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Nº 532 | Ano XIX | 18/3/2019

Veganismo
Por uma outra relação com a vida no e do planeta

Ana Paula Perrota


Frank Alarcón
Alceu Castilho
Jéssika Oliveira
Tainá Alves

Leia também
■ Orlando Calheiros
■ José Claudio Alves
■ Ivana Bentes
■ Reportagem: A vida pelo direito a um lar
EDITORIAL

Veganismo. Por uma outra relação


com a vida no e do planeta

O
ex-Beatle Paul McCartney cunhou uma Jéssika Oliveira, coordenadora da campa-
frase que se tornou célebre ao afirmar nha Million Dollar Vegan no Brasil, organiza-
que, se os matadouros tivessem vidros ção que fez o desafio ao Papa, explica por que
em vez de paredes, as pessoas não comeriam a campanha pelo veganismo foi intensificada
carne. Muitos adeptos do veganismo acolhem nesse período. Ela própria, vegana, acredita que
essa como uma afirmação para indicar a violên- essa é uma forma de se conectar com a Terra.
cia que envolve os abates. Entretanto, ser ve- O Movimento Católico Global pelo Clima -
gano é mais do que não comer carne em razão MCGC também aproveitou a Quaresma para
da forma como os animais são mortos, é uma chamar atenção sobre a relação entre o efeito
recusa a todo o sofrimento a que os animais são estufa e a produção de carne. A jovem universi-
sujeitados não somente para a produção de co- tária Tainá Alves, que integra o grupo, é mili-
mida, mas para qualquer bem de consumo. É tante do veganismo e garante: essa é uma forma
também não humanizar os bichos, respeitando de conversão que nos coloca em conexão com os
-os como parte de um projeto comum. valores cristãos mais elementares.
A revista IHU On-Line debate o tema nes-
O problema da falta de moradia também é
ta edição com especialistas de diversas áreas
pauta deste número. Uma reportagem faz um
do conhecimento.
2 raio-X de quatro ocupações na cidade São Le-
A antropóloga Ana Paula Perrota, profes- opoldo - RS para, além de se confrontar com a
sora na Universidade Federal Rural do Rio de realidade local, apreender esse que hoje ainda é
Janeiro - UFRRJ, observa que se recusar a con- um problema de primeira ordem no Brasil.
sumir carne põe em xeque a própria ideia que se
Por sua vez, Orlando Calheiros, antropólo-
tem de humanidade, dada a relação que se esta-
go, e Ivana Bentes, professora associada do
belece com o alimento. Ela implica na busca de
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
uma outra ética.
da UFRJ, refletem sobre o evento Carnaval nos
Frank Alarcón, biólogo, ativista e protetor tempos complexos da contemporaneidade da
dos Direitos dos Animais, ressalta a perspectiva sociedade brasileira. José Cláudio Alves, so-
política do veganismo. Segundo ele, esta opção ciólogo, a partir da prisão de dois acusados do
“apresenta-se como um projeto de coerência en- assassinato de Marielle Franco, disserta sobre a
tre discurso e prática, respeito com o meio am- ascensão das milícias no Rio de Janeiro.
biente e todos os seres sencientes no planeta”.
A todas e a todos uma boa leitura e uma exce-
Alceu Luís Castilho, jornalista, que acom- lente semana.
panha de perto as tensões geradas a partir da
ideia de agronegócio, problematiza e defende
que a preservação do planeta não deve se cen-
trar apenas em questões de consumo. Para ele,
é preciso combater as lógicas mercadológicas
que expropriam os recursos naturais ao longo
de toda a cadeia.
Neste ano, o tema também apareceu nas refle-
xões em torno da Quaresma, compreendido tam-
bém como tempo de conversão. O próprio Papa
Francisco foi convidado a adotar práticas vega-
nas, conforme informa a seção ‘Notícias do Dia’,
Foto de capa:
no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU Campanha da ONG
(as reportagens podem ser acessadas em http:// Animal Equality
bit.ly/2UzPRLA e http://bit.ly/2O2U4Vs). Brasil pelo direito dos
animais

18 DE MARÇO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Agenda
8 ■ Ricardo Machado | A vida pelo direito a um lar
12 ■ Tema de capa | Ana Paula Perrota: Veganismo: por uma outra ética humana que valorize
a história dos animais
19 ■ Tema de capa | Frank Alarcón: Ser vegano é lutar contra opressão dos vulneráveis
27 ■ Tema de capa | Jéssika Oliveira: Conhecer o alimento é fundamental para se conectar
ao planeta

32 Tema de capa | Tainá Alves: O veganismo como conversão e a conexão com outras formas
de vida

36 Tema de capa | Alceu Luís Castilho: Preservação do planeta deve ir além de uma dieta
sem carne

40 Orlando Fernandes Calheiros Costa | O apogeu da resistência alegre e
da consciência política na passarela do samba
47 ■ Ivana Bentes | ’Capitalismo gore’ e a carnavalização da política
52 ■ José Cláudio Alves | As milícias crescem velozmente por dentro do Estado
57 ■ Publicações | Alain Gignac: Mistério da economia (divina) e do ministério (angélico)
58 ■ Publicações | Mário José Maestri Filho: A Campanha da Legalidade e a radicalização do PTB
na década de 1960. Reflexos no contexto atual 3
59 ■ Outras edições

Diretor de Redação
Inácio Neutzling
(inacio@unisinos.br)
Coordenador de Comunicação - IHU
Ricardo Machado – MTB 15.598/RS
(ricardom@unisinos.br)
Jornalistas
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(joaovs@unisinos.br)
ISSN 1981-8769 (impresso)
Patricia Fachin – MTB 13.062/RS
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Revisão
Carla Bigliardi
A IHU On-Line é a revista do Institu-
to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Projeto Gráfico Av. Unisinos, 950 | São Leopoldo / RS
publicação pode ser acessada às segun- Ricardo Machado CEP: 93022-000
das-feiras no sítio www.ihu.unisinos.br e Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128
no endereço www.ihuonline.unisinos.br. Editoração e-mail: humanitas@unisinos.br
Gustavo Guedes Weber
Atualização diária do sítio Diretor: Inácio Neutzling
A versão impressa circula às terças-fei- Gerente Administrativo: Nestor Pilz
Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia (nestor@unisinos.br)
ras, a partir das 8 horas, na Unisinos. O Fachin, Cristina Guerini, Evlyn Zilch,
conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Anielle Silva, Stefany de Jesus Rocha e
Wagner Fernandes de Azevedo.

EDIÇÃO 532
TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana.

A crise do Haiti é reflexo da corrupção com


endosso internacional
“O sociólogo haitiano Laënnec Hurbon afirma que os haitianos estão
“presos na ilusão de um estado ao qual atribuímos uma soberania que é
uma quimera”. Segundo Hurbon, a corrupção e o endosso da comunidade
internacional se refletem na atual crise do governo.”
Laënnec Hurbon, sociólogo, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica de Paris - CNRS e
professor da faculdade de Ciências Humanas da Université d’Etat d’Haiti. Disponível em http://bit.ly/2HiT6nK

A perestroika brasileira é absolutamente


descabida
“Implantado o modelo ultraliberal, o Estado ficará completamente amar-
rado, incapaz de fazer o que quer que seja para minorar o quadro de ano-
mia social, que já existe, mas que se agravará sobremaneira”
Leda Paulani, livre-docente junto ao Departamento de Economia da FEA-USP e professora do
Departamento de Economia e da Pós-graduação da FEA/USP. Disponível em http://bit.ly/2FaaOrm.

4 Estímulo à exploração de terras indígenas


visa ao franqueamento para o agronegócio
“Por trás deste suposto estímulo à exploração de terras indígenas, há o
franqueamento de uma quantidade imensa de terras públicas para a pro-
dução por valores irrisórios pelo agronegócio.”
Marco Antônio Delfino de Almeida, procurador do Ministério Público Federal de Mato Grosso do
Sul. Disponível em http://bit.ly/2TJDiQF.

O projeto anticrime agiganta o poder


persecutório e punitivo do Estado
“É preciso sempre lembrar que são pobres a quase totalidade dos mortos
e feridos por excessos policiais”
Adriano Pilatti, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, doutor
em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ e professor
do Departamento de Direito da PUC-Rio . Disponível em http://bit.ly/2HzmZQ6.

Dom Ivo Lorscheiter e a conversão pelos


perseguidos e injustiçados nos Anos de Chumbo
“O legado de dom Ivo ressoa tanto nos pedidos do papa Francisco por
‘pastores com cheiro das ovelhas’, quanto nos projetos que impulsionou na
sua diocese”.
Thiago Torres, graduado em Filosofia pela Faculdade Palotina de Santa Maria - FAPAS e licenciado e
mestre em História pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Disponível em http://bit.ly/2FcxohL.

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Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

15/3 – A greve global “A prisão dos supostos A Igreja Católica está


dos adolescentes assassinos de Marielle é do lado dos indígenas”.
pelo clima só um ‘cala a boca’ para Entrevista com Eduardo
a sociedade” Viveiros de Castro

Os adolescentes puseram- “Para José Cláudio Souza O ataque aos povos indíge-
se em marcha, vêm fazendo Alves, a prisão dos dois sus- nas do Brasil representa um
desde novembro manifesta- peitos é apenas um ‘cala a ataque ao ecossistema glo-
ções crescentes e marcaram boca’ para a sociedade, já que bal e por isso não deve preo-
uma greve global para a a investigação ainda não res- cupar apenas os brasileiros,
próxima sexta-feira, dia 15 pondeu à principal pergunta sustenta o antropólogo Edu-
de março, em protesto con- que ecoa há um ano em pro- ardo Viveiros de Castro
tra a cumplicidade ou omis- testos nas ruas, em redes so- Reportagem de Bruno Horta, pu-
são dos adultos no que se re- ciais e até no carnaval: Quem blicada por Observador, 07-3-2019,
fere à crise climática. mandou matar Marielle?” disponível em bit.ly/2Tx1yWZ.

Artigo é de Luiz Marques, publicado Entrevista de Joana Oliveira, publicada


por Jornal da Unicamp, em 13-03-2019 por El País, 14-3-2019, disponível em
disponível em bit.ly/2Cj4YSq. bit.ly/2ucFtxy.

Na ONU, indígena critica #FridaysForFuture, tudo Francisco, seis anos


política “integracionista, que você precisa saber depois: que há de
colonialista e racista” sobre a greve mundial bom, de mau e de
de Bolsonaro pelo clima misericordioso

Em discurso durante a 40ª Jovens, conscientes, zan- Para Francisco, a Igreja


Sessão do Conselho de Direi- gados e determinados. Na não é um clube de campo
tos Humanos da Organização linha de frente com banners para os bons e os belos. Pelo
das Nações Unidas (ONU), escritos à mão para pedir contrário, é uma ‘Igreja po-
em Genebra, o indígena Ava- aos poderosos do mundo que bre para os pobres’, um ‘hos-
nilson Karajá criticou as po- não lhes “roubem o futuro”. pital de campanha’ para os
líticas indigenistas adotadas Em todo o mundo, estima-se feridos. É por isso que ele
pelo governo Bolsonaro. Ele que em cerca de 150 países, enfatiza a compaixão e a mi-
denunciou o desmantelamen- na sexta-feira 15 de março, sericórdia.
to da Fundação Nacional do milhares de estudantes farão Artigo de Thomas Reese, publica-
Índio (Funai), a mudança nas greve da escola pelo clima. do por Religion News Service, em
demarcações de terras indí- Reportagem de Giacomo Talignani,
13-3-2019, disponível em http://bit.
ly/2O7RKMW.
genas e o “o discurso de ódio publicada por La Repubblica, em 12-3-
e a depreciação do governo 2018, disponível em bit.ly/2W1H5Gm.
pelos povos indígenas”.
Reportagem de Tiago Miotto, publica-
da por Conselho Indigenista Missio-
nário – CIMI, em 11-3-2018, disponível
em bit.ly/2O0FA8F.

EDIÇÃO 532
AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

Exibição e debate Ciclo de Debates O contexto mundial


do filme Uma noite Políticas Públicas no da Revolução 4.0 e as
de 12 anos atual contexto brasileiro. (não) escolhas
Estado, Democracia e do Brasil
Políticas Públicas

20/mar 21/mar 25/mar


Horário Horário Horário
17h 17h30 19h30
Conferencista Conferencista Conferencista
Prof. Dr. Carlos Gadea – Prof. Dr. Róber Iturriet Profa. Dra. Maria Lídia
Unisinos Ávila – UFRGS Rebello Pinho Dias
Scoton – USP
Local Local
Salas TEDU 803 e 804 Sala Ignacio Ellacuría e Local
Unisinos Campus Companheiros – IHU Sala Ignacio Ellacuría e
Porto Alegre Campus Unisinos Companheiros – IHU
São Leopoldo Campus Unisinos
São Leopoldo

6
Oficina de Dados Ciclo de Debates Ética e economia.
e análises sobre a Políticas Públicas no Unindo Teoria dos
Região Metropolitana atual contexto brasileiro. Sentimentos Morais e
de Porto Alegre Políticas públicas, gestão Riqueza das Nações,
e participação de Adam Smith

26/mar 26/mar 27/mar


Horário Horário Horário
9h 19h30 19h30
Conferencista Participante Conferencista
Equipe do Observasinos Prof. Dr. Rudá Ricci – Insti- Profa. Dra. Angela Ganem
tuto Cultiva – BH/MG – UFRJ
Local
Sala de Informática Local Local
Unisinos Campus Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Porto Alegre Companheiros – IHU Companheiros – IHU
Campus Unisinos Campus Unisinos
São Leopoldo São Leopoldo

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A juvenilização da A formação e Ficção e imagens


sociedade contemporânea os saberes das de Jesus no Cinema
e seus impactos juventudes. Gerações, (Videoconferência)
nas representações tecnologias, youtubers
geracionais e subjetividades

28/mar 28/mar 30/mar


Horário Horário Horário
17h30 19h30 9h
Conferencista Conferencista Conferencista
Profa. Dra. Renata Cristina Profa. Dra. Renata Cristina Prof. Dr. Luiz Antônio Vadi-
de Oliveira Tomaz – UFF de Oliveira Tomaz – UFF co – Universidade Anhem-
bi Morumbi – SP
Local Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Local
Companheiros – IHU Companheiros – IHU Sala TEDU 807 e 808
Campus Unisinos Campus Unisinos Unisinos Campus
São Leopoldo São Leopoldo Porto Alegre

7
A paixão de Jesus Seminário Políticas As falas populares
Cristo no cinema. Uma Públicas, sujeitos e numa nova história da
visão comparada (des)construção literatura brasileira
de filmes da democracia

30/mar 02/abr 03/abr


Horário Horário Horário
10h30min 13h30 19h30
Conferencista Conferencista
MS Marcus Mello – Local Prof. Dr. Luís Augusto
Cinemateca Capitólio – Salas TEDU 807, 808, 809 Fischer – UFRGS
Porto Alegre – RS e 810 | Unisinos Campus
Porto Alegre Local
Local Sala TEDU 807 e 808
Sala TEDU 807 e 808 Unisinos Campus
Unisinos Campus Porto Alegre
Porto Alegre

EDIÇÃO 532
REPORTAGEM

Santa Fé é o nome de uma das ruas da Ocupação Steigleder que foi dado pelos próprios moradores | Foto: Ricardo Machado/IHU

8 A vida pelo direito a um lar


Em São Leopoldo, região metropolitana de Porto Alegre/RS, mais de dez mil
famílias enfrentam a luta diária por habitação digna
Ricardo Machado

Diante da pergunta “sua casa é precária, início com o “muito boa”.


regular, boa ou muito boa?”, o que você res-
Durante mais de oito horas uma equipe
ponderia? A maior parte das respostas das
multidisciplinar da missão Em defesa da
mais de dez mil famílias que vivem em áre-
moradia digna nas ocupações de São Le-
as de ocupação em São Leopoldo é a última.
opoldo-RS, composta por profissionais das
A realidade, no entanto, mostra-se um pou-
mais diversas áreas, do Direito à Educação,
co mais complexa. Isso porque pessoas que
da Administração ao Serviço Social, visi-
vivem em habitações de apenas uma peça,
taram quatro ocupações na quinta-feira,
construídas com materiais velhos e suca-
14/3. Ao contrário do imaginário comum,
tas classificam a própria casa como “muito
em que tais moradores são vistos como in-
boa”. Some-se a isso o acesso absolutamen-
vasores, o maior desejo das famílias é fazer
te precário à água potável e saneamento
a regularização fundiária e o pagamento
básico, bem como instalações elétricas de
de seus lotes, mas empecilhos jurídicos e a
baixíssima segurança que, não raro, oca-
especulação imobiliária transformam a ta-
sionam acidentes fatais. No entanto, esses
refa, que é antes de tudo um direito consti-
locais de habitação são mais do que casas,
tucional, em um verdadeiro suplício.
são lares onde os moradores alimentam
sonhos e esperanças de que o poder públi- Esta missão assume um modelo meto-
co lhes conceda o direito constitucional à dológico internacional, em que a primeira
moradia digna. As casas, por mais simples parte integra a visita às comunidades e a
que pareçam, transformam-se em lar e isso, segunda conta com visitas ao poder pú-
entre outras razões, explica por que a maior blico em busca de um posicionamento em
parte dos moradores responde à questão do defesa dos direitos constitucionais estabe-

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lecidos com relação aos casos relatados. Reunidos na ponta da rua “Santa Fé”,
A seguir apresentamos, de maneira muito nome dado por um morador local, o se-
breve, a situação das quatro ocupações vi- cretário de Habitação de São Leopoldo,
sitadas em São Leopoldo. Os dados apre- Nelson Spolaor, somou-se aos integran-
sentados têm como fonte os movimentos tes da Missão com os moradores locais
de ocupação, que consolidam as informa- e falou sobre a situação em relação à
ções para prestar contas ao poder público. prefeitura. “A região estava incluída em
um projeto do Minha casa, minha vida,
Ocupação Steigleder mas como hou-
ve congelamen-
Famílias: 211
to de gastos e
Trabalho: maior parte catadora de ma- a mudança das
terial reciclável estruturas fede-
rais, os minis-
Renda Média: R$ 300
térios, o repas-
Área: 4 hectares se de recursos
Urbanização: nenhuma para estas obras
está em suspen- Santa Fé é o nome de uma das ruas
Água: não existe serviço de água potável. da Ocupação Steigleder que foi
so”, justificou o dado pelos próprios moradores|
Os moradores buscam água a um quilômetro secretário. Na Foto: Gabriel Ost/AgexCom
Saneamento básico: nenhum prática, o gover-
no federal que
Iluminação: não existe suspendeu o nível 1 do programa Minha
Rede elétrica: não existe Casa, Minha Vida, tema que voltou ao
debate durante audiência pública reali-
Moradias: com condições precárias zada na noite de sexta-feira.
Risco ambiental: Localização à beira Além da absoluta falta de urbanização na 9
de uma vala de drenagem, suscetível às área, serviços básicos de educação e saú-
inundações. de devem ser procurados no bairro vizi-
Coleta de resíduos: não existe nho, mas a escola, por exemplo, fica a pelo
menos dois quilômetros de distância e os
Saúde: precária (Sem endereço / Sem
atendimentos no posto de saúde se tornam
Estratégia de Saúde da Família). Unidade
um pouco mais difíceis pela ausência de
Móvel com presença mensal com 13 atendi-
comprovante de renda. Entretanto, a cada
mentos pelo serviço médico/odontológico)
15 dias uma unidade móvel de saúde vai
Escolas: distantes a quase 2 quilômetros ao bairro para o atendimento de 13 fichas
Assistência Social: não existe atendi- para clínico geral, o que é absolutamente
mento no local. As pessoas e famílias vão insuficiente para a realidade local.
buscar o atendimento no CRAS Nordeste
Ocupação Vitória
Processo judicial: mediação pelo CEJUSc
Famílias: 245
Altair José Silva, 45 anos, trabalha como
catador de material reciclável. Pai de quatro Urbanização: Parcialmente urbanizada
meninas, mora na ocupação há cinco anos
Água: sem acesso
e pesquisou na Internet alguma forma em
que pudesse ajudar a própria comunidade Saneamento básico: nenhum
a melhorar suas condições de vida e desco-
Iluminação: Pública parcial
briu a Constituição, mas, como ele mesmo
diz, não conseguiu ir muito adiante na com- Rede elétrica: inexiste
preensão porque estudou até a quarta série.
IPTU: Pagamento do IPTU pela comuni-
“Em 2017 queimamos pneus na estrada
dade em 2018
para chamar atenção para nossa situação e
no mesmo ano fizemos uma passeata pací- Trabalho: variados, maior parte dos
fica na Rua Grande (Av. Independência, no moradores trabalham fora de casa
centro de São Leopoldo), apesar das pesso-
Moradia: precária
as nos insultarem, para que todos pudes-
sem conhecer nossa situação”, conta Altair. Renda Média: R$ 900

EDIÇÃO 532
REPORTAGEM

Serviços: As famílias acessam a rede edu- tadas esta é a única que teve um apoio mais
cacional, socioassistencial e de saúde local concreto do poder público, mas ainda por
ser realizado. Iniciada em 2014, a ocupação
Área: 3,5 hectares
que foi feita em uma “área verde” do muni-
Processo judicial: mediação pelo CEJUSc cípio, que corresponde a uma área pública,
teve uma coesão maior dos moradores, o
A Ocupação Vitória fica em uma região
que acabou ajudando
com mais acesso à água e saneamento bá-
no processo de pressão
sico. Diferentemente da Ocupação Steigle-
ao poder público. “A
der, as pessoas estão mais integradas à Vila
única condição que es-
Brás, bairro que circunda a ocupação. Esta
tabelecemos às pessoas
certa “centralidade” favorece o acesso a
que queriam lotes na
serviços básicos de abastecimento de água
ocupação era que parti-
potável e iluminação, ainda que de forma
cipassem das reuniões”,
não oficial. Cissiane da Rosa, 31 anos, é
explica Cleusa Lange-
uma das moradoras mais articuladas na Ocupação Cerâmica Anita deve ser re-
mann, 33 anos, uma das
organização da ocupação. Como a maior gularizada pela prefeitura nos próximos
líderes do movimento meses | Foto: Gabriel Ost/AgexCom
parte dos moradores está no trabalho du-
de ocupação.
rante o dia, Cissiane fica responsável por
mobilizar as famílias e fazer a gestão da Spolaor, que também visitou a ocupação,
pequena sede da associação de moradores disse que já há aporte financeiro da prefei-
que acaba reunindo informações e docu- tura para a organização das ruas, dos lotes,
mentações para prestar contas sobre como do meio-fio e obras mínimas de infraestru-
andam as questões junto ao poder público. tura, como de instalação da rede de esgoto
“No último ano nos reunimos e, com muito e de água potável. “Cada um gastará o que
esforço, pagamos o IPTU da área. Temos pode para fazer sua casa. Ainda faremos
o comprovante do pagamento, foram mais um mutirão para reutilizar material de
10 de R$ 12 mil. Aqui, ninguém quer nada de casas de madeiras cujos moradores cons-
graça, queremos o direito à moradia digna, truirão novas casas de alvenaria”, explica
por isso queremos pagar um valor que seja Cleusa. Após o início das obras por parte
justo”, assevera Cissiane. da prefeitura, que ainda não iniciaram, a
previsão é quem em 90 dias tudo esteja
A região, que compõe três ruas, abriga 245
concluído.
famílias. A exemplo da Ocupação Steigleder,
há projetos aprovados junto ao governo Fe-
Ocupação Justo
deral, do Minha casa, minha vida, mas sem
aporte de recursos e sem previsão. Famílias: 2.500

Ocupação Cerâmica Anita Urbanização: nenhuma


Água: sem acesso
Famílias: 68
Saneamento básico: nenhum
Urbanização: nenhuma
Iluminação: inexistente
Água: sem acesso
Rede elétrica: inexistente
Saneamento básico: nenhum
Trabalho: maior parte dos moradores
Iluminação: pública parcial
trabalha fora de casa e parte são catadores
Rede elétrica: inexiste de material reciclável
Trabalho: variados, parte dos morado- Serviços: moradores acessam o serviço,
res trabalham fora de casa e parte são ca- algumas situações pontuais os serviços vão
tadores de material reciclável. até o território
Renda Média: R$ 900 Moradia: construções variadas, algu-
mas muito precárias
Serviços: As famílias acessam a rede
educacional, socioassistencial e de saúde. Renda Média: variado
Moradia: precárias Área: 44 hectares
No outro lado da cidade fica a Ocupação Processo judicial: mediação pelo CE-
Cerâmica Anita. Das quatro ocupações visi- JUSc

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Existente há 20 anos, a Ocupação Justo para ouvir as demandas das pessoas que
reúne o número mais expressivo de fa- vivem nas ocupações. Nós queremos mos-
mílias de todas as ocupações da cidade, trar para o judiciário, que no dia a dia não
mais de dez vezes maior que a média opera diretamente com estas questões, que
das outras ocupações, somando mais de há um outro direito possível, com uma sé-
2.500 residências. Em um encontro que rie de resoluções que protegem as pessoas
se realizou no início da noite, mais de em situação de ocupação”, afirma Muller.
uma centena de moradores foram à Ten-
Seu xará, Cristiano Schumacher, da Di-
da do Encontro, onde foram discutidos
retoria Estadual do Movimento Nacional
os rumos da ocupação. Fábio Simplício,
de Luta pela Moradia - MNLM, faz um
35 anos, morador da ocupação há cinco
trabalho intenso nas ocupações de todo o
anos, abriu a noite de diálogos convo-
Rio Grande do Sul. Presente durante todas
cando os moradores a participarem dos
as visitas do dia, fez questão de falar ao
debates e se cadastrarem para terem
microfone. “Todos aqui têm uma missão:
mais força política junto ao poder públi-
conseguir o cadastro de mais duas famí-
co. “Nós só temos um objetivo, defender
lias. Não precisa se associar à cooperativa
nossa casa. Aqui não é do jeito que a gen-
se não quiser, mas precisa fazer o cadas-
te sonha, mas podemos transformar esse
lugar no jeito que a gente quer”, provoca tro para que possamos ter força diante do
Simplício. “Se 99% dos moradores se ca- judiciário. Essa é a nossa força”, pondera
dastrarem, a gente consegue pressionar Schumacher, que desde a década de 1990
o juiz”, complementou. milita em favor de moradias dignas para as
populações em situação de vulnerabilida-
Jucimara Flores, 40 anos, também mo- de social.
radora da Justo há cinco anos, trabalha
no brechó da Tenda do Encontro, cuja Ao fim do encontro os moradores toma-
renda é revertida para as crianças do ram suas cadeiras e voltaram para suas
bairro, e faz o cadastro dos moradores. casas. A luta, no entanto, renasce a cada
nascer do sol. Se as noções de casa “muito 11
“Uma das nossas maiores dificuldades é
convencer pessoas da comunidade que a boa” variam, as de lar tendem a ser menos
nossa luta pela moradia ainda não está plásticas. Dizem respeito ao lugar onde se
ganha. Precisamos cadastrar a maior encontra a possibilidade de ter paz, mes-
parte dos moradores para convencer o mo que a sombra do medo de ser despe-
judiciário que estamos dispostos a pa- jado aterrorize, mesmo diante do receio
gar por nossa moradia, que somos or- de ter sobre as paredes da casa uma con-
ganizados e que estamos mobilizados”, cha de escavadeira, que desce com força
revela. Embora a mobilização de todas destrutiva do peso de uma assinatura em
as famílias da ocupação ainda seja um folha de papel. A luta pela moradia não
desafio, as que estão no movimento de- é uma briga pela propriedade privada em
monstram uma coesão bastante forte. seu sentido vulgar, capitalista, comercial.
A prova disso é que, em uma audiência Não se resume ao verbo ter, trata-se de
de conciliação, o judiciário propôs uma uma batalha por algo que também pode
indenização a 12 famílias que entraram ser resumido em três letras, mas em um
com processo de usucapião da área, que sentido existencial profundo, trata-se da
a propósito está com impostos em atra- luta por aquilo que chamamos, simples-
so, mas se negaram a aceitar o acordo mente, de “lar”.
porque não era extensivo às outras mais
de 2 mil famílias. A indenização, con- Audiência pública
tudo, referia-se tão somente às edifica-
A ‘Missão’ se realizou no dia 15 de mar-
ções, não à área de terra, que é a princi-
ço de 2019, depois de dois dias de visitas
pal luta do movimento.
às ocupações e às autoridades públicas,
Cristiano Muller, advogado do Centro de com uma Audiência Pública realizada no
Direitos Econômicos e Sociais - CDES que Auditório Central da Unisinos. O audi-
participou de toda a missão, lembrou que tório, que comporta 320 pessoas, estava
o maior número de denúncias ao Conselho totalmente lotado com a presença maci-
Estadual de Direitos Humanos foi de vio- ça de mulheres, homens, jovens e muitas
lações a direitos fundamentais em áreas crianças, das quatro ocupações visitadas
de ocupação no Estado. “O Conselho serve no dia anterior.■

EDIÇÃO 532
TEMA DE CAPA

Veganismo: por uma outra ética humana


que valorize a história dos animais
Ana Paula Perrota observa que não consumir carne significa
abdicar da própria ideia que se tem de humanidade
João Vitor Santos

A
antropóloga Ana Paula Perrota então na combinação das dimensões
problematiza o que consiste em pública e privada do engajamento indi-
optar pelo modo de vida vegano vidual em favor dos animais. E reflete
a partir da relação que se tem com o que a ‘causa animal’ é defendida não
alimento. “O ato de se alimentar de car- apenas enquanto uma virada moral, ao
ne produz e encontra sentido no modo igualar o status de humanos e não hu-
como definimos a nós mesmos como manos enquanto sujeitos de direitos”.
humanos, e no modo como nos situa-
Logo, em alguma medida, ser vegano
mos no mundo”, observa, na entrevista
é assumir uma outra condição de hu-
concedida por e-mail à IHU On-Line.
mano não para humanizar os animais,
Para ela, “fazer da carne fonte de ali-
e sim conceder a eles a possibilidade
mento, ou negar que o corpo do animal
de vida digna. Ou, como a antropólo-
possa ser transformado em comida, mo-
12 ga formula, é lutar “para que a história
biliza um universo de usos e significados
animal também seja contada. Tanto a
integrados às relações pessoais que no
partir do seu reconhecimento como su-
limite alcançam a própria definição do
jeitos, quanto através de uma luta polí-
humano”. Assim, pensar o animal não
tica por justiça e direito”.
como comida, ou algo coisificado para
o consumo, eleva humanos e animais ao Ana Paula Perrota é docente do De-
mesmo patamar. “A interdição do con- partamento de Ciências Administrativas
sumo de carne fundamentada em outra e Sociais do Instituto da Universidade
percepção sobre os animais confronta Federal Rural do Rio de Janeiro - UFR-
também a percepção que temos sobre RJ e professora também do Programa
nós mesmos”, acrescenta. de Pós-graduação em Desenvolvimento
Além disso, Ana Paula lembra que Territorial e Políticas Públicas, na mes-
adotar o veganismo não significa ape- ma instituição. Doutora e mestra em
nas não comer carne, mas rejeitar toda Sociologia e Antropologia pela Universi-
e qualquer prática que possa causar dade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
algum tipo de sofrimento a outro. “Ser em 2015 finalizou a pesquisa intitulada
vegano não significa apenas uma forma Humanidade estendida: a construção
de ativismo individual ao boicotar cer- dos animais como sujeitos de direitos.
tos produtos e serviços, mas significa O objetivo foi compreender a elaboração
principalmente atuar politicamente em de uma política multiespécie, que visa
torno da ‘causa animal’”, analisa. Ou conferir aos animais a mesma conside-
seja, realinha também a ideia de indi- ração moral atribuída aos humanos.
vidual e coletivo. “O veganismo resulta Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compre- nismo deve ser entendimento projeto epistemológico, político e in-
ende o veganismo e no que con- como projeto moral? dividual que tem como objetivo prin-
siste a ideia de veganismo como Ana Paula Perrota – Em linhas cipal a reivindicação de que a vida de
um projeto ético? Ou o vega- gerais, o veganismo consiste num humanos e animais seja igualmente

