medida, sua identidade específica está permeado de relações de poder não signi-
como “a teoria de Bourdieu”) de um tratamento fica subscrever a tese de que a busca estratégica
sintético mais satisfatório da relação de interdepen- de poder tem de ser concebida como o traço
dência causal entre a ação individual subjetivamente essencialmente definidor e/ou como explanans
propelida e as propriedades estruturais, institucio- último ou fundamental da geração da conduta
nais e culturais das formações societárias em que os individual e da reprodução/transformação de
atores estão imersos. Tal tarefa de crítica e recons- estruturas sociais.
trução depende, entretanto, de um conjunto de
reformulações concomitantes em outras dimensões A orientação socioteórica “pancrática” leva
centrais da praxiologia bourdieusiana, reformula- Bourdieu a: 1) abolir a distinção entre motores es-
ções que não posso defender em detalhe no presente tratégicos e motores normativos da conduta huma-
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na, subsumindo os últimos nos primeiros (Bour- zer que, como reza a frase de Mao que ele gostava
dieu e Wacquant, 1992, p. 139); 2) conceber a de citar, o bastão foi torcido em demasia para um
dinâmica do reconhecimento social apenas como dos lados da questão. Por um lado, não há dúvida
um jogo de soma-zero, o que explica as implica- quanto ao valor de seu esforço incansável “para evi-
ções pessimistas e hiperagonísticas de sua visão do tar a sentimentalidade” (Idem, ibidem; ver também
mundo social, em que a valorização simbólica de- Honneth, 1995), fundamental para qualquer um
pende necessariamente de uma contraparte desva- que almeje a uma compreensão realista, ainda que
lorizada – “todo sagrado tem o seu profano com- desencantadora, do mundo social, sobretudo no
plementar, toda distinção produz sua vulgaridade que toca à sua “face feia” (Dahrendorf ), para Bour-
e a concorrência pela existência social conhecida e dieu freqüentemente escondida sob o véu suave da
reconhecida, que subtrai à insignificância, é uma violência simbólica. Por outro lado, em virtude de
luta de morte pela vida e pela morte simbólicas” sua visão agonística do universo societário como
(Bourdieu, 1988a, p. 56; Peters, 2012). Ainda que cenário de infinda competição estratégica, o soció­
eu não concorde com o argumento, avançado por logo francês vai longe demais em sua tendência a
Sayer (2005, pp. 40-41), de que o uso bourdieu- caracterizar toda ação normativamente orientada
siano de conceitos motivacionais oriundos da eco- como uma busca utilitária velada por acumulação
nomia falha em capturar a intensidade existencial de poder/capital, fechando a porta para a teorização
ou força afetiva do engajamento dos atores com os de ações genuinamente orientadas por normas e va-
jogos do mundo social (Sayer parece esquecer, por lores morais e capazes de escapar à “água gelada do
exemplo, o influxo freudiano na noção de inves- cálculo egoísta [mesmo que inconsciente]”, como
timento), certamente subscrevo sua visão de que diria Marx.10 De modo similar, mesmo autores que
tal uso acarreta um tratamento deficiente das di- também admitem que os seres humanos anseiam
mensões morais da conduta humana, sobretudo universalmente pelo reconhecimento social podem
ao tornar impossível explicar situações em que os problematizar, ainda sim, a visão segundo a qual
agentes sacrificam o autointeresse instrumental que tais processos só poderiam ocorrer nos jogos encar-
possuem na acumulação e/ou manutenção de seu niçadamente competitivos de soma-zero que acon-
status social ou capital simbólico em favor de um tecem em campos sociais.
