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A felicidade não se compra

Fenômeno cultural, tema extrapola os manuais de auto-ajuda e passa a ser valorizado


nas universidades

PILITA CLARK
Folha de S. Paulo, 27.8.2006

Bob, 35, é um intelectual bem apessoado, atlético, branco e ganha cerca de US$ 100 mil [R$
215 mil] por ano. Vive na ensolarada Califórnia e dedica suas horas vagas à leitura e a visitas
a museus. Mary, 65, é uma mulher negra, sociável e de aparência comum, sofre de excesso de
peso e necessita de hemodiálises e passa a maior parte de seu tempo livre envolvida em
atividades de sua igreja.

Ela vive com o marido em uma região gélida do Estado de Nova York, e a renda conjunta do
casal não passa de US$ 40 mil [R$ 86 mil]. Em sua opinião, qual dos dois é mais feliz?

Antes de começar a ler alguns dos novos livros sobre a chamada "pesquisa da felicidade",
minha aposta seria a de que Bob sem dúvida é mais feliz. Mas talvez me equivocasse, de
acordo com Jonathan Haidt, psicólogo da Universidade da Virgínia que propõe os casos de
Bob e Mary em seu trabalho, "The Happiness Hypothesis -Putting Ancient Wisdom to the
Test of Modern Science" [A Hipótese da Felicidade - Submetendo a Sabedoria do Passado ao
Teste da Ciência Moderna, ed. William Heinemann, 299 págs., 17,99 libras, R$ 73].

Uma das mais importantes constatações da pesquisa sobre a felicidade, diz Haidt, é que
vantagens ambientais e demográficas -como saúde, prosperidade, juventude e sol, de que Bob
desfruta- são menos importantes do que acreditamos.

O casamento e conexões sociais fortes são mais importantes, de modo que a probabilidade é
de que Mary seja mais feliz do que Bob.

Os estudos sobre a felicidade -ou "a nova ciência da felicidade"- se tornaram assunto comum
em toda parte recentemente. A BBC2, na Inglaterra, acaba de exibir uma série em seis
episódios sobre o tema ["The Happiness Formula"/A Fórmula da Felicidade].

O curso mais popular em Harvard, no momento, é um ciclo de aulas sobre a questão da


felicidade, também conhecida como "psicologia positiva". A Universidade de Cambridge e o
Wellington College, um internato inglês, também oferecem esse tipo de curso.

A estratégia estóica

A safra recente de livros sobre o tema é um sintoma da felicidade como fenômeno cultural.
Mas esses escritores também estão alimentando os debates, porque atraem mais atenção dos
leitores convencionais a pesquisas acadêmicas anteriores sobre o tema, conduzidas por
economistas, filósofos, psicólogos e geneticistas.
Assim, o que um estudo acadêmico pode acrescentar a um tópico a um só tempo familiar e
fugaz como a felicidade? A felicidade é um território comum para os filósofos. Desde Platão e
Aristóteles, eles acreditam que o contentamento depende de levar uma "vida boa", virtuosa e,
por isso, satisfatória.

E nós compreendemos (ainda que nem sempre concordemos com) as grandes figuras
religiosas da história, para as quais a felicidade é uma recompensa por uma vida bem vivida.
Mas será que há de fato algo como um estado objetivo de felicidade que possa ser observado e
mensurado cientificamente? Sim, segundo os estudiosos contemporâneos da felicidade.

Os psicólogos dizem que o simples ato de perguntar às pessoas como elas se sentem, ao longo
do tempo, pode servir como uma indicação surpreendentemente acurada de seu grau de
contentamento.

Os níveis de felicidade reportados podem ser verificados adicionalmente, dizem eles, por
meio de mensurações eletrônicas da atividade cerebral (as pessoas felizes têm mais atividade
na parte frontal esquerda do cérebro, enquanto a atividade cerebral das pessoas infelizes é
mais intensa na parte frontal direita).

Os economistas que desenvolvem trabalhos sobre a teoria da felicidade dizem, adicionalmente,


que essas constatações deveriam nos ajudar a dar forma às questões políticas, dedicando mais
atenção ao "bem-estar geral" do qual Cameron agora fala.

Cruzada pela felicidade

Mas o movimento da felicidade está causando muita infelicidade a algumas pessoas. Os


cursos do Wellington College são "uma receita de mediocridade", de acordo com um crítico
do "Independent", "frouxos intelectualmente" (para o "Daily Mail") e "uma fórmula ideal para
criar bons animais" (para o "Times").

Frank Furedi, professor de sociologia na Universidade de Kent, diz que a nova "cruzada pela
felicidade" deixaria feliz o controlador, no admirável mundo novo de Aldous Huxley.