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REVISTA IHU ON-LINE

“O veganismo, tal como é construído


e levado à frente pelos militantes
da ‘causa animal’, consiste e pode
ser compreendido como um
projeto bem mais complexo”

protegida e considerada como in- transformação do status animal de fazem parte da comunidade moral
violável. Ou seja, reivindica-se que objeto para sujeito. Sem considerar dos humanos e, por isso, sua exis-
assim como os humanos os animais a moral como uma instância prede- tência tem valor em si mesma, e não
também sejam sujeitos de direitos. finida que regula nossas relações, deve servir para atender aos desíg-
mas tratando-a como um conjunto nios humanos. Mas, ao mesmo tem-
Tratando de forma prática, o que
de regras e sanções baseadas na ação po, esses argumentos só possuem
isso significa? Em termos individu-
de grupos sociais, vemos que o vega- sentido se a moral se transformar
ais, que todos nós sejamos capazes nismo coloca em cheque a nossa mo- num domínio ligado também aos
de tomar a decisão de nos abster de ral hegemônica, que faz dos animais animais. Portanto, para incluir os
quaisquer produtos, serviços e ativi- seres (a)morais. animais nessa dimensão, os defen-
dades que façam uso de animais: na
sores alargam também a fronteira do
alimentação, no entretenimento, no Ampliação da fronteira mo- que entendemos como humanitário
vestuário, em medicamentos, cos- ral e contam com as disposições básicas
méticos, etc... Em termos políticos, o
da moralidade para nos convencer a 13
veganismo reivindica o surgimento Compreendendo em termos filosó-
agir com responsabilidade sobre a
de novas leis, principalmente proi- ficos que a moral está ligada às ideias
vida dos animais, nos termos como
bitivas, ou um movimento na socie- de responsabilidade e justiça, vemos
defendem: que nos abstemos de
dade para que seja banido o uso de que o veganismo busca incluir tam-
todo qualquer uso desses seres.
animais em circos, rodeios, vaque- bém os animais nesse âmbito. E é
jadas, a existência de zoológicos, o justamente aí que reside o que seria
Perturbação filosófica
uso de animais em rituais religiosos, o caráter complexo do movimento,
a venda de animais domésticos, a pois na modernidade a moral con- O veganismo é então complexo
experimentação científica com ani- vencionou-se a incluir nessa discus- porque perturba a filosofia política e
mais, bem como o seu uso como re- são sobre responsabilidade e justiça a ideia que temos sobre a moral, que,
curso didático, e lutam também para apenas os humanos. Portanto, mais como discute Bruno Latour1, desde
o aumento da pena para o crime de do que mudanças práticas, as exi- a modernidade exclui os animais,
maus-tratos etc. E todas essas de- gências veganas repousam sobre desestabilizando normas e valores
mandas trazem implicações em dife- uma transformação da moral que básicos que constituem a cultura
rentes áreas da vida social. se liga ao sujeito (humano) e exclui hegemônica da sociedade ocidental.
como alvo de sua preocupação o ob- E nesse sentido, o veganismo, en-
Atualmente, o veganismo ganha jeto (animal). quanto um projeto epistemológico,
espaço no debate público a partir de
Assim, o veganismo não diz respei- político e individual, é também um
uma discussão sobre alimentação
to apenas a uma mudança na moral, projeto moral porque consiste na
vegetariana e vegana. Mas o veganis-
mas de uma ampliação de sua fron- elaboração do que seria a “boa vida”
mo, tal como é construído e levado
teira para incluir novos seres. Todo dos animais e que se faz acompa-
à frente pelos militantes da “causa
o desconforto trazido pelos defenso- nhada de uma prescrição de práti-
animal”, consiste e pode ser compre-
res reside no fato de que entendem e cas fundadas na “ética animalista”
endido como um projeto bem mais
reclamam uma transformação social – como identificam.
complexo. Levando em conta essa
complexidade, a dimensão moral baseada na perspectiva de que hu-
1 Bruno Latour (1947): filósofo francês, é um dos fundado-
tem um papel central nessa discus- manos e animais sejam igualmente res dos chamados Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia
sujeitos de uma vida. (ESCT). É reconhecido, entre outros trabalhos, por sua con-
são. Todas essas reivindicações ci- tribuição teórica - ao lado de outros autores como Michel
Callon e John Law - no desenvolvimento da ANT - Actor
tadas trazem uma discussão sobre Os fundamentos para as demandas Network Theory (Teoria ator-rede) que, ao analisar a ativi-
o que seria o correto a ser feito e dos veganos encontram argumentos dade científica, considera tanto os atores humanos como
os não humanos, estes últimos devido à sua vinculação ao
têm como elemento fundamental a na ideia de que os animais também princípio de simetria generalizada. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 532
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – O que significa tos econômicos e de gosto, mas está bre o “humano” e o “animal”?
para os humanos o ato de ali- ligado também ao sentido de nós
Ana Paula Perrota – E é justa-
mentar-se? mesmos e à nossa identidade cultu-
mente pelo papel simbólico que os
ral. Os alimentos possuem aspectos
Ana Paula Perrota – É possível alimentos possuem que o ato de co-
simbólicos ligados à força/fraqueza,
dizer que desde que o antropólo- mer carne, ou de aderir a uma dieta
refinado/singelo, progresso/deca-
go Claude Lévi-Strauss2 disse que vegetariana, não diz respeito a uma
dência, e ao próprio significado acer-
as espécies naturais não são ape- escolha simples, baseada numa deci-
ca da humanidade/animalidade.
nas boas para comer, mas também são racional. Ao contrário, o ato de
são boas para pensar, tornou-se Desse modo, quando nos questio- se alimentar de carne produz e en-
consensual que a relação entre a namos sobre o ato de comermos, dis- contra sentido no modo como defini-
sociedade e a natureza, e mais es- cute-se que não ingerimos alimentos mos a nós mesmos como humanos,
pecificamente, a nossa relação com simplesmente, mas nos alimenta- e no modo como nos situamos no
a comida, não pode ser entendida mos de uma maneira específica. No mundo. Fazer da carne fonte de ali-
apenas como uma relação utilitaris- que diz respeito então à comida e à mento, ou negar que o corpo do ani-
ta. Definimos a comestibilidade ou produção de alimentos, é preciso lo- mal possa ser transformado em co-
não comestibilidade dos alimentos, calizá-los na sociedade, uma vez que mida, mobiliza um universo de usos
bem como o papel que ocupam em produzimos alimentos não para se- e significados integrados às relações
nossas práticas alimentares para res biológicos apenas, mas para su- pessoais que no limite alcançam a
além do que seriam nossas necessi- jeitos sociais específicos. própria definição do humano. Por-
dades biológicas, ou interesses in- tanto, a interdição do consumo de
dividuais, mas também através de carne fundamentada em outra per-
uma razão cultural. Conforme nós
humanos não somos apenas seres “Todo o cepção sobre os animais, confronta
também a percepção que temos so-
biológicos ou indivíduos atomiza-
dos que agem racionalmente, mas desconforto bre nós mesmos.
Conforme as escolhas alimenta-

14
fundamentalmente sujeitos sociais,
o ato de alimentar-se é orientado a trazido pelos res possuem razões culturais, es-
colhemos o que comer pensando
partir do seu papel simbólico. Por-
tanto, muitos autores discutem so-
defensores na identificação com o grupo a que
pertencemos ou ao qual aspiraría-
bre como os alimentos não se ligam
apenas às questões materiais de
reside no mos pertencer. E, de acordo com o

fato de que
entendimento aqui proposto, co-
sobrevivência, mas também com
mer carne está relacionado ao nos-
elementos simbólicos e socialmen-
te construídos. entendem e so entendimento mais fundamen-
tal enquanto ser humano. Como
A partir dessas considerações, é
possível citar trabalhos que tratam reclamam uma já afirmou o antropólogo Tim In-
gold3, o cultivo da natureza apare-
da importância social da farinha de
mandioca no Maranhão, do peixe transformação ce como corolário lógico do cultivo
do homem, de si mesmo e de seu
para as comunidades ribeirinhas do
Amazonas, ou mesmo da carne para
social baseada poder de razão. Sendo assim, re-
jeitar uma dieta carnívora significa
os países ocidentais. O que esses tra-
balhos têm em comum é o esforço de
na perspectiva deixar de cultivar a natureza, o que
significaria então em abdicar da
evidenciar que o ato de alimentar-se,
obviamente, possui importância nu-
de que nossa própria ideia de humanida-
de, ou seja, do que nos torna huma-
tricional, é influenciado por aspec- humanos e nos. Portanto, o ato de comer carne
ou de retirar esse alimento de nos-

2 Claude Lévi-Strauss (1908-2009): antropólogo belga


animais sejam sa dieta não diz respeito apenas a
uma mudança prática. Mas trata-se
que dedicou sua vida à elaboração de modelos basea-
dos na linguística estrutural, na teoria da informação e
na cibernética para interpretar as culturas, que conside-
igualmente de uma transformação dos valores
que norteiam, de modo mais geral,
sujeitos de
rava como sistemas de comunicação, dando contribuições
fundamentais para a antropologia social. Sua obra teve a relação entre sociedade e nature-
grande repercussão e transformou, de maneira radical, o

uma vida”
estudo das ciências sociais, mesmo provocando reações
exacerbadas nos setores ligados principalmente às tradi-
ções humanista, evolucionista e marxista. Ganhou renome
internacional com o livro As estruturas elementares do pa- 3 Timothy Ingold (1948): antropólogo britânico e presi-
rentesco (1949). Em 1935, Lévi-Strauss veio ao Brasil para dente da Antropologia Social da Universidade de Aberde-
lecionar Sociologia na USP. Interessado em etnologia, rea- en. Seus interesses são amplos e sua abordagem acadê-
lizou pesquisas em aldeias indígenas do Mato Grosso. As mica é individualista. Eles incluem percepção ambiental,
experiências foram sistematizadas no livro Tristes Trópicos IHU On-Line – De que forma o linguagem, tecnologia e prática qualificada, arte e arqui-
(São Paulo: Companhia das Letras), publicado original- consumo ou não de carne revela tetura, criatividade, teorias da evolução na antropologia,
mente em 1955 e considerado uma das mais importantes relações homem-animal e abordagens ecológicas na an-
obras do século 20. (Nota da IHU On-Line) a noção que os sujeitos têm so- tropologia. (Nota da IHU On-Line)

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za na medida em que faz do ato de nesses estabelecimentos, e que são


comer carne uma ação moralmente “O veganismo é chamados de “campos de concentra-
condenável porque atentaria con- ção”, é realizada a partir da transfor-
tra a vida animal. então complexo mação ontológica dos animais, ela-

porque
borada pelos veganos e que os insere
Conforme a alimentação carní-
nos termos humanistas que versam
vora se liga de maneira mais pro-
funda do que o entendimento de
nossa identidade cultural, ao en-
perturba a sobre o valor da vida. Nesse sentido,
a crítica vegana sobre a produção e
tendimento que temos enquanto
humanos, entendemos então que
filosofia política o consumo de alimentos de origem
animal ressignifica, por exemplo, o
a explicação sobre a preeminência e a ideia que abate, fazendo dele não um procedi-
mento técnico, mas uma ação moral
da carne em nossa dieta encontra
significado além dos seus aspectos temos sobre condenável: o assassinato. E a carne,
enquanto matéria-prima final, é com-
a moral”
nutricionais e de gosto, mas em di-
preendida como um pedaço do corpo
ferentes e complexos significados,
de um animal morto e não uma fon-
que, dentre eles, dizem respeito ao
te de alimento. Nesse sentido, a de-
predomínio humano sobre a na-
IHU On-Line – Quais as ques- fesa da restrição da carne pressupõe
tureza. A dieta carnívora faz parte
tões de fundo em torno da pro- a consideração de que as atividades
de um modo de vida e de determi-
dução e consumo de alimentos que fazem uso de animais consistem
nadas práticas que articulam todo
de origem animal? em formas de violência e tortura e
um sistema cultural e econômico,
estes seriam fatos inquestionáveis e
baseados na ideia de separação en- Ana Paula Perrota – Do ponto
moralmente injustificáveis.
tre humanos e animais, enquanto de vista da “moral vegana” qualquer
sujeitos e objetos, bem como no uso de animais para fins de satis- Ainda que não seja nos termos
projeto científico-econômico de fação humana é considerado uma reivindicados pelos veganos, é tam-
dominação da natureza. forma de violência contra a vida bém possível falar de uma mudança
animal. Contudo, uma análise sobre pública sobre a sensibilidade com 15
Um outro significado para a crítica vegana a respeito da produ- as condições de vida e morte dos
a carne ção e do consumo de alimentos de animais de produção, pois vemos a
origem animal, notadamente carne, problemática do bem-estar animal
A interdição exigida pelo vega- leite e ovos, nos permite afirmar que transpor as pesquisas científicas e
nismo do abate de animais para a é feita principalmente sobre o siste- serem incorporadas por instâncias
produção de alimentos é baseada na ma industrial de produção animal. governamentais fiscalizadoras e por
atribuição de um novo significado à agentes do mercado. E, consideran-
Esse sistema, inaugurado desde fi-
carne e à prática de se alimentar de do o caso brasileiro, isso se dá jus-
nal do século XIX em países como
bens de origem animal, que conde- tamente por exigências de países
França e Estados Unidos, e que se
na moralmente essa atividade por compradores e também dos consu-
espalhou ao redor do mundo, deter-
serem consideradas cruéis aos ani- midores para que as práticas de bem
minou um novo modo de produção
mais. O veganismo luta para que a -estar animal sejam realizadas em
animal, organizado nos moldes da
história animal também seja conta- toda a rede de produção da carne.
indústria fordista.
da. Tanto a partir do seu reconhe-
cimento como sujeitos, quanto atra- A criação e abate de animais em No entanto, a “lente vegana”, que
vés de uma luta política por justiça escala industrial é alvo então de de- por exemplo faz do abate de animais
e direito. núncias em razão de suas práticas uma forma de assassinato, não é
de criação, manejo, transporte e compartilhada por todos e ao mes-
Nesse sentido, a importância dada mo tempo diz respeito a um sistema
abate dos animais. Essas atividades
à vida animal inaugura um novo de produção e consumo que faz par-
técnicas que estruturam a rede de
modo de entendimento das vidas te do cotidiano de milhões de pesso-
produção da carne são tidas pelos
de humanos e não humanos, e, por- as, sem que estes pensem de algum
veganos como ações que “desani-
tanto, uma confusão a respeito de modo que estão cometendo um cri-
malizam” os animais na medida em
nós mesmos. Sendo assim, embora me ao se alimentar de bens de ori-
que estes seriam tratados apenas
o veganismo traga transformações gem animal ou trabalhar na rede de
como números, contados aos mi-
sobre os sistemas agroalimentares, produção da carne.
lhares e considerados como máqui-
os fundamentos da “moral vegana”
nas a serem ajustadas para melhor
bagunçam também o entendimento Moral vegana questionada
atender aos interesses de rendi-
que possuímos sobre a relação entre
mento econômico.
humanos e animais e que repousa, Desse modo, embora possamos
na modernidade, sobre a separação A descrição dos procedimentos discutir sobre o aumento de adeptos
radical entre natureza e cultura. técnicos realizados com os animais e de produtos veganos nos últimos

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TEMA DE CAPA

anos, não podemos perder de vista e animais são igualmente sujeitos de Ana Paula Perrota – Durante a
que há concomitantemente o au- uma vida. Nesse caso, o veganismo pesquisa feita para a realização do
mento da produção e do consumo de inaugura um novo mal-estar em se Doutorado com os chamados defen-
carne. É possível então afirmar que alimentar de carne na medida em sores dos animais4, compreendi que
o projeto de uma dieta vegetariana, que tornaria o consumo desse bem uma parte importante dessa forma
bem como o compartilhamento da alimentício irreconciliável com a de atuação política consiste no esfor-
“moral vegana”, não faz parte da moral. E nesse sentido, o vegetaria- ço que identifiquei como “militantis-
preocupação de uma parte prepon- nismo ético, pautado no reconheci- mo acadêmico”. Os atores engajados
derante da população brasileira, e mento do valor da vida animal, seria nessa forma de militância fazem da
também de outros países do mundo. impositivo. “causa animal” um projeto intelectu-
al na medida em que visam corrigir
A questão que quero chamar aten- Há ainda outras diferenças, pois o
ção é que a tradução vegana sobre veganismo não faz prescrições ape-
as práticas relacionadas à produção
de alimentos de origem animal não
nas sobre a carne, mas de todos os
bens alimentícios de origem animal,
“Produzimos
é compartilhada pela maioria, as-
sim como é contestada por razões
como leite, ovos e mel. E trata tam-
bém de outros pontos como produ-
alimentos não
culturais e econômicas. Como pude
discutir através de uma pesquisa re-
tos testados em animais, atividades
de serviço e entretenimento que
para seres
lacionada com pessoas que possuem
uma dieta onívora, justifica-se a con-
envolvem animais etc. Além disso,
como os próprios militantes da cau-
biológicos
tinuidade da produção e do consumo
desse bem alimentício seja em razão
sa animal enunciam, outro aspecto
que distingue o veganismo do vege-
apenas, mas
de argumentos naturalistas e bioló-
gicos, que afirmam de um ou de ou-
tarianismo reside no engajamento para sujeitos
político. Nesse caso, ser vegano não
tro modo que animais existem para significa apenas uma forma de ati- sociais
atender aos interesses dos seres hu-
específicos”
vismo individual ao boicotar certos
16 manos, seja em razão da não dispo- produtos e serviços, mas significa
sição em aderir a uma dieta vegeta- principalmente atuar politicamente
riana porque não querem abrir mão em torno da “causa animal”. a moralidade ocidental, por consi-
dos “prazeres da carne”. Ou ainda,
derá-la equívoca ou injusta na me-
por não se considerarem fortes o su- Dimensões pública e privada dida em que teria sido responsável
ficiente para empreender essa mu-
O veganismo resulta então na com- por rebaixar os animais à condição
dança em seus hábitos alimentares.
binação das dimensões pública e de seres (a)morais. Os “militantes
IHU On-Line – Do ponto de privada do engajamento individual acadêmicos” (juristas, filósofos, bi-
vista social e ético, o que distin- em favor dos animais. E reflete que ólogos, médicos veterinários, histo-
gue o veganismo do vegetaria- a “causa animal” é defendida não
riadores) realizam então um esforço
nismo? apenas enquanto uma virada moral,
de pesquisa a fim de demonstrar em
termos científicos e filosóficos tais
Ana Paula Perrota – A distinção ao igualar o status de humanos e não
equívocos e injustiças e comprovar
fundamental entre vegetarianismo e humanos enquanto sujeitos de direi-
que os animais, assim como os hu-
veganismo é que este último não é só tos. Mas é defendida também como
manos, são equivalentes do ponto de
uma dieta, mas consiste num con- uma virada pessoal, pois somente
vista moral.
junto de valores e regras que consi- com o rompimento do consumo e
deram todos os usos animais como serviços que fazem uso de animais Desse modo, se desde Aristóteles5
práticas condenáveis. E além disso, que estes estariam livres de todas as a questão filosófica central foi res-
embora o vegetarianismo possa ser formas de exploração. Portanto, se ponder como seres humanos são
motivado por uma preocupação mo- o vegetarianismo versa sobre práti- diferentes dos animais, os militan-
ral com os animais, este não seria cas alimentares, o veganismo colo- tes em torno da “causa animal” bus-
o único motivo para esta decisão, e ca em questão a situação moral dos cam responder inversamente a essa
nem um critério necessário. O ve- animais, e, por conseguinte, a nossa problemática, pois investigam como
getarianismo pode ser uma escolha própria situação.
motivada por questões de saúde, 4 A íntegra do texto da tese de Ana Paula está disponível
em http://bit.ly/2Y0WjNZ. (Nota da IHU On-Line)
pela preocupação com o meio am- 5 Aristóteles de Estagira (384 a.C.–322 a.C.): filósofo nas-
IHU On-Line – Como compre- cido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões filosóficas – por
biente, ou por razões relacionadas
ender a “causa animal”? Em um lado, originais; por outro, reformuladoras da tradição
ao gosto. grega – acabaram por configurar um modo de pensar que
que medida pode ser conside- se estenderia por séculos. Prestou significativas contri-
buições para o pensamento humano, destacando-se nos
Contrariamente, o veganismo diz rada um projeto intelectual e campos da ética, política, física, metafísica, lógica, psicolo-
respeito a práticas e valores funda- quais os limites dessa visão de gia, poesia, retórica, zoologia, biologia e história natural. É
considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o
mentados na ideia de que humanos “causa animal”? pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line)

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os animais são semelhantes aos hu- preender, é um questionamento das acordo com o autor, o empreendedor
manos. Os defensores dos animais respostas dadas à pergunta: O que moral é um reformador moral, pois
buscam então aproximá-los, identi- é o humano? E o que é o animal? E entende seus valores como absolutos
ficando características nos animais que encontra explicações bem sedi- e a partir deles reivindicam transfor-
que se constituíram enquanto exclu- mentadas, há pelos menos uns três mações na sociedade. Enquanto em-
sivas e distintivas dos seres huma- séculos, através da constituição mo- preendedores morais, os defensores
nos. As respostas nesse sentido são ral, filosófica, científica e política que buscam aplicar regras e sanções ba-
dadas, demonstrando principalmen- pensa natureza e cultura e animais seadas na “moral vegana”, fazendo
te através de pesquisas neurológicas e humanos como pares dicotômi- então do que é amplamente aceito e
e sobre comportamento animal, que cos e que fazem parte de domínios tido como natural, um desvio e um
assim como os humanos, os animais ontológicos antagônicos. O projeto grave problema moral.
possuem as mesmas capacidades intelectual dos defensores, mais do
Enquanto empreendedores mo-
intelectuais que fazem de ambos in- que desvendar a realidade, busca a
rais, as ações e a crítica vegana so-
divíduos que possuem o interesse de elaboração e a concretização de uma
bre atores e práticas que fazem uso
viver e de não sofrer. nova constituição da sociedade fun-
de animais se constituem de forma
dada em uma realidade ontológica
Os esforços acadêmicos como esses normativa e absoluta. O que significa
dos animais em que estes fazem par-
são entendidos como um modo de dizer que não há qualquer abertura
te da mesma comunidade moral que
levar informações às pessoas para crítica, compreensiva ou relativa a
os humanos.
que tomem consciência da verdadei- essas ações. O veganismo consiste
ra realidade dos animais e passem A reivindicação do veganismo, numa tomada de decisão teórica e
então a adotar a “moral vegana”. A entendido como um conjunto de prática que visa garantir a libertação
“causa animal”, nesses termos, pode prescrições morais, relativiza as ca- irrestrita e indistinta a todas as es-
ser entendida através da motivação tegorias humano e animal, o que pécies e indivíduos animais de qual-
de descortinar a realidade dos ani- por si só já é um projeto intelectual quer forma de exploração. Conforme
mais, para que então o veganismo inquietante, pois tais categorias são a perspectiva dos defensores, apenas
seja adotado por todos. Ou seja, pensadas cientificamente como an- é possível falar efetivamente de uma
acredita-se que com a comprovação teriores à cultura, e que possuem seu preocupação ética com os animais 17
científica e a divulgação dessas in- significado no âmbito natural. Mas quando se fala em abolir todas as
formações, haveria uma mudança trata-se de um projeto inquietante práticas que fazem uso de animais.
natural ou racional, por exemplo, também porque busca um novo en-
em direção à adoção de uma dieta tendimento sobre os animais e, por Carne
vegetariana restrita, pois somente conseguinte, sobre o nosso lugar no
assim estaríamos de acordo com a mundo, repercutindo em diferentes Tratando especificamente sobre
moral, ou com o que seria o certo a áreas da vida social. a produção e o consumo de carne,
ser feito. Esse aspecto da causa ani- as perspectivas em torno das práti-
mal pode ser descrito através de uma Empreendedores morais cas de bem-estar animal na rede de
frase proferida por Paul McCartney6 produção dos alimentos de origem
e que se tornou mundialmente em- A dimensão moral, presente no pro- animal e que têm como objetivo mi-
blemática entre pessoas pertencen- jeto intelectual dos defensores, bus- nimizar e evitar o sofrimento desne-
tes a esse movimento: “caso os ma- ca transformar a relação entre hu- cessário seriam limitadas, restritas
tadouros tivessem paredes de vidro manos e animais que se estabeleceu e, portanto, insuficientes para uma
ninguém comeria carne”. não apenas em razões de barreiras atitude verdadeiramente moral. O
físicas ou pela falta de conhecimen- veganismo, portanto, não poderia
Causa animal: um projeto to. Mas a partir de princípios cien- ser um comportamento casual. Ou
complexo tíficos, filosóficos e teológicos que seja, não se pode fazer uso desses
conformou o que entendemos como bens eventualmente, ou a partir de
Contudo, o que pretendo discutir o paradigma civilizacional moderno. certos critérios, mas deve haver um
é que a “causa animal” é um proje- Nesse sentido, mais do trazer infor- comprometimento integral com o
to muito mais complexo do que os mações, os defensores atuam como rompimento do uso de bens e servi-
próprios defensores consideram ao empreendedores morais, nos termos ços que façam uso de animais. Nes-
tratá-la como um esforço de desve- discutidos por Howard Becker7. De se caso, não existiria carne possível
lamento da realidade. O que está em na “moral vegana”, o que torna o
jogo nesse projeto, como pude com- 7 Howard Saul Becker (1928): sociólogo americano que
diálogo entre veganos e agentes im-
fez importantes contribuições para a sociologia do desvio, plicados como consumidores e/ou
sociologia da arte e sociologia da música. Becker também
escreveu extensivamente sobre estilos e metodologias de produtores de carne foco constante
6 Paul McCartney (1942): cantor, compositor, multi-ins- escrita sociológica. O livro de Becker, Outsiders, de 1963, de tensão.
trumentista, empresário, produtor musical, cinematográfi- forneceu as bases para a teoria da rotulagem. Becker é
co e ativista dos direitos dos animais britânico. McCartney frequentemente chamado de interacionista simbólico ou
alcançou fama mundial como membro da banda de rock construcionista social, embora ele não se alinhe com ne-
britânica The Beatles, com John Lennon, George Harrison nhum dos dois métodos. Formado pela Universidade de Sociologia de Chicago, que também inclui Erving Goffman
e Ringo Starr. (Nota da IHU On-Line) Chicago, Becker é considerado parte da segunda Escola de e Anselm Strauss. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

Entretanto, na medida em que o mais, a partir de um discurso único, gan, nenhuma menção é feita sobre a
projeto vegano é entendido por eles perde de vista o modo como cada questão animal em suas embalagens
próprios mais em termos de cons- uma dessas relações se constitui e ou material de propaganda. Todo o
cientização da população, ao invés que são bem heterogêneas. apelo do produto está centrado em
de ser compreendido como um pro- questões ligadas à saúde humana e à
jeto intelectual e político profundo sustentabilidade ambiental.
que desestabiliza algumas das ba- IHU On-Line – Deseja acres-
ses morais e filosóficas da sociedade centar algo? Nesse sentido, é interessante ob-
moderna, os defensores produzem servar como os adeptos da causa ani-
Ana Paula Perrota – É possível
em muitos casos julgamentos super- mal respondem a essa nova situação
observar, nos últimos três ou quatro
ficiais e desconsideram os aspectos social. Em muitos casos, os veganos
anos, a apropriação vegana em espa-
sociais em jogo em cada uma das se ressentem dessa nova onda, pro-
ços públicos, inaugurando uma nova
atividades que denunciam, seja a blematizando se produtos sem ori-
situação social em que a palavra ve-
produção de bens de origem animal, gem animal de empresas que testam
ganismo se torna conhecida pelas
o uso de animais em experimentos em animais, ou que possuem em sua
pessoas de uma maneira mais ampla.
científicos, ou atividades de entrete- Esse novo momento chama a aten- linha outros produtos que possuem
nimento, como rodeios. ção na medida em que a apropriação ingredientes animais seriam de fato
vegana tem sido feita principalmen- veganos. Problematizam ainda que
Limites da moral vegana te pelo mercado, com o lançamento as pessoas estariam mais interessa-
de “produtos e serviços vegans”, mas das em consumir alimentos em fei-
Uma limitação importante da “mo- ras veganas do que em se engajar po-
que chegam destituídos da crítica so-
ral vegana” é que este pensamento liticamente em manifestações contra
bre a “causa animal”.
tem uma visão que universaliza a ca- determinadas práticas que fazem
tegoria animal, mas perder de vista Diante desse fato, observamos, uso de animais.
que o que chamamos de animais diz por exemplo, tanto a consideração
respeito a espécies de seres muito di- de que o veganismo seria uma nova De todo modo, o veganismo apre-
ferentes e que, portanto, participam dieta, quanto a consideração de que senta, a partir de seus valores e práti-
18 de formas múltiplas na relação esta- essa prática seria um modo de vida cas reivindicados, desafios teóricos e
belecida entre os humanos. Os inú- distintivo das elites, ou mais uma de pesquisa tendo em vista o impac-
meros significados atribuídos às con- moda passageira. Como exemplo to que produz em diferentes áreas da
dições animais não divergem apenas disso, gostaria de citar o produto vida social. Esse novo momento em
com relação aos diferentes grupos lançado por uma empresa mundial que o veganismo, ou a causa animal,
sociais, mas em razão das diferentes de eletrodomésticos que faz leite à é incorporado de forma mais ampla
espécies também. E a reivindicação base de vegetais. Embora este pro- no debate público traz ainda outras
de interdição do uso de espécies ani- duto carregue no nome a palavra ve- agendas a serem investigadas.■

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Ser vegano é lutar contra opressão


dos vulneráveis
Frank Alarcón compreende que o “veganismo apresenta-se como
um projeto de coerência entre discurso e prática, respeito com
o meio ambiente e todos os seres sencientes no planeta”
João Vitor Santos

P
oucas pessoas compreendem que nada a ver com amar mais animais do
o veganismo tem na rejeição ao que humanos. É dar a todos o direito de
consumo de carne apenas uma existir. “Caso tivéssemos a oportunidade
de suas perspectivas. Segundo o ativista de conviver com outras espécies hominí-
Frank Alarcón, veganismo pode ser enca- deas que em certa época habitaram a su-
rado como uma forma de vida, que carre- perfície do planeta junto a nós, teríamos
ga consigo uma ética própria. “Uma for- que lidar com o dilema moral de consi-
ma de entender Ética é vê-la como uma derá-los passíveis de exploração da for-
reflexão filosófica sobre o fundamento da ma como abusamos de outros animais.
ação, isto é, pensar sobre se resulta ser Praticaríamos experimentação científi-
certa ou errada, boa ou má, uma deter- ca lesiva em ‘homens das cavernas’ por
minada conduta antes de colocá-la em entender que estes não pertencem ao
prática”, reflete. E, completa, na entrevis- nosso círculo de consideração moral?”,
ta concedida por e-mail à IHU On-Line, provoca. Assim, é por essa perspectiva 19
“nesse sentido, o veganismo apresenta- que traz a reflexão sobre o Direito dos
se como um projeto de coerência entre Animais como necessária a toda a hu-
discurso e prática, respeito com o meio manidade. “Se animais da espécie Homo
ambiente e todos os seres sencientes no sapiens têm garantidas, por parte da so-
planeta – independente de sua espécie”. ciedade global, proteções fundamentais
É por isso que não comer carne é ape- à sua dignidade, autonomia, integridade
nas um ato entre tantos para a defesa física e psíquica, não haveria razão con-
das espécies. “Ser vegano significa lutar creta ou fundamento lógico efetivo para
diariamente contra opressões sobre vul- excluir outros organismos sencientes de
neráveis no seu sentido mais amplo. O tratamento semelhante”, sintetiza.
veganismo tem como pauta a constru- Frank Alarcón é graduado em Ci-
ção de um cenário de justiça social ro- ências Biológicas pela Universidade Es-
busto”, observa. É por isso que, no que tadual de Campinas - Unicamp, mestre
diz respeito à defesa das outras espécies, em Físico-Química pela Universidade de
está também um repúdio à produção e São Paulo - USP e doutor em Bioética e
consumo de qualquer produto que pos- Ética Aplicada pela Universidade Federal
sa ter gerado algum tipo de sofrimento Fluminense - UFF. É biólogo do Institu-
a qualquer ser vivo. “Desta forma, uma to Luisa Mell e coordenador no Brasil da
das ideias que subjaz o veganismo é o Cruelty Free International. É também
repúdio à violência e à desconsideração porta-voz do Partido ANIMAIS, o Pri-
moral de entes igualmente complexos meiro Partido Animalista da América La-
em sua senciência”, acrescenta. tina. É vegano, militante dos direitos ani-
O que Alarcón deixa claro é que essa mais há mais de três décadas.
é uma luta por direito à vida, não tem Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como se pode alimentos gera? E que tipo de gem animal?
mensurar o impacto ambiental impacto gera, em específico, a Frank Alarcón – Medidas de
que a produção industrial de produção de alimento de ori- impacto são indicativos empíricos