compromisso com valores. Dado que as teorias são
subdeterminadas pelos fatos, sempre é possível en- b) A interação intersubjetiva – relacionismo e
quadrar intelectualmente os fenômenos prima facie situacionismo metodológicos: a praxiologia es-
normativos de maneira tal que eles se conformem trutural bourdieusiana tem como alicerces
à “lei do autointeresse” (Bourdieu, 1990b, p. 57). uma ontologia e epistemologia relacionais
Embora o conceito de estratégia inconsciente seja (Bourdieu, 1990b, p. 284; Vandenberghe,
heuristicamente valioso em uma variedade de con- 2010, cap. 1), em contraposição à visão que
textos, ele é particularmente propenso a ser mobi- Bourdieu, apoiando-se em autores tão diver-
lizado de forma abusiva como uma ferramenta ex- sos quanto Marx, Durkheim, Cassirer, Lewin,
planatória capaz de “salvar” a lei do autointeresse Elias, Sapir, Jakobson, Dumézil, Lévi-Strauss
de quaisquer refutações empíricas. e outros, denomina substancialista. Com efei-
A subsunção, em Bourdieu, da diversidade to, o relacionismo metodológico calcado no
motivacional da conduta humana a estratégias de conceito de campo é um dos caminhos através
consecução ou manutenção de múltiplas formas dos quais Bourdieu identifica as lacunas fun-
de poder/capital, mesmo nos casos de comporta- damentais do situacionismo metodológico de
mentos que não são subjetivamente vivenciados determinadas abordagens microssociológicas,
como tais (o que levou Alexander [1995, p. 152] como o interacionismo simbólico e a linha et-
a qualificar o conceito de “estratégia inconsciente” nometodológica da análise conversacional. Os
como um oximoro), já foi tão criticada que talvez proponentes destas julgam ser possível explicar
não precisemos nos alongar aqui. É suficiente di- as práticas desempenhadas em uma interação
Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria… 67

face-a-face apenas pela referência às proprieda- que seja capaz de escapar tanto ao relacionismo es-
des diretamente inscritas na ocasião interativa, trutural que ignora a autonomia relativa da “ordem
sem se dar conta de que “a verdade da interação da interação” (Mouzelis, 1995, p. 111) quanto ao
nunca jaz inteiramente na interação” (Bour- situacionismo ou ocasionalismo radicais de certas
dieu, 1990b, p. 291), isto é, de que a estrutu- abordagens que tomam os contextos locais de ação
ra da conjuntura momentânea da interação é e interação como microcosmos herméticos.
poderosamente condicionada pela inserção dos
agentes em toda uma série de coordenadas po- c) Os limites da aplicabilidade do conceito de
sicionais próprias de estruturas transcendentes campo para lidar com os contextos sociais da ação
à microssituação interativa que elas informam. individual: ainda que a relação habitus/campo
seja frequentemente utilizada para revestir o
No entanto, embora seja importante reconhe- conteúdo do relacionamento entre agência e
cer o papel de influências sociais macroscópicas ou estrutura no pensamento de Bourdieu, é neces-
trans-situacionais sobre os contextos particulares sário reconhecer a existência de uma espécie de
de interação, parece-me que Bourdieu novamente “assimetria analítica” entre as duas categorias,
“torce demais o bastão para o outro lado”, tenden- pelo fato de que a primeira é metodologicamen-
do a tratar as “estruturas conjunturais como sim- te aplicável ao estudo de um espectro bem mais
ples epifenômenos da estrutura objetiva” (Vanden- amplo de contextos sócio-históricos do que a
berghe, 2006, p. 191). Por um lado, o sociólogo segunda (Calhoun, 1993, p. 67). O próprio
francês tem razão em criticar ocasionalismos meto- Bourdieu reconhece o caráter analiticamen-
dológicos radicais quando sublinha que te mais circunscrito do conceito de campo ao
relacioná-lo explicitamente ao diagnóstico so-
[...] se um francês conversa com um argeli- ciológico da modernidade, isto é, à tese ampla-
no, ou um americano negro conversa com mente defendida (ao menos, desde Durkheim)
um Wasp, não são duas pessoas que conver- de que a constelação de instituições modernas
sam, mas a história colonial em sua inteireza, tem como um de seus traços estruturais histo-
ou toda a história da subjugação econômica, ricamente mais característicos a diferenciação de
política e cultural de negros (ou mulheres, tra- seu arranjo social total em distintas esferas de
balhadores, minorias etc.) nos Estados Unidos atividade relativamente autônomas. Por outro
(Bourdieu e Wacquant, 1992, p. 144). lado, ele desliza para a falácia da generalização
abusiva nos momentos em que toma, explícita
Por outro lado, o fato de que interações par- ou implicitamente, o conceito de campo como
ticulares são causalmente condicionadas por tais a única, ou ao menos a mais importante, ferra-
fatores macro-históricos não significa que possa- menta conceitual para lidar com os contextos
mos simplesmente deduzir quais serão os atribu- estruturais das práticas dos agentes individuais­.