Para Furedi, o segredo da felicidade é um paradoxo: só se pode encontrá-la quando se sai à


procura de alguma outra coisa, a saber, a vida virtuosa defendida pelos antigos gregos.
"Felicidade", ele escreveu, "é o resultado direto de trabalhar na companhia de terceiros na
promoção das virtudes cívicas, tentando fazer o bem".

Um caso persuasivo quanto à posição dos cientistas -e não dos sábios- sobre a felicidade pode
ser encontrado em cinco novos livros sobre o tema, entre os quais um título que tenta
argumentar em sentido oposto.

Richard Schoch, professor de história da cultura no Queen Mary College, da Universidade de


Londres, defende com firmeza a teoria de que os pensadores da Antigüidade sabiam o que

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diziam. Eu estava realmente interessada em ler o livro de Schoch, "The Secrets of Happiness -
Three Thousand Years of Searching for the Good Life" [Os Segredos da Felicidade -Três Mil
Anos em Busca da Vida Boa, Profile Books, 243 págs., 15,99 libras, R$ 65].

Ele toma por alvo preferencial Richard Layard, cujo "Happiness - Lessons from a New
Science" [Felicidade - Lições de uma Nova Ciência, 2005] se tornou uma bíblia para os novos
defensores do utilitarismo, que se convenceram pelo argumento do livro no sentido de que a
capacidade de mensurar a felicidade pode ter significativas implicações políticas.

Uma das observações centrais de Layard é que, ainda que os ocidentais ganhem mais, se
vistam melhor e vivam em casas mais confortáveis, não são necessariamente mais felizes. E,
quando a renda média supera o nível de US$ 20 mil [R$ 43 mil] per capita, ter mais dinheiro
não garante mais felicidade.

Esforço para ser feliz

Assim, os governos fariam bem em elevar os impostos e combater diretamente grandes fontes
de miséria, como as doenças mentais, que respondem por um quarto dos problemas de saúde,
mas recebem só 13% das verbas públicas de saúde na Inglaterra e 7% nos EUA.

Mas Schoch diz que a definição de Layard para a felicidade ("sentir-se bem, desfrutar da vida
e desejar que essa sensação se mantenha") é uma versão "mais fraca e frouxa" do
contentamento e que "a dita "nova ciência" da felicidade perpetua essa noção empobrecida do
que constitui uma boa vida".

A verdadeira felicidade, diz ele, requer muito mais esforço. O melhor é considerar as lições de
distanciamento e indiferença oferecidas por pensadores estóicos, tais como Sêneca, ou as
tradições da ioga jnana, na Índia, cujos praticantes abrem mão de suas famílias, casas,
propriedades e carreiras a fim de buscar a sabedoria e, com ela, a verdadeira felicidade.

Schoch admite que largar os filhos, cônjuges, lares e empregos não é uma alternativa muito
realista para a maioria de nós. "Mas esse é o nosso problema", argumenta, "e revela mais
sobre nós -nossa fraqueza, temores ou talvez apenas as circunstâncias que nos pressionam de
todos os lados- do que sobre a felicidade".

Nicholas White, professor de filosofia na Universidade da Califórnia (Irvine) oferece uma


versão mais balanceada quanto à natureza dos antigos, em "A Brief History of Happiness"
[Uma Breve História da Felicidade, Blackwell Publishing, 194 págs., 9,99 libras, R$ 40].

Receita grega falida

A principal preocupação do livro de White (um trabalho infelizmente muito chato) é uma
tentativa de explicar de que maneira o pensamento sobre a felicidade mudou, da Antigüidade

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à teoria utilitária defendida por Jeremy Bentham no século 19, segundo a qual ela deve ser
definida como "a maior felicidade para o maior número".

Infelizmente, o trabalho de White mal menciona as teorias mais recentes sobre a felicidade.
Mas ele reconhece que, no que tange a dar conselhos sobre a felicidade, os filósofos talvez
não sejam a melhor fonte.

"Os conselhos práticos dos filósofos sobre como obter felicidade não são muito melhores (na
verdade, são provavelmente piores) do que os dados por uma pessoa comum", afirma White.
"Filósofos normalmente não estão suficientemente informados sobre os fatos relevantes, e
falta-lhes o temperamento adequado."

Além disso, a receita grega para uma vida feliz era ocasionalmente fruto de rígido
planejamento. Isso, afirma, se deve ao fato de que Platão e Aristóteles eram
fundamentalmente educadores privados, "e seu trabalho era persuadir os homens privilegiados
de Atenas a enviar-lhes os filhos para que estes fossem treinados e pudessem construir uma
carreira".

Isso significa que eles viam a necessidade de planos, o que requereria educação para que
fossem implementados. A vida real, evidentemente, pode ser muito mais complexa.