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TEMA DE CAPA

de associações causais, isto é, são ências sociais e econômicas globais, uso indiscriminado de antibióticos
indicadores que buscam correla- colocam sob imenso risco logístico e hormônios etc.) ganharam dimen-
cionar sob quais condições ou na o objetivo para 2030 do “Projeto são global.
presença de quais elementos tor- Fome Zero e Desenvolvimento Sus-
Não por acaso, o Brasil centrou
na-se possível identificar um nexo tentável” da ONU.
entre causas e consequências. Um sua balança comercial na produção
e exportação de animais (vivos ou
exemplo disso é a já cientificamente Poluição e produção de co-
mortos; suas partes ou derivados)
consolidada relação existente entre mida
a exagerada emissão ao meio am- para todo o mundo – EUA, China,
biente de gases que absorvem parte Dado que a Agricultura e a Pecuá- Rússia e outras potências demográ-
da radiação infravermelha (dióxido ria são hoje vistas como atividades ficas incluídas. Resulta claro como
de carbono e metano) e o aumento altamente poluentes e problemáti- esta estratégia comercial e produtiva
da temperatura do planeta Terra. cas na forma como são praticadas, tem tudo para complicar o cenário
Resulta daí o termo popularmente nunca antes a alimentação de indi- ambiental e sociopolítico do país e
conhecido como “efeito estufa”: o víduos e coletivos foi um ato polí- do mundo.
planeta transformando-se em uma tico tão importante como agora. É
estufa hiperaquecida; causa e con- preciso deixar claro que o problema
sequência expressos em seu sentido
mais evidente.
não se restringe apenas à quantida-
de e à distribuição racional e justa
“Enquanto a
Ao falarmos de produção indus-
de alimentos necessários para aten- produção de 1
der bilhões de pessoas no planeta.
trial de alimentos para um mundo
que registra nestes primeiros 19
O problema diz respeito principal- quilo de carne
demanda
mente à ideia de que o tradicional
anos do século XXI um contingente
consumo de animais (e suas partes
superior a 7,6 bilhões de exempla-
res humanos, somos obrigados a
repensar nossos antigos modos de
ou derivados) são necessidades me-
tabólicas e caprichos sensoriais que o consumo
20 vida, nosso processamento de bens
e oferta de serviços, assim como o
devem ser perpetuados.
A tecnologia usada na produção de
de 5 a 20 mil
consumo destes. Para que tenha-
mos uma ideia de impacto, estima-
alimentos mostra claramente que litros de água,
o consumo de água e espaço para a
se que há 219 anos éramos 1 bilhão produção de animais é muito maior a produção
de humanos no planeta. Isto é, em
pouco mais de 200 anos multiplica-
que aquele necessário para a produ-
ção de vegetais. A título de exemplo: de 1 quilo de
trigo exige 500
mos expressivamente esse índice e enquanto a produção de 1 quilo de
mudamos sobremaneira nossos há- carne demanda o consumo de 5 a 20
bitos cotidianos e nossa distribuição
demográfica em todos os continen-
mil litros de água, a produção de 1
quilo de trigo exige 500 a 4 mil litros a 4 mil litros
tes. Segundo projeção de 2017 do
Departamento de Assuntos Econô-
de água. Um país como a China por
exemplo – com seus mais de 1 bilhão
de água”
micos e Sociais das Nações Unidas, de habitantes e intenso êxodo rural
estimam-se 8,6 bilhões de humanos –, tem demonstrado o desejo de co-
habitando o planeta em 2030, 9,8 piar práticas gastronômicas ociden-
bilhões em 2050 e 11,2 bilhões no tais como aquelas praticadas nos IHU On-Line – No que con-
ano de 2100. EUA. Nos últimos 35 anos, o con- siste o chamado “direito dos
Em paralelo, em 2018 as Nações sumo de carne na China teve cres- animais” e como a indústria de
Unidas publicaram um relatório so- cimento de 7 vezes (e mesmo assim produção de alimentos infringe
bre a situação da fome no planeta não chega à metade praticada por esses direitos?
em que há sinalização do aumento norte-americanos). Se, na década de Frank Alarcón – Entende-se
anual desta mazela: 821 milhões de 1980, havia o consumo de 13,6 qui- como Direitos Animais o conjunto
pessoas no globo ou 1 pessoa em los de carne por ano por um habitan- de premissas, fundamentos e práti-
cada 9 passam fome diariamente. te desse país, o índice agora passou a cas filosóficas, legais e políticas que
O relatório afirma que a cada vez ser de 63,5 quilos/ano. Nesse meio garantam a todos os organismos
maior variabilidade climática, seus tempo, a população chinesa aumen- vivos dotados de sensibilidade, sen-
efeitos sobre os padrões de chuva, tou em número, da mesma forma ciência1, complexidade cognitiva e
correntes marítimas e estações de que a atividade pecuária no mundo
plantio, manifestação atípica de e suas consequências práticas (des- 1 Senciência é a capacidade dos seres de sentir sensações
extremos climáticos assim como matamento, poluição ambiental, e sentimentos de forma consciente. É, em alguma medida,
a capacidade de ter percepções conscientes do que lhe
secas, inundações e suas consequ- desperdício e contaminação de água, acontece e do que o rodeia. (Nota da IHU On-Line)

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psíquica (essencialmente todos os nós como indicativo de complexida- mas, sim, a garantia de que este e
organismos pertencentes ao reino de e singularidade mental existente seu grupo social poderá usufruir
biológico Animalia), o usufruto de em outras espécies. Ao mesmo tem- de uma experiência vital digna e
um status de consideração moral po, muitos são os exemplares huma- respeitosa. A massiva produção de
equivalente àquele franqueado aos nos que não manifestam quaisquer alimentos pela espécie humana,
animais da espécie Homo sapiens. dos atributos humanos ou não hu- dado seu caráter de tremendo im-
Se animais da espécie Homo sa- manos acima descritos e que, opor- pacto sobre os indivíduos e coleti-
piens têm garantidas, por parte da tunamente, continuam sendo prote- vos animais, assim como sobre os
sociedade global, proteções funda- gidos (ao menos filosoficamente) em ecossistemas em que eles estão (ou
mentais à sua dignidade, autono- toda sua completude e deficiência. deveriam estar) inseridos, torna-se,
mia, integridade física e psíquica, portanto, assunto urgente e meritó-
não haveria razão concreta ou fun- Especismo rio de profunda discussão.
damento lógico efetivo para excluir
outros organismos sencientes de Tudo isso pelo simples fato de per-

“Direitos
tratamento semelhante. tencerem à espécie Homo sapiens.
Este, fica claro, é um sinal de chauvi-
Eliminadas inclinações religiosas
e mitológicas que povoam alguns
discursos e crenças, vivemos hoje
nismo clássico conhecido academi-
camente como Especismo. Existem animais são
uma realidade em que um aglome-
hoje boas razões para considerar que
as certezas humanas sobre a limita- reivindicações
rado humano de algumas dezenas
de células tem proteções fundamen-
ção cognitiva, emocional, psíquica,
mental de animais não humanos es- de tratamento
semelhante
tais reconhecidas, ao passo que um tejam apoiadas em suposições data-
animal não humano biologicamen- das, superficiais e convenientes. Ao
te constituído e complexo como
um chimpanzé, um boi, um porco,
usar, por exemplo, o termo “não hu-
mano” como descritivo para as de-
naquilo que é
um papagaio, um tubarão ou um
rato são ignorados integralmente
mais espécies, nossa espécie Homo
sapiens busca determinar aquilo
considerado 21
enquanto entes merecedores de di-
reitos. Todos esses animais (e tan-
que deve ser considerado norma, es-
perado, perfeito, acabado no tocante
fundamental
tos outros milhões de espécies) são
tratados historicamente pelo Homo
ao desenvolvimento biológico – algo à experiência
muito equivocado diante do que se
sapiens como simples coisas, ob-
jetos, instrumentos descartáveis e
sabe sobre processos evolutivos na de um ente
não passíveis de respeito ou consi-
deração moral. Este comportamento
natureza e o trabalho seminal de
Charles Darwin2. senciente”
se sustenta na ideia de que apenas
Direitos dos animais
animais humanos são dotados de
atributos especiais tais como racio- Direitos animais, portanto, são IHU On-Line – Além da produ-
nalidade, autonomia, imaginação, reivindicações de tratamento seme- ção de comida, que outros seto-
sentidos de dever, pudor ou justiça, lhante naquilo que é considerado res passam por cima do Direito
apreciação estética, cultura, lingua- fundamental à experiência de um dos Animais em prol do desen-
gem, entre outros, atributos estes ente senciente: autonomia, liberda- volvimento de seus produtos?
não convenientemente identificados de e dignidade. Claramente, a ideia Frank Alarcón – Absolutamente
em animais não humanos – algo que de Direitos Animais não reclama a todos os setores econômicos em que
a Ciência gradativamente já se aven- concessão de direito de voto ou di- a presença humana – e sua pegada
tura a reconsiderar. reção a um cavalo ou a um porco, ambiental e social – sejam consta-
De forma oposta, poderíamos des- tados. A realidade do planeta, hoje,
2 Charles Darwin (Charles Robert Darwin, 1809-1882): com 7,6 bilhões de humanos, todos
tacar em animais não humanos ca- naturalista britânico, propositor da teoria da seleção na-
pacidades ímpares exclusivas de tural e da base da teoria da evolução no livro A Origem demandantes por espaço, recursos,
das Espécies. Organizou suas principais ideias a partir de
suas espécies como ecolocalização, uma visita ao arquipélago de Galápagos, quando percebeu oportunidades, produtos, serviços,
rapidez de cálculo, audição extre- que pássaros da mesma espécie possuíam características
morfológicas diferentes, o que estava relacionado com
experiências físicas ou afetivas, que
ma, visão noturna, agilidade ímpar, o ambiente em que viviam. Em 30-11-2005, a professora diariamente produzem e descartam
Anna Carolina Krebs Pereira Regner apresentou a palestra
memória fotográfica, elaboração obra Sobre a origem das espécies através da seleção natural dejetos orgânicos e inorgânicos (na
instantânea de rotas migratórias, ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida, de
Charles Darwin, no evento Abrindo o Livro, do Instituto Hu-
estratosfera, no céu, no ar, no mar,
percepção de eventos visuais/sono- manitas Unisinos - IHU. Sobre o assunto, confira as edições na terra, no subsolo), direta ou indi-
300 da IHU On-Line, de 13-7-2009, Evolução e fé. Ecos de
ros imperceptíveis aos nossos mais Darwin, disponível em http://bit.ly/UsZlrR, e 306, de 31-8- retamente, em todo o mundo, ame-
sofisticados equipamentos etc., algo 2009, intitulada Ecos de Darwin, disponível em http://bit.ly/ açam violentamente o direito à vida
1tABfrH. De 9 a 12-9-2009, o IHU promoveu o IX Simpósio
que é deliberadamente ignorado por Internacional IHU: Ecos de Darwin. (Nota da IHU On-Line) de todos os seres vivos do globo. É

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preciso aceitar o fato de que o pla- equilíbrio biológico do qual mal co- (quando necessário) dos que dele
neta Terra, uma rocha esferoidal nhecemos os outros habitantes deste se aproveitam. Recentes crimes am-
com idade estimada de 4,5 bilhões condomínio planetário. bientais associados à construção da
de anos, teve a primeira eclosão de Hidrelétrica de Belo Monte3, os rom-
Pior. Possivelmente estejamos con-
organismos vivos sobre sua superfí- pimentos criminosos de barragens
tribuindo para o declínio da sobre-
cie há cerca de 3,5 bilhões de anos. de rejeitos minerais de Mariana4 e
vivência de muitas dessas espécies
Nesse transcurso, a espécie Homo Brumadinho5, a destruição de por-
conhecidas ou desconhecidas – a
sapiens floresceu sobre as savanas ções expressivas da Floresta Ama-
nossa inclusa. Resulta disso – dessa
africanas há apenas cerca de 300 zônica, Cerrado e Pantanal em bene-
presença humana – a apresentação
mil anos. Considere, portanto, uma fício da pecuária, o registro do país
por parte da comunidade científi-
ampla janela de bilhões de anos com como líder mundial em assassinatos
ca do termo Antropoceno (antropo
exemplares biológicos complexos e de ativistas ambientais, a exportação
= humano) como um novo período
fantásticos muito mais antigos que de animais vivos para abate a países
de significância geológica e histó-
nossa espécie. Ignorando momenta- do Oriente Médio. Isso apenas para
rica. Mesmo assim, expostos todos
neamente por uma questão didática citar alguns poucos escândalos nes-
esses aspectos, enquanto espécie,
todas as espécies hominídeas ances- se universo, mas que dão a tônica do
continuamos nos colocando como
trais à nossa, numa escala temporal, quão distante está o discurso ecoló-
o suprassumo da manifestação bio-
somos um animal que recém se esta- gico presente na constituição cidadã
lógica usufruindo de tudo à nossa
beleceu sobre o planeta. Uma espé- de 1988 da prática do dia a dia.
volta como se não houvesse amanhã.
cie de mosquito que hoje buscamos
Nosso modo de vida, os produtos e Perceba-se que há plena previsão
eliminar para nossa conveniência
é uma centena de milhões de anos serviços que colocamos em circu- legal de respeito à fauna e flora que
mais antiga que o animal Homo sa- lação, seus processos de criação e integram o meio ambiente mediante
piens da forma como o conhecemos. consumo, ignoram a finitude de re- o inciso VII do artigo supracitado, a
cursos, espaços e energias coloca- saber, “(…) VII - proteger a fauna e
Tanto o mosquito, como toda a dos à nossa disposição. Talvez ainda a flora, vedadas, na forma da lei, as
sua rede de relações ecológicas com pior: ignoram que outros trilhões de práticas que coloquem em risco sua
22 outras espécies e ecossistemas do organismos e seus grupos sociais são função ecológica, provoquem a ex-
globo, é delicada e essencialmente afetados diretamente pelas nossas tinção de espécies ou submetam os
incompreendida. Desta forma, nos- práticas. Não há equívoco em afir- animais a crueldade”. Mais uma vez,
sas escolhas produtivas afetam di- mar que todos os tipos de indústrias, contudo, a crueldade e desrespeito
retamente esse delicado equilíbrio comércios ou serviços que nos cer- a preceitos mínimos de dignidade
o qual é, essencialmente, um campo cam, afetam os direitos de todos os animal é explícita – fenômeno este
desconhecido. Tal perspectiva é fun- seres vivos, e desta forma também, que atravessa todos os segmentos
damental na estimativa de impactos os direitos animais.
e consequências sobre terceiros. 3 Belo Monte: projeto de construção de usina hidrelétrica
previsto para ser implementado em um trecho de 100 qui-
Ainda sobre números e impactos: IHU On-Line – O que a legisla- lômetros no Rio Xingu, no estado do Pará. Planejada para
ter potência instalada de 11.233 MW, é um empreendimen-
o registro mais antigo de um agru- ção brasileira determina acer- to energético polêmico não apenas pelos impactos socio-
pamento civilizacional significati- ca da proteção e Direito aos
ambientais causados pela construção. Outra controvérsia
sobre essa usina envolve o valor do investimento do projeto
vo humano data de algo como 10 animais? E como isso se efetiva e, consequentemente, o seu custo de geração. Saiba mais
mil anos atrás. O desenvolvimento na edição 39 dos Cadernos IHU em formação, Usinas hi-
na prática? drelétricas no Brasil: matrizes de crises socioambientais, em
tecnológico da nossa espécie a par- http://bit.ly/ihuem39; e nas entrevistas publicadas no sítio
do IHU: Belo Monte: a barreira jurídica, com Felício Pontes
tir da Revolução Industrial (1760), Frank Alarcón – Apesar da Júnior, dia 26-4-2012, disponível em http://bit.ly/ihu260412;
agregada à sua expansão e explosão Constituição Brasileira reconhecer, Belo Monte. “O capital fala alto, é o maior Deus do mundo”,
com Ignez Wenzel, dia 28-1-2012, disponível em http://bit.
demográfica sobre o globo no último em seu artigo 255, o meio ambien- ly/ihu280112; Belo Monte e as muitas questões em debate,
com Ubiratan Cazetta, dia 23-1-2012, disponível em http://
século, tem impactado diretamente te como um bem de uso comum do bit.ly/ihu230112; “Belo Monte é o símbolo do fim das insti-
a sobrevivência de todas as demais povo e, portanto, de direito a to- tuições ambientais no Brasil”, com Biviany Rojas Garzon, dia
13-12-2011, disponível em http://bit.ly/ihu131211; Não é
espécies do planeta – assim como dos, sobre o qual se impõe ao Po- hora de jogar a toalha e pendurar as chuteiras na luta contra
Belo Monte, com Dom Erwin Krautler, dia 3-8-2011, disponí-
a sobrevivência dela própria. Para der Público e à coletividade o dever vel em http://bit.ly/ihu030811. (Nota da IHU On-Line)
fins de comparação, estima-se que de defendê-lo e preservá-lo para as 4 O Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na seção Notícias do
Dia, em seu sítio, reproduziu análises e reflexões sobre o inci-
existam hoje algo como 10 milhões presentes e futuras gerações, é frá- dente de Marina. Entre elas Tragédia de Mariana: entenda os
gil a manifestação concreta dessa impactos ambientais causados pelo desastre – Infográfico, dis-
de espécies biológicas no planeta ponível em http://bit.ly/2O33uR2; e Negligência e corrupção
Terra. Dessas, nós, humanos, cata- obrigação moral e política. O Brasil explicam o desastre de Mariana. Entrevista especial com Apolo
Heringer Lisboa, disponível em http://bit.ly/2FaeyJ5. Acesse
logamos pouco mais de 2 milhões. infelizmente tem figurado no notici- mais em ihu.unisinos.br/. (Nota da IHU On-Line)
Reunidos esses índices, percebemos ário mundial recente como um país 5 O Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na seção Notícias
do Dia, em seu sítio, também reproduziu análises e refle-
que compartilhamos uma mesma de enormes deficiências no combate xões sobre o incidente em Brumadinho. Entre elas Brumadi-
nho e a urgência da responsabilidade, disponível em http://
rocha flutuante cercada por imensos à vilanização de seu meio ambien- bit.ly/2O67ct1; e Brumadinho: a avalanche de impunidade
vazios por todos os lados, rocha esta te – seja no âmbito de sua preser- que consolida o crime e mata inocentes. Entrevista especial
com Dário Bossi, disponível em http://bit.ly/2UBVVmR.
dotada de um delicado e complexo vação, proteção ou mesmo punição Acesse mais em ihu.unisinos.br/. (Nota da IHU On-Line)

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da sociedade. São diários, expres- processo, sinaliza ao produtor do ali-


sivos e amplamente documentados “Não há mento que sendo tal prática repro-
os crimes cometidos contra animais vável, esta deve ser imediatamente
tidos como “de produção”, “de labo- equívoco em encerrada. A conhecida e popular

afirmar que
ratório”, “de entretenimento”, “de “lei da oferta e da procura” nos in-
tração” ou mesmo aqueles conside- duz a concluir que não havendo mais
rados “domésticos”.
Segundo o IBGE, no Brasil, con-
todos os tipos clientes para aquele tipo de alimen-
to, produzido naquelas condições de
siderados apenas bois e vacas, são de indústrias, abuso infantil, levará o consumidor a
um cenário onde esse processo cruel
mortos 88 mil animais por dia para
satisfazer uma demanda mercado- comércios ou passe a inexistir. Essa mudança na
cadeia produtiva será tanto mais efe-
serviços que
lógica desnecessária e nociva. Con-
tiva se o antes potencial consumidor
siderem-se ainda porcos, frangos,
sinalizar ao seu círculo social que tal
galinhas, patos, perus, coelhos,
ovelhas, cordeiros, avestruzes, ja- nos cercam, restaurante (ou tal produtor) deve
ser criticado e reprimido.
valis, animais marítimos variados,
nativos ou exóticos etc., e teremos afetam os Temos, portanto, com este exem-
um cenário de genocídio de propor-
ções jamais vistas na história da hu-
direitos de plo, que a decisão do consumidor
em abrir a sua carteira e escolher
manidade. Cães e gatos, tidos como
animais mais próximos do convívio
todos os onde gastar suas economias – seja
sobre um dado alimento ou um pro-
humano, e teoricamente mais que-
ridos, não estão excluídos desse
seres vivos” cesso de produção alimentar –, é o
combustível fundamental da matriz
cenário de abuso e crueldade. São econômica e seus resultados socio-
diários os registros audiovisuais na IHU On-Line – De que forma políticos. No campo da defesa de
rede mundial de computadores de a relação do ser humano com a Direitos aos Animais não humanos
pessoas cometendo violências no comida impacta a forma como e ao meio ambiente, cabe da mesma 23
Brasil contra esses (e outros) vul- se produzem alimentos? Quais forma ao consumidor não patroci-
neráveis não humanos, sem sofre- os desafios para transformar nar ou financiar a perpetuação de
rem quaisquer consequências reais essa relação e, logo, a forma de práticas que sejam abusivas e/ou
do delito. produção? desnecessárias contra vulneráveis.
Cita-se como exemplo o consumo
Previsões legais e penas Frank Alarcón – Apesar de con- do Foie Gras (fígado gordo), iguaria
abrandadas venientemente ignorado, comer é francesa que consiste na hipertrofia
sempre um ato político na medida lipídica de fígados de patos e gansos
A Lei de Crimes Ambientais (Lei em que cada escolha alimentar fei- mediante alimentação forçada des-
9.605/1998) em seu artigo 32o pre- ta tem inserida em si mesma um ses animais. Sujeitos a uma violência
vê como pena criminal a detenção de substrato de informações e con- sem igual, os animais têm seus fíga-
três meses a um ano a prática de “(…) sequências como pano de fundo. dos deformados e adoecidos propo-
ato de abuso, maus-tratos, ferir ou Alimentos têm histórias. Tomemos sitalmente para que, após uma vida
mutilar animais silvestres, domésti- como exemplo a seguinte situação: miserável de cativeiro e exploração,
cos ou domesticados, nativos ou exó- um comensal, ao ingressar em um os mesmos sejam mortos e tenham
ticos”. Incorreria nas mesmas penas restaurante e ser informado de de- seus órgãos vendidos como um deli-
ainda, segundo o artigo, aquele que talhes envolvidos na produção do cioso aperitivo culinário.
“(…) realiza experiência dolorosa ou alimento que pretende ingerir (por
cruel em animal vivo, ainda que para exemplo, o abuso laboral e escravi- Violência constante na pro-
fins didáticos ou científicos, quan- dão de crianças), dificilmente con- dução
do existirem recursos alternativos”. cordaria em consumir a iguaria gas-
Finalmente, a pena seria aumenta- Na prática, tomados em detalhe to-
tronômica por mais apetitosa que
da “(…) de um sexto a um terço, se dos os processos de produção animal
esta parecesse. Seu aparato ético,
ocorre morte do animal”. Apesar da (seja para produção de carnes, leites,
ciente do repúdio ao abuso come-
previsão legal, a realidade penal é ovos ou subprodutos diversos), vere-
tido contra crianças na produção
de pessoas cometendo diariamente mos que não há uma simples espécie
desse alimento, trabalhará para im-
atrocidades diversas em todo o país animal que não esteja sendo sujeita
pedir o comensal de participar ou
com todo tipo de animal não huma- a violências das mais diversas – seja
patrocinar essa atividade.
no e sendo perdoadas em seu delito nos próprios processos de reprodu-
mediante pagamento de cesta básica O agora já desistente consumidor, ção animal visando seu abate, seja
e atividades de cunho social. portanto, ao não participar desse nos cativeiros a que estes são sub-

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TEMA DE CAPA

metidos para extração de produtos próprios, subjetividade e indi- dade mental de todos os demais or-
de interesse comercial. Assim, todo vidualidade profundas”. Gos- ganismos vivos sencientes, colocan-
consumidor deve ter consciência de taria que o senhor retomasse e do a intenção humana de diminuir
que alimentos, sejam eles quais fo- desenvolvesse esse raciocínio, sua experiência de mundo como algo
rem, da forma como são produzidos analisando essa perspectiva arrogante e desprovido de elementos
atualmente, buscam atingir um sta- com a visão de mundo e a sub- fáticos.
tus de excelência no tocante à otimi- jetividade da sociedade huma-
Ainda que um escritor expresse da
zação de produtividade, diminuição na da atualidade e a sua relação
forma mais detalhada possível seu
de custos, maximização de lucros. com as demais formas de vida
estado mental, jamais poderemos
do planeta. ser em essência aquela pessoa ou ex-
Sendo estes objetivos comuns à
lógica dos empreendimentos econô- Frank Alarcón – Em outubro perimentar efetivamente a sua vida
micos, sempre que houver animais de 1974, o filósofo norte-americano e visão de mundo em toda sua com-
não humanos envolvidos nas cadeias Thomas Nagel7 publicou um ensaio plexidade. Isso vale para outros or-
de produção de bens ou serviços, intitulado “Como é ser um morcego?” ganismos. Assumir que um cão, um
provavelmente haverá ocultação dos (What it is like to be a bat?). Nesse boi, uma tartaruga, um chimpanzé,
métodos de produção daquilo que artigo, o filósofo critica correntes de uma águia, uma cobra etc. não te-
pretende ser comercializado. Essa pensamento reducionista que resu- nham a capacidade de fazer elabora-
falta de transparência não surge à mem a ideia de que o todo resume- ções mentais e afetivas sobre o meio
toa. Granjas, frigoríficos, fazendas se à mera soma de suas partes. No ambiente e os indivíduos à sua volta,
de pescados, por exemplo, ou quais- texto, o filósofo utiliza o exemplo da de uma forma ímpar, é assumir algo
quer outros empreendimentos que Consciência como um tipo de pro- que simplesmente não sabemos.
produzam animais para venda de cesso emergente que eclode no seio
suas partes ou derivados, buscam de um sistema complexo – algo bem Declaração de Cambridge
incrementos produtivos e redução observado em fenômenos biológicos
Para todos os efeitos, em julho de
dos custos envolvidos. Para tal, o –, e para tal, ilustra seu argumento
2012, renomados neurocientistas
modo como animais são tratados, invocando o que seria o processo
reuniram-se e promulgaram o que
24 mantidos em cativeiro ou finalmente mental existente na mente de um
ficou conhecida como “Declaração
mortos é mantido oculto do grande morcego. Este mamífero, com visão
de Cambridge”, a qual diz que “[A]
público. deficitária e limitada em sua essên-
ausência de um neocórtex não pare-
cia, é capaz de voar, perceber obje-
Esse pacto termina por ser perpe- ce impedir que um organismo expe-
tos, capturar insetos e mover-se no
tuado com a conivência daquele que rimente estados afetivos. Evidências
espaço sem colidir com seu entorno
paga pela perpetuação do abuso con- convergentes indicam que animais
graças à emissão de agudos assobios
tra um vulnerável. O consumidor, ao não humanos têm os substratos neu-
e à aguçada capacidade auditiva de
não querer ter ciência da história por roanatômicos, neuroquímicos e neu-
percebê-los e processá-los tridimen- rofisiológicos de estados de consci-
trás da produção do alimento que
sionalmente (ecolocalização). ência juntamente com a capacidade
visa consumir, termina por dar o
salvo-conduto necessário àquele que Como deve ser a experiência cons- de exibir comportamentos inten-
abusa do vulnerável no fim da cadeia ciente de um morcego, o qual “en- cionais. Consequentemente, o peso
produtiva. Tornados transparentes xerga” e processa o mundo graças das evidências indica que os huma-
todos os processos produtivos e suas ao seu aparato sensorial auditivo? nos não são os únicos a possuir os
consequências sociais, econômicas, Nagel afirma que jamais consegui- substratos neurológicos que geram
ambientais, clínicas e culturais, pro- remos compreender a perspectiva de a consciência. Animais não huma-
vavelmente teríamos um cenário de mundo de um morcego – por mais nos, incluindo todos os mamíferos
consumo alimentar muito diferente avançada que se torne nossa tecno- e as aves, e muitas outras criaturas,
do que é praticado hoje em todo o logia –, deixando claro que o aparato incluindo polvos, também possuem
mundo. Como diz o ditado, “A Cons- mental de um mamífero como este esses substratos neurológicos”.
ciência dói”. é imperscrutável ao nosso desejo. O peso das evidências é o ponto-
Cada indivíduo, portanto, afirma chave deste argumento já que cien-
Nagel, só é capaz de saber o que é tistas não baseiam suas afirmações
IHU On-Line – Em uma en- ser ele mesmo (Subjetivismo). Para em meras opiniões, desejos ou atos
trevista anterior concedida à aqueles que defendem a complexi- de fé – mas, sim, em fatos. Negar a
IHU On-Line6, o senhor disse dade psíquica animal não humana, outros organismos sencientes a pos-
que “animais não são coisas. esse raciocínio aplica-se à complexi- se de uma subjetividade é assumir
São entes dotados de comple-
uma posição que nem Charles Da-
xa visão de mundo, interesses 7 Thomas Nagel (1937): filósofo estadunidense, atu-
almente é professor de Filosofia e Direito na New York rwin ousou defender, qual seja, “[O]
6 A entrevista está disponível em http://bit.ly/2F0v5y9.
University. É conhecido por seus estudos da filosofia da
mente e pela crítica a visão reducionista e neodarwinista
homem, em sua arrogância, pensa
(Nota da IHU On-Line) da consciência. (Nota da IHU On-Line) de si mesmo como uma grande obra,

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merecedora da intervenção de uma pécie assim como o fazemos com os entre discurso e prática, respeito
divindade”. A espécie Homo sapiens bois, porcos, frangos que enviamos com o meio ambiente e todos os
não é a medida de todas as coisas. diariamente para degola. Se fôsse- seres sencientes no planeta – inde-
mos nós os organismos vulneráveis, pendente de sua espécie.
acharíamos correto esse tipo de tra-
Resulta incoerente discursar por
tamento? É correto abusar e matar
“A pauta um organismo senciente porque
paz e pagar terceiros para matar ino-
centes. Desta forma, uma das ideias
acreditamos que ele não possui um
de Direitos atributo (linguagem por exemplo), o
que subjaz o veganismo é o repúdio
à violência e à desconsideração mo-
Animais não
qual consideramos especial? O que
ral de entes igualmente complexos
dizer daqueles da nossa própria es-
em sua senciência. O veganismo,
deveria causar pécie que também não são capazes
de manifestar esses atributos? Pode-
deve sempre ficar claro, não se re-
sume ao não consumo de proteína
estranheza a riam ser esses humanos explorados
como animais não humanos? Coti- animal – termo convenientemente
utilizado pela indústria como verniz
ninguém nem dianamente, é possível escolher ati-
vamente não participar dessa cadeia para ocultar o comércio de cadáve-

tampouco de abusos e assassinatos. res resultantes de assassinato ou ex-


ploração. Ser vegano significa lutar

ser difícil de
Uma dessas formas é adotar o vege- diariamente contra opressões sobre
tarianismo e o veganismo como con- vulneráveis no seu sentido mais am-
acolhimento dutas. Enquanto o vegetarianismo é
um termo associado exclusivamente
plo. O veganismo tem como pauta a
construção de um cenário de justiça
por todos nós” à adoção de uma dieta alimentar que
não envolva o consumo de animais,
social robusto.