tos fundamentais de toda e qualquer interação de Conquanto seja um conceito­fundamental para
um mesmo “tipo”; ou, em outros termos, que não lidar com certas esferas específicas de atividade
haja qualquer margem substancial de variação en- muito características do mundo social contem-
tre diferentes encontros interativos que são, para porâneo (espaços de atuação profissional e/ou
todos os propósitos da macrossociologia estrutural, pública nos quais há uma luta por obtenção de
“idênticos”. Naturalmente, não há espaço aqui para prestígio/capital simbólico), ele é, como vem
avaliar em detalhe os méritos e deméritos analíti- enfatizando Bernard Lahire (2002, p. 35), ob-
cos de caminhos ascendentes (bottom-up) ou des- viamente insuficiente para a compreensão das
cendentes (top-down) de “solução” do problema condutas seja da massa de atores que não par-
do “micro-macro link” (Alexander e Giesen, 1987), ticipam desses jogos de prestígio, seja das ações
mas podemos, ao menos, defender que o que pre- que aqueles envolvidos nas lutas de um campo
cisamos é de uma visão mais matizada e dialética desempenham quando estão fora dele.11
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No que toca ao problema da aplicabilidade de alternativas dicotômicas era com ele mesmo!),
analítica a diferentes contextos sócio-históricos, sem dúvida julgaria que um título mais apropria-
sobretudo àqueles não modernos, isto é, pouco do para um projeto dessa natureza seria “Com
diferenciados institucionalmente, creio que se- Marx e contra Marx” (ver, por exemplo, Bourdieu,
ria mais adequado trabalhar com conceitos mais 1988c, p. 780). Com efeito, ainda que o sociólogo
abstratos para designar as redes de relações coo- francês fosse, por vezes, irritantemente rabugento
perativas e/ou conflitivas nas quais os atores estão diante das apreciações críticas de seu trabalho, a
imersos, conceitos tais como a noção giddensiana fidelidade ao seu espírito, mais do que à sua letra,
de sistemas sociais (Giddens, 2003) ou a ideia elia- reclama que o leiamos seguindo o exemplo que ele
siana de “figuração”.12 Por fim, movendo-nos do mesmo oferece em seu trato intelectual não ape-
passado pré-moderno para o presente neo ou pós- nas da obra de Marx como também de Durkheim,
-moderno, bem como para um presumido futuro Weber, Husserl, Lévi-Strauss e tutti quanti. O
próximo, não é preciso ser latouriano ou deleu- presente trabalho constitui, nesse sentido, parte
ziano para reconhecer que o conceito de campo, de um esforço teórico-metodológico para pensar
embora seja tomado por Bourdieu como referente “com Bourdieu contra Bourdieu” (Corcuff, 2003)
a uma realidade perpetuamente em movimento e de modo a ir além de Bourdieu, no que já tem
historicamente atualizada de modo contínuo por sido, de toda forma, a diretriz seguida por vários
suas “partículas” constituintes (inclusive no que de seus críticos mais perspicazes, como Hans Her-
tange a seus limites formal ou informalmente es- bert Kogler (1997), Bernard Lahire (2002) e Fré-
tabelecidos), possui, entretanto, uma conotação de déric Vandenberghe (2010). Como disse um sábio
relativo “fechamento” e coerência (fronteiras bem filósofo grego, nascido (e aqui nossas associações
demarcadas, certa estabilidade etc.) que parece mnemônicas espontâneas tendem a ser enganosas)
inadequada para captar a enorme multiplexidade, muito depois de Cristo: “Honrar um pensador
flexibilidade, fluidez, contingência e instabilidade não é elogiá-lo, nem mesmo interpretá-lo, mas
das relações sociais contemporâneas em tempos de discutir sua obra, mantendo-o, dessa forma, vivo e
globalização acentuada e capitalismo mundial pós- demonstrando, em ato, que ele desafia o tempo e
-fordista em expansão. Não deixa de ser sintomáti- mantém sua relevância” (Castoriadis).