Algumas coisas realmente tornam os


seres humanos mais felizes, e pelas
quais vale a pena lutar: por
exemplo, a percepção do controle
sobre a própria vida

Uma narrativa muito mais abrangente, e escrita de modo mais gracioso, sobre a evolução do
pensamento humano em relação à felicidade nos é oferecida por Darrin McMahon, professor
de história na Universidade Estadual da Flórida, em "The Pursuit of Happiness - A History
from the Greeks to the Present" [A Busca da Felicidade - Uma História, dos Gregos até o
Presente, Allen Lane, 560 págs., 25 libras, R$ 100].

Ele demonstra cautela com relação a alguns dos pensadores mais recentes quanto à felicidade:
"O mais provável é que as recentes "revelações" dos psicólogos devam ser tratadas como
menos genuinamente reveladoras do que eles e os departamentos de publicidade de suas
editoras gostariam que acreditássemos".

Mesmo assim, ele reconhece que muitos dos novos estudos "oferecem indicações empíricas
quanto ao processo de busca da felicidade, cujo ritmo acompanhamos em contextos menos
clínicos ao longo de mais ou menos 25 séculos".

Correndo atrás

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Um dos psicólogos que McMahon menciona é provavelmente o mais divertido dos estudiosos
acadêmicos da felicidade -Daniel Gilbert, professor da Universidade Harvard e autor de
"Stumbling on Happiness" [Tropeçando em Felicidade, Harper Press, 277 págs., 14,99 libras,
R$ 60]. Gilbert se especializa em "prospecção", o estudo da maneira pela qual pensamos
sobre o nosso futuro.

Gilbert descarta rapidamente a idéia de que os antigos detêm o monopólio sobre a sabedoria
com relação à felicidade, em parte porque as vidas deles eram fundamentalmente diferentes
das nossas.

Como diz, nós raramente pensamos sobre o fato de que quase todos nós temos três grandes
decisões a tomar: onde viver, o que fazer e com quem casar. Mas estamos entre os primeiros
seres humanos a exercer esse direito de escolha.

Ao longo da maior parte da história documentada, as pessoas viviam na região em que


nasciam, faziam o que seus pais faziam (filhos de moendeiros trabalhavam em moinhos;
filhos de ferreiros trabalhavam em ferrarias) e se casavam de acordo com suas religiões,
castas ou da geografia.

Continuamos a nos esforçar para


adquirir carros maiores ou amantes
melhores, mesmo quando a
experiência nos ensina que nos
adaptaremos rapidamente aos novos
encantos e que eles não nos
tornarão mais felizes

As revoluções agrícola, industrial e tecnológica deflagraram uma explosão de liberdade


pessoal que nossos ancestrais nunca exerceram e, como diz Gilbert, "pela primeira vez a
felicidade está em nossas mãos".
O problema é que, como diz Gilbert, o cérebro humano está pateticamente mal equipado para
decidir o que fazer a fim de obter a máxima felicidade. Somos apenas, ele argumenta, animais
cujos cérebros conseguem imaginar o futuro.
"Até que um chimpanzé chore quando pensar na idéia de que envelhecerá sozinho ou sorria
pensando em suas férias de verão ou recuse um doce porque não pode usar calção sem revelar
as gordurinhas", os seres humanos sempre se distinguirão pela capacidade de imaginar que
caracteriza os nossos cérebros.
Mas não imaginamos muito bem quando se trata de pensar sobre a felicidade futura.
Poderíamos aproveitar as experiências e conselhos alheios, mas isso não acontece, em parte
porque cada um de nós acredita ser terrivelmente especial.