suas partes e derivados, o veganis-


mo é um posicionamento que busca IHU On-Line – Na atualida-
excluir, na medida do possível e do de, o que implica ser vegano? 25
IHU On-Line – Quais os de-
praticável, todas as formas de ex- Como avalia o veganismo en-
safios para se promover uma
conscientização acerca da im- ploração e de crueldade contra ani- quanto movimento, tanto no
portância de ações cotidianas mais, seja na alimentação, vestuário, Brasil como no mundo?
para proteção dos Direitos dos entretenimento ou qualquer outra
Frank Alarcón – O termo vega-
Animais e preservação do pla- finalidade. Todo vegano é vegetaria-
nismo foi formalmente apresentado
neta de um modo geral? De que no. Nem todo vegetariano, contudo,
ao mundo em 1944, ao passo que
forma o veganismo pode ser é necessariamente vegano. Se a so-
o termo vegetarianismo surgiu em
apresentado como uma possi- ciedade civil como um todo inclui
1839. Desde então, há um esforço
bilidade para essa mudança de em seu discurso o respeito, a justiça,
para que o termo e a ideia do vega-
hábitos? a não violência, a compaixão como
nismo não sejam corrompidos pelo
sentidos que devem ser praticados
Frank Alarcón – A pauta de Di- uso popular, tal como aconteceu
e buscados ao longo da vida, resulta
reitos Animais não deveria causar com o termo vegetarianismo. Hoje,
incoerente que diariamente patroci-
estranheza a ninguém nem tam- lamentavelmente, muitas pessoas
nemos a tortura, o abuso e a morte
pouco ser difícil de acolhimento por que ainda consomem ovos, leites,
de tantos seres sencientes inocentes.
todos nós. Como já colocado, nós peixes, mel e outros derivados ou
da espécie Homo sapiens, também partes animais, autodenominam-se
somos animais. Uma espécie dentre IHU On-Line – O veganismo vegetarianos – claramente, um erro,
milhões de várias outras. A ideia de produz um projeto de ética? haja vista nenhum desses consti-
que a posse de um atributo qualquer Por que se diz que a prática ve- tuintes terem origem em vegetais.
nos dá direito de explorar, abusar e gana vai além da exclusão de Desta forma, foi necessária a adoção
matar outros organismos sem que proteína animal da dieta? do termo “vegetarianismo estrito”
haja uma necessidade de sobrevi- como diferenciador daqueles que
Frank Alarcón – Uma forma de
vência primordial, não se sustenta realmente não consomem nada de
entender Ética é vê-la como uma
nem prática, nem filosoficamente origem animal em sua dieta.
reflexão filosófica sobre o funda-
se nos colocamos no lugar daqueles
mento da ação, isto é, pensar sobre O veganismo como posicionamen-
que exploramos.
se resulta ser certa ou errada, boa to político e nicho de mercado tem
Um experimento mental muito ou má, uma determinada conduta crescido muito em todo o mundo.
utilizado para esclarecer essa pers- antes de colocá-la em prática. Nes- Artigo do “The Economist” de de-
pectiva é a de imaginar uma espécie se sentido, o veganismo apresenta- zembro de 2018 qualifica o ano de
alienígena escravizando nossa es- se como um projeto de coerência 2019 como o período em que o ve-

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TEMA DE CAPA

ganismo ganhará ainda mais força rando seu amor por animais, mas A compreensão da necessidade de
em todo o mundo – seja pela sua vê-lo em seguida comendo um ani- manifestar respeito pelo outro (hu-
bandeira ética como pelas inter-re- mal morto, frequentando rodeios ou mano ou não humano) transcende
lações que mantém com aspectos consumindo cosméticos testados em qualquer envolvimento fraternal,
ambientais, clínicos e econômicos animais. Como estas práticas não es- cultural ou relacional.
da vida moderna. Grandes cadeias timulam e patrocinam maus-tratos
comerciais em todo o globo, his- de vulneráveis sencientes?
toricamente ligadas à exploração IHU On-Line – Deseja acres-
Igualmente paradoxal é manifestar centar algo?
animal, apresentam gradativamen-
paixão por cães e gatos mas não se
te hoje um portfólio de produtos Frank Alarcón – A espécie Homo
abster de consumir, por exemplo,
veganos cada vez maior. Mesmo sapiens – isto é, nós –, distancia-se
uma tira de bacon (tira defumada
que esse interesse tenha como mo- de uma responsabilidade moral em
da barriga de um porco) por mero
tivação o mero lucro – e não neces- relação aos outros seres vivos sen-
capricho culinário. Se em alguns
sariamente uma mudança de pos- cientes por pura conveniência. Caso
países resulta normal comer cães
tura ética em relação ao outro –, o tivéssemos a oportunidade de convi-
ou baleias – algo que causa repulsa
papel do consumidor consciente é ver com outras espécies hominídeas
em nossa tradição ocidental –, em
fundamental para que mais e mais
outros como o Brasil, vacas, porcos, (H. neanderthalensis, H. erectus,
serviços e produtos excluam de sua
aves, peixes são submetidos a uma Denisovanos etc.) que em certa épo-
manufatura a exploração e morte
vida de miséria, dor, sofrimento e ca habitaram a superfície do planeta
de vulneráveis.
finalmente morte, para igualmente junto a nós, teríamos que lidar com
No Brasil especificamente, o vega- saciar paladares descolados de uma o dilema moral de considerá-los
nismo acompanha a tendência mun- reflexão ética. passíveis de exploração da forma
dial sendo cada vez mais procurado como abusamos de outros animais
e compreendido pela população. Es- – primatas inclusos. Praticaríamos
tima-se que 14% da população brasi- IHU On-Line – Particular- experimentação científica lesiva em
leira (algo como 30 milhões de pes- mente, o que o faz ser vegano? “homens das cavernas” por entender
26 soas) se declarem vegetarianas. Não Frank Alarcón – Sou vegano há que estes não pertencem ao nosso
resulta absurda a ideia de que alguns mais de uma década, sendo vege- círculo de consideração moral? Dirí-
desses milhões sejam efetivamente tariano desde os 10 anos de idade. amos que um “homem das cavernas”
veganos. Esses números manifestam Essa decisão surgiu muito cedo, de não seria dotado de atributos consi-
evidente crescimento. forma espontânea, porém refletida, derados humanos e o sujeitaríamos
a partir do momento em que entendi a abusos e morte a exemplo do que
não ser justo participar da explora- fazemos com outros animais não
IHU On-Line – É possível não
ção de organismos que eu reputava humanos? Reflexões como esta dei-
ser vegano e assumir uma pos-
terem pleno direito à vida e ao usu- xam claro como nos aproveitamos
tura ética de respeito ao direito
fruto de dignidade e direitos de es- do autoengano como salvo-conduto
dos animais?
colha. Ainda que o amor aos animais ao nosso abuso sobre vulneráveis e
Frank Alarcón – Penso que não seja um aspecto indissociável de inocentes. Jamais concordaríamos
me parece ser uma postura coerente. minha personalidade, não é necessá- com tal raciocínio se fôssemos nós a
Equivale a ouvir uma pessoa decla- rio amar animais para respeitá-los. espécie subjugada.■

Leia mais
- O abate de animais no Brasil alimenta uma cadeia monstruosa de ilicitudes jurídicas,
ambientais, sanitárias e éticas. Entrevista especial com Frank Alarcón, publicada nas No-
tícias do Dia de 04-03-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2F0v5y9.

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Conhecer o alimento é fundamental


para se conectar ao planeta
Jéssika Oliveira diz que há cinco motivos para ser vegano, mas sua mudança de
hábito ocorreu a partir do desejo de conhecer mais sobre os produtos que come
João Vitor Santos

H
á quem considere o veganismo para mim. Há muitos restaurantes vega-
ou vegetarianismo uma moda. nos fundados por pessoas incríveis, com
Para a ativista Jéssika Oliveira, sistemas de trabalho e produção inspira-
aderir a essas práticas é muito mais do dores, e o mesmo vale para vários produ-
que isso, é um estilo de vida, uma ética tores locais de legumes, frutas e verduras.
própria que, muitas vezes, não é assimi- Decidi que é para essas pessoas que que-
lada pela maioria das pessoas. “Ainda há ro dar o meu dinheiro”, acrescenta.
muita desinformação sobre o veganis- Assim, em pouco tempo percebeu
mo”, avalia, em entrevista concedida por transformações pessoais na relação com
e-mail à IHU On-Line. Para ela, há pelo o planeta. “Para mim, a principal mu-
menos cinco motivos para pensar em dança foi me conectar mais com a minha
aderir a esse modo de vida. “Pelo planeta, comida”, diz. Hoje, a ativista integra a
pois o consumo de produtos de origem organização Million Dollar Vegan, defini-
27
animal causa desmatamento, extinção de da pelo grupo que coordena a ação como
espécies animais e acelera as mudanças “uma campanha que objetiva aumentar a
climáticas. Para não causarmos o sofri- conscientização sobre algumas das ques-
mento de bilhões de animais. Para que tões mais urgentes dos nossos tempos”.
possamos alimentar as pessoas que não Recentemente, a jovem Genesis Butler,
têm o que comer. Para cuidar da nossa de 12 anos, ativista pelos direitos dos ani-
saúde. Para alinhar os valores mais pro- mais e pela proteção ambiental, que tam-
fundos em nosso coração com as nossas bém integra o grupo, ofereceu um milhão
ações”, pontua. de dólares ao Papa Francisco para que
ele seguisse uma dieta vegana durante a
Jéssika conta que, em seu caso, o va-
Quaresma. O pontífice agradeceu a ini-
lor mais profundo tinha relação direta
ciativa e destacou a importância de ações
com a comida. “Hoje somos completa-
como essas da menina, mas não prome-
mente desconectados da nossa comida.
teu aderir ao veganismo.
Não entendemos como foi produzida, de
onde vem, que caminho fez até chegar ao Jéssika Oliveira é coordenadora da
nosso prato e muitas vezes não sabemos campanha Million Dollar Vegan no Brasil.
o que ela é, e essa desconexão faz com Formada em Jornalismo, trabalha com
que tenhamos dificuldades em entender relações públicas e coordena a comuni-
o impacto que causamos ao consumi-la”, cação do Banana-Terra, um projeto do
observa. “Me tornei vegana por todos os Greenpeace e da Anistia Internacional.
motivos citados, mas tem um que não é Vegana, para ela, comer é um ato político.
comum às pessoas e que foi importante Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como surgiu car as pessoas a experimentar Jéssika Oliveira – A ideia da
a ideia da campanha Million o veganismo no tempo de Qua- campanha surgiu no Reino Unido,
Dollar Vegan1? Por que provo- resma? quando um grupo de amigos con-
versava sobre como fazer informa-
1 Saiba mais sobre a campanha em milliondollarvegan. com/pt-br/. (Nota da IHU On-Line) ções sobre a ameaça das mudanças

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TEMA DE CAPA

climáticas, o sofrimento dos animais preocupação com o meio ambiente para pessoas, em vez de para ani-
na indústria de alimentação e a so- e com o bem estar animal. Ele tam- mais, como fazemos hoje.
lução para esses problemas – o ve- bém, por ser o líder da religião ca-
Por fim, problemas de saúde, pois o
ganismo – chegar ao maior número tólica, tem o poder de influenciar o
consumo de produtos de origem ani-
de pessoas, o mais rápido possível. 1,2 bilhão de pessoas que a seguem,
mal está ligado ao desenvolvimento
Nesse grupo estavam os ingleses além de que o catolicismo, por na-
de doenças cardíacas, diabetes tipo
Matthew Glover2 e Jane Land3, que tureza, tem muitos dos valores do
2 e até alguns tipos de câncer. Além
já tinham criado a campanha de su- veganismo. “Ame o próximo como
disso, também é uma das causas de
cesso Veganuary. Ela basicamente a si mesmo” está na Bíblia e é basi-
estarmos desenvolvendo imunidade
convida as pessoas a experimenta- camente o que o veganismo defende:
a antibióticos.
rem o veganismo durante o mês de que você ame os animais e respeite o
janeiro, porque, como na virada do direito deles de viverem uma vida de Porém, para nós, o veganismo é
ano muitas delas já fazem promessas qualidade; ame o planeta – a nossa sobre compaixão e não sobre perfei-
de mudança de hábitos, entende-se “casa comum”, como o papa diz – e ção, então estimulamos as pessoas
que estariam mais abertas a ideia respeite a sua capacidade de suprir a continuarem no caminho mesmo
nesse período. as nossas necessidades, sem destruí se cometerem algum erro. Cada re-
-lo com a nossa ganância. feição sem nada de origem animal
A suposição estava certa! O Vega-
já salva algumas vidas e já contribui
nuary está em seu quarto ano e, só O poder das religiões de estimula-
para um mundo mais compassivo.
em janeiro de 2019, 250 mil pessoas rem uma mudança de grande esca-
experimentaram o veganismo por la é imenso, porque elas trabalham
causa dele. A Million Dollar Vegan os valores que as pessoas têm mais
segue a mesma lógica: entendemos profundamente em seus corações. A
que como muita gente já deixa de compaixão é um desses valores que “Ame o próximo
como a si
consumir alguns tipos de alimentos todas as religiões estimulam e, na
– frequentemente a carne – durante verdade, as pessoas também, mas

28
a Quaresma, estariam mais abertas a
experimentarem o veganismo.
não se manifesta na forma como
a maioria de nós se alimenta. Uma mesmo” está
reflexão que proponho é: “O que Je-
sus diria da forma como os animais na Bíblia e é
IHU On-Line – O que levou o
grupo a propor esse desafio ao
são tratados na indústria alimentícia
hoje?” Por tudo isso, acreditamos basicamente
Papa Francisco? Qual o papel da
religião, ou da fé, no desafio de
que muitas pessoas – crentes ou não
– podem se identificar com o vega-
o que o
promover uma mudança como
as que defende o veganismo?
nismo, pois é uma oportunidade de
alinhar os seus valores mais íntimos
veganismo
Jéssika Oliveira – O Papa Fran-
cisco era a escolha óbvia. Ele já pu-
com os seus hábitos. defende”
blicou uma Carta Encíclica – a Lau-
IHU On-Line – De que forma
dato Si’4, em 2015 – onde mostra sua
o veganismo é compreendido
pelo movimento Million Dollar IHU On-Line – Podemos falar
2 Matthew Glover: cofundador do Veganuary. Depois de
ser vegetariano por 10 anos, Matthew assistiu “ao vídeo
Vegan? numa ética vegana? E no que
que a indústria da carne não quer que você veja” e ficou
chocado ao ver as realidades cruéis por trás das indústrias Jéssika Oliveira – Vemos o vega- consiste essa ética?
de laticínios e ovos. Ele então se tornou vegano. (Nota da
IHU On-Line)
nismo como o caminho para resolver Jéssika Oliveira – Há muitas
3 Jane Land: cofundadora do Veganuary. Era vegetariana alguns dos problemas mais graves formas de explicar a ética do vega-
há 10 anos antes de conhecer Matthew e fundar o movi-
mento. Para ela, o Veganuary, proposta de experimentar que nossa sociedade enfrenta. As nismo, mas eu costumo usar a mais
o veganismo no primeiro mês do ano, entre as propostas mudanças climáticas, porque a pe-
de mudança para o ano que se inicia, é a maneira perfeita simples: não fazer ao próximo o que
para as pessoas experimentarem comida vegana e apren- cuária é uma das maiores emissoras você não gostaria que fizessem com
derem sobre o sofrimento dos animais de criação e o im-
pacto que o consumo de carne tem na saúde das pessoas dos gases que aceleram o fenômeno. você. Esse próximo normalmente
e no mundo natural. (Nota da IHU On-Line)
4 Laudato Si’ (português: Louvado sejas; subtítulo: “Sobre
A crueldade com os animais. A fome é entendido como os animais, mas
o Cuidado da Casa Comum”): encíclica do Papa Francisco, mundial, pois uma alimentação sem também vale para a natureza. Muitas
na qual critica o consumismo e desenvolvimento irres-
ponsável e faz um apelo à mudança e à unificação glo- carne, leite, ovos e outros produtos vezes também estamos tratando mal
bal das ações para combater a degradação ambiental e de origem animal exige menos espa- a nós mesmos. Por exemplo, quan-
as alterações climáticas. Publicada oficialmente em 18 de
junho de 2015, mediante grande interesse das comunida- ço para ser cultivada e nesse espaço do consumimos produtos de origem
des religiosas, ambientais e científicas internacionais, dos
líderes empresariais e dos meios de comunicação social, o
seria possível cultivar mais comida animal que nos fazem mal ou então
documento é a segunda encíclica publicada por Francisco.
A primeira foi Lumen fidei em 2013. No entanto, Lumen quando sofremos por consumir ali-
fidei é na sua maioria um trabalho de Bento XVI. Por isso
Laudato Si’ é vista como a primeira encíclica inteiramente publicou uma edição em que analisa a Encíclica. Confira
mentos que causaram sofrimento
da responsabilidade de Francisco. A revista IHU On-Line em http://bit.ly/1NqbhAJ (Nota da IHU On-Line) em outros seres.

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IHU On-Line – Como e por soas pensarem que é necessário co- dizendo que todos esses animais vi-
que se tornar um vegano hoje? mer produtos de origem animal para vem curtas vidas de extrema cruelda-
ser saudável e inteligente, o que não de. Por fim, não entendemos também
Jéssika Oliveira – Há cinco mo-
é verdade, como não só mostram que para produzir essa comida gas-
tivos comumente citados. Pelo pla-
muitos estudos, mas muitas pesso- tamos espaço – terrenos mesmo! –,
neta, pois o consumo de produtos de
as veganas que estão aí saudáveis, água, energia, poluímos o solo, assim
origem animal causa desmatamento,
inteligentes e muitas até famosas e como rios, mares etc. Essa falta de
extinção de espécies animais e acele-
fazendo um sucesso estrondoso. entendimento sobre o que é a nossa
ra as mudanças climáticas. Para não comida e o seu processo de produção
causarmos o sofrimento de bilhões O terceiro é que hoje somos com-
é outro dos principais desafios.
de animais – anualmente são mor- pletamente desconectados da nossa
tos em torno de 70 bilhões de ani- comida. Não entendemos como foi
mais em todo o mundo na indústria
de alimentação. Para que possamos
produzida, de onde vem, que cami-
nho fez até chegar ao nosso prato e “Vemos o
alimentar as pessoas que não têm
o que comer. Para cuidar da nossa
muitas vezes não sabemos o que ela
é, e essa desconexão faz com que te-
veganismo
saúde. Para alinhar os valores mais
profundos em nosso coração com
nhamos dificuldades em entender o
impacto que causamos ao consumi
como o
as nossas ações. Porém, há outras,
então cada um que tiver vontade de
-la. Vou citar um exemplo. Se você
ver qualquer postagem em uma rede
caminho para
experimentar o veganismo deve ser social de alguma página que defen-
de o veganismo e o vegetarianismo,
resolver alguns
honesto consigo mesmo e entender
o que te faz ter essa vontade. falando do impacto da produção de
soja para o desmatamento, prova-
dos problemas
velmente vai ver alguém dizendo que mais graves
IHU On-Line – Quais os de- isso acontece por causa dos próprios
safios para conscientizar as veganos e vegetarianos que comem que nossa
sociedade
pessoas da importância da soja. As pessoas não sabem que a 29
complexa mudança de hábitos maior parte de soja do mundo é pro-
do veganismo que vão além de
“não comer carne”?
duzida para alimentar os animais
que comemos. enfrenta”
Jéssika Oliveira – Há três prin-
Maus-tratos aos animais
cipais desafios. O primeiro deles é
econômico, pois as empresas que IHU On-Line – Oferecer di-
Outro exemplo: a maioria de nós nheiro para que as pessoas as-
produzem esse tipo de produto são pensa que os animais criados na in- sumam uma outra ética de vida
muitos poderosas, doadoras de cam- dústria alimentícia têm uma vida ple- não monetiza demais uma con-
panhas eleitorais e se vendem como na. No imaginário popular, os porcos versão que vai além dessas lógi-
grandes geradoras de emprego, brincam na lama, as galinhas ficam cas do capital?
apesar de estudos mostrarem que caçando minhocas em grandes ter-
o agronegócio concentra renda, em renos abertos, logo ao lado de vacas Jéssika Oliveira – Quando ofe-
vez de distribuí-la. Então, mostrar que pastam o dia todo, e só depois de recemos ao Papa Francisco 1 milhão
para as pessoas que essa lógica eco- viverem muitas aventuras e alegrias de dólares para que ele experimen-
nômica não está beneficiando-as é é que são mortos. A realidade é que tasse o veganismo nesta Quaresma,
um desafio. as porcas são inseminadas, então são o que lhe demos foi a oportunidade
colocadas em gaiolas onde não con- de combater todos os problemas an-
O segundo é que ainda há muita
seguem nem se mexer durante o pe- teriormente citados e ainda ajudar
desinformação sobre o veganismo.
ríodo de gestação e, por fim, quando uma ou mais instituições de carida-
Muitos pensam que ser vegano é
seus filhotes nascem, são insemina- de. A oferta está alinhada com o va-
caro, pois acreditam que é necessário lor da compaixão, estimulado e va-
das de novo e o ciclo recomeça, um
consumir produtos industrializados, lorizado por tantos de nós, inclusive
processo tão cruel que faz esses ani-
mas não é. Uma pessoa que decida pelo papa.
mais ficarem “gastos” aos olhos da
se tornar vegana agora, lendo essa
indústria e serem sacrificados.
entrevista, provavelmente já tem a
maioria dos alimentos necessários Pintinhos machos são triturados na IHU On-Line – A campanha
na geladeira e no armário. Uma das indústria dos ovos, pois, afinal, eles Million Dollar Vegan conquis-
pastas de dente veganas (por não não dão ovos e, além de não darem tou a adesão de várias celebri-
testar em animais) mais conhecidas lucros, ainda dariam a despesa de dades. No que consistem essas
custa R$ 3,00, mais barata do que a alimentá-los. Eu poderia dar mais adesões? E como estão as ade-
maioria. Também é comum as pes- muitos exemplos, mas posso resumir sões, de modo geral, no Brasil e

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no mundo? Qual imagina ser a Moby12, Joaquin Phoenix13, Brigitte nos fundados por pessoas incríveis,
efetividade dessas adesões? Bardot14, Woody Harrelson15, entre com sistemas de trabalho e produ-
muitos outros. Essas adesões são ção inspiradores, e o mesmo vale
Jéssika Oliveira – As celebrida-
fundamentais. No Brasil, por exem- para vários produtores locais de
des nos apoiam de três formas. Al-
plo, o fato da Luisa Mell ter divul- legumes, frutas e verduras. Decidi
gumas assinaram a carta da ativista
gado a carta da Genesis ao papa e a que é para essas pessoas que quero
Genesis Butler, de 12 anos, líder do petição que todos podem assinar16, dar o meu dinheiro, que é esse tipo
desafio Million Dollar Vegan, ao fez com que o país fosse o líder em de negócio que quero financiar,
papa. Outras fizeram postagens em assinaturas. Essas celebridades po- não a destruição do planeta e uma
suas redes sociais e deram entrevis- dem levar a mensagem da campa- crueldade sem fim com os animais.
tas divulgando a campanha. Outras nha para pessoas que nós mesmos Para mim, a principal mudança foi
nos permitiram usar fotos e vídeos não atingimos e ainda são inspiração me conectar mais com a minha co-
delas contando por que se tornaram para muita gente. Somos gratos pelo mida. Buscar conhecer mais sobre
veganas, para inspirarem outras apoio delas. o processo de produção dela e sa-
pessoas que quisessem experimen-
ber o que estou comendo.
tar o veganismo nesta Quaresma.
IHU On-Line – O que levou
No Brasil, as pessoas que nos
você a se tornar vegana? Que IHU On-Line – Sua trajetória
apoiam são Luisa Mell5, Sonia
mudanças implicaram – ou im- pessoal e profissional esteve
Abrão6, Alana Rox7, Ellen Jabour,8 plicam –, para você, essa mu-
o fisiculturista Paru9 e a nutricionis- sempre associada ao trabalho
dança? em organizações que desenvol-
ta Alessandra Luglio10. No mundo,
Jéssika Oliveira – Me tornei ve- vem ações de proteção ao meio
contamos com Paul McCartney11,
gana por todos os motivos citados – ambiente. Mas nem sempre
5 Marina Zatz de Camargo Zaborowsky (1978): mais meio ambiente, animais, saúde etc. proteger o meio ambiente en-
conhecida pelo nome artístico Luisa Mell, é uma ativis-
– mas tem um que não é comum às volve a adesão ao modo de vida
ta, apresentadora de televisão, atriz e escritora brasileira.
Nascida em família judia, tornou-se apresentadora de pessoas e que foi importante para vegano. Como compreender
programas especializados em animais, sobretudo cães,
mim. Há muitos restaurantes vega- essa relação?
30 com o qual tornou-se conhecida pelo neologismo de “ca-
chorreira”. É presidente do Instituto Luisa Mell. (Nota da
IHU On-Line) Jéssika Oliveira – As pessoas são
6 Sonia Maria Abrão (1958): mais conhecida como Sonia e Ringo Starr. (Nota da IHU On-Line)
Abrão, é uma jornalista, apresentadora de televisão e es- 12 Richard Melville Hall (1965): mais conhecido pelo seu diferentes e isso faz com que existam
critora brasileira. (Nota da IHU On-Line) nome artístico Moby, é um cantor, músico, DJ e fotógrafo
7 Alana Rox: apresentadora, empreendedora e ativista estadunidense. (Nota da IHU On-Line)
muitas formas de fazer ativismo. Há
vegana. Foi desde sempre ovolactovegetariana, tendo se 13 Joaquin Rafael Phoenix (1974): anteriormente cre- aquelas que acreditam que o vega-
tornado vegana em 2004 após se mudar para São Paulo. ditado como Leaf Phoenix, é um ator e cantor estaduni-
É uma digital influencer e tem mais de 150 mil seguidores dense. Ele nasceu em Porto Rico onde viveu até os quatro nismo é o caminho; há outras que
no instagram e mais de 70 mil em seu facebook tendo anos de idade. Sua família retornou para os Estados Uni-
uma das maiores contas veganas das redes brasileiras. dos, onde ele foi criado. (Nota da IHU On-Line)
acham que esse caminho é demora-
(Nota da IHU On-Line) 14 Brigitte Anne-Marie Bardot (1934): ex-atriz e atual do e que é melhor cobrar empresas e
8 Ellen Jabour (1977) modelo e apresentadora brasileira ativista francesa. Conhecida por suas iniciais, BB, é con-
de televisão. (Nota da IHU On-Line) siderada um dos maiores símbolos sexuais dos anos 50 e políticos para a produção de alimen-
9 Paulo Victor: conhecido como Paru Vegan, é um fisicul- 60. Tornou-se ativista dos direitos animais, após se retirar
turista vegano, um dos maiores nomes do fisiculturismo do mundo do entretenimento e se afastar da vida públi-
tos não destruir o meio ambiente e
nacional. (Nota da IHU On-Line) ca. Ícone de popularidade da década de 1960, foi eleita não ser cruel com os animais, pois
10 Alessandra Luglio: nutricionista vegetariana. Ela conta pela revista TIME um dos cem nomes mais influentes da
que já demonstrava sua revolta com a crueldade animal história da moda. Bardot tornou-se conhecida internacio- essa seria uma solução mais rápida
desde os três anos de idade e passou a vida oscilando nalmente em 1957, após protagonizar o polêmico filme E
entre períodos vegetarianos ativistas e outros comendo Deus Criou a Mulher, produzido pelo seu então marido, e em larga escala. Pontos de vista di-
carnes brancas. Quando completou 40 anos, repensou Roger Vadim. (Nota da IHU On-Line) ferentes são importantes porque ga-
seus hábitos e resolveu se assumir vegetariana. (Nota da 15 Woodrow ‘Woody’ Tracy Harrelson (1961): ator nor-
IHU On-Line) te-americano. Foi indicado ao Oscar três vezes, 1996, 2010 rantem pessoas atuando em frentes
11 Paul McCartney (1942): cantor, compositor, multi-ins- e 2017. É defensor da legalização do uso da maconha e
trumentista, empresário, produtor musical, cinematográfi- é militante em causas ecológicas, apoiando o grupo am- diversas e a pressão pela mudança
co e ativista dos direitos dos animais britânico. McCartney bientalista Ruckus Society. (Nota da IHU On-Line) vinda de muitos lados e em vários
alcançou fama mundial como membro da banda de rock 16 A carta, em português, bem como o link para petição, estão
britânica The Beatles, com John Lennon, George Harrison disponíveis em http://bit.ly/2F9CQln. (Nota da IHU On-Line) formatos.■

Leia mais
- Menina oferece um milhão de dólares ao papa: ‘’Mas ele deve seguir uma dieta ve-
gana durante a Quaresma’’. Reportagem publicada em La Repubblica, reproduzida nas
Notícias do Dia de 07-02-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2UzPRLA.
- Papa envia bênção a ativista mirim, mas não promete virar vegano durante a Quares-
ma. Reportagem publicada em National Catholic Reporter e reproduzida nas Notícias do
Dia de 08-03-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2O2U4Vs.