co do atual Zeitgeist, nesse sentido, que a sociologia
francesa pós-bourdieusiana tenha jogado as “redes
e rizomas” contra as “estruturas”, substituindo as Notas
“relações estruturais entre posições” pelas “relações
intersubjetivas que tecem redes” (Vandenberghe, 1 Como a definição apresentada no início do texto
2006, p. 31). permite entrever, o próprio espaço das classes sociais
pode, na verdade, ser tomado como um campo.
2 Veremos mais adiante que essa problemática é central
Conclusão em diversas discussões críticas quanto ao sucesso do
projeto teórico-sintético de Bourdieu, em particular
no que tange à alcunha de neo-objetivista comumente
Recentemente deparei-me com uma coletânea
dirigida contra ele. Além disso, a questão também é
de ensaios de Bobbio (lúcidos, como de costume) fulcral para a compreensão das dessemelhanças entre
sobre Marx e o(s) marxismo(s) intitulada Nem o seu quadro teórico-metodológico e a (similar sob
com Marx, nem contra Marx (2006). Embora este outros aspectos) teoria da estruturação de Giddens,
título aponte saudavelmente para a necessidade de a qual, a despeito de não pretender reduzir a ciência
escapar à alternativa maniqueísta entre a adora- social à sua dimensão interpretativa, postula para esta
ção e a ojeriza diante da obra marxiana, não pude um ponto de partida necessariamente hermenêutico
deixar de pensar que Bourdieu, de resto em pleno (Giddens, 1978, p. 170; para uma análise mais deta-
acordo quanto à necessidade de superação dessa lhada da perspectiva giddensiana, ver Peters, 2011c;
alternativa entre posições unilaterais (superação no prelo).
Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria… 69

3 Não podemos explorar esse ponto em detalhe aqui práticos, coexistem com a inflação reflexiva dos de-
(ver Peters, 2012), mas esta referência às lutas his- sejos por bens ou objetivos extremamente distantes
tóricas deriva do fato de que Bourdieu trabalha com ou praticamente inacessíveis – desejos que também
uma concepção fundamentalmente conflitual do podem encontrar satisfação compensatória no domí-
universo social. Na sua concepção, relações sociais nio da fantasia.
são sempre relações de força: toda formação socie- 10 O hábito bourdieusiano de buscar os interesses estra-
tária é pensada por ele como um espaço estruturado tégicos subjacentes a valores e normas faz-me lembrar
de relações objetivas de poder entre indivíduos e/ do curso imaginário de verão bolado por Woody Al-
ou grupos situados em posições diferenciais definidas len: “O imperativo categórico – e seis maneiras de
conforme uma distribuição desigual de recursos ma- fazê-lo funcionar a seu favor”.
teriais e simbólicos (ou formas de capital, que podem
11 O próprio fato de que Bourdieu tende a pensar o
ser as mais diversas).