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Como demonstram diversos estudos citados por Gilbert, os jovens norte-americanos esperam
viver mais, ter casamentos mais longos e viajar mais vezes à Europa do que a média real de
suas faixas etárias.
Eles também acreditam que as chances de gerar um filho com dotes excepcionais, adquirir
casa própria ou ler seu nome nos jornais são maiores que as chances de sofrer um acidente de
automóvel ou contrair uma doença venérea (o resto do mundo não é tão otimista quanto os
EUA, mas ainda assim acreditamos que nossos futuros serão melhores do que os dos nossos
coetâneos).
"Habituação"
De modo semelhante, continuamos a nos esforçar para adquirir carros maiores ou amantes
melhores, mesmo quando a experiência nos ensina que nos adaptaremos rapidamente aos
novos encantos e que eles não nos tornarão mais felizes. "Os psicólogos definem esse
processo como "habituação", os economistas empregam o termo "utilidade marginal
declinante" e o resto de nós usa a palavra "casamento'", diz Gilbert.
Também imaginamos que nossa miséria será muito maior do que muitas vezes de fato é,
quando nos acontecem coisas que tememos ou abominamos, seja a morte de um cônjuge ou
paralisia do pescoço para baixo.
Por isso, cremos em Humphrey Bogart quando diz a Ingrid Bergman [em cena de
"Casablanca"], na pista do aeroporto, que, se ela não entrar no avião com o marido Victor, se
arrependerá "pelo resto da vida". Na opinião de Gilbert, ela teria sido no mínimo igualmente
feliz caso ficasse com Bogey, o homem que realmente amava.
Mas, para a palavra final quanto ao confronto entre os pensadores antigos e modernos da
felicidade, devemos voltar a "A Hipótese da Felicidade", de Haidt. Ele explorou de que modo
o pensamento tradicional quanto à felicidade se compara às pesquisas empíricas mais recentes.
Haidt é psicólogo, mas não desdenha de modo nenhum os ensinamentos de Buda ou Confúcio.
Confúcio, por exemplo, estava certo ao insistir em reciprocidade, o princípio de fazer aos
outros o que desejamos que façam por nós. As pesquisas demonstram repetidamente, diz
Haidt, que esse tipo de comportamento é vital para animais sociais como os seres humanos.
Vida longa
Mas as idéias budistas e estóicas de que a felicidade pode ser obtida por meio do
distanciamento ou da indiferença emocional são mais difíceis de acatar hoje em dia.
Ecoando Gilbert, ele afirma que essas idéias talvez fizessem sentido para o passado turbulento
no qual os pensadores antigos viveram, com a vida sujeita aos caprichos de reis belicosos ou
de imperadores romanos volúveis.
Mas já não vivemos dessa forma: "Pela primeira vez na história da humanidade, a maior parte
das pessoas [em países ricos] vive mais de 70 anos e não vê alguns de seus filhos morrendo
antes dela".

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Além disso, ele cita estudos psicológicos recentes que demonstram que algumas coisas
realmente tornam os seres humanos mais felizes, e pelas quais vale a pena lutar: por exemplo,
a percepção do controle sobre a própria vida.
Em um estudo famoso, dois grupos de moradores em casas de repouso receberam benefícios
adicionais -plantas em seus quartos, filmes exibidos uma vez por semana-, mas sob condições
diferentes. Um dos grupos podia escolher as plantas e decidir em que noite o filme seria
exibido; o outro não.
Passados 18 meses, o grupo com mais controle demonstrava saúde melhor e metade do índice
de óbitos do outro grupo.
De maneira semelhante, ficou provado que relacionamentos fortes reforçam o sistema
imunológico, prolongam a vida (por mais tempo que abandonar o fumo), aceleram a
recuperação depois de cirurgias e reduzem o risco de depressão ou de distúrbios relacionados
à ansiedade. O distanciamento certamente parece um caminho bem menos seguro para a
felicidade, em comparação.
De pai para filho
Mas uma das constatações significativas que Haidt menciona talvez seja também a maior
fonte de desânimo sobre o assunto: a felicidade aparentemente demonstra surpreendentes
traços hereditários.
Os pesquisadores acreditam que entre 50% e 80% da variação entre os diferentes médios
níveis de felicidade que as pessoas ostentam pode ser explicada por seus genes, e não pelas
experiências de vida pelas quais elas passam.
É fácil compreender o motivo quando consideramos o caso citado por Haidt sobre as
chamadas "gêmeas risadinhas", Barbara Herbert e Daphne Goodship.
Ambas deixaram a escola aos 14 anos, conheceram seus futuros maridos aos 16, sofreram
abortos ao mesmo tempo e mais tarde tiveram, cada qual, dois meninos e uma menina. As
duas tinham medo de sangue, tomavam café frio e tinham o hábito de esfregar o nariz com a
palma da mão. Como Haidt aponta, nada disso seria motivo de espanto se não soubéssemos
que foram separadas ao nascer e só vieram a se conhecer aos 40 anos de idade e
compareceram ao encontro usando roupas muito parecidas.
Ambas tinham personalidades notavelmente felizes, e o hábito de cair na risada sem conseguir
completar a sentença. Haidt diz que elas "ganharam na loteria do córtex", porque tinham mais
atividade no córtex frontal esquerdo de seus cérebros, o que faz delas "canhotas" em termos
de atividade cerebral e, portanto, menos sujeitas a ansiedade e mais capazes de se recuperar de
experiências negativas, da infância em diante.
Em outras palavras, não importa quanto ganhemos, quão bem nos casemos tampouco o grau
de virtude que exibamos na vida: a busca da felicidade terminará sendo decidida, pelo menos
em parte, pelos genes com que chegamos ao mundo.
Jamais poderemos saber o que Platão ou Aristóteles pensariam sobre essas descobertas. E
talvez o fato de saber esse tipo de coisa não nos torne mais felizes. Mas elas certamente

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revelam tanto sobre o duradouro desejo humano de felicidade quanto os ensinamentos de
sábios que viveram vidas tão diferentes das nossas há mais de 2.000 anos.

Este texto foi publicado no "Financial Times".


Tradução de Paulo Migliacci.

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