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O veganismo como conversão e a


conexão com outras formas de vida
Tainá Alves observa que uma ética cristã plena deve estar
alinhada com as perspectivas de cuidado com o planeta
João Vitor Santos

A
jovem acadêmica de Arquitetura mudança de hábitos, como conceber
Tainá Alves se tornou vegana. uma economia menos nociva. “Acredito
Para ela, além de uma postu- que uma ‘economia que não mata’1 tem
ra ética e política, essa também é uma suas bases na partilha, como diz Lau-
forma de materializar a sua fé cristã. dato Si’”, pontua. “Os sinais dos tempos
Afinal, compreende que, assim como exigem uma resposta forte de todos
o veganismo, o cristianismo se propõe nós, Igreja institucional e igreja povo
a romper com o antropocentrismo. de Deus para que, juntos, possamos su-
“Creio que o principal desafio, no cam- perar essa ‘crise integral’ que ameaça a
po da fé cristã, seja este: recolocar o ser nossa casa comum”, reflete.
humano como parte da criação e não
A quem resiste a essas provocações,
como dominador, e a partir daí mudar-
a estudante adverte que ignorar esses
mos nossa relação com todas as cria-
32 alertas é o oposto de viver plenamen-
turas. E essa lógica não é recente. São
te os valores evangélicos pregados por
Francisco já tratava toda criação como
Cristo. “A fé cristã se baseia na defesa
irmãos e irmãs”, destaca na entrevista
da vida em todas as suas dimensões.
concedida por e-mail à IHU On-Line.
‘Eu vim para que tenham vida, e a te-
“Ao aderir ao veganismo, estamos en-
nham em abundância’ (Jo 10,10). Qual-
trando numa luta contra essa explora-
quer ameaça à vida tem que ser comba-
ção antiética de recursos do planeta. E
tida, e isso inclui toda a vida na terra e
a Terra é o maior presente de Deus, é
também as vidas futuras”, sintetiza.
a nossa casa, é uma forma de conexão
direta com Ele”, acrescenta. Tainá Alves tem 22 anos, é estudante
Tainá tem se dedicado a discutir a de Arquitetura na Universidade Federal
Encíclica Laudato Si’, em que o Papa de Uberlândia, em Minas Gerais. Parti-
Francisco defende o cuidado da Casa cipa do Movimento Católico Global pelo
Comum, a partir da perspectiva da Clima - MCGC, em que integra grupos
Ecologia Integral, que consiste em ob- de discussão e divulgação da Encíclica
servar justamente a conexão entre to- Laudato Si’. Vegana, considera que vive
das as formas de vida e com o próprio o veganismo de forma integral.
divino. Para tanto, sugere uma radical Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consis- Tainá Alves – O Movimento tem ráveis. A riqueza da Encíclica Lau-
tem as ações e quais os objeti- buscado engajar e conectar pessoas, dato Si’2 tem sido um norte para di-
vos do Movimento Católico Glo- organizações, instituições e movi-
bal pelo Clima - MCGC? 1 mentos de várias partes do mundo 2 Laudato Si’ (português: Louvado sejas; subtítulo: “Sobre
no cuidado da nossa casa comum e o Cuidado da Casa Comum”): encíclica do Papa Francisco,
na qual critica o consumismo e desenvolvimento irres-
1 A expressão ‘economia que mata’ foi usada pelo Papa em defesa dos mais pobres e vulne- ponsável e faz um apelo à mudança e à unificação glo-
Francisco em discurso no 2º Encontro Mundial dos Mo- bal das ações para combater a degradação ambiental e
vimentos Populares, realizado em Santa Cruz de La Sierra, as alterações climáticas. Publicada oficialmente em 18 de
na Bolívia, em 2016. A íntegra do discurso foi reproduzida junho de 2015, mediante grande interesse das comunida-
pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU e está disponível em http://bit.ly/2fX3QeA. (Nota da IHU On-Line) des religiosas, ambientais e científicas internacionais, dos

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“A fé cristã se baseia na
defesa da vida em todas
as suas dimensões”

versas ações concretas, em diversos não têm voz. Os sinais dos tempos mãos e irmãs. Irmão sol, irmã ter-
contextos, tendo sempre em vista a exigem uma resposta forte de todos ra, irmã água, em um tempo que
“Ecologia Integral”. nós, Igreja institucional e igreja povo nem se pensava em crise ecológi-
Nessa perspectiva, as ações vão de Deus para que, juntos, possamos ca. A espiritualidade franciscana
desde fomentar mudanças pessoais, superar essa “crise integral” que busca viver essa dimensão da fé e
mudanças nesse estilo de vida basea- ameaça a nossa casa comum. acredito que nos mostra um possí-
do na lógica do consumo, até campa- vel caminho a seguir.
nhas globais, como desinvestimento
de combustíveis fósseis por institui- IHU On-Line – Desde o início
ções católicas e presença ativa nas de pontificado, Francisco tem IHU On-Line – Por que a re-
Conferências das Partes (COPs) das insistido que os valores evan- lação entre consumo e cuida-
Nações Unidas sobre Mudança do gélicos devem ser vividos na dos com o planeta é algo que
Clima (UNFCCC). vida concreta cotidianamente. precisa ser tensionado em
Quais os desafios para a cons- nosso tempo? Como conce- 33
cientização de que os cuidados ber uma “economia que não
IHU On-Line – Como compre- com o planeta têm conexão di- mate”?
ender o papel da Igreja em cau- reta com essa vivência diária
Tainá Alves – Em nosso tempo,
sas como a de combate ao aque- do Evangelho?
vivemos em uma constante exposi-
cimento global? Tainá Alves – A nossa visão an- ção de incentivos ao consumo de-
Tainá Alves – A Igreja tem um pa- tropocêntrica nos distanciou de toda senfreado. Foi internalizada uma
pel fundamental nessas discussões. a criação. Colocar a natureza como cultura que propaga a ideia de que
Numa perspectiva moral, a fé cristã algo a serviço do homem e a serviço para nos sentirmos completos e re-
se baseia na defesa da vida em todas da economia trouxe graves conse- alizados precisamos sempre com-
as suas dimensões. “ Eu vim para que quências. Tudo vira mercado. Tudo prar um novo produto, mais atuali-
tenham vida, e a tenham em abun- tem um preço. Uma má interpreta- zado e moderno, gerando produtos
dância ” (Jo 10,10). Qualquer ameaça ção do Livro do Gênesis sobre a lógi- descartáveis, que são facilmente
à vida tem que ser combatida, e isso ca de dominar a terra também con- substituídos. As consequências
inclui toda a vida na terra e também tribui nesse distanciamento. desta mentalidade são fatais para
as vidas futuras. O aquecimento glo- o planeta: tem-se uma exploração
Talvez o principal desafio, no
bal já afeta centenas de milhares de incansável e irresponsável de seus
campo da fé cristã, seja este: reco-
vidas no planeta, principalmente re- recursos e um acúmulo excessivo
locar o ser humano como parte da
ferente à biodiversidade e aos mais de lixo, que libera substâncias no-
criação e não como dominador, e
pobres, e também ameaçam a vida civas para a terra.
a partir daí mudarmos nossa rela-
das gerações futuras. ção com todas as criaturas. E essa O papa Bento XVI foi citado na En-
Já numa perspectiva política, a lógica não é recente. São Francis- cíclica por seu convite que propõe
Igreja Católica está presente nos co3 já tratava toda criação como ir- “eliminar as causas estruturais das
quatro cantos do mundo e tem a ca- disfunções da economia mundial e
pacidade de falar por aqueles que 3 São Francisco de Assis (1181-1226): frade católico, corrigir os modelos de crescimento
fundador da “Ordem dos Frades Menores”, mais conhe- que parecem incapazes de garantir
cidos como Franciscanos. Foi canonizado em 1228 pela
líderes empresariais e dos meios de comunicação social, o Igreja Católica. Por seu apreço à natureza, é mundialmente o respeito do meio ambiente”. Acre-
documento é a segunda encíclica publicada por Francisco. conhecido como o santo patrono dos animais e do meio
A primeira foi Lumen fidei em 2013. No entanto, Lumen ambiente. Sobre Francisco de Assis confira a edição 238 dito que uma “economia que não
fidei é na sua maioria um trabalho de Bento XVI. Por isso
Laudato Sí’ é vista como a primeira encíclica inteiramente
da IHU On-Line, de 01-10-2007, intitulada Francisco. O
santo, disponível para download em http://bit.ly/1NLAtl7
mata” tem suas bases na partilha,
da responsabilidade de Francisco. A revista IHU On-Line e a entrevista com a medievalista italiana Chiara Frugoni,
publicou uma edição em que analisa debate a Encíclica. intitulada Uma outra face de São Francisco de Assis, na re-
Confira em http://bit.ly/1NqbhAJ (Nota da IHU On-Line) vista IHU On-Line número 469, de 03-08-2015, disponível em http://bit.ly/2erAzUq. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

como diz Laudato Si’ “ a Economia ção, mas a todas as relações de consu- terras, superaquecendo o planeta,
de Comunhão4, se quiser ser fiel ao mo daquele indivíduo. Desta forma, causando desmatamento, poluindo a
seu carisma, não deve somente curar não é simplesmente deixar de comer terra, oceanos e o ar, e ainda nos tor-
as vítimas do sistema, mas construir produtos de origem animal, mas mu- nando mais vulneráveis a doenças
um sistema no qual as vítimas sejam dar seus hábitos para que eles não in- crônicas, como obesidade, diabetes e
sempre menos, sistema no qual, pos- cluam uma prática exploradora. alguns tipos de câncer.
sivelmente, não existam mais víti- Assim, ao aderir ao veganismo, es-
Assim, ao optar por um estilo de
mas. Enquanto a economia produzir tamos entrando numa luta contra
vida vegano, o indivíduo também não
uma vítima e existir uma só pessoa essa exploração antiética de recur-
compra ou utiliza nenhum produto
descartável, a comunhão não é ain- sos do planeta. E a Terra é o maior
que promova a exploração, incluin-
da realizada, a festa da fraternidade presente de Deus, é a nossa casa, é
do roupas, cosméticos, materiais de
universal não é plena. (...) Quando uma forma de conexão direta com
limpeza, dentre outros. Estão inseri-
partilhais e doais os vossos lucros, Ele. Se não cuidamos dela, como po-
dos no conceito de exploração tanto
estais fazendo um gesto de alta espi- demos nos aproximar dEle? A igreja
o cárcere em que são mantidos os
ritualidade, dizendo com os fatos, ao não prega um domínio absoluto do
animais expostos à pecuária, quanto
dinheiro: tu não és Deus, tu não és homem sobre a Terra, pois o único
as consequências dessa prática para
senhor, tu não és patrão!”. soberano é Deus. Logo, apesar de
o planeta, como o desmatamento, a
emissão de gases de efeito estufa, a termos habilidades que nos permi-
poluição das águas e a extinção de tem subordinar outros seres, não
IHU On-Line – Você traba-
espécies. E, ainda, a promoção de tes- devemos fazê-lo, pois temos a res-
lha promovendo debates e re-
tes de produtos em animais ou o uso ponsabilidade de governar o planeta
flexões acerca da Laudato Si’.
de trabalho escravo para produção. de forma caridosa e altruísta. Como
Como tem sido a recepção da
Portanto, é uma mudança no estilo a própria Laudato Si’ cita, “Não so-
encíclica três anos depois de
mos Deus. A terra existe antes de nós
sua publicação? de vida que causa um grande impacto
e foi-nos dada. (...) É importante ler
no modelo de consumo desenfreado
Tainá Alves – A Laudato Si’ tem os textos bíblicos no seu contexto,
a que estamos expostos, de modo a
34 sido um forte instrumento de traba- com uma justa hermenêutica, e lem-
promover um ambiente mais ético,
lho em diversos contextos. No geral, brar que nos convidam a «cultivar e
sustentável e justo.
as pessoas têm muita abertura e veem guardar» o jardim do mundo (cf. Gn
o documento com seriedade e impor- 2, 15). (...) Cada comunidade pode
tância. São muitos espaços de refle- tomar da bondade da terra aquilo
xões, estudos, muitos documentos “A nossa visão de que necessita para a sua sobrevi-
vência, mas tem também o dever de
com linguagem adaptada, desde co-
munidades locais até instituições in- antropocêntrica a proteger e garantir a continuidade
da sua fertilidade para as gerações
ternacionais, católicas e não católicas.
Acredito que o desafio tem sido trans- nos distanciou futuras. Em última análise, «ao Se-
formar as ideias em ações práticas, ir
para além do campo da reflexão.
de toda a nhor pertence a terra» (Sl 24/23,
1), a Ele pertence «a terra e tudo o

criação” que nela existe» (Dt 10, 14). Por isso,


Deus proíbe-nos toda a pretensão
IHU On-Line – Como você de posse absoluta: «Nenhuma terra
compreende o veganismo? Por será vendida definitivamente, por-
que se diz que práticas como que a terra pertence-Me, e vós sois
IHU On-Line – Podemos falar apenas estrangeiros e meus hóspe-
essas vão muito além de não
em uma ética, uma forma de des» (Lv 25, 23)”.
comer carne?
vida, a partir de práticas como
Tainá Alves – O veganismo é um o veganismo? E que conexões
movimento que engloba práticas sus- podemos fazer entre uma “éti- IHU On-Line – Apesar dos
tentáveis, a favor da vida e contra a ca vegana” e a Laudato Si’? inúmeros avanços e proposi-
exploração do outro e do planeta no ções para animar outras for-
Tainá Alves – Sim, o veganismo
cotidiano do ser humano como um mas de vida e relação com o
traz benefícios substanciais ao pla-
todo, não se restringindo à alimenta- planeta, a Laudato Si’ também
neta e à vida do ser humano. Ele
é criticada por alguns por si-
vem como uma forma de combater
4 A temática da Economia de Comunhão foi tratada em lenciar a respeito do direito dos
entrevista com a economista Alessandra Smerilli, publica- os malefícios trazidos pela indústria
da nas Notícias do dia de 02-06-2018, no sítio do Instituto animais5. Como avalia essa crí-
Humanitas Unisinos – IHU, intitulada “Economia de comu- alimentícia exploradora. Um quilo
nhão é alternativa à voracidade de um mercado preda-
dor”, disponível em http://bit.ly/2OcjaS2. Recentemente, de bife precisa de aproximadamente 5 Uma das críticas é feita pelo teólogo Gilmar Zampiere,
o IHU publicou um novo artigo de Smerilli, em que trata
do tema. Acesse em http://bit.ly/2TYgCMw. (Nota da IHU
16.000 litros de água para ser pro- detalhada no artigo A Encíclica Laudato Si’ e os animais,
publicada no Caderno de Teologia Pública número 110,
On-Line) duzido e a pecuária está destruindo disponível em http://bit.ly/2Oc6ue3. O tema também foi

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tica? Como as questões acerca mentar-se com simplicidade inclua parar para a Páscoa, limpar nossa
do direito dos animais aparece comer comida de verdade, aque- alma e nossos corações.
na Encíclica? la que vem da terra, da natureza,
Durante esse intervalo, é comum
prontinha para ser consumida por
Tainá Alves – Acredito que a dis- as pessoas aderirem a novos hábitos
nós. Leguminosas, frutas, verduras,
cussão sobre os direitos dos animais como forma de sacrifício e de colo-
grãos… Existe uma infinidade de
pode ser aprofundada e abordada car Deus no centro de sua vida. Des-
alimentos que não exigem esforço
de forma mais direta, mas a Lauda- ta forma, acredito que ao trazer ao
para serem preparados e degustados
to Si’ discorre sobre a responsabili- debate o veganismo estamos de fato
e foram criados por Deus para nos
dade do ser humano para com o pla- expondo uma forma de nos purificar
sustentar. A Bíblia preconiza o ve-
neta e os seres vivos diversas vezes, de corpo e alma, porque, como já
getarianismo. Em Gênesis 1, 29-30,
referindo-se sutilmente aos direitos mencionado, esse estilo de vida está
Deus estabelece sua primeira lei die-
dos animais. diretamente ligado ao cuidado com
tética ao dizer: “Dou-vos toda planta
o planeta e a saúde do ser humano e,
O que pode ser observado quando que dá semente e que está em toda
terra, e toda árvore em que há fru- logo, à aproximação de Deus. Penso
ela cita que “É preciso investir muito
to, que produz semente: serão vosso que, ao cogitar a adoção do veganis-
mais na pesquisa para se entender
alimento. A todos os animais selva- mo como um exercício de purifica-
melhor o comportamento dos ecos-
gens, a todas as aves do céu e a todos ção na Quaresma, o indivíduo pode
sistemas e analisar adequadamente
os seres que rastejam pelo chão e nos sentir seus benefícios e cogitar segui
as diferentes variáveis de impacto
quais há um sopro de vida, eu dou -lo como estilo de vida.
de qualquer modificação importan-
te do meio ambiente. Visto que to- como comida toda vegetação”.
das as criaturas estão interligadas, Hoje, estamos expostos a uma IHU On-Line – Por que, parti-
deve ser reconhecido com carinho indústria alimentícia que nos traz cularmente, você adotou o ve-
e admiração o valor de cada uma, produtos ultraprocessados, que se ganismo?
e todos nós, seres criados, precisa- desconectam de sua forma e na-
mos uns dos outros. (...) Ao mesmo Tainá Alves – Sou vegana por-
tureza, e que são feitos para gerar
tempo que podemos fazer um uso que acredito que é meu dever tor-
lucro para essas empresas, sem 35
responsável das coisas, somos cha- nar o mundo um lugar melhor. E a
se preocupar com a saúde do con-
mados a reconhecer que os outros melhor forma de mudá-lo é sendo
sumidor. O consumo destes está
seres vivos têm um valor próprio a mudança que desejo ver nele. E
associado ao aumento do risco de
diante de Deus e, «pelo simples fac- o veganismo é o estilo de vida mais
ocorrência de obesidade, diabetes
to de existirem, eles O bendizem e consciente que encontrei dentro das
e outras doenças crônicas causadas
Lhe dão glória, porque «o Senhor Se minhas possibilidades de ser e viver
pelo excesso de açúcar e gorduras e
alegra em suas obras» ( Sl 104/103, essa transformação.
a falta de vitaminas e minerais es-
31). (...)«Cada criatura possui a sua senciais. Alimentar-se com simpli- Sou vegana, também, porque
bondade e perfeição próprias. (...) cidade requer o conhecimento da quero viver em um planeta limpo,
As diferentes criaturas, queridas origem do alimento e da sua cadeia saudável, sustentável e livre de ex-
pelo seu próprio ser, reflectem, cada produtiva, que deve ser do produ- ploração. Porque quero respirar ar
qual a seu modo, uma centelha da tor diretamente para o consumi- puro, desbravar florestas, nadar
sabedoria e da bondade infinitas de dor, não incluindo um processo de em águas limpas, com o maior nú-
Deus. É por isso que o homem deve industrialização. mero de espécies coexistindo nesse
respeitar a bondade própria de cada ambiente comigo. E quero que essa
criatura, para evitar o uso desorde- seja a realidade de todos os indiví-
nado das coisas».” IHU On-Line – Além da Cam- duos. Porque acredito que, por mais
panha do seu movimento, ou- que o ser humano esteja em condi-
tra campanha, Million Dollar ções de submeter os animais a se
IHU On-Line – O Movimen- Vegan, desafiou o Papa a as-
to Católico Global pelo Clima tornarem alimento e produto, não
sumir o veganismo durante a exercer essa dominação é questão
está promovendo a campanha Quaresma. Qual é a importân-
“Alimente-se com Simplicida- de humildade e modéstia. Porque
cia de trazer ao debate essas
de” em tempo de Quaresma. O acredito que todas as espécies re-
questões durante o tempo de
que é “alimentar-se com sim- presentam vidas, e nenhuma é mais
Quaresma?
plicidade”? importante que a outra. Porque,
Tainá Alves – A Quaresma é o como cristã, amo a Deus e ao pró-
Tainá Alves – Acredito que ali- período que antecede a Semana ximo como a mim mesma. E o pró-
Santa, que inclui a morte e ressur- ximo não é apenas meu semelhante,
pauta de conferência promovida pelo IHU em 2016, que
originou a reportagem O holocausto dos animais. Encíclica reição de Cristo. É um tempo de mas todo ser vivo que habita este
Laudato Si’ é debatida e tensionada desde a perspectiva da recolhimento que temos para rever planeta. Sou vegana por princípios
ética e direito dos animais, disponível em http://bit.ly/2Fm-
f2Lp. (Nota da IHU On-Line) nossa vida de cristãos e nos pre- e por amor à vida.■

EDIÇÃO 532
TEMA DE CAPA

Preservação do planeta deve ir


além de uma dieta sem carne
Para o jornalista Alceu Castilho, não basta mudar hábitos de consumo, é preciso
entender a cadeia produtiva e as imposições da produção e da circulação
João Vitor Santos

C
onsumir menos carne, ou se- com a degradação/proteção do planeta.
quer comer proteína de origem “As monoculturas precisam ser comba-
animal, contribui em muito com tidas por quem se propõe a preservar o
a preservação do planeta. Entretanto, o planeta e sua biodiversidade”, observa.
jornalista Alceu Castilho, que faz o mo- Segundo o jornalista, a produção de
nitoramento de pautas relacionadas ao
comida é regida pela lógica do capital,
agronegócio, lembra que essa não deve
arraigado no latifúndio, que não só
ser encarada apenas como responsabi-
exclui como também limita o número
lidade das etapas de consumo. Isto é,
de cultura para a produção de alimen-
para ele, não se deve cair na ilusão de
to. “Para avançarmos no entendimen-
que apenas mudando hábitos alimen-
to da questão agrária – com os con-
tares se resolverá a maioria dos proble-
flitos sociais e ambientais inerentes a
mas ambientais. “Atacar somente esse
36 esse sistema – precisamos entender
ponto – e a partir da ponta do consumo
esse movimento expansionista, em
– não será suficiente para a alteração
um planeta com recursos esgotáveis,
do sistema. A destruição de biomas,
esse avanço em territórios ocupados
por definição, dizima espécies inteiras.
por camponeses, indígenas, quilom-
E esse processo ocorrerá mesmo que
bolas. E por florestas, biomas inteiros
deixemos de comer carne”, defende, em
à mercê desse processo de concentra-
entrevista concedida por e-mail à IHU
ção de renda”, acrescenta.
On-Line.
Castilho se justifica: “não significa in- Alceu Luís Castilho é jornalista,
fluência zero de quem optou por esse pós-graduando em Geografia Humana
modo de vida, mas significa que mesmo pela Universidade de São Paulo - USP.
do ponto de vista da preservação dos É coordenador do De Olho nos Rura-
animais – não somente os indivíduos, listas (www.deolhonosruralistas.com.
de espécies inteiras – precisamos ir br ), um observatório sobre agronegó-
além da discussão sobre o consumo”. cio no Brasil. Também é autor do livro
Ou seja, é, no mínimo, preciso que se Partido da Terra - como os políticos
busquem mais informações para co- conquistam o território brasileiro (São
nhecer os meandros do que envolve a Paulo: Contexto, 2012).
produção de alimentos e sua relação Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os de- Alceu Castilho – Há uma lógica esgotáveis, esse avanço em territó-
safios para compreender as econômica, do capital e da renda da rios ocupados por camponeses, indí-
lógicas do agronegócio? De terra. Para avançarmos no entendi- genas, quilombolas. E por florestas,
que forma é possível conceber mento da questão agrária – com os biomas inteiros à mercê desse pro-
alternativas a essas lógicas e conflitos sociais e ambientais ine- cesso de concentração de renda.
como os consumidores, em rentes a esse sistema – precisamos
geral, podem contribuir nesse entender esse movimento expansio- A alternativa é a valorização das ter-
sentido? nista, em um planeta com recursos ras dos povos tradicionais, seja pela

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“A ponta do consumo é
importante, mas não suficiente
para se alterar um sistema”

manutenção, seja pela redistribuição. Alceu Castilho – Há que se ob- são rifadas para que milionários e bi-
Repensar o modelo. E a prioridade servar que a maior parte dos dis- lionários continuem se perpetuando
do Estado em relação aos incentivos. cursos liberais tem forte grau de ci- no poder. A novidade em governos
Nesse sentido, faz-se necessário agen- nismo. O agronegócio é fartamente como o de Bolsonaro é assumir que
dar a problemática como um todo. A dependente dos estímulos governa- querem eliminar as terras dos povos
ponta do consumo é importante, mas mentais, de financiamentos, perdão originários e tradicionais. No fundo,
não suficiente para se alterar um siste- de dívidas. O que há, historicamen- é o capital que não quer “nem um
ma. Há um controle da produção, uma te, é uma captura do Estado, inclusi- centímetro a mais” para eles.
imposição estrutural. ve do sistema judiciário.
O processo de disputa é eminente- IHU On-Line – Como o con-
IHU On-Line – O que está por mente político. O governo atual os- sumo indiscriminado de carne,
trás dos conflitos agrários, es- cila entre o discurso liberal de Pau- proteína animal em geral, pode
pecialmente no caso brasileiro? lo Guedes – para os assuntos onde impactar tanto os conflitos agrá- 37
isso interessa – e a velha política de rios como o aquecimento global?
Alceu Castilho – Exatamente essa transferência dos recursos (inclusive
lógica econômica. Os latifúndios e a os naturais) para as oligarquias. Os Alceu Castilho – Não vejo esse
monocultura – observem que são te- conflitos já estão crescendo, desde o como o ponto de partida. É claro
mas presentes há séculos – avançam governo Temer, porque os grandes que a pecuária extensiva é particu-
onde já há gente morando, produzin- proprietários ganham ainda mais larmente danosa ao ambiente. Mas
do, de indígenas a descendentes de es- aval para as violências cotidianas. atacar somente esse ponto – e a
cravos, de ribeirinhos a extrativistas. Predadores multiplicam predadores. partir da ponta do consumo – não
O capital e o aparato legislativo a seu será suficiente para a alteração do
serviço não valorizam o uso comum sistema. A destruição de biomas, por
da terra. Não há como fugir do fato IHU On-Line – Que relações definição, dizima espécies inteiras. E
de que poucos empresários e rentis- podemos estabelecer entre esse processo ocorrerá mesmo que
tas querem controlar o território. Pelo conflitos agrários, degradação deixemos de comer carne.
lucro e pela renda. São hegemônicos, do meio ambiente e aqueci- Isso não significa influência zero de
mas não únicos – pois há resistência. mento global? quem optou por esse modo de vida,
O Brasil tem suas especificidades, cla- Alceu Castilho – O desmatamen- mas significa que mesmo do ponto de
ro, como a longa história de escravidão, to é uma das consequências desse vista da preservação dos animais –
o sistema cartorial, o patrimonialismo crescimento ordenado do capital no não somente os indivíduos, de espé-
exacerbado. O que nos leva a uma his- campo e da concentração fundiária. cies inteiras – precisamos ir além da
tória violenta de grilagem e expulsão Basta observar a lista de desmatado- discussão sobre o consumo. Parafra-
dos povos do campo: um êxodo rural res para se observar que os atores são seando a letra do Titãs, costumamos
movido a bala. Mas há uma lógica glo- grandes empresários e grandes lati- dizer no De Olho nos Ruralistas que
bal, com mais ou menos violência. fundiários. Há uma ilusão de que essa monocultura é monocultura em qual-
ilegalidade estaria à margem do sis- quer canto – riquezas são diferentes.
tema. Não está, ela é intrínseca a ele. As monoculturas precisam ser com-
IHU On-Line – De que forma batidas por quem se propõe a preser-
ideias de cunho mais liberalista Aquecimentos global e local – tan- var o planeta e sua biodiversidade.
e de redução do tamanho do Es- tas vezes esquecido – estão direta-
tado, muito presentes no atual mente relacionados a esse movimen- IHU On-Line – O veganismo,
governo, podem impactar os to destruidor. Recursos hídricos, mais do que abrir mão do
conflitos agrários no Brasil? biomas, riquezas muito mais perenes consumo de carne, traz consigo

EDIÇÃO 532
TEMA DE CAPA

um modo de vida. Podemos falar posições nos eixos da produção e da parte desse mesmo esquema de pi-
numa ética própria? Por quê? circulação. Um modo de produção lhagem dos recursos naturais. E de
Alceu Castilho – Não sou espe- não será revertido apenas pela ponta captura incontinente do território. É
cialista em veganismo e não posso do consumo, essa disposição precisa ruralista o grande latifundiário, mas
falar desse modo de vida. O que pos- ser casada com outras iniciativas. também aquele político financiado
so dizer é que há diversas imposições por empresas – hoje em dia, empre-
do modelo econômico que estouram sários – do agronegócio, ou aquele
na ponta do consumidor. Este se tor- IHU On-Line – Por que pautas político que pactua com todos esses
na refém de muita coisa pouco repu- de cunho mais ambiental, que setores por determinadas conveni-
blicana que ocorre na cadeia produ- defendem o uso comum e de for- ências. No fundo, por pactuar com o
tiva, muitas vezes sem o saber. Há ma consciente de recursos natu- sistema e com sua lógica excludente,
mais de 1.200 produtos baseados na rais, são tomadas como pautas a partir da qual bilhões de pessoas
soja. A participação da pecuária em de esquerda? Quais os desafios são exploradas nas relações de tra-
relação a essa e outras monoculturas para superar essa lógica? balho e privadas de uma terra para
é expressiva. Mas não se esgota nela. Alceu Castilho – Porque no fundo chamar de sua – o que caracterizaria
não é possível conciliar a preservação o modo de vida camponês.
Viver sob um determinado modo
de produção significa que não temos do ambiente com as pautas de direi- Não avançaremos enquanto não se
poderes plenos como consumidores, ta, com a proclamação da proprie- entender o que é campesinato, essa
por maior que seja nossa boa von- dade privada – e de sua expansão, classe que atravessa modos de pro-
tade. A diminuição do consumo de concentração – como bem maior a dução e continua na resistência. Mas
carne – ou, para os veganos, a eli- ser preservado. No fundo, a extrema não chega ao Congresso porque o sis-
minação – é muito bem-vinda, mas direita sabe disso, por isso odeia os tema (eleitoral, político) não permite.
não se esgotam aí os problemas re- ambientalistas. No caso dos liberais
lacionados ao ambiente e à agressão e do discurso empresarial há muito
contra povos tradicionais. É preciso greenwashing1, e uma tentativa de IHU On-Line – Qual a questão
entender melhor o território e como convencimento de que tudo dá para de fundo por trás do discurso de
38 ocorre essa captura dos recursos na- todo mundo. Não dá, não temos oito críticas do governo de Jair Bolso-
turais. Como um todo, a economia. planetas à disposição – e se tivésse- naro a pautas ambientais, como,
Contraponto? Direito à terra. mos eles seriam igualmente destruí- por exemplo, quando questiona
dos. Não há limites para a expansão o aquecimento global?
do capital. A ética é a da falta de ética, Alceu Castilho – A família de
IHU On-Line – De que forma por mais que alguns se esforcem em Bolsonaro tem terras no Vale do Ri-
essa “ética vegana” se confron- tentar dourar a pílula. Um dos de- beira2. Um cunhado dele foi condena-
ta com a ética e as lógicas do safios é reconhecermos que vivemos do no ano passado por invadir terra
agronegócio? sob um modo de produção suicida, quilombola. O candidato dele nessa
ou planetocida. É preciso pautar o di- região paulista foi igualmente conde-
Alceu Castilho – Não necessa-
reito à vida e o direito à terra. nado por invadir o Parque Estadual
riamente se confronta. Há veganos
com farta noção de tudo o que falei da Caverna do Diabo. Há interesses
acima, coerentes com determinada IHU On-Line – Como compre- diretos do presidente nesse setor.
percepção sobre o planeta e seus ender a constituição e o poder Mas, mesmo que ele não tivesse in-
habitantes, e outros que não veem da bancada ruralista no cená- teresses diretos, ele enxerga o mun-
problema nenhum no consumo, por rio político nacional brasileiro? do a partir da ótica dos poderosos,
exemplo, de alimentos processados. não tem respeito nenhum por valo-
Mesmo assumindo um protagonis- Alceu Castilho – Ela não repre-
senta apenas aquele Brasil atrasado, res que passem pelo bem comum,
mo amplo da ponta do consumo (in- pelo respeito à natureza (lembremos
sisto, não é a minha linha de análise) que seria superado por uma agricul-
tura e uma pecuária mais modernas. dele pescando ilegalmente no Rio) e
teríamos aí uma contradição, já que à biodiversidade. A visão de mundo
a indústria ligada ao agronegócio Ela representa todo esse sistema do
qual estou falando. Muito do que da extrema direita é excludente, e
participa ativamente desse processo isso significa prever um planeta para
que, como disse, está ligado direta- é apresentado como moderno faz
poucos, a riqueza concentrada na
mente ao capital e prevê, intrinseca- mão de determinados eleitos, sob o
1 Greenwashing: também conhecido como banho verde,
mente, destruição. indica a injustificada apropriação de virtudes ambientalis- signo de uma meritocracia que, sa-
tas por parte de organizações (empresas, governos etc.)
Que os veganos não interpretem ou pessoas, mediante o uso de técnicas de marketing e bemos, não existe. ■
relações públicas. Tal prática tem como objetivo criar
tudo o que estou dizendo como uma uma imagem positiva, diante da opinião pública, acerca
do grau de responsabilidade ambiental dessas organiza- 2 Vale do Ribeira é uma região localizada no sul do estado
definição de que estão errados. Não ções ou pessoas (bem como de suas atividades e seus de São Paulo e no leste do estado do Paraná, no Brasil.
estão. Mas é preciso entender de for- produtos), ocultando ou desviando a atenção de impac-
tos ambientais negativos por elas gerados. (Nota da IHU
Recebe este nome em função da bacia hidrográfica do
Rio Ribeira de Iguape e do Complexo Estuarino Lagunar
ma ampla a cadeia produtiva e as im- On-Line) de Iguape, Cananeia e Paranaguá. (Nota da IHU On-Line)

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O tema do Direito dos Animais já esteve presente em diversas


publicações do IHU. Veja algumas:

- A Encíclica Laudato Si’ e os animais. Artigo de Gilmar Zampieri, publicado no Cader-


nos de Teologia Pública, número 110, disponível em http://bit.ly/2Oc6ue3.
- Cada dia mais pessoas acreditam que os animais importam tanto como seres hu-
manos. Reportagem publicada por El País, 17-03-2019 e reproduzida nas Notícias do
Dia de 18-03-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://
bit.ly/2Cp0pGr.
- Animais, plantas, natureza: os direitos do meio ambiente. Entrevista com Philippe
Descola, reproduzida nas Notícias do Dia de 18-03-2017, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2UJi8zw.
- Ética Animal. Entrevista com Carlos M. Nacomecy, reproduzida nas Notícias do Dia
de 20-02-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2UNbWXj.
- De Francisco de Assis ao Papa Francisco, um outro olhar sobre os animais. Repor-
tagem publicada por La Vie, 21-02-2019 e reproduzida nas Notícias do Dia de 04-03-
2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2TMgDnI.
- “Na Idade Média, os animais serviam para evangelizar os homens”. Entrevista com
Éric Baratay, reproduzida nas Notícias do Dia de 04-03-2019, no sítio do Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2TOSzRf.
- Que lugar os cristãos dão aos animais? Reportagem publicada por La Vie, 21-02-
2019 e reproduzida nas Notícias do Dia de 28-02-2019, no sítio do Instituto Humanitas 39
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2W7a6R2.
- Sobre os direitos dos animais e a hipocrisia humana. Reportagem publicado por
Outras Palavras, 13-03-2019, e reproduzida nas Notícias do Dia de 15-10-2019, no sítio
do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2TInY7E.