reconhecimento social como resultado de um jogo
4 Rendendo-me ao uso corrente, e com o perdão dos competitivo de soma-zero pode ser devido a uma ge-
leitores ortodoxos, continuarei, daqui em diante, a fa- neralização infundada da noção de campo para desig-
lar dos habitus, ao invés dos habiti. nar os contextos sociais em que os agentes individuais
5 Poder-se-ia falar, talvez, de “micro-histereses” ordinárias. buscam acumular capital simbólico.
6 Considero difícil não ver, na autoanálise do nosso he- 12 Naturalmente, embora todo campo (no sentido de
rói, também uma autobiografia – aliás, com momen- Bourdieu) constitua um sistema social (no sentido
tos comoventes. Graças à escolha da frase “Isto não é de Giddens) ou figuração (no sentido de Elias), nem
uma autobiografia” para epígrafe de seu livro (2005, todo sistema social ou figuração constitui um campo.
p. 36), Bourdieu conseguiu produzir um caso raro de
autobiografia não autorizada.
7 Da clássica inscrição no templo de Delfos: “conhece- Bibliografia
-te a ti mesmo”.
8 Uma condição existencial que pode efetivamente ABOULAFIA, Mitchell. (1999), “A (neo)American
evoluir para uma resistência política ativa, como no in Paris: Bourdieu, Mead, and pragmatism”, in
caso do movimento dos desempregados na França,
Richard Shusterman (org.), Bourdieu: a critical
do qual Bourdieu foi um defensor entusiástico e que
ele veio a descrever, utilizando-se de uma metáfora
reader, Oxford, Blackwell.
religiosa que traía uma confissão dos limites de seu ALEXANDER, Jeffrey. (1995), Fin de siècle social
modelo teórico, como um “milagre social” (Bour- theory: relativism, reduction and the problem of
dieu, 1998, p. 128). reason. Londres, Verso.
9 Quando se trata de lidar com o hiato entre desejos ALEXANDER, Jeffrey & GIESEN, Bernard.
e oportunidades, também vale a pena notar que o (1987), “From reduction to linkage: the long
teorema da adaptação das expectativas às chances view of the micro-macro debate”, in Jeffrey
conta apenas metade da história: a “tensão entre Alexander et al. (orgs.), The micro-macro link,
expectativas e possibilidades não precisa sempre Berkeley/Los Angeles, University of California
resultar em resignação, aceitação e recusa do que é Press.
negado. Ela também pode resultar no anseio pelo que ARCHER, Margaret. (2003), Structure, agency and
é negado ao ator [...]. Dada a impiedosa sedução das
the internal conversation. Cambridge, Cam-
mercadorias, a glorificação do avanço educacional e
bridge University Press.
do sucesso econômico, a pressão para se conformar
ao gênero e para ser popular e atraente, acompanha- . (2007), Making our way through the
das pela insegurança econômica, pela anomia e pela world. Cambridge, Cambridge University
solidão, não surpreende que o anseio não satisfeito Press.
possa ser tão poderoso” (Sayer, 2005, p. 35). Um BOBBIO, Norberto. (2006), Nem com Marx, nem
modelo complexo da subjetividade que envolva tan- contra Marx. São Paulo, Unesp.
to disposições habituais quanto deliberações reflexi- BOURDIEU, Pierre. (1979a), Outline of a theory
vas pode acomodar situações em que a cumplicidade of practice. Cambridge, Cambridge University
comportamental e a resignação, para todos os efeitos Press.
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234  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 28 N° 83

HABITUS, REFLEXIVIDADE E HABITUS, REFLEXIVITY AND HABITUS, RÉFLEXIVITÉ ET


NEO-OBJETIVISMO NA TEORIA NEO-OBJECTIVISM IN PIERRE NÉO-OBJECTIVISME DANS LA
DA PRÁTICA DE PIERRE BOURDIEU’S THEORY OF THÉORIE DE LA PRATIQUE DE
BOURDIEU PRACTICE PIERRE BOURDIEU

Gabriel Peters Gabriel Peters Gabriel Peters

Palavras-chave: Pierre Bourdieu; Teoria Keywords: Pierre Bourdieu; Theory of Mots-clés: Pierre Bourdieu; Théorie de
da prática; Neo-objetivismo; Habitus; practice; Neo-objectivism; Habitus; Re- la pratique; Néo-objectivisme; Habitus;
Reflexividade. flexivity. Réflexivité.