EDIÇÃO 532
ENTREVISTA

O apogeu da resistência alegre


e da consciência política na
passarela do samba
Orlando Calheiros, doutor em Antropologia pela UFRJ/Museu Nacional,
analisa o carnaval em sua expressão essencialmente contestadora
João Vitor Santos

D
esde a última Quarta-Feira de Bezerra da Silva falava disso explicitamen-
Cinzas, 06-03-2019, quando a te quando afirmava que o ‘o morro só apa-
Liga das Escolas coroou a Esta- nha e o samba é a sua defesa’”, completa.
ção Primeira de Mangueira como cam- O professor ainda lembra que o carnaval
peã do carnaval carioca, uma espécie de se faz resistência em sua essência. Haja
catarse tomou conta das rodas de conver- vista que ele deriva dos próprios terre-
sa e das redes sociais. Todo mundo que- nos e batuques dos negros muito mais do
ria opinar sobre o samba-enredo História que da gala dos luxuosos bailes. “O toque
para Ninar Gente Grande, em que a agre- das escolas de samba deriva diretamente
miação faz uma crítica contumaz à “his- dos toques dos barracões de candomblé
tória tradicional” que elenca heróis que, e umbanda. E sabemos bem como estes
na verdade, dizimaram outros, os verda-
40 ‘batuques’ foram – e ainda são – perse-
deiros heróis, que até hoje fazem resis- guidos pelo Estado”, detalha. E observa:
tência. Até quem não é do samba vibrou “o simples ato de executá-los diante de
com o desfile e disse que a Mangueira uma sociedade que não apenas os conde-
despertou a consciência política do brasi- na, como se mobiliza para destruí-los, a
leiro que, pelo que parece, até bem pouco coragem que isso demanda, não pode ser
tempo flertava com a extrema direita ra- diminuída, encarada como um ‘anestési-
cista, misógina e homofóbica. Mas o pro- co’ ou como ‘alienação’”.
fessor Orlando Calheiros não concorda
Orlando Fernandes Calheiros Cos-
com essa análise. Para ele, “o samba não
ta é doutor em Antropologia Social pela
faz despertar uma consciência política, o
Universidade Federal do Rio de Janeiro
samba é a própria consciência política já
- UFRJ/Museu Nacional, onde coordenou
desperta desses ‘pobres e periféricos’”.
o Grupo de Estudos da Ciência e Tecno-
Na entrevista a seguir, concedida por logia e permanece como pesquisador do
e-mail à IHU On-Line, ele observa como Núcleo de Antropologia Simétrica - NAn-
a questão deve ser invertida: não é o car- Si. Trabalhou como pesquisador sênior do
naval, o desfile e o samba da Mangueira Programa das Nações Unidas para o De-
que fazem o povo acordar. Na verdade, senvolvimento - PNUD, coordenando o
tudo isso é fruto do sentimento do povo, Grupo de Trabalho Araguaia na Comissão
já está lá e o que ocorre na avenida é ape- Nacional da Verdade. Atuou ainda como
nas a materialização desses sentimentos. pesquisador colaborador do Programa de
“Acho que já passou da hora de abandonar Pesquisa em Biodiversidade - PPBio do
essa repisada tese da ‘falta de consciência Ministério da Ciência e Tecnologia. Rea-
do populacho’ que herdamos de algumas lizou pós-doutorado no Departamento de
interpretações clássicas da sociologia e da Filosofia da PUC-Rio, onde também atuou
história. Beth Carvalho já falou muito, e como professor visitante.
muito bem, sobre isso (e não apenas ela)”, A entrevista foi publicada originalmente
dispara Orlando. “O que importa, para nas Notícias do Dia de 13-03-2019, no sítio
mim, é compreender que se trata de esfor- do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
ços deliberados na direção, na elaboração disponível em http://bit.ly/2Y032Yp.
de uma crítica por meio da poesia, por
meio da música, por meio de uma estética. Confira a entrevista.

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“Se trata de um acontecimento


puro, ritualístico e cíclico,
que se atualiza ano a ano
durante o carnaval”

IHU On-Line – Como avalia digo, ao carnaval e aos ritmos que momento). Nesse caso, não mais a
o desfile da Mangueira? O que lhe servem de base. história do triunfo dos modernos so-
mais lhe chamou atenção? bre a natureza, sobre outros povos,
A Mangueira, o samba, a trata-se aqui da história dos heróis
Orlando Calheiros – Um acon-
potência dos barracões, dos negros e dos indí-
tecimento puro no sentido forte do
genas. Uma outra história, portanto,
termo. Mas se engana quem pensa Mas o que eu estou dizendo com um outro mundo possível.
que se trata de um acontecimento isso? Que quando o Marquinho
único, singular, muito pelo con- Art’Samba1 – intérprete oficial da Vão me chamar de idealista, ro-
trário. Diria que se trata de um escola – entoou “Mangueira, tira a mântico, etc… Mas insisto nesse
acontecimento puro, ritualístico e poeira dos porões” fez emergir, li- ponto, essa é a potência do samba,
cíclico, que se atualiza ano a ano bertou certos fluxos do desejo, de- trazer consigo algo que escapa e nos 41
durante o carnaval. Melhor, duran- vires-menores/minoritários com os arrebata, e por meio desse algo expe-
te os carnavais (pois existem car- quais se pode inscrever um presente rienciar os termos de uma outra his-
navais e carnavais). absoluto, isto é, um momento a par- tória. Quando João da Baiana canta-
tir do qual tanto o passado quanto o va “Batuque na cozinha / Sinhá não
E digo isso mirando não apenas no
futuro se transformam. Tem coisas quer / por causa do batuque eu quei-
desfile das escolas de samba, mas no
que invadem o coração, diria para- mei meu pé” em 1917, ele não estava
carnaval de rua, nos blocos – veja a
fraseando João Nogueira2, o desfile fazendo outra coisa que trazendo à
potência do Cacique de Ramos no
da Mangueira trouxe estas coisas tona, fazendo emergir, o sofrimento
Rio de Janeiro, dos Filhos de Gan-
consigo. Mas esse é o ponto, não do povo negro, sua perseguição.
dhy na Bahia e inúmeros outros ao
redor do Brasil – ou até mesmo de apenas ele (o desfile). Esta é uma A música – e aqui compro a tese do
forma individual. Esse é o ponto qualidade fundamental do samba antropólogo Marcos Altivo3 – é es-
para mim, justamente, o Carnaval – quando bem feito – o que não signi- sencialmente um ato insurrecional,
e alguns dos ritmos que lhe servem fica ter um conteúdo político óbvio uma caracterização da forma como
de base, como o samba e o axé mu- –, trazer consigo, fazer emergir algo a república velha perseguia os cha-
sic – produz acontecimentos puros. que escapa e que nos arrebata, pro- mados “batuques” (uma perseguição
Rio que passa em nossas vidas, pa- duzindo um efeito de superfície. Flu- que, podemos dizer, é uma tradição
rafraseando a belíssima descrição xos do desejo, podemos dizer em um brasileira, vem, pelo menos, de me-
de Paulinho da Viola sobre o desfile vocabulário reconhecível pela nossa ados do século XVIII). Poderíamos
da Portela. filosofia, enfim, o que nos importa dizer que o samba não fora o primei-
é que isto que o samba traz consigo ro a fazer isso, pelo contrário, que
E essa me parecer ser uma forma nos permite inscrever (e por isso ex- herda isso, essa capacidade de fa-
muito refinada de resistência políti- perimentar) os termos de uma outra zer emergir a dor do povo negro, do
ca (re-existência), algo que durante história (ainda que por um breve lundu. Vide, por exemplo, o famoso
muito tempo uma certa esquerda,
Lundu do Pai João “Quando iô tava
fascinada, enfeitiçada mesmo, diria, 1 Marcos Pereira Antonio (1970): mais conhecido como
Marquinho Art’Samba, é um intérprete de sambas de en-
por uma certa teleologia, foi incapaz redo brasileiro, que ficou conhecido pelas suas passagem 3 Marcos Altivo: possui graduação em História pela
de apreender enquanto tal. Quer na Unidos de Padre Miguel, Imperatriz Leopoldinense e Universidade Federal Fluminense, mestrado em História
Império Serrano. Atualmente é o intérprete oficial da Esta- pela Universidade Federal Fluminense e doutorado em
dizer, muitos ainda são incapazes ção Primeira de Mangueira. (Nota da IHU On-Line) Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de
2 João Baptista Nogueira Junior (1941 —2000): mais co- São Paulo. Fez um estágio pós-doutoral na University of
de fazê-lo. E, no geral, quando o fa- nhecido como João Nogueira, foi um cantor e compositor Leicester. Atualmente é professor da Universidade Federal
zem, acabam adotando um discurso brasileiro. Desde o início de sua carreira ficou conhecido pelo Fluminense, atuando principalmente nos seguintes temas:
suingue característico de seus sambas. É pai do também can- antropologia do esporte, História Oral, Cultura Popular,
condescendente com relação a isso, tor e compositor Diogo Nogueira. (Nota da IHU On-Line) História e Literatura e religião. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 532
ENTREVISTA

na minha tera / Iô chamava generá / falou muito, e muito bem, sobre isso chave. Toda obra do Cartola…
Chega na Terra dim baranco / pega o (e não apenas ela). Pegue, por exem-
Se formos olhar para o carnaval,
cêto vai ganhá”. plo, a letra de “Ô Isaura”, escrita pelo
para a história dos desfiles, vamos
Rubens da Mangueira – “Tia Maria
Como diz o “Canto das Três Raças” perceber exatamente isso, a quan-
tem sete filhos / Todos sete pra co-
de Mauro Duarte, imortalizado na tidade de enredos que falam, justa-
mer / A panela é pequenina / Dividir
voz de Clara Nunes, o samba traz mente, da situação do povo negro,
que eu quero ver.” – ou de “Quando
consigo aquilo que “ninguém ouviu”. da escravidão, da desigualdade, dos
o Povo entra na Dança” – “A cuíca
Esse é o ponto, o samba, o carnaval, seus sofrimentos. Reitero, desfiles
chora/ Pois há roubo na balança” –
os carnavais – poderíamos estar fa- que trazem à tona esses fluxos do
ambas gravadas pela própria Beth
lando aqui do Ile Aiyê, por exemplo, desejo que nos permitem experien-
Carvalho. O conteúdo político des-
sem nenhum problema –, trazem ciar os termos de uma outra histó-
sas músicas me parece bastante ób-
consigo, fazem emergir esses fluxos ria, e por meio desta experiência
vio, é o povo denunciando a própria
do desejo, devires-menores, com os inscrever uma forma de vida que
penúria, a exploração, o sofrimento.
quais podemos – e muitos o fazem resiste aos fluxos do capital. O sam-
Mais uma vez, o samba traz consigo
cotidianamente – inscrever uma for- ba nos permite inscrever uma outra
a mensagem que “ninguém ouviu”.
ma de re-existência (para nos utili- forma de vida.
zarmos do feliz neologismo cunhado E não é de agora, vide que uma das
por Viveiros de Castro4). Ele codifi- versões de “Pelo telefone”, o primei- Além do “anestésico do
ca, dá forma e propaga a possibilida- ro samba gravado, já denunciava, povo”
de de se contar uma outra história, e por exemplo, a permissividade da
por meio dessa outra história consti- polícia com relação à contravenção Sei que muitos vão me odiar por
tuir, ainda que momentaneamente – – “O Chefe da polícia / Pelo telefone falar isso, mas, enfim, só mesmo o
a duração não importa – uma outra / manda me avisar / Que na carioca racismo estrutural explica a forma
forma de vida, um outro mundo. O tem uma roleta para se jogar”. como uma parcela significativa do
desfile da Mangueira foi isso, uma nosso “pensamento social e político”
E não podemos ser condescenden- ignora a potência dessas elabora-
atualização cristalina dessa potência
tes com relação a isso. Digo isso para ções, reduzindo-as a anestésicos do
42 do samba e do carnaval, um aconte-
não cairmos na ideia de que eles es- povo e/ou manifestações folclóricas.
cimento puro.
tão apenas “cantando a sua realida-
de”, pois eles poderiam cantar sobre Se você for pensar, a própria for-
inúmeras outras coisas. E de fato o ma, a estética do samba pode ser
IHU On-Line – Qual deve ser o
fazem. Enfim, o que importa, para compreendida como um ato de “ree-
efeito da vitória da Mangueira
mim, é compreender que se trata de xistência”. Um exemplo, sua rítmica
e a popularização de seu samba
esforços deliberados na direção, na é essencialmente centro-africana, o
-enredo na vida cotidiana das
elaboração de uma crítica por meio toque das escolas de samba deriva
pessoas pobres e periféricas?
da poesia – arte por meio da arte diretamente dos toques dos barra-
Podemos afirmar que seu sam-
da vida, como se dizia sobre Nelson cões de candomblé e umbanda. E
ba faz despertar uma consciên-
Cavaquinho –, por meio da música, sabemos bem como estes “batuques”
cia política?
por meio de uma estética. Bezerra foram – e ainda são – perseguidos
Orlando Calheiros – Esse é o da Silva falava disso explicitamente pelo Estado. O simples ato de exe-
meu ponto, justamente, o samba não quando afirmava que o “o morro só cutá-los diante de uma sociedade
faz despertar uma consciência políti- apanha e o samba é a sua defesa”. que não apenas os condena, como
ca, o samba é a própria consciência Mesmo músicas aparentemente in- se mobiliza para destruí-los, a co-
política já desperta desses “pobres suspeitas como “Deixa a vida me ragem que isso demanda, não pode
e periféricos”. Acho que já passou levar”, do Serginho Meriti5 e do Eri ser diminuída, encarada como um
da hora de abandonar essa repisada do Cais, eternizada na voz do Zeca “anestésico” ou como “alienação”.
tese da “falta de consciência do po- Pagodinho6, podem ser lidas nessa Por favor, o João da Baiana7 fora
pulacho” que herdamos de algumas preso inúmeras vezes apenas por fa-
interpretações clássicas da sociolo- zer samba.
5 Serginho Meriti (1959): nome artístico de Sérgio Rober-
gia e da história. Beth Carvalho já to Serafim, é um cantor e compositor brasileiro. Nascido
no bairro de Madureira, foi criado na cidade de São João
Não é possível que as pessoas es-
de Meriti, na Baixada Fluminense, por um pai gaúcho vio- queçam que o sonho do escravocra-
4 Eduardo Viveiros de Castro (1951): antropólogo brasi- lonista e mãe cantora e compositora de hinos religiosos.
leiro, professor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, na Fez diversas parcerias com importantes nomes do samba, ta era a redução dos negros a meros
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Concedeu a como Alcione, Zeca Pagodinho, Neguinho da Beija-Flor e
entrevista O conceito vira grife, e o pensador vira proprietá- Arlindo Cruz. (Nota da IHU On-Line)
rio de grife à edição 161 da IHU On-Line, de 24-10-2005, 6 Zeca Pagodinho (1959): nome artístico de Jessé Gomes
disponível em http://bit.ly/ihuon161. Entre outras publi- da Silva Filho, é um cantor e compositor brasileiro. Gravou irreverência e jocosidade, Zeca recebe também reconheci-
cações, escreveu Arawete: O Povo do Ipixuna (São Paulo: mais de 20 discos e é considerado um grande nome do mento da crítica e de artístas e compositores consagrados.
CEDI), A inconstância da alma selvagem (e outros ensaios gênero samba. O artista, que começou sua carreira nas Nei Lopes afirma que o sambista “é uma das poucas una-
de antropologia) (São Paulo: Cosac & Naify) e Metafísicas rodas de samba dos bairros de Irajá e Del Castilho, subúr- nimidades nacionais, elevado ao patamar do mega-estre-
canibais (São Paulo: Cosac & Naify). Também é autor do bio do Rio de Janeiro, tornou-se tão imensamente popu- lato pop pelas gravadoras”. (Nota da IHU On-Line)
prefácio do livro A queda do céu – Palavras de um xamã lar que seus shows chegam a ser contratados por cachês 7 João Machado Guedes (1887 —1974): conhecido como
yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (São Paulo: generosos, sendo realizados nas mais badaladas casas de João da Baiana, foi um Compositor popular, cantor, pas-
Companhia das Letras). (Nota da IHU On-Line) espetáculo do país. Sempre fiel a suas características de sista e instrumentista brasileiro. (Nota da IHU On-Line)

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utensílios, ferramentas dos bran- mológica, diria, sua “consciência”, sobre certa intelligentsia10 à esquer-
cos. E eles resistiram a isso. Que se sua resistência política consiste em da, essa que insiste na repisada tese
esqueça que o projeto eugenista da dar voz àqueles que a sociedade ten- de que é preciso imbecilizar o deba-
república buscava obliterar qualquer ta calar. Trazer consigo aquilo que te político para atingir os populares.
coisa que remotamente pudesse ser “ninguém ouviu”. Bezerra da Silva Espero que ela olhe para o samba da
associada ao povo negro, seus cor- não poderia ser mais explícito quan- Mangueira e aprenda alguma coisa
pos, inclusive. E ainda assim eles to a isso quando cantou: “E se não sobre ouvir a voz dos excluídos, dos
persistiram. fosse o samba quem sabe hoje em “heróis de barracões”. De fato, gos-
dia eu seria do bicho? / Não deixou a taria que ela aprendesse a ouvir.
Como isso, essa persistência,
elite me fazer marginal / E também
contra tudo e contra todos pode
em seguida me jogar no lixo”.
ser ignorada? Como isso pode não IHU On-Line – Analisando o
ser “consciência política”? Chega- Reitero, o samba, o carnaval, é um samba-enredo da Mangueira
se a ignorar fatos que deveriam ser ato deliberado de resistência à má- em suas redes sociais, você faz
óbvios até para uma perspectiva quina genocida (etnocida) do Esta- uma relação entre os rituais do
sociológica mais tradicional. Por do. Por isso eu digo, ele é a própria candomblé e a preparação para
exemplo, que o samba, tem déca- consciência política do excluído o Carnaval. Gostaria que deta-
das, toca em pautas políticas que (assim como o rap). Ele é a voz do lhasse e aprofundasse essas re-
só hoje a esquerda (ao menos par- morro, como dizia Ze Keti9 e tantos lações dessa festa com as reli-
te dela) considera fundamental. outros. Isso não quer dizer que essas giões, especialmente de matriz
Um exemplo: em 1963, o Salguei- pessoas não sejam capazes de elabo- africana.
ro já falava sobre a importância e rar outras formas de resistência po-
o protagonismo da mulher negra lítica, de se organizarem em partidos Orlando Calheiros – O samba,
com um desfile sobre Chica da Sil- políticos, de adotarem um discurso sua história, é indissociável das reli-
va8. Em 1963. Inclusive, é funda- sociológico-acadêmico, muito pelo giões de matriz africana. Pegue, por
mental lembrar que em 1957, veja contrário. Apenas que o samba não exemplo, o papel fundamental das
só, em 1957, a Unidos da Ponte pode ser reduzido ao termo folclore, chamadas tias baianas na origem do
já possuía uma presidenta, dona a uma manifestação sem importân- samba. Tratava-se de mulheres ne-
gras que chegaram ao Rio de Janei- 43
Carmelita Brasil. cia, um anestésico. Isso é racismo, é
epistemicídio. ro pelo fim do século XIX, a maior
Veja, eu não estou aqui querendo parte delas iniciadas no Candomblé
produzir uma imagem idílica do Para os que ainda insistem nisso – para quem não sabe, elas são as
universo do samba e do carnaval, é sempre bom lembrar no quanto o homenageadas na ala das baianas.
eles também são atravessados e samba era condenado e perseguido Tia Ciata, a mais famosa dessas mu-
atualizam violências, machismo, pelo Estado. Se o samba fosse algo lheres, por exemplo, era iyakererê
racismo, etc… Apenas quero mos- sem importância ele seria apenas – mãe pequena – na casa de João
trar que ele dá vazão, oferece es- ignorado. Mas não, ele incomoda e Alabá (um babalorixá bastante proe-
paço para fluxos contestatórios, muito. E assim o faz pois tem uma minente na história do candomblé).
nos permite inscrever trajetórias natureza revoltosa. Um exemplo dis- Enfim, foi ao redor destas mulheres,
minoritárias. so: em meados de 1940, o samba “O de suas casas, seus terreiros, foi da
Bonde de São Januário”, composto convivialidade inscrita pelas festas
Consciência política do por Wilson Batista e interpretado que elas promoviam que emergiram
samba por Ataulfo Alves, foi censurado pelo as primeiras rodas e composições do
Departamento de Imprensa e Propa- samba. Não é coincidência que “Pelo
Mas não vamos nos estender por ganda - DIP, que exigiu que sua letra Telefone” tenha sido criada neste
aqui, não agora. O que me parece original – “O bonde de São Januá- contexto, no quintal da casa de Tia
fundamental é fugir desse vício de rio/leva mais um sócio otário/só eu Ciata. Lúcia Silva e Luís Antônio Si-
que consciência política se mede não vou trabalhar” – fosse alterada mas já escreveram sobre o papel des-
pelo voto, pela adesão à agenda po- por manifestar valores contrários sas mulheres no samba; recomendo
lítica de partidos supostamente à aos do governo de Getúlio Vargas. a leitura desses trabalhos.
esquerda. A consciência política do Acabou se tornando “O bonde São
samba é de outra ordem, quase cos- Januário / Leva mais um operário / Enfim, o samba carioca nasce desse
Sou eu que vou trabalhar”. contexto. Diria, ele é esse contexto
8 Francisca da Silva de Oliveira, ou apenas Chica da Silva: desdobrado – como já falamos. Se
(1732 - 1796): foi uma escrava, posteriormente alforriada, Por fim, eu inverteria essa questão. avançamos no tempo, veremos – e
que viveu no Arraial do Tijuco - atual Diamantina - então
pertencente ao município do Serro, Minas Gerais, durante
Gostaria de ver o efeito que isso tem mais uma vez isso não é coincidên-
a segunda metade do século XVIII. Manteve durante mais
de quinze anos uma união consensual estável com o rico
contratador dos diamantes João Fernandes de Oliveira, 10 O termo intelligentsia usualmente refere-se a uma
tendo com ele treze filhos. O fato de uma escrava alfor- categoria ou grupo de pessoas envolvidas em trabalho
riada ter atingido posição de destaque na sociedade local 9 Zé Keti (1921 —1999), nome artístico de José Flores de intelectual complexo e criativo direcionado ao desenvol-
durante o apogeu da exploração de diamantes deu ori- Jesus, foi um cantor e compositor do samba brasileiro. vimento e disseminação da cultura, abrangendo trabalha-
gem a diversos mitos. (Nota da IHU on-Line) (Nota da IHU On-Line) dores intelectuais. (Nota da IHU On-Line)

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ENTREVISTA

cia – que originalmente as baterias IHU On-Line – O Carnaval é lar, negra. São as escolas de samba,
eram majoritariamente compostas uma festa dita pagã e tem suas nascidas dos terreiros, que fagoci-
por curimbeiros, isto é, ogãs ataba- origens na Antiguidade, sendo tam, se apropriam e transformam
queiros (aqueles que são respon- até hoje realizado em diversas alguns dos elementos estéticos das
sáveis pela execução dos tambores partes do mundo. Mas, do pon- Grandes Sociedades Carnavalescas
e cantos durante os rituais de can- to de vista antropológico, quais (as alegorias, por exemplo) herdadas
domblé e umbanda), alebês, calofés, são as particularidades do car- do carnaval europeu e não o contrá-
berês… Esse, inclusive, era um dos naval brasileiro? E podemos fa- rio. Nos desfiles isso fica bem evi-
motivos pelos quais apenas homens lar em “carnavais” (no plural) dente, é a bateria, portanto os toques
compunham essas formações – tra- brasileiros? Por quê? afros, que comandam, ditam o ritmo
dicionalmente, apenas homens po- da evolução das escolas. Esse ato me
Orlando Calheiros – Eu diria
dem ser ogãs. Algo que foi quebrado parece uma descrição bastante pre-
que a originalidade do carnaval bra-
já em 1938 por Dagmar da Portela, cisa do samba (e do carnaval carioca,
sileiro, melhor, de alguns dos carna-
a primeira mulher a tocar surdo ao menos de sua apoteose).
vais brasileiros se dá, justamente,
em uma bateria de escola de sam- por conta da influência, da potên- Eu sei que muitos vão discordar
ba. Enfim, essa origem das baterias cia que emana da matriz africana de mim nisso, mas insisto que a po-
como atreladas aos terreiros explica do nosso substrato populacional. É tência do samba, e do carnaval que
o porquê da maioria dos toques das justamente essa rítmica, esse outro ele produz, que ele inventa, é a de
baterias modernas serem derivações pensamento, que controla a inven- fazer emergir, trazer à tona fluxos
diretas dos toques das religiões de ção carnavalesca. Isso ocorre ao me- do desejo que nos permitem inscre-
matriz africana, como o agueré (ou nos em dois dos carnavais famosos ver, experienciar os termos de uma
quebra-prato) para Oyá do candom- do país, o carioca e o baiano. outra história e por meio dela um
blé ou o Congo de Ouro da umbanda. outro mundo. Um mundo em que o
Dito isto, não parece estranho que É importante abandonar esse vício
do nosso pensamento eurocentrado elemento europeu não é o preponde-
muitas escolas de samba conservem rante, dominador, mas é dominado,
uma relação fundamental com es- que busca, a cada esquina, emular a
Renascença Italiana. Como se o ele- arrebatado pela potência que emana
tas religiões, inclusive, que algumas das rítmicas – e, portanto, das filo-
44 mento europeu preponderasse sobre
destas, suas quadras, tenham seu sofias – africanas. Justamente, essa
tudo e sobre todos. Muito pelo con-
próprio gongá (altar das religiões de outra forma de contar a história é a
trário, se você pega o carnaval cario-
matriz africana). De fato, o que hoje originalidade do samba carioca.
ca, o ritmo que embala sua apoteose,
chamamos de quadra até bem pouco
os desfiles das escolas que ocorre na
tempo era conhecido como terreiro.
Praça da Apoteose – veja só –, você
Orixás no carnaval
vai encontrar – um termo que o Luiz “Se trata de
Antônio Simas11 adora usar – uma
Os orixás aparecem nas músicas, enzima africana. Lembro, a bateria, esforços
deliberados
nas alegorias, nas fantasias, pois eles o coração de uma escola, carrega o
estão no centro e na origem das esco- DNA dos “heróis de barracões”. É
las de samba. Mais do que isso, são
comuns relatos de pessoas incorpo-
uma manifestação do pensamento
africano – e a invenção musical é na direção, na
rando entidades ou sofrendo irradia-
ções durante os desfiles – tem coisas
uma das estéticas desse pensamento
– que se aproveita de alguns elemen- elaboração de
que invadem o coração –, por exem-
plo em 1976 durante o desfile da Im-
tos estéticos, da forma e do calendá-
rio europeu. uma crítica por
pério Serrado, “Lendas das Sereias”,
e 1994, durante o desfile da Grande
Isso fica claro quando você olha meio da poesia”
para o carnaval carioca e vê como as
Rio, “Os Santos que a África não viu”. Grandes Sociedades Carnavalescas,
Sobre o samba da mangueira, o nascidas na alta sociedade, desapa-
ponto que eu gostaria de salientar receram e foram substituídas pelas IHU On-Line – Que leitura
Escolas de Samba, de origem popu- você faz da história dos indíge-
é que a expressão heróis de barra-
nas contada pela Mangueira?
cões não se refere apenas aos que 11 Luiz Antônio Simas (1967): escritor, professor e histo-
trabalham nos barracões do sam- riador brasileiro. Professor de História no ensino médio, Orlando Calheiros – Achei bas-
é mestre em História Social pela Universidade Federal do
ba, mas também aos (viventes e Rio de Janeiro. Simas já trabalhou como consultor de acer- tante adequada, sobretudo o ato de
entidades) que trabalham nos bar- vo da área de Música de Carnaval do Museu da Imagem e
do Som do Rio de Janeiro, e como jurado do Estandarte de
descolocar o papel dos bandeirantes.
racões de axé. Barracão, para quem Ouro, maior premiação do Carnaval carioca. Foi também No lugar de heróis civilizadores, agen-
colunista do jornal O Dia, e desenvolveu o projeto “Ágoras
não sabe, é uma das palavras uti- Cariocas”, de aulas ao ar livre sobre a história do Rio de tes da máquina genocida colonial.
lizadas para se referir às casas de Janeiro. Em seus livros, procura resgatar a memória oral da
cidade, especialmente da população marginalizada. (Nota
Esse é um ponto sensível, o reconhe-
candomblé e umbanda. da IHU On-Line) cimento de que o nosso país não foi

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constituído pelo mito das três raças, Esforço condescendente e episte- isso efetivamente a sério.
mas pelo “Canto das Três Raças”. Que micida, reduz o pensamento do ou-
Inclusive, um adendo necessário,
a bisavó indígena não foi uma mulher tro ao erro, ao estado negativo do
essa música, como um todo, é uma
que se enamorou por um estrangeiro, pensamento. É preciso ir além, é
bela definição do acontecimento
mesmo sem falar sua língua, mas que preciso compreender o pensamento
puro do samba. “Se teu corpo se ar-
muito provavelmente foi uma escrava que emana da cosmogonia destes
repiar / Se sentires também o sangue
sexual. “Pega no laço”, como costu- povos, ouvir com atenção o que os
ferver / Se a cabeça viajar / E mesmo
ma-se repetir de maneira irreflexiva e filósofos indígenas, aquilo que gen-
assim estiveres num grande astral.”
cruelmente orgulhosa. te como Davi Kopenawa12 e Ailton
Krenak13 dizem sobre o mundo sem Enfim, o ponto é que levar isso a
reduzi-los à ideia de “crença”. É pre- sério é, justamente, compor com os
“O samba, o ciso levar a sério a forma como estes
povos inscrevem uma outra história,
elementos que emergem destas mú-
sicas (ou dos discursos proferidos
carnaval, é um compreender os conceitos – no sen-
tido forte do termo – que eles mo-
por um xamã indígena) traz consigo
outros mundos, mundos estranhos
ato deliberado bilizam e a matéria do real que eles
propõem. Por fim, compreender que
aos olhos da mitofilosofia ocidental.
E que não existe apenas uma forma
de resistência esse outro mundo, sua manutenção
é a forma como estas populações
de se “inventar o mundo” (para usar-
mos uma expressão cunhada por
à máquina re-existem continuamente, como re Roy Wagner).

genocida
-existem a despeito dos esforços da
nossa máquina genocida, etnocida e
IHU On-Line – A mesma pe-
(etnocida) epistemicida.
Para mantermos o foco no tema
riferia em que a esquerda
perdeu terreno e a extrema
do Estado” original da entrevista. Em linhas
gerais é o mesmo que eu propo-
direita ganhou espaço fez do
carnaval seu palco de protes-
nho sobre o samba, sobre o pensa- to contra a conjuntura política 45
IHU On-Line – A historiogra- mento que lhe dá origem. Quando atual. Como compreender es-
fia contemporânea defende Martinho da Vila descreve o corpo ses cenários?
que o indígena é parte de uma dos adeptos das religiões de matriz
africana por meio da irradiação do Orlando Calheiros – Primeiro,
História do Brasil, não vítima
axé em “Semba dos Ancestrais”, ele eu desconfio muito destas análises
ou coadjuvante, mas parte des-
aciona uma série de conceitos, e que jogam na conta dos “periféricos”
sa História. Como você anali-
com eles toda uma matéria do real (odeio o termo, inclusive) a ascensão
sa essa linha interpretativa?
distinta daquela professada pelo do fascismo. Especialmente diante
Quais os desafios ainda hoje
pensamento euro-americano (ou dos dados que mostram que o Bol-
para trazer à luz os indígenas
Moderno, para usarmos o conceito sonaro eclodiu – de lá se espalhou –
como parte da história do país?
de Bruno Latour14). É preciso levar entre brancos escolarizados situados
Orlando Calheiros – Eu diria no topo da pirâmide de renda nacio-
que os esforços para reconhecer o pa- 12 Davi Kopenawa Yanomami (1956): escritor e líder indí- nal. Então, é preciso ir com calma
gena brasileiro. Ainda criança, viu a população de sua terra
pel dos indígenas no Brasil ainda são natal ser dizimada por duas epidemias, ambas trazidas pelo nessa generalização.
muito tímidos. Até mesmo por não se contato com o homem branco. Trabalhou na Fundação Na-
cional do Índio como intérprete. Mudou-se para a aldeia Segundo, é preciso fugir da lógica
tratar apenas de reconhecê-los como Watorik+ na década de 1980. Casou-se com a filha do pajé
e se tornou chefe do posto indígena Demini. Foi um dos identitária que assola uma parce-
agentes históricos, mas de aceitar que responsáveis pela demarcação do território Yanomami em
la desse entendimento. Lógica que
eles têm uma forma muito própria de 1992. Recebeu o prêmio ambiental Global 500 da ONU.
Em 2010, viu sua autobiografia La chute du ciel, escrita em determina se um determinado in-
contar a história e de inscrever, por parceria com o antropólogo francês Bruce Albert, foi lança-
da na França. O livro teve tradução para o inglês, francês e divíduo é de direita ou de esquerda
meio dessa outra história, um mun- italiano e sua edição em português saiu em 2015 A queda
tendo em vista o seu voto. Por exem-
do que nos é radicalmente estranho. do céu. Palavras de um xamã yanomami (São Paulo: Com-
panhia das Letras). (Nota da IHU On-Line) plo, quantos eleitores do Lula em po-
Não me parecer suficiente ir até os 13 Ailton Alves Lacerda Krenak ou Ailton Krenak: mais
conhecido como Ailton Krenak (Minas Gerais, 1953), é um tencial migraram para o Bolsonaro?
indígenas, lhes perguntar sobre a sua líder indígena, ambientalista e escritor brasileiro. É conside-
Quantas destas pessoas ainda vota-
“versão” dos eventos históricos ape- rado uma das maiores lideranças do movimento indígena
brasileiro, possuindo reconhecimento internacional. Perten- riam no Lula caso ele tivesse concor-
nas para, na sequência, submetê-los, ce à tribo indígena crenaque. (Nota da IHU On-Line)
14 Bruno Latour (1947): filósofo francês, é um dos fun- rido? É necessário perguntar a essas
sobrecodificá-los à luz da nossa pró- dadores dos chamados Estudos Sociais da Ciência e Tec-
pessoas o motivo de terem migrado
pria epistemologia. “Veja! É assim nologia (ESCT). É reconhecido, entre outros trabalhos, por
sua contribuição teórica - ao lado de outros autores como ou mantido o seu voto.
que eles imaginam a experiência co- Michel Callon e John Law - no desenvolvimento da ANT -
Actor Network Theory (Teoria ator-rede) que, ao analisar
lonial”, “veja! É assim que eles expe- a atividade científica, considera tanto os atores humanos Essa lógica identitária desaba
rienciam a destruição de suas flores- como os não humanos, estes últimos devido à sua vincu- quando, por exemplo, você vê que
lação ao princípio de simetria generalizada. (Nota da IHU
tas pela máquina capitalista”. On-Line) muitas pessoas são a favor de pautas

EDIÇÃO 532
ENTREVISTA

que usualmente englobamos como IHU On-Line – Na sua opi- IHU On-Line – O que o tuíte
“justiça social”, mas ao mesmo tem- nião, a esquerda compreen- do presidente Jair Bolsonaro
po são a favor de pautas conserva- deu o recado, a mensagem em que tenta depreciar o car-
doras. Você pode encontrar evangé- passada pelas pessoas nesse naval revela? Que estratégia há
licos – e eu conheço alguns aqui no carnaval, das escolas de sam- por trás dessas ações?
subúrbio carioca – que militam pela ba do Rio e São Paulo, aos
Orlando Calheiros – Bolsonaro
população carcerária, são a favor de trios elétricos da Bahia, até
não é o primeiro e nem será o último
cotas, mas são contra pautas LGBT os blocos pelas ruas de todo o
poderoso a se incomodar com o car-
e a legalização do aborto. Sobre qual país? Por quê? naval. A lista é longa. Ainda, não me
prisma podemos declarar essa pes-
Orlando Calheiros – Ainda é parece coincidência de que ele te-
soa como sendo de “direita/extrema
muito cedo para dizer, mas eu sou nha sido o principal alvo dos foliões.
direita” ou de “esquerda”?
notoriamente pessimista quanto a Quem esteve nas ruas viu como ele
isso. Ano após ano o samba, o car- era alvo contínuo de chacotas. E des-
Campanha eleitoral
naval que inventa, vem passando confio que isso tende a aumentar nos
Seria preciso, ainda, compreen- essa mensagem, ano após ano, e, próximos carnavais conforme sua
der melhor como funcionam as parafraseando mais uma vez o sam- popularidade diminuir – isto é, se
campanhas políticas nessas regi- ba, “ninguém ouviu”. Essa mensa- ele continuar no cargo, o que já não
ões, trabalhos etnográficos bem gem não é de agora. Pega aí toda a parece tão certo dada a quantidade
elaborados que nos mostrem como história do Ilê Aiyê… Só o fato de as de escândalos que já se acumulam.
este ou aquele candidato conseguiu pessoas acharem que o que aconte- O que o tuíte dele revela? Bem, re-
conquistar o voto dessas popula- ceu neste carnaval foi algo inédito já vela o óbvio, revela a personalidade
ções. Por exemplo, a última eleição demonstra o quanto elas não estão obsessiva e autoritária – digo isso
para prefeito no Rio de Janeiro, ouvindo. Mas enfim, meu sonho é para não usar o equivalente freudia-
entre [Marcelo] Freixo e [Marcelo] estar errado. no – do presidente, uma pessoa que
Crivella, escancarou as dificulda- deliberadamente ignora os protoco-
des que a esquerda partidária en- los fundamentais do cargo que ocu-
46 frenta para se comunicar com essa IHU On-Line – Quais os desa-
pa por motivos estritamente pesso-
parcela da população. E veja que fios para compreender o que o
ais. Que não vê problema algum – e
aqui não estou falando apenas de sujeito da periferia anseia? Em
esse para mim é o maior dos proble-
problemas de segurança, como o que medida as manifestações
mas – em expor cidadãos, inclusive
domínio das milícias em diversas do carnaval, samba-enredo da
potencialmente à violência, apenas
partes da cidade, estou falando de Mangueira etc., são indícios
para se “defender” do contraditó-
problemas de linguagem e tática. O desses desejos?
rio popular. A estratégia é pueril e
próprio Freixo falou abertamente Orlando Calheiros – Você ter já começa a desgastá-lo, não é à toa
sobre isso ao fim das eleições. que me fazer essa pergunta é jus- que pouco tempo depois ele foi na
Com efeito, hoje em dia, impul- tamente um sintoma do problema, internet, fez “uma live” se compro-
sionados por uma leitura racista e quem deveria respondê-la é justa- metendo a retirar imagens que con-
distanciada, muitos militantes, so- mente o sujeito da periferia, não sidera pornográficas das cadernetas
bretudo na internet, defendem aber- eu. Eu não posso dizer o que eles de vacinação.
tamente a imbecilização do debate anseiam, mas posso te garantir que
político como uma tática para “con- tudo que eles menos querem é se-
IHU On-Line – Deseja acres-
quistar os eleitores mais simples”. rem infantilizados e/ou tutelados
centar algo?
Quando você olha para a quantidade no debate político. O que parece ser
de pessoas defendendo esse absurdo um vício das esquerdas partidárias, Orlando Calheiros – Gosta-
você começa a compreender como a infelizmente. E, como disse acima, ria que as pessoas ouvissem mais o
esquerda partidária perdeu espaço o samba é a própria consciência samba e isso é muito diferente de
nessas regiões. dessas populações, é a sua voz. “apenas” ouvir samba.■

Leia mais
- Totalitarismo como forma de existir. Um olhar aikewara sobre o “mundo branco”. En-
trevista especial com Orlando Calheiros, publicada nas Notícias do Dia, de 23-11-2018, no
sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2HwaYdS.

18 DE MARÇO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

‘Capitalismo gore’ e a
carnavalização da política
A professora Ivana Bentes analisa como a política
transborda também para os espaços de cultura
João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin

“ P
renderam os executores de Ma- exploração do trabalho dos muitos, ce-
rielle, mas quem mandou matar? lebraram o extermínio indígena, acre-
Essa é a pergunta que importa ditaram em heróis como Padre Anchie-
agora”, diz a professora e pesquisado- ta, Duque de Caxias, Floriano Peixoto,
ra Ivana Bentes à IHU On-Line, ao co- padres e militares mostrados pisando
mentar a recente prisão de dois suspei- sobre corpos ensanguentados na ave-
tos do assassinato da vereadora carioca nida, em uma das imagens mais incrí-
e de seu motorista, Anderson Gomes, veis e chocantes de releitura da nossa
que foram brutalmente executados há história. E que produz um espelho real
um ano. Segundo ela, “o caso Mariel- demais, atual demais, do próprio ideá-
le Franco vem num crescente desde o rio bolsonarista e ultraliberal. Eram os
Carnaval e as homenagens que foram bolsonaristas espelhados nas mesmas
feitas em diferentes escolas de samba, teses e valores dos escravocratas!”.
nos blocos apontam para um fenômeno
A professora também rebate as análi-
singular de ressignificação da sua mor- 47
ses daqueles que criticam a politização
te e a fixação de Marielle Franco em um
imaginário político brasileiro e global de outras esferas da vida. “Não tem
que atravessa fronteiras”. nada pior para a extrema direita do que
a ideia de ‘politizar’ um acontecimento
Na entrevista a seguir, concedida por do cotidiano. Politizar a festa, o carna-
e-mail, Ivana ressalta que “a política val, o enterro, politizar a vida. Como se
entrou para o cotidiano dos brasilei-
fosse algo escandaloso e condenável.”
ros” e que esferas que antes estavam
separadas, como política e futebol ou Ivana Bentes é professora e pesqui-
política e carnaval, agora estão juntas. sadora do Programa de Pós-Graduação
É isso que explica, por exemplo, que o em Comunicação e Diretora da Escola
mesmo Rio de Janeiro que elegeu po- de Comunicação da Universidade Fede-
líticos da extrema direita também se ral do Rio de Janeiro – UFRJ. É douto-
tornou palco de protestos. “Não existe ra em Comunicação, com graduação e
contradição” nesses dois fatos, frisa. Ao mestrado em Comunicação Social pela
contrário, “existe uma disputa narrati- mesma instituição. Ainda, foi secretária
va, uma disputa para efetivar mundos de Cidadania e Diversidade Cultural do
e as eleições, o carnaval, os blocos nas Ministério da Cultura de 2015 a 2016.
ruas, as práticas religiosas lutam em Tem se dedicado a dois campos de pes-
diferentes fronts nessa guerra cultural”. quisa: Estéticas da Comunicação, Novos
Modelos Teóricos no Capitalismo Cog-
Segundo ela, “o samba-enredo da
Mangueira mostrou que parte dos bra- nitivo, e Periferias Globais: produção de
sileiros e dos eleitores de Bolsonaro imagens no capitalismo periférico. Des-
acreditaram na história oficial, contada de 2009 é coordenadora do Pontão de
pelos colonizadores brancos e escravis- Cultura Digital da ECO/UFRJ.
tas; acreditaram no patriarcado e na Confira a entrevista.

IHU On-Line - O assassinato ano. Essas manifestações que sinato podem impactar essa
de Marielle e de seu motorista tomaram o Carnaval e agora a data? De que forma?
Anderson Gomes completa um prisão dos suspeitos de assas-

EDIÇÃO 532
ENTREVISTA

Ivana Bentes - O caso Marielle ção. Existe uma disputa narrativa, uma ve para o Brasil:
Franco vem num crescente desde o disputa para efetivar mundos e as elei-
“Esse termo se refere ao derrama-
Carnaval e as homenagens que foram ções, o carnaval, os blocos nas ruas, as
mento de sangue explícito e injus-
feitas em diferentes escolas de samba, práticas religiosas lutam em diferentes
tificado, à altíssima porcentagem
nos blocos apontam para um fenôme- fronts nessa guerra cultural.
de vísceras e desmembramentos,
no singular de ressignificação da sua
O que é surpreendente é que as esfe- frequentemente mesclados com a
morte e a fixação de Marielle Franco
ras que eram consideradas separadas: precarização econômica, ao crime
em um imaginário político brasileiro
política e futebol, política e carnaval organizado, à construção binária do
e global que atravessa fronteiras. Ma-
explodiram. Veja que não tem nada gênero e aos usos predatórios dos
rielle se tornou um ícone e um símbo-
pior para a extrema direita do que a corpos, tudo isso através da violência
lo das lutas mais radicais e vitais: das
ideia de “politizar” um acontecimento explícita como ferramenta de ‘necro-
mulheres, das periferias, das negras,
do cotidiano. Politizar a festa, o carna- empoderamento’.”1
dos LGBTs. Ela carrega na sua figura
val, o enterro, politizar a vida. Como se E o que é esse “necroempoderamen-
lindíssima, forte e pop, uma síntese de
fosse algo escandaloso e condenável. to” no Rio de Janeiro, um Estado em
tudo que é contemporâneo.
Os ataques conservadores são sem- que a relação entre política, polícia e
Vendo a iconografia em torno do
pre pueris: estão querendo “politizar” milícia se tornou indissociável? Va-
seu rosto e sorriso largo, seu cabelo
isso ou aquilo. Usam isso como um lencia Triana fala de “processos que
vistoso, suas roupas enfeitadas, me
xingamento. Pois justamente nós es- transformam contextos e/ou situações
dou conta que Marielle é a nossa
tamos vendo uma carnavalização da de vulnerabilidade e/ou subalternida-
Frida Kahlo, no sentido dessas mu-
política e uma politização do carnaval de em possibilidade de ação e auto-
lheres que suportam ou encarnam
e do cotidiano. Isso já tinha aconte- poder” a partir de práticas distópicas
todas as dores do mundo com essa e de autoafirmação perversa. Fala de
cido em 2013 quando politizamos o
vitalidade e beleza que nos afeta e práticas violentas rentáveis dentro
futebol, o que parecia impossível, a
impacta. No caso de Marielle o fato das lógicas da economia capitalista”.
Copa do Mundo e os megaeventos, e
de ter sido brutalmente assassinada E o que mais importa em um contexto
no auge da sua potência e juventude também emergiram outras formas e
linguagens que estetizavam e renova- em que os “os corpos são concebidos
48 produzem um efeito de comoção e como produtos de intercâmbio que
empatia gigantescos. vam os discursos políticos. A política
entrou para o cotidiano dos brasileiros alteram e rompem o processo de pro-
Marielle se transformou em uma em um contexto conflagrado e de em- dução do capital, já que subvertem os
ideia e em uma linguagem. É a cara bate. Uma tempestade semiótica, uma termos deste”.
de uma nova esquerda pop e global, guerrilha comunicacional que chegou Por isso falamos de uma necropolí-
por isso é também odiada, porque no auge nas eleições de 2018. tica, como diz o teórico negro Achille
era a cara de um futuro que precisava Mbembe, em que a vida e os corpos
ser exterminado, como nesses filmes O caso do Rio de Janeiro é emblemá-
tico. Temos um alinhamento distópi- são o objeto de extermínio e destrui-
de ficção científica em que forças re- ção. O uso de violência extrema, as
trógradas e abissais enxergam o que co. Pense em uma conjunção infernal:
um presidente da República de extre- execuções, os assassinatos, a tortura,
chega produzindo uma colisão de o sequestro, a venda de órgãos hu-
mundos. ma direita, um governador saído do
submundo do WhatsApp propondo manos, tudo entra nesse contexto do
A sua imagem estava em bandeiras premiar matadores, um prefeito evan- capitalismo gore em que uma Marielle
verde e rosa no desfile da Mangueira gélico que criminaliza a festa, o carna- Franco pode ser executada pelo que
neste carnaval, no samba-enredo e val, as manifestações de rua. significava politicamente e pelo que
em uma ala. Nesse sentido, foi muito encarnava no seu corpo. As emergên-
comovente e feliz o samba-enredo que O Rio de Janeiro hoje é o cenário do cias e os corpos disruptivos, que aba-
colocou Marielle, Marias, Mahins e apocalipse em que se trava um em- lam a lógica do sistema.
Malês no mesmo samba e na mesma bate crucial: o Brasil do capitalismo
mafioso, dos poderes fáticos e essas Ou seja, no México ou no Brasil e
linha evolutiva de uma outra historio- em muitos outros contextos, em uma
grafia brasileira. emergências, como Marielle Franco e
uma cultura das periferias exuberante epidemia global, o que vemos são a
em que todos são empreendedores da popularização de práticas crimino-
própria vida e inovadores. sas e a violência como ferramenta de
IHU On-Line - O Rio de Janei-
enriquecimento rápido que permitirá
ro da Mangueira e de outras es-
O Rio de Janeiro é a vitrine do capi- sustentar não apenas bens comerciais,
colas de samba que fizeram da
talismo mafioso, o laboratório de um mas que produz valorização social:
avenida o palco de protestos é
capitalismo que precisa de violência e narcocultura e milícias.
o mesmo que elegeu nomes da
desigualdade para florescer. É o que
chamada nova direita. Como IHU On-Line - Como compre-
a teórica mexicana Sayak Valencia
compreender esse fenômeno?
Triana chama de “capitalismo gore” 1 Saiba mais em http://bit.ly/2HGJJNN. (Nota da entre-
Ivana Bentes - Não existe contradi- no contexto do México, mas que ser- vistada)

18 DE MARÇO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

ender o que representa a morte do governador Witzel no Rio de Janei- O carnaval de rua brasileiro renas-
da vereadora Marielle Franco? ro, um “desconhecido” que, associado ceu, floresceu, cresceu e hoje é orgu-
a Bolsonaro, saiu do submundo do lho em todo o Brasil! São Paulo, que já
Ivana Bentes - Prenderam os exe-
WhatsApp para o governo de um dos foi o “túmulo do samba”, reinventou o
cutores de Marielle, mas quem man-
mais importantes estados do Brasil. carnaval e hoje a cultura carnavalesca
dou matar? Essa é a pergunta que
faz a felicidade de milhões nas ruas
importa agora. Os policiais militares Marielle ganha um significado gigan-
de todo o país — e de graça. Além de
suspeitos do assassinato de Marielle tesco porque encarna hoje todos os
aquecer a economia, o turismo e o
Franco foram presos dois dias antes do discursos de resistência a esse estado
“FIB”, a felicidade interna bruta dos
14/03, um ano de sua execução bárba- de coisas. Uma onda global diante de
brasileiros, dos mais pobres aos mais
ra, talvez para neutralizar os atos em um assassinato real e simbólico, que
ricos. Um dispositivo de reversão das
sua memória que acontecerão no Rio, mata valores que prezamos. Marielle
forças mais hostis, da violência, desi-
no Brasil e pelo mundo. É difícil ima- morta e tudo em torno desse assassi-
gualdade e pobreza em deslumbra-
ginar que dois milicianos resolveram nato talvez seja a maior força para o
mento e alegria.
matar Marielle de forma “abstrata”, início de uma derrocada de Bolsonaro
por causa da agenda que ela defendia e da cultura de extrema direita que foi O fascismo bolsonariano é apenas
simplesmente. Mas não é difícil ima- vocalizada e visibilizada pós-eleições. isso: uma promessa de partilha do ódio
ginar o mandante ou os mandantes Marielle é uma peça-chave para sair- e do uso da violência real e simbólica.
do crime matando dentro da agenda mos do modo de operação das milícias Este é o grande e único projeto de go-
desse “capitalismo gore” que precisa reais e simbólicas. verno e ele foi eleito para isso. Mas com
de uma cultura para florescer. 100 dias de governo, o “projeto” vai se
E nesse sentido a cultura das milí- revelando em todo o seu horror.
IHU On-Line - Como a senhora
cias que matou Marielle é a mesma da
analisa a postagem do presiden-
família Bolsonaro, é a mesma profes- IHU On-Line - O que o episódio
te que, em sua conta oficial no
sada por parte do grupo político que de publicação desse vídeo revela
Twitter, tenta denegrir a ima-
chegou ao poder com o presidente Jair acerca da estratégia de comu-
gem do Carnaval? O que está por
Bolsonaro. O Sargento Ronnie Lessa, nicação do presidente Jair Bol-
apontado como o executor e atirador trás dessa ação? 49
sonaro? Que fenômeno é esse
que matou Marielle, mora no mesmo Ivana Bentes - O presidente do Bra- e o que implica essa postura do
condomínio de luxo da Barra da Tiju- sil respondeu a provocações dos blocos presidente de buscar um canal
ca em que mora Jair Bolsonaro. O pro- de carnaval de rua, que em todo Brasil de comunicação alheio à própria
blema não é apenas factual, apesar da viralizaram o “Ei Bolsonaro vai tomar mídia?
nefasta coincidência. no cu” e outros impropérios, tentando
desqualificar a maior e mais amada Ivana Bentes - O vídeo postado
A família Bolsonaro não precisa es- para horrorizar a família é de um jo-
tar envolvida diretamente no assassi- festa de rua popular brasileira com
uma imagem garimpada nas redes vem gay manipulando o próprio ânus.
nato de Marielle Franco para ficarmos
para “horrorizar” o cidadão de bem. Pouco depois, o cara que está ali em
escandalizados, por exemplo. Estão
Como se o carnaval de rua fosse um ví- cima com ele mija nos seus cabelos,
envolvidos com a cultura das milícias
deo pornográfico da deep web proibido o que é catalogado entre as práticas
e dos grupos de extermínios, a cultu-
para a família brasileira. Mas dessa vez sexuais como “chuva dourada” ou gol-
ra dos torturadores, como expressam
não funcionou porque simplesmente den shower.
publicamente e como ficou provado
com os milicianos que empregam nos Bolsonaro estava falando da festa mais Uma provocação com uma plateia
seus gabinetes e prestam homenagem conhecida do país, e não da “ideologia mínima em um lugar qualquer deste
na Alerj. Ou com seus aliados políticos de gênero”, do “comunismo” ou de ou- Brasil. Muitas outras imagens des-
que quebraram a placa em homena- tras fantasmagorias abstratas. contextualizadas e isoladas pode-
gem a Marielle em um ato de vanda- Assim, no meio de um carnaval ati- riam ser postadas para “causar”. Mas
lismo e tantas outras relações de pro- vista e politizado, com mil blocos con- para quê? O vídeo foi garimpado na
ximidade com o Escritório do Crime tra tudo o que está aí, o presidente da web pelos assessores de Bolsonaro
no Rio de Janeiro. República desceu ao mais baixo com o para mostrar a verdade do carnaval!
Eis a mentira. E isso utilizando-se
PMs, milícias, e a família presidencial mesmo modus operandi da “mamadei-
da conta do presidente da Repúbli-
defendem esses valores mais nefastos ra de piroca” e das fake news que o ele-
ca no Twitter para todo o mundo
e antidemocráticos e não se comovem geram, desqualificando a festa e o seu
ver e “odiar” o carnaval do Brasil. O
com o horror da execução de uma mu- povo. Bolsonaro e seus mentores pare-
presidente prefere entrar em guerra
lher extraordinária e uma vereadora cem desconhecer o básico do carnaval:
contra o carnaval em vez de encarar
do Brasil. O caso Marielle se tornou deboche, ironia, inversão, humor, fazer
a sua rejeição no campo narrativo.
hoje algo muito maior, no contexto da em público o que se esconde no priva-
eleição de Bolsonaro e de ascensão da do, liberdade. A maior tecnologia de A estratégia foi a mesma usada
extrema direita, no cenário da eleição catarse e beleza deste país. para desqualificar as manifestações

EDIÇÃO 532
ENTREVISTA

do #EleNão durante a campanha O samba-enredo da Mangueira mos- sangue retinto pisado/Atrás do herói
para as eleições de 2018. Depois das trou que parte dos brasileiros e dos emoldurado/ Mulheres, tamoios, mu-
manifestações capitaneadas pelas eleitores de Bolsonaro acreditaram na latos/Eu quero um país que não está
mulheres contra Bolsonaro em todo história oficial, contada pelos coloni- no retrato”. Vimos o Padre Anchieta
o Brasil, as milícias digitais bolsona- zadores brancos e escravistas; acredi- e Duque de Caxias, um religioso e um
ristas inundaram o WhatsApp com taram no patriarcado e na exploração militar, pisando sobre corpos negros,
imagens de mulheres nuas, atos se- do trabalho dos muitos, celebraram o indígenas, corpos de homens e mu-
xuais, pornografia, imagens sem da- extermínio indígena, acreditaram em lheres. O carro que fechou o desfile da
tas e nem origem, como se fossem a heróis como Padre Anchieta, Duque Mangueira com as bandeiras verde e
verdade sobre as manifestações. de Caxias, Floriano Peixoto, padres rosa de heróis contemporâneos e lutas
e militares mostrados pisando sobre ancestrais levou à catarse: “Brasil, che-
O MBL não hesitou em, mesmo re-
corpos ensanguentados na avenida, gou a vez. De ouvir as Marias, Mahins,
provando o post de Bolsonaro, voltar
em uma das imagens mais incríveis e Marielles, Malês”.
à associação entre artistas, cultura,
chocantes de releitura da nossa histó-
pornografia e perversão, publicando
ria. E que produz um espelho real de-
em 7 de março deste ano um texto IHU On-Line - Levando em
mais, atual demais, do próprio ideário
intitulado “‘Artistas’ mijões e cagões consideração o samba-enredo
bolsonarista e ultraliberal. Eram os
ganham espaço na imprensa”. Mas a da Mangueira, campeã do car-
bolsonaristas espelhados nas mesmas
estratégia eleitoral se mostra ela mes- naval carioca, e as manifesta-
teses e valores dos escravocratas!
ma grotesca e “fora de lugar” quando ções políticas presentes em ou-
o candidato se torna o presidente da A Mangueira homenageou os indíge- tras escolas de samba e blocos
República mantendo o mesmo com- nas, as mulheres negras, os quilombo- em todo o Brasil, como analisa
portamento aberrante da campanha. las, transformando os heróis oficiais em este Carnaval dentro do atual
anões no seu abre-alas. Uma ousadia e contexto político?
um choque. A Mangueira fez uma fes-
IHU On-Line - Alguns analistas ta-desfile-protesto contra o assassinato Ivana Bentes - O carnaval é um
consideraram que a Mangueira de Marielle Franco na Sapucaí em uma momento em que se pode dizer a “ver-
50 ofereceu um caminho de revo- homenagem emocionante que triunfa dade”, escrachar, explicitar o que está
lução histórica. Que caminho é sobre a morte. Não verás um país fas- reprimido. Então a linguagem carna-
esse e no que consiste essa ideia cista no carnaval. O Brasil mostrado valesca, o humor, o escracho, são as
de revolução? apresentou uma bandeira nova, com linguagens que melhor respondem ao
“índios, negros e pobres” no centro do populismo digital e a essa estética do
Ivana Bentes - Eu prefiro falar
projeto de país. Uma simbologia forte grotesco na política.
simplesmente de uma releitura da
história que ressignifica as lutas e os e esteticamente popular. Uma contra- Por que os que vestem a camiseta do
heróis para responder aos desafios narrativa de tudo que está aí. torturador Ustra se incomodam tanto
um presente urgente. Uma história Existe hoje um ativismo mainstream com uma performance na rua, que é
viva que reconecta passado, presente que passa pelas grandes manifestações uma exceção e não a regra do carna-
e futuro. As narrativas históricas po- culturais massivas, e o Carnaval é um val? Por que se incomodaram tanto
dem ser disputadas não apenas pelos desses lugares que consolidam outros com a performance no Rio de Janeiro
historiadores, mas pelos blocos de imaginários e fazem a disputa narrati- de uma atriz que colocou baratas de
rua, incontroláveis, ou pelas escolas va. A Paraíso do Tuiuti e a Mangueira plásticos sobre sua genitália, vestida,
de samba, na avenida, como vimos levantaram o sambódromo. Tuiuti de mas fazendo alusão à tortura pratica-
nos desfiles da Paraíso de Tuiuti e volta literalmente ao discurso “alegóri- da pelo Coronel Ustra, ídolo da famí-
principalmente da Mangueira, sa- co” para contar a história do Bode Ioiô, lia Bolsonaro?
grada campeã do Carnaval 2019. Ou político vindo do nada, “um bode vindo
Talvez porque essas performan-
seja, estamos falando de uma vitória lá do interior/Destino pobre, nordesti-
ces produzam, na sua literalidade e
narrativa contra o Brasil oficialesco, no sonhador/Vazou da fome, retirante
“mau gosto”, a crueza e o horror des-
normativo, hierárquico. ao Deus dará/ Soprou as chamas do
ses atos inomináveis defendidos pela
dragão do mar”, com muitas alusões à
A nossa bandeira agora será Man- extrema direita. Porque “igualam”
saga de Luiz Inácio Lula da Silva e aos
gueira, cantaram as multidões quan- em termos estéticos (mas não nos
coxinhas de arminhas na mão e até um
do a escola de samba apresentou a valores) o horror dos atos de extre-
carro alegórico ativista ao final com
história do Brasil de ponta-cabeça, ma direita e as performances simbó-
a faixa “Ninguém solta a mão de nin-
com um samba lindíssimo encenan- licas que usam o choque como crítica
guém”, símbolo das lutas e resistência
do uma sociedade racista, comanda- e resistência. Diante do horror e das
antibolsonaristas.
da pela branquitude, por escravocra- palavras e dos atos brutais de nossos
tas; um enredo corajoso sambando A Mangueira reescreveu uma par- governantes, só nos resta o “choque
na cara dos conservadores e nas teses te da história: “Desde 1500 tem mais do real” na mesma moeda e com o
da extrema direita. invasão do que descobrimento/ Tem mesmo “mau gosto” e demência?