A tentativa de superação da dicotomia The attempt to overcome the subjectiv- L’effort en vue de surmonter l’opposition
subjetivismo/objetivismo está na raiz da ism/objectivism dichotomy is at the root entre le subjectivisme et l’objectivisme
perspectiva praxiológica de Bourdieu, of Bourdieu’s praxeological perspective, est à la racine de la perspective praxéo-
cujo cerne é a relação dialética entre whose core is the dialectical relation logique de Bourdieu, dont le noyau est la
condutas individuais subjetivamente between individual conducts that are relation dialectique entre, d’une part, des
propelidas por disposições integradas subjectively propelled by dispositions conduites individuelles subjectivement
em um habitus, de um lado, e estruturas integrated into a habitus, on the one propulsées par des dispositions intégrées
objetivas ou “campos” de relações entre hand, and objective structures or “fields” dans un habitus et, d’autre part, des
agentes diferencialmente posicionados of relations between differentially po- structures objectives ou « champs » de
e empoderados, de outro. No entanto, sitioned and empowered agents, on the relations entre des agents avec des posi-
esta abordagem tem sido retratada por other. However, this approach has been tions différentes et des pouvoirs inégaux.
críticos como uma versão sofisticada de portrayed by critics as a sophisticated Les critiques ont, néanmoins, désigné
neo-objetivismo e não como uma teoria version of neo-objectivism, rather than cette théorie comme une version sophis-
sintética satisfatória da relação agência/ a satisfactorily synthetic theory of the tiquée du néo-objectivisme et non pas
estrutura. O artigo avalia o sentido desta agency/structure relationship. The article comme une théorie synthétique réussie
crítica, argumentando que ela é parcial- evaluates this critique, defending that de la relation entre action et structure.
mente justificada e defendendo a tese de the main source of neo-objectivism in L’article propose une évaluation du sens
que a principal fonte do neo-objetivismo Bourdieu’s oeuvre stems from his valu- de cette critique et démontre qu’elle est
na obra de Bourdieu deriva de sua ênfase, able, but unilateral, emphasis on the tacit partiellement justifiée. Il soutient la thèse
valiosa porém unilateral, sobre o caráter or “pre-reflexive” character of the opera- selon laquelle la principale source du
tácito ou “pré-reflexivo” da operação do tion of the habitus, which leads him to néo-objectivisme dans l’œuvre de Bour-
habitus, a qual leva-o a uma teorização a theorization that neglects the agentic dieu provient principalement de l’accent
negligente quanto à significação agênti- significance of the actor’s reflexive con- qu’il porte sur la nature tacite ou « pré-
ca da consciência reflexiva do ator. Com sciousness. Finally, based on this diagno- réflexive » de l’opération de l’habitus,
base nesse diagnóstico, o texto delineia, sis, the paper delineates some theoretical ce qui le conduit à une théorisation qui
por fim, alguns percursos teóricos pelos paths through which Bourdieu’s analyti- néglige la signification de la conscience
quais o esquema analítico bourdieusiano cal scheme may be inflected towards a réflexive de l’acteur pour l’action. Grâce
pode ser orientado para um tratamento more genuinely dialectical treatment of à ce diagnostic, le texte indique quelques
mais genuinamente dialético da interde- the causal interdependence between in- parcours techniques grâce auxquels le
pendência causal entre ações individuais dividual actions and social structures. schéma analytique de Bourdieu peut être
e estruturas sociais. dirigé vers un traitement véritablement
dialectique de l’interdépendance causale
entre les actions individuelles et les struc-
tures sociales.

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