18 DE MARÇO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

Censurada pelo governador, a perfor- não é melhor que o personagem de Zé e mainstream. Se o Zé de Abreu fura a
mance no Rio aconteceu na rua e foi en- de Abreu: tosco, pimpão, fanfarrão e bolha e incomoda o Presidente da Re-
viada à Polícia Militar para quem sabe narcisista. E incomoda a esquerda que pública que nomeou um aliado, um ex
nos impedir de ver o óbvio e/ou “tirar acha que qualquer coisa que “não seja -ator pornô deputado, Alexandre Fro-
as crianças da sala”. O que não pode- séria”, qualquer expressão na lingua- ta, para processá-lo por “confusão no
mos ver, afinal, que o Coronel Ustra gem popular do deboche, do grotesco aeroporto”, temos que ficar atentos.
fazia e gabava-se e seus seguidores ce- e da sátira é “impuro”. Parece que não O cabaret está vindo abaixo! Não pre-
lebram? Se celebram, por que querem aprenderam nada com a eleição de cisamos ficar no “bomgostismo” das
esconder? Porque sabem que é vergo- Bolsonaro, o presidente meme! nossas verdades complexas apenas.
nhoso e a performance expõe o óbvio.
A extrema direita tem uma legião Como diria o Bandido da Luz Ver-
Aliás, as mulheres também eram man-
de youtubers, fazedores de memes, melha, personagem genial do cineas-
tidas nuas nas sessões de tortura! Por
personagens zueiras e uma milícia ta Rogério Sganzerla: “Quando a gen-
que agora querem censurar a nudez e a
digital. O humor, a carnavalização te não pode fazer a gente avacalha”.
sexualidade?
são linguagens políticas. Nós fala- Aliás, uma das linguagens potentes
Se estamos em uma “guerra cultural”, mos tanto na cultura popular digital das manifestações de 2013.
a cultura tem o maior poder de produ- e quando ela chega e se massifica,
zir um curto circuito em “tudo que está quando ela chega e nos derrota, parte Não estou discutindo a posição de
aí”. Uma arte sim brutal, literal, que da esquerda toma horror do processo Zé de Abreu em nenhum caso especí-
nos embrulhe o estômago, nos enoje e e da linguagem e não do seu uso. fico, mas sua performance como bobo
não nos deixe acostumar com o horror. da corte em 2019. Aliás, as sátiras
O que vimos no carnaval não foi sequer Ou seja, além de trabalho de base, presidenciais no Brasil têm sido pro-
uma performance intencional, poderia organização, autocrítica, formação, fícuas e suas personas virtuais tam-
sim ser considerada “atentado ao pu- novas lideranças políticas, blá blá blá, bém, como a Dilma Bolada e outras.
dor”, mas é algo tão pequeno dentro nós precisamos de uma legião de zéde- O Zé de Abreu só fez o “download” do
da beleza e grandiosidade da festa que abreus, de youtubers, de zoadores, de personagem virtual para o “real” (que
destacar essa imagem explicita a guer- carnavalescos, uma massa crítica no aliás nunca estiveram separados) e
ra de valores, a guerra narrativa feita comentariado das redes que professe ajuda a carnavalizar a política.
e lute por outros valores não conserva- 51
da forma mais baixa. Se Zé de Abreu também comete erros,
dores e não fascistas, em todas as mí-
dias e usando todas as linguagens. como declarar que “ser branco agora é
IHU On-Line - Deseja acrescen- um privilégio” deve ser trollado até
Precisamos de escolas de memes, aprender, exatamente como o nosso
tar algo?
porque só a “comunicação séria”, só os presidente original. Estamos em uma
Ivana Bentes - Sim, esse ativismo panfletos, só os abaixo-assinados para fronteira confusa em que o grotesco
mainstream no carnaval e nas ruas letrados, só os manifestos, só os par- da política e da paródia se confundem.
aponta para outras formas de dispu- tidos, só os movimentos organizados, Não precisamos lidar com a política
tas narrativas, com base nos corpos e não resolveu não! Continuaremos a apenas de forma objetiva e racional.
comportamentos. A performance de fazer letramento, mas no momen- Os idiotas da objetividade era como
José de Abreu, autoproclamado Presi- to um programa de auditório como Nelson Rodrigues chamava carinho-
dente da República do Brasil, é outro Amor e Sexo, ou a festa do Oscar, ou o samente as pessoas que liam o mundo
bom exemplo. Um ator atuando de #8M nas ruas ou tudo que é mainstre-
literalmente e de forma objetiva. Isso
forma irônica e paródica, escrachando am deveria nos interessar muito.
em um texto antológico que criticava
a fragilidade das democracias latino
O campo das esquerdas perdeu as a “monstruosa e alienada objetivida-
-americanas, incomoda os puristas da
eleições presidenciais por fatores múl- de” jornalística. Por isso acredito que
direita e da esquerda.
tiplos e complexos, mas também por a carnavalização é nossa aliada em um
O Presidente da República eleito não saber renovar a sua linguagem. E mundo que experimenta a desrepres-
agora tem um espelho que amplifica ninguém tem a fórmula mágica para são bárbara, mas também o que essa
seu comportamento tosco. Bolsonaro isso. Precisamos de um ativismo pop desrepressão possa ter de libertária.■

Leia mais
- Fratura exposta ou o transe da democracia. Arranjos novos vêm com frescor para de-
sarrumar o arrumado. Entrevista especial com Ivana Bentes, publicada nas Notícias do Dia,
03-05-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2TeE8Ao.
- Velocidade e política: os desafios para vivenciar uma democracia em tempo real. En-
trevista especial com Ivana Bentes, publicada nas Notícias do Dia, 29-11-2018, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2ue8rxi.

EDIÇÃO 532
ENTREVISTA

As milícias crescem velozmente


por dentro do Estado
Segundo o sociólogo José Cláudio Alves, o poder de atuação das
milícias cresce no Rio de Janeiro a partir de informações privilegiadas,
que são obtidas de dentro do Estado
Patricia Fachin

A
prisão dos dois acusados de es- querem trabalhar nessas empresas.
tarem envolvidos no assassinato Assim esses empregados terão que re-
da vereadora Marielle Franco e passar parte dos seus salários para os
seu motorista, Anderson Gomes, “é a milicianos. Essa é uma novidade nesse
exceção de uma regra”, diz o sociólogo campo no Rio de Janeiro”, informa.
José Cláudio Alves à IHU On-Line.
Outra novidade no Rio de Janeiro é a
“A regra é que membros de milícias são
atuação da milícia marinha, que, segun-
intocáveis, seus negócios se ampliam
do Alves, atua a partir de informações
e eles têm dimensões crescentes desse
de que o Ministério da Pesca e Aqui-
poder e agora expressam isso a partir
cultura não está fornecendo licenças
do assassinato de pessoas que ocupam
para pescadores. “Essa milícia aborda
cargos no âmbito político e que são con-
trárias aos seus interesses”, menciona. os pescadores no mar, quando eles es-
52 Na entrevista a seguir, concedida por
tão pescando, exige a licença que o pes-
cador não tem e passa a exigir valores
WhatsApp, Alves frisa que “a estrutu- semanais para permitir que o pescador
ra política e econômica das milícias
possa continuar pescando. Então, sur-
no Rio de Janeiro hoje começa a ga-
giu na costa do Rio de Janeiro essa mi-
nhar vários outros contornos, que não
lícia marítima que passa a controlar os
eram perceptíveis e que agora se ma-
pescadores”, denuncia.
nifestam”. Entre eles, o sociólogo cita
a atuação da milícia na construção do José Cláudio Alves é graduado em Es-
Complexo Petroquímico do Rio de Ja- tudos Sociais pela Fundação Educacio-
neiro – Comperj em Itaboraí. “Várias nal de Brusque. É mestre em Sociologia
empresas terceirizadas estão atuando pela Pontifícia Universidade Católica
na construção da obra e a milícia está do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor,
controlando quem vai trabalhar nessas na mesma área, pela Universidade de
empresas. Isso já é um passo à frente São Paulo - USP. É professor na Uni-
em relação à atuação das milícias an- versidade Federal Rural do Rio de Ja-
teriormente: a milícia detecta onde o neiro - UFRRJ.
capital está se manifestando — nesse A entrevista foi originalmente pu-
caso é um capital público em parceria blicada nas Notícias do Dia de 18-03-
com empresas privadas — e, ao ficar a 2019, no sítio do Instituto Humanitas
par da situação, manipula essa infor- Unisinos – IHU, disponível em http://
mação e passa a controlar de forma bit.ly/2THEAwp.
violenta o acesso a esse emprego, co-
brando taxas e valores das pessoas que Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que avaliação prisão de dois suspeitos de es- rielle é que elas foram muito lentas.
o senhor faz da investigação do tarem envolvidos com o crime? Essa demora acaba acarretando uma
assassinato de Marielle e An- José Cláudio Alves – A minha série de complicações para saber se,
derson Gomes, ao longo do úl- avaliação em relação às apurações e de fato, esses são os responsáveis. A
timo ano, que culminou com a investigação da polícia no caso Ma- princípio parece que os dois presos

18 DE MARÇO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

“A minha avaliação em relação


às apurações e investigação
da polícia no caso Marielle é
que elas foram muito lentas”

foram os responsáveis, mas a per- de, de imigração de nordestinos, que no Rio de Janeiro. O próprio Flávio
gunta que fazemos é quantas pessoas está na área da zona Oeste do Rio também fez várias comendas de ho-
estavam envolvidas nisso e quem são de Janeiro, onde a milícia tem uma menagens à atuação de milicianos
os mandantes envolvidos nesse cri- presença extremamente forte. Essa é no estado do Rio de Janeiro. Então,
me. Muitas questões ficaram soltas e uma das áreas mais antigas, que está há uma vinculação forte dessa milí-
ao longo do tempo elas não foram in- na base da formação das milícias no cia com a estrutura do poder políti-
vestigadas nem apuradas, o que gera Rio de Janeiro. As milícias dessa re- co dos Bolsonaros. Tudo indica isso,
consequências, como a morosidade gião têm uma forma muito peculiar haja vista a situação da esposa e da
da investigação, a dificuldade de ela de atuação no campo da venda de mãe do Adriano de Nóbrega, o qual
prosseguir, de averiguar quantos ou- terrenos. Na zona Oeste existe a pre- parece ser uma das lideranças do Es-
tros suspeitos poderiam ser identi- sença muito grande de um tipo de critório do Crime.
ficados no processo mas não serão. solo chamado turfa, que é um solo
Paira a dúvida sobre se de fato não Desde o início eu sabia que havia
inadequado para a construção de ca-
haveria indícios mais contundentes sas porque é muito movediço e não
o “dedo da milícia” e a prática típica 53
e próximos a grupos políticos que de execução primária de grupos de
permite a estrutura de alicerce das
hoje ocupam espaço no âmbito fede- extermínio, e que isso levaria aos ne-
construções. Por conta disso, há um
ral, se não haveria ligações mais pro- gócios e aos interesses econômicos
controle naquela região das áreas em
fundas, mas que com a demora da de políticos que a milícia estabelece
que é possível construir, ou seja, há
investigação acabam sendo perdidas a partir daquela região, mas numa
um limite e uma faixa específica para
e apagadas. rede que é muito maior do que Rio
a compra de terrenos e construção
de casas. Esse processo é controlado das Pedras. Então, toda essa rede
Essa demora toda nos faz refletir, pode ter algum grau de envolvimen-
mas a prisão dos suspeitos é algo pela milícia, que tem informações
privilegiadas, as quais são obti- to no assassinato de Marielle, na
importante e acaba, de outro lado, sua organização, na sua proteção e
amortecendo a busca de explicações, das dentro do Estado, já que são os
agentes do Estado que circulam nes- no seu financiamento. Demorou um
acaba sendo uma espécie de “cala a ano para se dar um retorno muito
boca” e subterfúgio, e também aca- se âmbito. Esse é um mercado que
se expandiu muito naquela região, pífio desse caso, que foi a prisão de
ba sendo um alívio para esse sofri- duas pessoas. Essa é uma estrutura
mento todo, mas não vejo o processo porque trata-se de uma área onde há
muita procura por moradia, porque muito mais ampla e com muito mais
como algo conclusivo. relações, uma rede muito maior que
ela é vinculada a processos migrató-
rios, principalmente de nordestinos. deveria ser revelada e apresentada
IHU On-Line - As notícias di- nesse quadro.
Os comerciantes daquela região
vulgadas na imprensa dizem
iniciaram o processo de financia-
que as investigações do caso IHU On-Line - O governador
mento das milícias para impedir
Marielle chegaram até o cha- do Rio de Janeiro, Wilson Wit-
que o tráfico de drogas acessasse
mado Escritório do Crime, um zel, disse que os presos pela
aquela comunidade. Logo, aquela é
poderoso grupo miliciano de morte de Marielle e Anderson
uma área onde a atuação da milícia
Rio das Pedras que atua sob en- Gomes serão convidados a fa-
é muito consolidada e movimenta
comenda. O senhor tem infor- zer delação premiada na nova
muitos recursos. A busca por um dos
mações sobre esse grupo?
envolvidos no Escritório do Crime, fase da investigação, que quer
José Cláudio Alves – Não tenho Adriano de Nóbrega, revelou que chegar aos mandantes do cri-
detalhes sobre como o Escritório do a mãe e a esposa dele trabalharam me. Nos últimos anos há uma
Crime atua. Sei que Rio das Pedras como assessoras de Flávio Bolsonaro série de debates jurídicos e po-
é uma favela histórica, muito gran- enquanto ele era deputado estadual líticos acerca da necessidade

EDIÇÃO 532
ENTREVISTA

ou não da delação premiada na lógica fundamentalista religiosa, construído o Complexo Petroquí-


investigação de crimes. Como o permitindo a eleição de uma banca- mico do Rio de Janeiro - Comperj,
senhor avalia esse tipo de me- da fundamentalista, conservadora e cujas obras do governo federal es-
dida para este caso específico voltada para a lógica de que “ban- tavam paradas e foram retomadas
para se chegar aos mandantes dido bom é bandido morto”. Nesse recentemente. Várias empresas ter-
do crime? sentido, a bancada da bala se am- ceirizadas estão atuando na cons-
pliou muito no Rio de Janeiro, pro- trução da obra e a milícia está con-
José Cláudio Alves – Não tenho
jetando figuras simplesmente insig- trolando quem vai trabalhar nessas
uma reflexão muito consolidada so-
nificantes, ignoradas pela população empresas terceirizadas. Isso já é um
bre o estatuto da delação premiada.
daqueles que atuavam politicamen- passo à frente em relação à atuação
O que me impressiona é que existe
te, que vieram numa onda extrema- das milícias anteriormente: a milícia
uma dimensão organizada do crime
mente conservadora projetadas por detecta onde o capital está se mani-
a partir do Estado e, portanto, pare-
esse discurso do aumento da violên- festando — nesse caso é um capital
ce que facilmente seria possível ter
cia, aumento da execução sumária, público em parceria com empresas
acesso ao que esses grupos fazem,
da prática da eliminação do outro, privadas — e, ao ficar a par da situ-
como atuam de forma organizada
da lógica do desarmamento, e tudo ação, manipula essa informação e
dentro do Estado, mas o que se vê
isso tem ampliado o poder político passa a controlar de forma violenta
é que os que investigam e buscam a
desses grupos. o acesso a esse emprego, cobran-
justiça estão numa ratoeira, como se
do taxas e valores das pessoas que
tivessem que se esconder desses gru- Isso é visível no Rio de Janeiro, e
querem trabalhar nessas empresas.
pos. Ou seja, não se tem uma atuação os reflexos já estão sendo vistos pelo
Assim esses empregados terão que
clara, consistente e firme da conduta aumento do número de operações
repassar parte dos seus salários para
das investigações, e aí se buscam policiais com chacinas, com mortes
os milicianos. Essa é uma novidade
subterfúgios, como delações premia- de pessoas, o aumento de desapare-
nesse campo no Rio de Janeiro.
das. Me impressiona muito o poder cidos forçados. E o mais preocupan-
que esses grupos têm e a fragilidade te são as subnotificações: não está Outra novidade é a milícia maríti-
da estrutura do judiciário frente a ocorrendo registro de homicídios e ma, que atua a partir de informações
54 esse poder, a ponto de ele próprio se desaparecidos; eles não estão sendo de que o Ministério da Pesca e Aqui-
ver encurralado, em busca de dela- registrados por conta da lógica do cultura não está fornecendo licen-
ções premiadas para algo que é es- medo associada à lógica da violência ças para pescadores há três anos ou
cancarado, que está nas ruas. crescente da instituição Estado e do mais. Essa milícia aborda os pesca-
aparato policial. Isso tem um efeito dores no mar, quando eles estão pes-
Alega-se que é preciso ter uma de-
de repressão a todo e qualquer regis- cando, exige a licença que o pescador
lação premiada para poder avançar
tro de atos violentos e perdas de direi- não tem e passa a exigir valores se-
na investigação e isso virou uma
tos. A tendência é esse cenário piorar manais para permitir que o pescador
possibilidade. Se os efeitos disso fos-
e fortalecer ainda mais esses grupos possa continuar pescando. Então,
sem reais e trouxessem à baila toda
em termos políticos naquela região. surgiu na costa do Rio de Janeiro
essa rede e fizessem uma atuação
Tenho dito que cinco décadas de gru- essa milícia marítima que passa a
em rede a ponto de dar um baque
pos de extermínio se reverteram em controlar os pescadores.
significativo nessa estrutura e res-
70 a 75% da votação que Bolsonaro
tringi-la... mas até agora não vi nada Uma terceira forma de ampliação
e a extrema direita que se associou
disso acontecer. Pelo contrário, cada das milícias é o controle de servi-
a ele obtiveram na última eleição na
baque que essa estrutura sofre é pe- ços médicos nos hospitais públicos
Baixada. Isso não é uma surpresa; foi
queno, o que permite a sua rápida no Rio de Janeiro. Escutei que no
algo construído ao longo das últimas
recomposição muito facilmente. hospital geral de Bom Sucesso, um
cinco décadas, se contarmos tudo que
aconteceu desde a ditadura empresa- hospital federal, a milícia controla
rial militar no Brasil. É sob essa égide quem acessa e quem tem direito
IHU On-Line - Qual é o poder
que vivemos ainda. aos serviços do hospital e cobra ta-
político das milícias que atuam
xas por isso. Então, isso também é
no Rio de Janeiro hoje? Quem
Atuação das milícias uma inovação. A venda de drogas
faz parte dessa estrutura?
também passou a ser utilizada pela
José Cláudio Alves – O braço A estrutura política e econômica milícia como uma forma de traba-
político tem se ampliado desde as das milícias no Rio de Janeiro hoje lho e atuação. A milícia não só alu-
últimas eleições no campo federal, começa a ganhar vários outros con- ga pontos de drogas para facções
principalmente, e estadual, com a tornos, que não eram perceptíveis e do tráfico, mas agora faz a própria
eleição, se não de milicianos direta- que agora se manifestam. Vou dar venda da droga. Então, o leque de
mente eleitos, de bancadas de parti- alguns exemplos. Um deles é em atuação das milícias se amplia e
dos de ultradireita, partidos conser- Itaboraí, uma cidade metropolitana todo esse leque de atuação tem seu
vadores e partidos vinculados a uma do Rio de Janeiro, onde está sendo braço político.

18 DE MARÇO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

Também faz parte dessa dimensão o e milícias, que é a forma que opera
“Me fato de a polícia operar o judiciário hoje nessas regiões e no Rio de Ja-
na sua ponta com investigações, re- neiro. Essa estrutura submete todos
impressiona pressões, ou seja, o processo jurídi- nós a esse controle e poder da tortu-

muito o poder
co inicial envolvido na dimensão do ra e da execução sumária.
judiciário é controlado pela polícia e

que esses seus agentes e isso dá mais poder aos


milicianos. IHU On-Line - Como o senhor

grupos têm e
avalia o pacote anticrime enca-
A face ilegal, que é a face criminosa, minhado à Câmara pelo novo
assassina, torturadora, totalitária,
a fragilidade obstrui qualquer tipo de contesta-
governo, que aposta em três
vias: combate a crimes de cor-
ção do seu poder que mata e executa
da estrutura do quem se contrapõe a ela. A milícia só
rupção, combate ao tráfico de
drogas e combate a crimes de
judiciário frente tem esse poder todo graças à dimen-
são legal das informações e dos pos-
violência?
José Cláudio Alves – O pacote
a esse poder, tos que esses agentes ocupam dentro
do Estado. do Moro vai na contramão de toda

a ponto de ele Assim, a face legal e a ilegal se com-


plementam e se projetam uma na
a minha avaliação e de tudo que ve-
nho falando ao longo dos anos. O

próprio se ver outra, criando uma estrutura tota-


pacote anticrime se insere na lógica
totalitária, ditatorial e autoritária da
litária, fechada, blindada, intocável.
encurralado A prisão desses dois acusados é a
estrutura policial, que é a base de
alimentação do crime organizado ex-
em busca exceção de uma regra. A regra é que
membros de milícias são intocáveis,
presso na milícia. Moro, ao defender
os princípios do próprio Bolsonaro,
de delações seus negócios se ampliam e eles têm
dimensões crescentes desse poder
como o excludente de ilicitude, ale-
ga que o agente de segurança, numa 55
premiadas e agora expressam isso a partir do
assassinato de pessoas que ocupam
condição de estresse e sem controle
do ambiente e do momento em que
para algo que cargos no âmbito político e que são
contrárias aos seus interesses.
está atuando, permite a ele o uso
da violência letal, do assassinato e
é escancarado, A meu ver a milícia tem dimen- homicídio como forma de solução

que está sões mais poderosas e mais amplas daquelas questões, eximindo aquele
do que eu poderia ter imaginado há policial de responsabilidade.

nas ruas” algum tempo. As milícias crescem


velozmente por dentro do Estado e
Na verdade, isso era tudo que esses
grupos apoiadores dessa estrutura
se beneficiam dessa dupla face da
política ideológica da extrema direi-
mesma moeda, a face legal e a ilegal.
IHU On-Line – Qual é a rela- ta queriam. Eles não vão mais pre-
O ilegal é o Estado. Por mais que o
ção das milícias com o Estado? cisar colocar capuz para matar; vão
Estado se reconheça como legal e
matar como milicianos. Agora, eles
José Cláudio Alves – A relação trabalhe com essa concepção para
podem matar de cara limpa e vão
das milícias com o Estado é determi- todos nós, o determinante aqui é a
dizer que estavam no cumprimento
nante para o que ela se transformou dimensão ilegal, que ultrapassa a di-
do seu dever, sob forte tensão. Tra-
nos dias de hoje, uma estrutura de mensão do legal, ampliando os pode-
ta-se da ampliação e explosão de um
poder absoluta, ampla, autoritária, res do Estado e dando a ele uma face
processo que já está em crescimento
expressiva e crescente no Rio de Ja- cada vez mais totalitária, absoluta,
e expansão. É isso que nos assusta,
neiro. Tenho dito que a milícia atua irresistível, incontornável e capaz
porque irá gerar dimensões mais
com duas faces que são determinan- de controlar massas e espaços geo-
graves e desrespeitosas dos direitos
tes: a legal e a ilegal. gráficos ao longo do tempo, de uma
da população. Esse pacote também
forma como nós vivemos hoje. Essa
A face legal da milícia é a condição aumenta a punitividade, amplia a di-
face ilegal amplia o poder do Estado,
de ter acesso a informações privile- mensão de encarceramento, amplia
não restringe o seu poder. Não é o
giadas do Estado a respeito de ter- as penas, o que é uma grande ilusão,
anti-Estado, o poder paralelo, mas
ras, propriedades, monopólios de porque é na dimensão penitenciária
sim a presença multidimensional de
comércios, pagamentos de impos- que se dá a organização dessas gran-
um Estado autoritário, totalitário e
des facções.
tos, sobre operações policiais que ditatorial. Nós nunca saímos da dita-
blindam a milícia de prisões; tudo dura; saímos da ditadura oficial para Encarcerar e prender não vai resol-
isso faz parte da dimensão legal. a ditadura dos grupos de extermínio ver o problema. Pelo contrário, hoje

EDIÇÃO 532
ENTREVISTA

as facções operam pelo sistema pe- o efeito que o carnaval trouxe para o elimina as divergências e oposições.
nitenciário. É preciso fazer o contrá- país inteiro em termos da crítica, da Ele é a expressão disso.
rio: desmontar essas estruturas, es- afronta, da insubordinação e da re-
Enfim, temos a milícia no poder.
vaziá-las e tratar as drogas não como sistência a essa dimensão da extrema
Ela chegou a se consolidar numa di-
problema de polícia, mas de saúde direita no poder. Bolsonaro expressa
mensão municipal, estadual e fede-
e de educação. É preciso desmili- isso tentando fazer do carnaval o
ral, numa dimensão mais crescente.
tarizar a polícia para que o policial mesmo discurso de mentira, de dis-
É esse meu diagnóstico. Essa dimen-
dialogue com a população e construa simulação e destruição que ele fez na
são do que ocorre no carnaval é a ex-
uma lógica política de proteção, para época da campanha eleitoral do ano
pressão da resistência, a expressão
que o policial não seja o agente que passado, como ele fez com a campa-
aguerrida de luta popular em espa-
mais mata e que mais morre. Então, nha que as mulheres iniciaram do
ços em que o povo está para expres-
é preciso reformular a estrutura e #EleNão. Ali foi feita a mesma es-
sar a sua inconformidade com tudo
não reforçá-la e ampliá-la. De outro tratégia: foram montadas fake news
que vem acontecendo.
lado, é preciso investir em políticas com imagens de mulheres nuas e em
públicas que possam proteger essa situações diferenciadas em relação à Espero que esses espaços se am-
população mais frágil. Não vemos tradição moral e familiar que esses pliem na sociedade como um todo,
isso. Vemos a perda e a destruição grupos defendem, para desqualifi- que a verdade vença, supere esse
dos direitos dos trabalhadores. Esse car as manifestações. Até que ponto ódio, mentira, covardia e essas exe-
pacote do Moro avança no caminho ele vai conseguir resultados, man- cuções sumárias de um Estado to-
inverso do que deveria ser. Esses tendo essa estratégia? A impressão talitário e de uma sociedade que se
grupos vão se fortalecer mais ainda que dá é que ele está se lixando para sujeita a esse totalitarismo. Espero
com essas medidas. o que a sociedade faz; ele não quer o retorno à consciência, à solidarie-
governar. Ele quer dilapidar, quer dade, à lucidez, à compaixão, aos di-
destruir, assassinar e investir em di- reitos e à proteção dos mais fracos, e
IHU On-Line - Como o senhor
mensões conservadoras, em perdas não esse Estado dilapidado. Isso não
avalia o fato do caso Marielle ter
de direitos, em redução do papel da pode ser feito com ilusões: hoje esse
ocupado outros espaços, che-
mulher na sociedade, na diminuição Estado é algoz de toda a população
56 gando até mesmo ao Carnaval?
de direitos de gays, lésbicas, traves- brasileira e a milícia é a expressão
José Cláudio Alves – O fato de tis, quer aprofundar a dimensão do mais brutal e violenta desse tortu-
Bolsonaro ter postado imagens qua- racismo contra as populações negras rador que está na nossa frente. Esse
se pornográficas, se referindo ao car- e indígenas. Ele é uma bomba de hi- é o dilema que a sociedade terá que
naval nessas dimensões, comprovam drogênio de efeito devastador que enfrentar. ■

Leia mais
- Intervenção no Rio de Janeiro é mais uma encenação político-midiática. Entrevista
especial com José Cláudio Alves, publicada nas Notícias do Dia de 20-02-2018, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em https://bit.ly/2Ffhxz.
- Marielle e os dois pilares do poder e do capitalismo: o patriarcado e o aparato do Es-
tado penal racista. Entrevista especial com Alana Moraes e José Cláudio Alves, publicada
nas Notícias do Dia de 23-03-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em https://bit.ly/2HzNDrW.
- UPPS e a reestruturação do tráfico no Rio de Janeiro. Entrevista especial com José
Cláudio Alves, publicada nas Notícias do Dia de 24-10-2013, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em https://bit.ly/2JgPmon.
- “A lógica do PCC é a lógica da sociedade brasileira”. Entrevista especial com José Cláu-
dio Alves, publicada nas Notícias do Dia de 13-11-2012, no sítio do Instituto Humanitas Uni-
sinos – IHU, disponível em https://bit.ly/1Q8HSLx.
- Uma guerra pela regeografização do Rio de Janeiro. Entrevista especial com José Cláu-
dio Alves, publicada nas Notícias do Dia de 26-11-2010, no sítio do Instituto Humanitas Uni-
sinos – IHU, disponível em https://bit.ly/1FebVfP.

18 DE MARÇO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

Mistério da economia (divina)


e do ministério (angélico)

A
edição 280 dos Cadernos IHU Ideias apresenta o texto Mistério da
economia (divina) e do ministério (angélico), de Alan Gignac. A hi-
pótese central defendida por Alain Gignac, no presente artigo, é que
“Agamben busca, num primeiro momento, articular a vida interna e eterna
de Deus com sua ação providencial e temporal no mundo, duas faces dis-
tintas de uma mesma medalha que
nunca devem ser separadas”. Já em
um segundo momento, o autor ates-
ta que Agamben parece demonstrar
de forma precisa esse ponto de não
separação, que a política moderna,
infelizmente, adquiriu apenas a parte
imanente do dispositivo econômico,
promovendo, desta forma, um sé-
rio e profundo desequilíbrio, dando 57
origem à biopolítica. “A solução de
Agamben consiste em encontrar arti-
culação bipolar original, redescobrin-
do a dimensão contemplativa ociosa
da vida divina, ou melhor, do tempo
messiânico”.
Alain Gignac é doutor em Teologia
Prática, diretor do Instituto de Estu-
dos Religiosos da Faculdade de Artes
e Ciências (Faculdade de Teologia e
Ciências da Religião da Universida-
de de Montreal) do Canadá, desde
1999, onde leciona Novo Testamento.
Especializado no corpus paulino, ele
interessa-se pelos métodos de aná-
lise sincrônica (retórica, estrutural,
narratológica e intertextual) e os seus
impactos hermenêuticos.
A versão completa deste Cadernos
IHU Ideias está disponível em http://
bit.ly/2Y0uJAn.

EDIÇÃO 532
PUBLICAÇÕES

A Campanha da Legalidade e a
radicalização do PTB na década de
1960. Reflexos no contexto atual

A
edição 281 dos Cadernos IHU Ideias apresenta o texto A Campanha
da Legalidade e a radicalização do PTB na década de 1960. Refle-
xos no contexto atual, de Mário José Maestri Filho. Neste artigo, o
autor procura “analisar sinteticamente a Revolução de 1930, o nacional-
desenvolvimentismo getulista, e os governos de Dutra, JK e Jânio Qua-
dros”. A pesquisa aborda “a renúncia de Jânio e as condições que permi-
tiram a derrota da tentativa golpista”. Por
fim, o autor estabelece uma rápida apro-
ximação entre “aqueles sucessos e os dias
atuais”. Segundo Maestri, diferentemente
do ato extremo de Vargas em 1954 e da in-
surgência da Campanha da Legalidade em
1961 liderada por Leonel Brizola, “a rendi-
ção de Lula em 7-4-2018 sem resistência
58 [...] teve consequências desastrosas para o
movimento social”.
Mário José Maestri Filho possui gra-
duação em Ciências Históricas pela Uni-
versité Catholique de Louvain (1977), mes-
trado em Ciências Históricas – UCL (1977)
e doutorado em Ciências Históricas – UCL
(1980). Atualmente é professor titular do
Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade de Passo Fundo – UPF.
A versão completa deste Cadernos IHU
Ideias está disponível em http://bit.ly/2Cl-
f7hm.
Estas e outras edições dos Cadernos IHU
Ideias também podem ser obtidas direta-
mente no Instituto Humanitas Unisinos -
IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos
(Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo en-
dereço humanitas@unisinos.br. Informa-
ções pelo telefone (51) 3590-8213.

18 DE MARÇO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

Vegetarianismo: uma opção ética

Edição 350 – Ano X – 8-11-2010

A preocupação ambiental e a conscientização de que os animais também


são seres que merecem respeito e têm direito à vida estão levando mui-
tas pessoas a aderirem ao vegetarianismo. A IHU On-Line entrevistou
alguns militantes que optaram pelo vegetarianismo ou o veganismo e
pesquisadores e pesquisadoras que estudam o tema.

Desperdício e perda de alimentos: Impactos


sociais, econômicos e ambientais 59

Edição 452 – Ano XIV – 1-9-2014

Em maio de 2014, realizou-se na Unisinos o XV Simpósio Internacional


IHU tendo como tema “Alimento e nutrição no contexto dos Objetivos do
Milênio”.
O evento inspirou e suscitou o tema de capa da revista IHU On-Line Nº
452, pois a perda e o desperdício de alimentos implicam enormes impac-
tos sociais, econômicos e ambientais, como atestam os pesquisadores que
participam do debate travado nas páginas dessa edição.

O ECOmenismo de Laudato Si’: da crise


ecológica à ecologia integral

Edição 469 – Ano XV – 3-8-2015

Frente ao paradigma tecnocrático dominante, a Carta Encíclica do Papa


Francisco Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum, coloca em causa
o lugar do ser humano na contemporaneidade. Essa edição da revista
IHU On-Line debate o documento pontifício no contexto das mudanças
climáticas que desafiam o cuidado da casa comum.

EDIÇÃO 532
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